IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN 978-85-7745-551-5
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A MUNDIALIZAÇÃO DO CAPITAL, O PAPEL DO ESTADO E O CONCEITO DE PARTICIPAÇÃO NA POLÍTICA EDUCACIONAL
Alzira Batalha Alcântara
[email protected] (UERJ / UNESA)
Resumo
A partir do contexto de mundialização do capital, pretende‐se debater o papel do Estado, as transformações no conceito de participação, de liberdade e suas implicações na política educacional, sobretudo no campo da gestão, a partir dos anos 90 até o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), em 2007. Para tanto, Chesnay, Mészaros, Poulantzas, Boron, Montaño, Silva e Paro foram alguns dos interlocutores privilegiados. Na reestruturação do capital foram retomados princípios clássicos do liberalismo, em especial a noção de liberdade. Com uma liberdade plena, todos supostamente ganhariam, pois a competitividade estaria em condições ideais através da restauração da “mão‐invisível”. Em nome da liberdade de ação, advoga‐se o mercado como saída para restaurar a rentabilidade. Todos estariam livres para apresentar suas aptidões e, assim, obterem sucesso na escala social. Segundo Chesnay (2001), no processo de reorganização do capital, o Estado teve um papel fundamental, inclusive, no desmantelamento de normas e instituições então vigentes que possibilitaram ampla liberdade de ação ao capital. Esse mesmo Estado, no entanto, cerceia o ir e vir do trabalhador e desorganiza movimentos operários e sindicais subordinando a política social ao novo arranjo econômico. Neste contexto, o Estado, os sindicatos, a noção de participação, o conceito de gestão e o próprio trabalhador deviam ser metamorfoseados. Exigia‐se um rearranjo político‐social que se adequasse à reestruturação do mundo capitalista. A luta coletiva era deslegitimada em prol do individualismo e do conformismo. Os sindicatos deviam perder a sua identidade como espaço de resistência e assumir o papel de parceiro na construção de novos pactos sociais. A política educacional, enquanto área da política social, também foi reconfigurada para se adequar às novas exigências. Nos anos 90, a educação imersa num ideário salvacionista foi apresentada em diferentes documentos internacionais como instrumento para assegurar a competitividade de um país. Em relação à gestão democrática, bandeira tão valorizada nos anos 80, a Lei de Diretrizes e Bases /LDB 9394/96 foi bastante lacônica. O mesmo ocorre com os conselhos educacionais. Estes, a princípio, indicam práticas democráticas, pois, supostamente, implicam a participação de distintos segmentos da sociedade. No entanto, até que ponto esses conselhos asseguram uma efetiva participação da sociedade? O PDE em proclamado um compromisso com a democratização da educação, tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo. Qualidade que se traduz na busca de uma melhoria da educação, que implica, entre outros aspectos, um regime de colaboração pautado numa gestão participativa. Ocorreu, na prática, uma superposição de planos e o incentivo à institucionalização de distintos conselhos, fato visível no Plano de Ações Articuladas /PAR. Contudo, os critérios presentes nos indicadores do PAR da área da gestão democrática apontam para uma institucionalização de mecanismos de representação formal, que não possibilitam uma participação substancial dos múltiplos sujeitos envolvidos na educação. Conclui‐se que, embora o governo federal tenha potencialidade para induzir políticas, não vêm sendo construídos caminhos que auxiliem na superação dessa cultura dominante, pautada numa concepção elitista e formal. Palavras‐chave: Política educacional. Estado. Participação. Mundialização do Capital.
Pretende‐se, a partir do contexto de mundialização do capital, debater o papel do Estado,
as transformações no conceito de participação, de liberdade e suas implicações na política
educacional, sobretudo no campo da gestão, abarcando o período da redemocratização, em
especial a partir dos anos 90 até o Plano de Desenvolvimento da Educação, em 2007. A política
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adotada nos anos 90 colidiu com as bandeiras e expectativas gestadas no processo de
redemocratização. Houve um refluxo dos movimentos sociais, em especial das lutas sindicais, e
uma mercantilização desenfreada dos direitos sociais, sobretudo a partir do governo Fernando
Henrique Cardoso (FHC), que promoveu uma “reforma” do Estado, a fim de viabilizar, do ponto de
vista jurídico e ideológico, mudanças econômicas e políticas. Para tanto, esta foi apresentada
como uma resposta inexorável diante das transformações capitalistas e de interesse de toda a
sociedade. Tal movimento estava afinado com mudanças maiores do próprio capitalismo e
proporcionou uma reconfiguração na noção de participação e gestão democrática.
Uma liberdade genérica: persiste uma relação assimétrica
Em nome da liberdade de ação, da competitividade, advoga‐se o mercado como saída para
restaurar a rentabilidade. No processo de reorganização do capital, foram retomados princípios
clássicos do liberalismo, em especial a noção de liberdade. Com uma liberdade plena, todos
supostamente ganhariam, pois a competitividade estaria em condições ideais através da
restauração da “mão‐invisível”, da ação do mercado. Todos estariam livres para apresentar suas
aptidões e, assim, obterem sucesso na escala social, isto é, revigorou‐se a meritocracia. Todavia, o
que esta liberdade escamoteia? Por um lado, esta liberdade não está posta para todo e qualquer
capital e, por outro, vale lembrar, que o sentido de liberdade para o trabalhador restringe‐se ao
campo do Estado de direito, da igualdade formal, outro preceito liberal. Em diferentes partes do
mundo, medidas legais cerceiam o ir e vir deste trabalhador. Sua liberdade de movimentação
restringe‐se aos estritos limites dos interesses do capital. Ademais, nunca é demais ressaltar que a
liberdade de escolha do trabalhador não é a mesma do capitalista. São de naturezas distintas,
ainda que tal diferença tenda a ser diluída no ideário liberal. Para o capitalista, sua escolha pode
interferir no grau de lucratividade, mas o trabalhador necessita se submeter a um “contrato” para
garantir a venda de sua força de trabalho, condição essencial para assegurar sua sobrevivência.
Segundo Chesnais (2001), a bandeira do mercado é um verdadeiro eufemismo, pois encobre um
movimento concentrador de poder econômico por parte do capital industrial e, em especial, do
financeiro. Há uma ilusão de liberdade, pois as trocas não se efetuam livremente, mas conforme
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os interesses dos grandes grupos econômicos que movimentam o capital de forma a fugir dos
impostos e auferir maiores lucros. Ou seja, os investimentos feitos pelo capital passam por
critérios altamente seletivos. O poder destes grupos é tão expressivo que podia, segundo
Chesnais, “curto‐circuitar” o próprio mercado. Por trás deste manto da liberdade – ampla para o
grande capital – há um rearranjo político e econômico, em que o capitalismo impõe um tipo de
existência imediatista que perpassa diferentes dimensões da vida social. Vale o “aqui e agora”, a
sociedade do descartável, o “ficar”, o pragmatismo como concepção de vida. O tempo parece voar
e resta a sensação de um “envelhecimento” precoce diante da recusa deste jeito de ser e agir.
Mészáros (1989) ressalta que o caráter de utilidade no capitalismo é definido em função do
grau de rentabilidade. Diante do imperativo da lucratividade, há uma redução contínua e
crescente do valor de uso em benefício do valor de troca. Ou seja, no capitalismo avançado, a taxa
de uso é decrescente em relação seja aos bens e serviços, instalações e maquinário, seja ao uso da
força de trabalho, o que é especialmente perverso para os subalternos. Afinal, a necessidade cada
vez menor de trabalho vivo acirra uma contradição estrutural do capitalismo: o desemprego.
Mészáros aponta como o avanço tecnológico justifica, do ponto de vista ideológico e político, uma
“taxa de obsolescência planejada”, em relação tanto aos bens de consumo, que se tornam
prematuramente obsoletos, “exigindo” a sua substituição1, quanto à força de trabalho, que carece
de uma requalificação permanente para acompanhar o processo de reestruturação produtiva.
Nesta ótica, o trabalhador de vítima passa a ocupar o lugar de réu, pois, caso se encontre
“excluído” do mercado de trabalho, é porque usufruiu mal de sua liberdade de escolha, isto é, não
fez as opções mais convenientes para o seu processo de qualificação/requalificação profissional.
1 A prematura obsolescência do valor de uso de bens e serviços, apontado por Mészáros, nunca foi tão evidente. Todavia, tal fato está longe de ser observado criticamente pela maioria da sociedade. Perde‐se, na memória, o tempo em que móveis e eletrodomésticos, por exemplo, podiam atravessar décadas. Ao se observar a voracidade do consumo, a “necessidade” em adquirir – ou simplesmente substituir pela ‐ mercadoria mais moderna, de última geração, seja a TV de plasma, o celular, o iPod, o lap top, o vídeo game, evidencia‐se o poder que o capital possui em criar necessidades, ainda que em detrimento, muitas vezes, de bens mais essenciais para nossa alegria e bem‐estar. Faz‐se urgente debater tal questão e evidenciar nossas prisões demarcadas por grades invisíveis.
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O Estado na mundialização do capital
Chesnais ressalta a importância de se rechaçar as representações que apresentam a
mundialização do capital como um fenômeno natural ou mesmo exclusivamente econômico.
Afinal, sem a ajuda dos Estados, os grandes grupos industriais e financeiros não teriam “chegado
às posições de domínio que sustentam hoje” (2001, p.11). O capital só obteve uma ampla
liberdade de ação e de movimentação no plano internacional a partir de medidas legislativas que
desmantelaram as instituições e normas então vigentes. Além disso, como já exposto, a liberdade
não possui mão‐dupla, pois ela é máxima quando se refere aos interesses do capital, mas é
interditada quando se trata da ótica dos trabalhadores. Ou seja, o Estado não só estipula a
natureza da liberdade como também a quem cabe desfrutá‐la. Assim,
[...] o triunfo atual do “mercado” não poderia ser feito sem as intervenções políticas repetidas das instâncias políticas dos Estados capitalistas mais poderosos, os Estados Unidos assim como os outros países membros do G7. Graças a medidas cujo ponto de partida remonta a “revolução conservadora” de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan dos anos 1979‐1981, o capital conseguiu soltar a maioria dos freios e anteparos que comprimiram e canalizaram sua atividade nos países industrializados (CHESNAIS, 2001, p.10).
Para consolidar esta política de desregulamentação, Chesnais também destaca como
fundamental o “Consenso de Washington” e o tratado de Marrakech de 1994, que instituiu a
Organização Mundial do Comércio (OMC)2. Ainda que os apologistas do mercado tenham
explorado a queda do Muro de Berlim (1989) e o desmoronamento do regime soviético (1991),
Chesnais considera que a restauração liberal ganhou impulso uma década antes. Os dirigentes
políticos e sindicais que buscaram conter movimentos genuinamente democráticos e
anticapitalistas, ocorridos no período de 1968‐1978, tanto na Europa quanto nos EUA, acabaram
por fortalecer grupos políticos conservadores. Os acontecimentos de 1989‐91 certamente
corroboraram para “acentuar as mudanças nas relações econômicas e políticas entre o capital e
2 A OMC foi fundada em substituição ao Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT). A OMC “visa promover e regular políticas relativas ao comércio entre as nações”. Devemos estar atentos à OMC porque ela “incluiu, na sua pauta de serviços comercializáveis, a educação escolar” (NEVES & PRONKO, 2008, p.92).
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trabalho”, como também para implantar a ideia da vitória do mercado, do seu caráter inexorável.
Decretava‐se, portanto, o “fim da história”, o fim das utopias.
Tais ideias têm tido um duplo papel. Por um lado, apresentam uma função conformadora,
pois se erigiu um consenso em torno da falta de alternativas; por outro, encobrem o caráter feroz
e o efeito camaleão em que o capitalismo, mais do que nunca, tem se revestido. Bandeiras e
conquistas de ontem foram desqualificadas ou substituídas, em face da “impossibilidade” de sua
continuidade. Neste sentido, José Paulo Netto afirma que o
[...] capitalismo nunca esteve tão bem organizado quanto atualmente, com uma insuspeitada capacidade de se refuncionalizar e de responder rapidamente a novas demandas. Tudo indica que este processo de reconversão do capitalismo em escala planetária é um componente fulcral para a análise da vulnerabilidade de instituições que foram decisivas na constituição e na manutenção do chamado Estado de bem‐estar social (NETTO, 1995, p.31).
Se o capital se mundializou, este processo “não apaga a existência dos Estados Nacionais
nem as relações políticas de dominação e de dependência entre estes. Ao contrário, acentuou os
fatores de hierarquização entre estes” (CHESNAIS, 2001, p. 14). Por um lado, a ação dos Estados
foi – e ainda é ‐ fundamental para criar mecanismos e estratégias que possibilitam ao capital alçar
grandes voos: ampliou a liberdade deste capital, tornou o trabalhador cada vez mais vulnerável ao
desorganizar os movimentos operários e sindicais, subordinou a política social ao novo arranjo
econômico, trazendo perda de direitos e conquistas históricas. Por outro, naturaliza‐se uma
redefinição na divisão internacional de trabalho em que se sacramenta, em novos moldes, uma
subordinação do Terceiro Mundo em relação aos países centrais.
Do ponto de vista financeiro, a mundialização do capital foi facilitada pela ruptura
unilateral do sistema Bretton Woods, no início dos anos 70, realizada pelo governo norte‐
americano, tornando o câmbio flutuante. Tal ruptura abriu caminhos para “medidas mais radicais
de liberalização e desregulamentação financeiras empreendidas a partir de 1979” (CHESNAIS,
2001, p.14). Se a mundialização do capital não é um fenômeno natural, tampouco são seus
resultados.
Durante vinte anos, assistimos à reaparição, nos países pobres, das piores calamidades de desnutrição, isto é, a fome, doenças e pandemias devastadoras. Estas calamidades não são naturais, assim como não o são, nos países da OCDE, o aumento do desemprego, das precariedades e dos sem teto. Elas atingem
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populações que são marginalizadas e excluídas do círculo da satisfação das necessidades básicas, portanto bases da civilização, em razão da sua incapacidade de transformar essas necessidades imediatas em demanda solvente, em demanda monetária. Logo essa exclusão é de natureza econômica (CHESNAIS, 2001, p. 23‐24).
Se o quadro de exclusão é fruto de uma ordem econômica que revigora, com alterações, o
ideário liberal, a ordem política, segundo Chesnais, foi essencial para o forte avanço do capital,
contando com as ações do Estado ou mesmo de partidos e sindicatos que cooptaram
trabalhadores, sobretudo do setor público, a se “adaptarem à mundialização”. Assim, movimentos
de resistência mais expressivos surgem fora da órbita do “movimento operário” oficial, como, no
caso brasileiro, a luta encetada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Chesnais
(2001) realça a ilusão de que se podem encarcerar os grandes grupos econômicos em códigos de
conduta. Vale lembrar a não‐neutralidade do Estado de Direito, ainda que caiba a ele, por um
lado, ocultar os antagonismos de classe e, por outro, legitimar uma igualdade formal, dando, em
especial no contexto latino‐americano, um arcabouço jurídico para o processo de
redemocratização.
A mundialização do capital é um processo complexo que exige ações objetivas e subjetivas.
Por isso, o Estado é fundamental, não havendo contradição entre esta necessidade e a
revitalização do ideário liberal.3 Todavia, o Estado não é um bloco monolítico que responde
mecanicamente aos interesses das classes dominantes. O Estado, segundo Poulantzas, traduz uma
relação de forças que não se restringem às “frações do bloco no poder, mas também a relação de
forças entre estas e as classes dominadas” (2000, p. 143). Como expôs Poulantzas, as lutas sociais
e não apenas as de classe estão
[...] sempre inscritas nos aparelhos de poder que as materializam e que, também eles, condensam uma relação de forças. (...) A configuração precisa do conjunto dos aparelhos de Estado, a organização deste ou daquele aparelho ou ramo de um Estado concreto (exército, justiça, administração, escola, igreja, etc)
3 Se o liberalismo advoga a não intervenção do Estado, cabe frisar que este princípio possui um caráter relativo. Com a revitalização do ideário liberal, recrudesceram as teses do Estado mínimo e do princípio do mercado como ente auto‐regulatório. Curioso observar como muitos dos que abominavam a ação do Estado na economia buscaram enfaticamente o socorro financeiro estatal após a explosão da crise econômica em 2008. Bancos Centrais de vários países desenvolvidos injetaram somas muito expressivas para salvar da bancarrota instituições financeiras e empresas. O Estado salvando o mercado. Manchetes dos jornais beiravam o surrealismo quando empresas privadas de países capitalistas centrais buscavam a nacionalização, ainda que parcial, como saída para a bancarrota.
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dependem não apenas da relação de forças internas no bloco no poder, mas igualmente da relação de forças entre este e as massas populares, logo da função que eles devem exercer diante das classes dominadas. O que explica a organização diferencial do exército, da polícia, da igreja, [acrescentaria o aparelho escolar] nos diversos Estados e que funciona como a história de cada um deles, história que é também a marca impressa em seu arcabouço pelas lutas populares (2000, p. 144).
Se os acontecimentos de 1989/91 colaboraram para espraiar a ideia do caminho único, do
congelamento da história, o Estado tem cumprido um papel essencial na reestruturação do
capitalismo. Coube a ele criar estratégias e medidas diferenciadas que, por um lado,
possibilitaram, do ponto de vista político‐jurídico e econômico, a liberdade tão requerida pelo
capital, e, por outro, cooptaram parcela dos subalternos, desorganizaram seus movimentos e
metamorfosearam bandeiras e conquistas históricas no campo das políticas sociais.
Estado mundializado e metamorfoses múltiplas
Segundo Atílio Borón, as lutas populares impulsionaram as democracias burguesas a
efetuar reformas que proporcionaram ganhos efetivos aos subalternos. Apesar de o processo de
democratização submeter‐se a limites estruturais, por conta das tensões entre a igualdade
proclamada e a desigualdade “material” implícita nas relações burguesas, Borón ressalta que não
se podem desmerecer os avanços registrados desde a Primeira Guerra nem “minimizar as
dimensões do Estado Keynesiano de bem‐estar desde os anos 30” (1995, p. 74). Todavia, ele alerta
que, ao longo da história, homens e mulheres sempre lutaram por “novas e mais fecundas formas
de participação e de construção do poder político” (1995, p. 76). Ou seja, contentar‐se com uma
noção de democracia minimalista, nos marcos da representação política, seria, por um lado,
desprezar as lutas sociais que se empenharam em ir além da concepção de democracia formal e,
por outro, ignorar a concretude histórica da América Latina ainda imersa em desafios gigantescos,
que vão da extrema pobreza, com todas as suas implicações, ao narcotráfico. Para encontrarmos
esta triste e perversa realidade, não se faz necessário ir muito longe. Afinal, o Brasil comporta
diferentes Brasis. Apesar destes enormes desafios, o cenário latino‐americano, desde o final
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dos anos 80, apresentou um quadro não favorável ao avanço de uma democracia substancial4,
tampouco à manutenção de políticas sociais. Duas facetas de um mesmo processo.
Para tanto, o arcabouço neoliberal, que se espraiou pela América Latina nos anos 90,
serviu de base ideológica para legitimar o desmantelamento da política de proteção social,
mudança situada no bojo da reestruturação do capital. Do ponto de vista político‐ideológico, esta
reorganização atacou o modelo do Estado Keynesiano, pois este seria responsável pela redução da
rentabilidade do capital e, ao mesmo tempo, apontou o mercado como saída para a crise
econômica. O intervencionismo estatal era visto como um duplo erro, pois não só tirava a
liberdade requerida pelo mercado, como comprometia o esforço dos indivíduos ao atuar no
campo da política social. A saudável competitividade exigia liberdade plena5 tanto no plano
estritamente econômico quanto na política social, para que os indivíduos não se acomodassem
diante das “benesses” do Estado.
Na mundialização do capital, o Estado, os sindicatos, o conceito de participação6, a gestão e
o próprio trabalhador deviam ser metamorfoseados. Exigia‐se um rearranjo político‐social que se
4 Ainda que uma concepção de democracia participativa tenha se imposto, particularmente no Brasil após a Carta de 88, possibilitando a criação de vários Conselhos de natureza distinta, o que não deixa de ser um ganho, temos um largo desafio para que estes Conselhos não se restrinjam ao campo institucional e possam ir além do papel de legitimar às políticas governamentais. Silva apresenta um recorte muito interessante acerca do debate sobre democracia e participação. A autora ressalta que o modelo de democracia participativa, gestado nos anos 60 na Europa, apresenta uma noção de participação presa ao conteúdo liberal, visto que “não ocorrem mudanças significativas na concepção de indivíduo” e perdura a naturalização da desigualdade social (SILVA, 2003, p. 12‐22).
5 Vale ressaltar que a defesa de “liberdade plena” tanto no liberalismo quanto no chamado neoliberalismo é absolutamente relativa, pois o objetivo prioritário não é resguardar a liberdade em si, enquanto valor universal e abstrato, mas os interesses do capital. O Bonapartismo ontem ou as ditaduras mais recentes expressam como as classes dominantes abrem mão prontamente desta liberdade, caso percebam que seus interesses estão ameaçados.
6 Novo conceito de participação atrelou‐se ao revigoramento do termo sociedade civil. Este, segundo Acanda, foi recuperado no final dos anos 70 do século XX no seio de intensas disputas políticas com um viés idealista. Sociedade civil foi a saída vislumbrada para contextos não só diferentes, como antagônicos. Acanda identifica basicamente três cenários distintos em que cada um atribuiu um sentido peculiar à noção de sociedade civil. O primeiro refere‐se à conjuntura de crise nos países comunistas do Leste Europeu. Sociedade civil, neste contexto, foi utilizada para se contrapor ao Estado centralizador que cerceava as liberdades e a participação dos indivíduos. Ou seja, sociedade civil abarcava movimentos oposicionistas ao governo instituído e, portanto, expressava o anticomunismo. O segundo cenário trata dos países capitalistas desenvolvidos, em especial EUA e Inglaterra. Aqui, o termo sociedade civil é usado pela “nova direita” como esteio das idéias neoliberais. O Estado é apresentado como o grande vilão e, por isso, deve ser controlado pela sociedade civil. Esta teria o papel de mediar os conflitos e colaborar com o avanço da democracia, instaurando um tipo moderno de cidadania, com uma participação sob novos moldes, que iria além dos critérios de classe social. O terceiro cenário identificado por Acanda refere‐se ao contexto de ditadura militar nas sociedades latino‐americanas. Aqui, sociedade civil abarca todas as associações e movimentos que se opuseram às arbitrariedades do regime militar e lutaram pelo retorno da ordem democrática (ACANDA, 2006).
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adequasse à reestruturação do mundo capitalista. Os movimentos populares e sindicais dos anos
80 deviam ser esvaziados de seu conteúdo crítico para possibilitar a emergência de movimentos
alicerçados em novas bases. A luta coletiva era deslegitimada em prol do individualismo e do
conformismo. Como expôs Amaral, os sindicatos deviam perder a sua identidade como espaço de
resistência, de ação ativa e assumir o papel de parceiro, daquele que colabora no “espaço de
negociação”, na formulação de novos pactos sociais, função que vai ao encontro do ideário liberal,
pois este dilui os antagonismos de classes (2001). Nas empresas, o trabalhador se esvanece em
prol da figura genérica do “colaborador”. Se os sindicatos foram transmutados, o mesmo deveria
ocorrer com os movimentos populares e com a noção de participação. A crise econômica facilitou
o desmantelamento destes movimentos, pois ampliou o desemprego criando uma “simbiose
[interessante sob a ótica do capital] entre as faces formal e informal da economia. Fora do débil
sistema de proteção social e sujeitos a uma jornada de trabalho mais exaustiva, os trabalhadores
manifestaram pouca disposição para participar de mobilizações” (SILVA, 2003, p. 40).
Ao mesmo tempo em que o Estado se encolhe na política social, o chamado “terceiro
setor” ganha centralidade nesta questão. Impõe‐se uma visão fetichizada em relação ao “terceiro
setor”, pois este não seria ineficiente, como o Estado, nem se pautaria meramente ‐ ou
exclusivamente ‐ no lucro, como o mercado. O “terceiro setor”, composto pelas entidades da
sociedade civil, proporcionaria, supostamente, maior participação e autonomia, pois está
ancorado no âmbito local. Além disso, ao descentralizar os serviços sociais, possibilita atender as
especificidades da localidade, elaborar uma gestão mais eficiente e com transparência, o que
implicaria um avanço na construção do regime democrático.
Montaño (2007) apresenta uma crítica contundente ao “terceiro setor” tanto do ponto de
vista teórico quanto político‐econômico e social. Tal denominação embaça a análise do real, pois
não só nos induz a pensar a sociedade de forma fragmentada, em setores estanques (1˚ Estado, 2˚
mercado, e 3˚ sociedade civil) como apresenta o terceiro setor de forma idealizada. Fato não
gratuito, pois, segundo Montaño, tal visão colabora para aceitação do mesmo e dificulta perceber
algo essencial: uma mudança radical no padrão de resposta à questão social. Tal mudança se
expressa, com a “desresponsabilização do Estado, a desoneração do capital e auto‐
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responsabilização do cidadão e da comunidade local” (MONTAÑO, 2007, p. 185). Assim, este autor
afirma que ocorre uma
[...] verdadeira transformação de uma questão político‐econômico‐ideológica numa questão meramente técnico‐operativa. Em lugar de debater a função social de resposta às demandas sociais e os valores que a sustentam – seus fundamentos, modalidades e responsabilidades – discute‐se, isoladamente, se as organizações de determinado “setor” podem dar tal resposta. Opera‐se não apenas a já mencionada setorialização do real, mas uma verdadeira despolitização do fenômeno e do debate. A discussão é levada para a comparação entre instituição estatal – tratada como burocrática, ineficiente, corrupta, rígida e em crise (fiscal) – e organizações do “terceiro setor” – tidas como dinâmicas, democráticas, “populares”, flexíveis, atendendo às particularidades regionais e categoriais (MONTAÑO, 2007, p.185).
O novo trato dado à questão social, através do “terceiro setor”, encobre o que deveria ser
absolutamente central neste debate: a inserção da política social no processo muito mais amplo
de reestruturação do capital e suas implicações. Tal processo abarca alterações que vão desde os
valores sociais, o perfil do cidadão, a legislação trabalhista7 até a base democrática, pois implica
“menor participação da sociedade nos processos decisórios nacionais” (Idem, 187).
A política social deve ser redimensionada para atender à reestruturação capitalista. Como
expôs Montaño (2007), a questão social perde a condição de “direito” e passa a ser um serviço
comercializável ‐ se for rentável ‐ ou uma atividade filantrópica / voluntária. Neste novo
tratamento, a questão social sai da esfera do Estado em direção ao mercado ou à sociedade civil,
pois, supostamente, estas empresas/ entidades responderão de forma mais eficiente. O destino
depende da potencialidade de lucro. Há, portanto, um processo de privatização seletiva cujos
contornos dependem da oferta de incentivos fiscais, da transferência de fundos públicos ou
mesmo da contratação de serviços privados.
No chamado “terceiro setor”, as “Organizações não‐governamentais” / ONGs têm tido
posição de destaque. Situam‐se numa fronteira movediça entre o público e o privado ‐ público
7 “Flexibilização” ou “reengenharia empresarial” funcionam como verdadeiros eufemismos, pois tentam minimizar perdas de conquistas históricas, como leis que amparavam o trabalhador, e impor um “novo contrato”, sob rubricas originais, que, via de regra, apresenta uma carga mais pesada de trabalho com salário igual ou mesmo reduzido. Empresas, de diferentes setores, inclusive educacional, têm processado sua “reengenharia” em nome da modernização ou para enfrentar a crise econômica, o que gera a sensação de um movimento de caráter inevitável e, portanto, uma atitude conformada diante de tais alterações.
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não‐estatal – o que contribui para ofuscar o “processo de privatização de serviços públicos” e
desmobilizar os movimentos sociais (SILVA, 2003, p. 40‐41).
O caráter universal e solidário da política social transmuta‐se numa ação focalizada, pois,
diante da crise, o Estado deve reduzir os benefícios e atender os mais necessitados, o que,
aparentemente, comporta uma lógica irretocável. Contudo, o problema, como bem aponta
Montaño (2007), é quando nos defrontamos com os resultados desta opção política.
Metamorfoseia‐se o cidadão em consumidor. Como no passado, ressuscita‐se a noção de cidadão
ativo e passivo, pois a qualidade dos serviços depende do poder aquisitivo de cada cliente.
Legitima‐se, portanto, uma política dual na oferta de serviços sociais. Alguns poderão exigir
porque pagaram e outros, destituídos dos seus direitos, recebem, via de regra, serviços precários,
de qualidade questionável, sejam estatais ou no âmbito da sociedade civil através de entidades de
caráter filantrópico ou atividades voluntárias. Na ausência do Estado o “terceiro setor” vai ao
encontro dos “esquecidos”, daquele que é quase um não‐cidadão (MONTAÑO, 2007, p. 197).
No entanto, outro quadro é possível. Afinal, a ação da sociedade civil popular proporcionou
avanços que não podemos desprezar. Todavia, não devemos ter a ilusão de que a participação por
si só irá alterar a natureza do Estado, enquanto representante das forças hegemônicas. Há a
necessidade premente de se (re)construir um duplo movimento: lutar pela ampliação de uma
participação substancial8 da sociedade civil popular e, ao mesmo tempo, fortalecer movimentos
sindicais democráticos ou similares que tenham a clareza de que a dimensão de classe está
presente, de forma explícita ou não, em maior ou menor grau, nas diferentes lutas que perpassam
a sociedade (POULANTZAS, 2000, SILVA, 2003).
8 Uma participação substancial e não meramente formal ainda é um grande desafio. Não basta ocupar assentos em diferentes conselhos, independente de sua natureza, num jogo de cartas marcadas. As regras devem ser postas em debate, como também o significado da sociedade civil. Como bem expôs Silva, não se pode cair na ingenuidade de que a mera boa vontade de todos os envolvidos fará superar as divergências gerando um “pacto social” satisfatório a todos (2003, p. 22‐24).
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“Reforma” do Estado brasileiro, política social e participação institucionalizada.
No Brasil a implantação da chamada Reforma de Estado, nos anos 90, possibilitou uma
retração acentuada das políticas sociais. Estas alterações, segundo Amaral, eram essenciais para
se adequar às novas necessidades do capital, já que direitos e conquistas eram vistos como
“restrições à liberdade de acumulação [...]; os capitalistas, seus teóricos e práticos falam em
“engessamento” do capitalismo, vale dizer, da liberdade” (2001, p. 30).
Os neoliberais responsabilizam as políticas sociais universais pelo esvaziamento dos fundos
públicos. Segundo o ex‐ministro Bresser Pereira, o Estado no Brasil é “burocrático e paternalista”.
Tal fato se intensificou com a promulgação da Carta de 88 que teria aprofundada a crise fiscal do
Estado. Ou seja, para Bresser Pereira, a Constituição significou um “retrocesso burocrático sem
precedentes”, promovendo um “surpreendente engessamento do aparelho estatal”(BRESSER
PEREIRA apud MONTAÑO, 2007, p. 188).
A solução seria reformar este Estado que implicou, por um lado, uma campanha
sistemática em prol da privatização para encolher o Estado que se mostrava ineficiente9. Ao
mesmo tempo, cabia modernizar a administração pública, ou seja, esta deveria passar a ter como
paradigma o modelo da gestão empresarial, símbolo de eficiência. Assim, o Estado é privatizado
duplamente, não só pela venda de empresas públicas, como também pela mentalidade gerencial
que se impõe ao mundo público. O mercado se afirma como verdadeira panaceia. O Estado
deveria romper com o “engessamento” em distintas direções a fim de possibilitar uma
flexibilidade nas relações trabalhistas, na política social, no financiamento, nas parcerias. Para
tanto, houve uma alteração expressiva no arcabouço legal para dar um suporte jurídico às
transformações em curso.
9 A título de exemplificação, vale lembrar os inúmeros problemas que a Petrobrás se defrontou dentro e fora de suas plataformas ao longo dos dois mandatos do governo FHC. Para além das perdas materiais, trabalhadores ficaram feridos em diferentes acidentes. O sindicato dos petroleiros denunciava como a “terceirização” de setores básicos comprometia a qualidade dos serviços, além da possibilidade da existência de boicotes. Tais acidentes denegriam a imagem da instituição perante a sociedade, o que justificaria o caminho da privatização, como ocorrera, aliás, com tantas outras, como a Vale do Rio Doce ou mesmo a Companhia de Siderúrgica Nacional. O sindicato dos petroleiros, sem voz na grande mídia, recorreu a palestras e panfletagem em universidades públicas, entre outros espaços e estratégias.
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A CF de 88 define a Seguridade Social em três campos: Saúde, Previdência e Assistência
Social. Montaño (2007) aponta como, gradativamente, através de uma série de leis e decretos que
visavam regulamentar a Seguridade Social, se configurava um novo padrão de gestão pública.
Impunham‐se mudanças regressivas, pois desresponsabilizavam o Estado ao transferir,
crescentemente, as atividades estatais para o setor privado, como também, ampliavam‐se,
legalmente, os mecanismos para transferir, direta ou indiretamente, recursos públicos para o
privado. Ironicamente, a transferência dos serviços públicos para o “terceiro setor” era chamada
por Bresser Pereira de “publicização” (MONTAÑO, 2007, p. 220).
Importa ressaltar que tal concepção também perpassa a educação, enquanto política
social, o que pode ser evidenciado por leis que alicerçam tanto a política de seguridade social
quanto a educacional. Algumas destas leis ganham vida e são internalizadas como “alternativas”
aos grandes desafios como a fome, o analfabetismo, a repetência escolar, o desemprego.
Concordando ou não com a lei que dispõe sobre o serviço voluntário (Lei 9.608/ 98), é forçoso
reconhecer que esta lei integra o dia‐a‐dia das pessoas. Afinal, há uma avalanche midiática que
incentiva o trabalho voluntário como ocorreu, por exemplo, na Campanha “Amigos da Escola”.
Ademais, apresenta‐se o trabalho voluntário como um plus no currículo pessoal, já que indicaria
um perfil cooperativo, habilidade valorizada no mundo empresarial. Engajar‐se numa atividade
voluntária seria um diferencial que poderia beneficiá‐lo na acirrada competitividade por uma vaga
no mercado de trabalho.
Vale também destacar as leis 9637/ 98 e 9790/ 99. A primeira “qualifica como organizações
sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao
ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio
ambiente, à cultura e à saúde”, o que, concordando com Montaño, foi uma “verdadeira
transferência de atividades estatais para o setor privado” (2007, p. 203). A segunda “qualifica
pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, como Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público (Oscip), e institui e disciplina o termo de parceria” (idem, ibid).
Concomitante a estas leis, O Estado viabilizou um aparato legal que possibilitou o
financiamento público de instituições do “terceiro setor”, voltadas para atividades educativas e de
assistência social, sem fins lucrativos. Tal financiamento ocorria através de auxílios, convênios,
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parcerias, contratos, ou, indiretamente, através da isenção de impostos, da contribuição à
seguridade social, ou mesmo via modalidades similares.
Por isso, como bem apontou Montaño (2007, p. 204), é possível entender a “preocupação”
com o social por parte do empresariado e o crescimento expressivo10 do “terceiro setor”. Este se
ampliou em função dos incentivos financeiros, mas também como uma “alternativa” diante do
desemprego ascendente e estrutural. Além disso, o autor alerta que ocorrem distorções sérias no
interior do “terceiro setor”, pois a captação de recursos deveria ser atividade auxiliar, mas se
torna prioritária, tendo em vista a dependência dessas organizações por recursos. Assim,
objetivos, população alvo, prazos podem ser alterados em função dos critérios priorizados pela
agência “doadora”. Fins passam a ser meios gerando uma perversa inversão. A expansão do
“terceiro setor” deve‐se, por um lado, à visão romantizada da realidade, por outro, ao conjunto de
mudanças que perpassam do econômico ao cultural. Segundo Montaño,
[...] a atividade de financiar organizações do “terceiro setor” insere‐se num conjunto de mudanças culturais, valorativas e institucionais. Mudanças culturais e valorativas na população, referidas tanto à excessiva desconfiança do Estado (tido como ineficiente, burocrático, lento, caro, corrupto etc) como à exagerada confiança na “sociedade civil” como instância supostamente mais próxima do povo, do excluído, mais flexível, mais democrática, mais eficiente. Mudanças culturais e valorativas empresariais, [...] como “maior sensibilidade social” [...] na verdade são mudanças de estratégia de marketing e redução de custos e tributos. [...] É a partir de dois mecanismos que as ONGs se expandiram na década passada: primeiro, pela mudança de orientação dos doadores internacionais de não mais destinarem recursos diretamente aos movimentos sociais e população, mas agora às ONGs (ora diretamente, ora indiretamente por via de recursos dirigidos aos governos); em segundo lugar, dada a criação de um vasto número de ONGs o objetivo central, senão único, é a própria captação desses recursos e a geração de (auto)emprego” (2007, p. 210; 224).
Tendo em vista a dependência financeira das entidades do “terceiro setor”, estas, segundo
Montaño, carecem de solidez. Quando o Estado não mais renovar as parcerias, o vazio virá à tona.
Ficará claro a perda da política social como direito universal, e como o chamado “terceiro setor”
contribuiu para encobrir, do ponto de vista ideológico, os efeitos reais da reestruturação do
capitalismo: aumento da desigualdade social, do desemprego, da economia informal, das relações
10 Em 1995, o “terceiro setor” , com cerca de 1, 12 milhão de pessoas, já representava, aproximadamente, o dobro do número de funcionários públicos federais da ativa , que girava em torno de 512 mil (MONTAÑO, 2007, p. 206).
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trabalhistas instáveis e precárias, da intolerância, da violência social, das ondas xenófobas
(ANTUNES, 2002).
Nesta perspectiva, é possível compreender a necessidade, sob a ótica do capital, de
emudecer os movimentos populares, operários, sindicais em favor de uma participação mitigada,
controlada, institucionalizada.
Do ponto de vista político‐social, os anos 90 enquadram, gradativamente, os movimentos
sindicais e sociais. Se estes buscaram, nos anos 70 e 80, ampliar o grau de participação para além
do sistema eleitoral, nos anos 90, passou‐se a reconhecer e a legitimar apenas a participação
institucionalizada. Segundo Almeida, o “período da Nova República talvez tenha sido também o do
apogeu dos “engenheiros institucionais”, cuja principal função foi esvaziar a ideia corrente de
democracia de qualquer conteúdo de crítica social.
A política educacional no Brasil diante da reestruturação capitalista
A política educacional, enquanto área da política social, também foi reconfigurada para se
adequar às novas exigências. Para compor o quadro da política nacional de educação é importante
ir além da legislação stricto sensu, pois a política educacional é mais abrangente do que o mundo
legal em si. Realiza‐se também, como expuseram Shiroma, Moraes & Evangelista, não só pelo
planejamento educacional como pelo financiamento de programas governamentais e ações não‐
governamentais (2002, p.87). Além disso, há leis e leis, isto é, algumas caem na zona de
penumbra, outras ganham visibilidade.
Nos anos 90, imersa, mais uma vez, num ideário salvacionista, a educação foi apresentada
em diferentes documentos internacionais como instrumento básico para assegurar a
competitividade de um país. Muitos desses documentos influenciaram não só a definição das
políticas públicas, como a própria economia. Portanto, não deve ser minimizado o papel indutor
dessas “recomendações” apresentadas pelos organismos multilaterais e / ou princípios firmados
em Conferências Mundiais.
Na Conferência Mundial sobre “Educação para Todos”, realizada em Jomtien, na Tailândia
em 1990, estiveram presentes diferentes países, agências internacionais e organismos não‐
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governamentais. O Brasil, na época incluído entre os “E 9”‐ os 9 países com maior taxa de
analfabetismo mundial ou como se auto‐denominaram “os líderes dos nove países em
desenvolvimento de maior população do mundo” – subscreveu a declaração aprovada naquela
conferência que assegurava educação básica a crianças, jovens e adultos. O que se entendia por
“educação básica”? Torres (1996, 2006) aponta a diversidade de acepções que tal termo tem
suscitado, inclusive no interior de um único organismo, como o Banco Mundial (BM). A Declaração
de Jomtien apresenta a importância de todos os signatários promoverem a educação básica,
essencial para um desenvolvimento sustentável. No entanto, tanto a Declaração quanto o Plano
de Ação produzidos em Jomtien não especificam o que vem a ser “educação básica”.
Rosa Torres alerta que o termo “básico” é polissêmico, o que gera dúvidas e imprecisões.
De forma geral, a “educação básica” tem sido interpretada como a educação escolar obrigatória, o
que também muda conforme o país e vai de encontro à noção de educação ampliada defendida na
Conferência Mundial. Afinal, essa noção requer uma educação que se prolonga por toda a vida,
não se restringindo a um período escolar, vai além do sistema formal, reconhece a incapacidade
desse sistema oferecer aprendizados significativos e abrange crianças, jovens e adultos.
Em relação à gestão democrática, bandeira tão valorizada nos anos 80, a LDB 9394/96 foi
bastante lacônica. No artigo 14, as normas de gestão democrática referem‐se ao ensino público da
educação básica e ancoram‐se em apenas dois princípios: “participação dos profissionais da
educação na elaboração do projeto pedagógico da escola” e participação das comunidades escolar
e local em conselhos escolares ou equivalentes”. Compartilho com Paro (2007) de sua indignação
frente à pobreza deste artigo. Como entender que uma LDB, que traça diretrizes e princípios
norteadores da educação nacional, restrinja a gestão democrática ao ensino público? Na escola
privada, então, é cabível uma gestão autoritária? Tal artigo, como expôs Pinto (2007), revela o
desprezo de nossas elites pelos procedimentos democráticos. Mais uma vez, em nome da
liberdade, a escola privada está “livre” para escolher e imprimir o tom que deseja em sua gestão. É
possível separar o ato educativo do processo de gestão? Um projeto pedagógico não pode cumprir
sua função se construído à revelia dos profissionais da educação. De certa forma, o artigo anuncia
algo óbvio, como sinaliza Paro (2007). No entanto, considerando as práticas autoritárias ainda
reinantes, tal explicitação ganha sentido. O segundo princípio, o qual advoga a participação da
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comunidade escolar nos conselhos, peca pelo caráter genérico, não assegurando sequer uma
função deliberativa aos mesmos. Tais princípios têm legitimado uma prática comum entre muitas
Secretarias de Educação de perceber a direção escolar como cargo de confiança. Assim, muitas
escolas são loteadas entre amigos, familiares e aliados políticos em detrimento de eleições, antiga
reivindicação dos educadores, expressa nas lutas dos movimentos sindicais.
Se a gestão democrática estipulada em lei ficou aquém do desejado, o mesmo ocorre com
os conselhos. Estes, a princípio, indicam práticas democráticas, pois, supostamente, implicam a
participação de distintos segmentos da sociedade. No entanto, cabe verificar até que ponto os
conselhos asseguram participação da sociedade ou legitimam políticas previamente estabelecidas.
Hoje, temos uma gama de conselhos na política social e particularmente na esfera
educacional. A luta pela constituição de conselhos foi guiada pela crença da importância da
participação da sociedade civil na construção de uma sociedade democrática. A vitalidade de cada
Conselho reproduz, mas também produz os limites, as potencialidades, as tensões do processo
democrático. Se determinações estruturais condicionam e limitam a atuação desses Conselhos,
isso não significa, como expôs Donaldo Souza, ausência de “possibilidades de transformação e de
virem a se constituir em espaços de aprendizado democrático, uma vez que não se afiguram
acabados ou definitivos” (2008, p. 26).
Nos idos dos anos 80, Vitor Paro tecia considerações, ainda muito atuais, sobre a gestão
democrática da escola pública. Cabe destacar pelo menos três, pela pertinência e porque
extrapolam o âmbito escolar. Partindo da premissa de que a escola é uma instituição que pode
ajudar na transformação social, Paro distingue potencialidades já existentes, daquelas que podem
vir a ser. O autor alerta que a escola que temos está muito longe de ser transformadora.
[...] uma coisa é falar de suas potencialidades ... uma coisa é falar “em tese”, falar daquilo que a escola poderia ser. Uma coisa é expressar a crença de que, na medida em que consiga, na forma e no conteúdo, levar as camadas trabalhadoras a se apropriarem de um saber historicamente acumulado e desenvolver a consciência crítica, a escola pode concorrer para a transformação social; outra coisa bem diferente é considerar que a escola que aí está já esteja cumprindo essa função. Infelizmente essa escola é sim reprodutora de uma ideologia dominante...é sim negadora dos valores dominados e mera chanceladora da injustiça social, na medida em
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que recoloca as pessoas nos lugares reservados pelas relações que se dão no âmbito da estrutura econômica (PARO, 1997, p. 10)11.
Paro também ressalta a não‐homogeneidade dos grupos dominantes, mas lembra que
estes “têm interesses coincidentes quando contrapostos aos interesses dos trabalhadores”. Assim,
somente com organização e pressão popular, a escola poderá ser transformada em prol dos
interesses da maioria. Portanto, seria ingenuidade esperar concessões espontâneas por parte dos
detentores do poder. Além disso, Paro aclara que a defesa de autonomia escolar significa dar
poder e condições concretas para a escola alcançar seus “objetivos educacionais articulados com
os interesses das camadas trabalhadoras” (PARO, 1997, p. 11). Uma escola sem recursos e sem
capacidade para interferir na esfera decisória não possui uma real autonomia.
Tais considerações vão muito além do espaço escolar. As questões apontadas por Paro
perpassam o Conselho Escolar (CE), mas também o Conselho Municipal de Educação (CME),
dentre outros. Ao apontar a distinção entre funções existentes e potencialidades, Paro destaca a
necessidade de não sucumbirmos diante de análises ingênuas, ainda que sedutoras. Não confundir
a utopia que nos mobiliza com a realidade em si. Conselhos são possibilidades voltadas para uma
cidadania participativa. No entanto, a existência do Conselho em si não assegura mudanças nas
relações de poder. Há empecilhos de ordem estrutural que não devem ser menosprezados. A
escola, o CE ou qualquer outro Conselho, independente da esfera administrativa, não estão
imunes aos conflitos de classe que perpassam o Estado e a sociedade em geral. Muitas vezes,
ocorrem avanços do ponto de vista popular, tendo em vista fissuras no interior do bloco
dominante. Todavia, a história aponta que em momentos de tomada de decisões cruciais, como a
destinação de verbas públicas, diferenças são diluídas em favor de alianças que viabilizem seus
interesses. Ou seja, numa sociedade de classes, o confronto está posto, latente ou explícito,
cabendo a todos aqueles comprometidos com a escola pública auxiliarem na organização e luta
popular.
11 A publicação é de 1997. No entanto, este livro de Paro reúne textos apresentados em diferentes momentos. Este texto foi apresentado originalmente em 1986 num evento da ANPAE e publicado, pela primeira vez, no ano seguinte em Cadernos de Pesquisa.
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Com a “Nova República” recuperamos nossos direitos civis, políticos e instaurou‐se uma
luta para ampliar os direitos sociais, ainda hoje tímidos. Vislumbrava‐se a construção de uma
sociedade democrática com a participação dos setores organizados em busca de justiça social. A
CF/88 lançou as bases para a criação de diferentes mecanismos que possibilitam a participação
desses setores organizados na construção das políticas. Os Conselhos, sejam na educação, saúde,
ou meio ambiente, traduzem este espírito. Independente dos debates jurídicos e políticos em
torno da pertinência do município ser considerado um ente federativo, é fato que ele, ao ter
obtido uma maior autonomia administrativa, teve um horizonte de possibilidades nunca antes
experimentado. Tal autonomia se expressa especialmente no campo educacional com a
possibilidade de se construir um sistema municipal de educação. Muitos municípios tinham um
sistema de ensino de fato, mas não de direito, pois não podiam estabelecer normas pedagógicas.
A nova Carta reverteu esta situação.
A política federal recente expressa no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) tem
proclamado um compromisso com a democratização da educação, tanto do ponto de vista
quantitativo quanto qualitativo. Qualidade que se traduz na busca de uma “melhoria da educação”
e na edificação de uma gestão participativa, pautada na autonomia.
No entanto, um regime de colaboração que possa auxiliar na construção de uma gestão
democrática não se impõe por decreto nem se concede, tendo em vista os interesses antagônicos
em disputa em uma sociedade. Todavia, se essa não surge por decreto, cumpre ressaltar a
importância de uma política indutora comprometida com essa nova relação. Para tanto, a ação
que se estabelece entre o governo federal e demais entes federativos não é de menor
importância. Embora Estado e governo não se confundam, este pode imprimir uma política que
torne o aparato estatal mais ou menos sensível a uma cultura participativa de bases democráticas.
Há muito, as organizações populares no Brasil lutam por criar essa cultura participativa.
Nessa busca, idas e vindas marcam a relação entre sociedade civil e Estado. Nesse processo de
lutas, a sociedade civil foi evocada de forma veemente e o Estado, juntamente com o modelo
centralizador, foram rechaçados com a redemocratização. No entanto, nos anos 90, acentuou‐se o
processo de transferência de responsabilidades para o nível local sem o devido financiamento,
penalizando justamente as áreas mais pobres. Segundo Laura Soares, houve uma “focalização
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geográfica invertida” . É um processo de descentralização destrutiva, gerando um “Estado de mal‐
estar social”, pois desmonta‐se uma política social de âmbito nacional, mas nada se oferece e
delegam‐se competências aos municípios sem os recursos necessários. Há uma subordinação dos
ministérios “sociais” aos que ditam a política econômica (SOARES apud MONTAÑO, 2007, p. 193‐
195). Diante desse desmonte, as organizações populares lutaram para resguardar direitos
conquistados e ameaçados pela avalanche (neo) liberal.
Como bem sintetizou Semeraro, as organizações populares,
[...] nos últimos anos, no entanto, saíram da resistência e da crítica e direcionaram suas energias na construção de um “Estado ético” democrático e popular. Começaram a ver no Estado não mais uma esfera externa e superior a ser combatida, controlada e melhorada, mas um terreno a ser disputado, recriado e dirigido coletivamente em sintonia com o próprio projeto de sociedade (SEMERARO, 2008, p.50).
Estaria a política educacional recente, expressa no PDE, auxiliando a superar a concepção
dominante pautada no individualismo, no pragmatismo e nos valores imputados pelo mercado?
Os instrumentos priorizados na política atual colaboram na edificação desse “Estado ético,
democrático e popular” indicado por Semeraro (2008)? Estaria o PDE contribuindo para a
construção de uma nova cultura política?
Afinal, o PDE, via Plano de Ações Articuladas (PAR), anuncia um novo regime de
colaboração entre as esferas de governo, pautado na participação, como também se compromete
a dar esteios que possam romper com a histórica descontinuidade que prima nas políticas
educacionais.
Ocorreu, na prática, uma superposição de planos, uma multiplicidade de programas e
ações, como também o incentivo à institucionalização de distintos conselhos. Muitos desses
programas podem trazer ganhos importantes, como laboratórios de informática, construção de
rampas, aquisição de materiais pedagógicos, enfim resultados que podem ser contabilizados e dão
visibilidade à política em curso.
Entretanto, busca‐se focar o processo, algo de visibilidade distinta e não mensurável. O
PAR apresenta objetivos pretensiosos, pois visa servir de instrumento para estabelecer uma nova
relação do governo municipal com o federal, possibilitar ao “município olhar para si próprio”,
através do diagnóstico, como também dinamizar conselhos que integram a área da gestão
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democrática. Contudo, os critérios presentes nos indicadores do PAR apontam para uma
institucionalização de mecanismos de representação formal, que não possibilitam uma
participação substancial dos múltiplos sujeitos envolvidos na educação. Levando‐se em conta a
potencialidade de induzir políticas, o governo federal não construiu, portanto, caminhos que
auxiliem na superação dessa cultura dominante, pautada numa concepção elitista e formal.
No âmbito local, um dos programas que mais tem mobilizado a rede foi o PDE‐escola.
Independente de ganhos pontuais, cabe frisar que esse programa, que nasceu, aliás, nos anos 90,
através de acordo firmado com o Banco Mundial, imprimiu uma lógica gerencialista, em que a
dimensão técnica parece se impor, como se os planejamentos não comportassem pretensões
políticas. Além disso, o PDE‐escola primou pela fragmentação, pela concorrência de projetos. O
PAR visava apresentar uma visão mais ampla da rede através de um diagnóstico que expressasse
as lacunas da realidade municipal. O PDE‐escola, por sua vez, sem diálogo com o PAR, significou
ações diversificadas fragmentadas, pois o foco centrava‐se na unidade escolar.
Além do PDE‐escola, destacou‐se no âmbito local o programa “Mais educação”. Este
depende de uma relação direta com a comunidade para a seleção de monitores, que ganham
valores muito modestos, como também para ter acesso, via parcerias, a um local que viabilize a
realização das oficinas, ainda que esteja longe do ideal, como a igreja, o salão da Associação de
Moradores ou mesmo da Associação Comercial. Importa realçar que tal programa prioriza os
alunos mais necessitados do ponto de vista pedagógico. Justamente aos mais necessitados tal
programa acaba por legitimar uma política dual na oferta de serviços sociais. Para aquele que é
quase um “não‐ cidadão”, na expressão de Montaño (2007), vale a política do “jeitinho” e da
precarização da oferta educacional. Realmente, é “mais” educação?
Conclusões provisórias
O caráter universal e solidário da política social transmuta‐se numa ação focalizada,
pontual, pois, diante da crise, o Estado deve reduzir os benefícios e atender os mais necessitados,
o que, aparentemente, comporta uma lógica irretocável. Contudo, o problema, como aponta
Montaño (2007), é quando nos defrontamos com os resultados desta opção política.
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Metamorfoseia‐se o cidadão em consumidor. Como no passado, ressuscita‐se a noção de cidadão
ativo e passivo12, pois a qualidade dos serviços depende do poder aquisitivo de cada cliente
(MONTAÑO, 2007, p. 197).
Ou seja, o Estado, ao invés de imprimir uma política de cunho universal, pautou suas ações
em políticas fragmentadas que buscam amenizar os problemas, mas não alteram, de forma
profunda, as suas determinações. Dentro da lógica gerencial que se impõe, meios e processos são
secundarizados em nome de uma “Pedagogia de resultados”, como aponta Saviani (2009).
A política educacional em curso se caracteriza, por um lado, por uma lógica gerencial
produtivista, e, por outro, por representações de participação formal. A criação de conselhos de
distintas ordens com a participação de representantes de diferentes segmentos da sociedade tem
potencialidade para edificar práticas democráticas, mas pouco pode significar se não houver,
concomitantemente, processos que possibilitem o surgimento de novas culturas em que as
relações de poder possam ser debatidas de forma ética e responsável. Essa nova cultura seria um
caminho fecundo para a sonhada elevação intelectual e moral das massas.
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12 Há uma diferença que merece destaque. Ontem, esta divisão tinha um amparo no Estado de Direito através da ordem constitucional, via o voto censitário. O tempo republicano não comportou esta divisão. Contudo, quando o cidadão transforma‐se em consumidor e perde, enquanto direito universal, os serviços sociais, recria‐se esta divisão, pois alguns poderão comprar tais serviços e outros dependerão da oferta do Estado que, hoje, aparece como doação. Tal diferença não é mero jogo de palavras, pois um doente, por exemplo, pode ter rumos absolutamente distintos em função do tratamento que recebe. O mesmo ocorre com a educação. Realidade tão perversa que não é necessário sequer sair do âmbito municipal para percebê‐la.
IX SEMINÁRIO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS “HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL”
Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa – 31/07 a 03/08/2012 – Anais Eletrônicos – ISBN 978-85-7745-551-5
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