Download pdf - José Gomes Ferreira

Transcript
Page 1: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 1/19

 

José Gomes Ferreira

Nascido no Porto, muda-se com quatro anos para Lisboa onde, criado"longe das árvores, no roldão poeirentodas cidades" (palavras do autor), se

inicia nos poetas saudosistas - eespecialmente Raul Brandão - nosliceus de Camões e de Gil Vicente, como Prof. Leonardo Coimbra. Dirige, muitonovo, a revista Ressurreição. Dedica-setambém à música, com composiçõesmusicais como o poema sinfónico "IdílioRústico" (que compõe depois de ouvir a1ª audição mundial da Sinfonia Clássicade Prokofiev e inspirado num conto deOs Meus Amores, de Trindade Coelho)

executado pela primeira vez pelaorquestra de David de Sousa, no TeatroPoliteama, o que provocou em LeonardoCoimbra "um largo sorriso incitador".

A sua consciência política cedo semanifesta, em parte inspirada pelo pai,um democrata republicano e traduz-seem desafios polémicos e ações de contestação, como quando queima, no caféGelo, um retrato de Sidónio Pais, que, não muito tempo depois, vem a ser vítima de um atentado. Alista-se em 1919, acabado o treino militar em Tancose perante a Proclamação da Monarquia do Norte, no Batalhão Académico

Republicano (já era também sócio da Liga da Mocidade Republicana).Em 1924, licencia-se em Direito, trabalhando depois como Cônsul naNoruega (Kristiansund). De regresso a Portugal, em 1930, dedica-se ao jornalismo e colabora em diferentes revistas como Seara Nova, Descobrimento,Imagem (revista de cinema), Sr. Doutor (revista infantil, onde começa a publicar periodicamente as  Aventuras de João Sem Medo) e Gazeta Musical e deTodas as Artes. Sob o pseudónimo de Álvaro Gomes, faz tradução de filmes.

O poema "Viver sempre também cansa", escrito a 8/5/1931, e publicadona Presença, nº33 (julho-outubro), marca o início da sua atividade poética e,apesar de já ter publicado anteriormente os livros Lírios do Monte (obra quedepois renegou) e Longe (1918), só mais tardiamente começa a publicação

séria do seu trabalho, nomeadamente com Poesia I  (1948), que o autor considera o seu verdadeiro livro de estreia.Terminada a guerra com a vitória dos Aliados, nasce entre os

antifascistas portugueses a ilusão de que todas as ditaduras nazi-fascistas irãoser varridas pelas democracias vencedoras do conflito. Na verdade, não passamesmo de uma ilusão. O regime corporativo, onde a saudação de braçoestendido, como na Itália fascista ou na Alemanha nazi, foi ritual corrente e, por vezes, obrigatório, transforma-se numa «democracia orgânica».José Gomes Ferreira comparece a todos os grandes momentos "democráticos

e antifascistas" e, pouco antes de aderir ao Movimento de UnidadeDemocrática (MUD), (tal como a grande maioria dos intelectuais portugueses)

colabora com outros poetas neo-realistas num álbum de cançõesrevolucionárias compostas por Fernando Lopes Graça, com a sua canção "Nãofiques para trás, ó companheiro".

Página 1 de 19

Fig. 1

Page 2: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 2/19

 

Muitos intelectuais são perseguidos pela PIDE, presos e torturados. Em1947, é criado o ramo juvenil do MUD e o poeta escreve a letra do hino daorganização, cuja música é composta por Fernando Lopes-Graça. Vale a penaconhecer:

Jornada

Não fiques para trás, ó companheiro,é de aço esta fúria que nos leva.Para não te perderes no nevoeiro,Segue os nossos corações na treva.

Aqueles que se percam no caminho,

que importa, chegarão no nosso brado.Porque nenhum de nós anda sozinho,e até os mortos vão ao nosso lado.

Vozes ao alto!Vozes ao alto!Unidos como os dedos da mãohavemos de chegar ao fim da estrada

ao som desta canção. 

Durante as frequentes e intensas lutas estudantis dos anos sessenta,este hino é cantado por jovens contestatários. Jornada é também o hino queserve de indicativo à estação clandestina Rádio Portugal Livre que, nasinstalações da Rádio Praga, emite diariamente para Portugal, a partir de marçode 1962. Assim, a música e a letra de Jornada transformam-se num hino daresistência antifascista, ultrapassando as fronteiras do partidarismo sectário.Embora Lopes-Graça seja um militante comunista, José Gomes Ferreira não oé ainda, assumindo-se como um espírito aberto.

A SUA OBRA VAI SAINDO DAS GAVETAS

Entre 1950, quando é editadoO Mundo dos Outros – histórias e

vagabundagens, seleção de crónicas publicadas na Seara Nova, e o ano dasua morte, publica cerca de quatro dezenas de títulos - coletâneas de poemas,obras de ficção, crónicas, livros de memórias, ensaios, peças teatrais,introduções, prefácios, comentários, notas, traduções. Note-se que, nosprimeiros cinquenta anos de vida, produziu pouco mais do que meia dúzia detítulos, mas, ainda que a publicação seja diminuta, José Gomes Ferreiraescreve muito e vai «enchendo gavetas com nuvens», para usar a expressãoque ele próprio utiliza para classificar esses anos em que acumulou projetosque, por uma razão ou por outra, não eram concluídos. Surpreendentemente,essas nuvens vão saindo das gavetas, transmudadas em sóis luminosos esurgem, então, as suas grandes obras, nomeadamente aquelas que lheconferem o estatuto de um dos mais importantes escritores portuguesesdo século XX. 

Página 2 de 19

Page 3: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 3/19

 

Em 1950, é publicado o volume de Poesia II, sendo também editado olivro de ficções O Mundo dos Outros – histórias e vagabundagens, contos quepublicara em crónicas na revista Seara Nova. Colabora ainda com Fernando

Lopes-Graça em Líricas. Em 1956, publica Eléctrico. Em 1960, é a vez da obrade ficção, O Mundo Desabitado e, no ano seguinte, é-lhe atribuído o GrandePrémio da Poesia pela Sociedade Portuguesa de Escritores pelo seu livroPoesia III. Em 1962, é editado o volume de Poesia IV e publicado o livro OsSegredos de Lisboa. O ano de 1963 é marcado pela edição de AventurasMaravilhosas de João Sem Medo.

Fig.2

Capa da 1ª edição de As Aventuras Maravilhosas de João Sem Medo.

Em 1965, sai  A Memória das Palavras – ou o gosto de falar de mim.1966 é oano de publicação de Imitação dos Dias – Diário Inventado. Em 1969, publica olivro de contos Tempo Escandinavo. Em 1971, O Irreal Quotidiano – histórias eInvenções. Em 1973, dá a conhecer  Poesia V. Em Outubro, publica-se osEstatutos da Associação Portuguesa de Escritores que sucede à S.P.E.encerrada pela polícia política. José Gomes Ferreira assina um editorial do n.º1 do boletim da A.P.E. que conclui com a frase (que propõe como divisa):«Escritores: as diferenças, entre pessoas de qualidade, só as podem unir!». Eem 1974 surge a tão desejada revolução - é tempo de flores…

Página 3 de 19

Page 4: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 4/19

 

25 de Abril de 1974: «Sinto os olhos a desfazerem-seem lágrimas».

De manhã cedo, Rosália acorda-o, dizendo-lhe que há movimentos detropas em redor de Lisboa. José refila, rabugento. Levanta-se e espreita pela janela. Pouca gente na rua. Toca o telefone.

«É o Carlos de Oliveira:Está lá? Está lá? É você, Carlos? Que se passa?Responde-me com uma pergunta qualquer do avesso.Às oito da manhã o Rádio Clube emite um comunicado ainda pouco claro.

Depois a Rosália chama-me, nervosa:- Outro comunicado na Rádio. Vem, depressa.Corro e ouço. (…) “Na Rádio a canção do Zeca Afonso…» «Sinto os olhos a

desfazerem-se em lágrimas».

José Gomes Ferreira, Poeta Militante III – Viagem do Século Vinte em mim, MoraesEditores, Lisboa, 1983

.

É tempo de cantar flores. Mas nos seus 74 anos de vida, o poeta jásofreu muitas desilusões. Por isso, num encontro com escritores portuguesesantifascistas regressados a Portugal após o 25 de abril, comenta: «Que estarevolução das flores não seja a revolução das flores de retórica.»

fig3 1

fig3 2

 

A Gaveta das Nuvens

Em 1975, sai Gaveta das Nuvens – tarefas e tentames literários e ovolume de crónicas Revolução Necessária. Entre1976 e 1978, surgem O Sabor 

Página 4 de 19

 

fig3

Após o 25 de Abril, com escritoresportugueses regressados a Portugal – «Que asflores de Abril, não sejam flores de retórica».

Page 5: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 5/19

 

das Trevas – Romance Alegoria, o novo volume de crónicas, IntervençãoSonâmbula e os volumes I, II e III  de Poesia Militante e o Coleccionador de Absurdos e Cinco Caprichos Teatrais. José Gomes Ferreira é eleito presidenteda Associação Portuguesa de Escritores.  Em  1979, nas eleições legislativasintercalares, é candidato, por Lisboa, nas listas da APU (Aliança Povo Unido).O tempo das homenagens começa em 1980 - o presidente Ramalho Eanes,condecora-o como Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada,recebendo depois o grau da grande oficial da Ordem da Liberdade. Por idealismo e não por oportunismo, no mesmo ano, filia-se no Partido ComunistaPortuguês. Seguem-se outros títulos da vasta produção literária: O Enigma da Árvore Enamorada – Divertimento em forma de Novela quase Policial  e oRelatório de Sombras – ou a Memória das Palavras II. Em 1983, éhomenageado pela Sociedade Portuguesa de Autores. Em 8 de Fevereiro de1985, morre na sua casa da Avenida Rio de janeiro, em Lisboa, vítima de

doença prolongada. Como ele próprio afirmava, Viver sempre também cansa:Viver sempre também cansa!O sol é sempre o mesmo e o céu azulora é azul, nitidamente azul,ora é cinza, negro, quase verde...Mas nunca tem a cor inesperada.O Mundo não se modifica.As árvores dão flores,folhas, frutos e pássaros

como máquinas verdes. As paisagens também não se transformam.Não cai neve vermelha,não há flores que voem,a lua não tem olhose ninguém vai pintar olhos à lua.Tudo é igual, mecânico e exacto.Ainda por cima os homens são os homens.Soluçam, bebem, riem e digeremsem imaginação.

E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,discursos de Mussolini,guerras, orgulhos em transe,automóveis de corrida...E obrigam-me a viver até à Morte!Pois não era mais humanomorrer por um bocadinho,de vez em quando,e recomeçar depois, achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,morrer em cima dum divãcom a cabeça sobre uma almofada,

Página 5 de 19

fig4

 A 1ª versão do poema "Viver sempre também cansa" 

Page 6: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 6/19

 

confiante e sereno por saber que tu velavas, meu amor do Norte.Quando viessem perguntar por mim,havias de dizer com teu sorrisoonde arde um coração em melodia:"Matou-se esta manhã.Agora não o vou ressuscitar por uma bagatela."E virias depois, suavemente,velar por mim, subtil e cuidadosa,pé ante pé, não fosses acordar a Morte ainda menina no meu colo..."

José Gomes Ferreira, Poeta Militante I, 4ª edição, Publicações Dom Quixote, Lisboa,1990

O que descobrimos na sua obra?

Na produção literária de José Gomes Ferreira, cruzam-se trêstendências ou correntes literárias, sem que possamos inscrevê-lodefinitivamente em nenhuma delas: o eco da matriz saudosista que lhe fica dainiciação com o seu mestre Leonardo Coimbra, que o inspirou na sua devoçãoa Raul Brandão e a Teixeira de Pascoais, a atração pela forma insólita e oníricado surrealismo e o apelo constante do conteúdo do realismo socialista ou,como se chamou entre nós, do neo-realismo. Este ecletismo origina umaescrita muito pessoal, independente e originalíssima, alheia a escolas e a

classificações que os críticos usam frequentemente como bússola.

Privilegiamos duas opiniões sobre a sua obra:

«Gomes Ferreira foi principalmente o porta-voz de um sentimento deremorso e responsabilização do intelectual por todas as brutalidades einjustiças, pelo drama coletivo dos últimos cinco decénios; as contradições daautossinceridade, já focadas por Raul Brandão e Régio, ganham com ele tonsalternativos de sarcasmo, de nojo, de revolta, de melancolia, de perplexidade,anotados no quotidiano da resistência.»

António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, 17ª

edição,1996

«A dialéctica da realidade e da irrealidade, de que também se encontramreflexos nos seus livros de «histórias», «vagabundagens» e «invenções»,alarga-se a um outro tema que domina a poesia de José Gomes Ferreira: oconflito dentro da  persona, entre as suas tendências individualistas e anecessidade de partilhar o sofrimento e o drama dos outros homens».

Fernando J.B. Martinho, Dicionário de Literatura Portuguesa, organizado por 

Álvaro Manuel Machado, Editorial Presença, Lisboa, 1996

José Gomes Ferreira - o poeta e o cidadão

Página 6 de 19

Page 7: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 7/19

 

Quando perspetivamos o homem e a sua obra, nunca podemos ignorar ocaminho trilhado pela inteligência através de um século manchado por numerososestigmas – duas guerras mundiais com uma grave crise económica de permeio, odeflagrar da Guerra Fria, a ameaça da destruição nuclear, e as vésperas do colapsodo «socialismo real». Em Portugal, o florescer e o ruir do sonho republicano, submersono caos da I República e do episódio da aventura sidonista, a eclosão do

corporativismo, a guerra colonial, a Revolução democrática e a consequente desilusãoque se lhe seguiu. Nos seus 85 anos de existência, José Gomes Ferreira viveuempenhadamente e criticamente o seu tempo e a sua escrita traduz a luta deresistência ativa que muitos intelectuais portugueses moveram contra a ditadurasalazarista. Os seus versos, as páginas dos seus livros, as letras de canções que,musicadas por Lopes-Graça, inspiraram o pensamento e a ação de quem não sesubjugava ao status quo e sonhava com uma sociedade mais justa e livre. A sua obratestemunha os caminhos de luz que todos os homens podem construir e percorrer,mesmo quando é forçoso vencer as noites mesquinhas e criminosas que sufocam osque aspiraram à liberdade.

Lendo a sua vasta obra, continuamos a ouvir o seu grito de inteligência e

percebemos como resistir e agir perante os regimes estranguladores. Concordando oudiscordando das opções políticas de José Gomes Ferreira, devemos reconhecer a suacoragem e a independência de quem nunca se preocupou com o que é conveniente.Por isso, valorizamos o cidadão e o escritor que sempre fez e disse o que lhe pareceuestar certo. Admiramos o seu percurso e escutamos, com atenção, as suas palavrasluminosas e inspiradoras que foram rasgando as longas e temíveis noites de escuridãoque, durante 48 anos, adormeceram Portugal.

Admiramos a sua imaginação, a sua arte e o seu espíritocrítico:

«Ah! Se eu conseguisse inventar uma nova Arte ao mesmo tempo séria,profunda e de aparência imbecil – para interessar a maioria da gente portuguesa,

grave, sem dúvida, mas apenas sensível ao analfabetismo superficial dossentimentos!»

José Gomes Ferreira, Dias Comuns II. A Idade do Malogro, Diário, Publicações DomQuixote, 1998

E seguimos, guardando, em nós, o maravilhamento e o

espanto…

Entrei no café com um rio na algibeirae pu-lo no chão,a vê-lo correr da imaginação...

A seguir, tirei do bolso do coletenuvens e estrelase estendi um tapetede floresa concebê-las.

Depois, encostado à mesa,

tirei da boca um pássaro a cantar e enfeitei com ele a Naturezadas árvores em torno

Página 7 de 19

Page 8: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 8/19

 

a cheirarem ao luar que eu imagino.

E agora aqui estou a ouvir A melodia sem contorno

Deste acaso de existir -onde só procuro a Belezapara me iludir dum destino.

Quero voar -mas saem da lamagarras de chãoque me prendem os tornozelos.

Quero morrer -mas descem das nuvensbraços de angústiaque me seguram pelos cabelos.

E assim suspensono clamor da tempestadecomo um saco de problemas-tapo os olhos com as lágrimaspara não ver as algemas...

(Mas qualquer balouçar ao vento me parece liberdade.)Cala-te, voz que duvidae me adormecea dizer-me que a vidanunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que asseverae insinuaque a primaveraa pintar-se de lua

nos telhados,só é belaquando se inventade olhos fechadosnas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, seduçãodesta voz que me dizque as flores são imaginaçãosem raiz.

Cala-te, voz maldita

Página 8 de 19

fig5

 

fig6

Page 9: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 9/19

 

que me gritaque o sol, a luz e o ventosão apenas o meu pensamentoenlouquecido….

(E sem a minha sombrao chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperadaque me excede.E ilumina o NadaCom a minha sede.Vai-te, Poesia!Vai-te, poesia!

Deixa-me ver friamentea realidade nuasem ninfas de iludir ou violinos de lua.

Vai-te, Poesia!Não transformes o mundodescarnado e terrívelnum céu de esquecer com mendigos de nuvens

famintos de estrelase feridas a cheirarem a cravos- enquanto os outros, os de carneverdadeira,uivam em vãoa sua fome de cadeiase de pão.

Vai-te, Poesia!

Deixa-me ver a vidaexacta e intolerávelneste planeta feito de carne humana achorar onde um anjo me arrasta todas as noitespara casa pelos cabeloscom bandeiras de lume nos olhos,para fabricar sonhoscarregados de dinamite de lágrimas.

Vai-te, Poesia!

Página 9 de 19

Page 10: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 10/19

 

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras

de todos os dias

(O soneto que só errado ficou certo)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os diaspara te dizer, com a simplicidade do bater do coração,que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais friase esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão- mas o desejo de ser a noite que me guiae baixinho ao bafo da tua respiraçãocontar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser heróimas abrir-te mais o abismo que me dóinos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:dois bichos de suor com sombra aos pés.Complicações de luas e saliva.

Deixa que a minha solidão

prolongue mais a tua— para aqui os dois de mãos dadas

nas noites estreladas,a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão

até o Abismo da Ternura Derradeira 

Homens do futuro 

Homens do futuro:

ouvi, ouvi este poeta ignoradoque cá de longe fechado numa gavetano suor do século vinterodeado de chamas e de trovões,vai atirar para o mundoversos duros e sonâmbulos como eu.Versos afiados como dentes duma serra em mãos de injúria.Versos agrestes como azorragues de nojo.

Página 10 de 19

Page 11: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 11/19

 

Versos rudes como machados de decepar.Versos de lâmina contra a Paisagem do mundo— essa prostituta que parece andar às ordens dos ricospara adormecer os poetas.

Fora, fora do planeta,tu, mulher lânguidade braços verdese cantos de pássaros no coração!Fora, fora as árvores inúteis— ninfas paradaspara o cio dos faunosescondidos no vento...

Fora, fora o céucom nuvens onde não há chuvamas cores para quadros de exposição!

Fora, fora os poentescom sangue sem cadáveresa iludiremos de campos de batalha suspensos!

Fora, fora as rosas vermelhas,flâmulas de revolta para enterros na primavera

dos revolucionários mortos na cama!Fora, fora as fontescom água envenenada da solidãopara adormecer o desespero dos homens!Fora, fora as heras nos murosvestirem de luz verde as sombras dos nossos mortos semprede pé!

Fora, fora os rios

a esquecerem-nos as lágrimas dos pobres!

Fora, fora as papoilas,tão contentes de parecerem o rosto desangue heróico dumfantasma ferido!

Fora, fora tudo o que amoleça de afroditesa teima das nossas garrascurvas de futuro!

Fora! Fora! Fora! Fora! 

Página 11 de 19

Page 12: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 12/19

 

Deixem-nos o planeta descarnado e ásperopara vermos bem os esqueletos de tudo,até das nuvens.Deixem-nos um planeta sem valesrumorosos de ecos húmidosnem mulheres de flores nas planícies estendidas.Um planeta feito de lágrimas e montes de sucatacom morcegos a trazerem nas asas a penumbra das tocas.E estrelas que rompem do ferro fundente dos fornos!E cavalos negros nas nuvens de fumo das fábricas!E flores de punhos cerrados das multidões em alma!E barracões, e vielas, e vícios, e escravosa suarem um simulacro de vidaentre bolor, fome, mãos de súplica e cadáveres,

montes de cadáveres, milhões de cadáveres, silêncios de cadáverese pedras!

Deixem-nos um planeta sem árvores de estrelasa nós os poetas que estrangulamos os pássarospara ouvirmos mais alto o silêncio dos homens— terríveis, à espera, na sombra do chãosujo da nossa morte.

Chove...

Mas isso que importa!,se estou aqui abrigado nesta portaa ouvir a chuva que cai do céuuma melodia de silêncioque ninguém mais ouvesenão eu?

Chove...

Mas é do destinode quem amaouvir um violinoaté na lama 

Rei

Página 12 de 19

fig7

Page 13: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 13/19

 

Nasci rei de um reinado sem rei,Num castelo sem cor e sem ponte, Meus comandos nos quadros da leiMergulharam na cálida fonte.Meus soldados de escudo no braço,Nunca espada tiveram na mão,Os tambores batidos no espaçoPercutiram lembranças em vão.A princesa do rei tão silenteNo castelo vivia sem dor,Mas o reino do rei diferenteTinha a cor do castelo sem cor.Nasci rei de um reinado sem rei,Sem comando, sem povo e sem lei.

Agora, apodrecer  

Agora, apodrecer.

Nas ruas, no suor das mãos amigas dos amigos, na pele dos espelhos...desespero sorrido, carne de sonho público, montras enfeitadas de olhos...

...mas apodrecer.

Bolor a fingir de lua, árvores esquecidas do princípio do mundo..."como estás, estás bem?", o telefone não toca! devorador de astros...

... mas apodrecer.

Sim, apodrecer de pé e mecânico,a rolar pelo mundonesta bola de vidro,

 já sem olhos para aguçar peitose o sol a nascer todos os diasno emprego burocrático de dar razão aos relógios,cada vez mais necessários para as certidões da morte exata,Sim, apodrecer ...

"...as mãos, a cólera, o frio, as pálpebras, o cabeloa morte, as bandeiras, as lágrimas, a república, o sexo...

... mas apodrecer!

Sujar estrelas.

Página 13 de 19

fig8

Page 14: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 14/19

 

A Minha Solidão

(Durante dias andei a ruminar estes versos)

A minha solidãonão é uma invençãopara enfeitar noites estreladas...

Mas este querer arrancar a própria sombra do chãoe ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

...Mas este sufocar entre coisas mortase pedras de frioonde nem sequer há portaspara o Calafrio.

...Mas este rir-me de repenteno poço das noites amarelas...- única chama conscientecom boca nas estrelas.

...Mas este eterno Só-Um(mesmo quando me queima a pele o teu suor)- sem carne em comumcom o mundo em redor.

...Mas este haver entre mim e a vidasempre uma sombra que me impedede gozar na boca ressequidao sabor da própria sede.

...Mas este sonho indecisode querer salvar o mundo- e descobrir afinal que não pisoo mesmo chão do pobre e do vagabundo.

Mas este saber que tudo me repeleno vento vestido de areia...E até, quando a toco, a própria peleme parece alheia.

Não. A minha solidãonão é uma invenção

Página 14 de 19

Page 15: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 15/19

 

para enfeitar o céu estrelado...

mas este deitar-me de súbito a chorar no chãoe agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.

Choro!

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choroas crianças violadasnos muros da noitehúmidos de carne lívidaonde as rosas se desgrenham

para os cabelos dos charcos.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas chorodiante desta mulher que ricom um sol de soluços na boca— no exílio dos Rumos Decepados.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choroeste sequestro de ir buscar cadáveresao peso dos poços

— onde já nem sequer há lodopara as estrelas desceremarrependidas de céu.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choroa coragem do último sorrisopara o rosto bem-amadonaquela Noite dos Muros a erguerem-se nos olhoscom as mãos ainda à procura do eternona carne de despir,suada de ilusão.

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas chorotodas as humilhações das mulheres de joelhos nos tapetes da súplicatodos os vagabundos caídos ao luar onde o sol para atirar caméliastodas as prostitutas esbofeteadas pelos esqueleto de repente dos espelhostodas as horas-da-morte nos casebres em que as aranhas tecem vestidospara o sopro dosilêncio

todas as crianças com cães batidos no crispar das bocas sujasde miséria...

Página 15 de 19

Page 16: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 16/19

 

Ninguém vê as minhas lágrimas, mas choro...

Mas não por mim, ouviram?Eu não preciso de lágrimas!Eu não quero lágrimas!

Levanto-me e proíbo as estrelas de fingir que choram por mim!

Deixem-me para aqui, seco,senhor de insônias e de cardos,neste ódio enternecidode chorar em segredo pelos outrosà espera daquele Diaem que o meu coração

estoire de amor a Terracom as lágrimas públicas de pedra incendiadaa correrem-me nas faces— num arrepio de Primaverae de Catástrofe!

Vivam Apenas 

Vivam, apenasSejam bons como o sol.Livres como o vento.Naturais como as fontes

Imitem as árvores dos caminhosque dão flores e frutossem complicações.

Mas não queiram convencer os cardosa transformar os espinhosem rosas e canções.

E principalmente não pensem na Morte.Não sofram por causa dos cadáveresque só são belosquando se desenham na terra em flores. 

Vivam, apenas.

A Morte é para os mortos!

 

Página 16 de 19

Page 17: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 17/19

 

fig9

Escultura no Parque dos Poetas, em Oeiras.

José Gomes Ferreira foi um representante do artista social e politicamenteempenhado, nas suas reações e revoltas face aos problemas e injustiças domundo. Mas a sua poética acusa influências tão variadas quanto a doempenhamento neo-realista, o visionarismo surrealista ou o saudosismo, numadialética constante entre a irrealidade e a realidade, entre as suas tendênciasindividualistas e a necessidade de partilhar o sofrimento dos outros.

Na memória e no papel fica a sua vasta obra, que marcou todo essevasto período de quase um século.

Algumas obras do autor…

 Poesia

Poeta Militante – I, 1977Poeta Militante – II, 1978Poeta Militante – III, 1978 A Poesia Contínua, 1981 

Ficção: 

Mundo dos Outros - histórias e vagabundagens" - 1950  Aventuras de João Sem Medo, 1963 (histórias humorísticas do mundo juvenil) A Memória das Palavras I - 3, 1965 

Coleccionador de Absurdos, 1978Caprichos Teatrais, 1978Enigma da Árvore Enamorada, 1980 

Página 17 de 19

Page 18: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 18/19

 

Imitação dos Dias, 1966Tempo Escandinavo, 1969 (contos)Irreal Quotidiano - histórias e invenções - 1971Gaveta de Nuvens - tarefas e tentames literários - 1975Revolução Necessária, 1975 

Intervenção Sonâmbula, 1977 O Mundo Desabitado, 1960Os segredos de Lisboa,1962(…) Memórias e Diários

 A Memória das Palavras - ou o gosto de falar de mim - 1965Imitação dos Dias - Diário Inventado - 1966Relatório de Sombras - ou a Memória das Palavras II - 1980Passos Efémeros - Dias Comuns I - 1990

(…)

Contos

Contos - 1958Tempo Escandinavo – 1969

Ensaios e Estudos

"Guilherme Braga" (colaboração na "Perspectiva da Literatura Portuguesa doséc. XIX") - 1948

"Líricas" (colaboração) - 1950"Folhas Caídas" de Almeida Garrett (introdução) - 1955"Contos Tradicionais Portugueses" (colaboração na escolha e comentação;prefácio) - 1958"A Poesia de José Fernandes Fafe" - 1963"Situação da Arte" (colaboração) - 1968"Vietnam (os escritores tomam posição)" (colaboração) - 1968"José Régio" (colaboração no "In Memorium de José Régio") - 1970"A Filha do Arcediago" de Camilo Castelo Branco (nota preliminar) - 1971"Lisboa na Moderna Pintura Portuguesa" (colaboração) - 1971"Uma Inútil Nota Preambular" de Aquilino Ribeiro (introdução a "Um Escritor 

confessa-se") - 1972

Traduções

"A Casa de Bernarda Alba" de Frederico Garcia Lorca (colaboração)"O Livro das Mil e Uma Noites" - 1926

Discografia

"Poesia" - Philips - 1969 série "Poesia Portuguesa""Poesia IV" - Philips - 1971 série "Poesia Portuguesa""Poesia V" - Decca / Valentim de Carvalho - 1973 série "A Voz e o Texto""Entrevista 12 - José Gomes Ferreira" - Guilda da Música / Sassetti - 1973 série

Página 18 de 19

Page 19: José Gomes Ferreira

5/13/2018 José Gomes Ferreira - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/jose-gomes-ferreira-55a74dbed55eb 19/19

 

"Disco Falado"

Para Saber +

http://www.youtube.com/watch?v=z0ffTbXpa6M

http://www.youtube.com/watch?v=_cBWRgLUCtg&feature=related

http://www.youtube.com/watch?v=JH2w0LKQGZw&feature=related

Página 19 de 19


Recommended