JOSÉ MANUEL FERNANDES
ARQUITECTURA MODERNISTA EM PORTUGAL[1890-1940]
gradiva
© José Manuel Fernandes Arquitecto/Gradiva
Revisão do texto: Manuel Joaquim Vieira
Design gráfico: André do Rosário
Fotocomposição e montagem: Multitipo-Artes Gráficas, Lda.
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Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. - Telefs. 3974067/8
1300 Lisboa
1.ª edição: Dezembro de 1993
Depósito legal n.° 72 122/93
Noto do Editor: As imagens não referenciadas são do autor.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho alicerçou-se fundamentalmente numa bolsa de estudos concedida pela
Fundação Calouste Gulbenkian entre 1979 e 1981, através do seu Serviço de Belas-
Artes. O Dr. Artur Nobre de Gusmão, então director do Serviço, sempre
acompanhou atentamente o desenvolvimento da investigação. Agradeço pois este
apoio imprescindível.
Também as investigações que dirigi nos anos lectivos de 1977 a 1980, no então
Departamento de Arquitectura da Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, com
manifesto entusiasmo dos alunos participantes (cadeira de História da Arquitectura
Portuguesa, 3.° ano lectivo de 1977-78 e 4.os anos lectivos de 1977-78, 1978-79 e
1979-80), permitiram fundamentar mais solidamente a informação referente a
Lisboa. A todos eles agradeço a valiosa colaboração,
Também em muitos aspectos fui ajudado por colegas e amigos, cujos nomes aqui
refiro com o meu reconhecimento: arquitectos Júlio Teles Grilo (área de Chaves),
José Fernando Canas, António Brito, Carlos Marques, Helena Ribeiro Santos e Luísa
Góis (área nortenha), Adalberto Tenreiro (área do Alentejo), António Cristo (área
de Coimbra); ainda devo citar os arquitectos Júlio Ansião e Domingos Tavares, para
o Porto, e muito especialmente o arquitecto Vítor Mestre, para a zona de Lisboa.
Outros apoios deverão ser citados, pois directa ou indirectamente contribuíram para
o «corpo» do trabalho: os do Centro Nacional de Cultura, dos Profs. Doutores
Jorge Gaspar e Maria João Madeira Rodrigues, dos fotógrafos do Estúdio Mário
Novais e ainda dos fotógrafos Sr. Mendes e Alberto Picco. A documentação
gentilmente cedida pela família do Eng.º António de Vasconcelos, em Ponta Delgada,
foi também fundamental para o estudo daquela região. A documentação referente
aos trabalhos de Porfírio Pardal Monteiro e de Carlos Ramos, cuja consulta nos foi
facultada pelos arquitectos António Pardal Monteiro e Carlos Manuel Ramos, foi
igualmente imprescindível para este trabalho.
Mas a contribuição maior (e mais reconhecida) foi a da arquitecta Maria de Lurdes
Janeiro, que colaborou nos exaustivos trabalhos de pesquisa de campo e de
organização deste livro.
É intenção desta publicação divulgar aspectos gerais da arquitectura chamada
«modernista» em Portugal1. Termo ambíguo ou, pelo menos, vago, vemo-lo aplicado,
por exemplo em Espanha, àquela produção arquitectónica dos inícios de Novecentos,
que entre nós se confundiria com a ligada à «arte nova» ou à de «princípio de século»;
vemo-lo também aplicado em Portugal, nos campos das outras artes visuais, às obras de
um Amadeo ou de um Almada (e mesmo, na literatura, às intervenções de Sá Carneiro
ou de Pessoa); porque, se houve um movimento cultural «modernista» nas nossas artes
e letras dos anos 10 e 20 do século actual, a arquitectura terá no essencial permanecido
arredada dessa gesta, um desfasamento então criado e só superado a partir dos anos 30...2
De facto, a vontade de mudar linguagens e expressões arquitectónicas com um sentido
social e vanguardista a um tempo, e que pode exprimir-se nesse termo, «modernista»
(primeiras tentativas de ser «moderno», sem o conseguir ainda cabalmente), por razões
de desfasamento técnico e sociopolítico em relação ao desenvolvimento geral do País,
implicava talvez começar por campos diversos dos da arquitectura, mais fáceis de
subverter e renovar a literatura e a pintura foram dois deles,
Deste modo, o ciclo do modernismo arquitectónico tardio coincidirá já, em Portugal,
com a divulgação sistemática do uso do betão armado e das formas «cubistas»,
enquanto vinte anos antes começara em Espanha um homónimo «modernismo» que
ainda podia dialogar com curvas modern-style e alvenarias tradicionais de tijolo e pedra.
Tal facto, como muitas outras coisas neste país lusitano, deu ao referido período,
entre nós, uma especificidade e até, se quisermos, uma originalidade, por comparação
com as experiências similares europeias — aspecto que agora se pode, a «histórica»
distância, melhor entender e valorizar.
Como definir com precisão, no tempo e no espaço, o decorrer desta tendência ou fase
arquitectónica em Portugal? O estudo efectuado incidiu entre duas «balizas», os anos de
1890 e de 1940; considerou-se que haveria que procurar as raízes do «aparecimento e
desenvolvimento da arquitectura moderna» (e assim se intitulava o estudo de investigação)
muito antes da década de 1930-40, que indiscutivelmente constituiu em Portugal a sua
definição e o seu primeiro apogeu (e a data de 1890, meio século recuada, surge marcando
uma geração e o início de uma crise nacional). Pensou-se também que a «viragem» histórica
de 1940, marcada pela ideologia arquitectural enunciada na Exposição do Mundo
Português, lhe definiria um limite preciso, a partir do qual demasiadas coisas mudaram,
talvez «para que tudo ficasse na mesma», pelo menos no campo da arquitectura...
Também os limites deste «movimento» no espaço português se afiguram difíceis de
demarcar; há prolongamentos adjacentes, integráveis (com algum esquematismo) numa
abordagem da produção na metrópole peninsular, que são a Madeira e os Açores — assim
foram entendidas e estudadas as arquitecturas destes arquipélagos na presente obra; mas
a investigação poderia certamente enriquecer-se e até «clarificar-se» melhor se estendida
a outros espaços de influência lusa; basta pensar nos trabalhos de arquitectos portugueses
1 Termo utilizado por José-Augusto França para designar a geração de arquitectos que nos anos 30 se foi afirmando
em Portugal dentro de uma perspectiva modernizante (A Arte em Portugal no Século XX, Lisboa, Bertrand, 1974).2 Assunto já focado pelo autor em «Para o estudo da arquitectura modernista em Portugal», in revista
Arquitectura, 4.ª série, n.° 132, Lisboa, 1979.
para o Brasil, nas obras públicas oficiais para as colónias de África e da Ásia (as últimas, apesar
de tudo, em menor escala); no entanto, por razões de equilíbrio analítico e das evidentes
limitações práticas, ficou-se pelo que se espera seja uma «primeira fase», adstrita ao clássico
«continente e Ilhas», universo de algum modo com a sua coerência e sentido próprios.
Por último, seria interessante explicar um pouco do modelo teórico deste trabalho, para
além da sua apresentação em livro (o texto foi «fixado» em 1986)3. Entendeu-se que o
fenómeno da modernização em arquitectura aceitou como determinante primeira a
introdução de novos materiais e tecnologias, evidentemente ligados ao desenvolvimento
industrial no mundo «europeizado» de Oitocentos; num plano seguinte (e interactivo
com o primeiro) houve uma resposta estilística e formal, e depois espacial, que pouco a
pouco soube conformar e enquadrar os novos dados; por esta razão se abre o livro
com a descnção e exemplificação dessas inovações técnicas, passando em seguida para a
sua «tradução» artística.
Mas o desenvolvimento social acompanha naturalmente o processo da evolução técnico-
-artística e, sem querer forçar estas relações, entendeu-se importante estabelecer um
constante acompanhamento, ou, se se preferir, um enquadramento que reconhece no
corpo social duas fases bem marcadas na expressão da arquitectura desta época em
Portugal: uma época ligada à «velha» Monarquia e à nova República; outra claramente
identificada com o advento do Estado Corporativo, também ele se reclamando de
«Novo». Assim se vai falando de obras, autores, ideologias.
Finalmente, numa tradução mais directa da pesquisa levada a cabo pelo trabalho de
campo, mostra-se um «Portugal modernista», mas também regional, fora da(s) grande(s)
cidade(s), e tenta-se ver como a tradição local foi afectando a produção de obras
inovadoras, de Trás-os-Montes a Monte Gordo, do Faial a Castelo Branco.
As imagens tenderão, neste capítulo como nos outros, a valorizar a «pequena obra», os
edifícios menos conhecidos ou os aspectos mais originais, inovadores e criativos da
produção arquitectónica, «dispersa esta pelos pontos mais inesperados do território,
muitas vezes fruto de autores locais ou procurando uma adaptação às condições do sítio,
através, por exemplo, duma escala ou função apropriadas; aí, parece-nos, a tradução
cultural dos modelos eruditos, de origem europeia, adquire um sabor muito especial,
permitindo mais facilmente do que nas grandes cidades compreender como as novas
técnicas e formas foram por cá entendidas, interpretadas e nacionalizadas»4.
Outro aspecto importante diz respeito ao já assinalável número de obras que, neste
espaço de quinze anos desde o início da recolha de informação, têm sido destruídas,
desfiguradas ou simplesmente alteradas e cuja visão fotográfica é aqui possível na sua
forma primeira e já desaparecida.
Datas, autores, referências precisas ou petites histoires, sempre interessantes, mas
monótonas, reservam-se, sempre que possível, para as notas de rodapé, enquanto um
sentido mais geral e global será dado pelo «texto corrido». Termina-se avisando que as
imagens apresentadas são apenas uma «amostra» do material referido no texto: que o
«armazém» restante possa alguma vez ver a «luz do dia» é o nosso voto.
3 A toponímia, datação e localização dos edifícios foram recolhidas em 1979-80; o texto final foi revisto em 1993.4 Conforme adaptação do texto do relatório da referida bolsa de estudos, em 1979.
Novos materiais e tecnologias o ferro
O betão armado — os primórdios
Os outros materiais — vidro, plástico, luz
O ferro
Meio século antes da Exposição do Mundo Português, o nosso país atravessava uma crise de
facetas múltiplas: crise de crescimento industrial, que iniciava então o seu segundo fôlego5; crise
política e moral, que o cansaço do parlamentarismo e o choque do Ultimatum demarcavam;
crise financeira, articulada com uma relação diferente e imposta com as colónias africanas.
Um novo surto de construções metálicas de relativa importância ergueu-se à volta de 1890, com
relevo para Lisboa, entre edifícios industriais, pavilhões de exposições, mercados e gares ferroviárias6.
Data simbólica de uma mudança geral que começou a processar-se, demarcando gerações e
preparando revoluções, o arranque da última década do século XIX serviu também para pontuar
uma decisiva aceitação da nova tecnologia do ferro na construção de Lisboa, e portanto pelo
restante país que a capital comandava (poderia então falar-se de uma «vulgarização do ferro»).
Este, portanto, o ponto de partida temporal, simbólico e operativo para uma análise da
génese da arquitectura moderna em Portugal: procurar-se-á tomar clara a relação desta
com a importância crescente dos novos materiais na construção.
Mas voltemos atrás, a meados do século passado, quando os elementos metálicos fruto da
produção industrial começavam a ser utilizados para construir pontes e viadutos, armazéns
portuários ou simples fábricas, um pouco por toda a Europa (sem esquecer as estufas e outras
elaborações românticas, que os Ingleses, pioneiros na revolução industrial desde Setecentos,
iam traduzindo em ferro). Nesta época, o engenheiro ganhava papel crescente na execução
dos novos edifícios, pelas exigências de cálculo matemático que o emprego da tecnologia do
ferro implicava; também o crescimento acelerado das cidades, com uma população em aumento
permanente, gerava novas exigências funcionais, nomeadamente de vastos espaços públicos
onde comboios, mercadorias ou produtos fossem abrigados e pudessem receber a multidão
imensa que os utilizava — e que só o ferro permitia construir e cobrir de forma satisfatória
(em prazos curtos, com economia de meios, definindo amplas áreas entre pontos de apoio).
Deste modo, pouco a pouco, foi-se definindo um conflito entre duas profissões ligadas à
construção: arquitectos e engenheiros descobriam que o campo artístico e o campo técnico
deixavam de se identificar, como habitualmente, no mesmo autor e que, pelo contrario, esses
campos eram agora contraditórios, pois as necessidades de novas funções e espaços urbanos
eram cada vez mais da competência do «homem do cálculo», fugindo ao entendimento e ao
domínio do «arquitecto-artista»; mas, se àquele faltava naturalmente uma preparação estética,
para este essa preparação era agora manifestamente insuficiente, sendo o seu trabalho murtas
vezes relegado apenas para o tratamento das fachadas.
Os edifícios reflectiam então muitas vezes este isolamento mútuo das duas actividades,
exibindo uma área mais funcional e prática, aplicando as modernas possibilidades das
estruturas metálicas, mas com evidente falta de sentido estético, sendo este patente, pelo
contrário, nas partes mais representativas e simbólicas, construídas nos tradicionais
materiais nobres e quantas vezes exageradamente decorativas e densas...
5 Em termos socieconómicos, 1889 é a data-limite para uma primeira etapa do desenvolvimento do capitalismo
em Portugal, depois do «salto industrial» de 1870; assim, o considera Manuel Villaverde Cabral em
O Desenvolvimento do Capitalismo em Portugal no Século X/X, Lisboa, ed. A. Regra do Jogo, 1977.
Noutra perspectiva, mais «espiritual», 1888 é o ano de nascimento de Fernando Pessoa, «farol» de uma nova
geração, que irá relançar o mito sebastianista messiânico, com conotações nacionalistas.6 J. A Marques de Carvalho considera 1888 o «ano do ferro», sobretudo em Lisboa, pelo número de realizações construtivas
(Arquitectura de Engenheiros, catálogo da participação portuguesa, Lisboa, ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1980).
As primeiras obras
Em Portugal, esta situação reflectia-se, naturalmente, com o habitual desfasamento no
tempo em relação às experiências europeias congéneres que se iam fazendo com o ferro
— desfasamento ainda agravado, aliás, pela dependência em relação à importação do
próprio material, sobretudo de França e de Inglaterra e, em menor escala, da Alemanha.
Como nos outros países, também o ferro começou aqui a ser utilizado em situações
experimentais ou parciais, fora do contexto urbano, ou para resolver necessidades
reconhecidas como exclusivamente funcionais, pouco prestigiadas culturalmente, e
portanto sem grande preocupação estética.
E o caso da ponte pênsil sobre o Douro, que substituiu a das Barcas e antecedeu a
de D. Luís, no Porto, em 1843; ou do viaduto de Xabregas, em Lisboa, que, ainda
apoiado em pilares de pedra, serviu a linha de cintura ferroviária desde 1854,
durante cerca de um século.
Mas um exemplo mais «arquitectónico» desta fase inicial é, sem dúvida, o do edifício
da Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense (depois do Anuário Comercial),
projectado curiosamente por um arquitecto, João Pires da Fonte, e construído entre
1846 e 18497. Imensa estrutura com vários pisos, utilizava ainda enormes pilares de
ferro fundido, imitando as formas clássicas habituais na pedra e suportando pavimentos
de abobadilha de tijolo, com dimensões globais e uma expressão algo «primitiva», que
o uso posterior do ferro laminado, mais leve e resistente, modernizará.
Outras utilizações do ferro nesta fase correspondiam a partes de edifícios com maior
complexidade, como era o caso da cúpula do Observatório Astronómico da Ajuda, móvel
e cilíndrica, apoiada em estruturas de tipo mais convencional para os restantes espaços.
Foi a partir da década de 1860 que a implementação dada aos transportes pelos
sucessivos governos começou a exigir a construção de inúmeras obras de engenharia
ferroviária, com destaque para as pontes, e sobretudo para as que irão vencer a
tradicional barreira que o vale do Tejo sempre representou à ligação entre o Norte
e o Sul do País e que o progresso mecanizado tentará agora anular.
Um processo construtivo novo, o das vigas de sistema tubular8, fez surgir na nossa
paisagem as hoje tradicionais pontes metálicas de tramos rectos e perfis cruzados, de
que as da Praia do Ribatejo (1860-61), da Asseca-Carregado (1860-?) e do Rossio
de Abrantes (1868-70) serão os exemplos pioneiros.
Este tipo de pontes, adequado ao atravessamento de rios de caudal pequeno e médio,
continuou, de resto, a ser aplicado nas décadas seguintes, prolongando-se a sua
construção mesmo pelos primeiros anos do século XX e generalizando-se por todo o
país: na década de 1870, em Portela de Coimbra (1873), em Coimbra (1874-75), em
Benavente (1875), em Portimão (1875-76) (fig.1), na Guarda (1876), em Santarém
(1876-81) e sobretudo em Viana do Castelo (1877); depois, na década de 1880, em
Valença (1885) e em Fão (1888), e de novo pelo Tejo, em Pernes e Ródão.
7 Dados recolhidos em Dossier Encontros à Esquina, sobre Alcântara, por Jorge Custódio, Lisboa, edição
policopiada do Centro Nacional de Cultura, 1982.8 Dados sobre as pontes do Tejo obtidos em Roteiro das Pontes Metálicas do Vale do Tejo, edição da
Associação de Arqueologia Industrial da Região de Lisboa, 1981.
Fig. 1
Portimão — pontes
sobre o Arade: edição
Pacheco, Seita & C.ª,
L.da — Portimão
(bilhete-postal)
Fig. 2
Figueira da Foz —
Saião de Inverno do
Grande Casino
Peninsular: edição da
Comissão Municipal de
Turismo da Figueira
da Foz (bilhete-postal)
A década de 1890 assistiu à construção de mais passagens metálicas sobre este rio
(em Abrantes e Constância), que continuaram a ser inauguradas depois de 1900:
Belver, ao Gavião (1903), Azambuja (1904), Porto de Muge (1904) e Chamusca
(1906-11); também no Pocinho, em 1909.
Muitas outras pontes haveria que referir, em Caminha, Penacova, Régua, Luso,
Ferreira do Zêzere, Coruche ou Ponte de Sor, exemplos entre outros, cujas datas se
não indicam; ou ainda casos mais tardios, como Alcácer do Sal e Odemira, em
curiosa variante basculante.
Não é objectivo destas referências serem exaustivas, mas sim acentuarem o vasto
espólio constituído pelas pontes metálicas portuguesas, que raras vezes foram
demolidas e vão atingindo hoje, na sua maioria, o «limite de idade» útil, sem por
isso merecerem o desaparecimento (o caso da Ponte de D. Maria, agora
monumento nacional, é ilustrativo). Também não interessa ao âmbito deste estudo
uma análise mais detalhada das tipologias de pontes, que as há muitas, quer em
relação às formas de apoios (metálicos, em arco, de pedra) e de tramos e tabuleiros
(rectos, curvos, de caixa aberta ou fechada, basculantes ou móveis). A arqueologia
industrial melhor se saberá ocupar deste campo. De notar, por último, a quase
infinita série de alpendres, postos e pequenas construções de apoio que povoaram
toda a rede ferro-rodoviária e que, de igual modo, utilizaram elementos metálicos
como suporte.
Voltemos à nossa cronologia: antes da época-chave de 1890, duas datas são
normalmente referidas, por coincidência relativas a factos marcantes na arquitectura
do ferro em Lisboa e no Porto: em 1865 inauguraram-se nessas cidades,
respectivamente, a gare de Santa Apolónia e o Pavilhão de Exposições (conhecido
como Palácio de Cristal). Note-se ainda, comum a ambos os exemplos, hoje
desaparecidos, a escassa articulação com a cidade: o primeiro caso, apenas parte
interna de um edifício periférico; o outro, dissimulado dentro de um parque. E em
1885 foi a vez do Mercado da Praça da Figueira, alfacinha, seguido pouco depois
pelo congénere tripeiro de Ferreira Borges (inaugurado em 1888). Note-se que os
dois edifícios já se «exibem» claramente dentro de contexto urbano, centrais na
cidade histórica, e que, além disso, apresentam o seu exterior em ferro aparente,
sem preocupações de dissimular material tão pouco nobre! (Em todo o caso, essa
expressão só é justificável na época certamente por se tratar apenas de obras
utilitárias.)
Foi pois ao longo destes vinte anos (1870-90) que o ferro afirmou o seu «direito de
cidadania». Assim, em Lisboa, foram surgindo vários e significativos edifícios públicos,
destacando-se, entre outros: a galeria panóptica da Penitenciária (1874-78); os
mercados (pioneiros) de Santa Clara, de São Bento e da Ribeira, respectivamente
em 1877, 1881 e 1882 (que prenunciam o da Figueira); a Central Elevatória a Vapor
dos Barbadinhos (1880) (obra-prima de articulação entre estrutura edificada e
mecanismo), e finalmente, em 1884, o Pavilhão da Exposição Agrícola do Ultramar,
na Tapada da Ajuda. De destacar, na mesma época, a interessante cobertura do
Casino da Figueira da Foz (fig 2).
Nestas obras foi muito variável a participação do ferro, já que se atravessava uma fase
ainda experimental e diversificada: aquele ora surgia reservado para interiores (de gosto
«gótico» na Penitenciária, «clássico» na Central Elevatória), ora em mistura com
alvenarias de tijolo e peças de madeira (nos mercados ou no Casino); apenas no
Pavilhão Agrícola foi mais ousada a sua expressão como material (quase) global, mas
também aqui com a desculpa de se implantar em parque, fora do contexto da cidade.
Merecem ainda uma referência as famosas «pontes em arco» do Porto (de 1877, a
de D. Mana Pia, e de 1881, a de D. Luís), com lugar à parte como monumentos
urbanos, também desta fase.
À volta de 1890 — o ferro «urbaniza-se»
Estes anos assistiram, como se disse, a uma maturação e generalização das aplicações
do ferro na construção: são disso prova as duas novas gares de comboios em Lisboa
(Alcântara-Terra, em 1887, e Central do Rossio, em 1888), as cúpulas grandiosas do
Mercado Central de Gados, ao Campo Grande, e do Coliseu, a Santo Antão (em
1888 e 1890), a própria Exposição Nacional de Indústrias Fabris (prestigiosamente
realizada já na Avenida da Liberdade) e o edifício industrial do Gasómetro de Belém
(ambos de 1888). Em 1892 inauguraram-se o Tauródromo do Campo Pequeno e
um mercado regional na Figueira da Foz. Este último reflecte o que será a tipologia
de construção de muitos outros mercados, usando o ferro com maior ou menor
originalidade ou globalidade, em exemplos um pouco por toda a província
[destacam-se os edifícios de Torres Novas (fig. 3), Olhão e Aveiro, sem esquecer o
famoso Bolhão portuense].
Outra aplicação crescente do ferro verificou-se no domínio dos prédios habitacionais
de quarteirão, com as primeiras traseiras construídas com lajes de abobadilha
apoiadas em vigas em l formando marquise (espécie de «oficina» da casa portuguesa
urbana de andares, para apoio às actividades da cozinha e da criadagem). São
exemplos o prédio lisboeta da Avenida de D. Carlos (1891) (fig. 4), ou as esquinas
resolvidas em curva, onde o ferro melhorava as condições de iluminação interna (na
Fig. 3
Torres Novas —
Mercado Municipal
Fig. 4
Lisboa — traseira de
edifício de habitação
na Avenida de Dom
Carlos, a São Bento
Rua Castilho, 1888); também operações de modernização de equipamentos
instalavam o ferro nos Armazéns Grandella (em 1891), ou na estrutura do Hotel
Avenida Palace (1892), em plena Baixa pombalina.
No Porto, menos prolífero nesta fase, há que destacar, contudo, a finalização do
grandioso Pátio das Nações, também em 1891, que em plena Bolsa consagra o
prestígio finalmente associado ao ferro (prestígio que, um pouco mais tardiamente,
chega também a Lisboa, exibido na Sala de Portugal da Sociedade de Geografia,
construída em 1897, sob projecto de José Luís Monteiro (arquitecto, autor também
do Avenida Palace) no que (não) deveria ser o grande foyer do Coliseu de Santo
Antão (fig. 7)...
O ferro em plena arquitectura da cidade
De 1900 aos anos 20 assistiu-se o apogeu da utilização do ferro na construção urbana:
conceberam-se as primeiras estruturas de prédios inteiramente executadas em peças
metálicas (e com fachadas mostrando «descaradas» esse material ao cidadão), das quais
o sonho maior foi o do falhado arranha-céus de mais de 10 pisos na lisboeta Avenida
de 24 de Julho9, reprovado pela Câmara e ainda hoje existente com os seus tímidos
três únicos pisos, imagem da «Chicago impossível» no porto alfacinha (projecto de 1904).
Outros prédios deste tipo, mais realistas nos propósitos, foram construídos: em
Lisboa, Alcântara-Terra, junto à actual rotunda (1904-07), um edifício com vigorosa
fachada metálica, contendo a planta livre que esse tipo de estrutura permite; e na
Rua do Século, um imóvel para o jornal do mesmo nome, com evidentes propósitos
industriais e de instalação de escritórios (1913-21); em Coimbra e Évora,
respectivamente, o edifício Chiado (antiga Santix) (fig. 5) e o da filial dos conhecidos
' Conforme A Arte em Portugal no Século XIX, vol. II, onde se reproduz o projecto original, de Artur Júlio
Machado (por José Augusto França, Lisboa, ed. Livraria Bertrand, 1967).
armazéns lisboetas representaram a inserção da estrutura metálica, moderna e
«transparente» em pleno centro histórico dessas cidades (cerca de 1900).
Os transportes mecânicos, agora em plena cidade, permitiram também a criação de
novos espaços e formas: a rede de tracção eléctrica abrigou os veículos nas gares do
Arco do Cego e de Santo Amaro (1900) e levou à construção de uma central de
energia em Santos (onde tijolo e ferro seguem a tradição da arquitectura portuária),
As colinas de Lisboa exigiram os elevadores verticais e de rampa, de que o do
Carmo (1902) é o ex-líbris (com projecto de engenharia de Raul Mesnier de
Ponsard, «moderno» e com decorações — é a palavra usada no estudo — de Louis
Reynaud, arquitecto, de gosto exótico e finalmente «gótico»: eis a contradição em
que se debatia a expressão arquitectónica que tentava exibir o ferro). Mais estações
ferroviárias substituem agora velhos conventos em pleno coração da cidade: caso da
gare de São Bento, no Porto, em 1903. O automóvel exige também as suas
garagens (em locais «chiques» e com anúncios na revista Ilustração Portuguesa), com
os grandes envidraçados na fachada, como nos Restauradores (a Beauvallet, no sítio
do futuro Éden) ou na Rua de Alexandre Herculano (Auto-Palace, de 1906), ambos
em Lisboa.
A indústria pedia também volumosos edifícios, gares imensas onde o ferro se tornava
imprescindível: recordem-se, ainda que com data incerta, as instalações da Fábrica de
Pólvora, anexa ao antigo Convento de Cheias (com um dos mais extensos pavilhões
metálicos do País, já demolido); a chamada «Catedral do Vinho» em Fontebela,
Vaiada do Ribatejo, enorme adega de múltiplos andares sobrepostos; o vasto
complexo da Central Tejo, em Belém, para produção de energia eléctrica, com
edifícios levantados desde 1908 aos anos 30, sempre utilizando o ferro e o tijolo; ou
ainda uma fábrica de massas alimentícias em Alcântara, a da firma Gomes, Brito,
Conceição e Reis, também usando o tijolo para acompanhar o ferro, construída pela
firma Veillard & Touzet (empresa com intensa actividade no sector, construtora
igualmente da Auto-Palace), em típica arquitectura utilitária.
Os equipamentos urbanos continuaram a aplicação do ferro, quer em edifícios
autónomos (como o Mercado de Alcântara, de 1906, ou o novo Mercado da
Ribeira, em 1902), quer em partes de obras, como a da cúpula do Teatro-Circo de
Braga (1911), que repetia na província o modelo do Coliseu lisboeta. De destacar o
interesse gradual expresso pelo uso do novo material por parte dos arquitectos.
Estes foram gradualmente utilizando o ferro, em edifícios de prestígio com cuidada
inserção e desenho, ou em equipamentos de significativa responsabilidade social.
Assim sucedia com as obras de Ventura Terra, como na do Banco Lisboa & Açores,
onde a uma pesada frente em pedra de tratamento classizante se opunha a leveza
do pátio em andares, que organizava todo o espaço interior à sua volta, totalmente
construído em ferro (1908, alterado nos anos de 1940-50). Também foi usado o
ferro nos dois liceus de Lisboa, projectos de Terra, o de Camões (1908-09) e o de
Pedro Nunes, o primeiro com vastas galerias metálicas servindo os diversos corpos
de alvenaria, o segundo com um ginásio de inserção original, onde o ferro se aplicou
em varandins e coberturas.
Fig. 5Coimbra — edifício
Chiado, Rua de
Ferreira Borges, n.º 85
Fig. 6
Dafundo/Cruz
Quebrada — traseiras
de prédio de habitação
colectiva, Rua de
Clemente Vicente/Rua
de Pereira Palha
Fig. 7
Lisboa — Salão
Portugal, na Sociedade
de Geografia, Rua das
Portas de Santo Antão,
n." 92-104
Norte Júnior, outro autor famoso (e prolífero) da época, resolveu coberturas,
iluminação em panos de vidro e escadas de serviço exteriores recorrendo ao ferro
em dois importantes edifícios lisboetas: o da Sociedade de Instrução e Beneficência A
Voz do Operário, de grandioso salão de festas culminando todo o piso superior
(1912), e de que só a fachada neobarroca distancia da Maison du Peuple, de Horta;
e o da Associação dos Empregados do Comércio e Indústria, na Rua da Palma, que
em 1916 repetiu o modelo anterior de modo mais modesto.
Mas a habitação foi o campo onde o ferro se vulgarizou e implantou mais
profundamente em Portugal: nas «vilas» de Lisboa, diminutas habitações seriadas,
ocupadas pelas classes mais pobres, eram então correntes as galerias metálicas
exteriores, como forma de embaratecimento da obra, estreitos acessos colectivos,
que substituem as caixas de escada interiores. Assim sucede no Bairro Estrela d'Ouro
(1907), à Graça, ou em dispersas vilas da Graça/Penha de França, como a Vila
Celeste (1910), à Avenida do General Roçadas.
Também os «pátios», forma mais introvertida de vila, usavam por vezes as escadas e
as galerias de ferro, eventualmente sobrepostas em complexa e criativa rede de
planos oblíquos e paralelos (caso de uma vila do Dafundo, de rigorosa modulação)
(fig. 6). Antes, em 1902, o construtor Tojal tinha já utilizado, em generosas varandas
sobre a frente das casas, o mesmo material (na Vila Berta).
Nos prédios de habitação em clássico esquerdo-direito, o ferro ia desempenhando
cada vez mais o papel de suporte do espaço autónomo e complementar da casa que
era a marquise, como vimos experimentada já na década de 80. Assim se preencheram
os vastos quarteirões das Avenidas Novas, por vezes com originais escadas em caracol
ligando os habituais cinco ou seis pisos avarandados, envidraçados ou abertos, que, em
conjuntos orientados para um mesmo logradouro interior, devolviam às Avenidas,
súbita e secretamente, em cada miolo de quarteirão exteriormente mundano, uma
ruralidade feita de roupa estendida e de galinheiros, que nunca abandonou Lisboa.
Foi desta época e desta modalidade que resultou a fixação formal do prédio «para
rendimento» em fachada de alvenaria mais ou menos decorada, mais ou menos
perseguindo um «estilo», em contraste com o carácter «oficinal», prático e
geométrico (em suma, «moderno»), da traseira. Este sistema, tão forte e enraizado,
persistiu bem dentro do período seguinte, quando a estrutura dos prédios aplicava já
o betão armado, quando as fachadas eram já geométricas e modernisticamente
abstractas: apesar disso, a marquise de ferro lá continuava ainda pelo anos 30 fora...
(embora com expressão um pouco mais art déco nas caixilharias).
Na fachada, os afloramentos metálicos eram sempre mais tímidos, dada a implicação
estética do acto: era por vezes, em esquinas, solução para ganhar um pouco mais de
área para a casa formando uma bow-window saliente, como no caso de um prédio
da Avenida do Duque de Loulé, em 1919,
Há que fazer uma referência ainda aos inúmeros palacetes que foram usando o ferro
em varandas e galerias, desde o século XIX, nos arredores dos centros urbanos,
primeiro com gosto classizante, mais tarde associados ao modelo centro-europeu do
chalé, e, em muitos casos, ao veraneio e às áreas de praia: dos arredores de Espinho
Fig. 8
Lisboa — fachada
metálica na Baixa,
Rua do Ouro
Fig. 9
Lisboa — projecto de
fachada metálica na
Baixa: Arquivo
Municipal
à Foz portuense, de Viana do Castelo aos palacetes da costa do Minho, ou à volta
de Lisboa, em Colares, Estoris e Cascais.
As pequenas peças constituem uma das áreas onde o ferro pôde atingir maior
originalidade e enraizar-se também nos hábitos urbanos por mais tempo. Desde os
mobiliários de jardins e parques (os famosos coretos que já surgiam no Passeio
Público de Lisboa, para depois se difundirem por toda a vilazinha de província,
com destaque para as áreas de maior tradição de bandas musicais, como a
margem sul) aos mais ligados à rua, como os quiosques e urinóis (caso da «mesa
de refrescos» de 1916, no Príncipe Real, lisboeta, ou do já raro exemplar de
«verter águas» existente no Porto, linha da Foz), ou ainda aos relacionados com a
vivência do campo, mirantes e lavadouros (respectivamente com exemplos em
Coimbra e Setúbal).
As lojas representam outro campo ao qual o ferro ficou associado, ao permitir a
abertura de montras maiores e com melhores condições de iluminação interna: a
solução passava muitas vezes pelo rasgar dos panos de alvenaria existentes, depois
pelo colocar de vigas em l e pelo moldurar a frente nova com colunazinhas de ferro
de minicapitel metaloclássico. Assim sucedeu numa ourivesaria da Rua do Ouro,
lisboeta, em 1 9 1 1 (com curiosa ampliação já ao gosto arte nova em 1915 , na
sobreloja) (fig. 8), ou numa retrosaria da mesma rua nos anos 20 (fig. 9); as colunas,
normalmente adossadas ou embebidas na fachada, tinham por vezes variações
originais, como numa loja de Vila Real (Rua Direita, n.° 19), em que se apresentam
«soltas» do plano construído, ou pontuando o espaço interior das populares adegas
lisboetas de Alcântara (junto à actual rotunda).
Outras pequenas obras com estruturas ligeiras, relacionavam-se com equipamentos
de diferentes tipos. São exemplo as fontes e piscinas de estabelecimentos termais,
como na Cúria (1914) ou no Luso, onde graciosas peças de ferro molduram as
águas; ou as estufas, de elegantes volumes cilíndricos nos jardins Burnay, da
Junqueira, (Lisboa), ou com rectilíneas peças de ferro e vidro do jardim Colonial,
de Belém (1914).
A decadência
Com a entrada dos anos 20, a concorrência do betão armado foi abrindo uma nova
fase de obras, com utilização mista dos dois materiais, permanecendo normalmente
os pilares em ferro, mas suportando já lajes de betão; é o caso do antigo Cinema
Lys (depois Roxy, alterado), na Avenida do Almirante Reis, em Lisboa, de 1929.
Outras vezes, o ferro surgia como «apêndice» da obra «moderna» (esta em gosto
art déco e com uso de betão), secundarizado e marginal; retomava deste modo a
sua posição inicial, secundária na obra. Assim sucede na gare do Cais do Sodré, de
1928 (fig. 10), onde a novidade residia na decoração geométrica dos corpos de
entrada, e não na parte coberta com ferro; ou no Cinema Odeon, onde as
obrigatórias galerias de circulação periférica exibiam o metal e o vidro decorativo à
revelia dos ensaios estilísticos do interior da sala. O ferro nunca perdera, aliás, essa
função pobre, mas necessária, de servir sem brilhar, sem ser mostrado; e, quando
Carlos Ramos projectou um «edifício de prestígio» para a Rua do Ouro, a Agência
Havas, em 1921, ocultou com a sua fachada estilizada e simplificada (que anunciava
já o estilo das artes decorativas) uma estrutura interna de esqueleto metálico
completamente camuflado com estuques que envolviam colunas e vigas...
Uma síntese
Viu-se como o ferro se foi introduzindo e enraizando nas actividades construtivas da
arquitectura portuguesa, desde os meados do século XIX até ao advento do betão
armado, já nos anos 20.
Esse enraizamento não se traduziu, no entanto, numa substituição normal,
«definitiva», dos materiais tradicionais — pedra, tijolo, madeira —, com os quais teve
de aprender a dialogar, quer no interior quer no exterior das obras; tal dificuldade
de afirmação deveu-se por certo a um permanente desfasamento, que a tecnologia
do ferro sempre acusou, entre a capacidade de solução das questões técnicas da
obra, realmente notável para as necessidades da época, e a sua expressão estilística,
para a qual se recorreu, por sistema, a formas do passado, quando muito
modernizadas, mas nunca «modernas» (nem as «artes novas» de um Horta ou de
um Gaudi resolveram o dilema).
Só o betão saberá (e não desde o início da sua aplicação) encaminhar-se para um
estilo moderno. Porquê esta incapacidade do ferro? Talvez pelo pioneirismo de que
se revestiu a entrada do novo material na arquitectura (em todo o mundo, o ferro
foi a primeira proposta moderna — logo, industrial — de construir, quando autores
e executantes não estariam ainda «preparados» para interpretar e assumir as
potencialidades da tecnologia oferecida); talvez também, por outro lado, pelas suas
incapacidades reais — os perigos do fogo e da ferrugem —, que no fundo limitaram
desde sempre o seu desejo de se impor como material de futuro.
Sacrificado depois a invenções mais sofisticadas, a especial importância do ferro na
construção residiu em ter servido de charneira para o advento da arquitectura
moderna, assinalando o papel determinante das novas técnicas e matérias industriais
na sua invenção.
Fig. 10Lisboa — interior da
estação ferroviária do
Cais do Sodré: foto
Horácio Novais
Fig. 11
Almada/Cova da
Piedade — Fábrica de
Moagens Gomes
Caramujo (actual
Fábrica Aliança): s. ed.
(bilhete-postal)
O betão armado — os primórdios
Desde meados do século XIX que surgiram experiências pontuais de aplicação do betão
armado na construção, no quadro europeu e em pleno processo de industrialização. Tal
como para o ferro, embora surgido mais tardiamente, as primeiras aplicações do betão
tiveram o álibi utilitário, ou limitaram-se a substituir — imitando com a perfeição possível
— matérias nobres como a pedra, tema a que a «pedra factícia» que o betão constitui
se prestava com grande vocação10. Só que, ao contrário do ferro, a tecnologia do betão
«cresceu» mais depressa e maturou em poucos decénios.
Em Portugal, e uma vez mais, só tardiamente foram surgindo as suas aplicações, mais
para os finais do século XIX, em inúmeras partes construtivas e em elementos
decorativos diversos, onde o betão fingia ser o que não era.
As duas referências pioneiras costumam ser a uma fábrica de moagens junto à Cova da
Piedade, no Caramujo (de A. J. Gomes & C.ª, sucessores da Viúva de Manuel José
Gomes & Filhos), que, depois de um incêndio, seria reconstruída em 1896 pelo sistema
Hennebique de betão armado (dentro de um modelo de desenho classizante, como se
de pedra se tratasse) (fig. 11); e à ponte em arco de Vale de Meões, nos arredores de
Mirandela, em Trás-os-Montes, que em 1906 adoptou idêntico sistema, através dos seus
«agentes gerais» em Portugal. Ambas existem ainda, se bem que alteradas.
O betão foi nesta altura aplicado por companhias que possuíam patentes (e com elas
o «segredo») dos diversos processos construtivos possíveis. No referido livro de João
Segurado (ver nota 10) indicam-se os diversos sistemas com origem em França que
O autor considera liderar a aplicação do betão no mundo: Monier, Coignet, Cottancin
e Hennebique são os principais. Este último sistema fora inventado pelo autor do
1.° Tratado Internacional de Betão, editado em 1893, e a sua empresa manteve
relações mais directas com Portugal, onde, aliás, no ano seguinte, a primeira fábrica de
cimento Portland iniciava a produção (Fábrica Tejo), ainda que muito limitada.
Correspondendo às múltiplas maneiras de produzir o betão armado, os primeiros
anos do século XX ensaiaram diversas designações para esse material, desde «betom
armado», «betom de cimento armado», «siderocimento», «concreto armado» ou
«formigão armado», expressões que João Segurado refere, até simplesmente «beton»
(ou «betom»), «cimento armado» e «beton moldado». Ainda hoje, apesar de serem
mais reduzidas as variantes de designação, se hesita na palavra a escolher.
Assim, embora no Anuário da Sociedade Portuguesa de Arquitectos se referissem, em
1905, as potencialidades do «cimento armado» e Ramalho Ortigão seguisse a mesma
designação ao elogiar as suas potencialidades decorativas (no n.° l da Arquitectura
Portuguesa de 1908), já a Construção Moderna, publicada de 1900 até 1919, prefere
«beton» e «formigão de cimento».
Como para o ferro, seriam as obras ferroviárias responsáveis pela aplicação de betão
em pontes, viadutos e equipamento de apoio. Só que, correspondendo a uma fase
10 Termo referido em Betão Aparente em Portugal, por Carlos Antero Ferreira, ed. ATIC, 1972; esta obra,
bem como Cimento Armado, de João Emílio dos Santos Segurado (ed. Aillaud e Bertrand, antes de 1929),
foram as que apoiaram mais directamente o presente capítulo no fornecimento da maioria dos dados; são
trabalhos fundamentais para uma compreensão do tema abordado.
terminal da expansão da rede, foram em muito menor número e ao longo de vias e
linhas secundárias, como as do vale do Vouga e do Sado, e nos ramais para
Portimão e Lagos (ao longo dos anos de 1910-20).
As primeiras Tabelas Técnicas de Beton de Cimento deveram-se, aliás, ao Eng.º Vicente
Ferreira, funcionário da CP (a companhia ferroviária portuguesa); foram publicadas
em 1 9 1 1 , ano em que se construiu uma cocheira de carruagens de wagons-lits em
Campolide, Lisboa (ainda existente).
Em 1912 ergueram-se os dois depósitos de água do Entroncamento (fig. 12) (e talvez o
viaduto para peões sobre o complexo ferroviário local?) e em 1913 a ponte rodoviária
sobre o Alvor, entre Penacova e Porto da Raiva. Provavelmente da mesma fase foi a obra
da passagem superior sobre a ferrovia no Lavradio (Barreiro), ainda existente. Do mesmo
ano de 1913 data a aplicação de betão na estrutura da Fábrica de Cerveja Germânia (hoje
a Cervejaria Portugália, na Avenida do Almirante Reis, Lisboa), ainda existente parcialmente,
com ela surgindo assim, pouco a pouco, as obras de betão em contexto urbano...
Desta primeira fase, mais experimental, ficaram as galerias de finos pilares e delicada
trama de vigas, quase sempre com um capitel evocativo do modelo em pedra que
ainda se tinha como referência: são exemplos (a datar) a «arcada do balneário» das
Termas da Cúria (onde se distingue claramente a obra «técnica» de betão e a obra
«artística», deliberadamente mais visível, dos pilares compósitos, também construídos
em betão) (fig. 14); a terrasse na Foz do Porto, com ondulantes guardas e lances de
escadas de formas classizantes; bem como muitas outras esplanadas de jardins pela
província fora, como a de Penalva do Castelo (onde alguns balaústres mais
carcomidos ainda deixam ver o esqueleto de ferro).
Devem ainda referir-se a série de escadas, varandas, mirantes e ameias que em
palacetes dispersos pelo País foram «caricaturando» os antigos modelos de pedra e
ajudando a «inventar» o betão como novo tema expressivo. Encontram-se exemplos
em Vila da Feira (à entrada da povoação), em Vila Real (na estrada para Chaves),
em Castro Verde (fig. 13) e no Bom Jesus de Braga, datando este último de 1922-25).
A justaposição desta «arquitectura de betão», prática e simplificada, a contextos mais
elaborados prolongou-se aliás até aos anos 30, mesclada já com vocábulos
Fig. 12Entroncamento —
depósitos de água na
estação ferroviária
Fig. 13
Castro Verde —
palacete
modernistas, como se vê nas varandas do palacete Sotomayor da Figueira da Foz, ou
em alguns alpendres de Ponte de Sor (Hospital de Vaz Monteiro), ou ainda em
marquises lisboetas na Ajuda e em bow-windows de Oeiras...
Os anos 20 — a «arquitectura do betão»
Fig. 14
Cúria — galeria, das
Termas
Data de 1 9 1 8 o primeiro Regulamento para o Emprego do Betom Armado. Na sua
sequência, uma série de obras destinadas à divulgação dos processos de cálculo
foram surgindo, entre 1924 e 1928", em livros e revistas da especialidade. Em 1927,
o Regulamento de Teatros e Outras Casas de Espectáculos obrigava pela primeira
vez à construção daquele tipo de edifícios com materiais incombustíveis (pensava-se
obviamente no uso do betão armado),
Entretanto, e paralelamente, o novo material foi-se insinuando em obras cada vez mais
urbanas e prestigiadas (já com a participação de arquitectos), no espaço interno dos
edifícios e em relação com a sua estrutura, embora de modo «discreto» . Foram, em
Lisboa, os casos do Cinema Tivoli, na Avenida da Liberdade, projecto de Raul Lino de
1924, com complexa rede de vigas no suporte dos balcões da sala; do Teatro Ginásio,
na Rua da Trindade, por João Antunes, de 1923-25, totalmente construído em betão,
embora de solução clássica na fachada (interior demolido)12; ou ainda da Casa da Carris,
em Santos, por Jorge Segurado, de 1926, onde uma utilização de betão na varanda lateral
surge escamoteada pelo tratamento «clássico», embora simplificado, que lhe é imposto.
O betão surgiu então, igualmente, em soluções mais arrojadas que transpareciam já
para o exterior, como sucedia nos Armazéns Nascimento, no Porto, obra precursora,
de Marques da Silva, de 1914, com expressão dinâmica dos lances de escadas na fachada,
ou, em Lisboa, no Salão do Capitólio, de Cristino da Silva, começado em 1925 no
Parque Mayer, com poderosa consciência «moderna» nos volumes e materiais utilizados...
Mas o que melhor iria caracterizar esta fase encontra-se representado nas vastas
galenas moduladas com «pilares de chanfro» (caracteristicamente biselados nas arestas)
que envolveram os inúmeros sanatórios construídos na época. Junto à praia de
Miramar, em Francelos (arredores do Porto), ergueu-se a esplêndida Clínica Heliântea
(hoje recuperada para outra instituição), por Oliveira Ferreira, de cerca de 1929-30 (já
com desenhos de inspiração art déco) (fig. 15), e a que a deve ter antecedido alguns
anos, com as mesmas galerias sobreelevadas do terreno, mas ainda com expressão
algo académica, e que se situa nas imediações. Outro exemplo foi o do Sanatório do
Outão, à Arrábida, que aproveitou uma velha fortificação, com galerias em betão de
gracioso ritmo e claro-escuro (fig. 16); há ainda que referir uma construção, mais
modesta, envolvida totalmente pelo mesmo tipo de galerias, na Parede, junto à estação
11 Destacam-se Betom Armado, Um Sistema de Cálculo de Construção de Vigas, de J. J. Jorge Coutinho, ed,
Ferin, f 924 (autor com obras construídas na época e colaborador da revista Arquitectura Portuguesa, cerca
de 1927, com artigos sobre o uso do betão); e Betão Armado, de Delfim de Oliveira Ferreira, 1928
(parente do arquitecto autor da Clínica Heliântea de Francelos).12 Edifício estudado em artigo publicado na revista Arquitectura, n.º 135, de Outubro de 1979, por Luísa
Góis, Carlos Morgues e Vítor Poço de Melo.
ferroviária. Mais tardio, um alpendre em Amarante desenhou em granito um mesmo
formalismo construtivo (construção municipal, de 1939, perto da Casa das Lerias).
As grandes instalações portuárias e industriais começavam também a aplicação
sistemática das novas estruturas: de modo ainda mesclado com o uso do ferro, nas
séries de pavilhões do vasto complexo naval do Alfeite (Almada); dentro de um
«invólucro» de alvenaria tradicional, mas já com interessante pátio interior de vários
andares, nas instalações de Abel Pereira da Fonseca, a Marvila, em Lisboa.
No porto de Lisboa, os tradicionais armazéns de ferro e tijolo começavam a dar
lugar aos de betão, com destaque para dois espaços edificados, um entre as estações
fluviais de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos (demolido), outro em Santa
Apolónia (ao lado da estação, hoje em interessante relação com a Avenida do
Infante D. Henrique), entre 1927 e 1928; o edifício em Santa Apolónia foi da autoria
de João Jorge Coutinho, autor de alguns dos estudos teóricos já referidos (uma obra
que apresenta os característicos pilares de chanfro no interior e uma ousada consola
em betão na fachada). No final da década, a grande torre prismática da Companhia
Industrial Portuguesa, para produção do ácido sulfúrico na Póvoa de Santa Iria,
culminava com uma megastrutura em betão esta série de realizações (1929).
Ao mesmo tempo continuavam os ensaios experimentais de aplicações inovadoras,
como na construção da chaminé, utilizando o sistema Monnoyer, com 35 m de
altura (Fábrica de Cerveja Estrela, ao Campo Pequeno, demolida), ou na cobertura
cupulada do santuário do monte de Santa Luzia, em Viana do Castelo (do
conhecido João Jorge Coutinho, no prosseguimento da obra de Ventura Terra).
Fig. 15Francelos — antiga
Clinica Heliântea
Fig. 16
Outão — galenas do
Sanatório: s. ed.
(bilhete-postal)
A charneira de 1929-30
A acentuada crise económica e financeira do pós-guerra teve incidência directa na
indústria da construção, que praticamente suspendeu a sua actividade entre 1922 e 1926:
foi a época terrível dos prédios de «areia e cal», dos desmoronamentos, dos «gaioleiros»,
Em 1928, finalmente, nova legislação de emergência (centrada no Decreto n.° 15 289)
protegia e isentava os construtores, e um novo «sopro» era assim insuflado na
construção. Vejamos o testemunho, sobre esta fase, de um construtor civil, designado
pelo vulgo como «pato-bravo», porta-voz de uma classe muito activa na época13:
«Correspondendo às vistas largas que o sábio legislador previu, os construtores
lançaram-se com denodo em novos empreendimentos, multiplicando-se as construções
de prédios. Em reforço desse afã, veio ao seu encontro uma falange de bons
engenheiros e arquitectos, de cujo conselho, orientado pelos conhecimentos adquiridos
em cursos superiores, muito lucraram todos, isto é, construtores, operários e construções.
Foi desta colaboração que se operou a mudança da antiga maneira de fazer, isto é,
do tosco de madeira e da pedra e cal, pela edificação em cimento armado.
Aquando da publicação do decreto já referido, surgiu, ocasionalmente, no mercado o
cimento nacional, que rivalizava, sem favor, com o importado do estrangeiro,
sensivelmente mais caro. Tal facto constituiu um grande passo para o progresso...»
Esta mudança de condições veio permitir a rápida vulgarização do uso do betão nos
prédios de habitação correntes (primeiro em Lisboa e depois, por cópia, na
província), passo final da adopção da nova tecnologia construtiva. Logo surgiria o
primeiro Regulamento Geral da Construção Urbana para a Cidade de Lisboa — não
por acaso em 1930 —, no qual se recomendava, consentido ainda, embora, o uso
da «gaiola» de madeira, «normalmente empregada nas construções de Lisboa»14, que
pavimentos de casas de banho, cozinhas e seus anexos, bem como varandas,
coberturas e escadas, fossem «sempre construídos com materiais imputrescíveis e
incombustíveis, de preferência o betão armado»15.
Assim, e ainda que sem uma preocupação explícita de resistência aos sismos, se foi
introduzindo o novo material no espaço de habitar e com ele, no quotidiano do País
(explícitas eram então as preocupações e as ideias higienistas e de segurança contra
fogos). Cinco anos depois (1935), a ultrapassada legislação de 1 9 1 8 seria substituída
por novo Regulamento do Betão Armado (que fixava aliás a designação hoje mais
corrente do material), só rectificado ou actualizado em 1943 — e entre as duas
datas passar-se-ia quase um decénio fundamental na produção da arquitectura
modernista em Portugal. Na obra referida sobre os construtores civis tomarenses, o
autor destacava aquela que, segundo ele, teria sido a primeira obra «em cimento
armado» de Lisboa: um prédio dentro da estilística das artes decorativas, na Avenida
de Barbosa du Bocage, 18 (em plenas Avenidas Novas, ainda hoje existente), com
projecto de Norte Júnior, arquitecto que já se consagrara na produção lisboeta
desde o princípio do século. Datado precisamente de 1930, se não constitui o
13 Citação da obra Os Construtores Civis Tomarenses e o Desenvolvimento da Construção Urbana em Lisboa,
de Filius Populi (pseudónimo do construtor Manuel Vicente?), Tomar, ed. de 1946.14 Citação extraída do Regulamento Geral da Construção Urbana para a Cidade de Lisboa, pela Câmara
Municipal de Lisboa, 3.ª ed., Tipografia Municipal, 1936.15 Citação extraída da obra citada na nota 13; este regulamento, continuamente actualizado ao longo dos anos,
só em 1951 foi ultrapassado pelo decreto que instituiu o primeiro RGEU (base do actual regulamento).
Fig. 17
Lisboa — projecto
de edifício para a
Rua de Alexandre
Braga, n.os 4-6:
Arquivo Municipal
primeiro exemplo de uso de betão no prédio de habitação corrente de «pato-
-bravo», é de qualquer modo bem emblemático, pela tipologia, pela estilística e até
pelo projectista, o qual o referido autor considera «grande amigo e proficiente
conselheiro» dos construtores (juntamente com autores tão díspares como Pardal
Monteiro, Edmundo Tavares, Raul Tojal, Vasco Regaleira e Jacinto Robalo).
Nas obras lisboetas do início da década também se toma possível ver como era
entendida a aplicação do novo material: com uso restrito em parte das lajes e por
vezes com cintas pontuais sobre os vãos ou para suporte das (tímidas) consolas; um
cálculo sumário, em muitos casos resumido a um único desenho técnico, apoiava
«cientificamente» o trabalho. Assim sucedia, por exemplo, no prédio da esquina da
Rua de António Granjo, n.º 7, com a Rua do Dr. António Martins, a Sete Rios, em
cujo projecto, de 1936, é também possível apreciar como uma fachada
aparentemente tão geométrica e abstracta (logo tão «moderna») se traduzia, afinal,
num retrógrado eclectismo de aplicação de materiais (na sua constituição entravam
alvenaria ordinária, madeira, betão, sem esquecer o obviamente tradicional ferro nas
traseiras). Mesmo nos casos onde participavam técnicos conceituados e
experimentalistas, como na sede da empresa de construções Amadeu Gaudêncio, na
Rua de Alexandre Braga (também em Lisboa), projecto de Cristino da Silva, de 1933
(fig. 17), se notava a mesma hesitação e idênticos conceitos de aplicação do betão
de modo fragmentado.
Ao longo do mesmo período de generalização da nova tecnologia iam-se ensaiando
inventivas soluções formais nos programas mais simples e domésticos, com a
liberdade de cálculo e de execução que o Regulamento de 1918 permitia (por
exemplo, admitia espessuras de laje mínimas até 8 cm, quando, hoje, o normalmente
admissível são 15 cm). A plasticidade extrema do betão a isso ajudava e tentava: o
material «colava-se» com uma enorme facilidade às sugestões geométricas que o art
déco propunha (denteados em vez da simples viga lisa em consola, para «decorara
melhor uma qualquer cobertura); imitava os estilos revivalistas que se quisessem -
caso dos arcos «góticos» em betão, como tantas vezes a arquitectura religiosa da
época vai exigir; finalmente, substituía as tecnologias mais elementares sem hesitar
em as seguir «à letra» (por exemplo, no suporte de uma simples varanda usava
pilares e vigas oblíquas com a expressão e as proporções que a madeira permitiria).
Por estes múltiplos caminhos, a tecnologia da «pedra factícia» instalava-se em
definitivo, caminhando para o domínio da totalidade dos diversos programas
construtivos ao longo do meio século seguinte...
Os outros materiais — vidro, plástico, luz
Além dos novos materiais que estruturam os edifícios, este período seria fértil em
reinterpretações de outros, relacionados com o acabamento das construções e o
revestimento das superfícies não portantes; dentre eles, o vidro iria desempenhar
papel relevante, fabricado em lâminas de corte industrial.
O vidro surgia aplicado de modos diversos: era o material das grandes superfícies
transparentes, moduladas por finas retículas de perfis metálicos, como no átrio da
Escola Comercial e Industrial da Figueira da Foz (no Largo do Visconde da Marinha
Grande), ou nos antigos cinemas de Macedo de Cavaleiros e de Santarém (fig. 19),
permitindo desse modo generosas e inesperadas iluminações do espaço interior, que
a translucidez do vidro martelado modulava e amaciava; usava-se também o vidro
com inclusão de desenhos geométricos ou figurativos, ou com áreas coloridas [casos
dos panos de vidro no refeitório da Fábrica de Cimentos do Outão, na Arrábida, e
do Amor da Pátria, na Horta, Açores (fig. 18), ou de exemplos na arquitectura
doméstica, em simples guarda-ventos, em Oeiras, na Rua de José Joaquim de
Almeida, n.° 9]; ainda o podemos observar transformado em pequenos volumes (o
«tijolo de vidro» da luminosa e esguia torre do Cinearte, em Santos, Lisboa), em
espelho (em muitos interiores de lojas), cinzelado (em divisórias de cafés e em
livrarias, como na Livraria Lello & Irmão, Rua do Carmo, Lisboa). O vidro era ainda
utilizado seguindo a técnica do vitral, como nos esplêndidos painéis do Café Imperial,
à Avenida dos Aliados, na Praça da Liberdade, n.° 126 (arquitecto Marques de
Abreu?), no Porto.
As novas e sofisticadas maneiras de trabalhar o vidro davam forte sentido visual ao
letteríng de muitos estabelecimentos comerciais, espelhando pela primeira vez, em
dourado ou prateado, uma moderna atitude de consumo: desde a sofisticada loja
Nova York, em Ponta Delgada, à mais corrente e popular Drogaria Portugália
Perfumaria, na Rua de Capelo e Ivens, em Santarém.
Da conjugação do vidro «armado» em ferro com a aplicação da electricidade nascia
um novo «material», por assim dizer a luz. De facto, os coroamentos de edifícios
com torres ou «pilares de luz» serviam novas áreas de espectáculos (a entrada do
Parque Mayer, Lisboa), valorizavam edifícios industriais e comerciais (a sede do Diário
de Notícias, Avenida da Liberdade, Lisboa; os Armazéns Cunhas, Praça de Gomes
Teixeira, n.™ 4-22, Porto), átrios e mirantes até (Amor da Pátria, na Horta, e o
miradouro da serra de Portalegre), tomando a noite um verdadeiro espectáculo
arquitectónico.
No interior, a luz moldava tectos de escolas (átrio do Instituto Superior Técnico,
Lisboa), salas de cinema (Teatro de Rosa Damasceno, Santarém), frentes de lojas (a
Águeda, no Largo de 5 de Outubro, em Viana do Castelo; a Vitália, farmácia
portuense com uma simbólica cruz vermelha na fachada, na Rua dos Clérigos,
n.os 34-37), e inventava larga variedade de candeeiros de gosto geométrico...
A luz redescobria também o sentido gráfico da arquitectura, com o auxílio de gases
«prisioneiros» em invólucros de vidro tubulares: o flúor e o néon desenhavam
Fig. 18
Horta, Faial —
Sociedade Amor da
Pátria
armaduras em tectos (Cinearte, Jardim Cinema, em Lisboa), pavões «animados» em
fachadas (Armazéns Cunhas, no Porto), mapas do Portugal rodoviário e arco-íris
(garagem Passos Manuel, frente ao Coliseu do Porto, Rua de Passos Manuel; Café Arco
Íris, em Vila Nova de Gaia, esquina das Ruas de José Falcão e do Barão do Corvo).
E surgiam mesmo materiais inteiramente novos: o plástico fazia a sua entrada no
mundo da construção, ainda sob um aspecto algo «primitivo», em placas rígidas, com
brilho, lisas e de cores fortes; aplicava-se em frentes de lojas, como na Instanta, da
Baixa lisboeta (Rua Nova do Almada, em tom negro, realçado pelos tubos
cromados), ou em estabelecimentos de pequenas cidades [na Póvoa de Varzim, em
vermelho-vivo (fig. 20), ou em Guimarães, em vermelho e negro, na Casa das
Gravatas, na esquina da Praça do Toural com a Rua de Santo António, demolida em
1979-80], Foi também a época dos termolaminados e dos folheados de madeira,
revestindo mobiliário e lambris; de igual modo, os aglomerados serviam no
revestimento de paredes, tornando-se muito popular a corticite, baseada na
abundante matéria-prima nacional.
O ferro revelava-se também muito versátil como material de acabamento ou
elemento decorativo. Para isso contribuía a aplicação dos perfis laminados e
encurvados em lettering, portas, puxadores, tapetes metálicos (estes na entrada da
Tobis, no Lumiar, Lisboa), muitas vezes em criativa composição com chapas pintadas,
como se vê ainda em muitas portas de prédios lisboetas. Outra aplicação muito
corrente era o tubo de ferro pintado ou cromado, de secção circular, o qual, em
portões (no Rádio Clube Português, da Parede, na Emissora Nacional, do Quelhas,
Lisboa), guardas de varandas e de escadas (Cinema de Oeiras, edifício do Turismo
de Braga, Hotel de Caldelas), ou em mobiliário [Sanatório de Celas, em Coimbra
(fig. 23)], ia definindo ambientes e confortos...
Sistemas mecânicos inovadores eram nesta época ensaiados: nos tapetes rolantes que
faziam sensação no Capitólio, salão de festas do Parque Mayer, em Lisboa; nos
ascensores verticais de estrutura generosamente decorativa [como na sede do Diário
Fig. 19
Santarém — interior
do Teatro Rosa
Damasceno
Fig. 20
Póvoa de Varzim —
loja Novo Mundo,
Avenida de Mouzinho
de Albuquerque, n.º 5
Fig. 21
Francelos — ascensor
da antiga Clínica
Heliântea
Fig. 22
Carcavelos —
bilheteira do Vitória
Cine, demolida (actual
Ludance), Rua de João
da Silva, n.º 4
Fig. 23Celas/Coimbra —
interior do Sanatório:
foto Rasteiro, Coimbra
de Notícias ou na Clínica Heliântea de Francelos (fig. 21)]; ou na mais vulgarizada
porta giratória, que cafés e hotéis se apressavam a adoptar (exemplos em Évora, no
antigo Café Arcada, na Praça do Giraldo, e em Santarém, no Café Central, Rua de
Guilherme de Azevedo n.° 32).
Quanto aos materiais mais antigos e tradicionais, seriam nesta época objecto de uma
«revolução de gosto», seguindo novos modelos formais, mais geométricos e
simplificados, que uma estética em mutação ajudava a generalizar. Mosaicos, bolbosos
ou lisos, preenchiam fachadas de lojas, creches, foyers de equipamentos públicos
(respectivamente na loja do Diário de Notícias, no Rossio lisboeta; em jardins infantis
de Coimbra; e no Cinema de Oeiras). Os azulejos molduravam átrios de escada em
prédios de habitação (em Lamego, na Rua de Almacave; na Malveira, no edifício do
Talho e Salsicharia Moderna, na Avenida de José Baptista Antunes), preenchiam
corredores de sanatórios (na Quinta dos Vales), interiores de talhos (Matosinhos),
volumes de bilheteiras [no antigo Vitória Cine, de Carcavelos, demolido parcialmente
(fig. 22)] e até apeadeiros ferroviários (do Quevedo, em Setúbal), padronizando-se
quantas vezes em simples xadrez de preto e branco. Mesmo os humildes mosaicos
hidráulicos animavam com motivos neoplásticos e composições abstractas, simples
oficinas de sapateiro (na Baixa pombalina), reservando-se as pedrinhas de mosaico
cerâmico para tornar festivas as frentes de prédios e moradias (Póvoa de Varzim);
quanto à pedra, aplicava-se desde simples calçada «à portuguesa» (interior da
Estação de Alcântara-Mar, demolida) aos mármores luxuosos das fachadas comerciais
(Livraria Lello & Irmão, Rua do Carmo, em Lisboa; Drogaria Pedroso, na Covilhã),
sempre com a preocupação geometrista que a moda «moderna» impunha,
O percurso estilístico A arte nova
Estilo «artes decorativas» — O «art déco»
Do primeiro «moderno» ao advento do nacionalismo
A arte nova
Este é o nome português para a renovação que as artes plásticas procuraram no
início do século, sob influência directa de tentativas congéneres que pela Europa fora
se designaram por art nouveau, modern style, Jugendstil, ou estilo liberty, isto se nos
referirmos apenas às «correntes da linha curva»16.
Na arquitectura, essas tentativas procuraram recusar toda a referência historicista,
revolucionando a concepção do projecto, pela invenção de um novo desenho que,
«totalitário», tomasse de novo coerentes entre si novos materiais e velhas tradições
construtivas.
Processo divergente e original, em cada cultura arquitectónica autónoma, a «nova
arte» que se pretendia descobrir, se falhou o seu objectivo uniformizante (um Gaudi,
um Horta ou um Mackintosh produziram formas de facto renovadoras, mas
inconciliáveis com esse desejo), soube pelo menos, como fenómeno de transição para
o futuro movimento moderno dos anos 20, despertar a atenção para a necessidade
de mudança que a situação retrógrada do eclectismo oitocentista tomava essencial.
Mas, enquanto, na Europa, os diversos movimentos artísticos desempenharam um papel
de vanguarda, assegurando a transição para uma nova linguagem arquitectónica, em
Portugal, a arte nova iria remeter-se a um plano secundário, basicamente no quadro
decorativo; isto acontecia talvez pela preponderância entre nós da corrente do art nouveau
francês, já de si entendido mais como outro estilo a juntar ao «caldeirão» do eclectismo
do que como atitude de rotura; e certamente também devido à permanência no nosso
país de uma forte cultura académica e tradicional, facto que não facilitava a compreensão
ou aceitação das novas propostas (a não ser no plano menor das lojas populares ou da
decoração cerâmica), já que elas implicariam subversão de conceitos tão instituídos. Não
se pode esquecer também que fora a pressão industrial que ditara nos outros países
a necessidade de renovação artística e como essa pressão era tão diminuta por cá.
A arte nova portuguesa iria portanto afirmar-se mais no plano das superfícies e
menos no das estruturas; iria ser tardia (emergindo cerca de 1905, quando, pelos
outros países, as correntes análogas se iam extinguindo, e terminando já na década de
20), não deixando por isso de revelar originalidade; iria ter o seu ponto forte na
aplicação da azulejaria (ou não procurasse inserir-se num contexto tradicional dentro
da arte portuguesa), em esquemas fragmentados de preenchimento de fachadas, onde
tantas vezes sobressaiu um tema figurativo próprio, «a flor virada (girassol), cujo
elemento fulcral é a intersecção do caule e do cálice»17; e o seu «espírito» informaria
ainda certas pesquisas pontuais que arquitectos portugueses tentaram sobretudo no
domínio da habitação, independentemente de influências formais exógenas, na procura
do que poderia ter sido uma verdadeira «arte nova nacional», destinada a deixar
bons exemplos pontuais e a fracassar como proposta generalizável.
16 Conforme Manuel do Rio Carvalho, «Modern style, art noveau e arte nova — respectivas situações»
(artigo na revista Arquitectura, n.° 60, de 1957); a outra corrente, a da «linha recta», será abordada no
capítulo seguinte, já que se articula com o advento do art déco em Portugal.17 Ver nota 16.
A moda e as lojas
Ligada na Europa a uma ideologia do progresso, operária e «de esquerda» (veja-se a
Maison du Peuple, na Bruxelas de Vítor Horta), esta corrente artística iria pelo
contrário, em Portugal, reflectir-se em estabelecimentos comerciais, que espelhavam a
participação e o interesse da classe média e mesmo da pequena burguesia num
novo quadro mundano, urbano e de cariz conservador,
A arte nova afirmou-se, deste modo, em diversas funções: umas, inovadoras, como a do
nascente animatógrafo, que teria, com a fachada da Rua do Arco de Bandeira, ao
Rossio, em Lisboa, o ex-líbris da nova corrente estética, em 1908 [talvez mais próxima,
excepcionalmente, da estética do Jugendstil, que do art nouveau, como sucedia também
com uma Joalharia da Batalha, no Porto (fig. 25)]; outras, com especial desenvolvimento
neste período por razões sociais, como as padarias (ligadas à «democratização do pão»
encetada pela República), com muitos exemplos em Lisboa (um deles com azulejos de
Rafael Bordalo Pinheiro na fachada na Rua da Graça, já demolido) e outros pela
província, caso da Mealhada (também com azulejos na fachada).
Com originalidade, a arte nova foi atitude estética dominante igualmente em lojas
«da moda» e de modas, em retrosarias (a Bijou, da Rua da Conceição lisboeta), em
alfaiatarias (a Paris, da Baixa), em lojas «de cintas e espartilhos» [a preciosa Madame
Garcia (fig. 24)]; e ainda em outros estabelecimentos, de novo pela província (a
Barateira de Ovar, na rua principal do povoado); finalmente, em restaurantes, cafés e
botequins, centros de convívio por excelência, como a desaparecida Cervejaria
Jansen, ou na série de estabelecimentos das ruas secundárias da Baixa alfacinha
(reforçando o sentido popular da utilização desta estética «ondulante"), ou ainda nas
Brasileiras do Porto e de Lisboa, também demolidas ou desfiguradas. Outras lojas,
ainda inseríveis neste tema, acusavam já uma transição para outro quadro estilístico,
relacionado com a maior geometrização das decorações e das formas, que anunciava
a aproximação do art déco (fachadas de um talho em Santo Amaro, na Rua dos
Lusíadas, n.os 37-39; e dos antigos Telefones do Rossio, na esquina com a Praça de
D. João da Câmara, ambas em Lisboa).
O azulejo, «alma» da arte nova portuguesa
Continuando a tradição oitocentista do revestimento de fachadas e de átrios no
prédio de andares urbano, a azulejaria deste período ocupou muitas paredes dos
acessos e das caixas de escada das habitações, com emprego de grande diversidade
de padrões e de técnicas (em relevo ou pintados — os mais frequentes —, ou de
tipo industrial e com estampilhados — os mais raros); mas, ao contrário do sucedido
no século XIX, o azulejo reservava-se normalmente, nas fachadas, para situações de
revestimento pontual ou parcial (sendo excepção o prédio de dois pisos na Avenida
do Almirante Reis, n.°74, aos Anjos, de 1908, notável porque completamente
revestido no 1.° andar com padrões pintados).
Fig. 25
Porto — Joalharia
Reis Filhos, Rua de
Santa Catarina/Rua
do 31 de Janeiro
Fig. 24
Lisboa — antiga loja
de cintas e espartilhos
Madame Garcia,
Avenida do Almirante
Reis, n.º 11
Fig. 27
Aveiro — fachada de
azulejos peno do
antigo Rossio,
Rua de João
Mendonça, n.os 5-7
Fig. 26
Fachada do edifício na
Fuzeta, rua principal
De destacar aqui as principais fábricas ou oficinas de produção de azulejos, como as
da Viúva Lamego, Sacavém, Lusitânia e Constância (sem esquecer a portuense das
Devesas). De realçar foram sobretudo as intervenções de Rafael Bordalo Pinheiro e
da sua Fábrica das Caldas da Rainha, visíveis, por exemplo, em Lisboa, na discreta,
mas humorada, decoração da tabacaria Mónaco, no Rossio, ou nos padrões em
relevo de algumas fachadas: a da já referida padaria na Rua da Graça e de uma
garagem à Estefânia (Rua de Ponta Delgada),
Em geral, eram mais correntes as aplicações azulejadas restritas às cimalhas dos
prédios de habitação (com exemplos praticamente por todas as cidades, do Algarve
ao Minho), aos frisos e faixas (na Vivenda Adelaide, em Sacavém, e na Rua das
Janelas Verdes, n.os 70-78, Lisboa) e, mais raramente, aos painéis.
Destes últimos encontram-se vários casos, de que há exemplos: nos Estoris (no Alto
de S. João, o conjunto azul e branco assinado «Pinto», nas Rua das Rosas, Rua das
Flores e Rua do Maestro Lacerda, do arquitecto Álvaro Machado, e o frontão da Vila
Ramos Simões, ou Pensão Continental, na Rua de Joaquim dos Santos n.° 2; no Monte
Estoril, a Vila Ralph, na Avenida das Acácias, n.° 34, esquina para o jardim dos
Passarinhos, de Jorge Colaço); em Sintra, à Estefânia, um curioso frontão com motivos
«egípcios» na Rua de Adriano Júlio Coelho, n.° 11; em Tondela (num palacete do
centro); em Cantanhede (a fachada da Sapataria Edmundo, Rua do Dr. António José
de Almeida, n.° 23) ; na Póvoa de Varzim (num edifício de habitação no centro). Estes
azulejos eram quase sempre peças nacionais; houve, contudo, situações, periféricas, de
material importado, como na já mencionada loja Nova York, de Ponta Delgada.
Casas, ambientes e exotismos
O palacete burguês não deixou, naturalmente, de ser «contaminado» pela arte nova,
muitas vezes no contexto da província, aqui relacionado por vezes com iniciativas
dos emigrantes enriquecidos e regressados, os chamados «brasileiros». Existem
muitos exemplos, sobretudo ao longo do centro litoral, e, dentre eles, a Vila
Africana, em Ílhavo (na estrada de saída para Aveiro, n.° 155), é o mais
paradigmático. Em Leiria (palacete e garagem no Largo de 5 de Outubro, n.° 55), no
Cartaxo (Rua de Luís de Camões, n.°1), ou mesmo em Lisboa (a casa do visconde
de Sacavém, na Rua do Sacramento à Lapa, n.° 24, de 1897-1900), surgiram também
exemplos relacionados com esta atitude de «procura do exótico», mais ou menos
impregnados da temática decorativa ondulante.
Do mesmo modo, em fachadas de prédios com carácter urbano e em regiões
similares encontram-se também soluções originais, quase sempre utilizando a
cerâmica decorativa, combinada com encurvamentos das cantarias nas guarnições dos
vãos, com arcos envolvendo várias janelas, ou simplesmente com uma procura de
proporção «esguia» nas aberturas, característica desta estética, que tudo pretendia
recriar (ao nível das superfícies, entenda-se). São exemplos, entre outros: uma
fachada no Rossio de Aveiro [com revestimento integral de azulejo (fig. 27)], um
prédio em Espinho (do Sporting Club, na Rua 8), outros no Cartaxo (na Rua
Batalhós, n.os 15, 17, 19, 41 e 54).
Mas os exemplos mais interessantes, do ponto de vista de uma originalidade de interpretação,
chegaram a criar verdadeiros «ambientes globais», como sucede no átrio de outro prédio
aveirense, onde mobiliário, caixilharias, vidros e estuques se interligaram por forma a
constituírem um conjunto impressivo e coeso [no Rossio, com azulejos Fonte Nova, assinados
por Luís Pinto, de 1907 (fig. 28)], lembrando, excepcionalmente e de modo algo provinciano,
os «espaços totais» da Casa Horta ou de obras de Gaudi... E ainda, em casos mais expressivos
de uma leitura local, roçando mesmo o kitsch e quase o surreal, se poderiam incluir duas
situações: a da casa dos viscondes de Sacavém, já referida, em Lisboa, espécie de «colagem»
de variadas cerâmicas das Caldas18, eclécticas, mas muito bem articuladas com o sóbrio
volume construído; e a da Casa das Varandas, em Estremoz (fig. 29), da qual se diz que
cada janela era diferente para simbolizar os amores tidos em diferentes varandas do mundo
pelo seu viajado autor. Esta casa vem referida no Guia de Portugal, que a entende como
«documento duma aberração do gosto, o Café Águia de Ouro, que o proprietário teve
a pretensão extravagante de fazer mostruário de janelas de todos os estilos»19.
E que, afinal, descontextualizada das razões da sua génese europeia, importada para
Portugal como fenómeno de moda, foi no plano de uma extravagância que a arte
nova, de modo mais vernáculo e sincero, foi aceite e portanto entendida entre nós.
Pormenores, materiais e interiores
Outros materiais sofreram a influência da «nova maneira», nomeadamente o ferro,
que surgiu, curvilíneo, sob diversas formas: como portões em frentes de habitações
(na Avenida da República, 87, em Lisboa, e no Porto, na Rua da Alegria), em
18 Conforme Guia de Portugal, vol. I, «Generalidades, Lisboa e arredores», cf. ed. Fundação Calouste
Gulbenkian, 1924.19 Em Guia de Portugal, vol. II, «Estremadura. Alentejo e Algarve»; cf ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1927.
Fig. 28
Aveiro — átrio de
habitação perto do
antigo Rossio, Rua de
João Mendonça
Fig. 29
Estremoz — edifício
conhecido como Casa
das Varandas, no
Rossio de Estremoz:
foto pertencente ao
proprietário do Café
Águia d'Ouro
Fig. 30
Lisboa — pátio da
Cooperativa Militar,
Rua de São José,
n.os 24-26
Fig. 31Lisboa — Garage
Parisiense (demolida):
foto do Arquivo
Municipal
elementos em consola (sobre a porta do Clube Agrícola, no Largo da Misericórdia,
na Chamusca; e na entrada do antigo Hospital do Conde de Sucena, em Águeda),
em guardas de varanda (em Pombal, na Rua do Almirante Reis; em Devesas-Gaia, na
Rua de Soares dos Reis, n.° 245; nas Caldas da Rainha, na Rua dos Heróis da
Grande Guerra, n.° 90), ou ainda em outras formas (como numa mansarda em
Alcobaça, junto à Praça da República; no suporte do quiosque do Largo da Estrela
lisboeta; e no ascensor do Palace Hotel da Cúria). Mas um dos exemplos mais
completos da aplicação do ferro, já que ao nível da estrutura, encontra-se no pátio
da Cooperativa Militar [à Rua de São José, n.os 24-26 (fig. 30)], em Lisboa, onde
ondulantes vigas metálicas se conjugam equilibradamente com a forma oval do
espaço, relacionando os temas da arquitectura do ferro com os da arte nova.
A madeira apareceu em funções e formas idênticas às do ferro, no desenho
ondulante de caixilhos de janelas (Figueira da Foz, num prédio da Rua da Praia da
Fonte, n.° 12; e numa mansarda em Torre de Ucanha, junto à ponte), de portas (no
Alto de Santo Amaro, junto ao jardim, em Lisboa), no remate de coberturas
sanqueadas de chalé (em Sesimbra, Rua de Peixoto Correia, n.° 56). No Sul, os
estuques aplicam as curvas arte nova em frontões (em Setúbal, Rua de Garcia Peres)
e em cimalhas (em Évora, Largo da Misericórdia, n.° 7).
Nos espaços interiores foi surgindo um «novo ambiente», definido por figurações do
progresso (como os automóveis representados nos vitrais da Garagem Auto-Palace,
Rua de Alexandre Herculano, n.os 66-68, em Lisboa), ou através de elementos
animalistas ou vegetalistas (os gafanhotos como definição formal no candeeiro do átrio
de Aveiro antes referido; as texturas nos armários da casa Madame Garcia, em Lisboa).
Fábricas e garagens
Estas funções, simples e utilitárias, ajudaram a articular mais directa e
correntemente o uso do ferro com a definição dos espaços — não se deixando
por isso de recorrer, como noutras tipologias, ao uso do azulejo. Tal sucedeu na
desaparecida Garage Parisiense (fig. 31), a Campo de Ourique, ou na referida
Auto-Palace; nelas, a fachada, mais tradicional no emprego dos materiais,
reservou-se para a cerâmica, enquanto toda a estrutura de suporte interna exibe o
ferro nas habituais soluções curvas.
Em fábricas ou armazéns surgiram também os elementos metálicos, em articulação
com as fachadas, na composição mais elaborada das caixilharias dos vãos (em Lisboa
podem referir-se: o edifício na Avenida de 24 de Julho, esquina com a Rua do
Tenente Valadim, de 1906; a antiga Companhia Nacional de Moagem, de 1910, na
Avenida de 24 de Julho, n.os 152-156; e a antiga Fábrica Vulcano, no Largo do
Conde Barão, n.os 13-19, de 1924). A escassez dos exemplos atesta, porém, as
limitações do desenvolvimento industrial do País na conjuntura da época, traduzidas
aqui na pouca arquitectura, construída.
Uma arte nova portuguesa?
Afastados deliberadamente desta produção mais acrítica e seguidora das modas,
epidérmica em duplo sentido (como linguagem «importada» e como linguagem «de
superfícies»), alguns autores procuraram outros caminhos. Raul Lino, dentro de uma
pesquisa de tipologias domésticas, estruturantes, aplicou o conceito de pátio e
utilizou os materiais do Sul, de tradição islâmica, tentando articular essa tradição,
modernizada, com implantações pré-organicistas, nos terrenos ideais dos Estoris e de
Sintra. Lino desenvolveu uma actividade por de mais breve no tempo — cerca de
quinze anos dos seus primeiros trabalhos «marroquinos» — e restritiva no programa,
aplicando-se quase apenas ao estudo de casas unifamiliares20; mas, apesar de tudo,
isso resultou no mais importante contributo para o que falhadamente poderia ter
sido o ponto de partida para a definição de uma arte nova de raiz lusa. A
colaboração na Casa Roque Gameiro, em 1898, a Casa Monsalvat, de 1901 (fig. 32),
e a construção da casa própria (Casa do Cipreste, 1912) parecem marcar os limites
temporais da sua pesquisa de sentido modernizante, que, sem deixar de ter como
objectivo primordial a criação de um ambiente global e único (um «espírito próprio»
em cada casa, pela articulação entre as suas partes e com o sítio), não evita também
as citações ao Jugendstil, ou a tentativa de prefabricar materiais (a telha mecânica do
Cipreste), características que o enquadram parcialmente na arte nova internacional.
Também Álvaro Machado, arquitecto praticante do modo neo-românico,
procurou, na Casa José de Lacerda, do Estoril, de 1910, uma «fuga para a frente»,
usando de maior liberdade na composição dos volumes (as massas «pesadas e
maciças», características do românico, concebidas com uma mais livre articulação
entre si) e a mesma referência aos padrões decorativos da arte nova europeia
que Raul Lino ensaiara.
20 Conforme análise de Nuno Portas em «Raul Lino — uma interpretação critica da sua obra de
arquitecto e de doutrinador», in revista Colóquio, ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 1970.
Fig. 32
Estoril — Casa
Monsalvat, pormenor
fig. 33Lisboa — prédio na
Rua aos Navegantes,
n.º 21
Korrodi, fixado em Portugal e praticante em Leiria, definiu em edifícios públicos e
em moradias uma «arquitectura da simplicidade», onde o ornamento moderno
se soube conjugar com uma grande pureza do desenho e uma compreensão
regional dos elementos vernaculares, entendidos como recuperáveis para as
novas construções.
Finalmente, e num contexto mais cosmopolita, Ventura Terra e o seu continuador
Miguel Nogueira, embora muito ligados à escola francesa, conseguiram também, pela
via da simplificação decorativa e volumétrica, uma forma de «arte nova lisboeta» que
se traduziu em construções despojadas, com partidos de composição originais. São
exemplos desta originalidade as assimetrias da fachada do edifício na Rua de Alexandre
Herculano, n.° 57, de 1903, de Terra; ou as volumetrias feitas de curvas suaves, mas
maciças, do prédio na Rua dos Navegantes n.° 21, já em 1921, por Miguel Nogueira
(fig. 33) — que recorda o seu edifício da Avenida da República n.° 23 (Prémio Valmor
de 1913) e tem o equivalente numa obra de Marques da Silva, no Porto, já referida a
propósito do uso do betão armado (os Armazéns Nascimento, de 1914).
Estas foram pois as tentativas marcantes, desgarradas embora, de procura de uma
nova arte (que não somente «arte nova») na arquitectura portuguesa do primeiro
quartel do século,
Vulgarização e rarefacção da arte nova — transição para o «art déco»
Enraizada cada vez mais como sistema decorativo e superficial, mesclada (e
recuperada) pelo eclectismo dominante desde Oitocentos, a arte nova lisboeta
foi-se vulgarizando no prédio corrente de habitação; e, se nos primeiros anos
desta «mistura» se exibia ainda com bons materiais e acabamentos, como no
prédio de esquina da Rua Augusta, n.os 284-286, para a Rua da Betesga (o Hotel
Internacional, do arquitecto J. C. Ferreira da Costa, 1909, ainda existente), ou no
Prémio Valmor de 1915, na Avenida da Liberdade, n.os 206-218 (arquitecto
Norte Júnior), já em plena crise da indústria da construção, no início dos anos
20, as decorações em massa iam pouco a pouco substituindo todos os materiais
mais nobres na fachada e acentuava-se a tendência para rarefazer todos os
temas e volumes decorativos, cada vez mais fragmentados e isolados na
empobrecida frente do edifício,
Como se os objectos construídos quisessem ser e aparentar aquilo que as limitações
económicas e a irreversível evolução do gosto já impediam.
Este tipo de fachada «decorativamente pobre» associou-se normalmente a uma
planta interior de excessiva profundidade, com quartos sem ventilação adequada
(recorria-se ao tradicional saguão, no «miolo» do edifício, ou entre cada dois imóveis
encostados empena a empena); desenhos sucintos e estereotipados dos pormenores
construtivos esclarecem bem a simplificação que predominava.
Comparando projectos de duas obras lisboetas, o alçado de um palacete da
Avenida dos Defensores de Chaves (n.° 26, de 1917, por Norte Júnior) (fig. 35)
Fig. 34
Lisboa — projecto de
palacete da Avenida de
5 de Outubro,
n.os 209-211:
Arquivo Municipal
Fig. 35
Lisboa — projecto de
palacete na Avenida
dos Defensores de
Chaves, n.o 26:
Arquivo Municipal
e o de outro imóvel de 1929 (palacete na Avenida de Cinco de Outubro, n.os
209-211, por Pardal Monteiro) (fig. 34), pode avaliar-se bem a diferença e sentir
a evolução sofrida ao longo desta década na ideia de «estilo»: por um lado, o
abandono de muitos «exotismos» decorativos, com recorrência a um sentido
mais «clássico» da composição; paralelamente, a textura tendia a substituir as
volumetrias, a cor a sugerir o claro-escuro, a linha recta a anular as curvas — era
o chamado estilo art déco a entrar na arquitectura portuguesa, acompanhado
(e apoiado construtivamente) do betão armado. Por esta via, era também a
estilística a aliar-se à técnica para um mesmo fim: embaratecer, simplificar, numa
palavra, modernizar.
Na província e nos bairros periféricos das cidades maiores foi-se aplicando uma
mesma «arquitectura de estuques», aparentada com a arte nova, mas mais
rarefeita e pobre: a arquitectura dos equipamentos, dos anos de 1920 a 1930, é
bem exemplificativa do fenómeno: do Teatro Chaby, no Sítio da Nazaré (fig. 36),
à Garagem Avenida, em Coimbra (Avenida de Fernão de Magalhães), ou ao
cinema Salão Portugal, no bairro da Ajuda, em Lisboa (Travessa da Memória,
n.° 36, de 1928).
Fig. 36
Teatro Chaby, Sítio da
Nazaré
Estilo «artes decorativas» — o «art déco»
Como se disse antes, opostas às correntes da «linha curva» desenvolveram-se,
sobretudo nos países germânicos, tendências artísticas «de linha recta»21.
Destacaram-se entre elas, sobretudo, a da secessão vienense e a Deutscher Werkbund.
Ao contrário das linguagens curvilíneas, que cedo chegaram a um «beco sem saída»
em termos de pesquisa para atingir uma nova e moderna linguagem arquitectónica, as
correntes germânicas iriam ser raiz para futuras experiências, pois «a estrutura formal
da sua linguagem vai impor-se além-fronteiras e, esgotadas as inovações do caminho
proposto por Horta, influenciar largamente as arquitecturas e artes decorativas da
Europa ocidental, nomeadamente da França; aqui provavelmente bebeu a arquitectura
das «artes decorativas» em Portugal as suas mais directas influências»22.
Porquê este diferente destino? E que Otto Wagner, Hoffmann, Behrens ou Olbrich,
os arquitectos germânicos protagonistas das tendências geometrizantes, «tinham
descoberto um novo interesse pelas formas elementares da construção e,
interessados no seu estudo e nos problemas assim colocados, não podendo, por
outro lado, abandonar o uso de elementos decorativos (herança da prática
arquitectónica do século anterior, a que só Adolf Loos, caso extremo desta escola,
vai escapar totalmente), vão dar um papel diferente a esse decorativo: o de
evidenciar as relações volumétricas, estruturais, através da simplificação e
geometrização desse decorativo, portanto, necessariamente, da sua planificação nas
superfícies construtivas. E aqui surge a preferência por materiais como o mosaico
cerâmico, o vitral ou o próprio estuque, que permitem mais facilmente transformar
os valores volumétricos em superfícies, em baixos-relevos, em cor ou em luz.
Um caminho importante é assim aberto: cada vez mais é possível pôr em causa os
elementos construtivos e as suas relações, evidenciar a modernidade das estruturas e
das formas, pois elas são cada vez mais visíveis e claras»23.
Este processo foi decisivo contra um eclectismo passadista, que encobria com
abundante decoração as estruturas e os volumes básicos da obra. E as artes
decorativas desempenharam um papel fulcral nesta nova atitude, básica também para
a evolução da arquitectura.
Todo o processo se desenvolveu em simultâneo com as outras «artes novas» e
durou até às vésperas da primeira guerra mundial. Depois foi «a explosão dos ismos»,
no dizer de Bruno Zevi24, ou seja, a súbita e múltipla ocorrência de manifestos e de
ideários ultravanguardistas no campo das artes plásticas, que pretendiam criar avant la
lettre uma arte totalmente desvinculada do passado, que se via condenado e
desprezado como fonte de todos os males sofridos pela arquitectura,
21 Conforme Manuel do Rio Carvalho, no artigo atrás citado (ver nota 16),22 No texto do autor publicado na revista Arquitectura, n.º 132. Lisboa, de Março de 1979: «Para o estudo
da arquitectura modernista em Portugal — I».23 No artigo citado na nota 22 e baseado nas análises de Leonardo Benévolo em Historia de Ia Arquitectura
Moderna, Barcelona, ed. Gustavo Gili, 1974.24 Em História da Arquitectura Moderna, por Bruno Zevi, com introdução portuguesa de Nuno Portas, vol. l,
Lisboa, ed. Arcádia, 1970.
A génese
Foi o pós-primeira guerra mundial que finalmente inventou a chamada arquitectura
art déco (abreviatura da expressão francesa art décoratif, que comprova a importância
destas no campo da construção e o papel decisivo da intervenção francesa); tal
sucedeu pela hábil mistura que o art déco soube ensaiar das ansiedades vanguardistas
expressas durante a guerra (ainda só compreensíveis e praticáveis por uma elite
cultural) com as já então veteranas lições dadas pelas obras austríacas e alemãs dos
anos 10, A França, país por tradição geográfica e culturalmente congregador de
experiências alheias, seria o campo onde frutificariam caminhos tão dispersos, mas,
no fundo, tão convergentes na intenção: a de criar uma nova arquitectura para um
mundo que se queria, também ele, novo.
O art déco foi assim um processo artístico dos «anos loucos» de 1920-30, com
conotação simultaneamente algo conservadora e modernizante (apelando
sincreticamente a valores de composição ou de monumentalidade tradicionalista, mas,
ao mesmo tempo, recorrendo a um desenho e a uma temática renovadoras) e
através do qual se caldearam pouco a pouco os valores modernos que iam sendo
propostos por uma Bauhaus ou por um Le Corbusier. E não é por acaso que na
Exposition des Arts Décoratifs, parisiense, em 1925, uma série de pavilhões
comerciais vulgarizavam a mensagem secessionista de vinte anos antes, ainda
decorados e policromos — enquanto, a seu lado, um outro exibia intenções bem
mais ousadas, vindas dos pensamentos radicais dos anos da guerra e a que se
chamava esprit nouveau, criação de Le Corbusier, branca e purista.
Em Portugal já se referiu que o propriamente chamado «modernismo arquitectural»
se afirmou com o período de vulgarização do emprego do betão armado, que
ocorre pelos anos 1920 e 1930. Falta explicitar que esse modernismo se organizou
segundo duas tendências estilísticas, parcialmente sobrepostas no tempo, mas
também em parte sequenciais: uma, que se pode apelidar de «estilo artes
decorativas», aportuguesando a designação da correspondente corrente gerada na
Europa central (que transitou do campo germânico para o francófono), a qual deu
os primeiros sinais nos inícios da década de 1920 (quando no seu apogeu europeu)
e foi rareando por volta de 1935; e uma outra, que designaremos por «modernismo
radical»25 e que, afirmando-se pelos anos 25, se prolongou até mais tarde, ou seja,
até ao dealbar da década de 1940.
A primeira foi, como o nome indica, ainda essencialmente decorativa e
trandicionalizante na expressão construtiva; já a segunda foi crescentemente purista e,
perseguindo o «moderno», acentuadora das linhas horizontalizantes na obra,
E o que era ou se entendia por «moderno», nesta época, em Portugal? Nas
publicações especializadas, a palavra começou a aparecer por 1921 , adoptada pela
revista Arquitectura Portuguesa e contida na expressão «arquitectura portuguesa
moderna» que encabeçava a secção referente a um projecto de palacete com todos
os «tiques» da arte nova tardia. Mas logo num número seguinte, ainda em 1921, a
25 Ironizando a terminologia que Charles Jencks utiliza na sua análise ao post-modernismo (radical-eclecticism).
Fig. 38
Projecto para um
pequeno hotel-pensão
com o 2° andar
suspenso: ed, revista
A Arquitectura
Portuguesa, Lisboa,
Junho de 1929
mesma secção resvalava para o título «arquitectura nacional modernizada»,
exprimindo a clara hesitação entre modelos internacionalistas e autóctones da época
(e referida aqui a uma moradia também com elementos arte nova, mas mais
«ruralizada», com beiral e floreiras). A ABC, revista de actualidades e novidades,
refere-se em números de 1925 e 1927, respectivamente, à «arquitectura moderna»
e à «arquitectura modernista», para falar já de projectos expressionistas alemães (de
Mendelsohn). Finalmente, a mesma Arquitectura Portuguesa, em 1929, refere-se,
inesperadamente, na mesma designação («arquitectura moderna»), a casas de
volumes puristas (com desenho algo tosco, projecto «de engenheiro») e a obras de
betão armado e superfícies art déco, como o «hotel-pensão com o segundo andar
suspenso», de Silva Júnior, de sentido ainda utópico (fig. 38), mudando para projectos
bem mais concretos, no mesmo estilo, por volta de 1933, em números onde a
palavra «moderno» se encontrava já vulgarizada.
Assim se verifica como este conceito (o «moderno») transitou, ao longo da década
de 1920, pelas sucessivas correntes artísticas da arte nova e das artes decorativas, até
chegar ao purismo, no contexto nacional, reportando-se em simultâneo aos
movimentos mais vanguardistas europeus, aliás entendidos mais como exotismos de
que como vias de futuro,
Caracterização
Ao estilo artes decorativas assistia uma constante procura de geometrização e de
simultânea simplificação das formas construtivas em geral. A base desta estilística era
ainda, porém, o formulário clássico, que se «estilizava» e depurava. Assim o
podemos apreciar em típicos prédios de habitação lisboetas (na Rua Nova de São
Mamede) ou em equipamentos como a Igreja Evangélica Figueirense (fig. 39), onde o
ritmo da construção é dado pela interpretação modernizada da ordem jónica. Os
pormenores decorativos deste tipo de fachadas exibem também claramente o desejo
da obtenção de formas geométricas e lineares que se reflecte noutras estilizações
florais e abstractas (como nos portões da Estação do Sul e Sueste do Terreiro do
Paço); mais desvinculadas do referente clássico, estas formas exprimiam-se, de resto,
na continuidade do caminho subversor e irreverente que a arte nova tinha iniciado.
Como resultado natural desta tendência, assistiu-se a urna planificação dos elementos
decorativos nas superfícies da fachada, aspecto que ajudou a suavizar os volumes e o
claro-escuro e a realçar as linhas e as texturas, até só as cores [exemplos em Oeiras,
na Rua do Dr. José Joaquim de Almeida, n.o 9 (fig. 40), e em Alcobaça, na Praça da
República, n.os 15-17; exemplo também notável é o do conjunto do átrio da Estação
do Cais do Sodré (fig. 37)].
Finalmente, o verticalismo como expressão dominante das fachadas era também uma
característica do art déco, já que ainda se não abandonara de todo o modo convencional
Fig. 41Lisboa — projecto de
prédio para o Bairro
das Colónias: Arquivo
Municipal (Rua K,
Praça Novas Nações,
assinado por Jacinto
Robalo, 1932)
Fig. 39
Figueira da Foz —
Igreja Evangélica
Figueirense, Rua das
Lamas/Rua de 10 de
Agosto
Fig. 40
Moradia cm Oeiras,
Rua de José Joaquim
de Almeida, n.° 9
Fig. 42
Lisboa — projecto de
prédio para o Bairro
das Colónias: Arquivo
Municipal (Rua E,
Praça Novas Nações,
assinado por Jacinto
Robalo, 1932)
de construção (paredes de alvenaria, portantes, com descarga vertical de esforços) .
A tradução desse verticalismo na frente construída era, por isso, dada sistematicamente
pelas grandes pilastras estilizadas (exemplos no Mercado de São João do Estoril, na
Rua de Santa Rita, ou no prédio do Largo de Santana n.os 8-13, em Leiria).
Estas dominantes evoluíram ao longo da década de 30, sendo possível uma leitura
das diversas tipologias estilísticas em relação ao prolífero prédio urbano alfacinha26
Desde os exemplos mais próximos de um modelo classizante, com as pilastras
respeitando a «ordem», de alto a baixo da construção (Avenida de Rovisco Pais,
números pares 8 a 26, Lisboa), a casos mais inovadores, onde as mesmas pilastras já
eram interrompidas a meio da fachada, ou mesmo autonomizadas do anteriormente
«obrigatório» remate superior no capitel [exemplos nos edifícios da Praça das Novas
Nações, no Bairro das Colónias (figs. 41-42)]; e, finalmente, até situações onde a
pilastra se «apagou», trocada por superfícies lisas, que começavam a predominar na
fachada, ainda que com expressão vertical, e a isolar os agora escassos temas
decorativos (Avenida de António Augusto de Aguiar, n.° 169 e n.os 133-137, no
Bairro Azul, ou prédio na Avenida do Almirante Reis, n.o 121, à Cervejaria
Portugália). As plantas interiores não acusam neste período significativa mudança em
relação aos anos 20, continuando os saguões e os quartos sem ventilação, já que as
inovações se passavam mais ao nível das tecnologias que dos programas.
Formas e materiais
As fachadas iriam usar predominantemente os materiais pobres, como o estafe27
(procurando uma «arquitectura da ilusão»), e afastar as matérias de conotação mais
nobre, como a pedra, para áreas marginais e reduzidas (os embasamentos). Assim se
inventavam formas novas no concheado da base das varandas e no remate das cimalhas
e platibandas (Alcobaça, no já referido prédio da Praça da República, n.os 15-17), nos
frontões rectos e painéis que encimavam portas e fachadas (Buarcos, Avenida Marginal,
n.° 104; Loures, Rua da República, n.os 60 e 98; diversos exemplos nas Avenidas Novas,
de Lisboa), nos «pastosos» tectos estucados de átrios de acesso em prédios de andares.
No conjunto criou-se deste modo um completo vocabulário de elementos
superficiais «clássico-geométricos», que, numa análise detalhada para um dado
«bairro», típico da produção lisboeta dos construtores civis tomarenses [o das
Colónias, hoje das Novas Nações (fig. 43)], se pode tipificar em desenhos-imagens28,
para coroamentos, bases de pilastras, capitéis e moldura.
Também a cerâmica participava nesta valorização das superfícies, cromática e gráfica, com
os tradicionais azulejos e os pequenos mosaicos vidrados. Os primeiros, em evocações
florais ou abstractas [de que são exemplo bons conjuntos em fachadas de Vila Franca de
Xira, na Rua de Almeida Garrett (fig. 45), no n.° 35 da mesma rua, e na Rua de Serpa
26 Ensaiada no artigo referido na nota 22.27 A análise de materiais foi desenvolvida na sequência dos artigos referidos na nota 22: revista Arquitectura
n,° 133, Lisboa, de Maio de 1979: «Para o estudo da arquitectura modernista em Portugal — II».28 Conforme trabalho realizado na ESBAL — Departamento de Arquitectura — para o 3.° ano lectivo de
1977-78, por Virgínia Graça, Carlos Câmara, José Silveira, Joaquim Candeias e José Seco.
Pinto, n.° 108]; os segundos, do mesmo modo, exemplificados em Peniche [Rua da
Alegria, esquina com Travessa da Horta (fig. 44); Rua da Alegria, n.os 44-46] ou em Lisboa
[na emblemática moradia da Avenida de 5 de Outubro n.o 209-211, por Pardal Monteiro,
de 1926-29); curiosamente, há uma predominância destes materiais em zonas litorais e
piscatórias, certamente pelo apelo à cor que exibem.
Ligada a esta decoração estava naturalmente uma simbologia que privilegiava
conceitos como o do «progresso» [as rodas dentadas no frontão da garagem Auto-
Industrial, em Coimbra (fig. 46), ou as asas do «deus da velocidade» na frontaria da
Estação do Cais do Sodré, em Lisboa], frequentemente relacionado com o advento
dos transportes mecânicos. Doutro modo, herdando a tendência arte nova, a
simbologia decorativa abordava o universo dos motivos vegetalistas ou animalistas,
evocados de modo quase «panteísta» em capitéis das moradias (exemplo em Viseu,
na Rua de Cândido dos Reis, construída para o comerciante Nuno da Sola por
Rogério de Azevedo, cerca de 1930-32); ou, vista de modo mais ingénuo, nos
quadros coloridos alusivos às vindimas apostos na fachada de um prédio em Arruda
dos Vinhos (Rua de Luís de Camões, n.o 96); e ainda em inúmeras varandas de ferro
de prédios e em vigas de betão [estas com curioso exemplo «concheado» na
referida estação do Cais do Sodré (fig. 47)]. A inspiração naturalista marcou
igualmente a produção do mobiliário doméstico e público (patente respectivamente
numa casa de Marco de Canaveses, a Vila Amélia, no Largo do Mercado, de 1930-
32; e no Palace Hotel da Cúria, nas suas escadas metálicas).
Temas mais figurativos e tradicionais, roçando o pomposo, que a classe média em
ascensão «adorava», surgiam, por exemplo, numa «excessiva» coroa de louros
encimando um prédio de habitação na Figueira da Foz (Rua de Bernardo Lopes, do
construtor Bernardo dos Santos, de 1936-37), ou nos azulejos agrinaldados de inúmeras
caixas de escada lisboetas (Avenida de Barbosa du Bocage, n.º 18, por Norte Júnior, de
1930). Pouco depois difundia-se uma simbologia abstracta, em cerâmica de padrão
degradé, policromo e linear (nas populares tascas da capital, nos tectos das drogarias de
bairro, mas também no luxuoso Casino do Estoril dos anos 30). Difusão patente quer
na decoração de varandas, portas, portões e janelas do prédio urbano, quer, recorrendo
Fig. 43
Lisboa — pormenores
decorativos em edifícios
no Bairro das
Colónias: trabalho
realizado para u
cadeira de História da
Arquitectura
Portuguesa da ESBAL,
por Virgínia Goes da
Graça, Carlos Perry da
Câmara, José Ivo da
Silveira, Joaquim
Candeias e José de
Sousa Seco. Lisboa,
1977-78
Fig. 44
Peniche —
fachada de edifício
na Rua da
Alegria/Travessa da
Horta
Fig. 45
Vila Franca de
Xira — cimalha
de prédio com
azulejos, Rua de
Almeida Garrett
ao estuque ou trabalhando o granito, em fachadas regionais de norte a sul do País.
Os elementos construtivos, com forma piramidal ou em denteado escalonado, foram
outra «obsessão» deste estilo, em tudo ansioso por reduzir à lógica elementar e
purista das linhas horizontais e verticais o que antes se exprimia em oblíquas ou curvas.
A chamada «fachada-frontão», com uma forte cimalha «em escada», foi talvez a
consubstanciação mais total deste gosto: em equipamentos de pequena dimensão
(antigo Vitória-Cine de Carcavelos, na Rua de João da Silva, n.o 4; antiga sede das
CRGE em Oeiras, Rua do Conde de Ferreira, n.° 23), ou em armazéns e fábricas
(em Matosinhos, as frentes da antiga Algarve Exportador, por António Varela, Praça
de Passos Manuel, n.º 216). Onde a afirmação decorativa se resume, murtas vezes
por economia, aos contornos das fachadas, estas assumem aquele tipo de remate
(não deixando por vezes de abordar um exotismo «expressionista»,
contraditoriamente resolvido em ondulante perfil [exemplos na moradia de
Carcavelos (fig. 49) e nos armazéns Sapec, do Bombarral, estrada para Lisboa].
Outras formas muito usadas nesta época foram os pequenos volumes piramidais
que, em tijolo e reboco, encimando os edifícios, coroaram cada cunhal, pilastra ou
vão da construção — necessidade de afirmar estes elementos visualmente, além da
sua real importância, ou de inconscientemente evocar a perdida monumentalidade da
arquitectura (julgava-se que para sempre) ou, ainda, reflexo do novo-riquismo e
ostentação que uma classe média em ascensão queria traduzir «eternamente» na
obra? De não esquecer também a imagem das pirâmides astecas, que a arqueologia
meso-americana então colocava tão na moda, como provável inspiração internacional
destas formas! [exemplos em Oeiras (fig. 48) e em Zambujal-Loures, Largo de
António Sérgio, no prédio junto à cooperativa A Zambujalense].
Os denteados em muros (moradias de Santo Amaro de Oeiras), na moldura dos
vãos (habitações em São Luís, perto do Cercal, e em Vila Nova de Foz Côa), ou até
em simples remates de vigas (Sanatório de Celas, em Coimbra; interior do antigo
Vitória-Cine, de Carcavelos), ou mesmo nas discretas «artes da marcenaria», nos
Fig. 46
Coimbra — Garagem
Auto Industrial, na
Avenida de Fernão de
Magalhães, n.º 333
Fig. 47
Lisboa — estação
ferroviária do Cais do
Sodré, conjunto do
átrio: foto Estúdio
Mário Novais
Fig. 48
Oeiras — átrio de
moradia, Rua do
Dr. José Joaquim de
Almeida, n.o 9
Fig. 49
Carcavelos — fachada
de moradia (Vivenda
Sagres), Rua do
Dr. Marques da Mata
banquinhos de lojas (Farmácia Godinho, em Oeiras, Rua de Cândido dos Reis,
n.º 98), confirmam a difusão desta convicção decorativa.
Uma certa contradição entre a dominante vertical referida e as linhas mais modernas
de marcação horizontal acentuou-se entretanto, tanto mais quanto o betão era
gradualmente empregado em maior percentagem na obra, com as suas lajes a exigirem
e gerarem linhas dominantemente horizontais: foi o caso de instalações industriais e
garagens onde a transparência dos envidraçados ia traduzindo a carga cada vez mais
pontual exercida nos pilares (Central Estrela, projecto de Vasco Regaleira, de 1930;
Garagem Lys, na Rua da Palma, Lisboa, projecto de Hermínio Barros, de 1933); ou o
caso ainda de moradias diversas onde grossas pilastras «lutavam» contra longas
varandas alpendradas,.. (Carcavelos, Rua do Dr. Marques da Mata; Ponte de Sor, rua
principal). A fenestração contínua prenunciava-se também nas sequências de vãos
encostados ou justapostos, os quais, ainda não transformados num pano de vidro
contínuo, já o tentavam simular (Parede, habitações na Rua de José Carlos da Maia).
Fig. 50
Aveiro — quiosque no
Parque Municipal
Do primeiro «moderno» ao advento do nacionalismo
O chamado «movimento moderno» na arquitectura formou-se e consolidou-se,
finalmente, entre o pós-guerra e a data charneira de 192729. Os seus núcleos
polarizadores situavam-se no triângulo Alemanha-França-Holanda, confirmando a
capacidade de integração cultural e a dinâmica das vanguardas artísticas da Europa central.
Na Alemanha tinham sido assimiladas as propostas pré-modernas, provindas da
«secessão vienense», austríaca e do Jugendstil; e, pela via dialéctica das experiências
do expressionismo e do racionalismo, chegara-se à poderosa síntese metodológica e
colectiva que foi a Bauhaus.
Na França, as tentativas de uma síntese divulgadora, iniciadas pelo art déco, encontravam
o contraponto quase isolado do pintor-arquitecto Le Corbusier, ele próprio quase uma
«escola» de princípios formais e espaciais, tão precisos quanto abstractos.
A Holanda, a braços com uma reconstrução do parque habitacional envelhecido ou
afectado pela guerra, tinha bebido muito da lição americana de Frank Lloyd Wright,
a qual soubera também ligar às pesquisas anglo-belgas do habitat e ao purismo
volumétrico do movimento De Stijl.
Quase inesperadamente, todas estas tendências convergiam agora para pressupostos
comuns de construção, de valores estéticos, de articulação com a exigência prática
do processo social.
Génese em Portugal
Como sucedeu ao longo de todo o anterior processo de influências, o «descontexto»
nacional em relação à Europa industrializada ditou uma absorção tardia destas
descobertas, e sobretudo urna atitude algo superficial e ecléctica na sua aplicação e
compreensão. O fundo real das razões do «moderno» escapava-nos (a necessidade
de estandardização dos materiais para servir a premente reconstrução nas ruínas
europeias, ou a afinação das novas tecnologias de obra que a concorrência industrial
tornava inevitável); mas algum gosto atávico (e compensador) pela novidade, um
esforço geracional de actualização cultural e sobretudo uma situação política
novamente estável e apta para um arranque no campo da construção implicaram logo
em 1929-30 um surto de construção de edifícios, de novos projectos, exposições e
concursos públicos onde se aliavam construtores privados e obras públicas estatais.
É difícil discernir com rigor quais os principais modelos da nova arquitectura que mais
contribuíram para o seu lançamento entre nós30. Conhece-se a habitual ligação
portuguesa à França, que a influência da arquitectura de Mallet-Stevens31, mais do que
a de Le Corbusier, iria concretizar, por melhor inserção na produção corrente da
linguagem do primeiro daqueles autores. Esta era urna questão cara à idêntica
29 Aceitamos os limites, naturalmente esquemáticos, propostos por Leonardo Benévolo na obra já citada
(ver nota 23).30 Uma tentativa de classificação já foi esboçada pelo autor na série de artigos citados sobre a arquitectura
modernista em Portugal (na revista Arquitectura, n.° 137, Lisboa, Julho de 1980)31 Conforme José-Augusto França, em História da Arte em Portugal no Século XX. Lisboa, ed. Bertrand, 1974.
produção nacional de prédios de habitação, onde Cassiano Branco recordava com
outra imaginação as composições dinâmicas e os volumes cilíndricos do mestre
francês. As revistas de novidades, tão frequentes na época, foram também certamente
contribuir para a divulgação das obras francesas, dentro de um gosto médio de
público; e bolseiros de Belas-Artes como Cristino da Silva iriam trabalhar em França,
trazendo ainda em meados dos anos 20 as inovadoras formas vistas em Paris.
Mas convém não descurar a importância da Alemanha concretamente neste período,
quer pela sua dinâmica real, quer pelas ligações com autores portugueses: Carlos Ramos,
saindo da aprendizagem com Ventura Terra e vindo a ser futuro mestre de Keil do
Amaral, possuiu importante e muito consultada biblioteca divulgadora da «arquitectura
moderna» com origem germânica. Por sua vez, Keil do Amaral ligar-se-ia pouco depois à
Holanda escrevendo aliás o único contributo teórico desse tempo sobre que modelos e
que «metodologias» de arquitectura entender e seguir, A Moderna Arquitectura Holandesa,
em 193632. A sua biblioteca profissional possuía também forte componente de títulos
desta nação e ele próprio me referiu muitas vezes admiração por obras de Dudok,
como a Câmara de Hilversum (1928-30). Um sentido de composição volumétrica (no
encastramento dos corpos), uma escala discreta e «humana», um entendimento dos
valores urbanísticos da cidade-jardim holandesa dos anos 20 reflectiram-se muito, aliás, na
produção de Keil do Amaral (nos pequenos equipamentos para os parques de Lisboa).
Influências alemãs e holandesas viam-se também em obras do Porto, onde as
composições à volta de torres prismáticas e abstractas, por vezes «moles» e de
contornos oblíquos, articulando esquinas e volumes, recordavam imagens do
expressionismo alemão; ou em situações de consolas horizontais de betão, cobrindo
o nível térreo, de remate curvo (no Porto, os armazéns frigoríficos de Massarelos; e
também em Aveiro, no edifício comercial da Avenida de Lourenço Peixinho, n.° 133),
mimetizavam sem dúvida temas de J. Pieter Oud em Hoek van Holland,
E não serão o Éden-projecto (por Cassiano Branco, sobretudo a sua empena lateral
construída), ou o Coliseu portuense (C Branco e outros) duas poderosas concretizações
dos anseios do futurismo italiano? Mais diluída, menos decifrável formalmente, a presença
da Bauhaus existe, no entanto, nas composições de equipamentos como o Liceu de Beja
(por Cristino da Silva) ou a Casa da Moeda, em Lisboa (por Jorge Segurado), na sua
articulação assimétrica de volumes, galerias e transparências..,
Nos finais da década de 30, a revista Arquitectura Portuguesa continuava, numa
perspectiva ecléctica, a referir como arquitectura de hoje obras italianas puristas ou
monumentalistas, além de obras belgas de prédios «à Cassiano» (entre 1937 e
1938), podendo no início de 1940 caracterizar uma «Lisboa moderna» com base em
prédios de rendimento e no conjunto Técnico-Estatística...
Fig. 51Lisboa — projecto de
moradia na Avenida
do México, n.° 11:
Arquivo Municipal
Linhas dominantes
Volumes puros e encastrados em criativa assimetria! Fim dos telhados, com
aproveitamento das coberturas para terraços ou jardins! Grandes espaços interiores
32 Edição «Cadernos Seara Nova», Lisboa, 1943.
livres de pilares, com extensos envidraçados exibindo a liberdade de desenho de
fachadas, libertas, enfim, pelas vigas de descarga pontual, da sua velha função de
suportar a construção! Assim se queria manifestar a obra moderna33. Assim se
propunham as revolucionárias premissas em Portugal, já em 1925, num Capitólio-
Salão de Festas de enormes vitrais móveis e permutável espaço interior (por Cristino
da Silva); numa humilde moradia em Benfica, feita de cilindros e cubos, de 1936 (já
demolida); ou mesmo num simples quiosque aveirense quase «mondriânico» (fig. 50).
Deste modo, também, se inventava um novo dinamismo espacial, quer na
composição assimétrica das plantas (antigo Lactário Carmona, de 1935, em Chaves),
quer na estruturação axial daquelas, em volta de uma «rótula» [Correios do Estoril,
por Adelino Nunes; prédio na Avenida do México, n.° 11, Lisboa (fig. 51)].
Mas foi nos volumes torreados que encabeçam a composição de muitos edifícios
que se afirmou uma maior «vontade de moderno», talvez por em Portugal eles
33 Conforme os análogos princípios que Le Corbusier proclamava em 1926 e dos quais só os pilotis que
«soltavam» o edifício do solo tardavam a encontrar expressão entre nós.
terem de exprimir muitas vezes o «resumo» das intenções da obra, ela própria
simples de mais, por restrição orçamental, para poder conter tudo o que
arquitectonicamente haveria a afirmar no conjunto...
Cilíndricas e opacas, cortadas por palas em betão, ou envidraçadas e translúcidas,
assim surgem as torres, numa moradia da Parede (Vivenda Amélia, estrada
Carcavelos-Parede, n.° 13), ou na Moagem de Carcavelos (Avenida do Loureiro,
n.° 32), num palacete portuense (Casa de Serralves, por Marques da Silva e Charles
Siclis, 1931-36), ou no Cine-Teatro Rosa Damasceno, de Santarém, e no Cinearte, do
Largo de Santos, n.° 2 [Lisboa, 1938, por Rodrigues Lima (fig. 52)]. Torres prismáticas,
angulosas, ainda decoradas (moradia em Algés, Avenida da República, n.° 52, por Jaime
José Gomes, 1939), ou de novo transparentes (fachada do Capitólio), encastradas e
densas [no antigo Cine Rossio, de Viseu, pelo Eng.º Mota Beirão, desenhado por
Eduardo Figueiredo, inicialmente para garagem; ou na Piscina Solário Atlântico, de
Espinho (fig. 53)], são sempre um sinal de modernidade para o edifício que culminam.
A habitação
Uma classificação tipológica dos principais tipos de fachada que o nosso «modernismo
radical» engendrou em prédios de habitação foi já tentada31; de realçar que esta
arquitectura merece aqui precisamente este epíteto porque se assumiu convencional, em
continuidade com a construção de fases anteriores: ou seja, foi modernista, mas não ainda
totalmente moderna, pois aceitou o lote urbano de planta corrente (profunda, mal
arejada), e aceitou a própria estrutura urbana tradicional de fachada-rua e de traseiras-
-logradouro, embora ensaiasse já parciais aplicações do betão (o que, de resto, acontecia
também nas fases anteriores). Onde o «modernismo radical» se distinguiu realmente do
estilo «artes decorativas» foi na abolição «fachadista» de decorações que não fossem
34 Nos artigos do autor já citados (na revista Arquitectura, n.º 138, Lisboa, Outubro de 1980).
Fig. 52
Lisboa — antigo
cinema Cinearte,
Jardim de Santos
Fig. 53
Espinho — Piscina
Solário Atlântico: ed.
Papelaria e Livraria
Sousa, Espinho
(bilhete-postal)
abstractas (e mesmo estas eram raras), no realce novo que soube dar a elementos como
varandas, caixas de escada, bow-windows (afinal tratados como sucessores «decorativos»
das anteriores formas vegetalistas), em claro-escuro, que acentuou a movimentada
volumetria e as dominâncias verticais ou horizontais do desenho.
Sem dúvida, o tipo de fachada mais característico do prédio lisboeta desta época foi
o que soube «jogar» com elementos volumétricos contínuos, varandas salientes
encastrando em bow-windows, muitas vezes procurando um efeito de simetria (figs. 54
e 55) que Duarte Pacheco ironizava em 1938: «Há prédios em Lisboa em que se
repetem os motivos das construções com uma insistência que aflige. Apareceu, por
exemplo, há tempos, uma espécie de vassoura com o cabo para baixo, a dividir o
prédio ao meio; logo se generalizou a aplicação do mesmo estranho ornato a um
sem-número de edificações. Depois surgiram os balanços devidamente
proporcionados, seriamente projectados em alguns prédios; logo apareceram a esmo
maus imitadores a usar — e a abusar — dessa liberdade arquitectural, por tal forma
que se converteu em norma de obter uma ampliação de terreno da construção,
com gravíssimo prejuízo da estética dos arruamentos, da visibilidade dos prédios
vizinhos e das condições de habitabilidade dos edifícios. Há prédios construídos onde
tais balanços atingem cerca de 2 m, cobrindo inteiramente os passeios das ruas que
os marginam»35. Este texto é revelador sem dúvida das «modas tipológicas» que
nomeadamente Cassiano Branco despoletava na construção de Lisboa (é aos seus
projectos, ou a imitações deles, que Pacheco se deve referir), bem como do uso
oportunista que este modernismo consentia por via do betão e da fachada...
Outras tipologias privilegiavam a marcação da caixa de escada através de um ou
mais painéis de vidro na frente da construção, ou, mais pobres, apresentavam
elementos volumétricos descontínuos, normalmente varandas isoladas, ou mesmo
faixas salientes de cimento rebocado, acentuando linhas horizontais da construção, na
35 Na revista Arquitectos, n.° 2, Lisboa, ed. Sindicato Nacional dos Arquitectos, 1938-39.
impossibilidade real de criarem esses volumes (como se de fenestrações contínuas se
tratasse). Na província, estes casos são naturalmente mais correntes, como nos
exemplos de Vila Real (volumes «soltos», no prédio comercial da Rua de Serpa
Pinto, n.os 3-5-7), de Bucelas (Rua do Marquês de Pombal, n.º 4, com faixas), ou de
Loures (Rua da República, n.º 98, com faixas em simetria), ou, mais rarefeitos ainda,
em Leiria (Praça de Rodrigues Lobo, n.º 56, edifício da Gordalina Cabeleireiro).
Na pormenorização abundavam, mais interessantes, as composições geométricas
decorativas, em portas de átrios (com formas sempre abstractas, combinando círculos
e rectângulos), em chapa e perfis metálicos; mais ricas nas avenidas de Lisboa
(fig. 57), mais elementares em vilas e subúrbios (parcialmente embutidas em peças de
madeira de desenho tradicional, como em Palmeia, na entrada de prédio no Largo
de São João Baptista, n.º 17). O reboco merecia também, por esta época, um uso
inventivo, saliente em faixas verticais, horizontais, ou na combinação de umas e
outras, como nos exemplos na Parede (a Vivenda Amélia, já referida) e em Lisboa
[Avenida dos Defensores de Chaves, por Cassiano Branco (figs. 54 e 55)], isto para
além das formas «soltas», livremente apostas nas fachadas, como sucedia no Coliseu
do Porto (as «bolachas» da torre). As formas mais «moles», curvas, aplicaram-se
também com fluência em interiores, amaciando remates e volumes (Cine Oeiras,
guardas e corrimão cromado do balcão),
Aproximação do nacionalismo — relações com a arquitectura
A passagem para a década de 40 assinalou contraditoriamente uma maior inovação
tecnológica. De facto, o prédio de habitação colectiva iria usar mais completamente
o betão armado na sua estrutura; a tradicional oposição formal entre traseira e
fachada foi diminuindo, aparecendo o alçado posterior gradualmente integrado,
estética e tecnicamente, no conjunto da construção (figs. 58 e 59); mas um
Fig. 56
Covilhã — Mercado
Municipal
Fig. 57
Lisboa — porta de
prédio no Bairro do
Liceu de Maria
Amália Vaz de
Carvalho
retrocesso estilístico, fruto do conservadorismo cultural em que mergulha a Europa
nos fins da amedrontada década de 30, «mascarará» ironicamente essa inovação. Em
novo contexto cultural, uma reacção que também foi internacional ao purismo e
abstraccionismo, antes proclamados e seguidos pelo movimento moderno, fez
ressurgir em Portugal conceitos historicistas, classizantes e regionalistas, que
assinalarão a entrada da arquitectura portuguesa numa «nova era» que ultrapassa o
âmbito deste estudo e lhe define um limite preciso,
Interessa aqui referir a lenta «contaminação» que a tradição construtiva modernista
foi então sofrendo, visível nas fachadas dos prédios de rendimento (apesar de — ou
paralelamente a — uma planta mais salubre e arejada, foi frequente entre 1938 e
1940 a marcação por grossas colunas dos ritmos verticais nas fachadas — tendência
que ressurgiu, anacrónica). No tratamento dos corpos torreados, que tão bem
souberam exprimir a estética modernista em muitos edifícios, sentiu-se também a
mudança de gosto, com a aposição de materiais mais «pesados» ou texturados,
como o tijolo vidrado ou o beiral aplicado de novo (Instituto de Socorros a
Náufragos de Paço de Arcos, na Avenida Marginal).
Afirmou-se nesta fase uma procura de monumentalidade, ainda que dentro das
premissas formais modernistas (como na fachada da sede do Diário de Notícias,
Avenida da Liberdade, Lisboa), obtida por vezes pela aposição de simbologias
figurativas de conotação pomposa ou oficial, acentuando o «peso» da construção
[Mercado da Covilhã, pelo arquitecto Almeida Araújo, de cerca de 1942-43 (fig. 56)]36.
Fig. 58
Lisboa — projecto de
prédio na esquina da
Rua do Padre António
Vieira com a Rua
Castilho: Arquivo
Municipal
Fig. 59
Lisboa — projecto de
prédio na esquina da
Rua do Padre António
Vieira com a Rua
Castilho: Arquivo
Municipal
36 Na revista Arquitectura Portuguesa n.º 107. Lisboa, Fevereiro de 1944.
Da Monarquia à República Desenvolvimento urbano, instituições, utopias
H era dos equipamentos
Os autores
Desenvolv imento urbano, instituições, utopias
Todo o período que assistiu em Portugal à aplicação das novas técnicas construtivas, à
definição da arquitectura do ferro, seguida do advento do betão armado, e à sequência
estilística dos modernismos arquitecturais correspondeu, em termos sociais e políticos, a
uma fase conturbada por crises económicas e financeiras, reflexo das convulsões
europeias contemporâneas, mas também fruto de um dinamismo próprio.
Este período atravessou a segunda fase da Regeneração, os «saltos industriais» de 1870
e de l 890, a crise das gerações «vencidas da vida» e dos novos nacionalistas que se
lhes opuseram, as ditaduras do final da Monarquia, o rebentar da República, as suas
crises crónicas e a rotura final de 1926.
Toda a dificuldade de lançamento e implantação das novas ideias estéticas, no domínio da
arquitectura e da construção, deve portanto ser entendida à luz das descontinuidades na
acção prática que o contexto político e social sempre engendrou nesta fase. Timidez na
iniciativa e escassez de resultados concretos foram pois, de facto, as constantes,
Urna forte tendência para sonhar utopias foi logo uma resultante destas condições,
porque, nos espíritos mais conscientes, a noção da distância entre o real e o desejável,
no campo da intervenção na cidade, como no da arquitectura, para isso encaminhou
como exigência crítica, ou como reacção «desesperada» ao que o «progresso» deveria
tornar possível, mas a pobreza global do País impedia.
Se a cidade capital acusava por estes anos uma dinâmica de expansão enorme (em
1878 tinha 230000 habitantes, em 1 9 1 1 quase duplicava e nos anos 1920-30 rondava o
meio milhão), esse crescimento, que era urbanístico (para os novos planaltos das
avenidas) e industrial (com o moderno porto e os núcleos de Alcântara e Xabregas),
não tinha o correspondente reflexo numa qualificação em equipamentos e infra-
estruturas, e sobretudo num entendimento cultural de Lisboa como grande metrópole,
traduzindo-se mais em construção de prédios de renda, vilas operárias e fabriquetas
pobres, onde a arquitectura, se estava presente, não atingia ainda um nível que a poderia
aproximar dos desejados modelos europeus mais «avançados»,
Assim, e no ano «mágico» de 1906, Fialho de Almeida sonhava com uma «Lisboa
monumental» que realmente engrandecesse as Avenidas, símbolo desse progresso e
importadas de Paris — por um lado pomposas e à III Império, por outro «mecânicas»
e movimentadas, com gigantescos viadutos metálicos transcolinas37. Um engenheiro,
Mello de Matos, imaginava a «Lisboa no ano 2000» sofisticadamente portuária, de
comboios suspensos e torres esplêndidas (fig. 60)38.
Tudo se passava afinal como duas décadas atrás, quando outro engenheiro sustentara
apologeticamente que a Avenida da Liberdade poderia ser uma «grande artéria» até ao
alto da Penitenciária39 e como, até bem dentro dos anos 20, Cristino da Silva e outros
continuarão a idealizar e desenhar obsessivos e monumentais remates para o parque
Eduardo VII... Ainda em 1906, o arquitecto Álvaro Machado engalanava um viaduto
ferroviário da futura Avenida da República com decorações afrancesadas e «pesadas»
(vindo afinal a executar-se em «portuguesa» solução, funcional e austera)40.
37 Em Lisboa Monumental ed. da CML, Lisboa, 1957 (inicialmente publicado na revista Ilustração Portuguesa de 1906).38 Na revista Ilustração Portuguesa de Janeiro de 1906.39 Miguel Pais, em Melhoramentos de Lisboa — Engrandecimento do Avenida da Liberdade, segundo opúsculo,
Lisboa, Typographia Universal, 1886.40 Conforme José Augusto França, Me em Portugal no Século X/X vol. II. Lisboa, ed. Bertrand, 1967.
Fig. 60
Lisboa do Ano 2000:
in revista Ilustração
Portuguesa, Lisboa,
n.º 440, de Julho de
1914
Fig. 61
Lisboa — antevisão da
Rua do Arsenal: in
Augusto Vieira da
Silva, Dispersos,
vol. I, Lisboa, 1968,
p. 116a
Dois anos depois, de novo a Ilustração Portuguesa (revista que assumiu certa importância no
contexto da moda arquitectónica e da imagem urbana da época) iria sugerir um «alpendre
colossal», exibindo a tecnologia do ferro, que «bastaria para abrigar a cidade desde a Graça até
à Sé (como só na década de 1960 os movimentos tipo 'Archigram' poderiam tecnicamente
concretizar em real)»,
E Ventura Terra, mais comedido, mas igualmente utópico, desenhava então uma Rua do Arsenal
«furada» por uma galeria comercial e embelezada por decorações apostas a fachadas pombalinas
(fig. 61), que na época se desprezavam por demasiado austeras, em opção nítida por um
mundanismo «à francesa»41.
A monumentalidade procurada, e raras vezes atingida, iria sublimar-se ou transferir-se, com o
tempo e a prática, para situações mais simples e acessíveis, de que é exemplo a «muralha do
Carmo», baixo-relevo preenchendo «esteticamente», com enormes arcos emparedados, o que
antes fora uma natural e setecentista imitação da fachada pombalina (fig. 62). O tratamento
«gráfico» de urna empena era afinal a nossa hipótese real de «desenhar» a cidade monumental...42
E, afinal, como era a realidade construída pela(s) cidades)? Em 1902, o recomeço da expansão
para as Avenidas Novas ficara assinalado pela fundação duma primeira instituição de defesa dos
projectistas, a Sociedade dos Arquitectos Portugueses, precursora de todas as futuras
agremiações, e marcado igualmente pela instituição do Prémio Valmor de arquitectura,
galardoando proprietário e projectista «do mais belo prédio ou casa edificada em Lisboa, com a
condição, porém, de que essa casa nova, ou restauração de edifício velho, tenha um estilo
arquitectónico clássico, grego ou romano, românico-gótico ou Renascença, ou algum tipo artístico
português, enfim, um estilo digno de uma cidade civilizada» (fig. 63)43.
Assim se definiam, pelo verbo de um filantropo das artes, os limites programáticos e culturais
da construção de prédios, palacetes e moradias que iam preenchendo ruas e qualificando a
41 Em «A ligação costeira da Baixa com a parte ocidental da cidade», por Augusto Vieira da Silva, publicado em
Dispersos, vol. I, ed. CML, Lisboa, 1968.42 Na revista A Construção Moderna e as Artes do Metal, n.º 14, de Julho de 1912.43 Sobre o Prémio Valmor consultar, entre outros, os artigos:
«Prémios de arquitectura em Lisboa», por José Manuel Fernandes e Adalberto Tenreiro, na revista Arquitectura,
n.º 139. Lisboa. Dezembro de 1980;
Fig. 62
Lisboa — projecto
para a muralha da
Rua do Carmo: in
revista A Construção
Moderna e as Artes
do Metal, Lisboa,
n.º 14, de 20 de Julho
de 1912
Fig. 63
Lisboa — Palacete
Mayer, actual
consulado de Espanha,
Rua do Salitre, n." 5
(Prémio Valmor de
1902): Arquivo
Municipal cliché
n.º 8553
urbe capital. Note-se, aliás, que os arquitectos propriamente ditos constituíam uma
minoria e eram em número muito reduzido, participando apenas nos mais relevantes
ou prestigiosos edifícios públicos ou prédios de habitação, construídos para uma elite.
Toda a demais produção era-o num quadro de construtores, mestres-de-obras,
desenhadores e técnicos de qualificação média.
«Prémios Valmor — uma breve síntese», por José Manuel Fernandes, no jornal dos Arquitectos, n.os 35-36
Lisboa, 1985;
«Antecedentes da Academia Nacional de Belas-Artes no Prémio Valmor de arquitectura da cidade de
Lisboa. Académicos-arquitectos no seu júri (documentação inédita. 1902-1935)», por Eduardo Bairrada, na
Revista-Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes, n.os 4-6, Lisboa, 1982-84.
Entretanto saído, o livro História do Prémio Valmor, por José Manuel Pedreirinho, Lisboa, ed. Publicações
Dom Quixote, 1988, é o trabalho mais desenvolvido.
Fig. 64
Lisboa — Liceu de
Pedro Nunes, Avenida
de Pedro Alvares
Cabral: foto Estúdio
Mário Novais
A era dos equipamentos
A época de transição entre Monarquia e República foi fértil em edificações de cariz
social. As preocupações com a assistência e com o ensino reflectiram-se em inúmeras
obras de sanatórios, creches, escolas e liceus, que não se limitaram às cidades mais
importantes. O apogeu do termalismo desencadeou igualmente, nas áreas das nascentes
terapêuticas, obras de vulto para hospitais, hotéis e todas as pequenas construções de
apoio: buvettes, piscinas, casinos. A expansão urbana, sobretudo em Lisboa e Porto,
levou também à necessária construção de todo o tipo de edifícios públicos, de teatros a
bancos, sem esquecer os já referidos mercados e gares ferroviárias,
Rosendo Carvalheira, minhoto e «condutor» de obras públicas, distinguiu-se
precisamente numa série de obras assistenciais, de que a mais notável é o Sanatório
de Santana, à Parede, de 1901-03 (fig. 67), com boa organização funcional dos
espaços e belo efeito plástico na solução das coberturas, denteadas e ritmadas pelas
torres de ventilação. Esta obra utilizou também abundantemente o ferro na estrutura
dos espaços subsidiários e a azulejaria arte nova nas salas centrais,
Rosendo Carvalheira projectou também o Sanatório Dr. Sousa Martins, na Guarda, em
1907, com séries de galerias metálicas de bom efeito espacial, e o de Cabeço de
Montachique, em 1917, não construído, com solução panóptica para os corpos centrais44.
O Vidago Palace Hotel, projectado em 1908-10 pelo arquitecto Ferreira da Costa
(em substituição de outro, demasiado caro, de Ventura Terra), iria ser expoente da
arquitectura termal45, seguindo-se, entre outros, os hotéis da Cúria, em 1916 (projecto
de Deolindo Reis e Duarte Melo) (Termas, fig. 68), e o Palácio Hotel do Estoril, por
Silva Júnior, realizado em 1917 em conjunto com o edifício das respectivas termas.
Este último autor, também «condutor» de obras públicas (mediante curso médio que o
Instituto Industrial ministrava), trabalhando em Lisboa, fizera um projecto de fábrica, de
expressão protomoderna e sentido protofuncional, na Avenida do Almirante Reis
(Fábrica de Cervejas Germânia, depois chamada Portugália de 1912-13), com abundante
uso do ferro na estrutura (numa «casa das máquinas» e numa «casa de fabricação»
ainda hoje existentes); e projectara uma remodelação de solar ao gosto neo-árabe, em
transição modernista, o Clube Monumental, hoje a Casa do Alentejo (1908).
O ensino teve o seu ex-líbris nas inúmeras escolas primárias que o projecto
modulado de Adães Bermudes, arquitecto portuense, ia construindo pelas vilas do
País no início do século (cerca de 180, com a sua graciosa torre sineira tão
característica) (fig. 65), depois de ter ganho, em 1898, um concurso «por portaria do
Ministério do Reino para projectos-tipo»46. Este foi talvez, de resto, dos primeiros
projectos entendidos em sentido moderno, prevendo as variantes e combinações que
os tomavam adaptativos às várias situações de programa e de dimensão. Em Lisboa,
44 Conforme «Arquitecto Rosendo Carvalheira (1863-1919), um filho adoptivo de Alexandre Herculano na
arte de construir», por Eduardo Bairrada, em Belas Artes, revista e boletim da ANBA. Lisboa, n.º 3, 1981.45 Haverá algumas dúvidas sobre a sua autoria; ver a Ilustração Portuguesa, n.º 440, de Julho de 1914, e
As Estâncias Teimais Portuguesas, projecto de investigação por Mana Clara Mendes, Lisboa, ed. da autora, 1980.46 Conforme Escolas Primárias, dossier organizado por José Afonso, policopiado, Lisboa, ed. Centro Nacional
de Cultura, 1984.
Fig. 65
Alter do Chão —
antiga escola primária
(alterada)
Fig. 66
Lisboa — projecto do
Banco Lisboa &
Açores, actual Totta &
Açores, Rua da Ouro,
n." 82-92: in revista
A Arquitectura
Portuguesa
Fig. 67
Parede — Sanatório
de Santana: ed. FAM,
Lisboa (bilhete-postal.
Carimbos: Lembrança
3/1/1906; Sanatório
Sant'Anna, Direcção
Técnica da
Construção,
Assinatura:
R. Carvalheira)
Fig. 68
Cúria — Termas,
Fonte Albano
Coutinho: ed. Bazar
Soares, Porto; foto
Soares Leitão, Cúria
(bilhete-postal)
Ventura Terra construiu creches em Santa Apolónia, usando o tijolo e a madeira em
sentido utilitário; projectou a Maternidade de Alfredo da Costa em 1908; e, pela
mesma altura, desenhou os famosos liceus para os «novos bairros», das Picoas
(Camões) e do Rato (Pedro Nunes) (fig. 64), de novo com expressão moderna,
funcional e técnica, traduzindo uma simplicidade formal e construtiva, também ela
factor modernizante. O mesmo fez Manques da Silva no Porto, com os Liceus de
Alexandre Herculano e de Rodrigues de Freitas, em 1915 e 191947 . Funções
simultaneamente assistenciais e educativas foram alvo de obras de vocação mista,
como a Voz do Operário, em 1914 (na rua do mesmo nome), e a sede da
Associação Comercial, em 1916 (Rua da Palma), ambas de Norte Júnior e em Lisboa.
Grandes salas para diversos tipos de «espectáculo» foram iniciadas com a reforma das
Cortes (hoje Assembleia da República, na Rua de São Bento), por Ventura Terra, em
1895, utilizando um rigoroso (e grandioso) classicismo na remodelação do antigo convento
beneditino — trabalho saudado na época por Ramalho Ortigão como «obra do século»
no País48. O programa de novas salas foi continuado com o novo Teatro de São João,
no Porto (por Marques da Silva, 1909), e, em Lisboa, pelo Politeama, de Terra, em 1 9 1 3
(Rua das Portas de Santo Antão), culminando com o «totalmente incombustível» (como
se anunciava) Teatro Gymnasio, ao Chiado, em 1923-25 (Rua Nova da Trindade), Todos
estes espaços se incluíam num esquema inovador mais ao nível espacial e técnico do que
no plano da representação formal das fachadas (o Gymnasio previa mesmo uma plateia
de pavimento amovível, que se podia transformar por rotação em salão de baile).
O «teatro» bancário encontrou também uma boa expressão no Lisboa & Açores, na
Rua do Ouro (fig. 66), centripetando os diversos espaços à volta de um pátio
desenvolvido em pisos (obra também de Ventura Terra, em 1908). De assinalar
ainda o primeiro edifício construído para cinema em Lisboa, o Chiado Terrasse, de
Tertuliano Lacerda Marques, em 1 9 1 1 (Rua de António Mana Cardoso).
47 Conforme José Augusto França, em História da Arte em Portugal no Século XIX, vol. II, Lisboa, 1967,48 Conforme artigo de Ramalho Ortigão, «A obra de Ventura Terra — a nova Câmara dos Deputados em
Lisboa», in Arte Portuguesa — II, Lisboa, ed. Livraria Clássica Editora, s. d.; primeiro publicado em A Arte e
Natureza em Portugal, vol. III, Porto, 1903
Os autores
A Escola de Belas-Artes de Lisboa fundamentava o seu ensino em mestres com
formação ainda ligada aos valores oitocentistas, corno José Luís Monteiro (1849-1942),
autor de uma discreta e «achalezada» casa própria em Campo de Ourique, Rua de
Quatro de Infantaria / de Almeida e Sousa, de 1893 (demolida em 1990) — além de
projectos de equipamentos revivalistas ou classizantes; ou como José António Gaspar
(1842-1909), que projectou a Casa da Moeda (1889-91), a São Paulo, também de
expressão classizante. Ambos da geração nascida cerca de 1840, secundavam-nos José
Alexandre Soares (1873-1930), autor de obras menores, como o Mercado de
Alcântara ou a Capela do Cemitério de Benfica (esta com J. L Monteiro), ou «mestre
João Piloto» (1880-1956), decano da Geometria Descritiva, com obra totalmente
discreta fora do ensino (cerca de 1930 autorizou, no entanto, com arrojo, a obra do
Cinema Éden, em projecto de Cassiano Branco, como conta Nuno Portas49.
Formação limitativa, pois, para os seus alunos nascidos entre 1860 e 1880, à qual os
mais interessantes escaparam pela frequência dos meios europeus da especialidade,
Destes, alguns autores «menores» haveria a referir, como António Couto (1874-1946),
nas intervenções de restauro ou nos frequentes monumentos republicanos (Sé de
Lisboa, estátua do marquês de Pombal); mas a escolha que agora se apresenta
selecciona os nomes em função de uma modernidade dos trabalhos e de uma procura
de actualização e de inovação que é afinal o objectivo primeiro deste trabalho.
Assim se refere Norte Júnior (1878-1962), o mais prolífero, popular e «persistente»
autor da época (até pela longevidade), «campeão» dos Prémios Valmor (cinco, sem
contar as numerosas menções honrosas), especialista de palacetes e de equipamentos
de uma qualidade estética média (e, talvez por isso mesmo, autor tão procurado
pelos clientes) — depois inovador, no uso pioneiro do betão armado (já se referiu a
sua importância no período art déco, na sua colaboração com os construtores). Norte
Júnior chegou a criar um «estilo» tão próprio de desenho (ecléctico, entre urna
volumetria neo-românica e um «grafismo» arte nova, com frequentes excessos
decorativos), que fez escola entre outros autores mais apagados (leccionava, além
disso, um curso livre de Arquitectura), sendo frequente hoje identificar um qualquer
palacete da época como de sua autoria, mesmo que tal não seja verdade (desenhos
tipificados de sua autoria, com o característico carimbo «maçónico» de «compasso»,
vendem-se ainda hoje na Feira da Ladra). Em suma, o «gosto possível» do colectivo
lisboeta dos anos republicanos e «maçons» de 1910-20...
Sobretudo com obra lisboeta, os seus temas mais frequentes eram: nos palacetes,
sobre uma planta convencional, a composição assimétrica de volumes, com grandes
envidraçados (Casa Pró-Arte de Malhoa, Avenida de 5 de Outubro, 1905), em
diálogo com fenestrações de arcos redondos, geminados ou múltiplos (palacete na
Alameda das Linhas de Torres, n.° 22, Prémio Valmor de 1912; ou o prémio de
1914, na Avenida de Fontes Pereira de Melo, n.° 38, Picoas), tudo rematado pelas
49 Em «A evolução da arquitectura moderna em Portugal — uma interpretação», por Nuno Portas,
capítulo de Historio da Arquitectura Moderna, por Bruno Zevi, Lisboa, ed. Arcádia, 1973.
Fig. 69
Lisboa — edifício na
Avenida da Liberdade,
n.os206-218: foto do
trabalho realizado
para a cadeira de
História da
Arquitectura
Portuguesa da
ESBAL. s. d.
torres telhadas ou pelo frontão quebrado. Nos seus prédios abundam os corpos
salientes e de densa plasticidade [Prémio Valmor de 1 9 1 5 (fig. 69)] e um gosto mais
«pesado» e barroquizante (antigo Casino de Sintra, Avenida de Heliodoro Salgado;
escola A Voz do Operário, Lisboa). Mas é realmente difícil resumir uma obra
espalhada por lojas, cafés, casas e tempos tão diferentes... Fique apenas uma última
referência ao atelier próprio, no Largo de Cesário Verde, em Lisboa, obra discreta,
de dois pisos, mas talvez muito significativa de um ideário, com a sua simbologia
«maçónica» feita de compassos esculpidos em capitéis e recortados na porta e
fachada encabeçada por friso cerâmico representando autores das outras artes
(demolido em 1979-80) (figs. 71 e 72).
De Ventura Terra (1866-1919) se falou já, como do seu continuador e genro,
Miguel Nogueira, a propósito da «arte nova» urbana, que ambos tentaram lançar em
Lisboa (sem esquecer os trabalhos de Terra no Minho, sobretudo em Esposende).
De Terra destacam-se o conjunto de prédios na Rua de Alexandre Herculano, n.° 57
(fig. 73) e n.º 25 (Prémio Valmor de 1903 e 1 9 1 1 , respectivamente), e na Avenida
do Visconde de Valmor, n.º 38 (Prémio Valmor de 1906), em que a composição
generosa e a simplicidade decorativa são os grandes trunfos, sempre aliados à
superior carga inventiva. Miguel Nogueira (1883-1953), com soluções de maior
plasticidade e liberdade de volumes (Prémio Valmor de 1 9 1 3 , Avenida da República
n.º 23; em mais pobre, o gaveto da Avenida de Luís Bívar, n.os 2-4-6, Prémio Valmor
de 1916), ambos nas Avenidas Novas; com projectos às vezes excessivamente
decorados (antigo Banco Angola e Metrópole, Rua da Conceição, n.os 134-136, de
1919) — a sua obra mais interessante parece ser todavia a do já referido edifício da
Rua dos Navegantes, n.° 21 , de 1921, com melhor depuração no desenho da
fachada (parece, aliás, que por intervenção do proprietário)50.
50 Dados como este, de tipo mais concreto, foram obtidos pelo autor em entrevistas, nomeadamente com
os arquitectos Luís Benavente, Jorge Segurado, Cristino da Silva e Keil do Amaral.
Fig. 70
Leiria, estrada para a
Figueira da Foz
Fig. 71
Lisboa — porta do
antigo atelier de Norte
Júnior, Largo de
Cesário Verde
(demolido)
Fig. 72
Lisboa — antigo
atelier de Norte
Júnior, Largo de
Cesário Verde
(demolido)
Fig. 73
Lisboa — prédio na
Rua de Alexandre
Herculano, n.º 57:
Arquivo Municipal
Fig. 74
Lisboa — prédio na
Avenida do Almirante
Reis, n.º 2 — Arquivo
Municipal
Adães Bermudes (1864-1947) foi um autor que interessa valorizar além dos
trabalhos públicos referidos (a que se poderia juntar um Instituto Superior de
Agronomia, na Tapada da Ajuda, de 1 9 1 1 , com interessantes espaços interiores),
este portuense estudante em Paris iria executar um dignificante prédio na lisboeta
Avenida do Almirante Reis (fig. 74), com dinâmicas e curvilíneas referências à arte
nova (Prémio Valmor de 1908), produzindo também mais convencionais, mas
elegantes, agências do Banco de Portugal pela província fora (Évora, Vila Real). Como
ele, Álvaro Machado (1874-1944) fez uma proposta «moderna» para a esquina da
Avenida do Duque de Ávila com a da República (1909) e outra para a sede da
Sociedade Nacional de Belas-Artes, na Rua de Barata Salgueiro, n.° 36 (1906), obras
modernizadoras em termos de uma simplicidade de elementos compositivos,
caminho útil, como se vê, no esforço pela modernização da arquitectura urbana que
então se praticava. A depuração do desenho confirmava-se aliás, mais tarde, em
Machado (com o Prémio Valmor de 1919, na Avenida do Duque de Loulé, n.° 47,
demolido em 1961), um autor que pensou a via do neo-românico, como outros
autores euro-americanos, como caminho para o moderno.
Em áreas mais regionalistas ou tradicionalistas surgiam as propostas de Ernesto
Korrodi (1870-1944) e de Raul Lino (1879-1974), já referidas também a propósito
da arte nova (curiosamente, ambos os autores eram provenientes da Europa central
e sensíveis às respectivas influências, respectivamente a Suíça e a Alemanha —
universos culturalmente mais ruralistas ou intimistas, se comparados com o dos
autores de «costela parisiense»), Korrodi, além de obras diversas em Leiria (fig. 70),
fez várias incursões em programas domésticos lisboetas, onde a calma proporção e
as delicadas decorações em baixo-relevo estavam, como sempre, presentes, aliadas a
elementos como o beiral «português», que não desvalorizavam nem exageravam o
conjunto (além do prédio de A Tentadora, em Campo de Ourique, na Rua de
Saraiva de Carvalho, n.° 242, há a salientar os Prémios Valmor de 1910 e de 1917,
respectivamente na Avenida de Fontes Pereira de Melo, n.º 30, e na Rua Viriato,
Fig, 75
Porto — casa de
Marquei da Silva, na
Avenida do Marechal
Gomes da Costa,
n.º 1363
Fig. 76
Cascais — Chalet
O'Neill: ed. E. Dias
Serras Rua Áurea, 26,
Lisboa (bilhete-postal:
data da missiva.
12/11/1920)
n.° 5 — o primeiro já demolido, em 1961). Mais produtiva, porque mais profunda,
foi a obra de Raul Lino, um «grande reformador», nas palavras da Ilustração
Portuguesa de 1908 (que chamara a Terra, dois anos antes, um «grande
arquitecto»)51.
Lino investigou e sensibilizou-se pelo Sul alentejano e pelo Norte marroquino,
descobrindo «caábicas proporções» que logo aplicou em casas de veraneio [na casa
Silva Gomes e na de O'Neill, em 1902 (fig. 76), respectivamente no Estoril e em
Cascais], afinando sistemas formais fruto da tradição enraizada (de que fez «colagem»
no projecto para a exposição de Paris de 1900), A sua maior contribuição esteve no
proto-organicismo e na adaptabilidade espacial patentes na Casa do Cipreste, de
1912, implantada sobre uma velha pedreira sintrense. A maior limitação de Lino, em
contrapartida, esteve numa dependência excessiva dos materiais e das soluções
formais antigas, entendidas exclusivamente no restrito campo doméstico.
Marques da Silva (1869-1947), autor quase «único» desta época no Porto, resumia
num só autor muitas destas tendências lisboetas, Refira-se, para sintetizar, a sua casa
própria na Boavista (fig. 75), espelho de um entendimento intimista e quase
wrightiano do ambiente doméstico.
Haveria ainda que fazer uma referência aos autores que, embora arredados da
produção real, não deixaram de projectar, como é o caso de José Pacheko,
«modernista» doutros sectores artísticos, que ensaiou desenhos de casinos (1907) e
de teatros modernos (já em 1925) nunca realizados, mas prometedores..."
51 Em Ilustração Portuguesa, de Janeiro de 1908,52 Conforme «José Pacheko», por Gustavo Nobre, artigo na revista Colóquio Artes, n.º 35, Lisboa, ed.
Fundação Calouste Gulbenkian, 1977.
O Estado Novo — das obras públicasà vulgarização de uma nova estética A arquitectura e a ideologia — da propaganda às exposições
O urbanismo
As «obras» — das pontes e viadutos ao mobiliário urbano
A divulgação de um gosto — comércio, equipamento e habitação
Os autores
A arquitectura e a ideologia — da propaganda às exposições
Com o advento dos anos 30 e o enraizamento do regime social e político
salazarista, a simbologia arquitectónica do «moderno» invadiu pouco a pouco todas
as actividades ligadas à construção, como moda gráfica e estética: logo no Prémio
Valmor de 1931 , era o seu próprio «cartão de apresentação» uma perspectiva do
edifício que, com o característico lettering art déco e com o tratamento formal da
fachada, anunciava a mudança dos gostos neste sector (fig. 77), À apresentação dos
projectos nesta forma mais irreverente seguir-se-ia em breve a imagem renovada das
revistas e livros de arquitectura (acompanhando, de resto, uma tendência mais geral
de renovação gráfica noutras actividades), com desenhos abstractos de edifícios que
se adivinhavam puristas (como na folha de sumário da Arquitectura Portuguesa -
Cerâmica e Edificação Reunidas de Maio de 1939) (fig. 78), ou com «capas-
-manifesto» dos conteúdos (corno no livro A Estético de Lisboa, do arquitecto
Paulino Montez, de 1935), em jogos abstractos de superfícies, cores e palavras...
A renovação estendeu-se às montras e mesmo aos tapumes de obras, em
aproveitamentos publicitários cuja qualidade pode hoje espantar, por comparação
com a degradação gradual que alguns destes sistemas de exibição de produtos vem
atingindo: desde um «Projecto de Montra da Casa Borges & Irmão», exibido na
exposição das Belas-Artes de 1929, da autoria de Cristino da Silva, com sábia
utilização do lettering53, até aos painéis que escondiam a esquina da Rua do Carmo
com a do Primeiro de Dezembro, na Baixa lisboeta, cuidadosamente ritmados de
anúncios pintados com formas e volumes abstractos bem ao gosto da época (da
autoria do ETP, Estúdio Técnico de Publicidade, tão famoso na altura),
As empresas de «transacção de propriedades» ou de construções renovavam também
o seu símbolo ou logotipo, como A Confidente (fig. 79) e a Cooperativa Promotora
Previdente (escolhendo ambas uma representação da «moradia ideal» com volumes
claramente modernistas), ou como a empresa Amadeu Gaudêncio, que preferia aliar a
uma escrita de estilo art déco urna «fábrica abstracta» com roda dentada por fundo,
Idêntica transformação sofriam os símbolos de empresas de materiais de construção:
as «ferrarias» e serralharias, que anunciavam nos seus papéis timbrados ou em
páginas das revistas especializadas, recorrendo a imagens mecanicamente apelativas
do progresso ou representando obras dentro do formulário modernista (a Sociedade
Industrial Metalúrgica exibia fotograficamente a sua participação em cromados e
tubos de ferro no grande hall do Instituto Superior Técnico, por exemplo); as
fábricas de revestimentos e impermeabilizações, acompanhando a divulgação do
betão, apoiavam-se em sugestões gráficas de prédios de linhas puristas, que melhor
evidenciavam as suas qualidades («não racha», diz o Cimento Lafarge, em 1929-31,
nas páginas da Arquitectura, ou «contra a humidade e salitre nas casas», reclamava a
Ceresit na Arquitectura Portuguesa de 1939); mármores, cantarias e cerâmicas
seguiam-lhes o exemplo (até nos edifícios-sede, onde as fachadas se tomavam
verdadeiros mostruários dos padrões e efeitos decorativos do material produzido —
53 Na revista Arquitectura, n.° 16, Lisboa, Maio de 1929.
Fig. 77
Lisboa — habitação
em Campo de
Ourique, Rua de
Infantaria 16,
n." 92-94 (alterada
e ampliada): foto
Estúdio Mário Novais,
sobre desenho de casa
para o Sr. Manuel
Gameiro por Veloso
Reis Camelo,
arquitecto
veja-se o exemplo da Fábrica de Cerâmica Lusitânia, ao Arco do Cego, com azulejos
de desenho geométrico a decorar a fachada da secção de escritórios, já demolida).
Esta moda de exibir formas arquitectónicas ou gráficas com espírito modernista na
«propaganda» (ou publicidade) iria estender-se mesmo a outras actividades e formas
de «exposição» de produtos a colocar no mercado: a Fábrica de Conservas Activa,
de Matosinhos, fazia-se representar pela abstracção desenhada das suas instalações
(naturalmente com expressão purista); outra fábrica, do mesmo ramo, construía um
pavilhão provisório, no mesmo estilo, para se representar nas Festas da Cidade (e já
falaremos do tipo novo de construção que se desenvolveu à volta destas
necessidades novas de propaganda); as empresas de produtos eléctricos inventavam
depurados interiores provisórios para promoverem as suas telefonias (numa
exposição de rádio e electricidade da Philips) (fig. 81), ou cuidados pavilhões
modernistas e simbólicos (de Adelino Nunes, para a Empresa Electro-Cerâmica de
Vila Nova de Gaia, na Exposição Industrial do Parque Eduardo VII) (fig. 80); mesmo
as fábricas de automóveis, outro símbolo do progresso na época, procuravam na luz
da Electro-Reclamo, e num lettering depurado, a divulgação em «escultura» da sua
«semana»,
Fig. 81
Lisboa (?) — expositor
da Philips, anos 30:
foto Estúdio Mário
Novais
Fig. 80
Lisboa — pavilhão de
exposição. Parque
Eduardo VII: foto
Estúdio Mário Novais
Fig. 78
Cabeçalho da revista
A Arquitectura
Portuguesa c
Cerâmica e Edificação
Reunidas, Lisboa,
Maio de 1939
Fig. 79
Porto — anúncio de
rua de A Confidente
(em vidro pintado)
Fig. 83
Olhão — edifício do
Sindicato da Indústria
Conserveira de Olhão
Fig. 82
Lisboa — edifício da
sede do Diário cie
Notícias, Avenida da
Liberdade, n.° 266:
foto Estúdio Mário
Novais
Fig. 84
Maqueta do
Monumento de Sagres
de Pardal Monteiro,
sobreposta ao Terreiro
do Paço para
visualização de escala:
foto Estúdio Mário
Novais
54 Sobre os Prémios Valmor de Arquitectura e a bibliografia indicada ver nota 43.
Símbolos e concursos
O Estado Novo, em consolidação crescente, não descurava o uso de uma
simbologia antiga, mas com tratamento renovado; assim, de um simples letreiro da
Escola de Instrução Primária em Fenais de São Miguel, de recorte art déco, até à
Cruz de Cristo no Sindicato da Indústria Conserveira de Olhão, estilizada em portão
de formas geométricas e no frontão adjacente em baixo-relevo escudado (fig. 83), foi
todo um aproveitamento das novas possibilidades expressivas e estéticas que o
primeiro decénio de vigência do «regime» ensaiou, em estádio ainda aberto aos
conceitos de modernização e de progresso.
O «regime» iria de resto incentivar, e em muitos aspectos liderar, essa exploração
de meios propagandísticos novos, que o secretário da Propaganda Nacional, o
modernista dos anos 20 António Ferro, estava mais do que muitos apto a entender
nas suas potencialidades culturais e, por via destas, políticas. Concursos de montras
ou de cartazes, prémios nos sectores das artes, revistas de divulgação, até «lojas de
propaganda de Portugal», como a de Paris, iniciaram uma autêntica «fase estética
experimental» do Estado Novo, situável entre 1929-30 e 1940-44.
Os concursos públicos nacionais de arquitectura ou escultura foram talvez das
iniciativas de maior êxito e efeito, centrados à volta do de Sagres, repetido em 1938,
depois de uma primeira tentativa em 1933-34. Foi ele um banco de ensaio e de teste
para a prática arquitectural da primeira geração modernista, já que os objectivos
simbólico-históricos do projecto tenderiam a «corromper» o desenho purista e
abstracto que então se praticava na procura de uma nova estética de conotação
nacionalista. Um «superfarol» de Pardal Monteiro (fig. 84) recordava na segunda
tentativa de concurso a solução da torre luminosa da sede do Diário de Notícias (peça
fundamental na transição para a arquitectura dos anos 40); o barroquismo latente de
Cassiano Branco despoletava na densidade de volumes da sua proposta, enquanto os
premiados, irmãos Rebelo de Andrade (em 1933) e Carlos Ramos (em 1938),
optavam por formas mais plásticas ou mais convencionais, respectivamente.
O Prémio Valmor de Arquitectura, depois de uma fase hesitante e de transição de
linguagens, situada entre 1928 e 1931 (durante a qual foram premiados edifícios
eclécticos ou dentro do modelo art déco), iria auto-suspender-se por iniciativa de um
membro do júri, Raul Lino, descontente com o caminho predominantemente
modernista da arquitectura corrente da cidade54. Quando, em 1938, se renovaram as
suas atribuições, destinadas a uma Igreja de Fátima, a consagrar quase
obrigatoriamente pelo regime, e ao edifício do Diário de Notícias (já em 1940)
(fig. 82), isso passava-se numa fase terminal do primeiro «moderno» em Portugal, de
que o Prémio de 1939 era indício (foi dado a uma moradia «neo-setecentesca» dos
irmãos Rebelo de Andrade).
Fig. 85
Pavilhão da Exposição
Universal de Paris de
1937: desenho de Keil
do Amaral (estudo),
arquivo Keil do
Amaral
A «arquitectura efémera»
Esta associação entre os signos «modernos» da arquitectura e a política de cariz totalitário
não era de resto originalidade do País, já que a Itália mussolínica dos anos 20 a vinha
usando, sendo a partir daí modelo para nós (via Cottinelli Telmo ou António Ferro)55. A
abstracção radical e desumanizante que certas vertentes do movimento moderno exigiam
para chegar a um «futuro rápido» (vejam-se as visões do futurismo) não era, de resto,
oposta, na essência, ao ideário social dos regimes corporativistas, pelo menos numa fase
inicial de entusiasmos e de fé. O salazarismo iria passar sucessivamente, no decorrer dos
anos 30, por uma fase de indiferença estética (que tanto acertava obras do eclectismo
como do art déco), por um uso sistemático do modernismo radical (quase sempre, apesar
de tudo, caldeado pela aposição de simbologia nacionalista) e pelo desembocar nas
variantes historicistas e monumentalistas, mesmo sobre a transição dos anos de 1939-4056.
É na arquitectura das exposições internacionais que, pela responsabilidade sentida de
constituir representação oficial portuguesa, melhor se podem detectar as mudanças de
gosto sucessivas. De facto, se, em 1929 (Exposição Ibero-Americana de Sevilha), em
1930 (Exposição Internacional de Paris) e em 1931 (Exposição do Rio de Janeiro), os
pavilhões portugueses eram de gosto neobarroco (dos irmãos Rebelo de Andrade) ou,
no caso isolado de Paris, consistiam numa proposta tradicionalista de Raul Lino, já
mesmo em 1930 (Exposição Colonial e Marítima de Antuérpia) se experimentava uma
«fachada-frontão» estilo artes decorativas, e, pouco depois, em 1936, se confirmava, de
novo para Paris (Exposição Internacional de 1937), um inovador e preponderante
modelo modernista de pavilhão (fig. 85). Para este, Keil do Amaral foi o escolhido, em
detrimento da costumeira proposta de Lino57, seguindo-se, igualmente de expressão
modernista escultórica, pelo arquitecto Jorge Segurado, os pavilhões das Exposições de
Nova Iorque e de São Francisco (em 1939),
55 Conforme artigos diversos da revista Colóquio-Artes, Lisboa, ed. Fundação Calouste Gulbenkian,n.o 45, de Junho de 1980, e n.o 48, de Março de 1981, bem como os textos do vol. l do catálogo ArtePortuguesa — Anos Quarenta da exposição realizada pela mesma Fundação, Lisboa, 1982.56 Conforme artigo «A arquitectura do fascismo em Portugal», por Nuno Teotónio Peneira e José ManuelFernandes, na revista Arquitectura, n.º 142, Lisboa, Junho de 1981, dedicada ao tema «Portugal —arquitectura e fascismo».57 De assinalar uma «corrupção» do modelo inicial de Keil para o pavilhão, mais «holandês» e depuradodo que o finalmente executado, conforme os primeiros esquissos, e já com arcos e emblemas «nacionais»nas perspectivas finais.
Fig. 86
Porto — Palácio de
Cristal: ed. Foto
Beleza — Porto
(bilhete-postal)
Fig. 87
Porto — Palácio de
Cristal/Palácio das
Colónias da Exposição
Colonial Portuguesa de
1934: ed. Lito.
Invicta — Porto
(bilhete-postal;
Fig. 88
Lisboa — a tribuna
de honra, com Duarte
Pacheco: foto Estúdio
Mário Novais
Fig. 89
Lisboa — anúncio
representando uma
construção efémera da
tribuna de honra: in
revista Arquitectos,
Lisboa
No âmbito nacional, era a Exposição Colonial do Porto que, «mascarando»
exemplarmente o velho Palácio de Cristal com estafes de fachada (figs. 86 e 87),
denotava já a alteração de gostos que ia começando, ao nível oficial, em 1934.
A Exposição Industrial no Parque Eduardo VII e os pórticos triunfais do Ano X da
Revolução Nacional (em 1936), em conjunto com o pavilhão de estrutura metálica e
revestimento de estafe que serviu como «tribuna de honra» da CML para comemorar
em parada o 28 de Maio na Avenida da Liberdade (projecto de Miguel Jacobetty, de
1938) (figs. 88 e 89), confirmavam a voga de um tipo de arquitectura a que a revista
oficiosa Arquitectura chamava então efémera e que exprimia claramente as vocações e
necessidades propagandísticas dos regimes autoritários dos anos 30 — sempre mais ou
menos impregnadas plasticamente de temas modernistas ou abstractos...
Conclui-se esta sequência crescente de exposições ou exibições públicas com a
famosa Exposição do Mundo Português, realizada em Belém no ano-charneira de
1940, onde toda a geração do primeiro modernismo arquitectural transformava (e se
autotransformava por via de) a linguagem utilizada, com mais ou menos consciência
estética ou precaução política, procurando exprimir significados emblemáticos em
formulários retrógrados, que iriam servir de base a uma «nova era» da arquitectura
portuguesa. A «classe» dos arquitectos tinha então um apogeu na aproximação e na
confiança oferecidos pelo regime político, que foram aliás reconhecidas na eleição de
Salazar, em Março de 1941, como sócio honorário do seu Sindicato, «pelos altos
serviços prestados por Sua Excelência à arquitectura nacional».
O urbanismo
A actividade urbanística dava os seus primeiros passos em Portugal nas décadas de
1920-30, sempre com urna forte componente ou entendimento académico da
disciplina, em limitados «planos de pormenor», ainda demasiado próximos da escala
arquitectural, e partindo muitas vezes de iniciativa privada ou local, quando não
arrastados pelo interesse de um arquitecto de nomeada ou recorrendo a serviços de
técnicos estrangeiros, tentando suprir a falta dos especialistas nacionais.
Fig. 90
Lisboa — desenho perspectivado com o estudo do
prolongamento da Avenida da Liberdade através da
Parque de Eduardo VII, assinado Luís Cristina da Silva,
11/5/1930: f o t o Estúdio Mário Novais
Fig. 91
Lisboa — desenho
perspectivado do
Centra de Aviação
Naval (do Montijo)
MOPC/COBNL,
assinado Paulo Cunha:
foto Estúdio Mário
Novais
Fig. 92
Norte de Moçambique —
desenho do
Anteprojecto de
Urbanização da
Futura Cidade de
Nacala, assinado Luís
Cristino da Silva,
Abril de 1941: fo to
Estúdio Mário Novais
Assim surgiam, por exemplo, o «Plano Geral de Melhoramentos» para a praia do Moledo
do Minho, estudo cheio de simetrias que Carlos Ramos fez para uma «comissão de
iniciativa» em 1929; assim, também, urbanistas franceses como Forestier estudavam os dois
problemas principais que se colocavam à modernização e extensão da Lisboa da época, ou
seja, a ligação Cais do Sodré-Terreiro do Paço e o prolongamento da Avenida da Liberdade
para norte, sobre o Parque Eduardo VII (em 1927); este último tema seria abordado por
Cristino da Silva [em 1930 (fig. 90) e 1932] em promissores e irrealizados desenhos
monumentais; Cristino estudaria pouco depois a articulação do conjunto Instituto Superior
Técnico-Estatística com o Bairro do Arco do Cego, propondo as duas raquettes definidas
pelo esquema viário e que foram realizadas (prolongamento das Avenidas do Duque de
Ávila e de António José de Almeida, bem como das do México e Marconi), como uma
extensão monumentalizada da retícula das Avenidas Novas58. Mas este plano, que o autor
parece ter oferecido à própria Câmara59, inseria-se já num quadro mais esclarecido, no qual
eram as entidades oficiais ou municipais a pedir e a incentivar estudos de conjunto para
zonas urbanas, que a legislação de 1934 lançada por Duarte Pacheco iria exigir, pela
58 Informações obtidas em depoimento prestado pelo arquitecto Luís Benavente ao autor, onde se refere
também a critica feita então por Paulino Montez ao traçado em rampa das Avenidas do México e de António
José de Almeida, que «fere» a leitura da monumentalidade do edifício do Instituto Nacional de Estatística.59 Conforme fonte citada na nota 58.
obrigatoriedade de levantamentos das principais dessas zonas e consequente realização de planos
municipais60. Também o decreto do ano anterior instituindo o regime de «casas económicas» iria
contribuir para dar uma dimensão urbana ao estudo dos «bairros» respectivos,
Foi nesse panorama que surgiram os estudos de Paulino Montez sobre planos de urbanização
para Mafra (1933) e para o Bairro Salazar, ao Alvito-Alcântara (1938) (fig. 93), finalizando este
período com o plano para as Caldas da Rainha (l941)61; ou que Cristino desenvolveu novos
estudos para localidades em expansão, como Monte Gordo (também de 1941, enquadrando o
seu Casino em faixa de equipamentos litoral). Também o Estado começava a ser cliente directo
de planos, sobretudo para as instalações militares, portuárias e fronteiriças, que o esforço de
modernização geral do seu aparelho exigia; desde a «urbanização da Praça do Alfeite»,
enquadrando a Escola Naval (dos irmãos Rebelo de Andrade, 1938), passando pelos trabalhos de
Paulo de Carvalho Cunha para Setúbal (remodelação da zona central do porto para a Junta
Autónoma) e para o Montijo (Centro de Aviação Naval — MOPC) (fig. 91) — onde grandiosas
perspectivas cavaleiras exibiam futuras edificações com claros jogos de volumes modernistas62 -
até aos «planos de melhoramentos» do porto de Lisboa (AGPL), onde novamente Paulo Cunha
e depois Pardal Monteiro e Jorge Segurado iriam trabalhar63, já bem entrada a década de 40, mas
prolongando num «modernismo técnico» a expressão dos anos 30. Uma referência, ainda que
pontual, deve ser feita aos estudos para as colónias africanas de alguns destes autores, desde o
trabalho «pioneiro» de Carlos Rebelo de Andrade para o «Alargamento e Embelezamento da
Cidade da Beira» (de 1929)64 até ao anteprojecto de «Urbanização da Futura Cidade de Nacala»,
por Cristino da Silva, para o potencial porto moçambicano, já de 1941 (fig. 92).
Planos à escala da região só começaram mesmo nos finais da década de 30, e com ajuda
de urbanistas convidados: depois do «Plano de Urbanização da Costa do Sol» (1933-34 e
1939-42) e do «Plano Director de Lisboa» (1938-48), onde Alfredo Agache ou de Groer
60 Fernando Gonçalves considera o decreto que estipula estas regras (n.º 24 802, de 21 de Dezembro de 1934) «oponto de partida da legislação urbanística portuguesa», conforme o seu livro Urbanizar e Construir para Quem?, Lisboa,ed. Afrontamento, 1972.61 Que Montez reúne, com outros trabalhos idênticos, na colecção «Estudos de Urbanismo em Portugal», ondeapresenta algumas preocupações e teorias urbanísticas algo incipientes.62 Trabalhos por datar (talvez da transição 1939-40), mas cuja linguagem os inscreve ainda na interpretação modernistados programas oficiais; Cunha dedicou-se ao estudo de planos portuários e fronteiriços, como para Quarteira (planogeral) e para Vila Real de Santo António, isto além de outros, como o «Plano de Extensão, Arranjo eEmbelezamento do Luso» e o de Sesimbra, com datas a averiguar.63 Respectivamente no estudo do nó de Alcântara, nas estações marítimas e nos armazéns, conforme depoimento aoautor, por Paulo Cunha.64 Na revista Arquitectura, n.° 24.
Fig. 93
Lisboa — desenho
perspectivado do Plano
do Bairro Económico
do Doutor Oliveira
Salazar, no Alvito: in
Paulino Montez,
Lisboa/Alcântara/
/Alvito. Estudos de
Urbanismo em
Portugal, 2.ª ed. do
autor, Lisboa, 1938,
p. 19.
Fig. 94
Viana do Castelo —
Avenida dos
Combatentes da
Grande Guerra: in
Portugal 1140-1940
Shell News
colaboraram65, iria ser já na óptica monumentalista dos «modernos» arquitectos ítalo-
-mussolínicos que o Porto receberia o seu estudo urbano de conjunto (com Piacentini e
Muzio, entre 1938 e 1940 e 1940-42, respectivamente), acompanhando, de resto, idêntica
evolução na arquitectura66
Até aqui convém realçar o sentido de «tradição» e de «arte de urbanizar> com que era
entendido o estudo urbano, muito mais como um «prolongamento» da arquitectura do que
como uma disciplina agregadora de complexas redes socieconómicas e político-culturais que
modernamente se lhe foi atribuindo; isto explica-se em parte pela formação de base dos seus
autores (eram arquitectos «metidos» a urbanistas), até aos trabalhos de Fana da Costa, que já
na década de 40 faz o primeiro plano «moderno», no sentido referido, para a Figueira da Foz;
sua terra natal, pioneiro de entendimento pluridisciplinar do planeamento. E essa formação
explica também em parte o fracasso, no plano da concretização, da grande maioria das
propostas, que sacrificavam por regra às leis académicas de simetria forçada (o que resultava
num edifício, mas não numa cidade), ou de desejada monumentalidade, as inultrapassáveis leis
da propriedade ou da especulação fundiária (sem falar no total alheamento, em vistas do
entendimento do «progresso» como valor totalitário, do valor cultural dos centros históricos).
Na prática, e porque os organismos urbanos não paravam obviamente à espera dos planos
que os «embelezariam», foi-se assistindo ao crescimento mais ou menos não planeado de
todas as cidades de província, sendo muito característico desta época o aparecimento da
«avenida modernista», larga, veloz, rectilínea e tão comprida quanto o necessário, com uma
predominância daquele tipo de arquitectura nas suas fachadas; assim foi a que em Braga se
iniciava com o edifício do Turismo e se dirigia para o Estádio Municipal; ou as que em Viana
do Castelo (fig, 94) ou Aveiro ligaram o centro tradicional à estação dos comboios. Em Lisboa
já se falou dos bairros dos construtores civis como processo de crescimento urbano mais ou
menos desenfreado; estas eram afinal as imagens reais, contemporâneas da execução dos
desejados levantamentos e plantas «das principais cidades, vilas e estâncias termais e de
veraneio» indicados pelo legislador urbanista poucos anos antes,
O ano de 1944 pode marcar o fim desta primeira e «modernista» fase do urbanismo, já que,
falecido no ano anterior o voluntarista e autoritário ministro Duarte Pacheco, se dava então
início à burocratização de todo o processo, com a criação da «temível» Direcção-Geral dos
Serviços de Urbanização67.
65 Conforme obra citada na nota 60 e o artigo «Urbanística à Duarte Pacheco», na revista Arquitectura,n.° 142, também da autoria de Fernando Gonçalves.66 Conforme obra citada na nota 6067 Id.
As «obras» — das pontes e viadutos ao mobiliário urbano
Foi nas infra-estruturas que grande parte do investimento do Estado Novo apostou
ao longo dos anos 30; e foi nas «obras de arte» da engenharia que buscou a sua
«obra-símbolo»; um grande viaduto que quis competir com o grandioso Aqueduto
das Aguas Livres, seu vizinho, além de suportar e se prolongar pela primeira auto-
-estrada portuguesa, o Viaduto Duarte Pacheco (tinha de ser) e a auto-estrada de
Monsanto a Cascais (que levou meio século a ligar). A mão-de-obra abundante e
barata compensava então urna tecnologia ainda timidamente industrializada: a
construção do viaduto assistiu ainda à já anacrónica passagem da máquina de vapor,
apoiando-se em primitivas e densas estruturas de suporte de madeira (na imagem,
no alto do arco nascente, uma enigmática figura com chapéu de coco — pode ser
Duarte Pacheco — observa a cena) (fig. 95); e, já pronta, a obra serviria para passeio
domingueiro dos lisboetas seduzidos pela novidade, que a pé iam calmamente «ver a
vista» do outro lado do vale de Alcântara, por entre o raro trânsito automóvel,
atravessando de passeio a passeio como se rua fosse... (fig. 96).
Os «filhos» deste viaduto não tardaram — a imagem do arco único a ligar as duas
vertentes era demasiado forte: é disso exemplo a ponte sobre o Tua (estrada
Carrazeda-Alijó), versão reduzida deste modelo (concluído em 1940) que o leva a
Trás-os-Montes num processo de propaganda da capacidade realizadora do Estado,
feita de betão e novidade.
O lançamento de redes viárias modernas esteve intimamente ligado à crescente
utilização do automóvel como meio de transporte de produtos e de pessoas, que
em Portugal dava nesta fase um «salto em frente». Entre vias marginais e novas
estradas nacionais, com os correspondentes viadutos ou pontes a vencerem
obstáculos naturais (como a ponte em betão de Odeceixe, na estrada Lisboa-
Algarve, com os seus típicos arcos triangulados, obra de 1936), surgiram as pequenas
construções de apoio, onde se destacaram os postos da PVT (Polícia de Viação e
Trânsito) de contorno modernista (fig. 97): espalhados pelas estradas de todo o país,
aí atestam uma época e um «estilo».
Regionalmente, foram as pequenas obras de melhoramento público que os
municípios ou o próprio Estado incentivaram como «arma» fácil e barata de
propaganda das suas novas capacidades, no meio da província: foi a inauguração dos
célebres fontanários públicos [exemplos por todo o país, desde Sobral de Monte
Agraço, na saída para Arruda dos Vinhos, ou desde Porto Salvo, no Parque Manuel
Pereira Coentro, a Vila Nova de Paiva (fig. 98); ou de Vila Franca de Xira, no Largo
do Dr, Rodrigo dos Santos, a Rio Maior, na Praça do Comércio; ou até em
Bragança, em jardim público]. Na sua maioria em pedra, os fontanários utilizavam o
desenho art déco, em torres piramidais e com os efeitos de simetria habituais do
estilo (como também sucedeu nos lavadouros públicos, de que é exemplo o de
Condeixa-a-Velha). O desenho modernista foi também utilizado noutros
equipamentos «menos nobres», como os sanitários públicos (em Torres Novas, no
largo central; em Paço de Arcos, no jardim à Avenida do Marquês de Pombal; em
Fig. 95
Lisboa — Viaduto de
Duarte Pacheco em
construção, no vale de
Alcântara: foto Estúdio
Mário Novais
Fig. 96
Lisboa — Viaduto de
Duarte Pacheco, no
vale de Alcântara: ed.
Colecção «Dulia»
(bilhete-postal)
Fig. 97
Posto da Polícia de
Viação e Trânsito: in
l 5 Anos de Obras
Públicas
Fig. 98
Vila Nova de Paiva —
chafariz
Fig. 99
Vila Nova de Poiares —
bancos do Jardim
do Comandante
Bernardo Martins
Catarino
Fig. 100
Portalegre — o
Miradouro sobre a
Cidade. Projecto do
arquitecto Jacobetty.
Construção da
Comissão de Iniciativa
e Turismo (1938).
Foto de Carlos
Curveta: ed. da
Papelaria, Livraria e
Tipografia Silva,
Portalegre (bilhete-
postal)
Fig. 101
Portalegre — o
miradouro da serra,
pormenor
Oeiras, na rua frente à matriz), com decorativa caixilharia de efeito abstracto e
geométrico em portas e ventiladores; ou ainda como os cemitérios (nos arredores
de Viseu; em São Domingos de Rana), onde até os próprios jazigos participam nesta
euforia estilística do modernismo (como o que se encontra à entrada do Cemitério
de S. Domingos de Rana, do arquitecto Carlos Dias, que assinou o projecto do
Éden construído).
Finalmente, esta linguagem difundiu-se nos jardins públicos, com todo o seu
característico equipamento, sobretudo os coretos ou quiosques de betão nos jardins
municipais de murtas cidades (Figueira da Foz, Aveiro, Coimbra, aqui frente aos
Correios Centrais) e os bancos de costas com desenho em «sol nascente» (Vila
Nova de Poiares) (fig. 99) ou azulejados (Figueira da Foz, Avenida de Espanha,
demolidos em 1980), as fontes cobertas (com caramanchão superior, na curiosa
versão do Entroncamento, no Parque do Dr. José Pereira Caldas), os monumentos
(a Luísa Todi, na Alameda do mesmo nome, em Setúbal; em Vila Nova da
Barquinha e Sintra, estes em homenagem à «Grande Guerra») e os mirantes [com a
panóplia das torres luminosas incorporadas, como no do Estoril, por Jorge Segurado
— depois demolido pela construção da marginal —, ou no da serra de Portalegre,
de Jacobetty, com suave escadório de acesso (figs. 100 e 101)],
Fig. 102
Lisboa — antigo Café
Portugal, no Rossio
(actual loja Valentim
de Carvalho): foto
Estúdio Mário Novais
Fig. 103
Lisboa — Praça da
Figueira, Sapataria 28
(demolida)
Fig. 104
Figueira da Foz -
Rua de Cândido dos
Reis, n.os 79-81, loja
Novidades Perfumaria
Nally
A divulgação de um gosto — comércio, equipamento e habitação
Se há espaço arquitectónico que tenha sofrido incremento e transformação profunda
nesta época, foi o das lojas comerciais, ajudado pela vaga de novos materiais e pelo
furor de renovação, que implantou um lettering diferente, provocador e apelativo.
As primeiras experiências, ainda dentro do universo do art déco, como a
Sapataria 28, à Praça da Figueira, ou a Papelaria Fernandes, no Largo do Rato (ambas
em Lisboa), que recorriam ao brilho e à transparência dos vitrais e das cores,
sucederam-se obras plenas de exibição de formas abstractas e de tonalidades
berrantes, de impacte reforçado por nomes como A Inovadora, a Farmácia Moderna
(Régua, Rua dos Camilos), ou a Sapataria 28, já demolida, à Praça da Figueira, em
Lisboa (fig. 103), ou mesmo, em plano mais humilde, de simples pintura de fachada,
a Drogaria Progresso, de Sintra (Rua de Heliodoro Salgado).
Podem destacar-se, no plano regional, obras como A Primorosa, de Sines (Rua de
Teófilo Braga), com azulejos e baixos-relevos art déco na fachada, a Loja Rodrigues,
inscrita em prédio antigo do centro sadino, a Galo d'Ouro, brilhante e mundana no
seu mosaico dourado, abrigada nas arcadas dos Estoris, a Nally, perfumaria de sabor
algo «espanhol» na estância figueirense (Rua de Cândido dos Reis, n.os 79-81)
(fig. 104), ou ainda A Óptica, de Braga (Rua de S. Mamede, n.º 13), de divertida
solução gráfica, ou a Cova da Onça, micaelense e cerâmica (em Água de Pau).
E não referiremos as centenas de estabelecimentos mais vulgares que foram a pouco
e pouco definindo um estilo próprio de fazer e apresentar o comércio urbano,
mesmo que reduzidos aos essenciais perfis de ferro laminado e pintado, aos simples
e rectangulares vidros de cada lado da porta e ao soco de mármore escuro (de que
é exemplo uma anónima Drogaria e Perfumaria azul e vermelha na Rua do Vale de
Santo António, Lisboa) que foram conformando talhos e sapatarias, farmácias e
cafés...
Fig. 105
Lisboa — loja de
modas Sabóia, Rua
Garrett: foto do
arquivo do atelier de
Jorge Segurado, Lisboa
Há que destacar neste campo alguns autores lisboetas com obras isoladas, como Leo
Wage(?), com o Centro de Novidades, na Praça da Figueira, ou Raul Lino, com o
Stand Opel, na Avenida da Liberdade (sem esquecer a sua Loja das Meias, no
Rossio), ou ainda os irmãos Rebelo de Andrade, com a Casa Quintão, na Rua Ivens,
ao Chiado; e há que referir também verdadeiros «especialistas», como Jorge
Segurado e António Varela [a esplêndida Farmácia Azevedos ou a loja O Século,
ambas no Rossio, a galena UP e o interior da loja de modas Sabóia, ao Chiado
(fig. 105)]; como João Simões, com as suas Casa do Pão de Ló e Casa das Malhas,
também na Baixa alfacinha, e o inevitável Cristino da Silva, com as melhores soluções
[Café Portugal (fig. 102), loja do Diário de Notícias no Rossio). Autores anónimos e
projectistas encartados contribuíram assim, em larga medida e em paralelo, para a
divulgação das novas atitudes estéticas.
Os equipamentos
No domínio dos equipamentos, a situação era idêntica, havendo que destacar,
porém, as obras de iniciativa particular das que foi o próprio Estado a lançar. Um
pequeno equipamento, típico da província, foi o posto dos bombeiros voluntários,
quase invariavelmente constituído por uma simples garagem com fachada de remate
denteado (exemplos na Amadora, estrada de Benfica; Agualva, Rua de Raul de
Almeida, n.° 2; Bucelas, Largo dos Bombeiros Voluntários), e às vezes com uma
simbologia mais ingénua e figurativa anunciando a sua função (Cova da Piedade,
Avenida da Fundação; Ílhavo, Avenida de Manuel da Maia); tornou-se edificação
característica deste período em muitas vilas portuguesas. Garagens particulares
surgiram também, acompanhando as necessidades da expansão automobilística um
pouco por toda a parte: de Guimarães (Avenida do Conde de Margaride, Avenida
de Afonso Henriques) a Serpa (por José Pinto Parreira); do Porto (Passos Manuel,
frente ao Coliseu) a Beja (Bejense, no Largo dos Duques de Beja). Há que juntar os
exemplos lisboetas da Garagem Parisiense (Rua de Andrade Corvo), ou da
Monumental (esta integrada no complexo do Jardim Cinema) (fig, 107), Este último
tipo de equipamento, integrando várias actividades no mesmo edifício, embora não
exclusivo da época, vai ter ampla divulgação, já que as novas possibilidades espaciais
surgidas com o betão armado facilitam a justaposição de actividades. Além do salão
de jogos-cine-esplanada-garagem referido, na Avenida de Pedro Álvares Cabral, com
o interessante jogo de escadas e galerias suspensas ligando o salão ao interior do
próprio cinema (a obra mais interessante de Raul Martins, promissor autor falecido
prematuramente em 1934, autor também da piscina do Hotel Palace da Cúria), há
que referir o conjunto piscinas-sede-Cinema Stadium do clube Sport Algés e
Dafundo, inaugurado em 1930 (Avenida dos Combatentes da Grande Guerra), obra
maior de Raul Tojal, filho do construtor da Vila Berta e que deu nova dimensão
arquitectónica à tradição clubista nacional.
Quanto a cinemas, Raul Martins produzira já um edifício isolado em Lisboa (o
Europa, no local do actual, em Campo de Ourique), em 1930, num desenho artes
Fig. 106
Luso — edifício das
Termas, fonte termal
Fig. 107
Lisboa —
Monumental-Salão de
jogos, Avenida de
Pedro Alvares Cabral
decorativas «pobre», como em 1931 Vítor Piloto projectara o Paris, à Estrela (Rua
de Domingos Sequeira, n.os 28-30)68; mas só no final da década terá Lisboa o seu
primeiro cinema verdadeiramente «modernista», com o esplêndido projecto de
Rodrigues Lima em Santos: o Cinearte, de 1938.
Ainda outro projecto integrando diversas actividades culturais foi o do Clube Naval
Setubalense, de Paulo Cunha, não construído; as piscinas com formas modernistas
abundaram, de resto, nesta fase, como se patenteia nas obras balneares da Granja e
de Espinho (esta dos arquitectos Eduardo Martins e Manuel Passos)69, nos arredores
do Porto, ou ligadas a estâncias termais, como a do Luso [que Cassiano projectara(?)
«modernista» em 1938, simultaneamente e em anexo com o seu hotel, já de gosto
revivalista]. De referir ainda, no Luso, a interessante remodelação do edifício das
termas (de que autor?), com uma Fons Vitae de grande qualidade plástica (fig. 106).
A assistência contou com numerosas creches particulares, De realçar as de Rogério
de Azevedo, no Porto, como o Abrigo dos Pequeninos, a São Vítor, e o projecto de
Carlos Ramos, só parcialmente realizado, para o Bairro Lopes (Creche de Júlia
Moreira, Rua de Adolfo Coelho), em zona popular e oriental de Lisboa — ambos
edificados em espaços declivosos, de «bons ares» e ampla panorâmica). Este último
autor realizou também um primeiro hospital «modernista» para a Misericórdia de
Cascais (Rua de José M. Loureiro, esquina com a Rua de Francisco de Avilez, em
1933), ainda existente (muito desfigurado), e outras obras para institutos médicos, que
se referirão. Esta foi também a época dos sanatórios, «moda» terapêutica que
deixaria construções imensas em algumas áreas montanhosas, com relevo para a do
Caramulo (com uma densidade de galerias, modernistas e hospitalares como não há
no resto do País), na procura dos «ares limpos» e do isolamento... Perto do Porto,
na serra de Santiago, em Louredo da Serra, a Paredes, as ruínas de um romântico e
Fig. 108
Maceira — escola
primária ECL nas
instalações da antiga
Fábrica Maceira Lys:
in revista Panorama.
n.º 9, 1942
Fig. 109
Lisboa — edifícios da
farte desportiva do
futuro Liceu de D.
Filipa de Lencastre, no
Torel: foto Estúdio
Mário Novais
68 Datas referidas em Os Mais Antigos Cinemas de Lisboa — 1896/1939, por Félix Ribeiro, Lisboa, ed. do
Instituto Português do Cinema, 1978.69 Na revista Arquitectura Portuguesa. n.º 72, Lisboa, Março de 1941.
mecenático gesto arquitectónico são vestígio de um outro sanatório nunca concluído70,
tal como o grande Hospital-Sanatório de Lisboa da ANT, que nunca chegou a ser
construído, em projecto grandioso de Vasco Regaleira71; a obra mais importante neste
domínio foi talvez a do grande Sanatório de D. Manuel II, do Porto, com os seus
diversos pavilhões de galenas cobertas. Obra conjunta e excepcional no quadro
assistencial é o da fábrica de cimentos de Maceira-Lys, a Leiria, com as suas casas «do
pessoal» e escolas primárias de cuidada execução (fig. 108).
No domínio oficial, o campo dos transportes e das comunicações recebeu o
incremento que a nova dimensão da «velocidade» introduziu: surgiram as torres de
controlo ferroviário da CP, de elegante corpo prismático ou cilíndrico
(Entroncamento, Rossio, Campolide, por Cottinelli Telmo), edificou-se a Estação do
Sul e Sueste, marítimo-ferroviária, ao Terreiro do Paço, ainda de «sabor» déco
(Cottinelli Telmo, 1928); outros exemplos foram a sede da Direcção de Faróis, de
Paço de Arcos, ou ainda as torres de vigilância do tráfego aéreo de Tancos. As
comunicações por rádio, novidade também em expansão na época, consolidaram-se
nos estúdios e nos postos emissores do Rádio Club Português, na Parede (Rua de
João Soares), em projecto de Tertuliano Lacerda Marques, 1936(?), incentivado por
Botelho Moniz e muito importante na propaganda nacionalista da Guerra Civil
Espanhola (fig. 110), e da Emissora Nacional de Radiodifusão, em Barcarena (projecto
de Adelino Nunes e outros, actual posto de serviços radioeléctricos dos CTT), com
seus volumes «secos» e puristas e as simbólicas antenas transmissoras. Pequenos
postos de transformação e da CRGE povoaram também discretamente a expansão
da rede eléctrica, com exemplos cubistas e industriais na Venda Nova (às Portas de
Benfica), em Oeiras (Rua do Conde de Ferreira, n.° 23), ou na Foz (Porto, Rua do
Funchal, esquina com Rua de Gondarém),
70 Projecto do arquitecto Fernando Ferreira, conforme revista Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e
Edificação Reunidas, n.° 101, Lisboa, Agosto de 1943.71 Conforme revista Arquitectura Portuguesa, n.° 44, Lisboa, Novembro de 1938.
Fig. 110
Parede — antigo
Rádio Clube
Português: ed. Foto
Paço (bilhete-
-postal)
Fig. 111Vila Franca de Xira
— Avenida de Pedro
Vítor, com o edifício
dos Correios; ed.
Colecção Passaporte
«Loty» (bilhete-
-postal)
A acção dos Correios e dos Telefones ficou ligada para sempre aos postos regionais
projectados por Adelino Nunes, arquitecto talentoso e inventivo que se dedicou
especialmente a este tema, criando um sem-número de situações arquitectónicas tão
despojadamente modernas como sabiamente integradas nas vilas e cidades onde foram
edificadas. Começou com os edifícios das cabinas telefónicas e dos Correios do Estoril — o
primeiro, ainda para a Anglo-Portuguese Telephone Company, espécie de «arquitectura-sinal»,
volume minúsculo, mas muito evidenciado por uma boa utilização do lettering e do
encastramento dos corpos; o segundo, denso e expressivo aproveitamento de urna esquina
viária em ângulo. Nunes iria em poucos anos construir obras ligeiras e simples [Vila Franca de
Xira, Largo do Dr. Rodrigues dos Santos (fig. 111): Santarém, Largo de Cândido dos Reis], ou
mais elaboradas e complexas (Figueira da Foz, Largo do Jardim Municipal; Leiria, Avenida dos
Combatentes da Grande Guerra, esquina com Rua de Duarte Pacheco; Setúbal, Avenida de
Mariano de Carvalho; Funchal, Avenida Zargo), sempre usando reduzido leque de materiais
(reboco, tijolo vidrado, pedra) e sabendo valorizar arquitectonicamente os acessos
(habitualmente colocados nas esquinas arredondadas) e os remates do edifício (transformados
em encontro de volumes, com torre suportando o pau de bandeira).
O ensino oficial iria receber também urna «nova imagem» arquitectónica, sendo os liceus então
considerados programas tipicamente «funcionais», muito cedo objecto de concursos públicos
para novas instalações (entre 1929 e 1930), nos quais participaram, aliás, muitos arquitectos da
nova geração, ansiosa por se afirmar. Surgiram assim os projectos de Carlos Ramos para o Liceu
de D. Filipa de Lencastre, no Quelhas, Lisboa (do qual só se construiu a parte desportiva,
entregue depois ao INEF), e para o Liceu de Júlio Henriques, de Coimbra (com Jorge Segurado
e Adelino Nunes), posteriormente ampliado; o trabalho de Cristino da Silva para Beja (um bom
projecto, mas que desempenharia papel de «bode expiatório» no final da década, na campanha
antimodernista e pró-portuguesa na arquitectura)72; e, finalmente, o (outro) Liceu de D. Filipa de
Lencastre, de Jorge Segurado e António Varela, já nos finais da década, para o Bairro do Arco
do Cego [aproveitando fundações doutra obra, a pedido de Duarte Pacheco (fig. 109)]73.
Também se pode referir a obra de Edmundo Tavares para o Funchal, mais convencional no
exterior, mas com bons espaços internos (salão e ginásio).
Outras escolas no domínio do ensino superior seriam lançadas nesta fase: o edifício da
Escola Naval do Alfeite, projecto dos irmãos Rebelo de Andrade, de 1938; a Escola
Superior de Farmácia, projecto de Carlos Ramos, não construído (1934); o anexo à
Faculdade de Ciências, na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa (por Adelino Nunes), com o
interessante volume de caixa de escadas; e, primordial, o conjunto do Instituto Superior
Técnico, à Alameda de D. Afonso Henriques (Lisboa), obra de Pardal Monteiro, que nela
faz a passagem da linguagem ainda afecta ao art déco para uma «monumentalidade
moderna» que o havia de impor como o arquitecto das obras «arejadas» do regime.
O projecto do IST, complexo de edificações onde se equilibra a tensão entre as
dominantes verticais e espectaculares da composição e a concepção «horizontal» e purista
do espaço, recebeu entre 1927 e 1935 a colaboração de muitos futuros autores, como
Veloso Reis Camelo (nos pavilhões laterais), Rodrigues Lima ou Luís Benavente (escadório),
Fig. 112
Lisboa — Casa da
Moeda, Avenida do
Dr. António José de
Almeida
72 Conforme «A evolução da arquitectura moderna em Portugal — uma interpretação», por Nuno Portas, em
História da Arquitectura Moderna, de Bruno Zevi, Lisboa, Ed. Arcádia, 1973.73 Conforme depoimento de Jorge Segurado ao autor mas a sua obra, inicialmente pensada para escola primária,
teria resultado tão satisfatória para o ministro que este decidiu aproveitá-la antes como liceu, tomando este o
nome da obra de Carlos Ramos no Quelhas, nunca concluída.
constituindo-se, na época, por assim dizer, em verdadeira escola de projectar o
edifício público (fig. 113)74.
Passando a obras para serviços oficiais, podem referir-se: o Instituto Nacional de Estatística,
do mesmo Pardal Monteiro, trabalho contemporâneo do IST e seguindo a mesma linha
estética; a primeira «geração» das numerosas agências da Caixa Geral de Depósitos,
onde colaboraram Reis Camelo (projecto para Viseu)75, Raul Martins [com a interessante
— e depois desfigurada — obra de Santarém76, no decurso da qual morreu (de 1934
a 1937), além das mais convencionais e certamente anteriores, de Viana do Castelo e
da Póvoa], e João Simões (com a agência construída em Portalegre77, procurando uma
simbologia mais académica); estas Caixas inseriam-se aliás na tradição anterior das filiais
do Banco de Portugal, ainda do tempo da República, mas que continuaram por este
período, usando normalmente uma expressão mais conservadora dentro do gosto art
déco (por exemplo, a da Horta, Açores). Finalmente, deve realçar-se o ex-líbris da
obra modernista oficial da época, a Casa da Moeda, ao Arco do Cego, em Lisboa,
conjunto de indústria e serviços ocupando com sábia diversidade plástica todo um
quarteirão [de Jorge Segurado - António Varela, 1938 (fig. 112)]78. Na área industrial,
João Simões assinaria também uns armazéns frigoríficos à Rocha do Conde de Óbidos,
com certa força plástica (em 1938), como os irmãos Godinho tinham construído anos
antes os de Massarelos, no Porto (mais «movimentados» e abstractos porém),
Outras funções deste tipo, menos habitualmente interpretadas dentro do quadro
modernista, teriam, apesar disso, as suas obras pontuais, provando assim a aptidão
desta arquitectura para servir as mais diversas necessidades espaciais: matadouros (Vila
Nova de Gaia) e mesmo edifícios para câmaras municipais (Barcelos, Alfândega da Fé).
Uma última referência aos abastecimentos, que com os mercados regionais tiveram
significativo incremento nesta fase: de norte a sul, em Valença, Guimarães, Covilhã,
Buarcos, Lourinhã79, Alpiarça (Rua de José Relvas), Coruche (Rua de 5 de Outubro),
Salvaterra de Magos, Portei ou Almodôvar (Rua do 1.° de Maio, de 1937), são disso
exemplos, entre obras mais elementares ou já projectadas por arquitectos.
R habitação
As formas modernas foram envolvendo também, e gradualmente, as arquitecturas de
habitação; já se referiu o papel de Cassiano Branco como propulsionador da
renovação plástica das fachadas do vulgar prédio de esquerdo-direito lisboeta; na sua
senda trabalhará em seguida João Simões, criando-se com o tempo um «estilo» de
prédio de dimensão média, com formas «modernistas» tipificadas, completamente
vulgarizado e logo transmitido ao meio suburbano e de província, adaptável às
situações mais particulares e insólitas, como a «solução ingrata» que a revista
74 Informação conforme o depoimento de Luís Benavente ao autor.75 Conforme revista Arquitectura, Lisboa, n.° 32.76 Conforme revista Arquitectura Portuguesa, n.° 30, Lisboa, Setembro de 1937.77 Conforme revista Arquitectura Portuguesa, n.° 28, Lisboa, Julho de 1937.78 Que Jorge Segurado modulou em planta e onde quis aplicar um revestimento em tijolo vidrado, que
aprendera como excelente para conservação de edifícios públicos na sua então recente viagem aos Estados
Unidos — aplicação que Pacheco reduziu a algumas superfícies por questão de orçamento. António Varela
teria colaborado nas «elevações» dos alçados (cf. depoimento de Jorge Segurado ao autor),79 Este último do arquitecto Pereira da Silva, conforme Arquitectura Portuguesa, n.° 42, Lisboa, 1938.
Também os de Guimarães, Covilhã e Alpiarça foram obras de arquitectos,
Fig. 113Lisboa — Instituto
Nacional de
Estatística, visto do
Instituto Superior
Técnico, Avenida do
Dr. António José de
Almeida: foto Estúdio
Mário Novais
Arquitectura Portuguesa anunciará em 1937 para «resolver» um lote «impossível»80. As
obras públicas de alcance social, mais raras no uso desta linguagem em tipologia de
prédio colectivo, não deixaram de a experimentar pontualmente, em bairros como o
do alto da Alameda de D. Afonso Henriques (Lisboa), destinado a funcionários da
GNR (projecto de Carlos Ramos?) (fig. 114), ou no chamado Bloco Saldanha, do
Porto (Rua do Duque de Saldanha), de alcance mais operário e iniciativa camarária.
Mas foi no campo das moradias que as formas modernistas se puderam libertar de
constrangimentos e dar «asas» à imaginação criativa: assim o fez Cassiano Branco (na
série de projectos para a Avenida de António José de Almeida, n.os 10, 12, 14 e 24;
ou no caso isolado da Avenida de Columbano Bordalo Pinheiro, demolida), assim o
praticaram outros autores, em áreas socialmente privilegiadas, como o Estoril
(Cristino da Silva, casa própria na Avenida do General Carmona, n.° 4, a Vale
Florido, de 1937; Raul Tojal, a Casa dos Cedros, Rua de Egas Moniz, n.° 14), ou a
Avenida do Marechal Gomes da Costa, no Porto (fig. 115), ou ainda em estudos
para Coimbra (Adelino Nunes) e outras cidades (Viseu, com Rogério de Azevedo).
Mesmo as mais pequenas e anónimas obras exibiam na fachada o simulacro formal
do «moderno», em simples fachas decorativas de ferro losangonais, por todo o país
exibindo o que se julgava ser o sentido do «progresso»..,
Os autores
Habitualmente, as obras que referem os arquitectos mais importantes dos anos de
1920-30 insistem nos nomes dos chamados «cinco grandes», ou seja, Cassiano
Branco, Pardal Monteiro, Cristino da Silva, Carlos Ramos e Jorge Segurado. Seguir-se-á
aqui um método diferente, que, sem diminuir o entendimento da importância do «mestres»,
permita, por um lado, trazer para primeiro plano alguns autores mais esquecidos ou
menos conhecidos e, por outro, referir autores de geração um pouco mais recente e que,
por isso mesmo, permitem um melhor entendimento da nova transformação de valores
Fig. 114
Lisboa — antigo
Bairro GNR, Rua do
Barão de Sabrosa/Rua
de Veríssimo
Sarmento/Azinhaga das
Olaias/Rua de
Domingos Reis Quita,
no alto da Alameda de
D. Afonso Henriques:
foto Estúdio Mário
Navais
Fig. 115
Porto — Avenida
Marechal Gomes da
Costa, n,° 888,
moradia
80 Conforme o número da revista Arquitectura Portuguesa citado na nota 77
da época (casos de Keil do Amaral ou de Arménio Losa); procurar-se-á ainda desenvolver
mais a referência à obra de autores menos monografados (como Cristino ou Monteiro)
do que o trabalho de arquitectos com obra mais estudada ou já referida amplamente ao
longo deste trabalho (Cassiano, Ramos). Claro que com a designação «autores» se
pretende dar relevo aos agentes de uma obra de primeira plana, seja pela sua coerência e
continuidade no tempo, seja pela realização de projectos de excepção.
Rogério de Azevedo (1898-1983) marcou sem dúvida lugar à parte no quadra das
obras portuenses, logo com uma obra de início (1929), a garagem do Comércio do Porto
(fig. 116), construída nas traseiras da sede deste jornal, igualmente obra sua. Ao
tratamento de gosto «artes decorativas», monumentalizado, da sede, de acordo com o
programa dominante na Avenida dos Aliados, Azevedo opôs na garagem uma
expressão purista tão forte e conseguida como só talvez o Capitólio, de Cristino da
Silva, atingiria em todo o tempo modernista. São de referir também as suas creches,
com destaque para a do jornal portuense referido, na Avenida de Fernão de Magalhães,
onde a escala infantil foi bem entendida, entre volumes e baixos-relevos simbolicamente
«infantis» (fig 118); e a casa própria (na Avenida do Marechal Gomes da Costa, n.° 1385),
muito sóbria. Para o final da década, Azevedo procurava já referências regionais que
tentava «casar» com os volumes e espaços dinâmicos do modernismo, como se vê no
Hotel da Póvoa, mais pesado e decorado, que anuncia as suas posteriores e famosas
pousadas (Marão) e escolas primárias dos Centenários, repetidas como modelo pelo
País fora. Nas primeiras obras, porém, foi continuador «natural» de Marques da Silva.
Manuel Marques (1890-1956) foi o autor de uma das melhores lojas desta época, a referida
Farmácia Vitália, na Avenida dos Aliados (figs. 117 e 119), com notável solução gráfica
de fachada e de interior; e também de uma interessante moradia na Avenida dos
Combatentes (cuja decomposição volumétrica em cilindros sucessivos inspirará Siza Vieira
na Casa Beires, na Póvoa de Varzim), em 1933, com Amoroso Lopes; Januário Godinho
(1910-198?) realizou com o irmão engenheiro os armazéns frigoríficos de Massarelos, com
movimentada solução de gaveto (Alameda de Basílio Teles/Rua de D, Pedro V, de 1932-
38), e um «decorativo» conjunto de habitações em banda (Rua de Marques da Silva,
n.° 131, esquina/Largo do Cruzinho), de 1933. Arménio Losa {1908-198?) realizou o edifício
Fig. 116
Parto — Praça de D.
Filipa de Lencastre,
garagem do Comércio
do Porto (arquitectos
Rogério de Azevedo e
Baltasar de Castra)
Fig. 117
Porto — Farmácia
Vitália, Rua dos
Clérigos, n.os 34-37,
pormenor da fachada
Fig. 118
Porto — creche do
Comércio do Porto,
Avenida de Fernão de
Magalhães, esquina com
Travessa de Carlos Passos
Fig. 119
Porto — Farmácia
Vitália, Rua dos
Clérigos, n." 34-37
do chamado Pinheiro Manso, na Boavista (fig. 120), de 1936, e um vizinho prédio de
gaveto (com Rua de João de Deus). No primeiro desenhou uma dinâmica articulação entre
os três corpos horizontais, através dos dois volumes da caixa de escada, num conjunto
exemplar, discretamente decorado com baixos-relevos81; no segundo criou ambiguidades
nos planos da «pele» do edifício, através da discreta movimentação dos panos das varandas.
Poderiam ainda referir-se, sinteticamente, Oliveira Ferreira (1885-1957), o autor «primitivo»
da Clínica Heliântea de Francelos (1926-30), antes referida, com uma interessante moradia
geminada na Avenida dos Combatentes (n.os 418-442); ou José Porto, com a casa de
Manuel de Oliveira (Rua da Vilarinha, de 1933)82, já num plano complementar.
Em Lisboa, Pardal Monteiro (1897-1957) foi o arquitecto-engenheiro por excelência: o
autor das obras públicas mais preciosas do regime, o arquitecto que ensinou no Instituto
Superior Técnico, o autor que manejou com mais conhecimento a tecnologia da
construção, mas que as necessidades pragmáticas dessa mesma construção teve de
«sacrificar» algo da sua capacidade inventiva; as suas obras, sempre elegantes, mas nunca
muito arrojadas, puderam ter sempre forte participação de colaboradores, pois se
baseavam num léxico restrito, seguro e apreensível com facilidade — construir bem e
com segurança era certamente uma preocupação sua. Monteiro, de família ligada às
indústrias do mármore, começou bem, com um prédio de 1920 na Avenida da República,
n.° 49, depois Prémio Valmor (em 1923), prédio cuja fachada acusa a transição das
volumetrias «moles» da arte nova para um art déco mais planificado e geométrico; e, na
mesma avenida ou seus arredores, iria realizar nessa década três moradias, das quais a da
Fig. 120
Porto — edifício de
habitação e comércio
Pinheiro Manso,
Avenida da Boavista,
n.° 2460
Fig. 121
Estoril — palacete e
jardins, projecto do
arquitecto Pardal
Monteiro: foto Estúdio
Mário Novais
81 Acontece os autores desta época renegarem hoje as suas obras dos anos 30; em depoimento ao autor
(1976), Arménio Losa considerava o pinheiro manso ainda impregnado de soluções «impuras», projectado
que fora sem uma consciência teórica sólida, que já as suas posteriores obras dos anos 50 teriam sabidoresolver ou evitar — observação feita a partir de uma evidente óptica funcionalista.82 Conforme Nuno Portas, no artigo já citado e publicado na obra de Zevi História do Arquitectura
Moderna, as informações respeitantes aos arquitectos portuenses foram complementadas com duas obras
entretanto saídas: de Manuel Mendes, o artigo «Casa de Serralves — anos 30, o tempo: arquitecto,
construtor da modernidade», in Casa de Serralves, Retrato de Uma Época, Porto, ed. Casa de
Serralves/SEC, 1988; e o catálogo da exposição Arquitectura-Pintura-Escultura-Desenho — Património da
Escola Superior de Belas-Artes do Porto e da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, Porto, ed.
Universidade do Porto, Museu Nacional de Soares dos Reis, Janeiro-Fevereiro de 1987.
Fig. 122
Porto — Caixa Geral
de Depósitos, Avenida
dos Aliados
Fig. 123
Lisboa — antiga Ford
Lusitana (local do
actual Hotel Ritz),
Rua Castilho: foto
Estúdio Mário Novais
Avenida de 5 de Outubro, n.os 209-211, ganhará novo Prémio Valmor (1929), em rico
desenho art déco. No mesmo estilo, mas mais luxuoso ainda, é o palacete do Estoril, nas
imediações do Casino (fig. 121). Os seus edifícios públicos desta década exibem idêntica
linguagem, em volumetrias elementares, mas ricamente decoradas com toda a panóplia art
déco — da Estação do Cais do Sodré (1928), em Lisboa, à Caixa Geral dos Depósitos
do Porto (Avenida dos Aliados, com grandioso espaço coberto interior a lembrar a obra
de Terra na Rua do Ouro, ern Lisboa) (fig. 122), ou nos edifícios do Instituto Superior
Técnico e do Instituto Nacional de Estatística, já referidos (estes mais contidos e sóbrios
na decoração, a fazerem a passagem para o purismo mais próprio dos anos 30, apenas
com vagos ressaibos déco), Só na garagem da Ford Lusitana à Rua Castilho (1930)
(fig. 123) Monteiro entrou francamente (e excepcionalmente) em jogos de volumes mais
movimentados, valorizando o efeito de esquina, para logo em 1934-37, com a Igreja de
Fátima (Avenida de Berna/Avenida do Marquês de Tomar) e o projecto da nova sede do
Banco de Portugal na Baixa (que ocuparia o sítio da Igreja de São Julião, em vez da qual
se ergueria, em nova e populosa freguesia, o templo dedicado a Fátima) (fig. 124), retomar
desenho mais conservador e decorado. Este desenho poderia definir-se, aliás, como de
síntese entre as artes decorativas, o eclectismo e o «moderno» — fusão que naturalmente
devia servir bem a exigência do tipo de programa oficial ou oficioso a que se destinava.
Com a colaboração inestimável de Almada Negreiros, Monteiro soube renovar e qualificar
a nova sede do Diário de Notícias (1939, Prémio Valmor de 1940), na Avenida da
Liberdade, e as gares portuárias de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos, entrando
já na década de 40 (com possível referência ao modelo da gare marítima francesa de La
Rochelle) defendido contra modelos anacrónicos ou revivalistas, então em começo de
voga, pela linguagem fundamentalmente «técnica» e «neutra» que soube usar.
Cristino da Silva (1896-1976) foi, em certa medida, o oposto de Monteiro: provindo
de família de artistas românticos, afirmados na pintura, talentoso mais do que
esclarecido, foi o autor inventivo e individualista de uma série de obras cuja qualidade
só será comparável à das obras de Cassiano. Bolseiro em Paris e Roma entre 1920-25
(com a pensão Valmor), iria, depois de ganhar a Carlos Ramos as provas de ingresso
em 1933, ser o professor de Arquitectura da ESBAL Entusiasmado com a nova
«arquitectura moderna» nazi, que Speer trouxe a Portugal em 1941, não soube
garantir uma coerência de linguagem, ao contrário de Monteiro (mais defendido este
pela formação técnica e menor ousadia como projectista), tornando-se o principal
mentor estético da arquitectura oficial dos anos 40. Entre 1926 e 1931, Cristino
realizou o Capitólio, salão de festas com cinema ao ar livre sobre a cobertura (uma
das inovações típicas da época), com grandiosos painéis de vidro em desenho art déco
(fig. 126), cuja mobilidade abria a sala ao exterior. Com os seus «tapetes rolantes»,
constituía novidade mecânico-anquitectónica, que o evoluir da moda cedo sacrificou:
logo transformado em sala de cinema fechada (1933), com foyers laterais a diminuírem
os painéis (1935), em obras ainda controladas, foi no decorrer dos anos 50-60 alvo de
contínuas modificações clandestinas que o desfiguraram. Apesar disso, permanece obra
primeira, e talvez maior, do modernismo lisboeta («simétrica» da garagem de Azevedo
no Porto). Além dos liceus [primeiro prémio em Beja (fig. 125) e em Coimbra —
feminino —, segundo em Coimbra — masculino] do concurso nacional de 1930,
Cristino elaborou em poucos anos uma série de bons e inovadores projectos de
habitação e equipamentos: a casa para Bélard da Fonseca na Avenida de António José
de Almeida, n.° 20 (em 1931, Prémio Eva de 1933), estática, concebida quase como
uma villa romana purista; o prédio da Avenida de Bocage (que Frederico George
considerava o seu melhor projecto, já demolido); o da Rua de Alexandre Braga, n.os 4-6
(sede da empresa Amadeu Gaudêncio, em 1932-33); o da casa própria, no Estoril,
Vale Florido, de 1933-35 (fig. 127); e o do Casino de Monte Gordo, com a famosa
consola em betão virada a sul83. Cristino transbordou também a sua intensa actividade
para outros projectos, uns utópicos, outros nunca realizados, até cerca de 1936: além
dos contínuos estudos para o prolongamento da Avenida da Liberdade através do
Parque Eduardo VII, com grandiosos pavilhões-restaurantes e feéricos «castelos de
água» pelo parque fora, que culminam nesse ano84, executou um estudo para o
83 Era a mais profunda consola em betão até então construída — como Cristino da Silva referia ainda comentusiasmo em depoimento ao autor (em 1971),84 Conforme a revista Arquitectura, n.° 27, Lisboa, 1936; Cristino referia ainda no mesmo depoimento (nota 83)como Keil, ao realizar as obras do Parque Eduardo VII, teria «aproveitado» ou «desfigurado» as suas ideiaspara o mesmo local (Keil realizou de facto, de modo mais «intimista», um programa idêntico de equipamentos)
Fig. 124
Lisboa — desenho
para a nova sede do
Banco de Portugal, na
Rua do Comércio,
Baixa, assinado Pardal
Monteiro, 1937: foto
Estúdio Mário Novais
Fig. 125
Beja — Liceu
Nacional de Beja, Ru,
de Luís de Camões:
foto Estúdio Mário
Novais
Fig. 126
Lisboa — edifício da
Capitólio, no Parque
Mayer: foto do
trabalho realizado
para a cadeira de
História da
Arquitectura
Portuguesa da ESBAL
1981
Fig. 127
Estoril — Vivenda
Vale Florido, Avenida
do General Carmona,
n.° 4 [foto com o autor
e proprietário,
arquitecto Luís
Cristino da Silva (e
esposa?)]: foto Estúdio
Mário Novais
Fig. 128
Lisboa — interior do
antigo Café Portugal,
Rossio (actual loja
Valentim de
Carvalho): foto Estúdio
Mário Novais
conjunto desportivo do Jamor e uma espectacular Casa de Repouso para os Inválidos
do Comércio (com Tertuliano Lacerda Marques). Depois da série de lojas dos finais de
30 [o luxuosíssimo Café Portugal (fig. 128)], dedicou-se em pleno ao estudo da nova
Praça do Areeiro, durante o qual a sua linguagem se transformaria profundamente.
Jorge Segurado, que nesta fase trabalharia frequentemente em conjunto com António
Varela, foi revelando uma maior preocupação teórica e um interesse por estudos de
história da arquitectura que o distinguiram dos colegas. Depois da série de lojas já
referidas85, foi à volta da grandiosa Casa da Moeda (1934-48) que toda a sua obra
se articulou, complementada com a do Liceu de D. Filipa de Lencastre, no Arco
Cego (fig. 129)86, de referir ainda a clínica Indiveri Colucci, em Paço de Arcos, de
cuidadosos detalhes (fig. I30)87, ou os pavilhões das Exposições de Nova Iorque e
de São Francisco (1939), já caminhando para uma estética neodecorativa, ou ainda,
em obra seca e despojada, o Lar dos Pobres, das Caldas da Rainha, de 194088. De
António Varela apenas, podem referir-se a ampliação do Hotel das Termas de
Monte Real (fig. 131), bem articulada através do volume envidraçado e cilíndrico, e a
notável fábrica de conservas Algave Exportador, em Matosinhos, infelizmente
demolida, cuja rica diversidade de ângulos, em articulação com o quarteirão, que
preenchia totalmente, recorda a solução da Casa da Moeda (fig. 132) (1938)89,
De Cassiano Branco (1897-1970) já se referiu extensamente a obra principal, virada para
a habitação em Lisboa, bem como os «monumentos» que foram o Éden Cinema, dos
Restauradores (1929-31), e o Coliseu portuense (em 1939) (figs. 133 e 134); de referir
ainda o antigo Hotel Victória, na Avenida da Liberdade, n° 170 (de 1934) — variante,
com inventiva fachada de movimentados volumes, de outros projectos seus para prédios
alfacinhas, desta vez destinada a equipamento (tão convencional em planta como
85 Onde pôde «lançar» a novidade do novo revestimento de chapa metálica aparente nos exteriores, como
referia em depoimento ao autor (1980).86 Conforme a revista Arquitectura, n.° 27, Lisboa, 1936.87 Concebida, a pedido do muito viajado cliente, como um espaço «naval», com «galeria-deck» a toda a
volta da construção [segundo informação da esposa de Colucci ao autor (anos 80)].88 Conforme a revista Arquitectura Portuguesa, n.° 74, Lisboa, Maio de 1941.89 Conforme a revista Arquitectura Portuguesa, n.° 40, Lisboa, Julho de 1938.
Fig. 131
Monte Real —
ampliação do Hotel
das Termas de Monte
Real: na revista
Panorama, n.os 15-16,
1943, p. 45
Fig. 132
Matosinhos — desenho
perspectivado de uma
fábrica de conservas:
na revista A
Arquitectura
Portuguesa, n° 40, de
Julho de 1938
Fig. 129
Lisboa — Liceu de D.
Filipa de Lencastre,
Bairro Social ao Arco
do Cego: foto Estúdio
Mário Novais
Fig. 130
Paço de Arcos —
antigo Instituto
Indiveri Colucci, rua
marginal ao caminho-
-de-ferro
Fig. 133
Porto — Coliseu, Rua
de Passos Manuel: foto
Alvão, Porto
Fig. 134
Porto — Coliseu, Rua
de Passos Manuel: ed.
de C. Conseil de
Vasconcelos (Tabacaria
Africana), Porto
(bilhete-postal)
inspirada em alçado), bem como a dimensão utópica das propostas de urbanização para
a Costa da Caparica ou para a Cidade do Filme, em Cascais (ambas em 1930) — e a
criatividade transbordante e multiplicadora do Café Cristal, também na Avenida da
Liberdade (em 1942, última manifestação «modernista», demolido). Personalidade instável
e forte («cortou» com as obras e os clientes do Éden e do Coliseu), pouco dado a
compromissos ou delicadezas (de quem se contam histórias ligadas tanto às peripécias da
produção como às aventuras amorosas), sofreu desde os finais da década de 30 a
mutação da linguagem purista (da qual tinha, aliás, uma concepção muito pessoal e quase
«barroca») para a do Estado Novo historicista, de uma maneira quase cruel90.
Carlos Ramos (1897-1969) foi o «mestre» culto e sereno que poderíamos contrapor a
um Cassiano «genial». Todo dedicado ao ensino e ao projecto de equipamentos
assistenciais ou educativos, teve no projecto semiabortado do Liceu de D. Filipa de
Lencastre, ao Quelhas (1929-30), e no Pavilhão de Rádio de Palhavã (1928-33) os seus
expoentes modernistas. Sem esquecer creches, hospitais e escolas já antes referidos, há
que destacar também o conjunto de pavilhões muito «à Gropius» para o Instituto
Navarro de Paiva (de 1931), à Estrada de Benfica [parcialmente construídos (fig. 136)], e
o Bairro Municipal de Olhão/Fuseta (em 1925). Neles, a secura e a «planicidade» dos
volumes, além da subentendida «crença» funcionalista, são a prova clara da interpretação
contida e da procura de simplicidade no projecto (o contrário de Cassiano, se se
quiser). Não se quer dizer que, no campo privado, Ramos não tenha tido obras
notáveis, como a sua primeira, a sede da Agência Havas, na Rua do Ouro, n.os 234-242,
na Baixa (de 1921), com expressão entre um art déco (modernizante na época e no
contexto) e um classicismo referido à vizinha sede do Lisboa & Açores, do seu mestre
Terra (linguagem que, simplificada repetiu num delicado baixo-relevo para um prédio à
Rua de Alexandre Herculano, esquina com Rua de Rodrigo da Fonseca, n.° 101)
(fig. 137); ou como os mundanos Casino e Palácio Hotel de Espinho (ambos em 1929),
conjunto tão marcante naquela cidade [ambos já demolidos (fig. 135)]; ou ainda como
90 Ver catálogo Cassiano Branco, da exposição promovida pela Associação dos Arquitectos Portugueses.
1986, organizada pelos arquitectos Hestnes Ferreira e Gomes da Silva.
Fig. 135
Espinho — antigos
cinema e casino: ed.
Colecção Passaporte
(LOTY) (bilhete-
-postal)
Fig. 136
Lisboa — antigo Instituto
do Dr. Navarro de Paiva,
Rua de São Domingos de
Benfica, n.° 18 (construído
parcialmente)
Fig. 137
Lisboa — edifício de
esquina da Rua de
Rodrigo da Fonseca,
n.° 29, com Rua de
Alexandre Herculano
Fig. 138
Porto — Instituto
Pasteur do Porto,
Rua dos Clérigos: fotoo J
Estúdio Mário
Novais
as obras para o Funchal, entre fontanários e o grande sanatório, com curiosas
habitações em banda adaptadas às declivosas artérias da capital madeirense (em optativa
versão «modernista» e «regionalista»). Mas, apesar dessas incursões na vida cosmopolita
[com as referências que são o Bristol Bar (de 1926) e o Café Colonial, das Arcadas do
Estoril (de 1936)], Ramos será lembrado sobretudo pelo sentido didáctico da sua
prática na Escola de Belas-Artes do Porto e pela sua respeitabilidade profissional91.
Keil do Amaral (1910-75), mais novo que os autores referidos, iria ter as suas
primeiras obras já em plena década de 30: celebrado sobretudo pelo Pavilhão de
Portugal na Exposição de Paris de 1937, ou pela primeira obra da gare do Aeroporto
da Portela, de Lisboa [já do início dos anos 40 (fig 139)], é de recordar também o
Instituto Pasteur do Porto, na Rua dos Clérigos, n.° 38 [de 1934, onde interpretou um
«lote gótico» ao modo moderno (fig. 138)]. A sua visão arquitectónica passou pelo
sentido de discrição volumétrica e de integração ambiental, que apreendeu na
arquitectura holandesa contemporânea (de Dudok sobretudo) e que divulgou, de
resto, em obra escrita, atitude rara entre nós. Mas a sua importância e o papel capital
como autor e como actor político verificar-se-iam depois, durante as décadas de 1940-50,
António Couto Martins, que trabalhou ligado ao Município lisboeta, foi também autor
que merece uma referência, quer pelos equipamentos (como o projecto do Mercado
de Eivas), quer, sobretudo, pelas elegantes moradias e prédios que soube construir na
cidade: de destacar as duas habitações no alto da Avenida de Pedro Alvares Cabral
(uma delas, embora desfigurada, existe ainda); a luxuosa Embaixada da Turquia (na
Rua Castilho, com interessante relação com o espaço urbano e impecáveis interiores);
o prédio na esquina da Rua de Alexandre Herculano com a Rua de Rodrigues
Sampaio, n.° 13892; e a casa ao Dafundo, fronteira à linha dos eléctricos marginal.
Utilizando um vocabulário restrito, com preferência pelos volumes salientes em prisma
(as bow-windows em betão), Couto Martins conseguiu obras simples e correctas.
91 Ver catálogo Carlos Ramos — Exposição Retrospectiva da Sua Obra, ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 1986.92 Ver dados deste edifício na revista Arquitectura, n.° 137, Lisboa, Julho de 1980, no já citado artigo do autor.
Fig. 139
Lisboa — Aeroporto
da Portela de Sacavém:
foto Estúdio Mário
Novais ou Horácio
Novais(?)
Referindo basicamente exemplos dos anos 20-30, sugere-se aqui uma viagem por
um modernismo «português» feito de obras anónimas, de «sabor» ou sentido mais
articulado com as sucessivas tradições locais (nos materiais, nos costumes, nas cores).
De facto, estas tradições foram, de algum modo, «transportadas» para o inovador
desenho do art déco ou do funcionalismo, numa síntese de desenho e de formas
que pouco a pouco alastraram à província... Em paralelo, a inovação estilística foi
também, dialecticamente, modificada por essa mesma tradição.
O ninho
Percorram-se as lojas: os doces de Amarante (a Lai-Lai, a Casa das Lerias); das
confeitarias às padarias (a Marcoense, plena de cerâmicas geométricas, em Marco de
Canavezes); dos cafés de Braga (o Astória, A Brasileira e a Nova Brasileira) aos de
Viana do Castelo (a Esplanada Girassol 1930); os mercados com pátio em
Guimarães [torreado e escultório (fig. 140)] e em Valença (triangular e boleado).
Observem-se os painéis com baixos-relevos, de granito e de pedra, ao gosto art déco
em prédios de habitação em Viana do Castelo (Rua de Olivença) e em Braga (Rua
de Eça de Queirós, Rua de Júlio Lima) e em lojas (Sapataria Paiva, de Famalicão) e
garagens (a Garagem Avenida, de Guimarães). Veja-se o chafariz de granito
«construído pela Ditadura Nacional, ano VII — 1934» em Carrazeda de Montenegro...
Abunda a cerâmica: na fábrica com pavilhões de frontão denteado Cerâmica Rosa
Alvarães, a Barcelos, em prédios com revestimento de azulejo ou mosaico, na Póvoa
de Varzim [Rua do Tenente Valadim e Rua de José Malgueira (fig. 142)], em painéis
figurados na escola de Lanheses, a Ponte de Lima.
E há as lojas atlânticas [o pavilhão Diana Bar, na praia poveira, a Barbearia Leão e a
Águeda Nocturna, de Viana do Castelo (fig. 141)] e as do interior (a Casa das
Gravatas, vimaranense, demolida cerca de 1979).
Porto e arredores
Na cidade: respire-se um ambiente estético entre os beaux arts e o art déco, na
Avenida dos Aliados (fig. 147), com cúpulas e torreões; vejam-se os grandes blocos
modernistas do Bolhão (Rua de Fernandes Tomás) ou da Cedofeita (Rua de Pedro
Nunes), cinzentos, pesados e de ondulantes pilastras; ou os pequenos edifícios de lote
estreito, com marmoreados (Rua de Mouzinho de Albuquerque), com cerâmicas [Largo
de Alberto Pimentel (fig. 143), Rua de Santa Catarina] e de volumes puristas (Rua de
Casais Monteiro, Rua de Augusto Rosa e Rua de Lima Júnior). Visitem-se os alegres e
«gráficos» equipamentos, luminosos e por vezes decorados em excesso: da Garagem
Passos Manuel (fig. 144) aos Armazéns Cunhas (fig. 145) (passando pelas setas do Ricon
Peres, da Rua de 31 de Janeiro), com «nos» de néon e sobre frágeis pilastras; avance-se
do edifício comercial Alfredo Moreira da Silva e Filhos (Rua de D. Manuel II) ao Teatro
Rivoli, na Praça de D. João l, com baixos-relevos populares e cénicos...
Os arredores: sintam-se fabris e atlânticos com a Fábrica Progresso, 1935, de Espinho,
a Central de Vilar do Paraíso, à Granja, e a Universal, conserveira de Matosinhos; ou
mais «pequeno-burgueses» com os castiços equipamentos e casas desta última cidade
(o talho O Vencedor, da Rua de Brito Capelo, ou uma moradia na Rua de Tomás
Ribeiro); sejam fluviais e populares com o Club Portuense, da doca de Gaia (fig. 146),
ou o Estrela-Cine, de Coimbrões; ou então «chiques» e saudosos com os abandonados
sanatórios de Montalto (a Valongo) e o demolido Hotel Cidnay, de Santo Tirso. Avancem
decididamente suburbanos com o Cine-Teatro Vitória, da Circunvalação, a Fábrica de
Tecidos da Carvalha, a Gondomar, e o delicado portão do palacete de Miramar...
Fig. 142
Póvoa de Varzim —
edifício na Rua de José
Malgueira, n.° 16
Fig. 140
Guimarães —
Mercado Municipal
Fig. 141
Viana do Castelo —
loja Águeda, Largo de
5 de Outubro
Fig. 143
Porto — edifício no
Largo de Alberto
Pimentel, n.° 23
Fig. 144
Porto — Garagem
Passos Manuel, na rua
do mesmo nome: na
revista Panorama,
n.os 5-6, 1942, página
sem número
Fig. 145
Porto — Armazéns
Cunhas, Praça de
Gomes Teixeira,
n.os 4-22
Fig. 146
Vila Nova de Gaia —
Club Fluvial
Portuense, rua
marginal ao rio,
n.° 108
Fig. 147
Porto — Avenida dos
Aliados: ed. Casa
Emege (bilhete-postal)
Fig. 150
Figueira da Foz —
edifício de habitação
na Rua de Bernardo
Lopes
Fig. 151
Coimbra — Fábricas
Triunfo, estrada para
o Porto
A Beira Litoral
Cinco «núcleos» principais compõem esta densa área, que teve grande
desenvolvimento arquitectónico nos anos 30: um, mais meridional, à volta de Leiria;
outro, envolvendo Coimbra e arredores; outros dois ainda, costeiros, na Figueira da
Foz e à roda da na de Aveiro; e, finalmente, uma área setentrional e interior, da
Mealhada para Arouca, passando pelo Vouga.
As alegres varandas da praia da Vieira, ou as recatadas Termas de Monte Real, dão
o tom de veraneio à área de Leiria, enquanto as solenes fachadas art déco dos
Correios, do Teatro Stephens ou dos Bombeiros, na Marinha Grande, atestam a
importância recente desta cidade. Na região, o geométrico portão da Covina, a
Serração de Madeiras da Batalha, L.da, 1938, ou ainda o já referido conjunto dos
Cimentos Lys, em Maceira, confirmam a sua dimensão industrial. Entre prédios e
lojas, Leiria-cidade tem curiosidades interessantes, como um pórtico de entrada em
parque infantil [Largo de Camilo Castelo Branco (fig. 148)] ou uma fachada do
Laboratório da PSP (Rua do Conde de Ferreira). De referir ainda o cinema de
Pombal, ou as Vias Sacras de Fátima, em sóbrio art déco.
Arredores de Coimbra: vejam-se as Casas da Criança de Figueiró dos Vinhos ou de
Castanheira de Pêra e o antigo Preventório de Penacova (fig. 149), a lembrar Bissaya
Barreto e o Portugal dos Pequenitos (como o pavilhão da Obra Antituberculosa, de
pilares revestidos de «gomos» cerâmicos, tema decorativo sempre presente);
percorra-se Condeixa-a-Nova, com o Mercado Municipal, de 1935, o Cinema
Avenida e alguns prédios de habitação e comércio, a atestarem a única artéria
urbana que cresceu na época (a Rua do Visconde de Alverca).
Percorra-se a Coimbra-cidade, das fábricas [as bolachas Triunfo, do centro e da saída
para norte (fig. 151), as Fundições Gomes Porto], das garagens (Auto-Industrial, na
Rua de Fernão de Magalhães, e Pedros, na Rua da Sofia) e dos abastecimentos e
comércio (o mercado, a Padaria para Todos, na Rua do Brasil, a Casa das
Novidades, da Rua de Ferreira Borges). Veja-se a Coimbra da intromissão modernista
no centro histórico (os Correios e o quiosque fronteiro, o Salão-Restaurante Nicola)
e da desequilibrada expansão habitacional para as colinas (Rua dos Combatentes,
Rua de António José de Almeida, Rua de Guerra Junqueira, Rua de Dias Ferreira).
Visite-se a Figueira da Foz, «espanhola», balnear e festiva, com os equipamentos (o
Centro de Diversões, o Teatro-Parque Cine, a Pensão Café Europa, e a Demétrio),
complementando o Casino e com um sem-número de fachadas habitacionais «super-
art déco» [na Rua de Bernardo Lopes, com «coroa de louros» a encimá-la (fig. 150),
na Rua da Liberdade, com jarrões de cimento adossados (fig. 152)], e, em versão
ainda mais «louca», a Figueira popular e colorida nas casinhas dos arredores [Buarcos
(fig. 153), Lavos, Covas], Isto sem falar nos raros exemplos de «quartel» (Rua de
28 de Infantaria) ou de Igreja Evangélica (Rua das Lamas) ao gosto artes decorativas...
Vislumbre-se a ria: as excêntricas e inventivas moradias à beira da estrada (Vagos,
Ílhavo) atestando a continuidade de uma «casa de emigrante», agora em exibição
«modernista», ou as casas de veraneio da Costa Nova [onde surge uma ousada
Fig. 148
Leiria — Parque
Infantil Tenente-
Coronel Jaime Filipe
da Fonseca, Largo de
Camilo Castelo Branco
Fig. 149
Penacova —
Preventório: ed,
Neogravura, L.da,
Lisboa (bilhete-
-postal)
Fig. 152
Figueira da Foz —
edifício de habitação.
Rua da Liberdade,
n.° 122
consola em betão no embarcamento da ria, agora abandonado (figs. 154, 155)] e de
Ovar-Furadouro, mais «serenas». Aveiro, cidade com a «avenida das garagens
modernistas» (a Lourenço Peixinho, com a Atlantic, a Central, a Trindade) e dos
curiosos prédios de suave consola encurvada e decorações ondulantes...
Para o interior passe-se pelo edifício dos bombeiros da Mealhada (com torre feita
de planos abstractos); por arquitecturas ligadas ao fenómeno termal [a notável piscina
do Hotel Palace da Cúria (por Raul Martins, 1934) (figs. 156, 157)] e ao da viação
rodoviária, tão importante nesta zona pelos anos 30: as estações de serviço da Cúria,
as oficinas automóveis de Sangalhos, a União Ciclista de Águeda — sem esquecer
curiosos edifícios de habitação igualmente em Águeda (Rua de 15 de Agosto) ou a
fachada torreada do Teatro de Anadia. Pelo Vouga, passem-se as zonas de indústria,
com a fábrica de trigo de Sever-Pessegueiro e a de latoaria em Vale de Cambra, ou
os Automóveis Ford e o Lar dos Pobrezinhos (Oliveira de Azeméis). Veja-se ainda a
sede dos bombeiros e o Ninho da Criança, que complementam as fábricas de
chapéus (Nicolau da Costa), de calçado (Ariosta) e de borrachas (Sanjo) de São
João da Madeira. A insólita escola de Arouca aproxima-nos de uma outra paisagem...
Trás-os-Montes e Beiras — o inter ior Norte
São naturalmente pontuais os exemplos de uma estética modernista, tão conotada
com a sofisticação urbana, nas «longínquas» e rurais paragens transmontanas,
Constituem raros e notáveis exemplos a creche Lactário Maria do Carmo Carmona,
de 1935, em Chaves, o Cinema de Macedo (fig. 159) e o Teatro Mirandelense
(fig. 158), pela adaptação das suas escalas ao pequeno meio de província. Outros
equipamentos, como a Câmara Municipal de Torre de Moncorvo, os Bombeiros de
Carrazeda de Ansiães, a Garagem Transmontana, de Bragança, A Gutenberg (estúdio
fotográfico) ou a Garage Avenida, em Chaves, resumem os signos modernistas a
uma caixilharia mais geométrica, a uma cimalha denteada ou a um lettering mais
Fig. 153
Buarcos — edifício de
habitação no Largo da
Lapa
Fig. 154
Costa Nova de
Aveiro — abrigo de
embarcadouro:
«Jubileu de Salazar»,
in Diário da Manhã,
1953
Fig. 155
Costa Nova de
Aveiro — abrigo de
embarcadouro
Fig. 156
Cúria — Piscina
Praia Paraíso, do
Palace Hotel da Curia
Fig. 157
Cúria — Piscina
Praia Paraíso, do
Palace Hotel da Curia:
ed. de Alexandre de
Almeida (bilhete-
-postal)
Fig. 159
Macedo de
Cavaleiros — antiga
Cinema de Macedo,
Rua do
Dr. Luís Olaio
Fig. 158
Mirandela — Teatro
Mirandelense, Avenida
da República: ed. Casa
Fernandes, Avenida da
República, 5,
Mirandela (bilhete-
-postal)
Fig. 160
Chaves — edifício de
habitação art déco
(junto à ponte
romana)
Fig. 162
Vouzela — Instituto
Marista, junto à
estação de caminho-de-
-ferro
Fig. 161
Castelo Branco —
edifício de habitação e
comércio na Rua de
Sidónio Pais
cuidado. O resto são prédios de severa e pesada fachada art déco, tão granítica
quanto possível [Chaves (fig. 160)], ou lojas timidamente modernas (Macedo de
Cavaleiros, Chaves), com a inesperada Casa Estoril, no Pinhão duriense...
As Beiras prolongam esta severidade, mas com um pouco mais de invenção; nos
equipamentos [há os que se alimentam da paisagem de montanha, como o Colégio
Marista de Vouzela (fig. 162), ou os sanatórios do Caramulo, e os que se instalam
no meio urbano, como o Cine-Teatro da Guarda e o prédio das telecomunicações
de Viseu]; e nos edifícios de habitação, como em Castelo Branco [Rua de Sidónio
Pais (fig. 161)], denteados e antropomórficos, em Viseu (de «aventais», no Largo de
Humberto Delgado), na Covilhã (em boa articulação de esquina, na Rua de Marques
d'Ávila) e sobretudo em Lamego (conjugando com originalidade azulejos e granito
(na Rua de Almacave e na Praça do Comércio). Vejam-se ainda algumas lojas mais
ousadas (Farmácias Félix, em Mangualde, e Higiene, em Castelo Branco; a Casa da
Moda, em Vilar Formoso, e A Moda na Covilhã), as raras indústrias que utilizam
simbólica de progresso (Automecânica da Beira, Castelo Branco) e os inevitáveis e
pétreos «chafarizes de inaugurar» (Vila Nova de Paiva).
Fig. 163
Lisboa — vista aérea
sobre o conjunto do
Instituto Nacional de
Estatística e área
envolvente, anos 30
Fig. 164
Lisboa — átrio ele
escada em edifício de
habitação na Rua de
Óscar Monteiro Torres,
n.º 40
Fig. 165
Lisboa — traseiras de
prédio de habitação
com marquise, na
zona da Junqueira
Fig. 166
Lisboa — fachada da
loja Ginjinha
Lusitânia, Rua do
Telhal
Lisboa cidade
A Lisboa modernista é a dos novos equipamentos que isoladamente transformaram
os seus espaços urbanos com símbolos discretos de progresso (o monumental
Terreiro do Paço, que recebeu a Estação do Sul e Sueste; a simples Rua da Palma,
quando integrou a Garagem Lys, no Desterro); é a cidade dos novos bairros, Azul,
das Colónias ou da Bélgica, que, mais populares ou mais «burgueses», foram
ocupando corno ilhas antigos lugares de quintas, hortas ou casas saloias — bairros
arrabaldinos primeiro, geradores de cidade depois (fig. 163).
É a Lisboa dos prédios de rendimento correntes, de quatro pisos, com claras e
geométricas pilastras na fachada (ou aventurosas e «gratuitas» varandas de betão e
abstractas «fachas» salientes), e das reflectoras e luminosas marquises (fig. 165) que
preenchem a traseira (convivendo umas com as outras em logradouros atafulhados
de gatos, estendais e couves); e é também a cidade das caixas de escada ornadas de
azulejos déco (fig. 164) (com tectos de estuque imitando o mármore e
«sofismáticos» candeeiros pendurados), encerradas por portas de chapa exibindo
complexo desenho de curvas e rectas...
É, finalmente, a cidade das «tascas» convidativas e frequentes, com balcão de
mármore e paredes de frisos cerâmicos e de degrades geométricos modulados em
painéis (fig. 166). Ou das padarias de caixilharia exterior losangonal e motivos
vegetais no azulejo interior, com encrespado tecto de estuque,
Lisboa a sul do Tejo
Fig. 167
Setúbal — edifício de
sanitários no cais de
Percorra-se a veraneante e modernista Costa da Caparica, embora aquém da
grandiosa proposta de Cassiano Branco, com o núcleo central articulado à volta do
posto de turismo e do mercado e a feição pequeno-burguesa comprovada pelas
humildes Pensão Santo António (fig. 168) e Hotel Praia do Sol.
Apreenda-se a dimensão colectivista e operária de Almada e da Cova da Piedade,
dada pelos inúmeros equipamentos de utilidade pública (a Escola dos Bombeiros ou
o Teatro da Academia Almadense, as escolas primárias da Rua de Leonel Duarte
Ferreira, ou ainda a Cooperativa Piedense, sempre instalados em eloquentes edifícios
de frontão art déco e volumes puristas); e a ligação umbilical à capital, expressa no
denteado e apilastrado cais de embarque de Cacilhas...
Setúbal merece destaque, com importante faixa de equipamentos dispostos ao longo
dos novos aterros, desde o precursor Mercado de Luísa Todi aos armazéns e
capitanias portuárias, ou ao simples e torreado posto de sanitários (fig. 167) (sem
esquecer o apeadeiro ferroviário do Quebedo, em xadrez cerâmico, ou a Setubauto,
ambos situados nas ligações às estradas do interior). Uma referência ainda às fábricas
dos arredores sadinos (o edifício do refeitório do Outão ou os pavilhões da fábrica
da Sociedade Industrial de Lavradores do Sado); aos prédios de habitação com
alpendre (Morta, Avenida de Teófilo Braga), densos baixos-relevos (Montijo, A Flor
Algarvia), ou pesados efeitos de simetria (Barreiro, Rua do Marquês de Pombal, ou
Sesimbra, Rua de Cândido dos Reis).
Fig. 168
Costa da Caparica —
Pensão Santo António,
na Quinta de Santo
António (Rua de
Almada, n.º 39): ed.
Colecção Passaporte
«LOTY» (bilhete-
-postal)
Fig. 169
Alhandra — conjunto
de habitações na Rua
de Sousa Martins,
n.os 25-43
Fig. 170
Estoril — Esplanada
do Tamariz: ed.
Colecção «DULIA»
(bilhete-postal)
Fig. 171
Paço de Arcos —
sanitários públicos,
jardim (Avenida do
Marquês de Pombal)
Fig. 172
Sacavém — Sport
Club Sacavenense,
junto ao largo do
coreto
Lisboa a norte do Tejo
São múltiplas as dimensões da península de Lisboa: mundana e balnear, com os
casinos (desde o do Estoril, «internacional» e luxuoso, até ao da Rinchoa, promovido
pelos discretos refugiados polacos do nazismo), com as esplanadas e piscinas de
praia [Tamariz, no Estoril (fig. 170)], com os Socorros a Náufragos (Paço de Arcos),
com as estações de eléctricos da turística linha «de Sintra às Azenhas do Mar»
(Colares) e ainda as rendilhadas casas de férias (Praia das Maçãs). Península também
clubista e operaria [o Desportivo de Paço de Arcos, o Sport Club Sacavenense
(fig. l 72)], com as respectivas fábricas, de Sacavém a Vila Franca (José Olaio, Copam,
Litografia Barrault, MEC de Santa Iria da Azoia) e as camionagens (A Barraqueira, de
Olival Basto). Finalmente, península rural e provinciana, com as decorações em
cachos de uva em fachadas de Arruda dos Vinhos, com a Drogaria de Carcavelos
(na Rua de 5 de Outubro, de 1945, demolida) e ainda os sanitários de Paço de
Arcos (fig. 171), os talhos da Malveira (o Central Número 1 e a Salsicharia Moderna)
e o Matadouro de Sobral de Monte Agraço.
A habitação reflecte este quadro, construindo requintadas e opulentas moradias no
Estoril, Sintra ou Caxias, mais suburbanas em Algés e Dafundo (Rua de Cândido dos
Reis, Avenida dos Combatentes), mais grosseiras e afirmativas no Algueirão e no
Cacem, ou ainda populares e poveiras em Alhandra (fig. 169), Santa Iria, Vila Franca
de Xira e Loures.
Completam este quadro os equipamentos, cuja diversidade vai dos cinemas com
«espírito de cidade» (o espaventoso Carlos Manuel, de Sintra, por Norte Júnior, ou
o simples Cine-Teatro, de Sobral) aos utilitários e «chãos» mercados (Amadora),
bombeiros (Canecas ou Sacavém) e «tasquinhas» (a Estrela do Minho, no Algueirão),
A Estremadura
Primeiro veja-se a faixa de praias e falésias, com os agregados piscatórios [as
decorações prateadas e salitradas nas fachadas da Nazaré (fig. 175), viradas ao mar e
ocultando prédios que aproveitam os estreitos lotes da malha urbana para aluguer de
veraneio]; ou observem-se os baixos-relevos e cerâmicas dos policromos e humildes
prédios em Peniche. Visitem-se os núcleos de férias (Santa Cruz e as suas cilíndrico-
-prismáticas Vivendas Maria da Graça, ou a Areia Branca com o Bairro Santos,
núcleo de moradias modernistas à volta do pátio); e os núcleos de termalismo
(o Vimeiro, a Torres Vedras, com a curiosa piscina murada).
Depois penetrem-se as industriosas vilas e cidades, desde Torres Vedras, vinícola e
residencial (com o curioso conjunto da sede dos bombeiros e prédio «da cegonha»,
fronteiro; ou com outros e originais alçados de fachas curvas) (fig. 174), passando
pelo Bombarral, agrícola, das garagens e do intenso comércio (a adega Sadias, a
Garage Avenida ou os talhos, alfaiatarias e armazéns). Termine-se nas Caldas da
Rainha, cidade dos equipamentos e dos parques [uma torreada Garagem Capristanos
(fig. 173), um Museu Malhoa], ou em Alcobaça, com decorados prédios de habitação
e comércio e o Teatro de Korrodi...
Fig. 173
Caldas da Rainha —
antiga Garagem
Capristanos, esquina
da Rua elo Coronel
Soeiro de Brito com
Rua de Leão Azedo
Fig. 174
Torres Vedras —
edifício de habitação
na Rua de Carlos
França, n." 33
Fig. 175
Nazaré — edifício de
habitação, Praça do
Dr. Manuel de
Arriago, n.º 5
Fig. 176
Cernache do
Bonjardim — antiga
garagem da Empresa
de Viação Cernache
(azulejos de Túlio
Vitorino)
Fig. 177
Santarém — Teatro
de Rosa Damasceno
Fig. 178
Almeirim — lagar de
azeite na Rua de
Coruche, n.º 23
O Ribate jo
O «núcleo» à volta de Santarém encerra equipamentos e lojas sofisticadas [na
cidade, o interessante Teatro Rosa Damasceno, às Portas do Sol (fig. 177), a
Peugeot Scalabis ou a Barbearia Elegante, na central Rua de Guilherme de Azevedo]
e também obras características de uma rica região agrícola [o Lagar de Azeite, de
Almeirim (fig. 178), o Mercado de Alpiarça]. Mais a norte, outra área, envolvendo
Tornar (que exibe equipamentos luxuosos, de pequena e próspera cidade de
província, como o Cine-Teatro, de bons interiores, e A Gráfica, com oficinas e
papelaria), inclui, em Torres Novas, uma escultórica central eléctrica (junto ao no
Almonda, no centro da vila); em Cernache do Bonjardim, espaços ligados à
camionagem [a antiga Empresa de Viação (fig. 176)]; e, no Entroncamento, uma
insólita torre (de 1935) com serpenteante escada exterior...
Região de terras «moles», o Ribatejo exibe frequentes revestimentos cerâmicos ou
estucados nas fachadas de habitação (Pontével, Coruche), mostra bairros ou fachadas
que recordam as dos «patos-bravos tomarenses» de Lisboa (Santarém, à Rua do
Prior do Crato, ou Tomar, na Avenida de António da Fonseca), e até inventivas
construções de modernismo quase «vernacular» (em Abrantes, na Rua de Santo
António),
O Alentejo
No Sul parece haver um «casamento» entre a tradição antiga (dos baixos relevos e
motivos geométricos na decoração da arquitectura, de ascendência presumivelmente
árabe) e as interpretações art déco — modernistas que por aqui se vão encontrando
(mais garridas no Algarve, mais caiadas no Alentejo), Isto é visível sobretudo em
construções mais simples, que exibem algumas características vernaculares
interessantes, como a mutabilidade no tempo, a ingenuidade dos motivos ou a
precariedade das soluções, ajudado também pela «terra do barro» que o Alentejo
sobretudo é, permitindo a fácil modelação da forma e o desfrute do claro-escuro.
Vejam-se as cimalhas denteadas ou «em leque» das casas térreas de São Luís (e das
lojinhas do Cercal, com pavimento cerâmico e «abstracto»); mirem-se as imbrincadas
grelhas de cimento da Vivenda Mana Luísa, no Cercal (fig. 179); revisite-se a cimalha
da pequena habitação de Milfontes, que num ano mudou de cores e de expressão
(figs. 184, 185). São as caiações que dão de facto «sabor» alentejano a uma vulgar
frente de prédio (Castelo de Vide), a uma moradia cubista (Crato) ou a uma
garagem de Odemira. Até uma discreta decoração numa adega do Redondo, ou um
painel de azulejos num prédio de Beja (Rua de Mértola) ganham outra dimensão...
bem como os nomes das lojas, desde a luminosa Adega de Sines (fig. 181) à ocre
Sapataria Moderna, de Santiago do Cacem. O ponto culminante deste «casamento»
pode sentir-se na portentosa cimalha da Garagem Bejense, quase uma escultura
(fig. 180).
Prédios de habitação, num gosto art déco mais sóbrio, surgem em Moura (Rua de
Luís de Camões) ou no Redondo (Praça da República); por vezes apresentam
galenas ou «arcadas» (no Cercal, o edifício do Café Pancadinha, ou na estrada de
saída de Ponte de Sor), numa geometria mais invulgar em Montemor-o-Novo (Rua
de Aviz) e em Niza (ao lado do teatro). Mas é mais corrente as construções
surgirem faiscantes na sua caiação branca [o Centro Comercial de Milfontes; em Beja,
Fig. 179
Cercal — edifício de
habitação e comércio
Vivenda Maria Luísa
Fig. 180
Beja — Garagem
Bejense, Largo dos
Duques de Beja
Fig. 181
Sines — Adega de
Sines, Rua de Gago
Coutinho
Fig. 182
Serpa — garagem,
construída por José
Pinto Parreira
(inicialmente para
cinema)
Fig. 183
Estremoz — moradia
na Rua do Teatro
Fig. 184
Vila Nova de
Milfontes — edifício
de habitação popular
na Rua de Vicente
Ferreira, n.º 6 (antes
de 1981)
Fig. 185
Vila Nova de
Milfontes — edifício
de habitação popular
na Rua de Vicente
Ferreira, n.° 6 (pintura
em 1981)
na Rua do Forno; em Odemira e em Campo Maior, em casas frente aos jardins; e
em Estremoz, na Rua do Teatro (fig. 183)].
Moradias mais «abstractas» e «eruditas», com os típicos corpos cilíndricos, surgem
também pela região alentejana, embora de forma pontual: em volume destacado, na
Rua de Mértola (Beja), com esmerado átrio de entrada (e na série da Avenida de
Vasco da Gama); em conjunto muito «lisboeta», na Avenida da Estação, em Évora;
e, finalmente (único projecto de autor identificado), numa obra «paladiana» de
engenheiro algarvio, fronteira a Vila Nova de Milfontes, na foz do no Mira, com
pavimentos em «estrela de vidro» e falsos marmoreados nas paredes...
Os equipamentos distribuem-se de modo esparso por esta vasta província, quase
sempre confinados ao espaço urbano: um elegante hospital de desenho art déco, no
extenso terreiro de Ponte de Sor, um sóbrio Sport Nisa e Benfica e uma elegante e
metálica fachada da H. Vaultier em Beja são temas isolados. Mais correntes são os
mercados (em Almodôvar, compacto, ou em Portel, aberto e linear), os cinemas
(Cine Parque Esperança, em Serpa, ao ar livre; o Vasco da Gama, de Sines; ou ainda
em Ponte de Sor), e as garagens [a já referida de Serpa (fig. 182), ou a
Automecânica, de novo em Ponte de Sor].
Deve fazer-se ainda uma referência ao típico café meridional (em Portalegre, o
Alentejano; e em Évora, o Arcada, na Praça do Geraldo), bem corno às granjas e
fábricas isoladas (a herdade Euroflor de Pegões; a fábrica de Palma, na estrada para
Alcácer), pontuadas por cilindros brancos e extensos volumes caiados...
Fig. 186
São Bartolomeu de
Messines — edifício de
habitação na Rua de
João de Deus, n.º 115
Fig. 187
Praia da Rocha —
Grande Hotel da
Rocha: ed. de Jeremias
J. P. Bravo, Praia da
Rocha (bilhete-
-postal)
O Algarve
Aqui são mais eclécticas as cores e mais delicados os pormenores, por comparação
com o Alentejo: o desejo modernista vê-se de novo nas platibandas [São
Bartolomeu de Messines (fig. 186)], nas fachadas (em Olhão, Rua de João de Deus,
Rua de Cândido O Ventura; em Loulé, Rua de Portugal) e nas lojas (Casa Argentina,
Olhão).
O turismo, que já se foi desenvolvendo por esta época na faixa costeira, exprimiu-se
de forma ainda discreta e quase ingénua: no romântico Grande Hotel da Praia da
Rocha, casarão de subtis contornos art déco (fig. 187), ou nas inventivas e miniaturais
casinhas de férias, em Monte Gordo e na Praia da Rocha (fig. 188).
Nas cidades devem destacar-se: o núcleo de equipamentos em Portimão (o cinema
maior, Cine Parque, Café Cine, quiosque e Capitania, ao Largo do Dique); o
conjunto de habitações de Faro (Rua de João de Deus e Rua Justino Cumano); e as
fábricas e bairros operários de Olhão/Fuseta. Olhão regista nesta época o maior
incremento de edificações, em toda a província. Ainda de referir ocasionais edifícios
de habitação e comércio [Portimão, Praça da República (fig. 189)], ou de lojas (a
Casa Dias; em Tavira, de divertido lettering).
Fig. 188
Praia da Rocha —
moradia Mirante,
Avenida Marginal
Fig. 189
Portimão — edifício
de habitação e
comércio na Praça da
República, n.º 18
Fig. 190
Funchal — pátio do
Mercado dos
Lavradores, Rua de
Fernão Ornellas
Fig. 191
Funchal — edifício
dos Correias, Avenida
Zargo
As ilhas — a Madeira
Na ilha, as manifestações modernistas resumem-se praticamente ao Funchal e aos
arredores e são dominadas pela obra maior de Edmundo Tavares: o Mercado dos
Lavradores (fig. 193), que remata a Avenida Ornellas — expansão viária principal da
época — com uma inventiva diversidade de volumes torreados e de espaços
interiores [com destaque para o pátio e a lota (fig. 190)] e que ocupa todo um
quarteirão; é ainda de referir o Liceu Jaime Moniz, menos interessante, mas
igualmente concebido com largueza (sobretudo o salão de festas e os átrios), e o
grandioso sanatório dos arredores, a lembrar os melhores do Caramulo, e o falhado
projecto de Carlos Ramos para essa finalidade; os Correios, de Adelino Nunes, na
avenida modernista mais central, a Avenida Zargo [já referidos, com grande «força»,
no desenho sóbrio da fachada simétrica (fig. 191)] e a fábrica Casa Leacock, à
Avenida do Infante, vasto e convencional edifício, suporte da indústria dos bordados.
Além destes projectos maiores, devem assinalar-se os prédios dispersos, como os do
actual Turismo, o dos fotógrafos Perestrellos, ou o do Café Apoio, centro de
convívio ribeirinho por excelência. No resto da cidade encontram-se as lojas
sofisticadas, típicas do meio insular [exemplo, a Mimo, na Avenida Zargo (fig. 192)],
as moradias timidamente modernas da Avenida do Infante (sempre com um telhado,
a disfarçar os «excessos» modernos da cobertura em laje de betão), os chafarizes de
pedra vulcânica envolvendo azulejos...
Fig. 193
Funchal — Mercado
dos Lavradores, Rua de
Fernão Ornellas
Fig. 192
Funchal — loja
Mimo, Avenida Zargo
Fig. 195
Horta, Faial —
Sociedade Amor da
Pátria, interior
Fig. 194
Furnas de São
Miguel — Hotel Terra
N ostra, entrada
Outras ilhas — os Açores
Neste arquipélago, é a ilha de São Miguel a que mais evidencia o legado modernista,
e, se isso se deve, por um lado, à sua tradicional primazia, relaciona-se, por outro, e
sobretudo, com um «caso» muito especial, o da acção do Eng.º Manuel António de
Vasconcelos, técnico culto e viajado, aguarelista e músico, que, interessado na
arquitectura, construiu de tudo um pouco, centrando a sua actividade à volta da
Sociedade de Turismo Terra Nostra.
Em primeiro lugar deve citar-se o esplêndido Hotel das Fumas, caso único no País,
ainda hoje conservado quase impecavelmente, de interiores concebidos até ao
mínimo pormenor com as melhores madeiras e estuques (figs. 194, 197 e 198);
depois, a remodelação do fronteiro Casino (de 1937), a loja de Informações-
-Turismo, em Ponta Delgada (de 1934), e as decorações da Exposição Industrial das
Fumas. Assim terá o Eng.º Vasconcelos sonhado o modernismo açoriano na sua terra
mais «exótica» — as Furnas — e ligado ao tema adequado a alimentar o progresso
na região — o do turismo,
Além destes trabalhos há ainda a assinalar, de sua autoria, a casa própria, na Avenida
de Gaspar Frutuoso, e a inovadora Barbearia Gil — mármore rosa sobre uma
esquina de solar tradicional e basáltico (fig. 196), ambas em Ponta Delgada; e, em
Angra, na ilha Terceira, o banco do Montepio, onde soube valorizar uma esquina da
Rua da Sé (hoje o Banco Português do Atlântico). Além destas obras, em São
Miguel, o mais são os azulejados e sóbrios Balneários Municipais, o Jardim Antero de
Quental (ambos em Ponta Delgada), os Lacticínios do Loreto (na Povoação) e
esparsas lojas e moradias (Água de Pau, Furnas)...
No restante arquipélago, é o clube Amor da Pátria, da Horta (no Faial) (fig. 199),
que se segue em importância, com a sua generosa aplicação de mármores e
estuques em monumental art déco, a sua sala de sessões de esplêndidos vitrais e
lustres (fig. 195), com jardim de Inverno delicado e íntimo. Nas outras ilhas, as obras
modernistas são muito pontuais: o Café Atlântida, de Vila do Porto (Santa Maria),
uma moradia em Santa Cruz das Flores, uma fachada no Pico...
Fig. 196
Ponta Delgada —
Barbearia Gil
Fig. 197
Furnas de São
Miguel — Hotel Terra
Nostra: foto Nóbrega,
Ponta Delgada
Fig. 198
Fumas de São
Miguel — Hotel Terra
Nostra, desenho aguarelado
do Eng.º António de
Vasconcelos
Fig. 199
Horta, Faial —
Sociedade Amor da
Pátria
Agradecimentos 5
Introdução 6
E V O L U Ç Ã O T É C N I C A E A R T Í S T I C A
NOVOS MATERIAIS E TECNOLOGIAS 10
O ferro 1 1
As primeiras obras 12
À volta de 1890 — o ferro «urbaniza-se» 14
O ferro em plena arquitectura da cidade 15
A decadência 21
Uma síntese 23
O betão armado — os primórdios 25
Os anos 20 — «a arquitectura de betão» 27
A charneira de 1929-30 28
Os outros materiais — vidro, plástico, luz 33
O PERCURSO ESTILÍSTICO 36
A arte nova 37
A moda e as lo|as 38
O azulejo, «alma» da arte nova portuguesa ., 38
Casas, ambientes e exotismos 41
Pormenores, materiais e interiores 42
Fábricas e garagens 43
Uma arte nova portuguesa? 44
Vulgarização e rarefacção da arte nova — transição para o art déco 46
Estilo «artes decorativas» — o art déco 51
A génese 52
Caracterização 54
Formas e matenais 57
Do primeiro «moderno» ao advento do nacionalismo 63
Génese em Portugal 63
Linhas dominantes 64
A habitação 67
Aproximação do nacionalismo relações com a arquitectura 69
ÍNDICE
A EVOLUÇÃO DA SOCIEDADE E A A R Q U I T E C T U R A
DA MONARQUIA À REPÚBLICA 72
Desenvolvimento urbano, instituições, utopias 73A era dos equipamentos 77Os autores 81
O ESTADO NOVO — DAS OBRAS PÚBLICAS À VULGARIZAÇÃO DE UMA NOVA ESTÉTICA 86
A arquitectura e a ideologia — da propaganda às exposições 87
Símbolos e concursos 91
A «arquitectura efémera» 93
O urbanismo 94
As «obras» — das pontes e viadutos ao mobiliário urbano 101A divulgação de um gosto — comércio, equipamento e habitação 105
Os equipamentos 107
A habitação 115
Os autores 1 1 6
O M O D E R N I S M O E M P E R C U R S O R E G I O N A L
O Minho 129Porto e arredores 129A Beira Litoral 133Trás-os-Montes e Beiras — o interior Norte 134Lisboa cidade 139Lisboa a sul do Tejo 141Lisboa a norte do Tejo 143A Estremadura 144O Ribatejo 145O Alentejo 146O Algarve 149As ilhas — a Madeira 1 5 1Outras ilhas — os Açores 155