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Universidade Federal De PernambucoCentro De Filosofia e Ciências HumanasDepartamento de Ciência PolíticaDocente: Professor Dr. Marcelo de Almeida MedeirosAlunos: Arthur Silveira; Carlos Maciel; Fabio Espíndola; Helena Lins; Dayanne Aguiar.

Kant – À Paz Perpétua

Resenha

Recife- Outubro de 2010

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KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008. 88p. ISBN 978-85-254-1758-9

O Autor:

Immanuel Kant nasceu em 1724 em Königsberg na Prússia, cidade na qual ele

também viria a falecer. Realizou vários trabalhos em várias ciências, destacando-se sua

atuação na matemática, física, nesse campo ele propôs uma teoria sobre a formação

do sistema solar, e filosofia, campo ao qual pertence a obra analisada nessa

resenha.Além de cientista brilhante, e muito claramente por casa disso, foi professor

universitário. É, por muitos, considerado a encarnação da Razão Pura.

A Obra:

À Paz Perpétua é um pequeno tratado dividido em duas seções, dois

suplementos e um apêndice.

Na primeira seção constam os artigos preliminares para a Paz Perpétua entre os

Estados. Esses seriam seis leis de aplicabilidade necessária para o objetivo final de paz

e contém regulações sobre a autonomia dos Estados, os tratados de paz, a economia

dos Estados e a própria guerra.

A segunda seção é introduzida por uma passagem na qual o autor fala sobre a

instituição do estado de paz. Logo depois vem o primeiro artigo definitivo para a Paz

Perpétua, o qual estabelece que a constituição civil do Estado deve ser de natureza

republicana pois só assim ela emanaria de uma fonte legitima e pura de poder. O

segundo artigo definitivo traz o ideal de Kant sobre a formação de uma liga federativa

chamada de Liga dos Povos, que acabaria por gerar uma Liga de Paz que, por sua vez,

habilitaria a Paz Perpétua. O terceiro e último artigo trata da possessão que todos os

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homens tem sobre o planeta, e, em conseqüência disso, do direito de hospitalidade do

qual todos os homens gozam.

No primeiro suplemento Kant demonstra o papel da natureza como ator para

que exista a garantia de paz, ele ainda faz uma espécie de abordagem histórica sobre a

transformação da sociedade e fala sobre a impossibilidade da coexistência entre o

espírito bélico e o espírito comercial. No segundo suplemento é abordada a relação

entre os súditos filósofos e o Estado e como os primeiros podem influenciar as ações

do segundo no que diz respeito à guerra e à paz.

O apêndice também é dividido em duas partes. Na primeira o autor procura

exteriorizar a relação entre moral e política e o desacordo que existe entre esses dois

conceitos.

Nota-se um ponto singular na discussão filosófica de Kant quando o autor

declara sua fé em uma paz perpétua que se constrói porque a razão tem mais força do

que o poder, e aquela condena absolutamente a guerra como um procedimento de

direito, tornando a paz como dever imediato de um Estado de Direito, porém não sem

antes ter-se assegurado um contrato dos povos entre si.¹; ²

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Primeira seção, que contém os artigos preliminares para a pazperpétua entre os Estados.

1º Aqui é abordado que qualquer tratado de paz deve ser feito de modo

inteiro e verdadeiro. Para Kant, os tratados de paz não buscam resolver as causas das

guerras, não sendo válidos por esse motivo. No caso de existência de reservas mentais,

de quaisquer matérias, seria apenas uma suspensão temporária das hostilidades e não

a paz verdadeira, dado que tais reservas para uma futura guerra hão de vir à tona num

momento posterior, para enfim instalar novamente um estado de guerra. Portanto,

somente um tratado de paz pleno encerraria de vez quaisquer destas pretensões.

Traçando um paralelo com o mundo contemporâneo, pode-se observar que o tratado

que pôs fim à Primeira Guerra Mundial também colaborou, por meio das suas

conseqüências, para a eclosão da Segunda Grande Guerra, ainda mais devastadora do

que a Primeira.

2º No segundo momento, Kant diz que haveria subjugação da moral de um

Estado

independente, tornando-o, em suas palavras, “uma coisa”, se caso se pudesse

dispor desse Estado sobre herança, troca, compra ou doação. Isto seria indigno pois

somente a própria sociedade dos homens integrantes daquela nação poderia deliberar

sobre a ordenação da mesma. Um Estado, argumenta Kant, é feito de pessoas que, por

terem autonomia, não podem ser vendidas, doadas, trocadas. A disposição ilegítima

de um Estado seria contrária ao acordo original, sem o qual não haveria de se falar em

direito de um povo.

3º Nesse artigo Kant discorre sobre a ameaça latente representada pela

manutenção de exércitos permanentes. Isso se dá pois tal formação belicosa

incrementa a possibilidade de um embate entre os Estados pois, a manutenção de

exércitos exigiria grandes investimentos e, por isso, “a paz torna-se mais onerosa do

que uma guerra curta, são assim eles próprios causas de guerras ofensivas para

desfazerem-se desse peso”. Portanto Exércitos permanentes (miles perpetuus) devem

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desaparecer completamente com o tempo. O autor ainda propõe que manter o

combatente sempre em prontidão é contrário ao “direito de humanidade”. A

formação de exércitos só seria pertinente se esses forem de caráter voluntário e

agirem apenas na defesa contra nações estrangeiras.

4º Aqui há a sugestão Kantiana de que não deve ser feita nenhuma dívida

pública em relação a conflitos exteriores do Estado; o Estado não deve se endividar a

não ser a despeito de investimentos necessários à sua manutenção interna; deve-se

evitar o sistema de crédito pois ele acentua a beligerância por estar, a qualquer

momento, suscetível a cobranças que sobrepõem os tesouros dos Estados os levando a

prejuízos e falência. Ademais, esse artigo condena a dívida feita com o objetivo de

iniciar ou manter uma guerra, cujo pagamento será efetuado com recursos públicos.

Somada à inclinação inata do ser humano à guerra, o endividamento do Estado seria

um obstáculo à Paz Perpétua.

5º Esse artigo contém uma ideia de condenação à ingerência de um Estado

sobre outro no que diz respeito às constituições ou qualquer outro tipo de assunto

interno. Isso afetaria grandemente a autonomia do Estado influenciado e portanto, na

busca pela paz, não há justificação plausível para tanto. Aqui é justificada a

manutenção de um exército para a defesa de ataques externos pois, a invasão de um

Estado por outro provoca uma instabilidade generalizada àquele invadido.

6º O sexto e último artigo desta seção determina que mesmo a guerra deve ser

feita com meios honestos e suficientes, para que os excessos bélicos não inabilitem a

paz futura. Ou seja, nenhum Estado em guerra com um outro deve permitir

hostilidades que tenham de tornar impossível a confiança recíproca na paz futura;

como tais são: emprego de assassinos, envenenadores, quebra da capitulação,

instigação à traição no Estado com que se guerreia, etc. Uma guerra que não obedeça

a essa determinação deve ser veementemente reprimida; ela extrapolaria os limites

dos conflitos, infiltrando-se no estado de paz e minando-o completamente.

Entretanto, ma característica marcante das guerras e conflitos armados da atualidade

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continua sendo a utilização de estratégias que visam desmoralizar, desacreditar e

destruir o adversário e o seu Estado. Essas estratégias não são usadas apenas durante

o período de lutas, são também manipuladas para justificar e obter apoio de Estados e

populações, de obter aval para invasões, assassinatos em massa, perseguições,

detenções e torturas, entre tantas outras atrocidades que um ser humano pode

cometer contra outro.

Ao final da primeira seção, Kant discorre sobre a natureza e a aplicabilidade

das leis propostas na mesma. As leis propostas nesses artigos preliminares são todas

de natureza objetiva mas algumas (como a 1,5,6 e, em algumas ocasiões a 2) seriam de

aplicação imediata. Às outras caberia discussões e valorações quanto às circunstâncias

nas quais estas deveriam ser executadas, contudo não existe a possibilidade de elas

não serem aplicadas.

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Segunda seção, que contém os artigos definitivos para a pazperpétua entre os Estados.

Na pequena introdução para a segunda seção, Kant discorre sobre a instituição

do estado de paz. Para o autor, o estado de paz deve ser deliberadamente instituído

através de um estado legal. Isso é feito através de uma advertência: O estado de paz

entre os homens que vivem lado a lado não é um estado de natureza, que antes é um

estado de guerra². Ele tem de ser, portanto, instituído. Não existe o direito, no qual as

hostilidades, declaradas ou não, estão sempre presentes; como foi dito pelo autor no

trecho a seguir, “a paz deve portanto ser assegurada por estruturas jurídicas

institucionais, ou seja, o estado de paz deve ser fundado [...] por meio do direito

público: deve-se sair do estado de natureza e entrar num estado civil [...], um estado

no qual é legalmente definido o que é de cada um”.

Primeiro Artigo Definitivo para A Paz Perpétua

A Constituição civil em cada Estado deve ser republicana.

Para Kant, somente as Constituições republicanas seriam fundada na única e

legitima fonte de poder – o povo, e portanto são as únicas capazes de conduzir o

Estado à Paz Perpetua. “Nesse sentido, eles (Kant e Rousseau) anteciparam que a

opinião pública, se devidamente efetivada, seria suficiente para prevenir a

guerra”(Carr, 2001). A Constituição civil em cada Estado deve ser republicana. A

constituição de um Estado deve fundar-se nos princípios da liberdade das pessoas,

enquanto componentes de uma sociedade, da sua dependência a uma legislação

comum e da sua igualdade como cidadãos. Kant explica que, ao reconhecer a

cidadania das pessoas, a constituição republicana implica a sua participação nas

decisões, ao contrário de uma outra, em que cabe aos governantes decidir sobre os

rumos do Estado.³ Nesse sentido, Kant não aceita a democracia, pois esta seria

necessariamente um despotismo; na medida em que não é unânime, contraria a

vontade de alguns e isto contradiz a própria vontade geral.

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Kant ainda cita outras formas: Autocracia e Aristocracia. Kant ainda afirma que

“toda forma de governo que não é representativa é propriamente uma não-forma,

porque o legislador não pode ser em uma mesma pessoa ao mesmo tempo executor

da sua vontade”. Desse modo, mesmo que imperfeitas, essas duas maneiras de

constituir-se um Estado, ainda comportam o instituto da representação, que possibilita

o republicanismo. No caso da democracia despótica, isto seria impossível “por que

nela todos querem ser senhor”. A justificativa de tal argumento seria a de que quanto

menor o número de dirigentes maior a possibilidade de republicanismo.

Segundo Artigo Definitivo para a Paz Perpétua

O direito internacional deve fundar-se em um federalismo de EstadosLivres.

Aqui, Kant descreve a latente condição de “embate” inerente à própria

existência dos Estados; diz dessa relação não mediada por uma legislação exterior, que

se assemelha a um Estado de Natureza para os indivíduos. Kant chama tal situação de

degradação animalesca da sociedade e diz ser premente sair desse estado acordando

sobre um direito internacional.

Por isso, para sua segurança, os Estados devem compactuar sobre uma

constituição civil semelhante para todos. Disto seria resultado uma “Liga de Povos”,

que não seria o mesmo que um Estado congregando povos, pois cada um tem e deve

conservar a sua individualidade. A liga de povos resultaria de um contrato mútuo entre

Estados livres, aliados por objetivos e compromissos comuns, ou em outras palavras,

com direitos e deveres recíprocos. Formada a liga de povos, haveria condições de se

criar a liga de paz que, gradualmente, congregaria todos os Estados, tornando possível

o desejo dos povos, individualmente e amparados por suas constituições republicanas,

de atingir um estado de paz perpétua, isto é, duradoura, porque assentada no

compromisso de direitos e deveres mútuos. Somente uma tal liga de nações poderia

assegurar a instituição do estado de paz, ou a paz perpétua, como Kant a denomina.

Kant acreditava que existe um princípio mau nas pessoas e, por isso, o estado de

natureza, aquele que independe de leis exteriores, é o da guerra4.

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Já que não existe um tribunal externo, os direitos das nações não podem ser

buscadas por via legal, é natural, portanto, a utilização da guerra pois nessa cada um é

juiz da sua própria causa. Entretanto, segundo o Direito Internacional, seria

condenável recorrer-se da guerra para garantir os direitos; ao contrário, devesse

buscar um Estado de Paz de imediato. Kant ainda diz que a única forma de assegurar

tal natureza pacífica em um Estado seria através de uma Liga de Paz, que se

distinguiria de um Tratado de Paz por pretender encerrar todas as guerras e não

somente uma.

Finalmente, Kant propôs que a alternativa de uma Liga de Paz aconteceria

mediante a uma livre união federativa, iniciada por um Estado Republicano que atrairia

os outros Estados para juntos garantirem a liberdade geral, de acordo com o Direito

Internacional. Nesse caso, o livre federalismo seria o fundamento da união entre as

nações; o artifício para dar credibilidade à seguridade dos direitos de cada Estado sem

a necessidade de um poder Legislativo Supremo.

Terceiro Artigo Definitivo para A Paz Perpétua

O direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal.

Kant já falava do “direito da posse comunitária da superfície da Terra”, e que,

em virtude de suas dimensões limitadas, somos obrigados a conviver uns com os

outros, tornando-se necessário exercitar a tolerância mútua. Nesse artigo, Kant

enfatiza que um estrangeiro deve ser tratado com cordialidade em terra estranha, por

direito, já que todos somos co-proprietários do planeta, e não por benevolência alheia.

Há também a possibilidade de abrir mão de tal hospitalidade caso ela não implique sua

“ruína”. E mais, enquanto o estrangeiro portar-se de modo pacífico, não poderá ser

tratado de forma hostil.

As áreas inabitáveis, que ainda assim podem ser transpostas, permitindo que

os homens se aproximem uns dos outros, permitiriam seu uso fundado no direito de

“superfície, que compete ao gênero humano comunitariamente”. O direito de

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hospitalidade, contudo, abrange somente o contato amistoso, segundo Kant, aos que

procuram um intercâmbio com os nativos. Assim, pode haver um intercâmbio

generalizado que aproxime o gênero humano de uma consolidação constitucional

cosmopolita.

O direito de posse comunitária da superfície da Terra, o direito de visita e o

direito de hospitalidade promoveriam a comunicação e o relacionamento pacífico

entre pessoas dos mais variados pontos do mundo, e contribuiriam para transformar

em realidade o ideal de uma “constituição cosmopolita”. Esse desejo não é uma

fantasia, disse o autor, “mas um complemento necessário do código não escrito tanto

do direito de Estado como do direito das gentes para um direito público dos homens

em geral e, assim, para a paz perpétua.” O tema dos direitos das pessoas e das gentes

permeia essa obra de Kant, sempre à luz do uso da razão para o seu reconhecimento e

garantia. 5

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Primeiro Suplemento

Da Garantia da Paz Perpétua

Aqui, Kant enfatiza a natureza como sendo o grande ator no proporção da

garantia de paz. Para chegar ao estado pacífico, os homens precisariam passar por

inúmeras situações discordantes que são criadas pela mesma, ainda que contra a

vontade deles. Coube à natureza assegurar que os homens pudessem habitar a uma

região da Terra. O autor continua ao afirmar que esses mesmos homens fossem

dispersados pela guerra para regiões mais inóspitas a fim de povoá-las; finalmente os

mesmos foram obrigados a determinar relações de legalidade para com a terra em que

habitavam e a para com os outros.

Os homens começam, então, a se organizar em comunidades, a ter os mesmos

desejos e objetivos e, a partir daí, a entrar em conflitos. Através desses conflitos,

começa a haver dispersão, o que torna possível entender como povos tão semelhantes

passaram a habitar regiões tão diferentes, e povos tão diferentes a habitar regiões

fronteiriças. Com o tempo, os indivíduos passaram a desenvolver ferramentas,

sedentarizar e aprimorar técnicas de defesa e ataque para garantir a sobrevivência. Da

necessidade de sobreviver, os povos começaram a estabelecer relações de comércio –

antagônica às guerras, para o autor – garantindo, pela primeira vez, uma relação

pacífica entre seus semelhantes, mesmo aqueles habitantes de regiões mais distantes.

Nesse suplemento Kant assemelha-se a Thomas Hobbes no que se diz respeito

a guerras. Para ele, a guerra não precisaria de um motivo particular para ocorrer; ela

simplesmente faz parte da natureza humana. Por séculos, enquanto não havia uma

unidade institucional que garantisse o controle instintivo da população, os homens

mergulharam em inúmeros conflitos para garantir suas vidas. Como já disse Hobbes, “o

estado de natureza é condição de guerra”4.

Assim como as guerras, todas outras ações humanas seriam frutos de impulsos.

Kant exemplifica com a formação dos Estados. Para ele não há apenas pressão

interna, gerando caos e desordem, mas também a externa, sendo necessária a

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construção de uma identidade nacional, de uma força que controle e estabilize a

situação adversa. Portanto, a formação de um Estado se faz necessária pois, com um

plano interno desordenado, é muito mais fácil ser devastado por forças externas. Ao

reconhecer a necessidade de formação dos Estados, o autor preconiza a constituição

republicana em relação ao direito dos homens, mas reconhece a dificuldade em

instituir e conservar o republicanismo, pois admite que os homens têm inclinações

egoístas e não seriam capazes de seguir tal constituição, o que traz de volta o tema

abordado no seu Primeiro Artigo Definitivo.

Ao continuar com sua discussão, Kant reconhece que a separação em muitos

Estados vizinhos já é uma situação geradora de guerra, não obstante, ele admite que

essa realidade é melhor do que deixar que haja uma força abrangente que tome conta

de um território muito maior, uma vez que tal magnitude territorial é mais difícil de ser

controlada, o que desembocaria num governo despótico, despido de piedade e que

geraria o caos, implodindo e, por final, degenerando-se numa anarquia.

Finalmente, reiterando o que foi citado anteriormente, Kant afirma que o

espírito comercial e a guerra não podem coexistir e se substituir. Com o desenvolver

de uma sociedade comercial, o dinheiro se torna uma potência, não havendo mais

vantagem na eclosão da guerra —esta representaria apenas prejuízos. O homem,

então, faz de tudo para evitar que haja conflito. Dessa forma, manipulando os

caminhos dos homens, a natureza perpetua a paz.

SEGUNDO SUPLEMENTO

Artigo Secreto para a Paz Perpétua

Nesse suplemento, Kant faz alusão a existência de um segredo nas negociações

do Direito Público. Tal segredo consistiria na convocação silenciosa de filósofos, ou

seja, súditos para discursarem e debaterem sobre a conduta da guerra e a conclusão

da paz. Porém, são apresentados questionamentos sobre tal convocação. Afinal, se o

Estado tem a conotação natural de ser o detentor da sabedoria suprema, levar em

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consideração os pensamentos dos filósofos representaria um enfraquecimento da

autoridade estatal.

Porém, Kant afirma que está nesses questionamentos a razão para tais

convocações serem dadas em conjuntura confidencial. O autor também afirma que o

Estado não deve dar preferência às opiniões dos filósofos em detrimento das

sentenças do jurisconsulto, mas somente levar em consideração o que foi dito por

eles. Para ele a função do jurisconsulto é aplicar leis existentes, não refletir sobre elas.

Por fim, Kant reafirma a necessidade a existência da consulta aos filósofos e a

manutenção da livre expressão desses. Porém ele determina, numa contradição clara

ao pensamento platônico, que não se deve esperar que filósofos assumam o poder,

nem que reis se tornem filósofos. Uma vez no poder, o filósofo teria seu livre

julgamento da razão corrompido.

APÊNDICE

I. SOBRE O DESACORDO ENTRE A MORAL E A POLÍTICA A PROPÓSITO DA PAZ

PERPÉTUA.

Nesta primeira divisão do apêndice, o autor introduz seu estudo fazendo uma

análise sobre a inter-relação entre os conceitos de moral e de política. A moral é

definida como um conjunto de leis que indicam um dever-ser, ou seja, a forma como

devemos agir, uma espécie de doutrina teórica do direito. A política, por sua vez, se

apresentaria como a doutrina jurídica aplicada que deve ser limitada pela moral. Kant

passa então a constatar que a moral, para os práticos, que a vêem como mera teoria,

serve para fundar a recusa destes à teoria da paz perpétua, já que a vontade individual

de todos os homens de querer viver sob um regime de liberdade não é suficiente se a

vontade de todos em conjunto não corresponde ao mesmo desejo e, para que esta

vontade coletiva se instaure, faz-se necessário o uso da força sob cuja coerção pode

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ser fundada posteriormente o direito público. Esse pensamento é resumido então com

uma frase, “Quem uma vez tem o poder nas mãos não deixará prescrever as leis pelo

povo.”

Ao dar continuidade ao seu tratado, para então discorrer sobre então, sobre as

formas de agir de cada um dentro dos diversos contextos políticos, Kant reflete sobre a

relação entre a política e a moral e estabelece os conceitos de político moral e de

moralista político. Tem como o primeiro aquele que toma os princípios de prudência

de estado de modo que estes possam coexistir com a moral. O segundo, é definido

como aquele que forja uma espécie de moral conveniente à vantagem de homem de

Estado. Dá especial atenção à forma de agir dos chamados políticos moralizantes,

nomeados por ele de estadistas astuciosos. Esse tipo de estadista seria crente de que

podem resolver o problema de uma coerção fundada conforme à lei somente segundo

princípios de liberdade, a partir do empirismo. Kant diz que eles o fariam utilizando-se

de máximas sofísticas como: Fac et excusa: sendo aquela onde se aproveita a ocasião

que se possui para usurpar arbitrariamente um determinado direito e justifica-se

somente após o fato, para que assim se evitem objeções que poderiam atrasar o feito;

Si fecisti nega: aquilo que foi cometido para levar o povo à desgraça ou à revolta, e que

foi provocado pelo governante, deve ser negado até o fim; Divide et impera: desunir os

chefes menores e separa-los do povo para, tomando partido deste último, governar

sozinho.

Em seguida, Kant analisa a influência do direito na vida dos homens, relatando

que aqueles que detêm o poder não poderiam retirar tal conceito de suas vidas,

mesmo discordando dele ou sabendo que irão, por ventura, infringi-lo, por serem

incapazes de exibirem este seu lado sofístico publicamente. Então, é levantada a

proposição de como se resolver essa questão, concluindo que se deve partir do

princípio formal, característica intrínseca ao político moral e através da qual a paz

perpétua é desejada não somente como um bem físico mas também como “um estado

proveniente do reconhecimento do dever”, em suas próprias palavras.

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Ademais, Kant descreve os problemas da prudência de Estado e da sabedoria

de Estado e conclui que a solução para o primeiro está em encontrar a sabedoria

necessária dos mecanismos de funcionamentos naturais para que isto possa ser usado

a favor do fim pretendido, afirmando que, mesmo assim, quaisquer que sejam estes

mecanismos, serão sempre incertos quando este fim for a paz perpétua; já a solução

do segundo problema é uma consequência direta da solução do primeiro e se imporá

de forma autônoma. É notável, dentro da obra Kantiana uma defesa constante dos

ideais de justiça para alcançar uma dominação da razão dentro das constituições

estatais, a qual irá se sobrepor ao difícil caminho da violência no objetivo maior dos

estados, que, para ele, seria a Paz Perpétua.

II. DA HARMONIA DA POLÍTICA COM A MORAL SEGUNDO O CONCEITO TRANSCENDENTAL DO DIREITO PÚBLICO

A segunda divisão do Apêndice é marcada por uma análise da forma como o

direito público se manifestaria de forma mais completa; segundo o autor, através da

forma da publicidade. Kant considera a publicidade como o fundamento para que se

perfaça o direito como um todo e lhe conceda o caráter justo que lhe é atribuído.

Julga que, em suas próprias palavras: “Todas as ações relativas ao direito de outros

homens cuja máxima não se conciliar com a publicidade são injustas”. O faz dessa

forma por acreditar ser a declaração de publicidade uma forma de levantar a

resistência do próximo à minha pretensão jurídica, e desta forma satisfazer o critério

de justiça, tão almejado.

A partir de então tece três considerações sobre a forma que a aplicação da

publicidade manifesta-se no que se concerne: ao direito de Estado, ao Direito

Internacional e ao Direito Cosmopolita. A publicidade, no primeiro caso, seria limitada

apenas pela intenção de uma rebelião para derrubar um chefe tirano. Publicar suas

intenções só frustraria a possibilidade de um povo acabar com a injustiça do regime

tirânico; No caso do direito internacional a publicidade é inválida para os estados que

se encontram em um pressuposto estado jurídico e, dentro deste estado, utilizem a

máxima da publicidade na intenção de manter a paz entre eles mesmos ou em relação

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a outros estados, nunca, porém, para realizar novas aquisições. As próprias máximas

do direito internacional segundo Kant, são incompatíveis com o princípio da

publicidade. Por fim, resolve calar-se com relação ao direito cosmopolita por

considerar este como muito semelhante ao direito internacional.

Por fim, argumenta quanto a compatibilidade da política com a moral,

“somente numa associação federativa (...) e toda a prudência de Estado tem por base

jurídica a instituição da primeira no seu maior alcance possível...”. A política, conclui,

está em acordo com a moral apenas em seu sentido público, ou seja, enquanto ética, e

não em seu significado enquanto doutrina do direito, pois termina por explicar “todos

os deveres como pura benevolência”.

_____________________________________________________________________________________________________

¹ Nessa passagem, podemos notar um vínculo com o pensamento de Thomas Hobbes, ao

comparar a necessidade que os dois autores frisam do contrato social. A nível kantiano, a

acordo entre os povos de maneira ampla e sem fronteiras para assegurar o

comprometimento do Estado para com a paz; e na perspectiva hobbesiana, a

responsabilidade estatal de garantir a segurança dos indivíduos a partir da aceitação

desses quanto a soberania absoluta daquele.

² Porém, dialeticamente, também é possível afirmar a existência de uma aproximação com

a tese rousseauneana. Mesmo que Kant, adiante em seu texto, nao conceba a existência

humana como puramente boa e selvagem, a semelhança com o pensador francês reside no

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momento em que Kant admite a congregação e a cooperação entre humanos para garantir

um bem maior, ou a "volontée generale", defendida por Jean-Jacques como "aquela que dá

voz aos interesses que cada pessoa tem em comum com todas as demais, de modo que, ao

ser atendido um interesse seu, também estarão sendo atendidos os interesses de todas as

pessoas."; “uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada

associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece

contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes” (Pinto, M. M. Cadernos

de Ética e Filosofia Política 7, 2/2005, p. 83-97.)

³ John Stuart Mill, no século XIX, reiterará essa necessidade da participação efetiva dos

cidadãos nas decisões políticas, com sua defesa da chamada Democracia

Desenvolvimentista, em Considerações sobre o governo representativo (1981: 19), quando

ele diz que "o mais importante mérito que pode possuir uma forma de governo é o de

promover a virtude e a inteligência do próprio povo". Inclusive, para ele, um dos critérios

primordiais de avaliação de um governo é a medida em que ele tende a aumentar ou

diminuir "a soma de boas qualidades dos governados, coletiva e individualmente".

4- Mais uma vez nota-se um diálogo com o pensador clássico Thomas Hobbes: O conflito

iminente entre os indivíduos perpassa toda a obra desse autor, fortalecendo a tese de que

o Estado de Natureza, o homem não subjulgado ao poder coercitivo de um Estado

organizado, reflete a real essência humana na sua predisposição ao conflito. Kant também

afirma em sua obra essa potencialidade e, de forma similar, (ainda que não defenda, em

momento algum, o "Leviatã" hobbesiano em forma de monarca absoluto) admite que se

faz necessária a negociação da paz entre os homens a partir de um contrato; esse

dispoditivo de fuga ao cerne destrutivo da humanidade embasa-se na rapacidade de

racionalização humana.

5 Não é difícil notar a inspiração, ainda que indireta, desse pensamento na constituição

federal brasileira, que destaca em seu recordista Artigo 5° a "inviolabilidade do direito à

vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade" e, em seu artigo 4° dizer : "A

República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes

princípios:

I - independência nacional;II - prevalência dos direitos humanos;III - autodeterminação

dos povos;IV - não-intervenção;V - igualdade entre os Estados;VI - defesa da paz;VII -

solução pacífica dos conflitos;VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;IX - cooperação

entre os povos para o progresso da humanidade."

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Referências Bibliográficas Adicionais

CARR, Edward H. The Twenty Year´s Crisis. New York, NY, HapperCollins 2001. 244p

HOBBES, Thomas. Leviatã – ou A Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo, SP, Martin Claret, 2009. 485p

WEFFORT, Francisco C. (Org.). Os Clássicos Da Política Volume 1. São Paulo, SP, Ática, 2006. 287p

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