FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR
Vice-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação - VRPPG Centro de Ciências Humanas - CCH
Mestrado em Psicologia
Lana Mara Andrade Nóbrega
Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação
pessoa-ambiente.
Fortaleza 2009
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Lana Mara Andrade Nóbrega
Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente.
Dissertação apresentada ao curso de Mestrado em Psicologia do Centro de Ciências Humanas da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia, na linha de Pesquisa Ambiente, Trabalho e Cultura nas Organizações Sociais, sob a orientação da Profa. Dra. Sylvia Cavalcante.
Fortaleza 2009
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______________________________________________________________________ N754l Nóbrega, Lana Mara Andrade. Literatura e psicologia ambiental : uma análise do livro memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente / Lana Mara Andrade Nóbrega. - 2009. 124 f. Cópia de computador. Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2009. “Orientação : Profa. Dra. Sylvia Cavalcante.”
1. Psicologia ambiental. 2. Psicologia - análise. I. Título. CDU 159.9:504 ______________________________________________________________________
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Universidade de Fortaleza Mestrado em Psicologia Ambiente, Trabalho e Cultura nas Organizações Sociais
Dissertação intitulada “Literatura e Psicologia Ambiental: uma análise do livro Memorial de Maria Moura a partir da relação pessoa-ambiente” de autoria da mestranda Lana Mara Andrade Nóbrega, submetida à banca examinadora constituída pelos seguintes professores: _________________________________________________________________ Profa. Dra. SYLVIA CAVALCANTE. - Orientadora (Universidade de Fortaleza - UNIFOR) ___________________________________________________________________ Prof. Dr. JOSÉ PINHEIRO (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN) ___________________________________________________________________ Profa. Dra. LEÔNIA TEIXEIRA (Universidade de Fortaleza - UNIFOR) ___________________________________________________________________ Profa. Dra. VIRGÍNIA MOREIRA (Universidade de Fortaleza - UNIFOR) _____________________________________________________________________ Prof. Dr. HENRIQUE FIGUEIREDO CARNEIRO (Coordenador do Curso de Mestrado em Psicologia – UNIFOR) Fortaleza, ____ de ___________ de 2009 Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz- Fortaleza, CE – 60.811-905 – Brasil - tel: 55 (0**85) 3477-3000
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Na disciplina de Estética, ainda na graduação de Jornalismo, o Prof. Dr. Márcio Ascerald pediu um dia que nós, seus alunos, trouxéssemos para a aula algo que fosse para nós uma representação da beleza. Eu levei uma foto dos meus pais. Agora, já no mestrado em Psicologia, é mais uma vez a imagem deles que me vem à mente quando penso em beleza. Dedico este estudo a essa beleza que eles despertam em meus olhos. A meus pais: esses dois seres de tantas palavras, de tantos silêncios e de tantos momentos. A esses dois seres que são para mim, lugar. Pausa. Referência. Origem. Lar. A eles, que têm que lidar sempre com o que eu sou e com o que eu deixo de ser. Que amam tão generosamente que sonham para mim sonhos que sequer são meus. Que se entregam a tal ponto que sequer sabem direito onde eles terminam e onde eu começo. Que querem tanto cuidar que teimam em fazer de meus espaços, seus espaços. A meus pais: por toda a graciosidade e encantadora confusão que seu amor gigante me traz. A eles o meu amor mais fiel e a minha gratidão por representarem tudo o que representam.
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Agradecimentos:
Agradeço a Deus, a essa Força maior, a essa Energia que nos guia e acompanha, que
rege nossos espaços e ser. Para mim, se estamos longe dessa energia, é como se
estivéssemos em um rio lutando com as águas com o nosso próprio corpo. Estamos ali,
nos debatendo, soltos, exaustos, tentando sobreviver à violência das águas. Molhados,
engelhados e com frio. Mas quando estamos em sintonia com essa energia maior, é
como se estivéssemos nesse rio dentro de uma canoa sólida. Ainda somos nós ali, na
água. Mas a canoa nos protege. É nela que a força das águas bate. Dessa canoa,
podemos guiar melhor nosso percurso no rio, escolher nossos caminhos sem a falta de
sobriedade da exaustão, do desespero. A canoa nos equilibra, se torna um escudo entre
nosso corpo e o mundo (a água). Ao mesmo tempo, de dentro da canoa, notamos a
fragilidade do nosso corpo. O que nos faz entender muito sobre a vida e a necessidade
de alimentar o espírito. De que o que deve ser enfeitado é nossa alma, e não nosso
corpo. A minha gratidão, então, a essa ‘canoa’, que me faz me sentir acompanhada e
protegida sempre.
Agradeço, mais uma vez, aos meus pais. Adalberto e Socorro. Por sua preocupação
ininterrupta, por seu amor imensurável, por sua dedicação constante, por seu colo
sempre.
Agradeço aos meus irmãos, Nóbrega e Francisco, por torcerem sempre por mim, por
serem companheiros e por acreditarem em mim sempre. Por me incentivarem e por
terem paciência com o mau humor matinal de sua única irmã.
Agradeço à minha avó materna Espedita Moreira (in memorian). A ela que continua
sempre tão presente em mim. Que é ainda lugar e que enfeita ainda a minha vida com o
amor imenso que me deu durante os dezesseis anos que a tive a me mimar.
Agradeço à minha avó torta, Marta Agildes (in memorian), pelas histórias contadas com
exageros, entonações e suspenses na varadinha. Essas histórias ainda continuam a me
embalar.
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Agradeço à minha avó paterna, Adalice Gomes Nóbrega, por sua doçura, orações,
torcida e veia artística.
Agradeço à minha orientadora, a Profa. Dra. Sylvia Cavalcante: por ter sido apoio e
incentivo sempre. Por ter acreditado no meu tema antes que eu mesma tivesse a certeza
de estudá-lo. Por ter ultrapassado as fronteiras acadêmicas e se tornado uma voz e
presença que ilumina a minha vida e escolhas. Obrigada por todas as orientações, no
sentido mais amplo do termo, por essa caminhada de dois anos ter sido feita sempre
com o seu apoio e entendimento. Obrigada, ainda, por eu ter a certeza de seus conselhos
e presença no tempo além-mestrado.
Agradeço aos professores que compõem minha banca: Prof. Dr. José Pinheiro, por
tanta acessibilidade e incentivo. Por ter quebrado a distância hierárquica que às vezes se
faz entre docentes e discentes, por ter me dito palavras que continuarão sempre comigo
e por ter, assim, me feito crer que eu tinha algo relevante a falar. Profa. Dra. Leônia
Teixeira, por sempre ser sinônimo de doçura e sobriedade. Por despertar em mim
sempre a vontade de ouvi-la mais. Pelos livros emprestados durante tanto tempo, pela
confiança e disponibilidade. Pelos conselhos e orientações que me foram tão válidos e
essenciais em minha pesquisa. Profa. Dra. Virgínia Moreira, por sempre me deixar
divagar e por sempre me dar a liberdade de sair dos padrões acadêmicos. Por se
empolgar comigo em minhas viagens escritas, por ser ‘mulher de azul’ e, com isso, me
fazer livre para que eu me enfeite de azul também. – A vocês três, meu muito obrigada!
Pelo seu sim em participar da minha banca, pela sua paciência com as trocas de datas,
pelo tempo que vocês usaram nas leituras e observações em minha pesquisa, por vocês
serem a banca que eu tinha almejado ter.
Alguns professores, ao falarem conosco como alunos, na realidade chegam a tal
profundidade que suas falas entram em nosso âmbito pessoal: no Mestrado em
Psicologia, esse professor foi, para mim, o Prof. Dr. Francisco Cavalcante Júnior. A
disciplina dele me realinhou e me fez ter a certeza de continuar no mestrado. Foi nessa
disciplina que as várias partes de mim entraram em acordo sobre o caminho que meus
pés queriam seguir. Há muito ainda do reflexo de sua disciplina em minha pesquisa.
Muito obrigada por ter sido um grande ‘iluminador de palco’.
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Ao entrar no Mestrado em Psicologia, juntamente com minha grande alegria por tudo o
que eu aprenderia e poderia ter espaço para refletir sobre, veio a preocupação e
dificuldade financeira em dar seguimento a esse curso. Então, meu imenso
agradecimento à CAPES e ao Mestrado em Psicologia, representado na pessoa do
Coordenador Prof. Dr. Henrique Carneiro. Foi a bolsa integral PROSUP-CAPES que
fez acontecer meu percurso nesses dois anos de mestrado. Obrigada de coração ao
fomento que fez esta pesquisa possível.
Agradeço à minha família acadêmica, o Laboratório de Estudos das Relações Humano-
Ambientais, LERHA, da UNIFOR. Em especial à professora Terezinha Elias, pela
doçura, carinho e apoio sempre, e, principalmente, pelo exemplo extraordinário e
contagiante que é; à professora Tereza Matos, por sempre me dizer palavras de apoio,
por sempre torcer por mim, por sempre tecer observações de incentivo e me fazer se
sentir querida; à professora Ângela Araújo, por sua torcida e presença sempre; Aninha,
Salete, Madson, Thiago, Andrezza, Danny, Leo e demais membros do LERHA, que
sempre dão as mãos e enfeitam de sensibilidade o estudo das relações pessoa-ambiente.
Agradeço aos meus amigos-irmãos, que a vida me deu de presente e transformou em
família, que foram já testados pelo tempo e espaços. A eles que sempre têm tanta
paciência comigo e que foram imprescindíveis nessa caminhada acadêmica: Timbal
Filho, meu irmão de alma, por seu companheirismo único, de ontem, de hoje e de
sempre, por sua presença que vence qualquer distância, por sua preocupação e amor, por
ser sempre um sorriso e aceitação, por fazer tudo em seu alcance para sempre me dar a
mão. Cláudia Donato, por ser uma irmã quase de sangue, por me fazer querê-la ao meu
lado para o resto da vida, por sorrir meus sorrisos e chorar minhas lágrimas, por ser colo
certo. Danise Gondim, meu presente de mestrado: que era colega e se tornou amiga e se
tornou irmã, por todas as conversas tidas, por toda a cumplicidade, pelas reflexões e
conclusões, pelas inúmeras risadas e páginas escritas, por ter feito a minha bagagem tão
mais leve e significativa, por ser exemplo e inspiração, por ser meu ouvido acadêmico e
por sempre me dar a segurança confortante de seu aval, por compartilhar comigo os
seus sorrisos, e, assim, também me fazer sorrir. Luiza Matos, por ser parte de mim, por
ser ouvido certo e entendimento, por ser conselheira e consciência, por ser certeza e
vontade de estar-se com sempre. Paula Neves, por ser sempre a risada mais espontânea
e contagiante, por ser minha companheira de praia, por estar sempre de peito aberto para
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me dar conselhos sobre o meu sentir, por ouvir de forma aberta e carinhosa sempre.
Janaína Lisboa, por ser sorriso certo, por ser inteligência agitadora, por sempre me
trazer a sensação de que ‘a vi ontem mesmo’. Ticiana Bezerra, pelo seu constante sim a
qualquer pedido meu e pelo seu apoio sempre.
Agradeço também as minhas amigas de mestrado, que fizeram esses dois anos bem
mais divertidos e reflexivos. Bem como as amigas agregadas que ganhei ao longo de
nossas ‘terapias’ de quinta-feira.
Agradeço a tantos outros amigos, de vida e de momentos. Entre eles, Camila e
Fabrício, o querido casal-doçura pelo apoio e sorrisos certos sempre; Kamila Bossato,
pelas gargalhadas-explosões e reflexões geradas em nossas quartas-feiras; Loredana
Sofia, em muitos sentidos, um anjo em minha vida; Weaver Lima, por ser sócio de
projetos e de sonhos e por me fazer lembrar da parte mais forte de mim.
Agradeço aos professores da graduação que continuam a ser voz constante em mim, são
eles: Prof. Márcio Ascerald, meu eterno orientador; Profa. Kátia Patrocínio; Profa.
Gabriela Reinaldo e Profa. Inês Sampaio. Ainda, agradeço ao Prof. Dr. Ricardo Jorge,
que me orientou e apoiou na especialização em Teorias da Comunicação e da Imagem,
na Universidade Federal do Ceará, UFC, feita juntamente com o Mestrado em
Psicologia.
Agradeço à minha família como um todo: por sempre correr para perto na hora da
alegria e da tristeza. Em especial, agradeço à minha madrinha tia Noeme, por seu apoio,
confiança e carinho sempre. Agradeço também à minha tia Verinha, por ter sempre se
lembrado de oferecer sua ajuda ao longo desses dois anos de mestrado.
A categoria de espaço hoje, mais do nunca, cresceu. Paralelamente ao nosso mundo
físico, temos um outro mundo: virtual por não ser palpável, mas real em relação aos
vínculos que faz criar. Agradeço assim, aos amigos que tenho nesse mundo e que se
misturam à minha vida e espaços concretos e os enfeitam da encantadora complexidade
que vem junto com qualquer coisa humana. Em especial, agradeço ao Fabrizio Lima,
por tantas palavras trocadas, por tantas imagens perfeitas, por tantos sorrisos e
cumplicidade. À Helena, por ser espaço para mim, por ser ouvidos e reflexões; à
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Adriana, por tantas gargalhadas inesquecíveis, por sua leveza, benevolência e bom
humor; à Ká, por tantas dicas literárias e reflexões inestimáveis; à Luna, pelas palavras e
pensamentos conjuntos, pelas sincronicidades e boas intenções; à Luisa, pelas músicas,
vídeos e preocupações com minha pesquisa; à Mari, pelo apoio constante e pelos
sorrisos contagiantes.
Ainda, como não poderia deixar de ser, agradeço aos tantos autores que preenchem esta
pesquisa e a minha vida: de razão-de-ser, de significados e de sentir. De forma muito
especial agradeço à Rachel de Queiroz por ter criado a Maria Moura, por ter escrito
personagens-espaço, por ter criado casas tão repletas de simbologias que permitem que
entremos nelas com nossa alma. Se Rachel de Queiroz foi meu amor nesses dois anos,
Clarice Lispector foi minha amante. Agradeço à Clarice por ela ter existido, por ela ter
sentido tudo o que sentiu: por ela ter sorrido os sorrisos que sorriu, e por ter chorado as
lágrimas que chorou. Clarice foi, e é, o meu ‘cubico’: é nela que guardo o meu cantinho
de sorrisos e reflexões. Ainda, não posso deixar de citar o homem cuja alma eu gostaria
de ter colada à minha: Joseph Campbell, que sempre tem o que me dizer sobre tudo.
Agradeço com toda a intensidade do meu ser à vida. A essa existência terrestre que em
minha opinião nada mais é do que a alma sendo levada à escola. A vida é minha paixão
maior, meio para tudo o mais que se possa experienciar e sentir. A minha gratidão,
então, pelo tempo e espaços que ela me dá. Pelo que ela oferece e desperta.
Se minha lista de agradecimentos é extensa é porque sou pelo outro. É na relação com o
outro, e nos reflexos que eles geram em mim, que se dá a relação comigo mesma. É ao
descobri-los que descubro a mim mesma. É através do outro, seja pessoa, animal, livro,
música, lugar, objeto etc, que me desperto para mim e para minha existência enquanto
ser único. Clarice Lispector diz: “A felicidade aparece para aqueles que choram. Para
aqueles que se machucam. Para aqueles que buscam e tentam sempre. E para aqueles
que reconhecem a importância das pessoas que passam por suas vidas”. E realmente
seriam necessárias muito mais páginas do que as que formam esta pesquisa: porque sou
sim grata a todos os que passaram por minha vida e que são os responsáveis por eu ser
exatamente o que sou hoje e, ainda, por eu ser matéria transforme, que anda de mãos
dadas com o tempo e com os espaços.
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Filmes têm diferentes receitas para grandes sopas, servidas para 300, 400 pessoas por vez. Um livro é
um jantar solitário.
Michael Ondaatje
A palavra pertence metade a quem a profere e metade a quem a ouve.
Michel de Montaigne
A leitura de um bom livro é um diálogo incessante: o livro fala e a alma responde.
André Maurois
O livro já nasceu perfeito, é leve, prático. Ele não precisa de um aparelho para fazer funcionar. Ele só
precisa de você.
Ruy Castro
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Um texto bonito LANA NÓBREGA
Na verdade a beleza é um sorriso. Você vê o que lhe é belo e pronto: você simplesmente sorri. Mas o que é um texto bonito? As imagens que vamos formando, imaginando, à medida que lemos o texto? O sentimento que o texto desperta em nós? Acho que todas as anteriores. A depender do momento, do texto ou do espírito. O que sei é que precisamos de um texto bonito. Precisamos alimentar o que há de belo. Precisamos estimular o que sentimos que é bom, o que nos faz sonhar, o que nos faz ver tudo um pouco mais colorido. Um texto bonito nos traz leveza, nos faz terminar a leitura com um sussurrante “é verdade...!”. Quase como uma confissão a si mesmo. Quase como a mensagem de um anjo que nos foi enviada para que ainda acreditássemos em algo. E não somos nós quem encontramos um texto bonito. É ele que nos acha. Chega às nossas mãos ou vem à nossa mente no momento da precisão. E a verdade é que necessitamos do texto bonito. Que traga à tona boas lembranças, que abrace nossos sonhos, que endosse nossas esperanças. No entanto, creio eu, não é o autor quem faz o texto bonito. Ou se o faz, faz para si – porque é, também, leitor. E é o leitor quem faz o texto bonito. É o leitor quem vê o que de belo há ali. É o leitor quem confessa para si: “é exatamente isso que eu sinto. Que eu precisava ouvir. Perfeito isso!”. Perfeito sim. Porque na verdade só nós somos capazes de reconhecer as peças que nos faltam. E um texto bonito é isso. Um pedacinho seu que estava perdido por aí e que você, de repente, achou.
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Resumo
A Literatura ao guardar relações humanas, é, também, guardadora de espaços. O leitor,
ser onipresente na obra que está sendo lida, expõe-se não apenas à realidade presente na
obra, mas às associações que esta desperta em relação as suas próprias vivências. Em
uma releitura do livro Memorial de Maria Moura (MMM), de Rachel de Queiroz,
percebemos no trecho em que a personagem-título abraça as paredes de sua casa em
despedida, o teor ambiental contido nesta obra. Dessa forma, este estudo constitui-se de
uma análise literária feita a partir da relação pessoa-ambiente presente neste livro.
Como recorte, analisou-se as falas de Maria Moura e a relação dela com os ambientes
presentes em sua vida. Nesta relação, foram identificados alguns conceitos da
Psicologia Ambiental (PA), ramo da Psicologia que estuda as relações pessoa-ambiente.
Entre os conceitos encontrados, foram escolhidos para serem trabalhados ao longo deste
estudo os de territorialidade, apropriação e vinculação ao lugar. Além disso, como
elementos-chave dos estudos dessa área, foram ainda discutidos os Pressupostos da
Psicologia Ambiental nesta análise. Esta pesquisa teve também como objetivo trazer à
tona as possibilidades de estudos da relação pessoa-ambiente através da Literatura. Em
MMM, a presença dos ambientes é tão forte, que a história desta personagem pode ser
contada através de seus espaços. Estes estão presentes de tal forma que podem,
inclusive, serem considerados personagens da mesma. Ao analisar as simbologias dos
espaços de Moura e a relação dela com estes, pode-se entender sobre sua história de
vida, bem como os vários significados presentes nos espaços vivenciados e sonhados
por ela. Ao analisar Maria Moura e seus espaços, percebeu-se que nas obras literárias a
criação paulatina do contexto dado pelo autor e o acesso à intimidade das personagens,
nos permite observar a construção da relação pessoa-ambiente, a formação dos vínculos
com os lugares, bem como suas simbologias e porquês.
Palavras-chave: Literatura; Psicologia Ambiental; Memorial de Maria Moura; Análise
literária; relação pessoa-ambiente.
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Abstract
Literature, because it contains human relations, it is also, a depository of spaces. The
reader, an omnipresent being in the book that is being read, exposes himself not only to
the reality present in the book, but also to the associations that the story awakes in
regard to his own experiences and life. When reading the book Memorial de Maria
Moura (MMM), by Brazilian writer Rachel de Queiroz, we perceived on the scene that
the main character hugs the wall of her house saying good-bye to it, the environmental
issues contained in this book. In such way, this study constitutes a literary analysis
emphasized on the people-environment relation contained in the book. As focus, were
analyzed only the passages of Maria Moura and her relation with the environments
present in her life. In such relation, were identified some concepts of Environment
Psychology, branch of Psychology that studies the people-environment relations.
Among the concepts found, the ones chosen to be studied in this research were
territoriality, appropriation and place attachment. Furthermore, as key-elements to the
studies in this area, were discussed in this analysis the Assumptions of Environmental
Psychology. This research also had as goal to bring light to the possibilities of people-
environment studies present in Literature. In MMM, the presence of the environments
holds such strength that the story of this title-character can be told through them. They
are so present in the story that they can also be considered as characters. When
analyzing Maria Moura and her spaces, it was perceived that in literary works the
author's slow and crescent creation of the context and the access to the intimacy of the
characters allows us to observe the construction of the people-environment relation, the
formation of attachments to the places, as well as their symbologies and reasons.
Key-words: Literature; Environmental Psychology; Memorial de Maria Moura;
Literary analysis; people-environment relation.
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Sumário
I - INTRODUÇÃO........................................................................................................ 16
II - A RELAÇÃO PESSOA-AMBIENTE E A LITERATURA ........................................... 22
2.1 - O TEXTO, A PERSONAGEM, O AMBIENTE ........................................ 33
2.2 - A AUTORA, O LIVRO E O CONTEXTO ............................................... 40
2.2.1 - RACHEL DE QUEIROZ ......................................................... 40
2.2.2 - MEMORIAL DE MARIA MOURA ............................................ 42
2.2.3 - O MASCULINO E O FEMININO EM MMM .............................. 45
III - A PESQUISA: NAS PÁGINAS DE MMM COM UMA LUPA AMBIENTAL ............. 51
3.1 - UMA ANÁLISE DO LIVRO MEMORIAL DE MARIA MOURA – POR
QUÊ? COMO? ..........................................................................................
51
3.1.1 - O OBJETO E O MÉTODO ...................................................... 54
3.1.2 - CONCEITOS DA RELAÇÃO PESSOA-AMBIENTE PRESENTES
EM MEMORIAL DE MARIA MOURA .................................................
57
3.1.3 - A PSICOLOGIA AMBIENTAL E SEUS PRESSUPOSTOS ............. 60
3.1.4 - A INTERPRETAÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO E A
INTERPRETAÇÃO DAS RELAÇÕES PESSOA AMBIENTE E O TEMPO ......
61
IV - MEMORIAL DE MARIA MOURA: DO LIMOEIRO À CASA FORTE ................... 65
4.1 - O SÍTIO DO LIMOEIRO .................................................................... 66
4.2 - A ANDANÇA ................................................................................... 81
4.3 – A SERRA DOS PADRES E O ASSENTAMENTO ................................. 97
4.4 - A CASA FORTE ............................................................................... 102
4.4.1 – O ‘CUBICO’ ....................................................................... 106
4.5 - OS LUGARES, OS CONCEITOS E OS PRESSUPOSTOS – ALGUMAS
CONSIDERAÇÕES ....................................................................................
109
V - AS CASAS DE PAPEL E O MEMORIAL DE MARIA MOURA ................................ 111
VI - CONSIDERAÇÕES FINAIS: DE MÃOS DADAS COM MOURA .............................. 117
VII - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 120
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I – Introdução
A Literatura não é espelho do mundo social, mas parte constitutiva desse mundo.
(Facina, 2004, p. 25)
Ao escrever, imprimimos algo no papel. Esse algo, antes pertencente ao
pensamento, ao ser escrito pertence ao mundo material. Escrever, então, é fazer existir.
É criar. É jogar no mundo o algo que estava dentro. Escrever é construir: as palavras,
tijolos, são instrumentos materiais do cimento pensante. O escrito, edifício construído,
gerará então percepções, opiniões, acepções nos que lá criam moradas (leitores). Como
objeto que absorveu tempo, um livro lido é espaço habitado. É lugar repleto de
significações e interpretações.
Por ser objeto criado pelo homem, construído pela mão humana, um livro, ao ser
criado, existe no mundo: ocupa tempo e espaço. Como ser inerte e não-perecível, apenas
nasce. Ao ser constantemente impresso (ou disponibilizado), ultrapassa gerações e nasce
de novo e de novo, em um nascimento em espiral: como se se juntasse a um ponto
parado no tempo, o movimento contínuo do tempo. Um livro, salvo especificidades
históricas, não morre.
Ao nascer, uma pessoa recebe um nome, alcunha que a identifica e particulariza:
essa pessoa é única, com suas características físicas e de personalidade. E, ao longo de
sua vida, essa pessoa provocará inúmeras interpretações, conclusões e significações nas
pessoas com quem tem contato. Essas perspectivas variarão de indivíduo para indivíduo
uma vez que esses também serão diferentes uns dos outros, também serão únicos em sua
existência. Por essa peculiaridade do ser humano, tudo o mais que existe em seu mundo
também parece ser único se minimamente olhado de perto e conhecido: um prédio que
parece ser igual a tantos outros, se acompanhado no movimento e no cotidiano dos que
o habitam será também único.
Parece-me que a qualquer coisa que o homem submete a sua percepção
(interpretação), essa ‘coisa’ estará arraigada de uma constituição mundana subjetiva que
automaticamente lhe confere as variantes de espaço e tempo. Ter a presença simultânea
dessas duas variantes significa estar situado – estar em um ponto preciso no eixo das
linhas temporal e espacial, estar ciente do foco, do momento, da posição. O
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posicionamento é uma forma de trazer à tona a peculiaridade que toda interpretação
cria.
Os livros também se submetem a isso. Olhado de perto, um livro é uma caixa de
coisas humanas: assim, lá estão guardadas um número de coisas do mundo do homem.
Às vezes, essas coisas que estão ‘lá dentro’ do livro se parecem tanto com as que estão
‘aqui fora’ que ele parece ser cópia do mundo. Muitas vezes, inclusive, ele é escrito sob
essa perspectiva. Mas, aglutinação de pensamentos humanos que é, um livro, mesmo
que se pareça com o mundo real, na verdade constitui-se parte dele. É um fragmento da
realidade. O livro é, ao mesmo tempo, recorte, recriação, interpretação e representação
do real. O livro é, estando: ou seja, existe a partir do momento em que se deixa fluir
dentro do tempo de leitura. Sua existência é um processo. E como ao estar supõe-se um
tempo limitado, o livro, objeto humano, existe pelo homem. E é o homem quem
conferirá ao livro sua significação e valor.
O objeto de estudo desta pesquisa é o texto literário. No entanto, como tentei
expor até aqui, a esse objeto somam-se três outros: o homem (pessoa), o espaço
(ambiente) e o tempo (do leitor e da obra). Como criação, o livro automaticamente está
sujeito a pelo menos dois tipos de perspectivas: a de quem o criou e a de quem o
observa. Ao escrever um livro, o autor o impregna de valores humanos, de fatos e coisas
que outros humanos identificarão – inclusive por esse pertencer a um código lingüístico,
lugar, cultura e tempo. “Um livro é como uma casa” (Matta, 1997, p. 11). Ao abri-lo,
ao começar a lê-lo, vamos entrando na casa, olhando cada vão, prestando atenção nos
detalhes, nas relações e sentimentos das pessoas daquela casa. Ao passarmos tempo
nessa ‘casa’, reconhecemos nela seus espaços, seus ambientes, o valor que cada lugar
significa para as personagens que estão ali dentro.
Dentro desse âmbito, esta pesquisa nasceu ao observarem-se as relações que a
personagem literária Maria Moura tem com os ambientes de sua história. Perceberam-se
então na Literatura possibilidades de estudos sobre as relações pessoa-ambiente (p-a).
Para esta pesquisa, foi escolhida a obra que a suscitou: Memorial de Maria Moura
(MMM), de Rachel de Queiroz (1992). Ao estruturar os passos que deveria seguir para
este primeiro olhar sobre a inter-relação entre pessoa e ambiente em obras literárias,
imaginou-se e discutiu-se que questões poderiam guiar este estudo exploratório. Como
reprodução do mundo humano, poderiam ser identificadas na Literatura as relações
pessoa-ambiente existentes no mundo real? Se assim o fossem, elas poderiam então
estar sujeitas às mesmas formas de análise empregadas no mundo real? Estariam os
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conceitos dos estudos pessoa-ambiente presentes na Literatura? No ambiente de Maria
Moura, que conceitos poderiam ser identificados? Que ferramentas usar para analisar
essas relações e conceitos? A Psicologia Ambiental (PA) – área da Psicologia que
estuda as relações pessoa-ambiente – serviria para a análise de um cotidiano ficcional?
Entre esses e outros questionamentos que surgiram à medida que se adentrou no
universo de Maria Moura e por inúmeras contribuições dos que acompanharam esta
pesquisa, essas perguntas nortearam o explorar desse novo terreno. A leitura da obra,
como não podia deixar de ser, transformava-se sob meus olhos. Elementos não vistos
antes, apareciam sob outras simbologias. O Modernismo regionalista de Rachel de
Queiroz me fazia engolir sua prosa seca e econômica em goles grandes. As
transformações de Maria Moura pareciam ocorrer em mim, iniciante no mundo da
pesquisa. E à medida que Maria Moura construía seus espaços, outros eram construídos
aqui, no mundo do qual o mundo dela faz parte: e suas paredes abraçadas eram também
abraçadas por mim, em um caminhar firme e constante de entender seu espaço e tempo.
Assim, na estrada construída ao longo deste estudo, percebi-me trilhando os
passos de uma análise literária. Um certo alívio gerou-se em mim: a Jornalista,
cursando mestrado de Psicologia e pesquisando Literatura, estava de volta ao mundo da
Comunicação Social: de volta ao mundo dos textos e reflexões que fazem nascer a
construção textual. Os espaços vistos sob os códigos verbais tomaram uma dimensão
maior: uma dimensão livre, uma dimensão interpretativa e fenomenológica. Era repórter
exclusiva a vasculhar intimamente Maria Moura. Intimamente: uma palavra de gozo
para qualquer jornalista.
Ao falarmos do homem, falamos de seus espaços; ao falarmos dos objetos do
homem, falamos também de seus espaços. Dessa forma, o homem, embora tenha
natureza móvel, uma vez que é um ser que não apenas se movimenta, mas que cria
ferramentas e meios para melhor se transportar, o homem é também indissociável do
chão por que passa e das paradas que faz ao longo de sua vida. A vida de uma pessoa é,
assim, a junção de seus espaços: dentro de uma única vida ressoam diferentes
existências, marcadas pelos ambientes em que se passaram. “As ressonâncias
dispersam-se nos diferentes planos da nossa vida no mundo; a repercussão convida-nos
a um aprofundamento da nossa própria existência” (Bachelard, 1998, p. 7). Ao
pensarmos sobre os nossos espaços, refletimos sobre nós mesmos. Não se quer dizer
com isso que uma vida que se passa em um único ambiente seja mais superficial que
outra de diversos: a experiência ambiental é bem mais complexa que o plano
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geográfico. “Para bem apreciar como podem variar as atitudes ambientais, necessitamos
conhecer alguma coisa da fisiologia humana e da diversidade do temperamento” (Tuan,
1980, p. 54). Por buscar estabilidade para lidar com o dia a dia, com o clima e com suas
atividades, as pessoas têm algumas constantes no seu comportamento com o ambiente;
as infinitas peculiaridades que escapam a essas constâncias cabem aos elementos
culturais, temporais e subjetivos de cada ser humano: ao que foi chamado de
“intercâmbio dinâmico” (Rivlin, 2003, p. 216) entre as pessoas e os ambientes – sejam
esses físicos ou imaginários.
Ao se decidir tirar uma foto, por exemplo, necessita-se primariamente de duas
coisas: 1] o foco – ou seja, a escolha do objeto que será capturado na foto; 2] da
máquina – instrumento para a apreensão da imagem escolhida. Para as relações
humano-ambientais essa analogia também se aplica: 1] ao se escolher o ambiente que
será observado; 2] ao se escolher a ferramenta de análise desse ambiente e das relações
nele contidas. Poder-se-ia escolher como ferramenta, por exemplo, a Sociologia, ou a
Geografia, ou mesmo a Lingüística. Neste estudo, escolhemos como ferramenta de
análise o ramo da Psicologia que estuda as relações pessoa-ambiente: a Psicologia
Ambiental (PA).
Pode-se entender a Psicologia Ambiental como a disciplina que tem por
objeto o estudo e a compreensão dos processos psicossociais derivados das
relações, interações e transações entre as pessoas, grupos sociais ou comunidades e
seus entornos sócio-físicos. Como disciplina, divide com outras disciplinas um
campo de estudo comum configurado pelo conjunto de fenômenos que implicam
diretamente as pessoas e seus entornos (Valera, 1996, p. 2).
Este estudo constitui-se, então, de uma análise literária feita a partir da relação
pessoa-ambiente. Concentrei-me, assim, em estudar, no texto literário de Memorial de
Maria Moura, as relações entre as pessoas e os ambientes nele contidas. No primeiro
momento da apresentação desta pesquisa, discuti sobre a relação pessoa-ambiente e a
Literatura, como forma de introduzir a temática de uma maneira geral, abordando o
âmbito maior das possibilidades de estudos pessoa-ambiente no universo das obras
literárias e fazendo um breve passeio sobre possíveis exemplos desse tipo de reflexão.
Entrei então no campo específico deste estudo, falando sobre a história criada pela
escritora cearense Rachel de Queiroz e desmembrei os três componentes textuais desta
20
análise: o texto, a personagem e o ambiente, refletindo também sobre a questão do
masculino e do feminino em relação à terra – ponto bastante presente na obra. Ainda,
conversei sobre os conceitos da relação pessoa-ambiente e sobre quais deles serão
discutidos nesta análise de MMM.
Na parte seguinte deste estudo, entrei na pesquisa propriamente dita, aonde
explanei sobre o ambiente que este trabalho aborda, o método utilizado e o objeto
pesquisado, e apresentei uma reflexão sobre as diferenças e semelhanças da
interpretação do texto literário e da interpretação das relações pessoa-ambiente.
Uma vez preparado o terreno das discussões que são propostas neste estudo, expus
o livro em questão: do Limoeiro à Casa Forte – que são os ambientes principais da obra.
Analisei então os ambientes e caminhos do percurso da personagem-título do livro de
Rachel de Queiroz. Utilizando trechos do próprio livro, argumentei sobre as relações p-
a que nele se encontram e analisei, à luz dessas, o contexto de Maria Moura, que muitas
vezes se encontra sob a narração da própria personagem-título. Cada parte da obra foi
por mim dividida de forma a fazer uma análise mais pausada, pontuada e refletida dos
ambientes da obra e de suas impressões em Maria Moura. Em cada espaço e ambiente
analisado, tratei dos conceitos dos estudos pessoa-ambiente encontrados em MMM e
dos pressupostos da Psicologia Ambiental que podem ser identificados nessa inter-
relação.
No último capítulo desta dissertação, me dei a concessão de me ‘libertar’ um
pouco do objeto-foco desta pesquisa e adentrar uma discussão que intitulei as casas de
papel, aonde versei sobre as diversas escritas que adentram os estudos pessoa-ambiente
que foram citadas ao longo deste estudo, e expus alguns questionamentos sobre as
percepções e criações humanas acerca do mundo em que vivem e dos ambientes que
habitam ou imaginam. Essa parte da minha pesquisa visa a ser uma exposição de alguns
dos diversos textos artísticos com os quais entrei em contato por um motivo ou outro ao
longo da construção desta pesquisa. Esses textos alimentam a discussão sobre as
possibilidades do texto literário e artístico para os estudos pessoa-ambiente. Finalizei
esse capítulo fazendo uma conexão com o objeto principal pesquisado aqui.
Por último, expus as considerações acerca dos dois anos desta pesquisa e sobre os
pensamentos e reflexões que ela gerou em mim. Antes desses dois anos, eu e Maria
Moura estávamos guardadas em casa, protegidas das transformações que se seguem a
reflexões constantes. Hoje, eu e Maria Moura andamos livres: porque conversar liberta.
21
E este trabalho é, acima de tudo, isso: uma conversa. É um adentrar no mundo
acadêmico: é um rito de passagem ainda adolescente.
Maria Moura agora ocupa minha estante enfeitada de pessoas e espaços. Maria
Moura não é mais personagem-título apenas: é mulher que pensa e sofre suas paredes, é
pessoa que sonha com a casa perfeita, é chefe-de-família que protege e mantém o lar, é
lugar.
A mim, transformada também pelos espaços de Maria Moura, resta seguir com
minha “lupa ambiental”: a buscar a próxima casa, a próxima estrada, o próximo
assentamento, o próximo espaço que guarde em si possibilidades. Possibilidades: um
nome que faz sorrir qualquer pesquisador. Pronto, nasci no mundo da pesquisa.
Tomando emprestadas as palavras do cineasta espanhol Pedro Almodóvar: "Nós
ficamos mais autênticos quanto mais nós nos parecemos com o que sonhamos que
somos". E sou, neste momento, uma pesquisadora a apresentar Maria Moura através de
seus ambientes.
22
II – A relação pessoa-ambiente e a Literatura
A Literatura, mais do que os levantamentos das Ciências Sociais, nos fornece informação
detalhada de como os seres humanos percebem seus mundos.
(Tuan, 1980, p. 56)
É cedo da manhã, estava adormecida e, ao ouvir um barulho conhecido, acordo.
Abro meus olhos e vejo o teto do meu quarto. Olho para o lado e vejo minha mesinha de
cabeceira: nela, o copo com água que sempre levo para o quarto antes de dormir, o
celular que acabara de tocar o alarme, o livro da Clarice Lispector que estou lendo no
momento, a pilha de cds que escolhi para ouvir durante a semana, e o aparelho de
telefone. Saio debaixo das cobertas e piso no chão frio de azulejos. Levanto-me, já
sabendo da rotina do dia: caminho para o meu banheiro, que fica a apenas alguns passos
da minha cama e lavo o rosto. No espelho, uma face conhecida. Olho para ela há vinte e
nove anos e alguns meses. Enxugo o rosto e volto para o quarto. Apoiando o joelho
sobre a cama, abro a minha janela: vejo então a parede verde do jardim e a planta que
foi escolhida para aquele local para que eu começasse meu dia olhando para ela.
Caminho para a porta do quarto. Abro-a. Encostado nela, como em todas as manhãs,
está um cachorrinho cinza. O meu cachorrinho cinza. Sorrio. Faço-lhe alguma gracinha.
Vou até a cozinha: o cheiro de café já a perfuma. Lá, dou meus abraços matinais: bom
dia, pai; bom dia, mãe.
No parágrafo acima, descrevi os primeiros minutos de minhas manhãs: como não
poderia deixar de ser, ao contá-los, contei também sobre espaços que fazem parte da
minha vida, o contexto do qual faço parte também foi minimamente exposto. A
presença humana exige espaço: existir pressupõe existir em algum lugar. No pequeno
texto escrito, vários elementos sobre lugares já vieram à tona: a cama, que está dentro
do quarto, que está dentro da casa que tem pais e cachorrinho: lar; a mesinha de
cabeceira com objetos por mim escolhidos: personalizei esse espaço; a planta no jardim
me remete à decisão de sua escolha: vínculo; ao abrir a minha janela, faço sempre o
mesmo movimento, apóio o joelho sobre a cama, técnica criada ao longo do tempo: esse
espaço me é conhecido, já sei como lidar com ele. O percorro fisicamente, mas já o
tenho desenhado em minha imaginação, sei seus limites geográficos, desde o quintal até
a entrada. A porta da frente da casa divide a fronteira do que é meu: ao cruzá-la já não
23
estou na minha casa e necessito ter mais cuidado com minhas ações. As regras da rua
não são as da casa. Mas ali ainda é a rua da minha casa e, por isso, ainda é espaço
conhecido e me sinto confortável com isso.
O sentir-se confortável define minha experiência com esse espaço, transformando-
o em lugar. “O lugar é segurança e o espaço é liberdade” (Tuan, 1980, p. 3). No
exemplo dado da rua da minha casa, entra um dos pontos-chave na relação do ser
humano com o ambiente: a referência. Criador natural de referências, o homem tem
nessas dois regentes principais: o espaço e o tempo. “O espaço é como o ar que se
respira. (...) Para sentir o ar é preciso situar-se, meter-se numa certa perspectiva. (...)
Para que se possa ‘ver’ e ‘sentir’ o espaço, torna-se necessário situar-se” (Matta, 1997,
p. 29). Ao situar-me, encontro-me não apenas em um ponto preciso no espaço, mas em
um ponto preciso no tempo. “Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo
comprimido. É essa a função do espaço” (Bachelard, 1998, p.28). Se me situo por
minhas lembranças, posso pensar na casa em que minha família e eu morávamos
quando eu era pequena: esse lugar pertence a outro tempo, mas está também no presente
através de meus pensamentos, de minhas recordações. Se eu for visitar essa casa hoje,
ela me será estranha: porque mesmo que seja a mesma casa, já não o é como eu a
conheci. Ela está a acumular um outro tempo agora: outras pessoas imprimem nela as
suas marcas e lembranças. Não só eu me transformei com o tempo: a casa também se
transformou. Mas a casa continua lá: a guardar nela o tempo em que vivi e a guardar o
tempo dessas novas pessoas. Dessa forma, “o espaço é a acumulação desigual de
tempos” (M. Santos, 1982, p. 10): o espaço sempre guardará em si o tempo. Isso
acontece porque o espaço é matéria humana primeira; já que até nós mesmos somos
espaço enquanto corpo, conteúdo físico; já que o espaço, como diz já o nome que lhe
demos, é guardador, é receptáculo de tudo o mais que possa existir. Assim, estamos no
espaço porque ele faz parte de nós, mesmo que às vezes nós não assimilemos isso, ou
mesmo que não precisemos estar sempre conscientes disso.
Assim, é tão natural para nós estarmos no espaço, uma vez que existimos nele, que
muitas vezes só ao refletirmos sobre ele podemos perceber um número de aspectos que
nos passam despercebidos. “O espaço seria, em primeiro lugar, aquilo que podemos
perceber através do nosso corpo. O espaço que ocupo seria, especialmente, aquele que
vejo” (L. Santos & Oliveira, 2001, p. 68). Num outro momento, no entanto, o espaço
que vejo não seria o único que ‘enxergo’, que percebo: isso porque posso, através de
inúmeras ações – como com uma observação mais próxima, ou com um texto que
24
remeta a um espaço que deva ser por mim imaginado, ou com uma lembrança de um
espaço que experienciei no passado – ver além do que o que os meus olhos percebem
fisicamente. O espaço pode ser, assim, sentido. Mas, para que fique mais clara a
nomenclatura utilizada neste estudo: “‘espaço’ é mais abstrato que ‘lugar’. O que
começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o
conhecemos melhor e o dotamos de valor” (Tuan, 1980, p. 6). Dessa forma, lugar é todo
espaço que tem significado. As relações de uma pessoa com os espaços e lugares
diferem, dependem de um conjunto de aspectos, como idade, cultura, experiências de
vida, personalidade, limitações físicas, momento histórico etc. Assim, ao lugar confere-
se um valor subjetivo.
É importante essa caracterização entre espaço e lugar porque são esses ambientes
que propiciam nossas relações com o meio. E, se o lugar me guarda, o espaço me
liberta. “A natureza tem uma maneira muito simples de nos espantar: é fazer coisas
grandes” (Bachelard, 1998, p. 132). No mundo dos homens, há duas categorias
principais de ambientes: o natural, que é ou foi formado pela própria Natureza; e o
construído, que vai desde obras arquitetônicas (casas, edifícios etc), a espaços
construídos através de textos (literários, poéticos etc), a espaços virtuais (rede mundial
de computadores, ambiente virtual etc) – ou seja, espaços que são criados a partir da
ação do homem. Mas essas categorias não definem o que é espaço ou lugar para uma
pessoa: “se pensamos o espaço como algo que proporciona o movimento, então lugar é
pausa; cada pausa no movimento torna possível que a localização se transforme em
lugar” (Tuan, 1980, p. 6). Essa possibilidade de consciência do poder de transformação,
de valoração do espaço, é uma característica humana. Assim, “por mais que a natureza
faça coisas grandes, o homem imagina facilmente coisas ainda maiores” (Bachelard,
1998, p. 133).
O homem é criador de espaços e lugares: o homem é criador de movimento e
pausa. Modificador que é, o homem se apropria do meio em que vive e nele imprime a
sua presença. Ao tentar capturar o ambiente ao seu redor, ou a exprimir suas impressões
e sentimentos a respeito desse mundo, o homem registra a sua leitura do tempo e do
espaço em que vive. “Toda criação literária é um produto histórico, produzido numa
sociedade específica, por um indivíduo inserido nela por meio de múltiplos
pertencimentos” (Facina, 2004, p. 10). Ao criar qualquer registro, o homem utiliza uma
ou mais formas de linguagens, de códigos culturais e temporais que materializam seu
pensar e sentir. “Toda linguagem interpreta o real de um determinado modo” (L. Santos
25
& Oliveira, 2001, p. 46). A arte seria então uma maneira do homem guardar tempo e
espaço: a relação do homem com o ambiente que o cerca está nela impressa. Voltolino,
por exemplo, foi o personagem do artista Lemmo Lemmi nos tempos da Velha
República (1889 – 1930) no Brasil. Esse personagem integrava o dia a dia de São Paulo
e gozava de enorme popularidade. Mas “pertenceu de tal modo à sua época que nela
ficou mergulhado no mais completo esquecimento” (Belluzzo, 1992, p. 7). No entanto,
ao olharmos as várias situações existentes nos desenhos de Voltolino voltamos ao tempo
a que ele pertenceu e à São Paulo que ele representa e comunica. A arte tem esse poder:
ela expressa um tempo. E, ao expressar um tempo, expressa lugar. Lugar e tempo
envoltos no contexto sentimentos que ela faz despertar.
A arte expressa a vida vivida, mas acrescentando-lhe um artifício: ao fazer
isto, expressa-a e reproduz-la de maneira ainda mais ‘verdadeira’; porque viver e
não saber sentir, é sentir de maneira confusa, misturando (porque uma sensação
contém múltiplas outras). Só a arte permite aprender a sentir, sentir melhor, sabendo
o que se sente e sentindo mais intensamente. Neste sentido, a arte prolonga a vida.
(Gil, 1988, p. 232).
Embora não concorde que a arte seja a única maneira de aprender a sentir, ela é
com certeza um instrumento importante nesse processo: é uma forma relevante de se
apreender sensações acerca da vida e de suas realidades. A arte permite uma sublimação
da vida: permite o sentir através de nossas limitadas formas de linguagens. A arte é
“uma espécie de emulação nas surpresas que excitam a nossa consciência e a impedem
de cair no sono” (Bachelard, 1998, p. 17). A arte não é um espelho ou uma cópia da
vida, mas um registro de um fragmento de vida: de um momento, espaço, sentimento,
fato, tempo, percepção etc. A arte é vida guardada em si mesma: faz parte do mundo
que a cria: como criatura, guarda seu criador em si. A arte excita os sentidos do homem
acerca do mundo em que vive.
Para esta pesquisa, nos centraremos em um tipo específico de arte: a Literatura. “A
literatura é uma recriação verbal da realidade através da imaginação do artista” (Ataide,
1974, p. 3). A noção de recriação da realidade é consistente na medida em que a arte
literária estará sempre impregnada da visão de seu autor em relação a sua própria
subjetividade, pensamento e espaço. Assim, a Literatura é parte do mundo porque é, em
26
suma, a leitura de um mundo – seja esse baseado no real, ou seja fruto da imaginação do
artista. Ainda, ao tratar do conceito de Literatura, temos que:
Geralmente, quando nos referimos à literatura, pensamos no que
tradicionalmente se costuma chamar “belas letras” ou “beletrística”. Trata-se,
evidentemente, só de uma parcela da literatura. Na acepção lata, literatura é tudo o
que aparece fixado por meio de letras – obras científicas, reportagens, notícias,
textos de propaganda, livros didáticos, receitas de cozinha etc. Dentro deste vasto
campo das letras, as belas letras representam um setor restrito. Seu traço distintivo
parece ser menos a beleza das letras do que seu caráter fictício ou imaginário.
(Cândido, Rosenfeld, Prado, Gomes, 2005, p. 11-12).
Assim, nos termos deste estudo, ao nos referirmos à Literatura, estamos nos
referindo ao campo também conhecido como “belas letras”; ou seja: trataremos aqui do
estudo de obras literárias.
As obras literárias apresentam projectos de sentido capazes de aprofundar e
alargar os horizontes de percepção e motivação daquele que o compreende. Elas
apresentam a realidade sob uma perspectiva que põem em relevo momentos não
observados naquela e desafia a compreensão que o receptor tem de si próprio e do
mundo. (Bredella, 1989, p. 131).
A literatura pode me permitir, enquanto leitora, perceber em suas entrelinhas
coisas que estavam nas entrelinhas da realidade, da minha vida cotidiana, por me
apresentar relações e situações com as quais eu posso me identificar e sobre as quais eu
posso refletir em um tempo e espaço que são meus, já que a relação com o livro sou eu
quem crio. No entanto, o papel da Literatura não é apenas
descobrir o que está escondido, mas sim tornar visível o que precisamente é
visível – ou seja, fazer aparecer o que está tão próximo, tão imediato, o que está tão
intimamente ligado a nós mesmos que, em função disso, não o percebemos.
(Foucault, 2004, p. 44).
Assim o temos: um produto da mente humana que fala sobre a mente humana: um
produto do nosso mundo que fala sobre o nosso mundo – que fala também das relações
27
presentes nele. O que seria então essa relação entre o homem e o seu mundo, entre as
pessoas e os seus ambientes? Não há de se negar que a minha casa é um lugar querido
para mim: é lar. Este é um sentimento fácil de ser entendido já que produz uma
identificação em muitos. Mesmo que minhas lembranças não remetessem a uma casa
feliz, “todo espaço realmente habitado traz a noção de casa” (Bachelard, 1998, p. 25), o
espaço que me gere conforto e segurança é um lugar que remete a boas significações.
Assim, se o homem, esse ser social, que civilizou a si mesmo, que é heterogêneo
enquanto etnia, personalidade, pensamento, valores etc, vive em um mundo que, mesmo
sem a presença dele já teria em si infinitas variantes ambientais, como o clima, o solo,
os animais etc, como englobar de alguma forma tantos aspectos? Como aglutinar o
homem e seus ambientes em um mesmo conjunto? A primeira reflexão é que não há
como dissociar os dois: o homem é parte do ambiente e o ambiente, ao ser submetido à
presença e observação humanas, tem sua existência intrinsecamente ligada à existência
do próprio homem. Além disso, temos que:
Às vezes é preciso restaurar as partes perdidas, encontrar tudo o que não se vê
na imagem, tudo o que foi subtraído dela para torná-la ‘interessante’. Mas às vezes,
ao contrário, é preciso fazer buracos, introduzir vazios e espaços em branco, refazer
a imagem, suprimir dela muitas coisas que foram acrescentadas para nos fazer crer
que víamos tudo. É preciso dividir ou esvaziar para encontrar o inteiro. (Deleuze,
1990, p. 32).
Em contraponto às divisões e afunilamentos necessários para que se possa
começar a entender determinado fragmento – pausa espaço-temporal – da realidade
humana, é um conhecimento prévio que “o estudo das atitudes e dos valores do meio
ambiente é extraordinariamente complexo” (Tuan, 1980, p. 284). O homem é, ao
mesmo tempo, impregnado do seu meio e fragmentador desse, uma vez que recria suas
interpretações a partir de sua realidade, reage ao que está à sua volta, e comunica, a
partir de sua percepção, sua leitura de mundo, suas relações com o meio. Assim temos
que o homem influencia o meio e que o meio influencia o homem. Em seus ambientes
construídos, o homem interfere diretamente no espaço que trata. O homem constrói
casas e cidades, jardins e praças, piscinas e barragens, carros e foguetes. O homem
registra imagens de sua realidade: desenhos, pinturas, fotografias, filmes. O homem cria
além do que vê: o homem fantasia. Uma pessoa, sentada em uma grama, pode percorrer
28
em sua mente todo o trajeto de volta à sua casa: ao terminar de imaginá-lo terá
‘chegado’ em casa sem sequer sair do lugar em que estava sentado. É do ser humano a
capacidade de absorver de tal forma o que lhe é conhecido, que desenvolve caminhos
mentais que o fazem não apenas reconhecer seus ambientes, como representá-los.
“O espaço, habitação do homem, é também seu inimigo a partir do momento em
que a unidade desumana da coisa inerte é um instrumento de sua alienação” (M. Santos,
1982, p. 23). O espaço fechado, que é lugar, circunscreve limites ao homem – sejam
esses limites emocionais ou físicos. Em termos concretos, ou ele ultrapassa fisicamente
as barreiras geográficas desse lugar para ir além, ou apóia-se em sua imaginação para
fazê-lo. À imaginação não são conhecidos limites; salvo possíveis barreiras ou filtros
culturais, de crenças ou psicológicas, é inata ao homem a construção mental de fatos,
pessoas e lugares.
Algumas vezes, no entanto, como no exemplo da literatura, as experiências de
espaço e lugar ganham formas universais, maiores, sensíveis, criativas em
originalidade, segundo o gênio do escritor, tornando as mesmas acessíveis e
conhecidas por muitas pessoas, ainda que de modo conceitual indireto. (Lima, 1999,
p. 156).
A Literatura exerce assim um papel social: mostra, expõe. O que se verá nela, no
entanto, se deixará depender de cada leitor, de sua percepção, interpretação e olhar. “A
grande literatura só adquire sentido na medida em que é recriada pelo leitor” (Leite,
2002, p. 144). Essa recriação, a partir das pessoas e ambientes com que se tem contato
no texto literário, permitirá uma relação única: entre o leitor e o livro. "Quando escuto
ou leio, as palavras não vêm sempre tocar significações preexistentes em mim. Têm o
poder de lançar-me fora de meus pensamentos, criam no meu universo privado cesuras
onde outros pensamentos podem irromper" (Merleau-Ponty, 1980, p. 145). A Literatura
tem o poder de despertar pensamentos, pois apresenta ao leitor uma série de elementos
que não têm outra forma de serem recebidos senão por serem interpretados. “A cada vez
que entramos em contado com um texto literário, o que encontramos são restos que nos
escapam e o inominável que nos inquieta” (Radaeli, 2007, p. 105). Se a interpretação
que se faz virá por meios de reflexões e associações ou não, dependerá de cada leitor;
no entanto, a leitura de uma obra suscitará sempre a possibilidade de reflexões acerca da
realidade do leitor.
29
A ficção é um lugar ontológico e privilegiado: lugar em que o homem pode
viver e contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição, e
em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se
imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo,
verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre,
capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria
situação. (...) Através da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao mesmo tempo
aproximamo-nos da realidade (Rosenfeld, 1992, p. 48-49).
E o que é a realidade humana? Sabe-se que cada ser humano emprega sua
subjetividade em suas ações. O homem é, assim, um produtor de diferenças, um
produtor de realidades, um produtor de percepções. A minha realidade tem a ver não
apenas com meu contexto sócio-cultural – cidade e país onde moro, cultura da qual faço
parte, língua que falo etc, mas com o meu ser, a minha individualidade e percepção:
como eu absorvo e lido com o que está ao meu redor, como me adapto à minha cultura,
como lido com culturas diferentes da minha etc. Ao longo da trajetória de uma pessoa,
diferentes experiências de vida são produzidas, diferentes realidades são conhecidas e
vivenciadas. E o homem é um comunicador de realidades: ao expressar-se, pode
condensar nessa expressão a conjuntura e complexidade de seu ser naquele dado
momento. E como o tempo do homem é fluido e efêmero, é um tempo que se repete: a
realidade de um homem reapresenta-se constantemente: suas experiências só deixam de
ser novas quando cessam de acontecer. Em seu livro Água Viva (1973), Clarice
Lispector diz: “Mesmo que eu diga “vivi” ou “viverei”, é presente, porque eu os digo
já” (p. 19). A língua, código verbal, tem o poder de guardar o tempo, de expressar
passado ou futuro no presente de quem fala. Assim o faz a Literatura: referências
artísticas de uma língua, as obras literárias pertencem ao presente: não importa de que
época sejam – mesmo que sejam representantes da época em que foram criadas. O livro
existe ao ser lido: o livro nasce junto com as percepções de seu leitor. O livro é talvez
como uma ave que só passa a existir ao ser chocada: o livro é um ovo: é possibilidade
de nascimento.
Existe uma história infantil criada por Pedro Bandeira (1989) intitulada O
fantástico mistério de Feiurinha, em que a personagem do título havia desaparecido:
assustadas com esse fato ter acontecido depois de Feiurinha também ter recebido ao
final de sua história o famoso “e viveram felizes para sempre...”, todas as princesas
30
encantadas – Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida etc – vão atrás de saber o
que aconteceu com Feiurinha; já que se algo havia acontecido com ela, também poderia
lhes acontecer. Ao final da aventura, descobrem que Feiurinha havia desaparecido
porque ninguém mais contava a sua história. Está aí o propósito de uma história: ser
contada. Está aí o propósito de um livro: ser lido. A função de uma obra literária é
exercida através das sensações que esta causa em seu leitor. Como epígrafe no livro de
Pedro Bandeira (1989) está uma frase de Marisa Lajolo que resume esta noção: “A obra
literária é um objeto social. Para que ela exista, é preciso que alguém a escreva e outro
alguém a leia” (pág. 5).
O mesmo processo se dá na formação de um lugar ou, para melhor dizer, na
transformação de um espaço em lugar. É necessário que o espaço exista e que alguém
faça dele um lugar: a presença humana é criadora de relações. Horácio Dídimo (2002)
escreve em sua poesia: “ela foi embora/mas as palavras que ela disse ficaram/e
conversaram muito tempo ainda” (p. 31). Esse ficar explicita a reflexão que a Literatura
provoca. É a partir dessa reflexão que se pode pensar sobre as relações presentes em
obras literárias; e, no caso deste estudo, essas relações são as que explicitam, no mundo
fictício, as significações do ambiente para as personagens.
Este mundo fictício ou mimético, que freqüentemente reflete momentos
selecionados e transfigurados da realidade empírica exterior à obra, torna-se,
portanto, representativo para algo além dele, principalmente além da realidade
empírica, mas imanente à obra (Rosenfeld, 2005, p. 15).
A reflexão humana leva à abstração, uma vez que a ação de refletir se dá em um
plano imaterial – mesmo que suas aplicações sejam posteriormente feitas no plano real.
Assim, é natural que representações e significações humanas vão além do que se vê, já
que adentram o plano simbólico. No mundo real, os objetos criados pelo homem têm
uma razão de ser: comunicam. Mesmo que sua utilidade se limite a ser expressão, o
objeto humano carrega em si uma estrutura pensada: nele está guardada a intenção de
ter a forma que tem e de ser da matéria que é. “Nosso olho já está treinado para
reconhecer de determinado modo: existem convenções de visualidade que fazem com
que consideremos uma imagem fiel ou não ao objeto que ela representa” (L. Santos &
Oliveira, 2001, p. 72). Assim, nossos referenciais estão costurados às estruturas, formas
e funções das coisas com que temos contato. São a partir dessas que reconhecemos e
31
interpretamos a complexidade do nosso mundo: permitindo assim que nos situemos ou
não perante as realidades a nós apresentadas.
Verificamos que a grande obra de arte literária (ficcional) é o lugar em que
nos defrontamos com seres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla
medida transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar
(exemplar também no sentido negativo). (Rosenfeld, 2005, p. 45).
A Literatura é assim um lugar pensado pelo homem: tem forma e função
definidas, é organizado, tem lógica (mesmo que a lógica seja não ter lógica – no caso da
literatura nonsense), e é um mundo definitivo, no sentido de que o tempo só lhe afetará
a partir da visão do leitor. A Literatura é então palco de relações humanas, depositório
de sensações e espaços. Suas imbricações com a realidade vão muito além de uma
possível verossimilhança, uma vez que seu maior trunfo é, não o que guardam, mas o
que despertam. “Evidentemente, são documentos indiretos, nos quais a experiência
surge filtrada pela imaginação, mas que documentos melhores que os artísticos para
reconstruir, por dentro, uma época ou um temperamento?” (Moisés, 1987, p. 19). A
construção literária, embora exista materialmente no mundo real – enquanto livro – na
verdade concretiza-se “por dentro”, ao dialogar com seu leitor em um tempo e maneira
únicos: em um diálogo em que a obra é mediadora, já que o real ‘diálogo’ acontece pelo
e com o próprio leitor. “Todo leitor que relê uma obra que ama sabe que as páginas
amadas lhe dizem respeito” (Bachelard, 1998, p. 10). E embora as obras literárias
criadas em determinado tempo e sociedade tenham em si um teor documental desses, as
obras são documentais também a partir da trajetória de vida do leitor: já que lhe marcam
de maneiras distintas e que lhe provocam transformações e reflexões variadas. Como a
leitura é quase um diálogo do próprio leitor com a interpretação da obra que lê, a leitura
pode despertar sentimentos, pode agitar o que está dormente no leitor, pode confirmar
emoções, ajudá-lo a tomar alguma decisão, servir de parâmetro de comportamento etc.
Ainda assim, por guardar em si esse mundo que o leitor já sabe que lhe significa, a obra
lida é lugar pulsante: a reter memórias e tempo, pessoas, fatos e ambientes que vêm à
tona quando se lá adentra novamente pela lembrança ou releitura.
No entanto, da mesma forma que a Literatura é possuidora de generalidades – por
guardar em si matéria humana, os sentimentos que desperta muitas vezes ultrapassam
barreiras culturais – ela também é possuidora de especificidades: pode guardar em si um
32
tempo, valores de uma época, características de uma cultura, circunstâncias de uma
sociedade etc. Ainda, por ter a construção textual como meio de existência, a
contextualização de uma obra pode se dar a partir do momento de sua publicação, do
estilo literário que evoca, da época em que foi escrita, do movimento que representa e
das características que possui.
Logo, podemos concluir que uma obra literária participa de todo um processo
que a relaciona com os demais fatos culturais de uma comunidade. Por isso, ao
analisarmos um texto literário é conveniente situá-lo no tempo e no espaço, isto é,
examinar sua relação com os demais fenômenos culturais da época em que foi
escrito. (Faraco & Moura, 1993, p. 15).
Por sua vez, a obra aqui estudada, Memorial de Maria Moura (1992), escrita por
Rachel de Queiroz, pertence à geração de 1930 da Segunda Fase do Movimento
Modernista, cujo começo no Brasil se deu com a Semana de Arte Moderna em 1922. “O
romance de 30 teria, assim, algumas características comuns: o regional seria uma
referência para o nacional; a literatura seria uma expressão espontânea da terra”
(Chiappini, 2002, p. 163). O Modernismo nasceu como movimento de ‘quebra’, foi uma
manifestação de intelectuais que queriam valorizar o que fosse nacional, que lutavam
para que a liberdade das criações brasileiras fossem exaltadas ao máximo – ao artista
cabia ler a realidade com olhos brasileiros, sem se preocupar com formas literárias ou
artísticas européias. Assim, era um momento de construção de uma nova estética,
voltada para o social porque voltada para as realidades do solo nacional. É em meio a
essa realidade, que nasce assim a prosa regionalista – presente em muitos dos autores da
Segunda Fase do Modernismo, como Rachel de Queiroz. Como aspectos desse tipo de
escrita, temos a evocação de características determinantes de um local e cultura, tipos
humanos específicos de uma região, bem como costumes, ambientes e trajes típicos. Na
prosa regionalista, temos a construção de uma realidade singular, que não pode ser vista
como representante de uma nação inteira, por exemplo, mas como reflexo de algo
peculiar: de um contexto particular e, por isso mesmo, fortemente representativo da
diversidade cultural do país.
33
2.1 – O texto, a personagem, o ambiente
O que é real? O que é fictício? O que pode ser observado? Quando tratamos do
homem, criador natural de realidades subjetivas, as respostas para essas perguntas não
são tão óbvias. Qualquer circunstância que tenha a existência humana demanda uma
relação ambiental: o homem constrói ao redor de si relacionamentos, mesmo quando
não é a sua intenção fazê-lo. Ao construir esses relacionamentos, desenvolvemos
sentimentos específicos e subjetivos que nos delineiam a importância e função desses
lugares em nossas vidas. Aqui, adentramos uma área turva: por mais que possamos
identificar esses sentimentos a partir de algumas premissas que os caracterizam, não
podemos prever o que os faz surgir. O que faz um lugar ser querido por mim? Que
lembranças ou sentimentos estão guardadas na imagem desse lugar? O que ele desperta?
Como fui tocada por ele? O sentir não pertence ao mundo das palavras, mas ao das
entrelinhas. “O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente
entregue à mensuração e à reflexão do geômetra. É um espaço vivido” (Bachelard,
1998, p. 19). Para se saber minimamente sobre a razão de um espaço – seu ‘como?’ e
‘por quê?’ – seria preciso adentrar a intimidade humana sem a fragmentação da fala,
seria preciso sentir o que o outro sente, na mesma proporção e medida. Por isso,
“muitos lugares, altamente significativos para certos indivíduos e grupos, têm pouca
notoriedade visual. São conhecidos emocionalmente, e não através do olho crítico ou da
mente” (Tuan, 1980, p. 180).
Quando pensamos em um lugar de simbologia coletiva é mais fácil prever que
contexto suscitou o nascimento dessas percepções: o caso do memorial feito no lugar
das Torres Gêmeas do World Trade Center, derrubadas no atentado de 11 de setembro
de 2001 em Nova Iorque, Estados Unidos, é um exemplo disso. A estátua de Carlos
Drummond de Andrade no calçadão da praia de Copacabana no Rio de Janeiro é outro
exemplo: são lugares que tocam o coletivo por razões de senso comum. A própria
estátua de Rachel de Queiroz na Praça dos Leões em Fortaleza, faz-nos sentido: Rachel
pertence a todos nós. No entanto, quando falamos de um indivíduo, “o próprio espaço
nos aparece como um todo fragmentado. Como as práxis de cada um são fragmentárias,
o espaço dos indivíduos aparece como fragmentos da realidade e não permite
reconstruir o funcionamento unitário do espaço” (M. Santos, 1982, p. 22). O lugar
aonde se deu o primeiro beijo pode ser um exemplo disso: digamos que o seu primeiro
beijo tenha sido em um banco debaixo de uma árvore de uma praça. Aquela árvore,
34
aquele banco e aquela praça sempre contarão, para você, a história do seu primeiro
beijo. Mas qualquer outra pessoa que passe por ali ou verá apenas um simples banco,
árvore e praça, ou verá nesse conjunto algo que lhe remeta a outras histórias, de suas
próprias vivências. A escritora Adélia Prado uma vez disse “que Deus, vez por outra, a
castiga. Tira-lhe a poesia. Ela olha para uma pedra, e só vê pedra mesmo.” (Alves,
2003, p. 43). Um lugar é isso: é um espaço carregado de poesia, nunca um lugar será
apenas uma pedra, sempre será algo mais, seja bom ou ruim. Eis a razão de um lugar
ser, na realidade, fragmento: ele sempre se deixará depender da poesia que lhe interpreta
e lhe carrega de significações.
Um texto, qualquer que seja, é também fragmentário. E, por proporcionar essa
mesma visão subjetiva que um lugar para um indivíduo, permite uma recriação de
sentido e valor únicos. O texto suscita uma imagem: “essa obra de arte exige, do
expectador, uma atividade produtiva” (Leite, 2002, p. 144). Ler é o primeiro ato. Há
muito depois do ler. Ler é só olhar a porta, não é sequer abri-la. Ler é só ver a palavra e
se contentar com isso. Sem perceber que tudo na realidade está por trás da palavra:
além da palavra. Fala-se que o escritor americano Ernest Hemingway certa vez foi
incitado a escrever uma história completa com apenas seis palavras. Hemingway
escreveu então a história e chamou-lhe de o seu melhor trabalho: Vende-se: sapatos de
bebê, nunca usados. A palavra é porta de entrada: faz-nos ir a qualquer direção
possível: a palavra é terreno do sentir; e, mesmo que não capte o sentir por completo, o
desperta. “Mas a imagem poética atingiu as profundezas antes de emocionar a
superfície. E isso é verdade numa simples experiência de leitura. (...) Numa imagem
poética, a alma afirma a sua presença” (Bachelard, 1998, p. 6-7). E, se a leitura é uma
atividade reflexiva da percepção, como perceber a percepção? Como delinear a
existência de algo tão fugidio e tão constante como a alma? Como sentir o que o texto
desperta? Não se pode, realmente. Mesmo que seja feito um relato a partir do sentir da
leitura, este será como metalinguagem – descrição segunda de um primeiro comunicar.
No entanto, o texto está aí: é matéria, é criação humana e não só pode como deve ser
interpretado: afinal, é da interpretação que ele nasce e realiza sua função de existir. E “a
percepção é uma atividade, é um estender-se para o mundo” (Tuan, 1980, p. 14). Ao
fazermos isso, ao estendermo-nos através da atividade produtiva que a arte literária nos
suscita, alcançamos algo que a leitura nos propicia com um tempo que é o mesmo nosso
tempo: captamos seu entendimento, um entendimento que é nosso, que é de cada um, e
que cumpre a função social e verossímil do texto literário:
35
São momentos supremos, à sua maneira perfeitos, que a vida empírica, no seu
fluir cinzento e cotidiano, geralmente não apresenta de um modo tão nítido e
coerente, nem de forma tão transparente e seletiva que possamos perceber as
motivações mais íntimas, os conflitos e crises mais recônditos na sua concatenação
e no seu desenvolvimento. (Rosenfeld, 2005, p. 45).
Assim, a interpretação se distancia da obra "apenas o bastante para pô-la em
perspectiva e para fazê-la girar em torno de algum eixo secreto, sem projetá-la num
espaço externo" (Prado Jr., 2000, p. 202). A perspectiva dada pelo leitor transformará a
obra sob sua cognição e lhe conferirá valor de ambiente vivido e conhecido. O ambiente
literário é, assim, espaço: no passar das páginas abrimos portas e caminhamos pelos
lugares, a observá-los e apreendê-los, a criar vínculos e sentimentos. Terminada a
leitura, guardamos o que de lugar tem para nós nesse espaço, e é provável que um dia
nos lembremos do livro ao observarmos algo na vida. E quem há de dizer que aquelas
páginas não fizeram parte de nossa história? “Não se espera de uma obra de ficção que
espelhe fielmente o mundo, mas que, reorganizando-o, nos ensine a vê-lo de modo
amplo e profundo” (Moisés, 1987, p. 35). Entender todas as perspectivas que um livro é
capaz de gerar é entender a própria complexidade humana e a riqueza da visão do
homem sobre seu mundo e vida.
Para citar mais um exemplo do escritor Ernest Hemingway (1899-1961):
All good books are alike in that they are truer than if they had really happened
and after you are finished reading one you will feel that all that happened to you
and afterwards it all belongs to you; the good and the bad, the ecstasy, the remorse,
and sorrow, the people and the places and how the weather was.
A diferença desse mundo literário que faz parte do nosso mundo concreto é que
ele permite uma acessibilidade que lhe é característica. Para uma construção verossímil,
o autor desenha um contexto criterioso, paulatino, aonde se tem acesso a intimidades e
pensamentos: aonde se é onipresente. Enquanto leitores, somos testemunhas de tudo:
conhecemos detalhadamente cada imagem que a construção textual nos permite
imaginar. “Graças ao vigor dos detalhes, à ‘veracidade’ de dados insignificantes, à
coerência interna, à lógica das motivações, à causalidade dos eventos, etc, tende a
36
constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário” (Rosenfeld, 2005, p. 20). Palavra
por palavra constroem-se as imagens mentais que dão forma ao escrito: e o mundo
pensado pelo autor veste-se da subjetividade do leitor. Quem escreve dá o mote, cria
terreno fértil, planta possibilidades.
Então, escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra
pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra - a entrelinha - morde a
isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia
jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca,
incorporou-a. (Lispector, 1999, p. 385).
A ‘não-palavra’ é o que o texto desperta no leitor quando este é tocado pelo texto.
O texto grita e sussurra, esconde e mostra, afaga e esmurra. O texto ora agita, ora
acalma: ora remexe nas lembranças, ora na realidade, ora nos sonhos.
O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, mas que
realiza o próprio plural do sentido: um plural irredutível (e não apenas aceitável). O
texto não é coexistência de sentidos, mas passagem, travessia, não pode, pois,
depender de uma interpretação, ainda que liberal, mas de uma explosão, de uma
disseminação. (Barthes, 1984, p. 74).
O texto representa assim um universo de mosaicos – fragmentos do próprio leitor
que vão sendo assimilados com o exercício da leitura, pedaços que vão sendo ‘achados’
como se complementassem vazios do próprio leitor. Esses ‘mosaicos’ são como
sementes: multiplicam-se ante as associações latentes no leitor. O pensamento que
recebe o lido transforma-se perante as sensações que são despertadas: o mundo do leitor
amplia-se, seu espaço adquire nova extensão e novos lugares são criados.
Toda leitura se passa no interior de uma estrutura (nem que seja múltipla,
aberta), e não no espaço pretensamente livre de uma pretensa espontaneidade: não
há leitura natural, selvagem: a leitura não excede a estrutura; submete-se-lhe:
precisa dela, respeita-a; mas perverte-a. A leitura seria o gesto do corpo (pois é
claro que lemos com o corpo) que, com um mesmo movimento, funda e perverte a
sua ordem: um suplemento interior de perversão. (Barthes, 1984, p. 33)
37
A leitura tem esse poder: agita. É difícil haver imparcialidade na leitura: o ato de
ler é espontâneo, acontece no tempo do próprio leitor – a ato de passar a página é que
delineia esse tempo e é o leitor quem controla essa ação. Nas páginas que vão sendo
lidas há uma semi-construção já feita: uma estrutura base dada pelo autor; mas é o leitor
quem finalizará essa construção e, em releituras, fará ‘reformas’ na construção
primeiramente criada. A transposição do espaço fictício ao espaço pensado pelo leitor
(espaço lido e interpretado) se dá através do elo que ele desenvolve com a história
contada. O espaço do livro por vezes dá lugar a espaços já vivenciados, são ganchos
para memórias e percepções do leitor: “os valores de intimidade são tão absorventes que
o leitor já não lê o quarto (da personagem): revê o dele. Já foi escutar as lembranças de
um pai, de uma avó, de uma mãe (...) do ser que domina o recanto de suas lembranças
mais valorizadas” (Bachelard, 1998, p. 33).
Assim também se dá a relação com as personagens do livro: agentes da ação que o
leitor acompanha, elas são o canal entre o leitor e o ambiente do livro. Para as
personagens, o leitor é um deus-passivo, que as observa cometer os mesmo acertos e
erros, derramar as mesmas lágrimas, sorrir os mesmos sorrisos e enfrentar as mesmas
escolhas e dilemas. O leitor é onipresente, e as personagens, para existirem, estão
sujeitas ao ato que as trazem ao mundo-além de seu autor: a leitura. As personagens e o
leitor participam de uma simbiose múltipla: ao leitor caberão as várias existências que
as diferentes personagens de um livro trazem. E o leitor, inevitavelmente, será um deus-
passivo-parcial: terá suas preferências, desejará o sucesso de umas e o insucesso de
outras, vibrará com desfechos que achará justo e sofrerá junto com as personagens que
achar injustiçadas. O leitor é um ser resignado: a ele é dado o poder de estar presente em
tudo, e de não interferir em nada. Mas o livro opera no leitor e, paradoxalmente,
necessita de sua resignação para existir: são criatura e criador e, ao se relacionarem,
submetem-se um ao outro, como tomados de um amor-mútuo. “Podemos dizer,
portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o
ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem que é a concretização
deste.” (Rosenfeld, 2005, p. 55).
A personagem torna-se então veículo do leitor: é através dela que ele acompanhará
os fatos que se seguem, que ele experienciará diferentes versões de um mesmo
acontecimento, que ele se posicionará perante o que lhe é exposto. Em Água Viva,
Clarice Lispector (1973) diz: “a invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o
futuro” (p. 12). Cada folha lida é isso: a invenção do presente da história para que seja
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instaurado o futuro da história – a história corre pelos olhos do leitor e o acompanha
criar forma diante de sua cognição.
Na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos
conferir certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão dos seus modos-de-
ser. No romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável, que é a
lógica da personagem. A nossa interpretação dos seres vivos é mais fluida, variando
de acordo com o tempo ou as condições da conduta. No romance, podemos variar
relativamente a nossa interpretação da personagem, mas o escritor lhe deu, desde
logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva da sua
existência e a natureza do seu modo-de-ser. (Rosenfeld, 2005, p. 58).
No livro Memorial de Aires, Machado de Assis (1997) descreve a concisão e
identidade das coisas presentes na casa da personagem D. Carmo: “Todas elas traziam
uma alma, e esta era nada menos que a mesma, repartida sem quebra e com alinho raro,
unindo o gracioso ao preciso (...), tudo trazia a marca da sua fábrica, a nota íntima da
sua pessoa” (p. 25). Assim é a construção de uma personagem: cada fragmento dela
une-se a quem ela é, cada ato dela delineia sua personalidade e função dentro do
ambiente observado, que por sua vez, remete à personagem a quem está relacionado.
Neste mundo fictício, diferente, as personagens obedecem a uma lei própria.
São mais nítidas, mais conscientes, têm contorno definido, – ao contrário do caos da
vida – pois há nelas uma lógica pré-estabelecida pelo autor, que as torna
paradigmas e eficazes. (Cândido, Rosenfeld, Prado, Gomes, 2005, p. 67).
No entanto, apesar de sua gravidade estrutural, já que carrega a missão de expor
uma realidade, o livro também nos surpreende através dessa mesma missão: depois de
sorrir e chorar, depois de viver tudo o que nos foi dado viver naquelas páginas em que
andamos, percebemos: chegamos à última página. A realidade nos toma e despertamos
para a noção de testemunha solitária: tudo aquilo que vivemos naquelas páginas só
existe agora em nós; as fotografias daqueles momentos são fotografias mentais – o leitor
é o único registro do que presenciou. A surpresa que as personagens nos prega é quase
cruel: sentimos saudades daquelas pessoas, daqueles lugares. Ainda, sua existência nos
encanta, e brincamos de realidade com eles. Mário Quitana (1977) descreve esse
sentimento no texto Conto Azul:
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Eu já escrevi um conto azul, vários até. Mas este é um conto de todas as
cores. Porque era uma vez um menino azul, uma menina verde, um negrinho
dourado e um cachorro com todos os tons e entretons do arco-íris. Até que apareceu
uma Comissão de Doutores – os quais, por mais que esfregassem os nossos quatro
amigos, viram que não adiantava. E perguntaram se aquilo era de nascença ou se...
― Mas nós não nascemos ― interrompeu o cachorro. ― Nós fomos inventados! (p.
34).
As personagens pertencem a um ambiente próprio: o livro. Têm seu habitat e nele
coexistem fronteiriçamente com o real – já que são seres reais que as criam e que as
observam. Ainda, o seu ambiente guarda ambientes em si: o meio das personagens tem
as significações pertencentes ao homem: os reconhecemos como ambientes que são. Há
que se ter consciência, então, da realidade específica que é uma obra literária: há que
vê-la dentro do eixo de que faz parte: a sua história cabe às páginas de um livro. Os
ambientes que pertencem à obra, mesmo que se pareçam com ambientes existentes no
mundo, não o são: dissociados da história de que fazem parte, não passam de palavras
soltas e substantivos comuns. Como diz a poesia de João Cabral de Melo Neto (1998):
“Ela tem tal composição/e bem entramada sintaxe/que só se pode apreendê-la/em
conjunto: nunca em detalhe” (p. 164). Fisicamente é possível observar a estrutura
costurada de um livro: destaque-o uma página e lhe faltará algo, leia a página desfalcada
e ela deixará de dizer muito. No entanto, fragmentos do real encontram-se nos livros.
Pedaços do mundo concreto foram emprestados à Literatura para que esta pudesse falar
do mundo sem sê-lo.
O princípio que rege o aproveitamento do real é o da modificação, seja por
acréscimo, seja por deformação de pequenas sementes sugestivas. O romancista é
incapaz de reproduzir a vida, seja na singularidade dos indivíduos, seja na
coletividade dos grupos. Ele começa por isolar o indivíduo no grupo e, depois, a
paixão no indivíduo. Na medida em que quiser ser igual à realidade, o romance será
um fracasso; a necessidade de selecionar afasta dela e leva o romancista a criar um
mundo próprio, acima e além da ilusão de fidelidade. (Cândido, Rosenfeld, Prado,
Gomes, 2005, p. 67).
40
No entanto, ao imergir no contexto do livro, o leitor apreende aquele mundo
fielmente: Maria Moura, por exemplo, chora as paredes de sua casa e presenciamos tudo
o que a fez chegar àquele momento: a realidade está ali, a levá-la exatamente para
aquele ponto de sua vida. No conto Os Obedientes, Clarice Lispector (1977) diz: “Mas
se alguém comete a imprudência de parar um instante a mais do que deveria, um pé
afunda e fica-se comprometido” (p. 89). É desse comprometimento que é feita a relação
entre leitor e livro: tem-se que ser imprudente, tem-se que parar, deixar ficar em suas
páginas, adentrar seu mundo, ficar comprometido. Só assim se sabe com alguma
fidelidade sobre aquelas pessoas e sobre aqueles lugares.
2.2 – A autora, o livro e o contexto
2.2.1 – Rachel de Queiroz
Não há como falar da arte e não falar minimamente do artista: criador e criatura
dividem uma matéria em comum. Ainda, historicamente, “os escritores são produtos de
sua época e de sua sociedade” (Facina, 2004, p. 9), assim como as obras que produzem.
E Rachel de Queiroz, em particular, sempre deixou que sua origem geográfica
transparecesse em seus textos: “Rachel capta coisas e seres como os surpreendeu,
expressando, por meio de suas obras, uma visão do mundo bem próxima da realidade
que a circunda” (Assmar, 2006, p. 16). Nascida em Fortaleza, Ceará, no dia 17 de
novembro de 1910 e falecida no dia 04 de novembro de 2003, dormindo em sua rede, na
cidade do Rio de Janeiro, ela foi, em 1977, a primeira mulher eleita para a Academia
Brasileira de Letras (ABL) e chegou aos 90 anos afirmando que não gostava de
escrever. Enraizada na história e cotidiano nordestinos, Rachel marcou seus romances
com grande cunho regionalista. Nas palavras da própria escritora: “Se minha literatura
se fixava aqui, onde nasci e sempre vivi, era porque não a poderia situar num espaço
imaginário e sim no meu espaço natural. (...) É porque o meu extrato social era isso
mesmo”. (Bruno, 1977, p. 119). Assim, o meio da autora está presente em grande parte
de suas obras:
O espaço em que circulam as protagonistas de Rachel de Queiroz é de capital
importância para a compreensão de sua obra. O grande amor da autora pela terra
onde nasceu e a constante ligação com seu povo, particularmente com as pessoas
41
simples do sertão, conferem-lhe o vigor com que fixa tipos humanos e paisagens,
rurais ou urbanas, especialmente da região nordestina. (Barbosa, 1999, p. 65).
Uma das principais representantes da literatura social nordestina, Rachel construiu
personagens verossímeis, fáceis de identificar no dia a dia e na história do sertão,
muitos deles possuidores da rispidez que o clima dessa região apresenta. “Rachel se
insere no contexto áureo da literatura moderna brasileira em que as conquistas formais e
estéticas se afirmam numa produção literária regionalista e social” (Assmar, 2006, p.
16). Pertencente à segunda fase do Modernismo, Rachel de Queiroz teve o prodígio de
dar enfoque a personagens femininas: mesmo na dura realidade do contexto seco
nordestino, como em seu primeiro livro, O Quinze (1930), ela fez que com a seca fosse
vista pelos olhos de uma mulher (Conceição). Na peça O Lampião (1953), também da
escritora, ela recriou a história do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva contada pelos
olhos de sua companheira, Maria Bonita – uma mulher em um bando de homens. No
romance Memorial de Maria Moura (1992), Rachel foi além: fez uma mulher reinar em
uma terra de homens. Assim, Rachel de Queiroz
Difere de seus conterrâneos pela ênfase dada ao papel da mulher no contexto
social. Embora se declare não feminista, destaca, da primeira à última obra, as
figuras femininas lutando em busca de uma independência ainda não alcançada pela
mulher até aquele momento. Elas constituem o centro nuclear da obra queirosiana,
de onde emanam as possíveis transformações significativas da narrativa. (Assmar,
2006, p. 16).
As mulheres queirozianas apresentam dois contrapontos principais: o que o meio
(contexto social) espera delas e como elas reagem ao meio em que vivem. A temática da
‘transformação pelo meio’ está presente nas obras de Rachel na medida em que os dois
extratos mostrados por ela – sertão e urbano – determinam comportamentos das
personagens no enredo das histórias que conta. A narrativa da escritora mostra então o
embate das personagens em relação aos limites impostos pelo meio. As normas sociais e
os costumes são apresentados a partir dos conflitos das personagens, e o teor humano de
seus enredos se prolifera na medida em que o meio interno – ser – e o meio externo –
ambiente – se misturam e dissociam, em um embate próprio à vida e à existência
42
subjetiva. A obra literária de Rachel está intimamente ligada ao contexto social, sendo
voltada para o ser humano, a terra e o meio.
2.2.2 – Memorial de Maria Moura
Memorial de Maria Moura teve sua primeira publicação em 1992 e antes mesmo
de publicá-lo Rachel de Queiroz anunciou: “este será meu último romance”. Ela tinha
então 82 anos. Essa é uma obra que difere de seus outros livros não apenas pelo volume
(482 páginas – 8ª edição), mas pela pluralidade de vozes que narram o romance. Sua
própria estrutura lhe confere esta característica: ao invés de ser dividido em capítulos, é
dividido em falas; separado pelas vozes do Padre (ou Beato Romano), da própria Maria
Moura, do Tonho, do Irineu, e da Marialva (esses três últimos, primos maternos da
personagem-título). As cinco vozes que narram o romance não têm uma ordem fixa de
aparição, e separam ou percepções diferentes de um mesmo fato, ou diferentes tempos
(presente ou passado) – apresentando por vezes, inclusive, duas narrações de Maria
Moura seguidas uma da outra.
A história permeia o sertão nordestino, fato que se torna evidente pela descrição
da paisagem, das roupas, das comidas e do clima presentes no romance. E, embora não
se possa perceber isso claramente a partir do texto, a pesquisadora Maria de Lourdes
Barbosa (1999), ao conversar com a escritora Rachel de Queiroz, descobriu que ao
longo da trajetória de Maria Moura o sertão vai dando lugar ao Centro-Oeste brasileiro:
Rachel de Queiroz costuma situar suas narrativas em espaços conhecidos,
lugares em que viveu; em Memorial de Maria Moura, porém, não informa
claramente onde se situa a fazenda Limoeiro ou a Serra dos Padres. Ambas
poderiam estar situadas em qualquer um dos estados nordestinos que são citados na
obra, os meios de subsistência da fazenda são semelhantes aos de qualquer fazenda
do sertão nordestino; no entanto, por alguns trechos da narrativa, toma-se
conhecimento que os estados do Nordeste são apenas locais em que o bando age.
Em conversa com a escritora, ficamos sabendo que tanto o Limoeiro, como a Casa
Forte se localizam na região Centro-Oeste. (Barbosa, 1999, p. 74).
No livro, as narrações se entrelaçam em direção à personagem central Maria
Moura. E contam, sob óticas diferentes, a trajetória dessa personagem desde os tempos
43
da casa do Limoeiro – terra onde nascera e crescera – à construção e solidificação da
Casa Forte, na terra das Serras dos Padres. De fortes simbologias, esses dois ambientes
principais do romance estão imbricados à própria pessoa de Maria Moura, bem como
aos componentes sociais ali presentes: a terra, o poder/força, o masculino versus o
feminino, a família e a identidade.
Entre idas e voltas de tempo e narrações a história de Maria Moura é explicada:
seus pais, ao casarem, vão morar na casa do Limoeiro, propriedade dos avós maternos
de Maria Moura. Ainda com os pais de Maria Moura em vida, surgia o assunto da
herança dessa casa, que estava destinada aos três filhos dos avós maternos: a mãe de
Moura, a mãe de Tonho, Irineu e Marialva (primos de Maria Moura), e o terceiro filho,
que vendeu – sem papelada que comprovasse – sua parte para o pai dos primos de
Moura, lhes dando, assim, direito de dois terços da terra.
Tinham a parte da mãe deles e a parte do tio que embarcou para o Amazonas
e vendeu aquela parte ao cunhado, pai dos meus primos. Vendeu para levar o
dinheiro na viagem. Muita vez escutei meu pai e minha mãe discutindo, ela falando
na parte do irmão embarcado e ele alegando que o embarcado não deixou recibo,
tudo foi feito com um aperto de mão. E depois da notícia de que o irmão tinha
morrido de beri-beri lá no Amazonas, que prova tinha essa gente para exigir parte
nenhuma? (Queiroz, 1992, p. 36).
O pai de Maria Moura morre quando Maria ainda é pequena e ela e a mãe
permanecem na casa. Com o passar dos anos, a mãe conhece Liberato, que passa a
morar com elas na terra do Limoeiro. Interessado em ser o dono legal da terra, Liberato
ameaça a mãe de Moura para que ela assine um termo lhe repassando seu direito sobre a
terra. Ao se negar a fazer isso a mãe dela acaba assassinada por ele. Tempos depois a
mesma ameaça é feita a Maria Moura, que manda matar o padrasto. Após essas mortes,
aparecem os primos Tonho e Irineu a cobrar suas partes na terra:
E agora? Matar aqueles dois, nem pensar. Desta vez só quem possuía motivo
era eu mesma. Não tinha ninguém pra quem desviar a culpa. E o pior é que eles
eram mesmo donos de dois terços da herança, eu sabia. (Queiroz, 1992, p. 36).
44
Como a figura feminina não tinha força de mando em uma terra dominada por
homens, o plano dos primos era tomar posse de tudo, inclusive da pessoa de Maria
Moura. Na fala do Tonho: “A gente tinha mesmo era que tomar as nossas providências.
Levar uns cabras armados, chegar lá de noite, pegar a gata brava, nem que fosse atada
com corda e trazer para as Marias Pretas” (Queiroz, 1992, p. 46). Em uma terra de
violências simbólicas e práticas, vencia-se pela força física e imposição social. Sabia-se,
de antemão, da posição privilegiada do homem e, paradoxalmente, da condição de
vítima da mulher: “É moça órfã, filha de fazendeiro. Os homens têm consideração”
(Queiroz, 1992, p. 46) – fala do Irineu. Para surpresa destes, ela os expulsa da terra e
promete guerra – que se inicia alguns dias depois. Entre tiros e não podendo mais
resistir ou atacar, Maria Moura, abraçando as paredes de sua casa, ateia fogo no
Limoeiro. Já longe, corta os cabelos com uma faca e diz não ser mais a ‘sinhazinha do
Limoeiro’, e sim ‘Maria Moura’, chefe de um bando de homens, que vai em busca da
terra que ela tem direito de herança por parte da família paterna: a terra das Serras dos
Padres. Começa então sua jornada. Depois de vários momentos ao longo da andança e
sempre atacando os abonados que lhe cruzassem o caminho e, assim, acumulando
riquezas, Maria Moura chega à terra dos Padres e começa a construção do seu império.
Lá ergue a Casa Forte, uma verdadeira fortaleza, de onde só se podia entrar e sair com
sua autorização e onde se tinha uma sociedade de regras próprias. A fama de Maria
Moura, a mulher que se vestia como homem e a quem todos temiam já era grande. Em
meio a sua riqueza e poder Maria Moura sabia que abrir mão de si mesma era abrir mão
da terra: seu maior trunfo e legado. A constante luta para ser essa mulher-homem, líder
e símbolo de força, e a vontade íntima de ser cuidada de forma feminina vêm à tona em
uma paixão que lhe traz grande desilusão – mais uma vez ela escolhe a terra como
destino. A esta altura, a Casa Forte já está bem consolidada e mantém-se com
tranqüilidade entre a fábrica de pólvora e o cultivo de gado e plantações. O livro termina
em uma aventura em que Maria Moura se lança para acumular mais riquezas e poder. A
busca constante, o auto-desafio, o bradar “eu posso” parecem ser o impulso-mor de
Maria Moura. Nessa última aventura do livro não fica claro se a personagem retornará
com vida.
A obra é a saga de uma mulher que desperta para as estratégias: a trama central de
Memorial de Maria Moura se dá sobre a terra: é esse o mote, a linha que costura o
enredo e traz sentido ao contexto lá existente. A terra é a simbologia de todo bem
material: é o relacionamento com ela que perfaz a condição social na região. Se dono da
45
terra, tem-se o poder em mãos; se jagunço da terra, é-se nada mais que ‘homem do
sítio’. A mulher não cabe nesse contexto: sua existência se limita à cozinha e ao quarto;
e mesmo nas ruas da cidade as mulheres ‘de família’ só são vistas na igreja. É nesse
âmbito de existência masculina que surge Maria Moura a desafiar os homens em nome
de uma terra que pudesse chamar de sua.
2.2.3 – O masculino e o feminino em Memorial de Maria Moura
“A S. M. ELISABETH I, Rainha da Inglaterra (1533 – 1603), pela inspiração”. É
assim que Rachel de Queiroz inicia a dedicatória de Memorial de Maria Moura. A
rainha Elisabeth I ficou conhecida por suas estratégias de poder e liderança em defesa e
conquista de terras para a Inglaterra e também conhecida como a rainha que nunca
escolheu um Rei como companheiro para que não tivesse que dividir seu poder de
decisão e independência.
Nascida em 1533, Elisabeth era filha de Henri VIII e Ana Bolena. Esta, dame
d’honneur da rainha Catarina de Aragão, conquistou os favores do rei que,
divorciando-se da esposa, promoveu em grande pompa sua coroação em
Westminster. Nascia, em seguida, Elisabeth. O rei desinteressou-se rapidamente da
nova esposa, condenada à morte por adultério num tribunal do qual participou seu
próprio pai. Ana morre em 1536, deixando Elisabeth com três anos e declarada
ilegítima; seus direitos foram reconhecidos oito anos mais tarde. Em 1558, com 25
anos, ascendeu ao trono e moveu-se entre católicos e protestantes, tomando partido
dos segundos, em oposição ao partido católico, para o qual permanecia bastarda.
Lutou contra o poder de Mary Stuart, em torno do qual reuniam-se os católicos –
que a excomungaram em 1570 –, e foi responsável pela sua execução, em 1587.
Durante seu reino, a Inglaterra viveu um período de grande expansão marítima,
tendo derrotado a grande armada espanhola. (...) Chamada de ‘a rainha virgem’ (...),
teve seus favoritos, porém nunca casou, nem teve filhos. Teve então que deixar o
trono para o filho de Mary Stuart. (Schpun, 2002, p. 178).
A história da rainha Elisabeth se entrelaça à história de Moura. Entre o amor e a
liberdade, a segunda sempre foi a escolhida. Nas palavras da própria Maria Moura:
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Além do mais eu tinha horror a casamento. Um homem mandando em mim,
imagine; logo eu, acostumada desde anos a mandar em qualquer homem que me
chegasse perto. Até com o Liberato, que era quem era – perigoso –, achei um jeito
de dar-lhe a última palavra. Um homem me governando, me dizendo – faça isso,
faça aquilo, qual! Considerando também dele tudo que era meu, nem em sonho – ou
pior, nem em pesadelo. E me usando na cama toda vez que lhe desse na veneta. Ah,
isso também não. (Queiroz, 1992, p. 324).
Maria Moura contrasta com as mulheres de seu tempo: a história se passa no
século XIX, ainda em um Brasil extremamente patriarcal, em que os homens tinham
poder de mando sobre as mulheres e a estas, o papel social esperado era a passividade.
À exploração da mulher pelo homem, característica de outros tipos de
sociedade ou de organização social, mais notadamente do tipo patriarcal-agrário (...)
convém a extrema especialização ou diferenciação dos sexos. Por essa
diferenciação exagerada, se justifica o chamado padrão duplo de moralidade, dando
ao homem todas as liberdades de gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir
para a cama com o marido, toda a santa noite que ele estiver disposto a procriar. (...)
O padrão duplo de moralidade, característico do sistema patriarcal, dá também ao
homem todas as oportunidades de iniciativa, de ação social, de contatos diversos,
limitando (...) a mulher ao serviço e às artes domésticas, ao contato com os filhos, a
parentela, as amas, as velhas, os escravos". (Freyre, 2000, p. 125).
Ademais, essa cultura patriarcal, em que o masculino impunha os ditames (na
figura do pai, do marido, ou irmão/primo), é regida pelo poder simbólico, pela
imposição da força, pela subjugação do feminino. Para entender os caminhos escolhidos
por Maria Moura é necessário perceber que seu contexto social lhe colocava em uma
situação em que ou ela seguiria como ‘sinhazinha’, sem voz ou poder de decisão, ou ela
promoveria uma quebra, indo de encontro aos valores de seu tempo. O contexto social e
o tempo vivido são fatores limitantes do espaço. Em Memorial de Maria Moura, o
gênero era delimitador de ambientes:
Quando menina, ainda, saía pela mata com os moleques, matando passarinho
de baladeira, pescando piaba no açudinho, usando como puçá o pano da saia. Mas
depois de moça, a gente fica presa dentro das quatro paredes de casa. O mais que
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saí é até o quintal para dar milho às galinhas, uma fugidinha ao roçado antes do sol
quente, trazer maxixe ou melancia, umas vagens de feijão verde. O curral é
proibido, vive cheio de homem. E ainda tem o touro, fazendo pouca vergonha com
as vacas. Fica até feio moça ver aquilo.
Restava ainda o banho no açude, tomado muito cedinho, a água ainda morna.
Mas banho só naquela hora certa, que os homens respeitam. Já sabem que não
podem chegar no açude e ai de quem vá espiar. Por causa de banho de mulher já
tem morrido muito rapaz adiantado. Pela mão de um pai ou marido mais zeloso.
Passeio na vila era ainda mais difícil, só mesmo nas festas da igreja. Mas
nunca entrei em uma dança – filha de fazendeiro não vai a samba de caboclo, nem
mesmo a baile de bodegueiro da vila. E na casa dos fazendeiros ricos, ninguém me
convidava, depois que Pai morreu, eu fiquei moça e Mãe caiu na boca do mundo.
(Queiroz, 1992, p. 62).
A questão da imposição no contexto de MMM passa pela relação entre o
masculino e o feminino; e o sexo também impõe o espaço a que se tem direito dentro
desse contexto social. Tem-se um exemplo dessa imposição espacial definida a partir do
gênero na personagem Marialva, prima de Maria Moura. Valentim – moço circense
enamorado por Marialva, diz em relação aos irmãos dela:
E hoje o Duarte, aqui, conversou comigo. Confirmou que eles trazem você
como prisioneira... com medo de que se case e bote um cunhado aqui, querendo
dividir tudo. (...) Já pensei nisso tudo. E, porque pensei, não vou pedir sua mão em
casamento a ninguém. Vou lhe roubar. (Queiroz, 1992, p. 132).
Para ela, que era praticamente mantida como prisioneira para que eles não
corressem o risco de dividir os bens da família, a única saída era a de um casamento
fugitivo; mesmo casando oficialmente – para que se sentisse de acordo com os valores
morais esperados de uma mulher, era preciso adentrar um outro espaço masculino: o do
seu marido, para sair do espaço regido pelos irmãos. É a partir da visão de Moura, que
quer conquistar um espaço seu, e de Marialva, que também quer viver além da terra das
Marias Pretas, que podemos traçar um panorama da restrição ambiental a que as
mulheres são submetidas nessa sociedade e tempo. Marialva diz sobre seu quarto:
“camarinha de moça não tem janela; a minha, já se vê, não tinha mesmo”. (Queiroz,
1992, p. 138). Ainda, se nas cantigas de ninar e histórias infantis estão plantadas papéis
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sociais reconhecidos, vê-se um exemplo da posição masculino X feminino na canção
que Rubina (escrava forra, ama de Irineu e Marialva e mãe de Duarte, meio-irmão dos
mesmos) canta para Marialva enquanto ela espera ‘ser roubada’ por Valentim – mesma
canção que entoava quando ela criança:
A princesa encarcerada
No seu castelo a indagar
Já vês cavalo na ponte?
Já vês a vela no mar?
Nada vejo, minha mana
Vinde vós mesmo espiar
Ai não, tenho os olhos cegos
Só me servem pra chorar... (Queiroz, 1992, p. 95).
À passividade feminina se junta o encarceramento, o espaço limitado, o aguardo
da guia masculina, o drama de uma espera por caminho: um caminho ditado e
anunciado por outros. Moura estava então limitada à casa do Limoeiro e, quando esta se
tornou ameaçada, sua personalidade impôs-se à sua biologia: subjugou sua condição de
mulher e transgrediu o que era esperado do seu gênero. O próprio percurso de Moura
tomou caminhos transgressores: filha única, órfã de pai, Maria tornou-se uma
sinhazinha sem senhor. Restavam-lhe duas opções: acatar seu papel de mulher e abraçar
a passividade perante outras figuras masculinas (como seus primos); ou transgredir sua
condição social e assumir um comportamento destinado aos homens: “Desta vez eu
tinha que me declarar. Resistir e atacar, porque – essa certeza eu tinha – eles não iam
dar por menos” (Queiroz, 1992, p. 43). Maria Moura, sem senhor, torna-se então
senhora de si. “Eu nunca na vida tinha encontrado quem fizesse as coisas para mim.
Desde a morte de Mãe, de mim é que se esperava que fizesse tudo. Até brigar como
homem. Ou fui eu mesma que escolhi assim?” (Queiroz, 1992, p. 304). Assim, para
assumir-se dona do próprio destino, Moura incorpora as mesmas regras que antes a
subjugavam: entra no universo simbólico-masculino.
A protagonista, ao romper com a submissão feminina típica da organização
patriarcal, transmigra da posição social de sinhazinha à de jagunça, ocasionando a
transgressão dos valores vigentes. Transgressão esta, contudo, que se dá pelo
continuísmo da ideologia patriarcal por meio de uma mulher que reproduz o modelo
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masculino nas relações de poder, principalmente ao encarnar o papel de senhor de
baraço e cutelo (Langaro, 2006, p. 65).
A Maria Moura ‘sinhazinha’ anuncia sua morte-simbólica após a saída do
Limoeiro, como se essa versão de si tivesse ido junto com o fogo que queimara aquela
casa. Ela declara então o surgimento da ‘Maria Moura’, chefe de um bando de homens.
Vestida com as roupas que eram do Pai, anuncia:
Aqui não tem mulher nenhuma, tem só o chefe de vocês. Se eu disser atire,
vocês atiram; se eu disser que morra é pra morrer. Quem desobedecer paga caro.
Tão caro e tão depressa que não vai ter tempo nem para se arrepender. (Queiroz,
1992, p. 84).
Os espaços perpassam a própria pessoa de Moura, em um tempo em que o poder
era voz e a terra era mensagem pulsante sob os pés: declarando senhores e subjugados.
Ao tomar para si o destino de suas terras – seja com o fim do Limoeiro por suas mãos,
seja com a construção da Casa Forte, Moura adquire um papel original em seu meio: se
transforma em mulher que decide seu próprio destino, se transforma em mulher que tem
voz. Rachel de Queiroz, "numa construção talvez utópica, provocadora, mas em todo
caso paradigmática, traz Maria Moura ameaçando e efetivamente atravessando os
limites que separam o masculino e o feminino enquanto territórios do social" (Schpun,
2002, p. 186). Em termos espaciais, Maria Moura é mulher fazedora de lugar: ultrapassa
os limites destinados ao feminino e desbrava a terra com sede e gana só permitidas aos
homens de sua sociedade.
Toda a dinâmica da obra desenvolve-se em torno de uma inversão entre o
feminino e o masculino operada por Maria Moura que, apesar de apresentar-se
como Dona Moura, veste-se como homem, tem os cabelos curtos, anda armada e
reina sobre seus homens executando a lei e a justiça. (...) Assim, para Maria Moura,
a solução de herdar do pai as calças e o cinturão acaba sendo, dentro do horizonte
existente, a melhor. Ou seja, tendo em vista o frágil destino reservado a uma moça
em suas condições, em meio aos esforços de Liberato e dos primos em tomar-lhe as
parcas terras, passar para o lado dos homens parece resolver o problema. Eis o
sentido da inversão operada. Sentido de liberdade que, como ela sabe, não está do
lado feminino. (Schpun, 2002, p. 179/182).
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No contexto da obra o ambiente é regido pelo masculino, e essa é uma barreira
que só seria transponível ao se abraçar a própria realidade masculina: e é justo esse o
caminho que Moura encontra. Ao apresentar-se caracterizada pelas roupas de seu pai,
Moura deixa de ser a sinhazinha que não pôde salvar o sítio do Limoeiro e torna-se a
mulher-jagunço que ordena homens e caça terra. Herdeira por si mesma: e não pela mão
de um marido ou irmão. O contraste entre o masculino e o feminino interliga-se à
disposição dos donos de terra e dos subjugados a esses. A representação social, o
reconhecimento de um ambiente enquanto lugar demarcado pertence aos homens: e
Maria Moura tem a questão ambiental tão forte em si, que a ela não basta ser sinhazinha
da terra regida por um homem. Moura representa então algo nunca visto antes dentro
daquele contexto: uma mulher dona de terras – de posse e de direito. A simbiose entre
Moura e seus lugares é tão pulsante que ela necessita falar por si, precisa ter controle
sobre seu corpo e sobre seu território. É assim que nasce a ‘Dona Moura’: a busca por
um lugar controlado e reconhecido como seu é maior que a limitação social atribuída às
mulheres de seu tempo. Assim como para a Rainha Elizabeth I, a importância da terra e
do que ela representa, inclusive para a sustentação do poder e persona de Maria Moura,
está de tal forma acima da vida pessoal de Maria e da sua feminilidade (sempre posta
em segundo plano), que quando ela tem que escolher entre sua grande paixão, Cirino, e
a segurança da Casa forte, é o bem-estar da terra que ela escolhe: mesmo pondo em
xeque o seu próprio bem-estar. A sustenção do poder através da terra é mais forte que
tudo e, em seu entender, Maria faz-se dona de seu destino ao fazer-se dona de seu
espaço.
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III – A Pesquisa: nas páginas de MMM com uma lupa
ambiental É a própria obra literária que decreta o
procedimento a adotar: o caminho a percorrer inicia-se na obra e termina no método.
(Massaud, 1997, p. 20)
A questão inicial da qual nascem todas as outras questões desta pesquisa é: e se
olhássemos para dentro do livro Memorial de Maria Moura com uma ‘lupa
ambiental’? Se quisermos ver a questão da orfandade, casamento e sexualidade
feminina em MMM (Barbosa, 1999) esse livro nos dá elementos para fazê-lo. Se
quisermos ver a questão do comportamento feminino (Schpun, 2002) também Rachel de
Queiroz construiu um contexto que permite essa análise. Se quisermos ainda ver a
simbologia da guerreira-donzela em Moura (Langaro, 2006) a trajetória dessa
personagem caracteriza essa leitura. Mas e se quisermos pôr em foco o fato de toda a
trajetória de Maria Moura acontecer a partir da terra? Em um romance em que a
personagem principal abraça as paredes de sua própria casa, em que ateia fogo ao lugar
que lhe é mais querido para não entregá-lo a quem acha que não o merece, ou que faz
toda uma trajetória de busca para encontrar o lugar-sonhado, há que se perceber que o
teor ambiental dessa obra é grande.
3.1 – Uma análise do livro Memorial de Maria Moura: Por quê? Como?
O ponto de partida: uma personagem regida pela busca de um lugar. Não apenas
qualquer lugar, não apenas um lar, mas um local que seja tão grandioso quanto a sua
necessidade de busca. Maria Moura tem sede, muita sede: e a água é a terra: e quanto
maior e mais exuberante a terra, mais a sua sede é ao mesmo tempo confortada e
estimulada: “Eu sentia (e sinto ainda) que não nasci para coisa pequena. Quero ser
gente. Quero falar com os grandes de igual para igual. Quero ter riqueza! A minha casa,
o meu gado, as minhas terras largas. A minha cabroeira me garantindo”. (Queiroz, 1992,
p. 125).
A personagem de Rachel de Queiroz enxerga na terra, caminho: caminho para o
poder, caminho para a garantia de sucesso, caminho para a segurança, caminho para ser
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respeitada no universo masculino que ela transgride a cada minuto. A terra é uma
geradora de possibilidades: é através dela que tudo o mais se dá.
No entanto, academicamente, como olhar para o contexto que envolve Maria
Moura? O que seria essa ‘lupa ambiental’ a vasculhar as linhas escritas por Rachel de
Queiroz? Como se daria uma análise do livro Memorial de Maria Moura à luz das
relações pessoa-ambiente nele contidas?
Inicialmente seguiu-se o caminho-primeiro de estudo de qualquer livro: a leitura e
a releitura da obra. Exponho então um detalhe importante na trajetória que qualquer
leitor faz ao adentrar no universo de um livro: toda interpretação do lido deixa-se a
depender do situar-se do leitor. Explico: a leitura flui de acordo com o que chamarei
aqui de fator-curiosidade. Ou seja: se leio MMM tendo como fator-curiosidade a
sexualidade da personagem, então saltarão sob minha leitura os trechos que envolverem
essa característica. Se por outro lado meu fator-curiosidade é o uso da força simbólica
em MMM já terei sob meus olhos outros detalhes do livro.
No entanto, uma primeira leitura, a leitura-primeiro-contato, é de tal forma o
percorrer de um novo caminho, que o que vem à tona ao longo dessa leitura deixa-se a
depender do que é então despertado no leitor. O fator-curiosidade surgiria então como
um re-olhar, como um ato segundo, como um retorno ao que foi desperto. A cada novo
retorno, novos elementos são observados: como se o terreno de linhas e entrelinhas
ficasse mais rico de detalhes à medida que se passe mais tempo a observá-lo. Assim, o
fator-curiosidade aqui, foi o que chamo de lupa ambiental: o que esteve a aguçar as
releituras do MMM foram justamente os aspectos ambientais que o livro carrega, foram
as simbologias dos lugares-chave, foram as buscas e processos de formação de lugar
nele contidas.
Clarice Lispector diz sobre o escrever:
Às vezes, tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa.
É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever
que, muitas vezes, fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes
não sabia que sabia. (Lispector, 1999, p. 254)
O processo de leitura não é diferente: a curiosidade vai sendo despertada,
surpresas vão acontecendo, consciências vão sendo criadas, conhecimentos vão sendo
apreendidos, despertos. Ao ler com o objetivo de encontrar algo que já previamente se
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procura (no caso a relação pessoa-ambiente), o caminho vai sendo trilhado de forma
aguçada: o fator-curiosidade é como uma lente minuciosa a farejar o caminho e a
apontar a direção. Mas, uma vez que já temos como certo o estado de consciência que é
despertado através da leitura e da busca de um objeto nas páginas lidas, o que fazer à
medida que esse objeto for sendo encontrado?
Nesta pesquisa “como” e “por quê” andam lado a lado: “a análise constitui um
modo de ler, de ver o texto e de, portanto, ensinar a ler e a ver” (Moisés, 1987, p. 22). E
são os elementos que estão contidos no texto que irão determinar o tipo de análise a ele
cabível. O texto ‘me leva’ para a direção que nele for apontada como mais forte a mim:
o que me ‘salta aos olhos’, o que se evidencia na leitura, o que se torna destaque a partir
do situar-se em questão. Toda leitura é um ato de cumplicidade entre leitor e texto. “O
ato de ler é sempre especulativo; diante do texto o leitor examina, observa, pesquisa,
medita, raciocina, reflete, considera”. (Oliveira, 1999, p. 40). Ainda, “a análise literária
implica em desmembrar o texto em seus principais núcleos” (Moisés, 1987, p. 14).
Divide-se para então multiplicar: o texto fragmentado exige a conexão com o seu todo,
o contexto que palpita dele gera as diferentes leituras que o texto suscita. O texto
fragmentado abre portas diversas para o todo de que faz parte.
Assim, dividiu-se o livro Memorial de Maria Moura em quatro núcleos de análise:
1) o sítio do Limoeiro; 2) o período de Andança, 3) o período de Assentamento e 4) A
Casa Forte. O sítio do Limoeiro e a Casa Forte são os dois ambientes principais do
livro: e tudo o mais (andança e assentamento) é a trajetória e a preparação entre a saída
do sítio e a construção da Casa Forte:
1. Sítio do Limoeiro: A casa do sítio do Limoeiro é onde Maria Moura nasceu: é
seu lugar primeiro, receptáculo e palco de suas memórias. No entanto, é nesta casa
também aonde sempre conviveu com o sonho da terra das Serras dos Padres, em
histórias e direcionamentos contados e recontados por seu avô e seu pai, na esperança
de que um dia essas terras fossem retomadas por um marido ou filho de Maria Moura
(no contexto de MMM é esperado do homem a luta pela terra, pelo lugar).
2. Andança: quando acontece a saída forçada do sítio do Limoeiro e onde a
personagem Maria Moura inicia um período de mudança de entornos e valores. Maria
Moura e seu – então pequeno – bando iniciam a longa caminhada rumo às terras a que
ela tem direito por lei, herdadas da família paterna.
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O período da Andança é a representação do conhecimento do espaço por Maria
Moura: é movimento, percepção das possibilidades de mundos, é trajetória rumo a um
lugar, espaço transitório e rito de passagem (transformação pessoal) (Campbell, 1990).
3. A Serra dos Padres e o Assentamento: Terra prometida de Maria Moura. Da
qual era a única herdeira do avô paterno. Tomar posses dessas terras era o sonho da sua
família a gerações. Maria Moura e seu bando iniciam então o processo de planejamento
e construção da Casa Forte. Um lugar especial é muitas vezes um lugar projetado,
sonhado, pensado, idealizado, planejado: e assim é a Casa Forte para Moura. Ao fim da
Andança, ao encontrar a Terra das Serras dos Padres, Maria Moura ainda necessita de
tempo e espaço para apropriar-se de seu lugar ideal. Esse período, pré-Casa Forte, é o de
Assentamento, quando um pouso temporário é achado (de onde se sai e para onde se
retorna) enquanto se dá a construção da Casa Forte.
4. A Casa Forte (CF): A Casa Forte era a fortaleza idealizada e construída por
Maria Moura, como uma pequena cidade, a CF tem relações e leis próprias de seu
contexto. É também a materialização de um lugar que já existia no plano abstrato:
repleto de simbologias das figuras masculinas de sua família. Maria Moura finalmente
constrói para si a representação social de que necessitava para ter poder numa sociedade
de homens: sua casa era mais que um pai ou marido: era uma masculinidade criada
para si própria. Mais que uma casa, a Casa Forte é uma mensagem.
Essas quatro partes não representam seções definidas na própria estrutura do
romance escrito por Rachel de Queiroz, mas uma divisão em que nos apoiamos para
abordar os diferentes entornos presentes na história. Não por acaso, essas quatro partes
também apresentam tempos diferentes dentro do contexto do livro, bem como relações e
percepções distintas, porque momentos diferentes, sobre os entornos presentes nas
mesmas.
3.2 – O objeto e o método
Horácio Dídimo (2002) recitou: “começo a andar pelas calçadas/olhando para
fora/de mim/descubro pedras objetos pessoas caminhos” (p. 41). A relação pessoa-texto
é um diálogo: o como-fazer está no leitor, mas está também no texto. Moisés (1987) diz
que o método de análise é escolhido “sempre que o texto determinar” (p. 18). Isso,
claro, acontece por meio do leitor: que percebe através do texto os instrumentos que
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esse disponibiliza para a análise. Essa relação é então sensitiva: como na poesia de
Dídimo, o caminho está fora de nós, mas somos nós quem caminhamos no caminho, é
uma relação entre o olho e o que se deixa ser olhado. As ‘pedras objetos pessoas
caminhos’ estão fora de nós, mas é deixando-os entrar em nós através do
andar/descobrir que somos realmente capazes de vê-las.
Assim, como objeto deste estudo temos os capítulos narrados por Maria Moura no
livro de Rachel de Queiroz (1992). De dentro deles, foram extraídas passagens que
guardam em si as relações pessoa-ambiente: essas, ao se evidenciarem no texto através
das leituras, puderam ser delineadas e encaixadas em categorias que pertencem à
Psicologia Ambiental. Dessa forma, no processo de separação desses trechos, se
percebeu neles a presença constante de três conceitos trabalhados nos estudos pessoa-
ambiente: a Territorialidade (Itteltson, et all, 1974; Pedersen, 1997; Sockza, 2005;
Sommer, 1973); a Apropriação (Pol, 1996; Tuan, 1980; Bachelard, 1998), e a
Vinculação ao Lugar (Tuan, 1983; Giulinani, 2004; M. Santos, 1982; Hay, 1998).
No entanto, ao buscarmos a forma mais próxima do ideal para analisarmos essas
passagens, nos deparamos com algumas questões: deveríamos utilizar que métodos de
análise textual? Se esse estudo se pretendia uma pesquisa das relações pessoa-ambiente,
como adentrar o universo literário e utilizar, neste, referenciais da Psicologia
Ambiental?
Deparamos-nos com algumas estratégias disponíveis para estudos em Literatura:
métodos de análise crítica (Bergez et all 1997; Moisés, 1987), métodos de análise social
(Facina, 2004), métodos de análise psicológica (Bartucci, 2002; Leite, 2002) e
fenomenológica (Ramos, 1972; Bachelard, 1998), dentre outros. Em todos esses
métodos, o teor literário do texto aqui escolhido poderia ser trabalhado. Salvaguardando
que tivemos como conteúdo não apenas a análise literária de Memorial de Maria Moura,
mas a associação dessa com outra ciência, decidimos por nos pautar no olhar crítico
dessa reunião.
A cada vez que entramos em contato com um texto literário, o que
encontramos são restos que nos escapam e o inominável que nos inquieta. A crítica,
ao indicar o texto como seu objeto, ao invés de extrair dele um sentido, nos
presenteia com produções mais complexas resultantes da articulação com o pré-
texto estudado. (Radaelli, 2007, p. 105).
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Fizemos assim, uma leitura crítica textual que teve como primeira fase a
fragmentação do texto, o desmembramento desse: uma vez que a relação pessoa-
ambiente teve como critério inicial os quatro núcleos de análise já citados (Casa do
Limoeiro, Andança, Assentamento e Casa Forte).
Uma das preocupações ao longo dos porquês desta pesquisa foi a de apontar não
apenas as possibilidades contidas na Literatura para os estudos pessoa-ambiente, mas a
de pontuar a sua especificidade, uma vez que o que está sob análise é um contexto
fictício. Dito isso, e considerando o caráter muitas vezes formal dos estudos
acadêmicos, perguntamo-nos: como fundamentar um olhar analítico sobre as relações
humano-ambientais em uma obra literária trazendo para o estudo em questão a
legitimidade científica que se almeja?
A resposta que encontramos foi a de que este estudo se dá através de duas
ferramentas: um par de olhos e um diálogo. O par de olhos é o da leitora-pesquisadora
que conversou durante meses com Maria Moura; o diálogo são as várias associações
que a leitora fez entre o mundo de Moura e o mundo real – nessas associações estão,
entre outros, teóricos da Psicologia Ambiental, da Literatura e da Filosofia. Como ser
que se deixa adentrar pelo texto, ao leitor resta conversar com o impacto que a leitura
causa em si:
Isso porque, com o impacto surpreendente, o leitor interrompe bruscamente a
leitura e entra em suspensão. Com isso, é conduzido para uma posição de
'fantasmar' e de refletir sobre o que aconteceu, para poder retornar à leitura logo em
seguida. Nesta retomada, a continuidade temporal se restabelece e o eu do leitor se
recompõe novamente. Enfim, se restabelece um retorno do leitor sobre si mesmo,
que é o correlato do seu retorno para a seqüência narrativa do texto. (Briman, 1996,
p. 57)
Assim, como a análise sobre um texto a partir da própria experiência de leitura não
pode fugir de uma escrita autoral, este é então um estudo-sentido do livro Memorial de
Maria Moura, tendo em foco a mútua convivência entre Moura e os espaços que lhe
foram significativos.
57
3.3 – Conceitos da relação pessoa-ambiente presentes em Memorial de Maria
Moura
Barbosa (1999) fala sobre Memorial de Maria Moura: “a terra exerce um fascínio
extraordinário sobre a protagonista e sua família, por ela são capazes de tudo, inclusive
matar” (p. 46). A bem verdade é que é a nossa relação com as coisas que as definem. É
o meu sentimento para com tal coisa que lhe conferirá sua importância (ou não) para
mim.
Não amamos ou desamamos lugares, coisas, paisagens. Amamos ou
desamamos o significado delas para nós como representantes dos nossos
investimentos que por seu turno bem podem ser outras representações de outros
representantes, uma complexa cadeia de constructos entrelaçados. (Sockza, 2005, p.
9).
Assim, é a todo esse complexo contexto sócio-emocional que cabe não apenas as
experiências de cada um, mas o tempo que produz esses significados. “Experiências
íntimas são difíceis, mas não são impossíveis de expressar” (Tuan, 1983, p. 163). A
Literatura, por sua vez, é um instrumento de expressão das experiências íntimas dos
personagens: mais que isso, ela guarda em si o tempo destes. Como uma seqüência de
acontecimentos, a obra guarda diferentes momentos, logo, diferentes percepções dos
espaços tratados e das relações com esses. “Dir-se-ia que o fim último, consciente ou
não, de qualquer narrador consiste em criar tempo” (Moisés, 1987, p. 101). O tempo
que se divide em si mesmo na sua fragmentária continuidade é também criador dos
espaços. Os espaços, por sua vez, ao serem concretos geograficamente, abstraem-se e se
misturam ao sentido, por receberem impressão e interpretação.
A literatura costuma interrogar a certeza que possuímos quando acreditamos
na concretude dos espaços. Não se trata de negar a existência do espaço físico, mas
de chamar atenção para o fato de que é impossível dissociar, do espaço físico, o
modo como ele é percebido. (L. Santos, Oliveira, 2001, p. 69).
É justamente nessa percepção dos espaços, criadora da relação que se tem com
eles, de onde nasce o elo entre pessoa e ambiente. Dentro das inúmeras caracterizações
possíveis desse elo, três estão constantemente presentes em Memorial de Maria Moura;
58
foram esses os três conceitos da Psicologia Ambiental por nós trabalhos ao longo da
análise:
1) Territorialidade – Sentimento de proteção ante um lugar e/ou o próprio corpo.
Geralmente a territorialidade se torna mais evidente quando há ameaça de invasão,
quando algo ou alguém tenta trespassar a área sentida como território. Essa área sequer
necessita ser de posse legal do indivíduo, já que a territorialidade é intrínseca à
apropriação e a vinculação ao lugar, ou seja, à vivência, à relação que se tem com esse
lugar. A territorialidade é sentida como aspecto intrínseco da relação pessoa-ambiente:
está relativa ao que se tem como seu, ao seu espaço, ao seu ambiente, ao seu lugar.
“One way man achieves a sense of control over his life is through his ability to control
significant behaviors in defined areas of space” (Itteltson, et all, 1974, p. 142). Embora
evocada sempre que se sente o perigo de invasão, o sentido de territorialidade também
pode estar associado a atitudes preventivas: muros, portões, delimitações de terreno,
esquema de segurança, etc. O conceito de territorialidade está interligado também à
privacidade: “privacy may be viewed as a boundary control process in which the
individual regulates with whom contact will occur and how much and what type of
interaction it will be” (Pedersen, 1997, p. 147). Ao longo da trajetória de Moura
podemos observar predominância desse conceito não apenas em relação ao seu corpo,
mas aos espaços que tem como queridos, em especial a casa do Limoeiro, a Casa Forte e
as roupas e objetos de seu pai.
2) Apropriação – À medida em que um espaço vai se tornando parte de nossas
vidas, temos a necessidade de personalizá-lo de acordo com nossas características e
subjetividade. Quanto mais tempo se passa em nossa relação com esse lugar, mais
marcas nossas deixamos nele: provas concretas para nós mesmos e para os outros de
que habitamos, de que utilizamos tal lugar. Nas palavras de Pol (1996):
El ser humano, como la mayoría de otros seres animales necesita marcar su
territorio, aunque sea de forma sofisticada. Necesita sus referentes estables que le
ayuden a orientarse, pero también a preservar su identidad ante si y ante los demás.
Identidad y pertinencia, privacía e intimidad, ser causa y a su vez dejarse llevar por
sus referentes, constituyen la clave de la creación y la asumción de un universo de
significados que constituyen la cultura y el entorno del sujeto, fisicalizado a través
59
del tiempo en un espacio ‘vacío’ que deviene un ‘lugar’ con sentido. Es lo que
llamamos apropiación. (p. 45)
Moura passa, em termos gerais, por quatro períodos distintos de apropriação da
casa do Limoeiro: um com o pai vivo; outro com a mãe viúva; outro já órfã, mas com a
presença do padrasto Liberato; e um último já sozinha. Além desse espaço, podem ser
observadas ainda apropriações dela em relação aos espaços com que entra em contato
nos períodos da Andança e do Assentamento. No entanto, são ainda mais visíveis,
porque nascem inclusive de antecipações e planejamentos, as apropriações de Moura em
relação a Casa Forte.
3) Vinculação ao Lugar – O contato contínuo com um lugar cria um elo afetivo
que, mesmo quando da destruição desse lugar, ou mesmo que ele só exista no plano
abstrato, nos sentimos vinculados a ele. Nesse vínculo perpassa a nossa identidade e o
nosso senso de lugar. Daily or periodic (physical) contact with a place is necessary to
maintain a sense of place, just as such contact is necessary to maintain other
relationships; otherwise, the sense of place becomes more nostalgic in character (Hay,
1998, p.6). É esse elo emocional (place attachment), que cria “potenciais similitudes
entre vinculações íntimas a pessoas e a lugares e o por vezes amargurado luto com a sua
perda” (Speller, 2005, p. 140) ou não realização. Por ser parte das nossas referências
enquanto criadores de sentimentos, a vinculação ao lugar está imbricada à nossa história
pessoal, bem como à nossa própria identidade. All aspects of identity will, to a greater
or lesser extent, have place-related implications (Twigger-Ross, Uzzell, 1996, p. 206).
Os ambientes de MMM estão arraigados de simbologias: e, muitas vezes, é delas
que parte o vínculo de Moura com os mesmos. Aspectos como sua infância, a relação
com seus pais, e a metáfora masculina são algumas das associações aos vínculos
relativos aos lugares presentes na obra.
A partir desses três conceitos pudemos perceber melhor a significação dos espaços
para Moura. Entre o tempo e a espacialidade da vida dessa personagem, a percepção dos
ambientes sob sua cognição e sentir nos foi caracterizada. O ser humano Maria Moura é
benevolente com quem o lê: dá-se por inteiro. Tivemos assim acesso à Moura que
nenhum personagem do livro teve; somos um pouco Rachel de Queiroz nesse sentido:
escrevemos Maria Moura à medida que a lemos.
60
3.4 – A Psicologia Ambiental e seus Pressupostos
O pressuposto para se estar vivo é fazer escolhas: inerente ao ser humano, a
capacidade de fazer escolhas chega a ser pragmática: até o ato de não fazer escolhas já é
uma escolha. A questão é que não há como falar do ser humano sem falar, obviamente,
de suas escolhas: são elas que perfazem seus sentimentos, experiências e destinos. Da
mesma forma, não se pode usar da Psicologia Ambiental sem, mesmo que
minimamente, falar de seus pressupostos: eles estão implícitos em sua própria estrutura
e conceitos. Os Pressupostos da Psicologia Ambiental (Ittelson et al. 1974; Rivlin,
2003), são características básicas que perfazem a relação pessoa-ambiente. São então
um conjunto de fundamentos nos quais estão inseridos o próprio viver do humano e,
portanto, seus espaços. De forma pontual, os Pressupostos são:
1º. O ambiente é experienciado como um campo unitário (Ittelson et al, 1974, p.12). Tal pressuposto se refere à natureza do ambiente e como as pessoas vivenciam o (seu) mundo (Rivlin, 2003, p. 216). 2º. A pessoa tem qualidades ambientais tanto quanto características psicológicas ambientais (Ittelson et al, 1974, p.12). Ou seja, as pessoas são componentes do ambiente (Rivlin, 2003, p. 217). 3º. Não há ambiente físico que não esteja envolvido por um sistema social e inseparavelmente relacionado a ele (Ittelson et al, 1974, p.13). Dessa forma, as dimensões cultural, econômica e política também são parte desse envoltório (Rivlin, 2003, p. 217). 4º. O grau de influência do ambiente físico no comportamento varia de acordo com o comportamento em questão (Ittelson et al, 1974, p.13). Assim, as influências podem ser tanto sutis quanto poderosas (Rivlin, 2003, p. 217). 5º. O ambiente freqüentemente opera abaixo do nível de consciência (Ittelson et al, 1974, p.13), o que sugere que a pessoa se torna consciente do ambiente quando algo muda nele e é preciso adaptar-se a isso (Rivlin, 2003, p. 218). 6º. O ambiente ‘observado’ não é necessariamente o ambiente ‘real’ (Ittelson et al, 1974, p.13). O que permite reconhecer as diferenças individuais, geradoras das diferentes percepções; ainda, o mesmo local pode ser percebido diferentemente em diferentes momentos (Rivlin, 2003, p. 218). 7º. O ambiente é organizado como um conjunto de imagens mentais (Ittelson et al, 1974, p.14). Enquanto percepções podem ser consideradas como um conjunto de imagens, a cognição como um todo sofre o impacto das expectativas e dos objetivos pessoais, os quais, por sua vez, levam a pontos de vista seletivos que afetam o papel dessa mesma pessoa no ambiente (Rivlin, 2003).
61
8º. O ambiente tem valor simbólico (Ittelson et al, 1974, p.14), o que apresenta as dimensões visíveis e invisíveis dos locais (Rivlin, 2003, p. 5).
Chico Buarque canta: “Vou voltar/ Sei que ainda vou voltar/ Para o meu lugar/ Foi
lá e é ainda lá/ Que eu hei de ouvir cantar / Uma sabiá”. Ao lermos esses versos fica
implícito muito do teor emocional que um lugar comporta. Os Pressupostos da PA
envolvem esse contexto espacial-emocional de uma forma circular: cuidam do visível e
do invisível, do dito e do que está nas entrelinhas, do individual e do coletivo, do
subjetivo e do cultural.
Ao longo da análise do livro de Rachel de Queiroz pudemos então usá-los como
base para as entrelinhas que todo texto suscita. Por termos metodológicos e para facilitar
a análise feita, bem como por, tanto os Pressupostos como os conceitos de
Territorialidade, Apropriação e Vinculação ao lugar estarem muito próximos um dos
outros, se interligando e se complementando sempre, não foi feita uma separação de
cada um desses fatores para que a interpretação fosse realizada. Respeitadas as quatro
divisões de tempo do livro (que ligam os espaços de chegada e saída dos lugares aqui
analisados), trabalhamos esses conceitos e pressupostos ao longo da análise do texto.
3.5 – A interpretação do texto literário, a interpretação das relações pessoa-
ambiente e o tempo
Sobre a campanha de Canudos, Euclides da Cunha (2002) escreveu: “Aquela
campanha lembra um refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra,
um crime” (p. 7). A guerra de Canudos (1893-1897) foi um fato histórico; deu-se no
tempo real:
Conseguindo reunir um grande número de seguidores, Antônio Conselheiro
estabeleceu-se em Canudos, um velho arraial no sertão baiano. Em pouco tempo,
Canudos transformou-se numa das cidades mais povoadas da Bahia, com uma
população com cerca de 30 mil habitantes. (...) Finalmente, um poderoso exército
de 7 mil homens foi organizado pelo próprio ministro da Guerra, e, depois de
sangrentas batalhas, Canudos foi completamente destruído. Era 5 de outubro de
1897. Mais de 5 mil casas foram incendiadas pelo Exército. Toda a população
sertaneja morreu defendendo sua comunidade. (Cotrim, 1996, p. 255).
62
Aqui temos uma convergência interessante: um romance, Os Sertões, de Euclides
da Cunha, foi escrito em meio (literalmente) a um fato real. Ficção e realidade se
misturaram: no entanto, o livro de Euclides é ainda um registro da guerrilha que ele
presenciou, e o leitor sabe disso. O julgamento de regressão, tamanha a violência
perante os sertanejos, e o taxamento disso como crime, expressam ao leitor a
interpretação valorativa de Euclides. Mas é importante perceber que isso se dá
naturalmente: o texto nos guia, enquanto leitores, ao deixar à tona posicionamentos. O
texto entrega: e cabe a cada leitor escolher o que irá receber.
Ainda, a relação texto versus realidade na verdade não faz sequer sentido: a
realidade não pode ser abarcada pelo texto e, em contrapartida, o texto é uma realidade
em si. “Não que a realidade seja desprovida da importância, mas porque a arte não se
confunde com o real” (Ramos, 1972, p. 96). Mesmo no caso citado, aonde fontes
históricas podem confirmar fatos narrados por Euclides, a Canudos dele não será jamais
a Canudos que se passou no mundo palpável – e vice versa. Trouxemos o exemplo de
Canudos à tona para mostrar que o interessante é que justamente por ser realidade de
seu próprio contexto a Literatura se confere uma auto-legitimidade.
Sob essa perspectiva, ambas as interpretações, do texto literário e das relações
pessoa-ambiente, são formadas da mesma matéria: ambas existem em um contexto
humano específico e ambas existem pelo homem. Ainda, “o espaço é a matéria
trabalhada por excelência: a mais representativa das objetificações da sociedade, pois
acumula, no decurso do tempo, as marcas das práxis acumuladas” (M. Santos, 1979, p.
18). E essa é uma verdade para qualquer espaço: seja o impresso nas páginas de um
livro, seja o existente no mundo concreto: mesmo porque ambos passam por nossa
cognição para serem reconhecidos como espaço.
Para a interpretação do texto literário e das relações humano-ambientais é
necessária então uma perspectiva dinâmica, a consciência de que as experiências de
temporalidade e de espacialidade são fundantes do subjetivo. A construção textual, por
sua vez, permite essa dinamicidade no sentido de ser fiel ao processo de formação de
lugar, já que a lógica do texto precisa apresentar os comos e porquês paulatinamente e
de maneira que o leitor possa compreendê-las à medida que forem sendo apresentadas.
No livro de Lewis Carroll (2006, p. 73), Alice e o gato travam o seguinte diálogo:
― Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
― Isso depende muito de para onde queres ir - respondeu o gato.
63
― Preocupa-me pouco aonde ir - disse Alice.
― Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas - replicou o gato.
O processo de leitura é assim: um entregar-se. Os caminhos vão surgindo à
medida que às páginas vão sendo viradas, e o leitor tem apenas uma certeza: está indo
para algum lugar. Esse caminho, no entanto, vai lhe fazendo sentido: a interpretação
dele vai se multiplicando perante a sua percepção – o sensitivo-poético que o texto
desperta. “Ao nível da imagem poética, a dualidade do sujeito e do objeto é irisada,
reverberante, incessantemente ativa em suas inversões” (Bachelard, 1998, p. 4). Assim,
não se lê apenas o que se está escrito, se lê, principalmente, as entrelinhas: e às
entrelinhas cabe a interpretação do leitor.
Para se jogar um pouco de acidez ante uma análise textual, se poderia versar que o
livro me transforma, mas eu não posso transformar o livro. Em um diálogo constante
acontecido no mundo real, na interpretação da relação pessoa-ambiente nesse mundo
concreto, o fator tempo é fluido: o sujeito observado estaria constantemente se
transformando ante a minha cognição, reagindo a mim, e criando reações também
constantes em minha pessoa. Seria necessária uma constante adaptação da minha
interpretação perante as mudanças que vão acontecendo para que eu pudesse dar conta
de registrar o máximo. Ainda, tudo no mundo real está sujeito a mudar no próximo
minuto: o acaso é sempre um fator a ser considerado. No entanto, a questão é que o
livro que está sendo interpretado pela leitura, na realidade, não é o mesmo livro estático
que há poucos minutos antes estava na estante. O livro que leio vai se transformando em
matéria dentro de mim: e essa construção textual por mim absorvida nada tem da
estaticidade do texto concreto. E ela se transforma na mesma velocidade em que eu sou
transformada pelo lido.
Pontes (1992) defende que “o espaço é de alguma maneira menos abstrato, mais
próximo de nós que o tempo” (p.7). No entanto, o espaço, como nós o conhecemos, está
inserido em um tempo (um espaço em que estivemos, um espaço em que estamos, um
espaço em que estaremos; um espaço em que pensamos ontem, um espaço em que
pensamos hoje, um espaço em que pensaremos amanhã). Espaço e tempo verbal vêm
juntos na linguagem – seja essa falada, escrita, pensada ou, ainda, sentida. Para nos
situarmos espacialmente, necessitamos também nos situarmos temporalmente (no
âmbito literário, excetuam-se a esse critério, em nossa opinião, obras nonsense ou
gêneros demasiado fantásticos que não tenham em si o tempo humano – ex: universos
64
paralelos). Espaço e tempo não poderiam então ser dissociados, até porque, em última
análise, o tempo é guardador de espaços. A essa junção entre tempo e espaço na
Literatura se dá o nome de cronotopo (Bakhtin, 1996). Por sua própria organização
temporal e espacial acessível em conjunto (passado, presente e futuros podem ser vistos
a qualquer hora em um simples abrir de páginas) o cronotopo é mais facilmente
percebido na literatura. Nas palavras de Bakhtin (1996): We will give the name
chronotope (literally 'time space') to the intrinsic connectedness of temporal and spatial
relationships that are artistically expressed in literature (p. 84).
Assim, vemos um romance (obra literária) como pertencente a dois tempos
distintos: 1) o tempo estático: sob a perspectiva do mundo real – já que uma obra
concluída será sempre isso: uma obra concluída. Posso adaptá-la de inúmeras formas,
criar diferentes versões daquela primeira obra, mas a obra original assim o permanecerá
enquanto existir. O livro Memorial de Maria Moura de Rachel de Queiroz, por
exemplo, terá sempre a forma que tem em cada publicação. Assim, para este primeiro
tempo temos o livro fechado: obra criada e estática que existe no mundo material;
tempo guardado. O primeiro tempo só existe quando o indivíduo ainda não é leitor da
obra: o livro ainda está na estante. Como segundo tempo, temos: 2) o tempo contínuo: já
não sou eu – indivíduo separado da obra – sou leitor: o romance se transforma sob meus
olhos e sob minha cognição. Temos assim o livro aberto. Esse tempo segundo será
sempre transforme, já que se deixará depender da subjetividade e do momento em
questão. Essa obra aberta (Eco, 1988) se deixará depender do leitor e mudará a cada
nova interpretação, a cada releitura ou reflexão. É nesse segundo tempo, criador de
cognições e apresentador de personagens, que este estudo se foca e é nele que a
interpretação do texto literário e a interpretação das relações pessoa-ambiente se
convergem em uma mesma matéria interpretativa.
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IV – Memorial de Maria Moura: do Limoeiro à Casa
Forte As palavras são pequenas formas no
maravilhoso caos que é o mundo. Formas que focalizam e prendem idéias, que afiam os
pensamentos, que conseguem pintar aquarelas de percepção.
(Diane Ackerman)
São essas as últimas linhas do livro Memorial de Maria Moura:
Duarte tomou as rédeas do cavalo das mãos de Pagão, esperou que eu me
aproximasse para montar. E antes que eu botasse o pé no estribo, rogou mais uma
vez:
― Ainda está na hora de mudar de idéia, Sinhá. Vai ser uma luta muito dura,
com esses homens traquejados para matar. Não é briga pra mulher. E se lhe matam?
Saltei na sela. Mas, antes de dar partida, me dobrei sobre o pescoço do cavalo
e disse, olhando nos olhos de Duarte:
― Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro
muito mais.
Saí na frente, num trote largo. Só mais adiante, segurei as rédeas, diminuí o
passo do cavalo, para os homens poderem me acompanhar. (Queiroz, 1992, p. 482).
Maria Moura é uma personagem que representa a busca, ela faz o seu caminho até
sentir que chegou a um limite; e uma vez reconhecido esse limite, ela põe em prática
uma quebra: escolhe um novo caminho, uma forma de continuar a sua jornada, e segue
adiante. Então, talvez a trajetória dessa personagem represente a trajetória de todos nós:
peregrinos da vida que nos foi dada. Talvez os espaços de Maria Moura sejam os nossos
espaços: a casa dos pais que um dia se transforma em memória, o processo de achar o
seu canto no mundo, o sonho de uma casa que lhe seja o lar ideal, e a esperança de
encontrar um propósito na vida depois de uma grande desilusão.
Os compositores brasileiros Toquinho e Vinicius de Moraes escreveram em sua
música Aquarela: “um menino caminha/ e caminhando chega no muro / e ali logo em
frente / a esperar pela gente/ o futuro está”. O futuro, tempo por vir de qualquer ser
humano, representa uma quebra temporal: o passado necessita ficar para trás para que o
66
futuro seja recebido. E qualquer mudança é a transgressão do que existe no agora: o
futuro é a transgressão do presente. Essa mudança de percurso que acontece na divisa
entre tempo presente e tempo futuro se dá justamente quando se chega ‘ao muro’. O
muro é parada, é limite: o muro representa a necessidade de um novo lugar, um lugar
que permita todas as coisas que estão no além-muro. Assim, podemos dizer que o
percurso de Moura é formado de quatro ‘muros’ principais: o momento de expulsão da
casa do Limoeiro, o fim do período da andança, o encerramento do período do
assentamento e o sentimento de esgotamento de possibilidades da Casa Forte – que já
não mais supria Moura.
4.1 – O sítio do Limoeiro
O ser humano é um ser social. Seu mundo é sempre dinâmico: fica a passear entre
a esfera privada e a esfera coletiva. “Do ponto de vista da dinâmica, o espaço vital de
cada indivíduo é uma totalidade que é equivalente à totalidade do mundo físico todo”
(Lewin, 1973, p. 87). Assim, como não cabe à nossa cognição apreender o mundo por
completo em todas as suas instâncias de tempo, espaços, fatos etc, acabamos por ter
como nosso mundo, o ‘pedaço do mundo’ com o qual nos relacionamos, o espaço que
cabe à nossa socialidade. Sabemos que há ‘outro mundo’ lá fora, sabemos que o mundo
é maior do que o que (convi)vemos, mas sabemos também que ele nos é abstrato, uma
vez que não nos relacionamos diretamente com ele. Assim, é o nosso espaço cotidiano
que nos concentra. E “o espaço reproduz a totalidade social” (M. Santos, 1979, p. 18).
O primeiro espaço de Maria Moura foi a casa onde nasceu: a casa do sítio do
Limoeiro. A Bíblia diz: “Pois onde estiver vosso tesouro, ali estará também o vosso
coração” (Lc 12, 34). É pelo afeto que passa o nosso bem-querer e o nosso repúdio, as
nossas cognições e interpretações sobre o que nos cerca. O nosso elo com as coisas e
com os lugares.
Talvez não exista nenhum sentimento de afinidade mútua, comunidade,
fraternidade entre as pessoas, seja ele formal ou informal, institucionalizado ou não
– nem nenhum sentimento de diversidade, aversão, hostilidade –, que não esteja
relacionado de alguma forma a questões de lugar, território e apego a lugares.
(Giuliani, 2004, p. 90).
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Podemos afirmar isso na medida em que a vida de qualquer ser estará sempre
associada a um lugar. No entanto, quando de um olhar mais próximo, quando existe a
intimidade, quando a aproximação (física e/ou emocional) permite o desenvolver de
uma relação, cria-se o apego. É como Saint-Exupéry (1987) conclui: “A gente só
conhece bem as coisas que cativou” (p. 70). Um lugar é um espaço que foi não apenas
cativado por nós, mas que também nos cativou. Então, “o apego é definido como o laço
afetivo entre um indivíduo e um lugar, acompanhado do desejo de estar próximo a esse
local” (Giuliani, 2004, p. 94). A esse apego, nesta pesquisa chamamos de vinculação ao
lugar.
O mundo dos homens, assim é formado de ‘coisas’ e seres – e da relação entre
ambos. Na entrevista com Bill Moyers, Campbell fala sobre os significados que as
coisas carregam em si:
MOYERS: Em que sentido? O que se pode extrair do relógio que você está
usando? Que espécie de mistério ele revela?
CAMPBELL: O relógio é uma coisa, não é?
MOYERS: É.
CAMPBELL: Você sabe realmente o que é uma coisa? O que a fundamenta?
É algo no tempo e no espaço. Pense em como é misterioso que alguma coisa possa
ser. O relógio se torna o centro de uma meditação, o centro do mistério inteligível
de ser, que está em toda parte. Este relógio é agora o centro do universo. O ponto de
repouso do mundo que se move. (Campbell, 1990, p. 64).
Assim é também qualquer coisa sobre a qual se volte o olhar humano: ela torna-se
o foco pulsante, o centro e o ponto de partida do situar-se. O arredor vira o ‘tudo mais’,
cenário; mas o olhar, o sentir e o ponto referencial estão ali: na coisa. Quando a coisa é
um lugar, a pontecialidade de ser ‘centro do universo’ é ampliada: ali são criadas
vivências, tanto no plano físico como no emocional: ali se passa a vida. “O lugar é mais
do que o contexto, sendo uma parte integrante do processo identitário” (Speller, 2005, p.
138).
Quando falamos de uma casa onde toda a infância se passou, uma grande carga
emocional e simbólica está ali inserida. “A casa é uma das maiores (forças) de
integração para os pensamentos, as lembranças e os sonhos do homem. (...) O passado,
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o presente e o futuro dão à casa dinamismos diferentes” (Bachelard, 1998, p. 26). O
sítio do Limoeiro de MMM é assim: uma casa-mistura-de-tempos:
Me fervia o sangue, pensar que aquele bando de insetos tinha a ousadia de vir
me ameaçar dentro da minha casa! A casa do meu pai e da minha mãe, a casa onde
eu tinha nascido; que tinha sido a casa da minha avó, levantada de telha e taipa pelo
meu próprio bisavô! Era ousadia demais. (Queiroz, 1992, p. 42).
A questão não era a casa: mas tudo o que estava associado à casa do Limoeiro. Ali
viveram seus avós, ali viveram e morreram seu pai e sua mãe. Moura carregará ao longo
de toda a sua jornada as palavras de ‘Pai’ – como ela o chamava – e do avô. “A nosso
favor nós tínhamos a posse do sítio por estes anos todos – também ouvi Pai dizer isso
mais de uma vez”. (Queiroz, 1992, p. 37). Talvez possamos imaginar que o lugar que
pressupõe todos os outros lugares é o lar: algo como a condensação da essência do que
torna um espaço um lugar. O lar está ali: falando muito mais do que o que as palavras
podem abarcar. O lar comunica, guarda, afaga. O lar faz companhia com suas inúmeras
memórias: é um canto cheio de passado. “O lar é um lugar íntimo”, diz Tuan (1983, p.
160); e citando Freya Stark, complementa: “Este é certamente o significado de lar – um
lugar em que cada dia é multiplicado por todos os dias anteriores” (Tuan, 1983, p. 160).
O sítio do Limoeiro é isso: a reunião de todos os dias anteriores que lá se passaram. E
Moura tentará ‘reconstruir’ essa realidade sempre: toda a sua busca passa pela
idealização que o Pai lhe deixara: pelas histórias, lugares e sonhos do tempo vivido com
ele. “Aqui eu estou na minha casa. Este sítio é meu, foi o que o meu pai sempre me
disse. Se os ladrões dos meus primos querem tomar o que é meu, que venham, com
delegado e tudo. Eu enfrento. Da minha casa só saio à força e amarrada.” (Queiroz,
1992, p. 38).
Ittelson (et al, 1974) e Rivlin (2003) afirmam com o oitavo pressuposto que o
ambiente tem valor simbólico: e o sítio do Limoeiro era todo formado dessa matéria
emocional-representativa:
Deitada no mato, olhando as estrelas no céu escuro, eu ia me lembrando das
conversas do Avô, os casos que ele me contava tantas vezes, tantas. Começou a
contar quando eu era pequena e me deitava com ele, em noite de lua, na rede do
alpendre. Depois, eu já mocinha, ouvia os mesmos casos, repetidos já agora por Pai,
69
às visitas, aos parentes. E muito mais explicados do que no tempo em que ainda eu
não podia entender. (Queiroz, 1992, p. 87).
A questão é que essa casa, embora física, era formada de uma malha abstrata: de
uma mistura de tempos e realidades. Era formada de lembranças que ainda alimentavam
a alma de Moura – agora sozinha no mundo. Mas todos ainda estavam lá naquele lugar:
a lhe fazer companhia, a conversar com ela, a representar tudo o que sempre
representaram. A casa do Limoeiro é raiz, é referência, é base, é chão gerador de afago e
de segurança.
Man is cognitive animal. He does more than see, hear, feel, touch, smell, in
the simple sense of ‘recording’ his environment. He interprets it, makes inferences
about it, judges it, imagines it, and engages in still other human forms of knowing.
It is all of these forms of knowing that permit the individual to accumulate a past,
think of the present, and anticipate the future. The ‘poetry’ of this human process is
the substitution of an ‘inner reality’ of words, images, ideas, feelings, and still other
symbols and representations for an ‘outer reality’ of shapes, sizes, objects,
movements, sounds, structures, and other attributes of the environment” (Ittelson, et
all, 1974, p. 85).
Essa associação, típica do ser humano, é extremamente presente na relação de
Maria Moura com o sítio do Limoeiro. “A casa é um corpo de imagens que dão ao
homem razões ou ilusões de estabilidade” (Bachelard, 1998, p. 36). E era precisamente
isso: Moura mantinha sua estabilidade através das lembranças do Limoeiro. Quando
morta sua mãe, Maria Moura diz: “Aquele quarto, aquela cama, o baú, a santa na
parede, era só o que me restava dela. Da pessoa dela.” (Queiroz, 1992, p. 20). O valor
estava impresso na casa, nos móveis, nos lugares que existiam dentro do lugar maior: o
sítio. “O lugar pode adquirir profundo significado para o adulto através do contínuo
acréscimo de sentimento ao longo dos anos. Cada peça dos móveis herdados, ou mesmo
uma macha na parede, conta uma história” (Tuan, 1983, p. 37).
Ainda assim, os diferentes tempos do sítio do Limoeiro também exigiam
diferentes comportamentos de Moura. Como afirma o segundo pressuposto (Itelson et
al, 1974; Rivlin, 2003): a pessoa tem qualidades ambientais tanto quanto características
psicológicas ambientais. Cada vez que a ausência de uma pessoa acontecia (no caso, por
morte), também o ambiente mudava e Moura necessitava se adaptar a isso. Por essa
70
razão, sua relação diária, suas ações e altivez em relação ao Limoeiro iam se
transformando com essas mudanças.
A participação individual (ou de um grupo) em um determinado ambiente
físico é influenciada não só pelo espaço físico e suas propriedades, mas também
pelas pessoas que aí estão, seus papéis e atividades, definidos pelo contexto social
no qual está inserido aquele ambiente físico. (Campos de Carvalho, 1993, p. 438).
Quando o pai de Moura morre, Maria e sua mãe se vêem então sozinhas: um novo
começo é necessário. E mesmo que o livro não mostre detalhes ou passagens específicas
em relação a isso, já que a memória em relação ao pai da protagonista aparece de forma
fragmentada ao longo de todo o romance, fica sempre implícita nas falas de Moura a
veneração pelos tempos do Pai vivo: “Quando Pai morreu, eu não era tão pequena
assim. Nunca me esqueci de Pai (...). Meu pai, esse vivia fechado no meu coração,
sozinho” (Queiroz, 19992, p. 20).
Pelo que se deixa entender, o sítio foi sobrevivendo com o que já tinha, sem que a
mãe interferisse muito no dia a dia do Limoeiro: “Depois da morte de Pai o gado foi se
acabando” (Queiroz, 1992, p. 82). Mesmo com a chegada do Liberato ao sítio – “A
amizade com Liberato, Mãe nunca escondeu de ninguém, era mesmo amigação de porta
aberta” (Queiroz, 1992, p. 33) – a administração do Limoeiro segue solta, sem grandes
feitios ou investimentos, sem apropriações mais significativas.
Após a morte da mãe (Moura tinha então dezessete anos), Maria não sabe ainda
que papel ocupar, mas aos poucos foi ocupando espaços que antes eram da mãe: “Uns
dias passados, comecei a dormir no quarto de Mãe, me deitando na cama que foi dela”
(Queiroz, 1992, p. 20). Agora, a Sinhá do Limoeiro era ela: e ela começava a ver isso e
a querer ocupar o seu papel.
É precisamente quando o Liberato é morto a mando de Moura porque a ameaçou
pela posse da casa, que ela poderia começar a realmente se apropriar do sítio do
Limoeiro. “Eu tinha que pensar era na minha herança; o nosso sítio do Limoeiro, dentro
do distrito de Vargem da Cruz, boa terra de planta e cria, agora meio abandonado, é
verdade” (Queiroz, 1992, p. 30). É importante ressaltar que tanto a mãe de Moura, como
a própria – mesmo antes de se assumir efetivamente como Sinhá do Limoeiro – têm um
sentido de territorialidade muito grande em relação ao sítio.
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The dynamic nature of people’s relationships to places not only demonstrates
that these relationships include many different places, feelings and experiences, but
also suggests that our relationships to places include both conscious and
unconscious processes. (Manzo, 2003, p. 53).
Moura e sua mãe não entendem muito bem como, mas sabem que tem que
proteger o sítio, inclusive das tentativas do Liberato de se apoderar dele:
Já tinha se passado bem uns seis meses da morte de Mãe, já tinha se
desvanecido dos meus olhos o vulto do corpo pendurado, a visão daquele rosto
horrível que não era o dela, quando, certa noite, ele (Liberato) chegou trazendo um
papel enrolado, que era para eu assinar. Explicou com poucas palavras que, sendo
eu menor de idade, não ia ser capaz de tomar conta da herança de Mãe. Daí, Mãe
também não entendia de negócios; e só de teimosia, não concordou em casar com
ele e lhe passar a propriedade. (...) O pior é que eu, tal como mãe, não queria assinar
nada. (Queiroz, 1992, p. 21).
Elas sabem que o Limoeiro faz parte delas, de sua história, de sua segurança. E
sentem-se atreladas a esse lugar, relutando sobre qualquer coisa que signifique colocá-
lo, mesmo que minimamente, sob risco.
Place Identity. To begin with, it is, a sub-structure of the self-identity of the
person consisting of, broadly conceived cognitions about the physical world in
which the individual lives. These cognitions represent memories, ideas, feelings,
attitudes, values, preferences, meanings, and conceptions of behavior and
experience which relate to the variety and complexity of physical settings that
define the day-to-day existence of every human being. (Proshansky, Fabian,
Kaminoff, 1983, p. 59).
A formação dos vínculos e as significações do espaço dão-se pela vivência:
pessoas e entornos influenciam-se mútua e continuamente a construir essas simbologias
que passam a fazer parte da subjetividade de cada indivíduo. “Quanto aos lugares,
aqueles ligados à nossa infância, frequentemente, parecem manter um determinado
status na hierarquia afetiva” (Giuliani, 2004, p. 97). Moura nasceu na casa do Limoeiro,
foi lá que se criou: há um acúmulo grande de tempo envolvendo esse espaço e suas
72
significações. “Mais que um centro de moradia, a casa natal é um centro de sonhos”
(Bachelard, 1998, p. 34). E o sítio do Limoeiro tem essa representação: é casa natal no
senso lato, é casa do nascimento de memórias, vivências, senso familiar e referencial. É
tecido temporal-espacial vivenciado: e “o tempo confere valor” (Tuan, 1983, p. 211). O
Limoeiro é, acima de tudo, lar. E o que é um lar? Talvez possamos até dizer que um lar
é o receptáculo que guarda a mais forte essência humana: sua idéia de origem, de
referência. O lar remete a um princípio: é tão complexo, tão subjetivo e valorativo que
se deixa depender apenas do sentir. Não há como englobar em palavras a totalidade de
significados de um lar. O lar remete ao querido: à referência minha, e minha apenas.
Há um exemplo que pode ser citado do livro O Pequeno Príncipe, de Saint-
Exupéry (1987): o principezinho tem como referência e significado do seu lar – o
Asteróide B-612 –, uma flor. Essa flor representa todo o sentir e toda a importância e
valor do seu pequeno asteróide. Após chegar à Terra, o principezinho encontra um
campo de grande extensão cheio de flores exatamente iguais à sua: a mesma flor que ele
amava tanto por pensar única. É então que, após encontrar a raposa, chega à conclusão
de que não importa quantas flores existam, a sua será sim sempre única, precisamente
por ser sua:
― Vós não sois absolutamente iguais à minha rosa, vós não sois nada ainda.
Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha
raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é
agora única no mundo. (...) ― Sois belas, mas vazias, disse ele ainda. Não se pode
morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se
parece convosco. Ela sozinha é, porém, mais importante que vós todas, pois foi a
ela que eu reguei. Foi a ela que abriguei com o pára-vento. Foi dela que eu matei as
larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei
queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa. (Saint-
Exupéry, 1987, p. 72).
A questão é essa: o nosso lar nos é tão querido e importante que vale ‘morrer por
ele’. “A casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro
universo. É um verdadeiro cosmos” (Bachelard, 1998, p. 24). Ali se concentram os
tesouros da alma: o que vale o mundo para nós, o que nos pulsa como lugar principal.
‘Home’ is a spatial metaphor for relationships to a variety of places as well as a way of
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being in the world, but more literal interpretations connect this term to the residence
and positive feelings toward it (Manzo, 2003, p. 56). Como ‘metáfora espacial’, o lar
tem imbricado em si significações relevantes e que pertencem apenas ao conhecimento
de quem delega àquele espaço o título de lar: cada um de nós, quando chega em casa
após um dia difícil e recita para si a frase Ah! Lar, doce lar! sabe o que se quer dizer
com isso, sabe os sentimentos que estão arraigados a esse espaço: não o espaço físico ou
geométrico, mas o espaço-contexto, que envolve precisamente o que a palavra lar
comporta em termos de sentimento e de identidade para cada indivíduo.
O sítio do Limoeiro tem então essa gama de significados: é lugar pulsante de
sentimentos relacionados à vida e ao passado de Maria Moura. E a legalidade dessas
terras – ou seja, sua partilha – lhe é inadmissível. A apropriação dessa terra, o estar nela
e poder imprimir nela esse estar, é mais importante que qualquer papel: já que só Moura
contém em si todas as significações da história do lugar. A casa é de Maria porque são
dela as histórias vividas nesse lugar: o sentido de territorialidade se dá não apenas pelo
estar neste entorno no presente, mas também pelo tempo em que se esteve nele no
passado, a malha temporal de sua vida, se junta ao tempo a que a casa pertence
formando um contexto que a transforma em lar e em referência de lugar e elo.
Pode um lugar conter em si expressões de vivência de uma família, de uma
pessoa? O lugar sozinho não é nada. É como uma caneta sem a mão humana: não se
pode esperar que ela crie palavras, que produza vocabulário. Los espacios, los objetos y
las cosas toman un significado a través del usos y del tiempo (Pol, 1996, p 48). O
espaço necessita do humano a atribuir-lhe significações, a transformá-lo em lugar, a
preencher de vivências sua geografia. Assim, para os primos de Maria Moura, o sítio do
Limoeiro era uma terra a mais em suas mãos, herança financeira; para Moura, essa casa
era sua referência de mundo e família, herança simbólica. “Eu me levantei, já danada da
vida. Eles pouco se importavam com Mãe, casada ou amigada, queriam era passar a
mão nas terras do Limoeiro” (Queiroz, 1992, p. 35).
Esse sentimento de propriedade, de território, fazia com que Moura também se
sentisse em controle dessa terra. One way man achieves a sense of control over his life
is through his ability to control significant behaviors in defined areas of space
(Itteltson, et all, 1974, p. 142). Maria Moura tinha assim o controle do sítio do
Limoeiro, era ela quem decidia quem podia permanecer na terra que tinha como sua:
74
Me senti tão enfurecida que de novo me levantei do banco e corri abrir a
cancelinha do alpendre. E botei os dois pra fora:
― Podem fazer caminho, que eu não estou aqui para ouvir vocês destratando
Pai e Mãe.
Chamei João Rufo, que escutava por perto, encostado no pé de jucá do
terreiro:
― João, sele os animais desses moços, que eles já vão embora.
E, para arrematar, me virei para os primos, procurando imitar o que eu ainda
lembrava das palavras de Pai:
― Se acham que têm parte na herança, vão procurar os seus direitos na
justiça. E agora adeus, boa viagem. (Queiroz, 1992, p. 36).
Lembramos que o sentimento de Territorialidade muitas vezes é despertado
quando o indivíduo sente a segurança do seu espaço ameaçada.
Quando podemos compreender as funções de determinado espaço, podemos
predizer a intensidade com que será defendido e os tipos de táticas defensivas que
provavelmente serão usadas. Mesmo que não aceitemos a idéia de territorialidade
instintiva nos seres humanos, parece que as pessoas defendem ativamente alguns
espaços contra a invasão através de emprego de todo o repertório de técnicas
defensivas no reino animal, além de algumas outras. (Sommer, 1973, p. 54).
Maria Moura, com a chegada dos primos a cobrar suas partes da herança, viu seu
território em perigo: “Só eu, de ignorante, podia pensar que, acaso se perdendo o papel
das escrituras, eu estava garantida, pois não havia mais outra prova. Mais tarde é que
soube: no livro do cartório se escreve tudo, seja caso de compra ou de herança”
(Queiroz, 1992, p. 37). Seu lar estava em perigo e era preciso defendê-lo a todo custo.
“Fiquei meio inquieta, com medo de tanta trapalhada de lei. Mas uma coisa eu resolvi:
da minha casa ninguém me retirava. Só à força bruta.” (Queiroz, 1992, p. 37).
Ao ter acesso aos pensamentos de Maria Moura em relação à sua terra, podemos
perceber que essa não é uma guerra apenas sua: é uma guerra pela memória de seus
pais, pela terra que para ela carregava o nome, a imagem e a importância deles. E ela
pensa como se compactuasse com esse pai que parece guiar seus passos em nome da
terra que defende e representa.
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“Se o homem está ameaçado, ele se defende. Às vezes, atacando aquele que o
ameaça, às vezes ignorando-o” (Pankow, 1988, p. 30). Defender essa casa então se
tornou seu objetivo maior de vida: seu legado familiar estava em jogo. “Minha primeira
ação tinha que ser a resistência” (Queiroz, 1992, p.40). Ela era a única a ‘enxergar’
tantos elementos na casa do Limoeiro e a única que era capaz de defendê-lo. “Eu senti
que tinha chegado a uma encruzilhada na minha vida e era hora de escolher o caminho
novo” (QUEIROZ, 1992, p. 40). Em meio à ameaça, montou suas estratégias de defesa.
Contratou ‘caboclos’ e os administrou na defesa dessa terra, a ‘sinhazinha do Limoeiro’
começava a morrer: dando lugar à ‘Maria Moura’, guerreira de sua terra e de sua
liberdade. “Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. (...) Pois, comigo eles
vão ver. E se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com os meus homens, mas
me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim” (QUEIROZ, 1992, p. 40).
O ex-presidente americano Winston Churchil disse: “primeiro construímos nossas
casas; depois são elas que nos constroem” (SANTOS, 1982, p. 20). Quando um espaço
torna-se atrelado a inúmeras significações e simbologias, ele faz parte de nós, de nossa
subjetividade e identidade. Barchelard (1998) diz que a casa é como “um instrumento de
análise para a alma humana” (p. 20). A casa é como uma extensão de nosso corpo, de
nosso ser. A casa não é a rua: a casa é o nosso lugar. A casa somos nós mesmos porque
a casa é o nosso mundo. Assim, Maria Moura via a si mesma na casa do Limoeiro: e a
defendia como se defendendo sua própria pessoa, seu próprio corpo. “Defender a minha
morada e a minha pessoa, pra desgraçado nenhum botar a mão em qualquer das duas”
(Queiroz, 1992, p. 43). Ambas, seu corpo e sua casa, estavam em um mesmo patamar de
importância.
Joseph Campbell (1990) defendia que ao longo da vida morrem-se várias mortes
simbólicas: e que são essas mortes simbólicas que nos permitem vestir ‘novas
roupagens’ de nós mesmos e, assim, transformar-nos a cada nova fase de nossas vidas.
“Nas situações mais graves, em que a ameaça pesa sobre sua vida e torna-se
insuportável, há sempre a possibilidade de uma fuga, isto é, de uma evasão no espaço”
(Pankow, 1988, p. 31). A ‘sinhazinha do Limoeiro’ percebia sua morte, já que ela só
cabia à realidade do Limoeiro: sabia que uma nova decisão e destino a esperavam. Seu
mundo acabara de ficar maior. Estava sendo empurrada de seu ninho e necessitava
aprender a voar. “É, eu me sentia encurralada. E o meu coração me pedia para sair dali.
Sentia que tinha acabado o meu tempo no Limoeiro. Que me adiantava ficar no sítio, me
agüentando a ferro e fogo, sem recursos, mulher sozinha, nova?” (Queiroz, 1992, p. 62).
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O ninho, primeira morada, tem sempre algum reflexo sobre nós: amado ou odiado,
ele nos gera um afeto, seja esse positivo (apego) ou negativo (repulsa). E quando chega
a hora de partir sentimos alegria e/ou tristeza – não existe a neutralidade ao se sair do
ninho. A percepção dessa hora de partir fez com que Maria Moura refletisse sobre o
significado da casa de Limoeiro para ela: “Mas esse meu desejo de ir embora não tem
nada a ver como o meu amor pela casa e pela terra: aqui nasci e me criei. Acontece que
sempre chega a hora de largar o ninho. Do pinto quebrar a casca e pular do ovo”
(Queiroz, 1992, p. 62).
Quando chega a hora da partida, o mundo alarga-se. O que se tinha antes como
mundo, torna-se pequeno: como uma geografia limitada. O lar desprende-se da casa
física e roga ser encontrado novamente em outro lugar, pois ali não está mais: é tempo
de busca. Aquele canto que antes era lar, continuará repleto de significações pelo tempo
que for memória. E será lar ainda – mas um lar abstrato, preso a um tempo e a um
espaço que não mais se constituem presentes. “Vi que tinha chegado a hora principal da
minha vida. Ou era hoje ou era nunca. A minha casa, a impressão que dava agora, era a
de um mundéu se fechando em cima de mim” (Queiroz, 1992, p. 63).
No entanto, nascia ‘Maria Moura’: a guerreira. E ela jamais deixaria sua casa
amada, seu elo com sua vida até ali, para essa ser tomada por quem lhe expulsou, por
quem lhe forçou a saída de seu lar. Maria Moura, a futura chefe de jagunços e dona de
um império, não permitia ver maculado o que lhe era querido. Antes destruir, antes
‘matar’, a ver o espaço que amava usado por pessoas que achava indignas desse espaço.
“Espalhei pelos cantos da casa uns canudos de pólvora (...). Derramei pelo chão e pelas
paredes todo o pote de azeite de carrapato que se guardava para as candeias. Ensopei
tudo de azeite, o mais que podia” (Queiroz, 1992, p. 64). Maria Moura ateou fogo em
sua própria casa. Ali matava uma existência sua. Deixava para trás um passado e iria
rumo ao futuro.
Me benzi, senti os olhos ardendo, aquele aperto horrível no coração. Fui até o
quarto, beijei o lugar onde ficava a santinha de Mãe. Abri os braços, abracei e beijei
as paredes da minha casa, me despedindo para sempre. (...) Vendo minha casa
transformada num fogaréu, e feito pela minha própria mão, desabei em pranto.
(Queiroz, 1992, p. 65).
77
Destruída a casa que lhe guardava, Moura estava agora em movimento, solta no
mundo. A casa do Limoeiro, fisicamente deixando de existir, trazia um novo destino a
Maria Moura. Era necessário que Maria vestisse uma nova ‘couraça’, uma nova versão
de si que fizesse jus ao novo espaço que iria ser buscado. Ao perder um canto fixo,
também sua vida estava solta, em busca de uma nova alocação de si. Mais uma vez a
simbologia do seu pai entra em cena como referência do agir, como a masculinidade de
que Moura necessitava para ser aceita socialmente como ser que busca espaço dentro da
sociedade paternalista em que vivia. “Eu enfiei uma calça que tinha sido de Pai, pra
montar com mais liberdade. Me servia perfeitamente, eu sabia. Pai era magro como eu,
e tinha pouco mais que a minha altura” (Queiroz, 1992, p. 63). A simbologia que
impregnava todo o Limoeiro opera mais uma vez nas atitudes de Moura, que se prepara
para deixar o sítio.
Os significados simbólicos que se desenvolvem ao longo do tempo estão
contidos nas lembranças tanto de ambientes específicos quanto das pessoas lá
presentes (domínio sócio-físico), e também nos elementos simbólicos dos locais que
nos fazem lembrar de alegrias, prazeres, qualidades estéticas e terror. Eles se
tornam componentes das conexões das pessoas com os lugares e do seu apego aos
mesmos (Rivlin, 2003, p. 219).
Joseph Campbell (2003) dizia que “quando ocupamos um lugar em nossas vidas e
queremos estar em outro, há um obstáculo para superarmos, um limiar que deve ser
transposto” (p. 157). O Limoeiro esgotava-se diante dos olhos de Moura: mesmo que
tenha sido por violência imposta, ela não tinha outra opção senão deixar seu lar. Para
além do Limoeiro, estava o resto do mundo. Um mundo que só havia existido para
Moura de forma abstrata. Para ter forças e referenciais para seguir adiante, no entanto,
ela necessitava levar do Limoeiro não apenas as memórias, a sua idéia de lar, mas
objetos que simbolizassem para ela a essência daquele lugar:
Chamei as meninas, disse que elas pegassem as trouxas que já tinham
preparado de véspera, com a roupa delas e algumas das coisas que Mãe me deixou –
três lençóis bordados, uma toalha de mesa e uma peça de renda que Mãe guardava
“para o meu enxoval”. À Chiquinha, que era a mais cuidadosa, entreguei, imagine!
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enrolados num cobertor de baeta, um copo de vidro fino, uma faca e uma colher de
prata e a santinha que Mãe tinha no quarto. Era o que eu possuía de mais valor. (...)
Fui em seguida ao baú de Mãe, de onde eu já tinha tirado aquelas coisas que a
Chiquinha levou. Peguei lá o papo-de-ema que Pai, quando viajava, usava para
guardar o dinheiro. (...) Peguei também, no baú, todo o dinheiro que ainda tinha –
doze patacas de prata, um dobrão de ouro, que era do tempo do meu avô. Enfiei
tudo no papo-de-ema, e amarrei aquele rolo grosso em redor da minha cintura,
apertado, como via Pai fazer. Vesti em cima o casado de Pai, para esconder a
cintura aumentada. (...) Trabalhava ligeiro, mas calma, nunca pensei ter tanta calma.
Desde a chegada da tal da intimação que eu estava me prevenindo para um ataque
como o daquela noite. (...)
Botei a tiracolo o saco da munição; tinha ali o chumbo, e o polvarim grande
de chifre, as pedras de isca e o artifício de fazer fogo. Tudo herança de Pai. Peguei
também a faca que era dele, uma pajeú linda, com cabo de rodelas de osso e prata,
na sua bainha bordada. (...) Voei em cima da sela – sela de homem – claro que
também de Pai. Ali tudo era dele, até eu – até eu, não – principalmente eu, sangue e
carne dele. (Queiroz, 1992, p. 64-65)
Ao coletar os valores do Limoeiro que podia carregar consigo, Moura concentrava
a ‘imagem’ do sítio nesses objetos. O apego de Moura ao Limoeiro estava representado
não só em suas lembranças, mas na simbologia desses objetos. Como Tuan (1983)
argumenta, “os objetos seguram o tempo” (p. 207). O sentimento de territorialidade de
Moura, antes a defender o sítio do Limoeiro a todo custo, havia sido transferido para
essas pequenas coisas: coisas pulsantes de um valor invisível, mas grande. Ainda, por
condensar em si diferentes tempos e memórias, “a casa nos fornecerá simultaneamente
imagens dispersas e um corpo de imagens” (Bachelard, 1998, p. 23). Assim, diante da
fragmentação do seu mundo, a ex-sinhazinha tentava ainda abraçar o que quer que lhe
desse a noção de segurança, de referência. No meio disso tudo, a guiá-la, a imagem de
seu pai: é das recordações e idealização dele que ela consegue vestir a armadura
necessária para transgredir seu destino feminino. Joseph Campbell (1990) explica:
É o que acontece na mitologia: ao se defrontar com uma mitologia em que a
metáfora para o mistério é o pai, você terá um conjunto de sinais diferentes do que
teria se a metáfora para a sabedoria e o mistério do mundo fosse a mãe. E ambas
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são metáforas perfeitamente adequadas. Nenhuma delas é um fato. São metáforas. É
como se o universo fosse meu pai (p. 20).
Assim é a metáfora (simbologia) do pai de Moura: ele é caminho: está presente em
todas as suas referências e nas escolhas que faz. É muitas vezes personificando a forma
como pensa que o pai agiria, que Moura age. Em um contexto masculino, Moura
tornou-se não apenas seu próprio homem, mas seu próprio pai.
Mas essa transformação, como toda morte simbólica, foi dolorosa. “Ser posto para
fora de casa significa algo violento, pois, se estamos expulsos de nossas casas, estamos
privados de um tipo de espaço marcado pela familiaridade” (Da Matta, 1997, p. 54). Foi
necessário ter seu mundo destruído, foi necessária a violência e a expulsão. Foi
necessária a destruição da casa que a criara e a transformara em Sinhazinha.
O Limoeiro então virou cinzas: lembranças abstratas no coração e mente de
Moura. Ela agora era outra: a sinhá estava ali, nas cinzas do lugar a que pertencia. O
passo seguinte seria então livrar-se de vez de qualquer semelhança à Sinhazinha do
Limoeiro. Afinal, somos, também, o que o espaço nos permite ser. Já longe das terras
do sítio, na primeira parada que ela e seu bando fizeram, bradou aos seus jagunços:
― Vou prevenir a vocês: comigo é capaz de ser pior do que com cabo e
sargento. Têm que me obedecer de olhos fechados. Têm que se esquecer de que sou
mulher – pra isso mesmo estou usando estas calças de homem. (...)
Não sei que é que tinha na minha voz, na minha cara, mas eles concordaram,
sem parar pra pensar. Aí eu me levantei do chão, pedi a faca de João Rufo, amolada
feito uma navalha – puxei o meu cabelo que me descia pelas costas feito uma trança
grossa; encostei o lado cego da faca na minha nuca e, de mecha em mecha, fui
cortando o cabelo na altura do pescoço. (...)
Os homens olhavam espantados para os meus lindos cabelos. Pareceu até que
o Maninho tinha os olhos cheios de água. E eu desafiei:
― Agora se acabou a Sinhazinha do Limoeiro. Quem está aqui é a Maria
Moura, chefe de vocês e herdeira de uma data na sesmaria da Fidalga Brites, na
Serra dos Padres. (Queiroz, 1992, p. 84).
Maria Moura, com o Limoeiro destruído, daria então início a outra etapa de sua
vida: em outro ambiente. Como se a cada novo espaço, fosse necessária uma nova
versão de si. No entanto, “os verdadeiros bem-estares têm um passado” (Bachelard,
80
1998, p. 25). E esse sentimento-referência em relação ao sítio do Limoeiro iria continuar
sempre. “La construcción del significado ambiental se realiza en función de distintos
tipos de variables” (Corraliza, 2000, p. 61). Por essa razão, a todo lugar que cabe a
palavra lar, só podem ser explicados os detalhes dessa construção, por quem tem acesso
aos sentimentos formadores dessa – o que muitas vezes acontece inconscientemente, já
que, como o quinto pressuposto afirma, “o ambiente freqüentemente opera abaixo do
nível de consciência” (Ittelson et al, 1974, p.13; Rivlin, 2003, p. 218). Uma das
vantagens de ser leitor-observador seria, então, ter acesso a esses processos formadores
de lugar, necessários para a compreensão do personagem e do contexto que ele faz
parte, bem como para o melhor entendimento das relações pessoa-ambiente.
No entanto, Moura tem consciência de que foi arrancada de seu primeiro lar, ela
sabe que sua saída foi feita precipitadamente e de forma a não lhe deixar escolhas. Esse
sentimento de remoção, de deslocamento forçado ainda ficou presente nela por muito
tempo:
Agora eu estava livre de tudo, sem casa, sem dono, sem família, e daí? Pelo
menos ninguém me botava o pé no pescoço; e falando em botar o pé no pescoço, de
repente me lembrei do Tonho, aquele condenado. Se me saísse tudo errado nessa
vida que eu começava, no remate dos males a culpa era dele. Foi o Boca-mole, com
a ajuda do bestalhão do Irineu, que precipitou tudo. Embora eu saiba que nunca ia
ficar o resto da minha vida presa no Limoeiro; nem mesmo em casa de rua na
Vargem da Cruz; mas não carecia começar com tanta violência. (Queiroz, 1992, p.
122).
O vínculo a um lugar independe de sua existência física: carregamos o lugar em
nós. E um lugar, uma vez criado, não deixa de existir (Tuan, 1983). Maria Moura
continuava a ter dentro de si a casa do Limoeiro. Era a lembrança do vivido nessa casa
que a guiava para a terra nova, a Terra das Serras dos Padres, da qual era a única
herdeira. A história de Maria Moura era impulsionada pelos espaços presentes nela: seu
destino era sua casa, seu lar. E por ele, sempre, mataria ou morreria.
Embora não pudesse mais se apropriar fisicamente do Limoeiro, Moura
continuamente apropriava-se da essência desse lugar, pensando sempre sobre o que lá se
passara, sobre o que lá vivera – o vínculo forte que mantinha com esse lugar era sempre
alimentado em si. E Maria Moura carregava consigo todo o poder-referencial que era
tudo o que advinha do Limoeiro: que havia sido sua noção de território, que era ainda o
81
lugar que significava elo e que representava tanto – no período de Andança, já longe da
época do Limoeiro, Moura relembra:
Acabei arrancando uma folha de uma caderneta velhinha onde Mãe tinha
assentado o nome dela e o de Pai, o nome dos pais deles, o dia em que casaram. E o
dia em que eu nasci, o meu nome e o meu sobrenome. Eu nunca me separava
daquele caderninho. Era o único documento que eu tinha. (Queiroz, 1992, p. 197).
Já o território de Maria era agora indefinido: percorria o espaço, estava em
movimento, andava no novo caminho de sua vida, esperando por novos lugares e se
preparando para o seu lar sonhado: as terras que eram suas por direito. E ela então
bradava para o seu bando, como quem proclama um hino: “A terra é minha, o direito é
meu” (Queiroz, 1992, p. 83). Buscando a segurança da legalidade, do reconhecido
socialmente, Moura buscava um canto em que pudesse ser, em paz. Acima de tudo,
buscava. E é essa busca que representa a próxima etapa de sua história: o período que
intitulamos de Andança.
4.2 – A Andança
O corredor significa passagem, movimento, nascimento para uma nova vida
(Chevalier, Gheerbrant, 1998). O corredor simboliza a saída de um espaço para outro:
mudança de ambiente. Todos nós estamos sujeitos a diversos tipos de corredores ao
longo de nossas vidas: físicos e emocionais. O primeiro corredor por qual passamos é a
própria mãe: primeiro mundo, primeiro lar, primeiro lugar. Ao passar por esse primeiro
corredor, deixamos de ser o ser duplo que somos com a mãe gestante e começamos a ser
um: indivíduo de corpo próprio, destinado a achar novos lugares sempre. O período de
Andança em MMM é como um grande corredor: ali será o rito de passagem (Campbell,
1990), o caminho que levará Moura ao nascimento do seu sonhado lar.
O oposto da casa, no entanto, é a rua. Assim como o oposto ao fechado, é o
aberto: e ambos figuram a bivalência entre o seguro e o inseguro. Moura está pela
primeira vez na vida no aberto. “Se a casa distingue esse espaço de calma, repouso,
recuperação e hospitalidade (...), a rua é um espaço definido precisamente ao inverso.
(...) A rua é um local perigoso” (Da Matta, 1997, p. 57). Maria se surpreende então com
a imensidão do mundo: “Ai, a gente só descobre quanto o mundo é grande e
82
despovoado quando se anda nele perdido” (Queiroz, 1992, p. 85). Mas embora
apresente perigo, a ‘rua’ também apresenta possibilidades: como todo lugar aberto,
vários caminhos lhe são possíveis. E Moura tem consciência disso:
Teve um cantador no Limoeiro que, no desafio, quando um perguntou ao
outro onde é que ele morava, o cabra soltou a voz e respondeu: ‘Em cima das
minhas apragatas, em baixo do meu chapéu...’ Fiquei sonhando com aquela
liberdade. (...) Pois agora eu era livre. Em cima do meu cavalo Tirano, em baixo do
meu chapéu de palha... (Queiroz, 1992, p. 87).
Contudo, se o espaço aberto representa possibilidades e conquistas a serem feitas,
é também um caminho custoso: com o tempo vivido de cada passada dada, de cada
estrada trilhada – com tudo o que cabe dentro do tempo. Rubem Alves (2003) diz que
“o tempo se mede com batidas. Pode ser medido com as batidas de um relógio ou pode
ser medido com as batidas de um coração” (p. 67). O tempo sentido (e convém lembrar
que o tempo existe dentro do espaço) é um tempo mais perceptível: nossos sentidos
estão aguçados, cada segundo conta e é percebido de forma mais consciente – o que
sugere que a pessoa se torna consciente do ambiente quando algo muda nele e é preciso
adaptar-se a isso (Rivlin, 2003). Quando isso acontece, referências estão sendo
buscadas, e tentar se localizar e tentar construir um caminho e um destino provoca
excitamento e cansaço. É período de transição, de mudanças, de adaptação.
Me doíam os lombos, me doía o espinhaço. Os pés já estavam meio inchados,
dentro dos coturnos. Quando o cavalo chouteava forte, me atacava aquela dor que
chamam dor de veado, a que dá uma pontada forte nos vazios. Me sentia suja, sem
os meus banhos de cheiro, sem roupa branca pra trocar. (Queiroz, 1992, p. 87).
O período de Andança é quase um lidar com a perda-de-lugar, ao mesmo tempo
em que se cria a consciência de uma necessidade-de-lugar. Ele se estende da saída
forçada do Limoeiro ao momento em que Moura finalmente encontra o seu lugar-
destino: a terra das Serras dos Padres. El espacio no tiene un sentido meramente
funcional. Es el resumen de la vida y las experiencias públicas e íntimas. La
apropiación continua y dinámica del espacio da al sujeto una protección en el tiempo y
garantiza la estabilidad de su propia identidad (Pol, 1996, p. 45). Ao construir seu
83
caminho, como não podia deixar de ser, Maria construía a si própria: ou à persona que
criara para sobreviver no mundo masculino de que fazia parte. "A dupla moral patriarcal
legitimou a exploração feminina frente aos interesses masculinos. No entanto, a
protagonista em questão passa a se beneficiar dessa moral, ao reproduzir o modelo
masculino nas relações.” (Langaro, 2006, p. 19).
Se para ter espaço, Maria tinha que personificar a imagem de seu pai em si
mesma, ela faria justamente isso. E foi isso o que fez, herdeira do legado sempre
presente em si em detrimento do seu pai não ter tido filhos homens – “Afinal, coitado,
de todos os filhos que ele esperava, só vinguei eu – e mulher” (Queiroz, 1992, p. 83) –
Maria destina então seu bando de jagunços a ‘captar’ os recursos que não tinham ainda.
Ao longo da Andança vão fazendo pequenos e grandes assaltos aos transeuntes do
caminho, ou nos pontos de parada. O terceiro Pressuposto da PA afirma: “não há
ambiente físico que não esteja envolvido por um sistema social e inseparavelmente
relacionado a ele” (Ittelson et al, 1974; Rivlin, 2003, p. 217). A lei no descampado da
Andança era a lei do mais forte: qualquer pessoa representava perigo e qualquer posse
estava à mercê de ser perdida. O sistema social a que pertencia o campo aberto era o da
aventura: tinha-se que sobreviver e por esse propósito tudo se justificava:
Continuamos vivendo de aventura e evitando as casas. Arruado mesmo não
avistamos nenhum; só duas vezes uns passantes nos visaram, mas foi de longe;
antes que chegassem perto, pegamos a primeira vereda e sumimos na catinga. De
comida não se passava tão ruim. Os rapazes fizeram um bodoque com uns cordões,
e sempre conseguiam derrubar rolinha, nambu. Até jacu eles mataram. (...)
Andamos mais algumas léguas – era sempre aquela solidão. A farinha se acabava
no fundo do saco; em compensação a caça era mais fácil. A espingardinha já podia
ser usada; quem ia ouvir tiro naquele desterro? Mas tinha-se que poupar a munição.
A qualquer momento era capaz de surgir um mau encontro e a gente não podia ficar
desprevenida. (Queiroz, 1992, p. 111).
Ao viver está relacionado um, e apenas um, comportamento nosso: a reação a esse
viver. Somos uma interpretação-de-texto em forma de ser, estamos sempre a absorver o
que está à nossa volta com nossa subjetividade: e cabe a nós o que fazer com esse
‘texto’ que nos é dado em forma de vida. Engolimos a vida, cada um de nós, e a
digerimos com o nosso-modo-de-ser. Sobre o processo criativo, Ostrower (1999) diz:
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Compreendemos que todos os processos de criação representam, na origem,
tentativas de estruturação, de experimentação e controle, processos produtivos onde
o homem se descobre, onde ele próprio se articula à medida que passa a identificar-
se com a matéria. São transferências simbólicas do homem à materialidade das
coisas e que novamente são transferidas para si” (p. 53).
Sugerimos aqui que o processo de criação de um lugar não é diferente de qualquer
outro processo de criação humana. A criação de um lugar passa por uma identificação,
por uma valoração, por uma apreensão (apropriação) deste. Antes do lugar, há um
vazio: que o lugar vem preencher. Somos então, na verdade, a soma dos lugares de
nossas vidas: porque é a eles que está atrelada nossa vivência: nosso caminho terreno.
Ao perceber que estava à deriva, Moura percebe também a necessidade de um canto de
repouso, de uma referência, de uma pausa estável.
Nessa noite, dormimos um belo sono. João Rufo atou a minha rede em duas
chibatas grossas de louro. (...) Deitada na rede, eu me sentia inquieta. Ah, não era
aquela vida de correria miúda que eu procurava, quando fugi do Limoeiro. A gente
tinha que tomar uma decisão. Reuni de novo os homens ao redor no nosso fogo e
decretei:
― De hoje em diante, nós vamos procurar um canto pra fazer o nosso ponto
de parada. Um lugar nosso mesmo, de onde a gente saia e para onde volte, por mais
longe que se vá, e se meta no que se meter. Tem que ser um lugar escondido e com
aguar perto. Essa mata por aí é muito grande; procurando a gente acha.
Levou quase três semanas para achar. Mas numa manhã bem cedo, ainda com
névoa no ar, a gente descobriu o que queria. (Queiroz, 19992, p. 114).
Na voz do velho negro Amaro, o nome desse lugar foi dito: “Nós chamamos de
Lagoa do Socorro, pois foi ela que nos socorreu.” (Queiroz, 1992, p. 118). Maria Moura
concorda então com o velho senhor: “― Socorro. É isso mesmo. Vai ser Socorro para
nós também.” (Queiroz, 1992, p. 118). Existe um livro infantil de Ruth Rocha (1976)
intitulado Marcelo, Marmelo, Martelo, no qual ela chama a atenção para a apropriação
coletiva que fazemos das coisas e objetos através dos nomes convencionados a eles.
Marcelo, indo contra a esses nomes que para ele não fazem sentido porque não remetem
ao por quê de ser das coisas, conclui:
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Pois é, está tudo errado! Bola é bola porque é redonda. Mas bolo nem sempre
é redondo. E por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E
bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por
exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E
travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, só vou falar assim”.
(Rocha, 1976, p. 13).
E Marcelo continua sua história chamando colher de ‘mexedor’, bom dia de ‘bom
solário’, boa noite de ‘bom lunário’ e assim por diante. Embora uma historinha que
brinca com a capacidade dos pais de entender seus filhos, mesmo quando esses são
diferentes do tido como normal, Ruth Rocha nos faz perceber que as coisas que têm
nome reconhecido fazem parte de um vocabulário que já foi apropriado por nós. No
entanto, quando algo nos é valorativo, muitas vezes sai da esfera do substantivo comum
e adentra a categoria dos substantivos próprios. Ao atribuir à Lagoa do Socorro esse
nome por conta do socorro que lhes prestou, tanto o velho Amaro quanto Moura
assumem o seu vínculo com esse lugar. Ele passa a ser território demarcado, apropriado
por eles:
A partir das perspectivas descortinadas pela experiência única e individual, a
noção abstrata de espaço vai-se transformando, à proporção que o nosso
conhecimento direto e íntimo ou indireto e conceitual se amplia, chegando, então, a
fundir-se com o sentido de lugar, mesclando razão e emoção. (...) Esta renovação
contínua do sentido de espaço e de lugar, tanto em termos de duração relativa da
nossa capacidade de apreender e conhecer, como de experienciar, sentir e refletir
um espaço, nos conduz à questão do tempo, seja em evocações de imagens de um
passado, seja em imagens desejadas para o presente ou projetadas para o futuro.
(Lima, 1999, p. 154).
Horácio Dídimo (2002) tem um poema que intitula Durante:
“desde/quando/?/quando/até” (p. 67). Todo lugar está atrelado a um ‘quando’. Toda
necessidade de mudança de lugar está atrelada a um ‘quando até’. A Lagoa do Socorro,
pouso do período de Andança, representava um ‘quando até’ para Moura. Ela sabia que
ali era tempo de preparação para a terra das Serras dos Padres. Talvez tenha sido nesse
período de Andança que a questão do tempo mais esteve presente em Moura.
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Enquanto a gente combinava as coisas, parecia fácil, mas na verdade foi uma
consumição. Eu sempre tinha vivido trancada em casa, as cunhãs me trazendo tudo
na mão, preparando meu banho, lavando e passando a minha roupa, fazendo
comidinha especial porque eu era biqueira. Mãe tinha me acostumado muito mal.
Agora aquela vida dura, só com os homens por companhia, naquele mato
isolado, nem sei como pude enfrentar. Mas tinha que ser e eu adiante. (...) Dormir a
minha primeira noite sossegada, debaixo da cobertura, depois de não sei quanto
tempo ao sereno. (...) Todos os dias os homens montavam, para os animais não
perderem o costume de andar, nem eles próprios. (...) Mas aquilo ali, para nós, era
muito diferente. A mata parece que engolia tudo, a catinga de verão era um mar de
garrancho e folhas secas, onde a gente se afogava. A minha idéia era ir levando os
cabras a se acostumarem na luta, porque da luta é que ia sair o nosso pão de cada
dia. Tinha muito com quem se brigar nesse mundo afora – porque eu já estava
convencida de que, nesta vida, quem não briga pelo que quer, se acaba. (Queiroz,
1992, p. 120/121).
A ‘Maria Moura’ já havia surgido, existiam apenas resquícios, memórias da
Sinhazinha que ela um dia fora: “Eu queria ter força. Eu queria ter fama. Eu queria me
vingar. Eu queria que muita gente soubesse quem era Maria Moura. Sentia que, dentro
da mulher que eu era hoje, não havia mais lugar para a menina sem maldade” (Queiroz,
1992, p. 121). Esse sentimento de busca, do desejo de que seria futuramente essa
‘Maria Moura’ de fama, a fazia trilhar seus caminhos, buscar o canto de onde pudesse
governar a realidade que queria para si. “El impacto emocional directo de la situación
con frecuencia dirige las estrategias de relación e intercambio que el sujeto mantiene
con el ambiente” (Corraliza, 2000, p. 62).
A situação em que Moura se encontra no período de Andança é a de busca de
referências: não pode edificar um canto decisivo, que caiba a longo prazo, pois ainda
não está no lugar que tem como definitivo. Enquanto isso, cria a estabilidade de um
lugar: então ela se fixa naquele ponto preciso do tempo e espaço, para que tenha de
onde sair e para onde voltar, mesmo sabedora de que ele é passagem para um futuro que
quer próximo. “Daily or periodic (physical) contact with a place is necessary to
maintain a sense of place, just as such contact is necessary to maintain other
relationships; otherwise, the sense of place becomes more nostalgic in character” (Hay,
1998, p. 6). Um lugar tem a perspectiva de ser referência emocional. Mesmo que
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criemos lugares quase que inconscientemente, já que não temos a constante noção das
referências e laços que vamos construindo, um lugar é como uma raiz: seja essa ‘raiz’
rasa ou profunda, são os lugares que são os responsáveis por sermos esses ‘seres
enraizados’, ou seja, por termos em nós a noção de origem, de segurança, de lar, de
localização, de pertencentes a um local e ambiente. Como afirma Campbell (1990):
“Tempo e espaço formam as vias sensíveis que moldam as nossas experiências. Nossos
sentidos estão limitados pelo campo de tempo e espaço, e nossas mentes estão limitadas
pela moldura das categorias de pensamento” (p. 65).
Como uma guerreira-donzela, no entanto, enquanto Moura não construísse ao
redor de si um castelo, uma fortaleza, ela teria que andar como que fugida, atenta aos
inimigos e à sociedade que estavam sempre prontos para lhe lembrar e impor a sua
“condição de mulher” (Queiroz, 1992, p. 114). Entretanto, ao longo do movimento
temos locais de refúgio, paradas discretas que nos servem de reabastecimento de força,
de lugar de reflexão para os passos futuros. É nas paradas que repensamos o
movimento. É preciso que se pare de andar para que se reflita sobre o caminho trilhado
até então. O passado deixa-se a depender do presente para que possa ser modificado e
transformado em futuro. Assim, Moura administra a construção de seu repouso
temporário, de onde viria o treino e preparação para o caminho que queria trilhar para
chegar a sua terra sonhada:
O mais – quer dizer – as nossas moradas novas, tinha tudo que ser situado
mais pra dentro, no fechado da mata, por onde não corresse caminho nem vereda.
A derrubada lá era para ser a menor possível; as casas levantadas debaixo das
árvores grandes (a gente encontrou uns angicos e uns paus d’arco que pareciam
umas torres). O cercado dos cavalos já tinha uma ramada provisória e o lugar
escolhido era bom. As nossas duas barracas deviam se levantar não muito perto do
cercado; se alguém achasse uma coisa, não obrigava a achar a outra; ou as casas, ou
os cavalos. Roçado que a gente plantasse, também seria lá dentro, muito mais no
fundo da catinga. (...)
Começamos o trabalho e não foi pouco. Deixamos as barracas velhas dos
escravos – a do filho e a do genro, no seu estado de ruína, quase tapera; na nova
acrescentamos uns paus tortos, nem rebocamos as paredes por fora, ficou só no
sopapo do barro. O cercado das cabras continuou do mesmo jeito também: a cerca
meio desdentada, faltando uns paus aqui e ali.
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Já para nós, lá dentro, a coisa era outra. Duas barracas bem aprumadas; a
minha, pequena, que era só para uma rede; a dos homens larga pra três redes.
Seguindo a combinação, o Alípio ficava com os velhos, se fazendo de neto, na
verdade para nos servir de sentinela. (...)
Limparam um terreirinho defronte à minha porta. João Rufo fez um banco –
duas forquilhas de cada lado e, por cima, uma tora de uma braça de comprido;
diziam eles que, ali, era o meu ‘gabinete’. (...)
A gente já sonhava com uma vaca parida para dar leite; o velho Amaro sabia
de uma fazenda com muito gado solto, pra lá da tal Camiranga. Um dia se mandava
dois dos meninos dar uns campos por lá. Não era à toa que, do nosso sítio, se tinha
trazido um cavalo campeiro!
Os dois negros velhos já começavam a chamar o nosso acampamento de ‘a
fazenda’. (Queiroz, 1992, p. 123/124).
Ao tachar esse lugar de ‘acampamento’, sabedora das limitações que ele lhe
apresentava, bem como de sua temporalidade, Moura, embora administrasse
modificações a esse espaço e até gozasse dele de forma positiva e proveitosa, tinha
como certo que não era ali o local a que pertencia. Esse lugar, que aos poucos sofria
apropriações de Moura e seu bando, era visto de forma muito diferente por Libânia, por
exemplo, e por Moura. Para a velha escrava, a chegada do bando veio trazer riqueza e
vida ao local pobre e abandonado em que viviam:
Quase chorou quando lhe entreguei um punhadinho de sal.
― Sal, meus santos anjos! Não vejo são sal desde aquela noite que a gente
fugiu da senzala!
Molhou com a língua a ponta do dedo, tocou o dedo molhado no sal, lambeu
o dedo com delícia:
― É sal mesmo. É sal das águas do mar, secado no sol... (Queiroz, 1992, p.
117)
Para Maria Moura, no entanto, embora a certeza de um canto que lhe protegesse
do aberto fosse confortante e promovesse segurança, ela tinha a constante sensação de
temporalidade. A Lagoa do Socorro representava o que o próprio nome definia: um
lugar que veio em ajuda, que promovia a quebra do movimento, que transformava o
desconforto do aberto em sensação de fechado, que lhe dava o sentimento de ter um
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território a que estivesse apegada. Já que ainda não podia ter o seu lugar ideal, a
necessidade de um lugar que pudesse se transformar em casa, mesmo que desapegada
de uma noção mais profunda e definitiva de lar, vinha a ser conferida pela Lagoa do
Socorro:
É, estava tudo uma beleza; eu até tinha engordado um pouco. Nem pensava
mais nos meus banhos de cheiro, na boa cama com lastro de sola que eu tinha no
Limoeiro. Também isso, e tudo o mais, estava agora virado em cinza. Do meu
conforto de sinhazinha, nada. A vida era outra, eu estava endurecendo. Já um dia
inteiro a cavalo, por maus caminhos, não chegava a me deixar enfadada. (...)
Eu comia, assada na brasa, banda de nambu ou de preá, ou de tatu; ou uma
traíra, da lagoa, temperando o feijão. E dormia até a manhã seguinte. Andava
mesmo tão bem disposta que, ao fim de uma desses dias de correria, João Rufo
brincava, dizendo que era mais fácil o Tirano ficar enfadado do que eu.
Mas comigo mesma, dentro do meu coração e da cabeça, ainda nada estava
bem. Aquilo para mim era só um tempo de passagem ou mesmo um começo, mas
um começo pequeno, primeiros passos de um caminho que ainda tinha de ir muito,
muito mais longe.
Pensava, em primeiro lugar, no que eu ia fazer quando se acabasse o nosso
dinheiro de prata, que nem era tanto. Ficar roubando bode e garrote das fazendas
léguas abaixo? Isso não era para mim. Eu queria era coisa grande; era poder na
minha mão. (...)
Viver em estrada aberta; e não escondida pelos matos, em cabana disfarçada,
como índio ou quilombada. Mas num alto descoberto, deixando ver de longe o
casarão lá em cima, telhado vermelho, paredes brancas caiadas. Cavalos de sela
comendo milho na estrebaria, bezerro gordo escaramuçando no pátio.
Quero que ninguém diga alto o nome de Maria Moura sem guardar respeito.
E que ninguém fale com Maria Moura – seja fazendeiro, doutor ou padre, sem ser
de chapéu na mão. (Queiroz, 1992, p. 124/125).
A noção de territorialidade passa pela necessidade inerente ao homem de possuir e
delimitar um território para que possa assegurar, entre outras coisas, alimentação,
proteção e familiaridade com o ambiente (Fischer, 1989). Assim como a territorialidade,
a apropriação e a vinculação ao lugar cabem dentro do tempo. Via de regra é que,
quanto mais tempo se passa em um lugar, mais chances se têm de se apropriar dele, de
senti-lo mais como território e de estar mais vinculado a ele. No entanto, como diz
Rubem Alves, “o tempo se mede com batidas. Pode ser medido com as batidas de um
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relógio ou pode ser medido com as batidas do coração” (Alves, 2003, p. 67). Assim, não
necessariamente será o tempo do relógio que determinará a fortaleza do sentir em
relação a um lugar.
Há uma passagem no livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll (2006)
em que Alice diz: “Estou meio cansada com todas essas mudanças! Eu nunca sei o que
vou ser de um minuto para o outro...” (p. 64). O livro, que cabe ao gênero nonsense,
claro, não tem uma lógica certa de acontecimentos ou, em outras palavras, sua lógica é
justamente não ter lógica. A questão é que quando pensamos em um lugar, ele nos vem
exatamente para que em nós seja criada uma lógica: é o lugar quem nos situa, e dele,
uma vez que já é lugar (ou seja, já foi apropriado por nós), sabemos o que esperar; ele já
nos é conhecido. Interagimos com ele de forma estável, com a lógica que ele nos
oferece e que, em retorno, podemos lhe dar. Por essa mesma razão, é que a cada lugar
sabemos que cabe uma lógica diferente.
Maria Moura sabia da lógica que a Lagoa do Socorro, lugar que se encontra dentro
do período que aqui chamamos de Andança, lhe oferecia. Sabia o que esperar desse
lugar e sabia o que ele lhe representava. Para ela, a Lagoa do Socorro não precisava ser
mais do isso: o socorro que lhes prestava. Era um lugar que cabia ao presente e que ela
sequer queria no futuro. Sua utilidade era limitada. Assim como sua significação.
Extraía desse lugar o que ele podia lhe dar dentro desse senso de finitude temporal: para
Moura, a Lagoa do Socorro era a própria representante de seu período de andança, algo
temporário, uma pausa no meio do caminho. Era o seu lugar-preparação: “Tinha que
andar devagar, eu sabia. Ir adestrando os meninos, que todos os domingos faziam
exercício de pontaria; cada um dava dois tiros e nada mais, pra se poupar a pólvora”
(Queiroz, 1992, p. 125).
Às vezes, é em ter o que não queremos que temos a certeza do que queremos.
Assim era esse lugar temporário para Maria: dava-lhe mais do que nunca a certeza de
que queria achar seu canto definitivo e construir uma fortaleza que expressasse por fora
o que ela sentia por dentro. Esse sentimento de grandeza que cabia na própria busca
incansável de Moura, era cada vez mais alimentado por ela. Talvez por não conseguir
achar a segurança interna que fora lhe tirada com a perda do Pai, da Mãe e, por fim, do
Limoeiro (que representava esses pais), Moura buscava a segurança externa: queria
rodear-se de tudo o que o mundo concreto poderia oferecer como ostentação de poder e
proteção.
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Já na vida de jagunça com seus homens, cada vez mais preparados para o destino
furtivo do crescimento financeiro de Maria Moura, ela, ainda na Lagoa do Socorro, diz
sobre a pequena riqueza que já acumulava:
De noite, eu não ia mais precisar mais sonhar com botija dos outros. Já
possuía a minha.
Fiquei algum tempo sentada na rede, me balançando, pensando em mim, na
vida, nas coisas do mundo. O que é bom e o que é ruim, na vida. Pra mim, pra todas
as pessoas. (...)
Quem sabe a força dos ricos está mesmo é nas casas de alvenaria, nos cavalos
de sela, na roupa de seda e veludo, o muito gado pastando nos campos sem fim – e
os próprios campos sem fim? O ouro será o confeito dessas posses? Pois quem tem
ouro tem tudo que o ouro compra, que o ouro vale.
Fiquei então assim, cismando, passando a mão pelos meus ouros que me
enrolavam o pescoço, tirando e enfiando os anéis dos dedos.
É. Eu tinha que ter o ouro para ter o poder. As terras, o luxo, a força para
mandar nas pessoas. (Queiroz, 1992, p. 177).
Embora envolta de escudos, como a própria persona de “Maria Moura”, ou o seu
bando de homens, ou até as riquezas que ia já acumulando, a verdade é que Maria tinha
medo. Maria era ainda uma sinhazinha assustada, uma sinhazinha sem uma Casa
Grande que lhe acolhesse em sua função de sinhá. El sentimiento de inseguridad o el
miedo sentido en un lugar es real, y está basado en la construcción del significado que
para el sujeto tenga el lugar en su conjunto o facetas específicas del mismo (Corraliza,
2000, p. 62). Brigando sempre com sua ‘condição de mulher’ e personificação
masculina, Moura vivia a tentar buscar o espaço a que realmente pertenceria. Como diz
o terceiro pressuposto da Psicologia Ambiental, “não há ambiente físico que não esteja
envolvido por um sistema social e inseparavelmente relacionado a ele” (Ittelson et al,
1974, p.13): a sociedade de Moura a fazia viver essa bivalência ambiental, transitando
sempre entre as fronteiras do feminino e do masculino, buscando transgredir o sistema
social a que pertence para poder ter tudo o que deseja. Dentro de si, calculava que ao ter
sua fortaleza poderia enfim ser realmente as duas coisas: sua própria mulher, com as
regalias femininas de banhos perfumados, lençóis finos, cabelos penteados, e camisolas
brancas; e seu próprio homem, com seu espaço próprio, a comandar e administrar seu
próprio destino, a ser respeitada e ouvida, a ter poder e grandes posses, a ser dona e
92
feitora de sua terra. O sonho desse lugar que faria tudo o mais possível era o que a
mantinha em sua Andança.
A Lagoa do Socorro, como todo lugar temporário, um dia deixou de ser
necessária. Expirou. O próprio lugar às vezes comunica que já propiciou o que poderia.
A inter-relação constante entre pessoa e ambiente cria vários diálogos comunicados pelo
sentir: é com base nessa ‘comunicação’ entre nós mesmos e nossos espaços que vamos
escolhendo nossos caminhos, decidindo nossas direções e delineando nosso destino.
Chega então o dia em que Moura percebe que já é hora de partir para seu lugar-objetivo:
“Enfim achei que tinha chegado a hora de fazer a minha grande viagem – quer dizer, a
romaria em procura da Serra dos Padres. Lá ficava o meu destino: disso eu tinha
certeza” (Queiroz, 1992, p. 225). Para Moura, a ida ao encontro da sua terra sonhada era
justamente isso: uma peregrinação. Esse lugar representava a exaltação e condensação
de todos os seus planos e sonhos: era realmente terra sagrada, envolta de toda a
simbologia do que fala à alma, carregada de toda a intensidade do sentir.
Como oração, tinha o caminho para essa terra decorado. Repetido de novo e de
novo: do Avô para ela, do Pai para ela, dela para si própria. A rota desejada que levaria,
enfim, para a terra que tinha como herança paterna já era mais do que conhecida:
Passa por catinga e por serrotes; por mata e cerrado, por léguas de campos e
alagados. Dois rios se atravessa, sempre secos no verão; mas no inverno eles correm
encachoeirados, das águas que descem da serra. E, depois que se atravessa os dois
rios, e se topa com os primeiros contrafortes do pé de serra, segue sem desencostar,
até encontrar com dois serrotes juntos, um pequeno e mais baixo, o outro comprido
e alto, e que chamam o Pai e o Filho.
Essa é que era a referência importante. A gente quebra às direitas, anda mais
de uma légua, costeando sempre o pé de serra, até alcançar um ponto em que as
pedras se amontoam, grandes e pequenas; e no meio delas, dá de cara o Pai e o
Filho. Só que aquele amontoado não é pedra caída lá de cima, é pedra firme,
enraizada no chão. Então já se está nas próprias quebradas da serra.
E o local especial onde fica a furna é onde o mato está sempre verde, de verão
a inverno; lá fica a nascente, o olho d’água. (...)
Como se vê, eu tinha todo aquele roteiro na cabeça. Aprendi como quem
aprende reza, ensinada pelo Avô. Que o velho, no desgosto de não ter um neto
macho, me obrigava a aprender tudo dos nossos direitos na terra das Serras dos
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Padres, para eu fazer o meu marido, ou um filho, um dia, recuperar aquele chão que
valia mais do que ouro, com a sua água perene, com suas terras frescas.
E era nosso, nosso! Nosso, que tinha sido comprado, parte da sesmaria da
Fidalga Brites. Na mão dos herdeiros dela.
Eu agora já tinha mais tenência com as coisas. Sabia esperar para fazer, e
fazer com propósito. (...)
A nossa ausência do Socorro não devia ser longa. A gente ia, mas era pra
voltar. (Queiroz, 1992, p. 225/226).
Os espaços se sobrepõem sobre si mesmos: em outras palavras, para sair de um
espaço, é necessário entrar em outro. Quando essa saída se dá de forma forçada ou por
perda, são mais intensos os nossos sentimentos em relação a um lugar que venha suprir
o que o outro supria.
Por outro lado, quando uma pessoa sente que ela mesma está dirigindo as
mudanças e controlando os assuntos importantes para ela, então a saudade não tem
lugar em sua vida: a ação, em vez de lembranças do passado, apoiará seus sentido
de identidade. (Tuan, 1983, p. 208).
A perspectiva real do lugar sonhado enche de forças e metas o indivíduo que
busca. Moura sonhava em encontrar esse lugar já tão conhecido em sonho. A vinculação
ao lugar não necessariamente se dá no contato físico com esse lugar, mas pode ser
construído pelas sensações que a imagem desse lugar causa à pessoa. A terra das Serras
dos Padres já pertencia ao imaginário de Moura desde os tempos do Limoeiro e, agora,
com ela se encaminhando para a real apropriação desse lugar, o vínculo tornava-se
ainda mais forte, uma vez que se alimentava de toda a realização e sentimento de
identidade que essa terra despertava em Moura.
The person’s needs and desires may be gratified to varying degrees, and there
can be little doubt that physical settings vary from time to time to the next in their
capacity to satisfy these needs and desires. Out of these ‘good’ and ‘bad’
experiences emerge particular values, attitudes, feelings and beliefs about the
physical world – about what is good, acceptable and not so good – that serve to
define and integrate the place-identity of the individual. (Proshansky, Fabian,
Kaminoff, 1983, p. 59/60).
94
A Lagoa do Socorro não representava mais apelo algum para Moura, para a busca
de sua terra-destino, ela poderia partir como se sequer fosse voltar, essa busca valeria
isso: “Me arrumei com o maior capricho, como quem vai para outro mundo, sem volta”
(Queiroz, 1992, p. 228). A terra das Serras dos Padres, embora ainda não fosse uma
realidade palpável, era a condensação de bons sentimentos e crenças. Lá Maria Moura
esperava encontra-se a si própria, seria essa terra uma terra-espelho, em que ela pudesse
finalmente ser em liberdade e expansão, em que ela pudesse estar em paz com o
passado, por ter finalmente tomado posse das terras de herança, como era desejo de seu
Avô e Pai, e em que ela pudesse, enfim, abraçar o futuro de fama e poder que almejava.
Como toda peregrinação, foi necessário um preparo para a jornada, que se sabia longa e
difícil.
Num estirão como o que a gente ia enfrentar, a água era o mais importante de
tudo. (...) Desta vez não se estava indo enfrentar luta, arriscar briga; a gente estava
querendo só ir conhecer o terreno, ver se tinha ainda alguém ocupando o lugar que
era meu. (...)
Era isso, exatamente, o que a gente ia descobrir. Pisar na terra, fazer visão do
lugar, avaliar os recursos. (...)
A marcha foi custosa. A cada hora se perdia o rumo, porque se tinha que
andar ao capricho das trilhas e não se sabia bem para onde botavam; e às vezes se
afastavam demais do nosso rumo norte-poente. (...)
Pelos nove dias de viagem, era sol alto, nós tínhamos saído da mata mais
fechada e entrado num vargueado, quando de repente levantei os olhos e soltei um
grito:
― Lá está! Lá está!
Na verdade, bem no meio do rumo entre o norte e o poente, se levantando aos
poucos até tomar mais altura, se via muito bem o lombo azulado da serra.
― Lá está! – e eu apontava com a mão trêmula. ― Lá está a Serra dos
Padres!
Avançamos quase a galope. Até os cavalos pareciam animados. Então o
caminho estava certo! O rumo dado pelo Avô servia mesmo de guia seguro.
(Queiroz, 1992, p. 229/230).
95
Não há outra forma de conhecer um ambiente: é preciso vivenciá-lo, seja por meio
de palavras, pensamentos, olhares, experiências, enfim, convivências que faça possível
algum tipo de relação com o ambiente tratado. No contexto de Maria Moura, datado
aproximadamente de meados do século XIX, ainda no Brasil imperial, quando a
escravatura ainda era uma realidade mesmo que decadente, o meio de transporte mais
comum eram os cavalos e carruagens. Em grandes caminhos percorridos, era a própria
paisagem que servia de referência e localização no espaço. As distâncias medidas em
dias e léguas, um rio que passa por lá, uma serra que se avista: é a geografia que
direciona e sinaliza o homem nos espaços abertos.
Portanto, a partir das perspectivas descortinadas pela experiência única e
individual, a noção abstrata de espaço vai-se transformando, à proporção que o
nosso conhecimento direto e íntimo ou indireto e conceitual se amplia, chegando,
então, a fundir-se com o sentido de lugar, mesclando razão e emoção. (Lima, 1999,
p. 154).
O caminho de busca até a Serra dos Padres já foi uma forma de assimilação, de
conhecimento daquele território: os olhares atentos observavam as informações que a
paisagem lhes fornecia e, à medida que caminhavam, iam reconhecendo nessas a
descrição que Moura tanto ouvira toda a sua vida. Ainda, de acordo com o sétimo
pressuposto da Psicologia Ambiental, “o ambiente é organizado como um conjunto de
imagens mentais” (Ittelson et al, 1974, p.14). Por sua vez, reconhecer um lugar é
apropriar-se dele com os olhos: é como se a imagem mental que se tem se juntasse à
imagem concreta, como chave e fechadura, como signo e significante, como palavra e
som.
De acordo com Twigger-Ross e Uzzel (1996), o apego nasce do significado que o
lugar tem para a identidade da pessoa. O desejo maior de Moura era apropriar-se
daquela terra, fazer dela território demarcado, tomar conhecimento de seus relevos e
declives, de sua vegetação e água, de todos os pormenores relativos àquele lugar. Ela
queria fazer com que o vínculo emocional que já sentia há tempos fosse colocado,
enfim, em prática; que pudesse se relacionar fisicamente com aquela terra que já lhe
influenciava tanto.
96
Eu não podia negar o alívio que sentia. Esperava encontrar gente armada, a
raça dos posseiros em pé de guerra e afinal estava ali só a triste Jove, viúva,
desvalida, com o pobrezinho do Pagão, que, só de olhar pra ele, dava um aperto no
coração. (...)
Felizmente era terra do Avô, pai de Pai, não tinha nada a ver com aqueles
almas de sapo das Marias Pretas.
Não, do Limoeiro eu queria a distância e as poucas lembranças.
― Quem faz o dono é a posse, João. Se nós temos as escrituras no cartório,
melhor. O que eu quero é tomar posse da terra, fazer aqui a minha casa.(...)
O João ainda estava em dúvida:
― Mas, como é que vai ser essa posse? Aqui não tem nada, nem um começo
de nada.
― É assim mesmo que eu quero. Quero fazer uma casa pra mim, defendida
por estes serrotes e as suas furnas. Quero uma casa que cachorro de Tonho nenhum,
ou outro qualquer, se atreva a cercar.
Dito isto, pensei um pouco, determinei:
― Nós demoramos uns dias, descansando e tomando sentido das coisas.
Depois se volta para o Socorro. Vou arranjar uns machados e mais toda a
ferramenta que for preciso para se levantar a casa. Nesta terra tem muita madeira de
lei, é só olhar, até daqui se vê. Dá pra fazer cem casas de taipa, quanto mais uma.
― E a telha? Cobrir com quê?
― Você vai me descobrir um oleiro. Não precisa nem ir na Vargem da Cruz
para encontrar. Na Camiranga não tem casa coberta de telha? Então, tem lá quem
sabe fazer. A gente traz um mestre telheiro nem que seja à força; depois se vê o que
se faz com ele. Daí, tem que se alistar mais uns homens. Nós vamos precisar de
gente. O Roque pode ajudar nisso: o alistamento é de se fazer devagarzinho, de um
em um, pra não se correr risco. (Queiroz, 1992, p. 236/237).
O processo construtivo de um lugar pode se dar tanto do espaço que já existe para
o indivíduo, como do indivíduo para um espaço projetado e ainda a ser construído: o
lugar está ali, a pulsar possibilidades, tanto o lugar já físico como o ainda abstrato.
Veículo de nossas ações, um lugar é palco de nossas vidas e momentos, sentimentos e
percepções.
Place is more than mere physical or spatial location, capable of being
translated into neatly bounded, compartmentalizing definitions. (…) Human beings
97
are not simply materially placed within a world, nor do they simply occupy space.
On the contrary, the human subjectivity is actively immersed in the environment,
interpreting, intuiting, sensing, responding emotionally and intellectually, and
meaningfully assigning signification in a complexity of ways. (…) It follows that
special places are more than merely lone points of geographical interest, but that
they may reveal something essential about human ways of being-in-the-world.
(Stefanovic, 1998, p. 32/33).
De acordo com o quarto pressuposto da Psicologia Ambiental, O “grau de
influência do ambiente físico no comportamento varia de acordo com o comportamento
em questão” (Ittelson et al, 1974, p.13). Assim, em relação ao ambiente, “as influências
podem ser tanto sutis quanto poderosas” (Rivlin, 2003, p. 217). Com a chegada à terra
das Serras dos Padres, Moura pôde juntar a resposta emocional que tinha em relação a
esse lugar, com o envolvimento intelectual: lá estava a terra, esperando ser
administrada, esperando que Moura operasse nela as modificações próprias à
convivência, que Moura deixasse nela as marcas de sua subjetividade.
O período que se dá em que Maria Moura passa a realizar modificações na terra
das Serras dos Padres é o que chamamos de Assentamento. Moura não necessitava mais
buscar: havia encontrado o que procurava. Restava agora construir ali sua morada.
4.3 – A Serra dos Padres e o Assentamento
Diz a Clarice Lispector que “a causa é matéria de passado” (1973, p. 9). A coisa
segura em si todas as significações que cabem ao tempo: a essas, não se pode colocar
em palavras; pode-se, no mínimo, trazer à tona referências através de frases que
expressem uma parcela ínfima dos sentimentos que aquela coisa faz emergir no
indivíduo. Mas é só no sentir, proliferação de percepções internas, domínio da alma, que
são abraçados fielmente os porquês que envolvem a coisa.
Maria Moura estava agora exatamente sobre a meta que pulsara por tanto tempo
no imaginário de três gerações da sua família. Cada um de nós sabe o valor de achar a
coisa com que se sonhou: o mundo parece entrar em sintonia consigo; de repente, o
corpo enche-se de energia e tudo o mais é também possível.
98
La valoración de la experiencia del ambiente, de esta forma considerada, se
convierte en un recurso a través del cual el sujeto se implica a sí mismo en el lugar:
se imagina actuando, y, sobre todo, es capaz de imaginar el grado de adecuación del
ambiente en su conjunto o de una parte del mismo a sus propias metas e
intenciones. (Corraliza, 2000, p. 62).
Moura poderia finalmente agir sobre a terra que sempre sonhara. No entanto,
grandes planos têm que ser bem arquitetados, terrenos novos precisam primeiro ser
conhecidos, materiais precisam ser coletados para que se tornem disponíveis, e
atividades precisam ser enumeradas para que caibam dentro do plano de ações que toda
construção demanda. “O espaço convida à ação” (Bachelard, 1998, p. 31). A primeira
ação de Moura seria então o reconhecimento de área. A percepção ambiental da terra
das Serras dos Padres.
Like all perceptual processes, environment perception plays a dual role in our
lives. First, it is the source of our phenomenal experience of the world; all its sights
and sounds and smells, all its simple and subtle meanings, all its ugliness and its
beauty, all its sense of value comes to us through the process of perception. Second,
it provides us with a guide to action in the environment, it gives us both the arena
within which actions take place and the ability to register and record the
consequences of these actions. (Ittelson, Proshansky, Rivlin, Winkel, 1974, p. 123)
Como animal cognitivo, o homem vive a interagir com seus ambientes, vive no
constante binômio da ação e reação. A percepção ambiental assim, quando nascida da
consciente exploração e observação do ambiente, é uma coleta de informações, como
dados necessários para o agir futuro, como o enquadramento de características
existentes para que se possam então realizar as mudanças desejadas.
A cavalo, a pé, começamos a travar conhecimento com a Serra dos Padres, e
com a vargem larga e comprida que ficava no sopé. Lá em cima, os serrotes se
entremeavam com os morros; e quanto mais esses morros tomavam altura, mais a
mata ia engrossando. Por toda parte os homens me mostravam madeira de lei, os
pais d’arco, as aroeiras, os angicos, os cumarus, e tudo esperando ser cortado e
servir na construção. (...)
99
Se a serra subimos a pé, pelas várzeas lá de baixo a gente andou a cavalo,
conferindo as esperanças de comida e bebida para o gado. É verdade que tinha o
olho d’água, muito bom para servir a uma casa; mas dar de beber a um magote
maior de reses, já era outra empreitada. E o Roque que, anos antes, tinha trabalhado
nas obras de um açude, acabou descobrindo um riacho com umas ombreiras muito
boas para levantar uma barragem apoiada nelas.
― Dá uma parede famosa, vai ser água muita. Esta barranca é só pedra e
pirraça. E olhe, Dona, o espraiado pra represa! Vai ser um pai das águas!
Derrubamos o velho rancho da Jove, fizemos uma casinha nova pra ela, ainda
coberta de palha, era o jeito. Mas ficava prometido que logo estaria coberta de telha.
Era só eu trazer o oleiro, pois o precioso Roque já tinha descoberto barro de telha na
terra onde ia ser a futura represa do futuro açude. (...)
Fui descobrir a furna que já era famosa desde o tempo dos Padres. Era mesmo
um esconderijo difícil de se achar igual. Nascia numa fenda de pedra, embaixo, e
seguia por um corredor de umas duas braças de comprimento e saía disfarçado, mas
tão bem encoberto que só podia dar conta dele quem já de antes soubesse onde
ficava.
Depois de um mês, na madrugada, nos arrancamos de lá. Eu, pelo menos, me
arranquei, e com dor. Ali eu senti, de verdade, que tinha encontrado o meu canto no
mundo, o meu condado. (...)
― Pois então, acredite agora. Eu vou mas eu volto. Esta terra é minha! Vou
levando os homens comigo porque careço deles pra adquirir as coisas pra casa
nova. Os ferrolhos e as dobradiças, os ferros todos que se precisa para uma casa de
gente rica. A nossa casa, aqui, vai ser uma casa de rico, e você vai morar com a
gente, vai ter o seu quarto, seu e do Pagão, por toda a sua vida. Vou trazer roupa
nova pra você e pro Pagão, vou trazer comida pra gente, vou trazer semente pra se
plantar. Vou trazer sal pra temperar a panela. (...)
― Olhe, Mestre Luca, eu vou levantar aqui, neste lugar, uma casa importante,
pra ser sede da minha fazenda. E eu, mais o João Rufo, estava se quebrando a
cabeça pra descobrir de onde se podia tirar barro, fazer uma olaria. E aí descubro
que o senhor mesmo é mestre oleiro, sabe arrancar o barro e fazer a telha e o tijolo!
Pode crer, eu lhe dou tudo o que pedir para a minha olaria: os homens, os ferros, a
lenha pra queimar, tudo mesmo! O senhor só precisa ir ensinando a eles, que a
minha rapaziada faz todo o resto!
Seu Luca sorria meio assustado:
― Mas Vossa Senhoria não vai sair de viagem ainda hoje?
100
― Eu vou ali e já volto, Mestre! Enquanto eu não chego, vá marcando as
minas do barro e vá praticando numas telhas, pra refrescar a memória.
Ele se levantou, espigado, parecia que tinha ficado mais moço:
― Pois vá e venha, Senhora Dona Moura! Vá e venha que quando chegar de
volta já encontra novidade. (...)
Os outros me acompanharam e eu me virei para os Serrotes do Pai e do Filho,
olhei os dois um instante, depois deu adeus com a mão.
― Adeus, minha Serra dos Padres! Adeus minha Casa Forte que eu vou
levantar!
E ora essa, adeus não, que isto não é despedida. Até qualquer hora, que eu
volto logo!
Estava tão feliz que comecei a chorar. Apertei o Tirano com o tacão da bota,
ele tomou galope. O vento, batendo no rosto, me secou as lágrimas. (Queiroz, 1992,
p. 237/238-244/245).
Achar o seu ‘canto no mundo’. Existe algo mais valoroso que isso? Perceber, estar
consciente do seu vínculo e territorialidade a um lugar; estar-se certo da apropriação
emocional e física que lhe liga àquele lugar, que faz dele uma extensão sua. Para Moura
a Casa Forte era já um sonho realizado: porque agora era toda formada de possibilidade,
de viabilidade, e para um sonho se concretizar basta que percebamos que chegou a sua
hora, que é tempo dele acontecer.
Se o apego é definido como o laço afetivo entre um indivíduo e um lugar,
acompanha do desejo de estar próximo a esse loca, a literatura atual sobre laços
pessoas/lugares distingue pelo menos três processos diferentes, que podem resultar
em um sentimento de apego. (...)
a) o apego deriva de uma avaliação positiva da qualidade do local ante as
necessidades do indivíduo. (...)
b) o apego deriva do significado que o lugar tem para a identidade da pessoa
(Twigger-Ross e Uzzel, 1996). (...)
c) o apego deriva de um longo período de residência e familiaridade. A base é
mais emocional do que funcional. (Giuliani, 2004, p. 94/95).
Podemos assim dizer que o apego, o vínculo, que Maria Moura tem em relação à
terra das Serras dos Padres é tão forte que envolve esses três processos de apego: a nova
terra apresenta todas as possibilidades e demandas para o que ela sonha; o significado
101
daquele lugar ressoa não apenas ao seu vínculo familiar e ao desejo de seu Avô e Pai,
mas a toda a conjuntura de sonhos e planos que ela tem para si mesma; embora tenha
acabado de chegar a terra, seus pensamentos estão ali já faz tempo e a base emocional
daquele lugar lhe vem servindo de alimento e força há muito.
Maria volta então ao lugar que se tornou seu canto-preparo: a Lagoa do Socorro.
De lá queria juntar tudo o que fosse preciso para enfim partir uma última vez em destino
a Serra dos Padres.
A volta da Serra dos Padres foi muito melhor do que a ida. Aqueles homens,
depois que passam por uma trilha, não esquecem nada, nunca. Se lembram da
jurema torta, da rebolada de pau branco, do juazeiro caído; são marcos do caminho.
Na volta já estão à procura deles, como velhos conhecidos. (Queiroz, 1992, p. 257).
O espaço é como um texto: ao ser lido, tem a possibilidade de ficar impresso em
nossas mentes, a nos servir de referência constante, a nos ser uma memória e
informação a mais, a nos trazer à mente coisas que nos confortem ou gerem incômodo.
No contexto de Moura, a referência espacial é, inclusive, questão de sobrevivência: a
natureza ainda é predominante na grande quantidade de estradas cruas e campos abertos
que lá existem, a convivência do homem com a natureza é ainda de subserviência, ele
tenta adaptar-se à soberania da terra na maior parte do tempo, e lida com ela de forma
pacífica e passiva. Embora todo espaço gere senso de orientação, no contexto de MMM
isso é ainda mais evidente uma vez que a mobilidade deixa-se a depender das marcas da
paisagem natural e das características formadas pela própria natureza. O olhar de
atenção é grande, porque é uma árvore, uma mata, ou uma pedra que indicará a certeza
do caminho e direção.
Depois de algum tempo preparando a si mesma, aos seus homens e angariando os
materiais de que necessitaria, chegou a hora da ida definitiva para a Serra dos Padres:
Saímos quando a barra levantava (...).
Cada um levava a sua arma à bandoleira. Isto é, quem a tinha.
E eu me mirava neles, os meus cabras. Deus que me perdoe, mas até se podia
dizer que era uma tropa bonita, gente nova e bem resolvida. E agora, que já se
conhecia o caminho para a Serra dos Padres, a volta ia ser quase um passeio.
Os tabuleiros também estavam lindos. Mês de julho – fins d’água, a terra
agradecia as chuvas e rebentava em flor.
102
Não tivemos nenhum encontro importante, em caminho. (...)
Passou-se por toda parte sem perigo. Àquelas alturas, a gente é que era o
perigo.
Afinal avistamos a serra. Parecia ainda mais bonita, depois que perdeu o
mistério: já se sabia o que ia se encontrar nas entranhas daqueles serrotes. Eu, então,
já via a minha Casa Forte levantada, encostada na pedra. E olhava as vargens onde
ia pastar o meu gado. (...) Paciência não me faltava; nem paciência, nem esperança.
(Mestre Luca) Pegou no meu estribo, eu saltei no chão sentindo que pisava no
que era meu. (Queiroz, 1992, p. 271/272).
Há momentos em que todos os afluentes de nossa vida seguem para a mesma
direção, em uma sintonia fluida. Como uma metáfora para o aportar, Moura havia
chegado a seu destino. Tudo ali comunicava seu sonho, tudo ali significava mais do que
o que os olhos podiam ver, a terra das Serras dos Padres, é matéria da alma para Moura.
Uma identidade pulsava ali: havia encontrado a si própria, àquela terra cabia o pronome
possessivo que a ligava a ela. A Serra dos Padres gerava em Moura um senso de ser-se
atrelado à paz de estar-se, ali tudo fazia sentido e tudo parecia possível. Ali, o tempo e a
pressa sequer importavam: pois já estava no lugar em que queria.
What emerges as ‘place-identity’ is a complex cognitive structure which is
characterized by a host of attitudes, values, thoughts, beliefs, meanings and
behavior tendencies that go beyond just emotional attachments and belonging to
particular places. (Proshansky, Fabian, Kaminoff, 1983, p. 62).
O ser humano é como um quebra-cabeça de peças infindáveis: estaremos sempre
incompletos, com pecinhas ainda faltando; no entanto, estaremos sempre no ato de nos
completar, sempre agregando à nossa falta, novas pecinhas. A complexidade que nos
envolve e, assim, envolve tudo a que submetemos nossa subjetividade faz com que as
coisas que à nós são ligadas estejam sempre além do que o que parecem em um
primeiro olhar. A continuidade do tempo que tanto nos forma como nos constrói faz
com que nossos significados, nossas percepções e vínculos estejam também em
movimento, junto à massa fluida e abstrata que forma o nosso sentir. A identidade de
lugar, em termos de representação, que Moura sente na Serra dos Padres era uma antes
de sua chegada, é outra agora que lá está e continua transforme: a movimentar-se junto
103
com a vivência e tempo na relação com esse lugar. No entanto, lá está sua Casa Forte,
simbólica até em seu título, a representar toda uma carga de valores e emoções.
4.4 – A Casa Forte
João Cabral de Melo Neto (1998) diz em um de seus poemas:
Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto. (Melo Neto, 1998, p. 189).
Nossa maior sede e desespero é a segurança: buscamo-la sempre. Ao primeiro
risco de perdê-la, ficamos como que soltos do chão, a buscar a proteção de algo, de
alguma referência que traga de volta a sua certeza. Nossas casas, separação da rua que
são, limite que se volta para dentro, fechado que permite a privacidade e a intimidade, e
muitas vezes reflexos de quem somos e de nossos gostos, são como um ser materno:
limitam-nos; mas também abraçam-nos, confortam-nos, protegem-nos, aceitam-nos.
“Sabemos e aprendemos muito cedo que certas coisas só podem ser feitas em casa e,
mesmo assim, dentro de alguns de seus espaços” (Da Matta, 1997, p. 50). O lugar que
temos como representante de segurança nos é benevolente. Ali, em termos gerais, não
necessitamos ser o advogado, o médico, o empregado, a doceira; ali estamos
resguardados dos títulos sociais e públicos, ali se configura nossa existência privada.
Na vida do homem, a casa afasta contingências, multiplica seus conselhos de
continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem
através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma. É o
primeiro mundo do ser humano. (...) E sempre, em nossos devaneios, ela é um
grande berço. (...) A vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada no
regaço da casa. (Bachelard, 1998, p. 26).
104
No entanto, a casa é vista como um conjunto, mas também há outros espaços
dentro da casa: espaços que simbolizam diferentes coisas, espaços que diferem em suas
significações e liberdade. Para Moura, a Casa Forte era, antes de mais nada, uma
mensagem: erguia-se imponente, segura e rica, a intimidar e a mostrar quem era Maria
Moura. Nessa casa, no sentido geral do termo, Maria Moura ainda estava, a bem dizer,
na rua: ainda tinha que manter sua persona, sua cara sisuda, suas ordens, seu cargo de
Dona Moura. Era no seu quarto, entretanto, que Moura podia soltar os cabelos e vestir
sua camisola de renda branca: era esse lugar que era verdadeiramente seu lugar íntimo.
A Casa Forte era a extensão de sua fortaleza interna, e seu quarto era o acolhimento de
sua fragilidade.
Mas enquanto símbolo de tudo o que sempre sonhara, a Casa Forte era justamente
a materialização de todos os desejos de Moura: sua mão estava em cada espaço
planejado, em cada função atribuída, na dinâmica que aquele espaço tinha. Olhava para
ela com orgulho de si e da Casa, extensão sua.
Foi duro e foi devagar. Mas agora estava eu no alpendre da minha Casa Forte,
olhando o mundo em redor: lá embaixo na várzea, lá em cima na Serra e, para os dois
lados, as perambeiras do pé do morro.
Nas vargens, tudo quanto era roçado, já de broca feita neste tempo de verão,
esperando a sementeira. Para além, o açude ainda por acabar. (...)
O curral do gado. (...) Com tudo isso, meu orgulho maior era a casa. Começando
pela cerca, as estacas de aroeira, com sete palmos de altura, tudo embutido numa faxina
fechada, rematando em ponta de lança. Entre um pau e outro não passava um rato. E pra
abalar um mourão daqueles, só a força de uma junta de bois: eram enterrados a mais de
quatro palmos de fundura, socados com bagaço de tijolo e pedra miúda. (...)
Pra dentro da cerca, o terreiro batido, aberto, subindo devagar o alto onde a casa
fica. E aí, a casa mesma, se espalhando dos lados, na frente, o alpendrão largo, com os
seus esteios também de aroeira bem lavrada, o chão ladrilhado. As paredes rebocadas,
caiadas, como as do Limoeiro. (...)
Muito tempo se viveu no rancho provisório, que era praticamente o da Jove
melhorado e alargado. (...)
Era pra dar mesmo um orgulho, enchia o peito pensar que todo aquele mundo de
meu Deus a gente podia chamar de seu... (Queiroz, 1992, p. 293/294).
105
Territorialidade, apropriação, vinculação ao lugar: todos três conceitos fronteiriços
e interligados, todos três a falar do bem-querer ao lugar que lhe significa algo, todos a
envolver a relação que se tem a partir do que o lugar lhe desperta. A Casa Forte,
símbolo maior de MMM, personagem que existe desde as primeiras páginas do
romance, vem ser a culminância da significação dos ambientes do livro.
Os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem viver,
pelo sonho, numa casa nova. (...)
Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma história, na
narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se
interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. (...)
Por vezes, a casa do futuro é mais sólida, mais clara, mais vasta que todas as
casas do passado. (...) Casa sonhada. (...) Assim, a casa sonhada deve ter tudo.
(Bachelard, 1998, p. 25/74).
Tão forte é a simbologia da Casa Forte dentro da história de Maria Moura que,
uma vez ela estável e construída, parece-me que o romance perde um pouco o seu foco,
pareceria que ali já poderia acabar: construiu-se a Casa Forte!
Mas esse ambiente, no entanto, se transforma aos poucos em uma pequena
sociedade, com ritmo, cotidiano, hábitos, valores e leis próprias. “Dizia o povo que a
Dona da Casa Forte não carece de cadeia nem de delegado. Lá mesmo ela julga e dá
sentença.” (Queiroz, 1992, p. 333). A reger tudo, estava, até então, Maria Moura. Em
um momento do romance chega-lhe seu meio-primo Duarte, e logo depois a mãe deste,
a escrava forra Rubina, a quem Moura simbólica e literalmente entrega as chaves para a
administração do lar:
Horas passadas da sua chegada, quando Rubina, depois de ter tomado o seu banho e
enfiado um galho de manjericão no cabelo, veio me pedir as ordens, eu tirei do cinto a
grande cambada onde estavam todas as chaves da casa, e declarei:
― Estas chaves agora são suas, Rubina. Pergunte às meninas onde é que serve cada
uma. E eu fico livre de qualquer responsabilidade! Casa, roupa, comida, não é mais
comigo. Você que providencie tudo!
Rubina ficou muito séria:
― Isso eu sei fazer! (Queiroz, 1992, p. 304).
106
A dinâmica do dia a dia, a partir da época desses novos parceiros na
administração, vai tomando conta da Casa Forte e o romance vai se centrando mais nas
relações entre as personagens humanas do que nas personagens-espaço – fato que
acontece principalmente pela chegada de Cirino, que se torna a grande paixão de
Moura. A interferir e ser palco e intercessão de tudo, no entanto, está a Casa Forte, a
reinar solene e rica, passando ininterruptamente sua mensagem do poder de Moura,
sendo-lhe fiel em sua própria existência.
Dentro da pequena cidadela que é a Casa Forte, festas são feitas, casamentos são
realizados, criação de gado, plantações, e até fabricação de pólvora: “aos poucos fui
descobrindo a força que aquela produção nos dava. Em toda uma distância de cinqüenta
léguas em roda, só na Casa Forte havia moinho de pólvora” (Queiroz, 1992, p. 331). A
Casa Forte funcionava quase que sozinha agora. Se auto-sustentava. Era uma entidade
em si própria, a sustentar sempre a fortaleza e fama de Maria Moura.
No entanto, por tornar-se espaço cada dia mais complexo e rico em relações
humanas, haveria ainda um espaço que seria construído dentro da Casa Forte. Como não
poderia deixar de ser, esse espaço é carregado de simbologias e está atrelado à própria
pessoa de Moura: o ‘Cubico’.
4.4.1 – O ‘Cubico’
Temos, todos nós, cantinhos de segredo. É necessário sempre, e provavelmente até
inevitável, mesmo que inconscientemente, resguardar uma parte de nós para nós
mesmos. Como reflexo disso, há espaços que são só nossos, seja fisicamente, seja em
seu significado ou em ambos os casos. Além disso, tendemos a sempre esconder o que
nos é mais precioso, como que a guardar, a cuidar; talvez o medo da constante
socialização a que estamos sempre expostos seja algo presente em nós: temos medo de
que o que guardamos como tesouro e precioso seja espalhado aos quatro ventos, temos
medo dos olhos dos outros sobre as nossas coisas mais secretas. Guardamos aquela
coisa escondida como se fosse um pedaço de nós, como se a nossa própria segurança
dependesse disso – e talvez muitas vezes dependa realmente.
Assim era o ‘cubico’ para Moura:
Mas o que a ajuda de Duarte me deu de melhor foi de realizar um meu sonho,
meio maluco, que dizia respeito a uma certa obra muito especial, dentro da casa.
107
Tinha-se que fazer alterações nas paredes e justamente Duarte chegou quando ainda
se podia mexer nas divisões de dentro, contanto que se respeitasse a cumeeira e as
paredes grossas dos oitões.
Bem era o seguinte: acontece que Pai, entre os casos da família que me
contava, quando eu menina, falava muito no ‘cubico’ que existia na fazendo da avó
dele. Era um quartinho disfarçado entre as paredes da sala e dos quartos, mas tudo
tão bem encoberto, que o exame mais exigente não tinha como encontrar nem rastro
do cômodo extra. A planta era mais ou menos assim, como estou mostrando aqui, já
modificada por mim. Pai desenhou para eu ver e eu conservei o papel, junto com
aqueles poucos outros guardados que pus na trouxa dos salvados do incêndio (...).
E fiz o meu cúbico tão bem disfarçado que qualquer pessoa, até mesmo a
mais esperta, não ia conseguir atinar com o nosso jogo de paredes. Os cantos das
duas salas e os dois quartos se desencontrando, para ocultar aquele vão metido no
meio.
O cubico não tinha porta nem janela, as paredes corriam lisas, como se pode
ver pelo risco. Só no meu quarto se abria um alçapão com uns três palmos de alto e
uns quatro de largura; e trancado com uma fechadura de segredo, de que eu trazia
sempre a chave pendurada no meu cinto. Tapando o alçapão, encostamos à parede o
meu baú grande, taxeado, aquele do M.M.
O chão do cúbico tinha um fundo falso; quem fez todo o trabalho foi o
Duarte. Era cavado palmo e meio de fundura, ladrilhado, e, na altura do rés do chão,
corria em cima dele um assoalho de que se podia levantar uma parte. Pois debaixo
desse fundo falso eu fiz o meu cofre, onde guardava os meus ouros e o dinheiro;
onde até podia guardar as escrituras da terra, quando as tivesse na mão.
Mas o verdadeiro fim do cubico não era servir de cofre; isso foi invenção
minha. Ele se destinava, conforme contava Pai, a esconder algum amigo
perseguido, ou a guardar em segredo algum prisioneiro. Se viesse atrás de um deles,
dando busca, quer os da justiça, quer os inimigos, as paredes, corridas até em cima,
não deixavam adivinhar nada. (Queiroz, 1992, p. 304/305).
Tamanha é a significação e orgulho de Maria Moura em relação ao ‘cubico’, que a
única imagem do seu Memorial é justamente a imagem dele (a que ela fez referência na
fala acima):
108
Se formos pensar para além da utilidade prática do ‘cubico’, poderíamos perguntar
por que uma mulher que é tão temida e respeitada, que construiu toda uma fortaleza ao
seu redor, que têm tantos homens e mulheres como seguidores fiéis seus, ainda sentiu a
necessidade de mais um espaço que representasse segurança. O ‘cubico’ ficava no
quarto de Moura, guardava os tesouros de Moura e ainda tinha a ocultá-lo o baú tão
querido com suas iniciais. Seria o ‘cubico’ apenas um cômodo a mais da casa? Ou seria
ele a própria representação de quão escondida de todos era a pessoa de Moura?
Bachelard (1998) diz:
As imagens de intimidade que são solidárias com as gavetas e os cofres,
solidárias com todos os esconderijos em que o homem, grande sonhador de
fechaduras, encerra ou dissimula seus segredos. (...)
Os móveis complexos, construídos pelo operário são o testemunho sensível
de uma necessidade de segredos, de uma inteligência do esconderijo. Não se trata
simplesmente de guardar a sete chaves um bem. Não há fechadura que resista à
violência total. Toda fechadura é um convite para o arrombador. Que umbral
FIGURA I: O ‘CUBICO’
109
psicológico é uma fechadura! Quantos “complexos” numa fechadura ornamentada!
(...)
No cofre estão as coisas inesquecíveis; inesquecíveis para nós, mas também
para aqueles a quem daremos os nossos tesouros. O passado, o presente, um futuro
nele se condensam. E assim o cofre é a memória do imemorial. (p. 94/97).
Então o que se diria do fato de Moura carregar a chave da fechadura do ‘cubico’ –
que está embaixo de um alçapão, coberto por um baú, sem janelas ou portas ou luz, com
fundo falso – em sua cintura sempre? Essa chave, que guarda tanto segredo junto,
colada ao seu corpo ininterruptamente, quase como parte de si quereria talvez dizer o
quanto ela tinha necessidade de ser decifrada? Quereria talvez mostrar quantas camadas
de personas, de máscaras sociais eram necessárias para que essa mulher reinasse em um
mundo de homens? Deixamos essas reflexões para os psicólogos.
Ressaltamos apenas o quanto Moura necessitava, ao máximo, delimitar espaços
seus, aos quais só ela teria acesso e controle; o quanto ela tinha a precisão de criar
territórios que representassem sua segurança, espaços que fossem uma prova para si de
sua esperteza, esquivo e preparo ante qualquer tentativa contra a sua pessoa.
It has been suggested before that a person’s sense of identity is fostered by
the places and things that are important to him. The loss of valued objects or places,
or the involuntary removal from familiar settings for long periods of time, may
contribute in some measure to a blurring if not a loss of self identity. Considered in
this context, territoriality becomes one means of establishing and maintaining one’s
sense of self. In part this may explain why territorial behavior manifests itself under
conditions of isolation. (Ittelson et al., 1974, p. 144).
Durante o processo de qualificação desta pesquisa, uma das professoras da Banca,
a Dra. Leônia Teixeira, levantou a hipótese do percurso de Maria Moura ser uma
jornada para a morte – não pelo final incerto do livro, mas justamente pelo conjunto de
reações, atos e autodefesas que a fizeram cada vez mais fechar-se em si mesma.
Depois da perda do Limoeiro, às vezes se tem a noção de que Moura perdeu-se
também: e vive a buscar esse ninho perdido, sem nunca porém encontrar algo a que se
agarre por tempo suficiente, sem nunca sentir-se realmente salva e segura. Os espaços
de Moura parecem sempre tentar suprir essa grande falta: e falham porque a falta na
realidade parece ser interna.
110
4.5 – Os Lugares, os Conceitos e os Pressupostos – Algumas Considerações
Até aqui vimos mais de perto os lugares de MMM: na relação de Moura com eles,
encontramos constantemente a presença dos conceitos de Territorialidade, Apropriação
e Vinculação ao Lugar, além dos aspectos que permeiam os Pressupostos da Psicologia
Ambiental. De início, pensamos em listar cada um desses conceitos e pressupostos e
trabalhar, dentro de cada um separadamente, os trechos da obra. No entanto logo
entendemos ser tarefa impossível: assim como não se pode dissociar do espaço o tempo
ou o contexto social a que ele pertence, também não poderíamos tratar de conceitos tão
próximos – e muitas vezes complementares e crescentes em envolvimento – de forma
pontual; tampouco poderíamos falar em forma de lista de pressupostos que estão
presentes em qualquer relação humano-ambiental.
Assim, nesta análise literária feita tendo como foco a relação entre a personagem-
título e as personagens-espaço da obra, tentamos apontar como a própria essência da
relação explicava por si só a presença dos conceitos e os aspectos dos pressupostos.
Como diz Clarice Lispector (1973), deixamo-nos envolver no fascínio que é “a palavra
e sua sombra” (p. 10). E deixamos muitas vezes subentendido o envolvimento dos
conceitos e pressupostos ao leitor deste estudo. Ainda como diz Clarice (1973), usamos
a palavra como isca: e deixamos que o ‘pescar’ próprio de cada pessoa entenda os
aspectos ambientais que quisemos ressaltar nesta análise.
111
V – As Casas de Papel e o Memorial de Maria Moura
O homem é o único ser que sorri. O que poderia significar isso? Não seria de
tamanha responsabilidade carregar em si a consciência do sorrir? Não seria pela nossa
capacidade de associar umas coisas a outras que isso se dá? Olho para a água no chão e
lembro do tombo que um dia levei em pleno pátio da escola na hora do intervalo. Sorrio
pela confusão que foi aquele tempo e momento que estão já tão distantes do hoje,mas
que permanecem vivos em minha memória.
Há uma poesia de Horácio Dídimo (2002, p. 90):
os meninos estão brincando na calçada
vamos começar tudo de novo
pode ser que os relógios de aço
nos esqueçam:
as folhas verdes
o sol
os velocípedes
E nós, ao lermos a poesia, logo criamos dentro de nós essa imagem: os meninos
brincando na calçada. Os meus meninos sorriem alto e escandalosamente, são quatro ao
todo, vestem camisas soltas e coloridas, shorts manchados de peraltices, dois deles estão
descalços, que é para ficar mais à vontade na brincadeira; de vez em quando os
velocípedes brigam com o quebrado da calçada, o vento faz as folhas dançarem e o sol
queima de leve os meninos entretidos em serem crianças. Mas esses são os meus
meninos, não são os seus ou sequer os de Horácio Dídimo. Clarice Lispector está certa:
pegamos a palavra como isca.
É por isso que ao ler a vontade de ‘começar de novo’ e o desejo dos ‘relógios de
aço’ esquecerem do tempo, remeto-me à seriedade e às vezes à falta de despreocupação
da vida adulta, fato que fica metaforizado no frio brutal e imparcial do aço. Mas o fato é
que tudo isso, e o tanto mais que continua aqui a se materializar em minha mente à
medida que me ocupo em escrever estas linhas, me veio porque essas seis frases da
poesia de Dídimo me tocaram. Conversaram comigo, criaram diálogo, apresentaram
112
ambiente e me mostraram crianças interagindo com um local em um tempo e contexto
específico.
Assim o faz a palavra. Ela delineia realidades, expõe contextos, descreve situações
e, por mais precisa ou evasiva que seja a sua descrição, ainda muito será dito pelas
entrelinhas que o leitor preenche com sua subjetividade. Ao longo desta pesquisa,
quando os trechos de Memorial de Maria Moura me saltavam aos olhos encaixando-se
ao que eu tinha lido em livros teóricos dos estudos pessoa-ambiente, outros livros e
textos teimavam em se intrometer querendo também ser usados como o mesmo
exemplo. Não resisti a esses apelos e usei ao longo deste estudo na realidade várias
obras. Quereria ter usado outras ainda, que continuam aqui a pedir sua vez.
No entanto, o que quero ressaltar aqui neste breve trecho do trabalho, é a grande
variedade de riqueza ambiental que nossos livros, músicas e poesias carregam. Ao
olharmos para eles, olhamos para a própria vida. Olhamos para nós mesmos. Olhamos
profundamente para o reflexo de nossa interação com o meio que nos cerca. Luiz
Gonzaga cantava: Aquilo sim que era vida/Aquilo sim, que vidão/Aquilo sim que era
vida, seu moço/A vida lá do sertão (música: “Aquilo sim, que vidão”, de composição
dele). E, por conhecer um pouco sobre Psicologia Ambiental, percebo logo o vínculo e
o apego ao lugar. Lembro também de boas fases da minha vida. Imagino o ambiente que
Luiz Gonzaga canta e, ao mesmo tempo, imagino também o meu. O fotógrafo Oliviero
Toscani diz que o "olhar é um ato criador". Seríamos então essas máquinas fotográficas
em forma de gente a registrar imagens dos lugares que nos tocam?
O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry (1987) escolheu fugir de sua rosa e depois
passou todo o resto de sua existência a sentir saudades da rosa: percebeu então que a
rosa, problemática, bela e imperfeita, era a sua representação de lar. A Alice do Carroll
(2006) precisou sonhar com um mundo louco e sem sentido para que percebesse a nossa
necessidade de constância, estabilidade e previsão. Fabiano e sua família precisaram
viver os terrores da seca relatada por Graciliano Ramos (1999) para que se lesse a
subserviência do homem ante os dizimadores fenômenos da natureza.
Roberto da Matta (1997) veio e me disse que “um livro é como uma casa” (p. 11).
E eu acreditei nele porque lembrei que fiz morada em todos os livros que li e que deixei
guardados dentro de mim: eles viraram lugares; e, se são lugares, é porque me têm valor
e são, assim, um pouquinho lar. Lembrei também, como ele diz, que toda casa tem porta
de entrada, depois uma sala, e, mais para dentro, lugares mais íntimos, que só os que
deixam de ser apenas visitas e viram amigos podem conhecer. Essas casas de papel
113
precisam disso: precisam que a gente vire amigo íntimo, que vá conversar muitas vezes,
que se discuta e debata e escute; que escute muito.
O Horácio Dídimo (2002) versou: “a palavra verde/amadurece; a palavra ave/ voa
no papel” (p. 102). A função da palavra é comunicar: mas ela deixa-se a depender não
apenas de quem a profere, mas de quem a recebe. A palavra tem que amadurecer, a
palavra tem que voar.
Há um quadro do pintor belga René Magritte (1898–1967) chamado The
Treachery Of Images (1928/1929) – ou, ‘a traição das imagens’, em tradução livre.
Nele, está a imagem de um cachimbo; logo abaixo dela, a frase: Ceci n'est pas une pipe.
E você fica ali olhando, se achando a criatura mais louca do mundo: Mas eu tenho
certeza de que isso é sim um cachimbo! Aí, embevecida com a imagem, concentrada na
reflexão que ela lhe desperta, você finalmente percebe: Mas é claro que isto não é um
cachimbo! É uma pintura de um! Todo livro resume-se justamente a convencer-lhe de
que ele “não é um cachimbo”. Todo livro quer ser mais que um mero livro: quer virar
parte do leitor, quer entrar em sua vida, quer virar parte de suas lembranças, quer que
seus personagens virem pessoas amadas ou odiadas, pessoas sentidas. Como disse o
autor Ernest Hemingway, se realmente lemos o livro, até o clima daquele ambiente fica
conosco; tudo ali vira coisa vivida por nós, a fazer parte de quem somos e do que
fizemos.
E então temos o Memorial de Maria Moura, com seus ambientes-chave: o sítio do
Limoeiro e a Casa Forte. E parece-nos que eles são como o ponto “A” e o ponto “B”: e
sabemos que entre dois pontos há uma reta, e que uma reta é formada de inúmeros
outros pontos. MMM nada mais é do que a história de vida de uma mulher e seus
espaços: acontece que em um contexto em que seu sexo já determina o seu percurso de
vida, ou se aceita tal destino ou sai-se enfrentando o mundo em pé de guerra. Maria
Moura escolheu justamente essa segunda opção. Como animal acuado, revoltou-se. E
em sua revolta conquistou o mundo dominado pelos homens.
Mas Maria Moura na verdade nunca deixou de ser vítima de sua própria história:
primeiro órfã de pai em uma época em que era o homem quem dava dignidade à casa;
depois órfã de mãe, sozinha no mundo; depois seduzida e ameaçada pelo próprio
padrasto; depois expulsa de sua casa pelos primos. Maria Moura sai de sua casa
destruindo-a: encena ali o que sente por dentro, está sem canto no mundo, sem
identidade, sem referências concretas.
114
Agarra-se então à memória-referência mais constante em sua vida: seu Pai.
Vestida nas calças dele, incorpora-o; e passa a ser seu próprio pai, passa a ser a imagem
e segurança que um homem representaria em sua vida. Mas tinha a consciência de que
esse não era o destino ideal. Tinha a consciência de como teria que lutar por cada
centímetro de espaço conquistado: “Ai, Pai, se o senhor não tem morrido, a vida nossa
seria tão diferente. Talvez eu já estivesse casada, dormindo nos braços do meu marido.”
(Queiroz, 1992, p. 227).
A morte do pai foi o divisor de águas em sua existência. Mas, bem ou mal, dentro
da casa do Limoeiro, havia ainda espaço para a Sinhazinha Moura, a menina abusada e
cheia de vontades que ela era. Ali ela ia vivendo uma vida pequena, delimitada pelos
espaços do sítio. Mas ainda filha de fazendeiro. Ainda mulher órfã e jovem a ser
respeitada e cuidada. Mas então acontece o que de pior pode acontecer: é arrancada de
seu ninho por terceiros. E isso não faz parte do percurso natural da vida: do ninho, ou
sai-se por vontade própria quando se vê que chegou a hora, ou é-se empurrada para fora
pelos pais, como a ave-mãe que diz que é hora de voar. Maria, não: foi forçada por seus
primos em sua saída prematura:
Um dia ainda vou me vingar daquelas almas de morcego das Marias Pretas.
Mas isso tem o seu tempo. Afinal, não fosse a investida deles eu talvez não tivesse
coragem de sair de casa, ficasse presa dentro dos dois palmos de terra do Limoeiro,
brigando pelas extremidades com os outros vizinhos. Foi na verdade o Tonho quem
me deu o primeiro empurrão. Assim mesmo, um dia eles ainda me pagam. Um dia.
Pela minha casa queimada, pela agonia daquela noite. (Queiroz, 1992, p. 125).
E então Maria Moura torna-se de tal modo personagem de si mesma que esconde
de si e de todos qualquer sinal de fraqueza. Como naquela noite da fuga do Limoeiro,
acredita que precisa ser sempre essa guerreira em pé de guerra para sobreviver, não
consegue nunca apenas ser-se, acha que é necessário sempre estar vestida de sua
armadura de Maria Moura; sem ela, tem medo, deixar-se-ia ser apenas uma mulher:
No escuro, na cama, de noite, quando me vi, estava chorando. Enxuguei os
olhos no lençol, danada da vida. Te aquieta, Maria Moura. Você não é mulher de
chorar, nem mesmo escondido.
115
Cadê a Dona da Casa Forte, a cabecel desses homens todos, que comanda de
garrucha na mão e punhal no cinto? Com vinte bacamartes carregados, garantindo a
retaguarda, pra o que der e vier?
Mas ali, na cama vazia, vestida na minha camisola cheirosa a manjericão, eu
não tinha vontade nenhuma de ser durona, tinha vontade era de abrir a boca e cair
no berreiro, tal e qual o Xandó estava fazendo naquele instante mesmo. (Queiroz,
1992, p. 383).
Pode ser que Maria tenha virado refém de Maria Moura. Pode ser que mesmo
tendo achado seu ‘canto no mundo’, Maria Moura tenha se perdido mais uma vez,
esquecendo-se do sentimento de paz que tivera quando chegou à Serra dos Padres. Pode
ser que ela tenha construído uma casa, e não um lar: já nunca pudera usufruir da
intimidade desarmadora que o âmbito do lar propicia.
Na grande carência por encontrar esse lar, fez de instrumento para conseguir
permitir-se esse sentir, a sua paixão por Cirino. Entregou-se a esse homem e deixou-se
ser mulher, de cabelos soltos e passiva. Mas Cirino também não era o lar que Maria
pensava ter encontrado, e mais uma vez Maria Moura teve sua segurança destruída.
Dessa última perda, não se recuperou: nem mesmo a Casa Forte parecia ter mais o
brilho e significação que um dia tivera.
Cria seu testamento deixando todas as suas posses e terras para o afilhado Xandó,
filho da sua prima Marialva. Apega-se então a uma aventura arriscada, em que ela e seu
bando roubariam um grupo de marchantes ricos e poderosos. Sai com seu bando
dizendo: “― Se tiver que morrer lá, eu morro e pronto. Mas ficando aqui eu morro
muito mais.” (Queiroz, 1992, p. 482).
No livro O meu Pé de Laranja Lima de José Mauro de Vasconcelos (1994, p. 189)
se dá o seguinte diálogo entre Zezé e seu pai:
― Depois tem mais. Tão cedo não vão cortar o seu pé de Laranja Lima.
Quando o cortarem você estará longe e nem sentirá.
Agarrei-me soluçando aos seus joelhos.
― Não adianta, Papai. Não adianta...
E olhando para o seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas
murmurei como um morto:
― Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de
Laranja Lima.
116
Zezé fala, na verdade, sobre o Portuga, que viera preencher o papel de pai e dar-
lhe sentido à sua vida. Com a morte dele em um acidente com o trem, o pé de Laranja
Lima perdera o sentido, a magia, o encantamento. Estava, a bem dizer, como se já
tivesse sido cortado.
Assim parece ser com Maria Moura: a consciência da perda do encantamento com
a Casa Forte, que veio à tona com a morte de Cirino – a mando seu – fazia-a morrer em
vida, já que não conseguia mais ver sentido em tudo aquilo, já que perdera a
significação que aquele ambiente poderia ter para si.
Joseph Campbell (2003) afirma que nossas verdadeiras mortes são mortes
simbólicas: são mortes de significados. Como existimos através dos espaços que
habitamos, não parece haver morte mais cruel realmente do que a morte de um lugar e
do que o que ele significa.
117
VI - Considerações Finais: de mãos dadas com Moura
Há dois anos, eu estava relendo o Memorial de Maria Moura, já cursando o
Mestrado em Psicologia, quando a cena de Moura abraçando as paredes do Limoeiro me
tocou de uma forma diferente: vi ali o que eu estava estudando, vi ali a Psicologia
Ambiental.
Os dois anos foram se passando e Moura fez-me companhia, falando-me sobre a
importância de achar o seu canto no mundo, falando-me sobre as significações e
simbologias contidas nos espaços, mostrando-me as lutas envolvidas na conquista de
um espaço seu, os sorrisos e lágrimas que os lugares guardam.
Essa personagem de Rachel de Queiroz me fez repensar sobre lugares, sobre a
importância de um lar, de um lugar que proporcione segurança emocional e física, que
seja base de comparação e referência para todos os outros lugares que possamos ocupar
durante nossas vidas.
Chorei juntamente com Maria Moura, ao vê-la perder-se de si mesma, ao vê-la
sempre tentar deixar de ser o bicho acuado que se tornou com a morte do pai e com a
perda do Limoeiro: e sempre falhar por não ter em ninguém, lugar. Maria Moura me fez
despertar para o lugar que determinadas pessoas são, que nos dão a sensação de lar, que
nos remetem a esse; simplesmente por existirem, seja fisicamente, seja em nossas
memórias. Lembrei-me de que na volta de minhas viagens, depois de meses fora, só
tinha a sensação de realmente ter chegado em casa, quando via o rosto de meus pais no
aeroporto. Ao ver suas faces, eu então sabia que estava em casa.
Ao longo desses dois anos, tive reações diversas de outras pessoas em relação à
minha pesquisa: alguns logo se interessaram pela temática e a acharam inovadora;
outros fizeram uma observação que por um tempo me entristeceu: ah, eu prefiro estudar
coisas da vida real. Perguntei-me então o que seriam ‘coisas da vida real’. Perguntei-me
que diferença havia entre a dor da perda do Limoeiro de Maria Moura, e a dor da perda
da casa de uma família em um incêndio. Não morria ali um lugar? Não iam junto com
ele muitas das imagens que existiam naquelas paredes e espaços? Não sentiam todas
essas pessoas a mesma dor? O mesmo medo? Não eram todos eles seres agora acuados,
precisando de um novo canto no mundo?
Então, fiz o que todos nós precisamos fazer às vezes para seguir em uma estrada:
desviei-me dos buracos. Continuei a acreditar nos lugares que influenciam e são
118
influenciados pelo homem: seja na literatura, seja no mundo concreto. Eles são feitos da
mesma matéria: são lugares. Com todas as complexidades e relações que lhes cabem.
Estão ali a comunicar relações, a falar sobre significados, a guardar vidas e histórias.
São um olhar sobre o mundo: delimitando-o e tornando-a apreensível.
Passeei junto com os teóricos dos estudos pessoa-ambiente por várias obras
literárias, e os tinha como a apontar para mim em determinados trechos das obras:
“Olha, era isso o que eu quis dizer quando falei sobre privacidade!”; “Veja! Isso aqui
serve como exemplo para o que dissemos sobre territorialidade.”; “Está notando? Aqui
cabe justamente o que argumentamos sobre apropriação!”.
Conversei com eles e deixei que conversassem comigo. Pensamos juntos sobre as
várias histórias, os vários espaços, os diferentes contextos, lugares e tempos que
observamos em conjunto. Tendo a fala desses teóricos em mente, percebi em todos
esses ‘lugares literários’ uma constância: a relação pessoa-ambiente. Mudavam as
histórias, mudavam as personagens, mudavam as sociedades e valores: mas ali estavam
os lugares; a servirem de território, a serem apropriados, a despertarem o vínculo
humano.
Dei então as mãos com Maria Moura e a acompanhei intima e longamente. Entrei
em seu sentir mais privado, fui testemunha do processo de formação dos lugares para
ela. Pude ver de perto as raízes dos sentimentos que tinha em relação aos seus
ambientes: por que significavam o que significavam. Pude seguir os passos de Moura
lado a lado com ela, ao mesmo tempo em que vivenciava tudo o que ela vivenciava.
Pude estar presente no momento exato de suas lágrimas, sorrisos e medos. Pude assim,
olhá-la com uma lupa que ia além da ambiental: que adentrava o campo do sentir
pessoal, que se deixava ir além das palavras e que não me deixava outra opção a não ser
a de sentir tudo o que Moura sentia.
Ao fim desse percurso, tenho apenas uma certeza: muito mais poderia ser dito. Os
lugares são infinitos em suas significações. Descrevi aqui apenas um olhar sobre os
espaços de Maria Moura. E um olhar está sempre preso a um tempo. E um olhar é
sempre transforme. Chegado ao fim deste tempo, muito já vejo de novo. Muito mais há
que significam os lugares de Moura.
Tive o pretenso objetivo de lançar luz às relações pessoa-ambiente contidas em
obras literárias. Em todo caso, como não poderia deixar de ser, os lugares com os quais
tive contato me transformaram, me fizeram viver relações e interações, me guiaram por
seus limites e fronteiras, me comunicaram o tempo de ficar e a hora de partir. Sobre as
119
questões levantadas no início desta pesquisa, temos como certo que as relações pessoa-
ambiente presentes na literatura são tão significativas e complexas quanto as do mundo
tido como real. Assim, ambas apresentam em si os conceitos dos estudos pessoa-
ambiente. As formas de análise dessas relações (literatura X mundo real), no entanto,
são diferentes: já que são também diferentes o meio e as formas de obtenção de
informações a respeito dessas.
Dessa forma, pude pensar sobre a relação leitor e livro: o caminho que se percorre
ao ler, ao adentrar esse espaço que é, como diz Bachelard (1998), imagem poética. Esse
espaço que contém vários espaços em si, e nos faz viver outras existências a partir de
nossa própria. Pude refletir sobre as transformações e discussões que esses livros
despertam em mim. Pude pensar sobre as relações que as personagens têm com seus
espaços e como essas relação se transferem e se encaixam em relações que podem ser
observadas em meu próprio cotidiano.
Ao refletir sobre o contexto de Maria Moura, pude entender como às vezes
existem tempos históricos e valores que fazem com que o gênero defina e delimite
nossas relações com os espaços. Ao testemunhar Moura transgredindo o papel
permitido às mulheres de sua sociedade, pude pensar sobre as várias transgressões que
temos que fazer ao longo de nossas vidas em nome de nossos espaços; pude pensar
sobre as eternas brigas por territórios que acontecem ao redor do mundo; pude refletir
sobre quão forte é chamar um espaço de seu e sobre como é uma forma de estupro
simbólico que outros se apossem de seu lar por meio de força e coerção.
Maria Moura mostrou-me toda a carga pessoal e sentimental que pode estar
presente em um lugar sonhado. Com ela pude testemunhar como a busca por um lugar
nos faz criar força e coragem para enfrentar as barreiras que existem pelo caminho.
Transpus o sonho de Moura para a casa própria que tantos almejam; para a
materialização de um sonho familiar que tantos querem ver concretizado. Pude perceber
que existem várias formas de se manter vivas as presenças daqueles que amamos e que
já se foram: e que uma delas é pelos espaços.
Concluí que os espaços são também livros, esperando serem abertos, lidos,
interpretados. Esperando estável e pacientemente para ganhar o movimento e
complexidade da presença humana. Esperando serem transformados e transformarem.
Esperando virarem verdadeiramente história: ao virar memória, ao virar parte de nós.
Memorial de Maria Moura é, realmente, um livro sobre uma mulher e seus
lugares. Podemos crer que Moura tem em seu percurso um ponto ‘A’ (que é a casa do
120
Limoeiro) e um ponto ‘B’ (que é a Casa Forte): entre esses dois pontos, há uma reta; e
como se sabe, em uma reta há uma gama de outros vários pontos. Cada movimento e
pausa de Moura, cada espaço e lugar, é percorrido de forma a criar sua história. Moura,
arrancada de seu berço, tenta achar outro ninho que lhe dê a guarida emocional de que
necessita. Quantos existem de nós, ainda buscando, ainda deslocados de um lugar que
nos dê o espaço de sermos o que somos, de desenvolver plenamente nosso potencial e
subjetividade. Moura traz isso à tona em sua jornada ambiental: percebe-se que para
encontrarmos a paz interior, é necessário que encontremos um lugar que se encaixe às
nossas necessidades; não apenas as básicas, mas ao abraçar emocional que faz com que
o espaço físico dê às mãos com o nosso espaço interno, nos possibilitando então ser
tudo o que somos, sem máscaras sociais ou personas criadas. A busca incessante de
Moura, sua falta de paz e lugar, talvez se dê pelo fato de que lar, no fim, seja justamente
um lugar em que possamos estar nus de alma; frágeis, sem medo de julgamentos ou
recriminações; sem o risco de ataques ou necessidade de estar-se sempre armados.
Os espaços de Moura, ao serem analisados, trazem à tona justamente essa
discussão: quais as implicâncias para a vida de uma pessoa de um lar perdido e nunca
mais achado? Até que ponto uma casa é verdadeiramente um lar? Até quando se deve
tentar reconstruir a exata noção de segurança que um dia se teve? Ao mudarmos
juntamente com nossos espaços, será que nos perdemos se eles na verdade não
refletirem o que somos realmente? A Casa Forte de Maria Moura era, antes de tudo,
uma mensagem: mas não uma mensagem para si, e sim para os outros; para a imagem
que ela gostaria que os outros tivessem dela; para a representação social de poder que
ela almejava. Moura pensava assim conseguir o poder e a segurança que sempre
desejou. Mas o vazio de si continuava: sua busca ainda não havia cessado. Pergunto-me
se encontrar o seu ‘canto no mundo’ na verdade é encontrar não o canto que lhe deixe
ser a versão mais forte de si; mas sim um canto que lhe deixe ser a versão mais frágil de
si. Concluo então que um lar é na verdade uma casa-caracol: um lugar que abrace o seu
corpo no formato mais mole e vulnerável que ele possa ter.
Para finalizar, devo dizer que depois de dois anos ao lado de Moura, termino este
estudo sem me despedir dela. Não sentirei sequer saudades: para sentir saudades é
necessária a ausência, a falta, o vazio específico. E Maria Moura continua aqui onde
sempre esteve desde o início de nossa jornada: dentro de mim. Ainda a dialogar comigo,
ainda a me mostrar seus espaços e porquês, ainda a ser lugar em mim e a me gerar
reflexões.
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Seguimos agora, eu e ela, juntas, para outras páginas e outros espaços. Vamos
mais completas porque percebemos que ao descobrir lugares, ao interpretá-los,
descobrimos e interpretamos também a nós mesmas.
A palavra sagrada diz: Dize-me com quem tu andas que te direi quem és. Descobri
que os estudos que voltam o seu olhar para as pessoas e os ambientes dizem: dize-me
quais as tuas relações com os ambientes da tua vida que te direi quem és. Nossos
espaços são formadores de nós: nos significam, nos limitam e nos expandem enquanto
seres; são veículos de nossas experiências; palcos de nossas vidas e guardadores de
nosso tempo. Sou não o que me acontece, mas o que faço com o que me acontece; sou
não o que olho, mas o que faço com o que olho; sou não o que leio, mas o que faço com
o que leio.
Então, obrigada, Sinhazinha. Obrigada Maria Moura. Obrigada senhora Dona
Moura da Casa Forte. Porque ao estudar os seus lugares, pude também estudar os meus.
Por ver suas várias existências dentro de uma única vida, pude também despertar para as
minhas várias existências. Por entender os porquês de seus espaços, pude também
entender alguns porquês dos meus. Acho que um estudo relevante é aquele que
adiciona, que gera reflexões, que ensina, que agrega valor, que modifica positivamente,
que transforma, que faz crescer. Então, posso dizer que este estudo me foi relevante e
essencial. Assim como tudo o que coube nos dois anos que o fizeram nascer pouco a
pouco em mim. Termino hoje não apenas esta dissertação de mestrado, mas uma fase da
minha vida. Tudo foi válido: e os lugares criados permanecem em mim.
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