PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC/SP
Léa Nunes de Assis
Desafios e conquistas de um aluno que procura a escola aos 55 anos.
MESTRADO EM EDUCAÇAO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO
SÃO PAULO
2014
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Léa Nunes de Assis
Desafios e conquistas de um aluno que procura a escola aos 55 anos.
MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO
SÃO PAULO
2014
PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Léa Nunes de Assis
Desafios e conquistas de um aluno que procura a escola aos 55 anos.
MESTRADO EM EDUCAÇÃO: PSICOLOGIA DA EDUCAÇÃO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontíficia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência Parcial
para obtenção do título de MESTRE em
Educação: Psicologia da Educação sob a
orientação da Profª. Dr.ª – Laurinda Ramalho
de Almeida.
SÃO PAULO
2014
A849
Assis, Léa Nunes de. Desafios e conquistas de um aluno que procura a escola aos 55
anos./ Lea Nunes de Assis – São Paulo: s.n., 2014. 92p. ; 30 cm.
Referência: 80-84
Orientador: Profª. Drª. Laurinda Ramalho de Almeida. Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, Programa de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação, 2014.
1. Psicologia da Educação 2. Afetividade – EJA – Letramento
CDD 370.15
Banca examinadora
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
AUTORIZAÇÃO
Autorizo, para fins acadêmicos ou científicos, a reprodução parcial ou
total desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos, desde que
citada a fonte.
São Paulo, julho de 2014.
Dedico este trabalho a todos os meus alunos e
alunas com quem aprendi e ensinei.
AGRADECIMENTOS
Para meus pais José Nunes de Assis (in memoriam) e Adalgisa das
Dores de Assis, que na sua simplicidade mineira nunca deixaram faltar o pão e
o livro na minha infância.
Para meus irmãos Athos José Nunes e Marcia Cristina de Assis, por
partilhar as refeições que me nutriram durante o período de estudo.
Para Noel (Nono) pela companhia.
Para a equipe da EMEF Profº. José Ferraz de Campos.
E em especial: Para a diretora da EMEF Profº. José Ferraz de Campos,
Profª. Margareth Garcia da Silva, pela flexibilidade que me deu condições de
frequentar o curso sem prejuízo.
Para a Profª Cirlene Santos da Cunha Marcassa de Carvalho, pelas
orientações e sugestões.
Para a Profª Aparecida Moko Nishimori, por ter encaminhado seus
alunos para sala de reforço e confiado no meu trabalho.
Para meus amigos: Sr. Wilson Paes de Andrade Filho e Ricardo Ferreira
dos Santos pela colaboração; Paulo Antônio da Silva Andrade pela troca de
informações que tanto contribuiu para o desenvolvimento deste trabalho; Dany
Kanaan, pelo incentivo e pelas orientações e sugestões sempre pertinentes;
Antonio Palma Filho pela revisão deste trabalho incansável e realizador; e
Sílvia Castelhano que com seu bom humor realizou a formatação.
Para a minha Orientadora Profaª Drª. Laurinda Ramalho de Almeida,
por me apresentar Wallon e pelo empenho em terminar este trabalho no prazo
combinado.
Para a Profª Drª. Vera M. N. S. Placco, por ter sinalizado o caminho
desta pesquisa.
Para a Profª. Drª. Eliane Bambini Gorgueira Bruno, pelas sugestões
muito bem pontuadas para a finalização deste trabalho.
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi compreender como se deu o processo de
inserção na escola, os aprendizados e os sentimentos vivenciados por um
aluno de 55 anos que procurou a escola pela primeira vez (um curso de
educação de jovens e adultos – EJA). Para tanto, procurou-se apreender a
história de vida desse aluno, bem como o início do seu percurso na escola. O
referencial teórico utilizado foi a psicogenética Walloniana. Os resultados
apontam que a mediação da afetividade, que no caso se deu pela proximidade
da professora e pelo recurso da literatura, introduziu com prazer o aluno na
escola, levou-o a se apropriar da leitura e escrita e, em consequência, elevar
sua autoestima.
PALAVRAS-CHAVE: afetividade. EJA. letramento.
ABSTRACT
The objective of this search was to comprise how the insertion process
occurred, the learning and the feelings experienced by a 55 years old student
who has looked for a school for the first time in his life (The Education for Young
People and Adults course). For that sought out to understand this student’s
history of life, as well as the beginning of his way in the school. The Henry
Wallon’s psychogenetic was the theoretical background used. The results lead
us to an affective mediation. In this case it happened by the approach of the
teacher and the Literature resources, introducing with great pleasure the
student into school, making himself to appropriate the lecture, the written and in
consequence boost his self-esteem.
KEY-WORDS: affective. education for young people and adults. Literacy.
SUMÁRIO
MEMORIAL ................................................................................................ 01
APRESENTAÇÃO, CONTEXTUALIZAÇÃO E DEFINIÇÃO DOS
OBJETIVOS ............................................................................................... 10
CAPÍTULO 1. REFERENCIAIS TEÓRICOS ............................................. 13
1.1. Paulo Freire ou “A Alfabetização Pela Pedra”........................ 14
1.2. Magda Soares ou “Alfabetização para Além do Muro da
Escola”.............................................................................................. 21
1.3. Henri Wallon e a Integração Afetiva – Cognitiva – Motora .. 25
1.3.1 Afetividade ........................................................................ 26
1.3.2. Integração organismo meio ............................................. 28
1.3.3. A relação Eu-Outro .......................................................... 30
1.4. As águas se encontram .......................................................... 31
CAPÍTULO 2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ......................... 34
2.1. Coleta de Dados ...................................................................... 34
2.1.1 Caracterização da Escola e do Aluno Selecionado ......... 34
2.1.2 Entrevista com o sujeito selecionado ................................ 35
2.1.3 Anotações do Diário de Bordo da Professora ................... 36
2.2. Análise dos dados .................................................................... 36
CAPÍTULO 3. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS ............................ 37
3.1. Trajetória de vida do sr. Raimundo ............................................. 37
3.2. Motivo que o levou a procurar a escola ...................................... 42
3.3. O processo de inserção do aluno e seus sentimentos
despertados no processo de escolarização ...................................... 44
3.4. Sentimentos vivenciados no processo de alfabetização ........... 52
CAPÍTULO 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................... 68
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................71
APÊNDICES .............................................................................................. 76
ANEXOS .................................................................................................... 84
APÊNDICE
Quadro 1. Caracterização dos alunos da 1ª etapa de EJA ................. 76
Quadro 2. Depoimento de Raimundo com a explicitação de
Significados ............................................................................................. 77
ANEXOS
ANEXO 1. Relatos de Raimundo registrados no diário de bordo
da professora .......................................................................................... 84
ANEXO 2. “Causo” relatado por Raimundo em sala de aula ....... 87
ANEXO 3. Termo de consentimento livre e esclarecido ..................... 89
1
MEMORIAL
Olhar o próprio conteúdo da memória
implica olhar para si mesmo, refazer
caminhos, descobrindo as afinidades e
intenções do percurso. Iberê Camargo
Para escrever este memorial vasculhei a minha memória e, lendo
algumas coisas, me deparei com a história de um educador que um dia foi um
menino. Esse menino vivia numa casa, acolhido pela sombra das mangueiras
num quintal de chão batido e, com graveto na mão, desenhava na terra as
primeiras letras, escrevendo as palavras do seu mundo.
“Fui alfabetizado no chão do quintal da minha casa (...). O chão foi o
meu quadro negro; gravetos, o meu giz.” (FREIRE, 1988, p.15).
Peço permissão para dizer que esse momento afetou esse menino, que
se construiu Educador. Esse Educador trabalhou arduamente pela educação.
Uma educação libertária, que aproxima o homem da sua humanidade. Ele nos
deixou um legado inestimado, do qual terei a oportunidade de falar em um dos
capítulos deste trabalho.
Assim como Freire, a escolha pelo ensino, pela leitura mais
especificamente, começou na infância. Vou relatar a minha história que vai
transpassar todo este trabalho.
O livro está presente na minha vida desde a infância. Meu pai era
jornaleiro e quase todos os domingos eu frequentava sua banca de jornal. Era
um momento fascinante, tinha livros e gibis à minha disposição. Eu escolhia um
2
livro e começava a folheá-lo, observando os desenhos e imaginando o que
aquelas letras poderiam estar dizendo. Naquela época, eu não sabia ler as
palavras, só lia os desenhos. Mas folhear os livros e gibis me despertou a
vontade de aprender a ler como gente grande. Não demorou muito para que
esse momento chegasse; fui alfabetizada aos sete anos e me tornei uma leitora
“independente”.
Como uma leitora “independente”, eu escolhia os livros que queria ler na
estante da minha casa. Eram livros com muito desenho e muito colorido. Lia os
clássicos infantis, como Branca de Neve e os Sete Anões, Os Três Porquinhos
(IRMÃOS GRIM), Pinóquio (COLLODI), Cinderela (PERRAULT), dentre outros.
.
A leitura me afetava de uma forma que o sentimento de tristeza, alegria,
medo e solidão, vividos pelos personagens, eram também meus. Era um
sentimento tão verdadeiro e mágico que me causava um grande prazer em ler
e reler as histórias.
Afetada por esse prazer, comecei a ler para meu irmãozinho, que se
deliciava com as peripécias dos personagens e dormia antes que a história
terminasse. Foram momentos felizes!
Acredito que meu irmão, nessa época, se encantava com as histórias e
talvez com meu próprio encantamento ao narrar. Nesse momento, eu era uma
mediadora de leitura.
3
Lendo, fui crescendo e a minha adorada infância foi se transformando
lentamente em adolescência. Os livros infantis ficaram na estante e então
chegaram outros livros, como O Meu Pé de Laranja Lima, Vamos Aquecer o
Sol, Arara Vermelha, Coração de Vidro (VASCONCELOS), Olhai os Lírios do
Campo, Clarissa (VERISSIMO), Capitães da Areia (AMADO), dentre outros.
Na infância, as histórias me traziam a sensação de que sempre
seríamos felizes, independentemente de qualquer sofrimento ou dificuldade. Na
adolescência, elas me traziam conforto; lendo, eu percebia que a angústia, a
tristeza, a depressão, a alegria e as vicissitudes da vida fazem parte da
aventura humana na terra. Ler alguns livros me fazia rir, como a história do
Gênio do Crime (MARINHO), outros me faziam descobrir o Brasil – de miséria,
exploração e vício – que não existia na minha realidade, como Capitães da
Areia (AMADO).
No final da adolescência, comecei a pensar qual profissão seguir. Como
precisava trabalhar, fiz o colegial junto com o magistério.
Pensando na minha escolha, ser professora, acredito que não foi casual.
Foi uma escolha marcada pela minha experiência com a leitura e com os
momentos em que lia para meu irmão.
Após dois anos de formada, comecei a trabalhar na Prefeitura Municipal
de São Paulo. A primeira turma foi uma classe de educação infantil que
permanecia o dia inteiro na escola. Eu era responsável pelo almoço, higiene e
a hora do sono. Almoçar e fazer a higiene com os alunos era tranquilo, mas
4
dormir era um pouco complicado, pois eles resistiam e ficavam agitados. Voltei
ao passado e lembrei que meu irmão, ao ouvir as histórias que contava,
geralmente dormia. Então decidi que na hora do sono eu contaria histórias, e
funcionou: a maioria das crianças adormecia antes do desfecho final. Brenman
defende:
“Tenho visto frequentemente como as crianças ficam “enfeitiçadas”
quando ouvem histórias de qualidade, lidas pelos seus professores. É
como se elas tivessem parado no tempo, esquecidas de como eram e de
como são, apenas vivendo a narrativa como se fosse real. (...) a leitura
dessas histórias realmente acalma, instaura um novo clima na sala de
aula, silencia os ruídos infantis entre outros muitos efeitos benéficos
observados e invisíveis. Sabemos que as crianças amam as histórias (...).
(BRENMAN, 2012, p. 72).
Depois dessa turma, fui trabalhar com uma 2ª série do ensino
fundamental, em uma escola municipal na periferia da cidade de São Paulo.
Eram crianças carentes, e muitas já haviam sido afetadas por situações tristes,
como abandono, fome, dependência química na família, maus-tratos e fracasso
escolar (muitas não estavam alfabetizadas).
Nessa época, eu fazia Serviço Social na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Esta graduação me possibilitou construir um olhar voltado para o
social, especialmente para os oprimidos.
Com esse olhar, eu levava para sala de aula uma caixa cheia de livros
para que as crianças, ao terminarem a lição, pudessem ler e não atrapalhar os
demais. Nesse momento, o livro era um meio prazeroso de garantir a disciplina;
não queria puni-los com castigo, gritos e chantagens, pois a vida já os tratava
5
assim. E assim o ano letivo foi passando e as crianças foram se apropriando
dos livros e a sala de aula se tornou um espaço de prazer e aprendizado.
Mudanças de ordem administrativa ocorreram na Rede Municipal, que
me levaram a escolher uma sala de alfabetização de Jovens e Adultos.
Trabalhando com essa população, eu deixava uma caixa com livros no
canto da sala e no início ou no final da aula eu sempre contava uma história ou
um poema; o dia em que eu “esquecia”, pediam: Professora, você não vai ler
pra gente? Eu lia! Lendo, eu observava o grupo embalado pelo desenrolar da
trama. Percebia estampado no rosto de cada um(a) o cansaço pela lida do
cotidiano. Com o desenrolar da história, esse semblante exausto expressava
sentimento de alegria, compaixão, admiração, espanto, tristeza e medo. Houve
uma aluna, com idade de 40 anos aproximadamente, que chorou ao ouvir a
história do Patinho Feio (ANDERSEN). Quando me deparei com suas lágrimas
rolando pela sua face cansada, me emocionei, meus olhos marejaram
lágrimas, mas terminei a contação. Perguntei pra sala se alguém gostaria de
comentar sobre a história, se gostou, que momento ‘tocou’ o coração. Dentre
muitos comentários, essa aluna se desculpou pelo choro... eu disse que: não
precisava se desculpar, chorar faz bem para a alma.
Que chorar faz bem pra alma eu sabia, porque quando choro, sinto
minha alma esvaziar e se acalmar. Mas o que comecei a perceber com esse
episódio foi que ouvir história faz tão bem para a alma quanto chorar. Nesse
instante, tive a certeza de que a história e a poesia estariam presentes na
minha vida pessoal e profissional.
6
É importante lembrar que a população de Jovens e Adultos geralmente
trabalha em serviço pesado; atuam como pedreiro, faxineiro, empregada
doméstica, camelô. A jornada diária desta classe trabalhadora é extensa,
incluindo sábados e feriados. Essa grande maioria não teve oportunidade de
frequentar a escola na infância; sendo assim, não “sabe” ler e escrever.
Conhecendo esta realidade, eu utilizava a contação de história para
proporcionar um ambiente de relaxamento e descontração. Acreditava que
esse ambiente descontraído poderia facilitar o processo de ensino e
aprendizagem.
O trabalho de alfabetização seguia. Nessa época, eu utilizava o livro
didático e a cartilha. Eram os únicos materiais disponíveis na escola.
Trabalhando com esse material pedagógico, comecei a perceber que o tema
abordado se mostrava impessoal e distante da realidade do educando. O mais
triste foi constatar que nem sempre havia livro para todos. A escassez de livros
didáticos, naquela época, levava o professor, na melhor das hipóteses, a
xerocar as páginas e distribuir para os alunos. Na falta de xerox, o professor
passava o conteúdo na lousa e os alunos, depois de um dia exaustivo de
trabalho, copiavam.
Esse caminho que eu e meus alunos trilhamos, por pouco tempo, era
árido, enfadonho, alienante e, o que é pior, os alunos não atingiam um
aprendizado satisfatório.
7
Atualmente, percebo que o uso do livro didático no início do processo de
alfabetização é uma roupagem com um único número para vestir corpos tão
singulares. Nas palavras de Freire:
“Daí a nossa descrença inicial nas cartilhas, que pretendem a
montagem da sinalização gráfica como uma doação e reduzem o
analfabeto mais à condição de objeto que à de sujeito de sua
alfabetização”. (FREIRE, 1967, p. 111).
O uso da cartilha não possibilita uma troca de conhecimento entre
educador e educando. O conteúdo vem pronto, na forma que se chama
cartilha. O educador utilizará esse material para depositar as letras do papel
para a cabeça do aluno, num movimento mecânico, frio e impessoal.
Preocupada com a aprendizagem e apaixonada por livros literários,
comecei a pensar na possibilidade de utilizar a literatura na minha prática
pedagógica. Pensei nas histórias, na poesia e no ditado popular para mediar o
processo de ensino e aprendizagem e a relação entre educando e educador.
Logo, veio a pergunta: De que forma o educando adulto é afetado pela
poesia no processo de ensino e aprendizagem e na relação professor e aluno?
Inicialmente a minha questão era esta, depois do diálogo com a banca
de qualificação, assumiu outro caráter. De forma mais abrangente, por um lado
e que contempla melhor minha prática, acabamos por definir a seguinte
questão: Compreender como se deu o processo de inserção na escola de um
adulto analfabeto, os seus aprendizados e os sentimentos vivenciados.
8
Retornando à minha trajetória acadêmica, a preocupação com o ensino
e aprendizagem me despertou um grande desejo de conhecer a complexidade
do ser humano e o seu desenvolvimento. Fui fazer o curso de psicologia no
Centro Universitário Paulistana. Nesse curso, descobri vários livros que
abordam a literatura e o desenvolvimento humano. Não tive dúvidas, abracei a
literatura e li vários livros, como Fadas no Divã (CORSO E CORSO); Contos de
Fadas e Realidade Psíquica/A Importância da Fantasia no Desenvolvimento
Humano: (RADINO); A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas (FRANZ),
Psicanálise dos Contos de Fadas (BETTELHEM), dentre outros.
Após ter lido vários livros e concluído o curso de psicologia, resolvi
trabalhar com literatura, mais especificamente com poesia no processo de
ensino e aprendizagem, na série inicial de Educação de Jovens e Adultos –
EJA, daí a primeira proposta referida.
O uso da literatura foi tão importante que resolvi levar essa prática
pedagógica para o âmbito acadêmico. Foi quando ingressei na pós-graduação
da Pontifícia Universidade Católica.
O ingresso no programa e o “diálogo” travado com muitos professores
sobre o processo de ensino e aprendizagem só confirmaram e legitimaram
para mim a importância desta pesquisa.
A escolha por Wallon
Wallon leu Makarenko, pedagogo soviético, e refere-se a ele como um
educador que deu igual peso ao desenvolvimento da pessoa e da coletividade,
9
levando em conta as condições concretas da vida de cada um de seus
educandos.
“E o resultado principal das leituras pedagógicas foi para Makarenko ‘a
convicção de que a teoria tinha de ser extraída da soma total dos
fenômenos reais que se desenrolavam diante dos seus olhos’. (ALMEIDA,
2010b, p. 128)”.
Para Makarenko, a teoria tinha que estar contida nos fenômenos que se
mostravam aos seus olhos; para mim, a escolha por Wallon não foi diferente.
Optei por Wallon quando consegui perceber a presença dos seus conceitos na
minha prática profissional. Em uma aula, aproximei-me da carteira de um aluno
(sujeito desta pesquisa) e pedi para que lesse a poesia produzida pelo grupo.
Ele sorriu e disse que ficou nervoso, mas iria ler, mas primeiro precisava tirar a
blusa (estava muito frio), alegando que estava subindo um calor intenso pelo
seu corpo. Ele pediu para que encostasse a minha mão no seu braço: “sente
aqui, professora”! (A partir daqui, todo texto que estiver em negrito se refere
ao sujeito desta pesquisa). Quando minha mão o tocou, constatei que suava
intensamente. Este momento marcou a minha memória e meu encontro com
Wallon.
“Moldado simultaneamente pelas variações produzidas tanto no
ambiente como nas vísceras e na atividade própria do indivíduo, o tônus é
de fato constituído para favorecer uma base material à vida afetiva”.
(WALLON, 1995, p.141).
Entendi então que a psicogenética Walloniana daria elementos sólidos
para fundamentar meu projeto de pesquisa.
10
Esta teoria concebe a afetividade, a cognição e a motricidade como
elementos indissociáveis e constituintes da pessoa. Esses conjuntos funcionais
se inter-relacionam com o meio social, de uma forma dinâmica, influenciando o
desenvolvimento humano, desde o nascimento até a morte.
Os conjuntos funcionais, por constituírem a pessoa, estão presentes no
contexto ensino e aprendizagem. Eles se expressam de uma forma entrelaçada
nas atividades desenvolvidas. Cada atividade dirigida a um dos conjuntos afeta
os demais.
APRESENTAÇÃO, CONTEXTUALIZAÇÃO E DEFINIÇÃO DOS OBJETIVOS.
Meu problema de pesquisa surgiu quando acompanhei um sujeito em
processo de alfabetização por 9 (nove) meses. Vou relatar, brevemente, a sua
chegada na sala de reforço, a atividade que o afetou e seus sentimentos
vivenciados com o grupo.
No ano de 2013, recebi um aluno na sala de reforço, com 55 (cinquenta
e cinco anos) anos, que não conseguiu frequentar a sala de alfabetização de
Educação de Jovens e Adultos - EJA (regular). Logo no primeiro dia, pedi para
que contasse a história do seu nome. No relato da história do nome,
geralmente vêm outras informações importantes, como: o lugar em que
nasceu, no que trabalhou e trabalha, por que migrou, suas preferências, seu
gostos, etc. Enquanto o relato vai acontecendo, vou anotando no meu diário de
bordo os acontecimentos que mais afetaram a sua vida. Essas informações
11
serão utilizadas na elaboração do planejamento e das atividades que serão
desenvolvidas com o educando.
“Esta inquietação em torno do conteúdo do diálogo é a inquietação em
torno do conteúdo programático da educação”. (FREIRE, 2011, p. 116).
Nas palavras de Freire, este diálogo inicial entre educando e educador é
revelador. É no dialogar que ambos vão se revelando e se encontrando. O
educador encontra na palavra expressa pelo educando as informações
pertinentes para a escolha do conteúdo programático que vai nortear o
processo de ensino e aprendizagem. O educando encontra no educador a
possibilidade de realizar o sonho de aprender a ler e escrever.
Vou chamar esse educando de Raimundo. Escolhi Raimundo porque é
um nome comum no nordeste do Brasil e representa inúmeros sujeitos que
sonham em ler, escrever e vencer na vida. Na sua singularidade, representa
um coletivo que, por inúmeras circunstâncias, não conseguiu entrar ou
permanecer na escola.
Raimundo me afetou em especial:
Logo nos primeiros dias, quando lia poesia ou contava uma história
para a classe, ele se sobressaía, ora expressando um sorriso, ora
fazendo um comentário. Após a leitura, ele sempre fazia uma
observação ou pedia para contar um “causo”. Em uma aula, contei a
história do Bicos Quebrados (INGPEN, 2007). Quando terminei, ele
pediu para contar a história do papagaio (Vide anexo) que havia
12
acontecido com ele. O homem relatou a história com muito humor,
medo e emoção. Percebi que a narrativa e a poesia afetavam a alma
e o cotidiano desse aluno.
A trajetória de Raimundo levantou-me alguns questionamentos e
delimitei meu problema de pesquisa da seguinte maneira:
Como se deu o seu processo de inserção na escola, os
aprendizados e os sentimentos vivenciados por esse aluno.
Objetivo: Apreender a história de vida de Raimundo para
compreender sua procura pela escola aos 55 (cinquenta e cinco
anos) anos e os sentimentos despertados no seu processo de
aprendizagem na escola.
13
CAPÍTULO 1. REFERENCIAIS TEÓRICOS
“Revelar a riqueza escondida sob a aparente
pobreza do cotidiano, descobrir a profundeza
sob a trivialidade, atingir o extraordinário do
ordinário, esse é o desafio”. Lefebvre
Neste capítulo, pretendo fazer uma breve reflexão sobre a alfabetização,
tendo em vista a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e apresentar as ideias
de um psicólogo do desenvolvimento, ou seja, a abordagem de Henri Wallon.
No primeiro momento, procurarei estabelecer um diálogo com dois
autores cujos trabalhos possam me auxiliar na compreensão de como se deu o
processo de inserção na escola, os aprendizados e os sentimentos vivenciados
em EJA. São eles, Paulo Freire e Magda Soares.
A escolha por estes autores se deve pelo fato de o primeiro ter sido um
dos pioneiros a pensar a alfabetização para este segmento, os jovens e
adultos, e Magda Soares, por suas pesquisas constantes em alfabetização,
seja com este segmento, seja com a população infantil.
Merece destaque, na produção desses autores, a preocupação
constante, direta ou indiretamente, com a realidade na qual esses sujeitos
estão inseridos. Para um e para outro, a realidade é parte essencial do
processo de aquisição de conhecimentos, como o processo de alfabetização.
14
Os sujeitos são detentores de conhecimentos diversos, portadores de
um acervo cultural significativo, que se refletirão no seu modo de apreensão e
no modo de lidar com a realidade. Esses aspectos deverão, portanto, ser
considerados como partes essenciais do processo de alfabetização.
Se, como professam os analistas de discurso (Orlandi, Neni e
Maigueneau), devemos estar atentos às “condições de produção” do discurso
para sua análise, em nosso caso, seguindo os passos desses autores referidos
acima, quero me atentar ao que cada indivíduo traz consigo no momento da
alfabetização, sua história, seu contexto sociocultural, etc.
Assim, a meu ver, ambos os autores permitem pensar o processo de
alfabetização para além de métodos já dados, sempre se considerando novos
elementos do entorno que podem (e devem) auxiliar nesse processo,
ampliando a perspectiva sobre este, ou seja, pensar a alfabetização de modo
contextualizado.
Ressalto que este diálogo será permeado, o tempo todo, pela minha
experiência como educadora que trabalha na Rede Municipal de São Paulo
com jovens e adultos; ao longo deste diálogo, irei destacar elementos
essenciais que me auxiliaram a desenvolver a presente pesquisa.
1.1. Paulo Freire ou “A Alfabetização pela Pedra”
Freire (1967, p. 101) desenvolveu seu método de alfabetização
trabalhando com educação de adultos, em áreas proletariada e subproletária,
15
urbanas e rurais na região nordeste do Brasil. Para ele, alfabetizar é uma
prática muito mais ampla, que implica a tomada de consciência do educando.
Ou seja, o educando precisa conhecer o lugar que ocupa no mundo, as
relações interpessoais que trava no seu cotidiano, o seu poder criativo e
transformador. Assim, Freire ressalta que tanto o indivíduo do campo como o
da cidade tem conhecimento. É um conhecimento peculiar, que marca o lugar
de cada um no tempo e no espaço. No processo ensino aprendizagem, o
educador pode extrair elementos desse conhecimento para criar um novo
saber.
Com este objetivo, Freire (1967, p. 102) criou o círculo de cultura. Nesse
espaço o alfabetizando se reunia para debater os seus problemas vividos na
comunidade, os problemas do país e do mundo. Esse debate, “aparentemente
espontâneo”, era mediado pelo educador. No calor dos depoimentos, os
participantes resgatavam a sua história de vida com suas singularidades e
semelhanças e percebiam-se sujeitos detentores de saberes e experiências.
Saberes que contribuem na criação e recriação do meio cultural, social e
econômico. Nesta relação grupal, a realidade e o sujeito vão se revelando para
o próprio sujeito e para o grupo. Neste revelar-se, o sujeito vai marcar seu lugar
no mundo, que passa a ser sentido, marcado e nomeado pela linguagem.
Para consolidar essa prática, é fundamental que o educador se coloque
na condição de mediador da aprendizagem. O mediador não é doador de
conhecimento, mesmo porque o alfabetizando é detentor de um conhecimento
prévio. O mediador compartilha e/ou constrói conhecimentos e experiências
junto com o educando em uma relação dialógica. Portanto, isto implica se
16
colocar numa posição frente ao educando, como igualmente detentor de uma
história, com características singulares e também comuns às do educando;
falam de lugares diferentes, mas compartilham algo em comum, que é a
construção do conhecimento conjunto, particularmente a alfabetização.
É na relação dialógica com o grupo que o educador tem condições de
garantir um espaço para que o sujeito conte a sua história de vida, suas
emoções, sentimentos, dificuldades e desejos. Esse momento é extremamente
significativo, no qual o educador fará um levantamento do universo vocabular.
(...) os vocábulos mais carregados de sentido existencial e, por isso de
maior conteúdo emocional (...) os falares típicos do povo. (FREIRE, 1967,
p. 111).
O levantamento vocabular permitirá que o educador extraia a palavra
geradora.
“Palavras geradoras são aquelas que, decompostas em seus
elementos silábicos, propiciam, pela combinação desses elementos, a
criação de novas palavras”. (FREIRE; 1967, p. 111).
A palavra geradora vem carregada de significado. Ela traz no seu âmago
um fragmento da história de vida do indivíduo e está impregnada de emoção,
afetividade e memórias. Ela serve como um disparador que possibilitará ao
sujeito, em uma ação contextualizada e mediada pelo educador, construir
outras palavras significativas tanto quanto a palavra geradora e, assim,
apropriar-se do código da escrita de uma forma consciente, crítica, humanizada
e não mecanizada. Ao apropriar-se do código da escrita de uma forma
consciente, o indivíduo terá a possibilidade de escrever e nomear o conteúdo
17
do seu pensamento, suas emoções, seus sentimentos, enfim ele passa a
desvelar o mundo e escrevê-lo com mais propriedade.
É justamente a “contextualização”, outro momento importante no
processo de ensino e aprendizagem.
“contextualizar é trazer para a realidade a fala do educando carregada de
história de vida, e socializá-la com o grupo; é um momento de reflexão compartilhada”.
(FREIRE, 1967, p. 111).
Este momento possibilita situar o sujeito no passado e no presente. É
uma oportunidade que ele tem de conhecer e se reconhecer como autor da sua
história. Este reconhecimento lhe possibilitará refletir sobre o lugar que ocupa
no mundo, as suas escolhas do passado, do presente, e ressignificar suas
experiências; é um movimento de desvelar a vida e projetar o futuro.
Esse desvelar a vida nada mais é do que se descobrir um ser dotado de
consciência do mundo. Um mundo inacabado construído por seres inacabados
e impregnado de historicidade. Perceber-se que se constrói nas relações
sociais e econômicas, portanto é um sujeito marcado historicamente. Este
sujeito histórico que constrói a realidade e é construído por ela pode construir
também seu processo de ensino e aprendizagem em uma relação dialógica,
mediada e compartilhada pelo educador e educando.
Para Freire, a essência do processo ensino e aprendizagem está
pautada no diálogo, tendo em vista que esse é o encontro de duas ou mais
18
pessoas portadoras de conhecimentos diferentes e semelhantes, ambos
inacabados. Ele se revela por meio da palavra em uma conversação.
A palavra reflete a maneira como a pessoa se coloca no mundo, como
pensa, vive e se conecta com a realidade. Por esta razão a palavra tem que
refletir uma ação, uma reflexão e uma práxis, do contrário ela se torna oca,
vazia de significados, se transformando em palavreria, verbalismo que é o
blablablá alienante, descompromissado e desconectado com a realidade.
“O diálogo é um encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para
pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu”. (FREIRE,
2011, p. 109).
É pelo diálogo que eu reconheço o outro e me conheço, e juntos
denunciamos o mundo que compartilhamos. Um mundo inacabado, que não se
esgota nessa relação eu-tu, mas se completa na incompletude do vir a ser.
Esse vir a ser é um ato de criação e transformação da realidade. O ato criador
e transformador se objetiva quando reconheço que o outro, assim como eu,
não sabe tudo e não ignora tudo, mas ambos têm potencial para confrontar as
suas semelhanças e diferenças numa realidade dinâmica, histórica e
culturalmente construída.
Segundo Freire, para estabelecer uma relação dialógica entre homens e
mulheres, educando e educador, é necessário que todos tenham amor, fé,
humildade, coragem e esperança.
Nessa relação, o amor é fundamental, pois este sentimento atrelado à
esperança, à fé, à humildade e à coragem vai despertar os sonhos. O sonho de
19
saber mais sobre quem sou eu neste mundo? Quem é o outro? Qual é o meu
lugar? Para onde quero ir? Quais os projetos que quero realizar? Que mundo é
este que habito e qual mundo quero habitar? Este sonho não é um sonho que
se sonha sozinho, mas um sonho compartilhado com outros sonhos.
“Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se
faz uma relação horizontal, em que a confiança de um polo no outro é
consequência óbvia”. (FREIRE, 2011, p. 113).
Na proposta Freiriana, a relação entre educando e educador é horizontal
nesta fase do diálogo, pois ambos estão em pé de igualdade, são detentores
de saberes diferentes e inacabados, assim como é o homem. É por meio do
diálogo que esses saberes vão se revelando, se cambiando, se completando e
se transformando em novos saberes. É neste espaço de conversação e
reflexão que os problemas, sejam do cotidiano, do país ou do mundo vão se
configurando; assim acontece também com os desejos, angústias e sonhos de
cada sujeito. Refletindo em conjunto a realidade, que é “comum” ao grupo,
surgem fragmentos da realidade que são singulares ao sujeito.
É possível agora passar à etapa seguinte.
Os saberes exteriorizados, não sistematizados, na relação horizontal
entre educador e educando, serão aglutinados e transmitidos de uma forma
sistematizada em conteúdos programáticos. Sendo assim, a realidade dos
sujeitos está contemplada no conteúdo programático.
O conteúdo programático não se caracteriza como uma doação do
educador para o aluno, mas em uma vivência significativa entre pessoas
20
reflexivas que pensam a sua história de vida, o lugar que ocupam no mundo,
os sentimentos, as dificuldades, os sonhos e a realidade que as circundam.
São pessoas portadoras de saberes mediatizados pelo mundo que se
materializa pela palavra, que tanto pode escravizar como libertar o homem. É o
reconhecimento da palavra do educando pelo educador e da palavra do
educador pelo educando que desencadeará o processo de uma educação
libertária. A educação libertária percebe o sujeito ativo, criador e transformador
da realidade e do processo de ensino e aprendizagem. Esse tipo de educação
desperta para conscientização do eu no mundo e com o mundo.
Os fragmentos do poema A Educação pela Pedra, de João Cabral de
Melo Neto, sintetizam o processo apresentado.
“(...) lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem
soletrá-la. Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e
pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse não
ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de
nascença, entranha a alma”. A educação pela pedra (MELO NETO, 1994,
p. 338).
Este fragmento do poema nos faz pensar no tipo de educação que
podemos promover. Uma educação para a liberdade, que busca na essência
do homem o caminho para sua realização humana ou a opressão e a alienação
que o tornam um ser subserviente do próprio homem!
Na educação opressora (nomeada por Freire como bancária), o
educador detém o saber e deposita no educando, é uma relação vertical, de
cima para baixo. O conhecimento vem de fora para dentro, causando, na
maioria das vezes, certo estranhamento. Esta relação é fria como a pedra,
21
mina o poder criador e transformador do homem, endurece a sua alma e
congela a sua consciência. Nesta relação verticalizada, o homem é visto como
uma coisa, um objeto inanimado, é algo moldável e adaptável ao mundo de
acordo com os interesses de quem manda e determina as relações pessoais,
sociais e econômicas do país. Esta proposta de educação não emancipa,
aprisiona, obstrui o mundo do homem tirando a sua humanidade.
A educação pela liberdade se caracteriza pela tomada de consciência
sobre a realidade objetiva, é o despertar para uma consciência crítica sobre o
real e a superação da consciência ingênua. Nesta proposta de educação
libertária, a apropriação da leitura e da escrita é simultânea à tomada de
consciência. Embora para Freire a leitura do mundo preceda a leitura das
palavras, à medida que o sujeito se apropria da leitura esta aprimora a sua
leitura do mundo. Não de um mundo estático, determinado e imutável, mas um
mundo que o sujeito construiu e constrói com seus sentidos, com sua força de
trabalho, com sua criatividade, com seus sonhos, desejos, afetos e desafetos.
Homem e mundo se pertencem reciprocamente: o homem transforma o mundo
e é transformado por ele. Nesta relação, mundo e homem se perpetuam. Até a
pedra do sertão (em estado bruto), lapidada pela criatividade humana se
transformará em um produto da cultura e da produtividade humana.
.
1.2. Magda Soares ou “Alfabetização para Além do Muro da Escola”
Soares é uma pesquisadora da língua escrita. Sua pesquisa é
desenvolvida na academia e legitimada no chão da escola na periferia de Belo
22
Horizonte. É no chão da escola que a autora acompanha a prática docente e o
desenvolvimento do aluno.
Ela defende que todo indivíduo que nasceu em uma sociedade
grafocêntrica, ou seja, mediada pela escrita, já está em estado de letramento. A
criança que acaba de ganhar o mundo já está cercada de letras. As primeiras
letras que serão sua marca registrada desde o nascimento até a morte são as
do seu nome. Logo depois, o seu principal cuidador nomeará os alimentos que
consome, os objetos que utiliza, as pessoas mais próximas com quem se
relaciona, o brinquedo com que brinca, o choro, o riso, a fome, os sentimentos
e emoções, enfim a criança será apresentada ao mundo letrado e, por
necessidade e/ou desejo, será levada a interagir com ele.
Esta interação entre letramento e vivência é um aquecimento para a
alfabetização sistematizada, que acontecerá na pré-escola. Portanto, a criança
que chega à pré-escola não é uma tábua rasa ou um saco vazio que precisa se
encher! É um ser que traz sua herança cultural que foi transmitida pela família
e sociedade nos primeiros anos de vida.
Na concepção de Soares, “alfabetização é adquirir uma tecnologia, a de
codificar em língua escrita e de decodificar a língua escrita” (SOARES, 1998, p.
39). Neste trecho, a autora cita a aquisição de uma tecnologia. Esta tecnologia
nada mais é do que conhecer o alfabeto e, por meio dele, escrever palavras e
frases. Esta prática é a codificação da língua escrita. A decodificação é a leitura
da escrita. Em suma, alfabetização é aprender a ler e escrever.
23
No entanto, a autora defende que, atualmente, só a alfabetização não
supre as necessidades da demanda social em relação à leitura e escrita. Ela
alega que, além de alfabetizado, o indivíduo precisa estar letrado:
“(...) dos indivíduos já se requer não apenas que dominem a
tecnologia do ler e do escrever, mas que saibam fazer uso dela,
incorporando-a a seu viver, transformando-se assim seu “estado” ou
condição, como consequência do domínio dessa tecnologia”. (SOARES,
2013, p. 29).
Mas o que é letramento? Letramento é a apropriação da língua escrita, é
ter consciência de que ler e escrever faz parte do EU de cada indivíduo. O
indivíduo letrado está apto para atender às demandas sociais, que nada mais
são que: preencher uma ficha, ler e assinar um documento, ler jornal, bula de
remédio, receita de bolo, quadrinhos, dentre outras coisas. O sujeito letrado
fortalece o seu poder de escolha, ou seja, leio isso ou aquilo? Compro isso ou
aquilo? Relaciona-se com a sociedade de uma forma “autônoma,” se sentindo
um cidadão de direitos e deveres.
No processo de ensino e aprendizagem, alfabetização e letramento são
interdependentes e indissociáveis. Para atingir o letramento, é necessário o
sujeito se apropriar do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita
(alfabetização). Esta apropriação deve ser desenvolvida no contexto de
letramento e por meio de atividade de letramento. Então, o que é um ambiente
letrado? O ambiente letrado é o contexto social e cultural em que o indivíduo
está inserido. Vou destacar a escola, porque a sua função na sociedade é
promover a educação integral do ser humano. A escola deveria ser um espaço
de construção da alfabetização e do letramento, por guardar o conhecimento
24
universal da humanidade, produzir novos conhecimentos e∕ou transformá-los.
Ela garante o encontro de pessoas de diversas culturas. Sendo assim, é tarefa
do educador promover situações efetivas que despertem no alfabetizando o
desejo de se envolver com práticas de letramento.
Essas práticas vão desde leituras de poesia, história, jornal, produção de
texto, enfim todo material de leitura que circula na escola e na sociedade. Este
ambiente deve promover condições favoráveis ao aprendizado significativo da
leitura e escrita e simultaneamente pontuar que estas habilidades responderão
a uma demanda social do cotidiano, desde a mais tenra idade até a finitude da
vida. O indivíduo letrado tem consciência do que, como e por que ler e escrever
no seu meio social. “Um adulto pode ser analfabeto e letrado”. (SOARES, 2012,
p. 47).
Esta afirmação da autora nos diz que o adulto analfabeto (aquele que
não se apropriou do sistema da língua escrita) pode viver em estado de
letramento. Este estado de letramento é saber utilizar a escrita para responder
a uma demanda social. No filme Central do Brasil, cuja trama se passa no
subúrbio do Rio de Janeiro, podemos perceber um estado de letramento na
cena onde Ana (analfabeta) procura Dora (Fernanda Montenegro, escrevente
de carta) para ditar uma carta para seu “marido”, que mora no Nordeste. A
personagem dita a carta com domínio da linguagem; este comportamento
representa o letramento.
O contrário também pode ocorrer: uma pessoa pode ser alfabetizada e
não estar letrada. Embora alfabetizada, tenha dificuldade de interpretar um
25
texto, de escrever um bilhete ou uma carta; ela tem dificuldade em se envolver
em situações de letramento. Este comportamento ocorre porque ela não foi
alfabetizada em um ambiente letrado.
Como já foi relatado anteriormente, alfabetização e letramento são
práticas indissociáveis, que se utilizadas efetivamente, logo nos primeiros anos
de escolaridade, provavelmente ultrapassarão o muro da escola. Alfabetizar e
letrar para além do muro da escola deveria ser o objetivo central das políticas
educacionais de qualquer país preocupado com o desenvolvimento pleno dos
seus cidadãos.
1.3. Henri Wallon e a Integração Afetiva – Cognitiva – Motora
O teórico Henri Wallon, médico, psicólogo, pesquisador, educador,
nasceu em Paris, em 1879, e morreu na mesma cidade, em 1962. Esse
período foi bastante turbulento, com acontecimentos que marcaram a
humanidade, como as duas primeiras guerras mundiais (1914-1918 e 1939-
1945); o avanço do fascismo no período entre guerras; as revoluções
socialistas e as guerras para libertação das colônias na África, que atingiram
boa parte do continente europeu e em especial o seu país.
Wallon foi criado em uma atmosfera humanista. O respeito ao ser
humano e às suas diferenças, aos valores éticos e o repúdio às injustiças
sociais fizeram parte da sua educação familiar. Estudou filosofia, medicina e
psicologia. A sua trajetória acadêmica, assim como os acontecimentos
políticos, sociais e a sua educação humanista influenciaram o desenvolvimento
26
da sua teoria, uma teoria que se propõe a estudar o ser humano completo. É
importante lembrar que era uma pessoa dotada de uma sensibilidade
expressiva pelo mundo das artes.
“Há um grande parentesco entre o artista e o cientista. O cientista tem
necessidade de mais imaginação do que costuma se supor. Ele precisa
remanejar a realidade para compreendê-la. O artista precisa desarticulá-la
para reafirmá-la à sua maneira”. (GALVÃO, 1995, p. 20)
Sua formação interdisciplinar se refletiu na sua produção teórica. A
teoria Walloniana propõe um estudo integrado do desenvolvimento humano,
por acreditar que o homem não é fragmentado. O psiquismo é constituído
pelos conjuntos afetividade, motricidade, cognição e pessoa. Afetividade,
cognição, movimento se inter-relacionam desde o nascimento, em uma
complexa relação com o ambiente. Pessoa, o quarto conjunto, tanto garante a
integração entre eles, como é o resultado dessa integração
Nesta pesquisa vou priorizar a afetividade, embora reconhecendo que
afetividade, cognição e motricidade são indissociáveis: se uma atividade for
dirigida a um dos conjuntos, os demais serão afetados. Wallon discute
separadamente cada um dos conjuntos por uma questão didática:
“As exigências da descrição obrigam a tratar de forma distinta alguns
grandes conjuntos funcionais, o que certamente não pode ser feito sem
certa artificialidade, sobretudo no ponto de partida, quando as atividades
ainda são pouco diferenciadas” (WALLON, 2007, p. 113).
1.3.1 Afetividade
A afetividade em Wallon “refere-se à capacidade, a disposição do
ser humano de ser afetado pelo mundo externo/interno por sensações ligadas
27
a tonalidades agradáveis ou desagradáveis” (MAHONEY e ALMEIDA, 2005, p.
19).
Quando o indivíduo é afetado positivamente por uma situação há um
envolvimento que o mobiliza e o convida a avançar na resolução de um
problema. Se o indivíduo for afetado de uma forma negativa por uma situação,
a tendência é se afastar, se retrair. Há casos, porém, em que a situação que o
afeta provoca sentimentos de tonalidades negativas e pode fortalecê-lo para
avançar e vencer o obstáculo.
O conjunto afetividade engloba emoção, sentimento e paixão. Os
três resultam da integração do organismo com o meio social. Sucintamente:
Emoção: é a exteriorização da afetividade, podendo ser percebida
por meio da expressão corporal e motora. Ela é plástica, contagiante e
expressiva. No recém-nascido, a exteriorização da emoção é uma ponte de
comunicação com o seu cuidador e com o ambiente. Daí a afirmação de
Wallon de que é pela emoção que o recém-nascido tem sua primeira ligação
com o mundo social.
Sentimento: quebra a potência da emoção, ou seja, ele reprime sua
força. Para quebrá-la ou reprimi-la, o indivíduo pode usar a linguagem, a
mímica, etc. Esta habilidade de controlar e nomear as emoções é melhor
percebida no adulto devido este já ter conquistado a capacidade de refletir
sobre os fatos e de se expressar intelectualmente sobre as situações.
28
“O sentimento corresponde à expressão representacional da afetividade.
Não implica reações instantâneas e diretas como a emoção”. (MAHONEY
e ALMEIDA, 2005, p. 21).
Paixão: tenta silenciar a emoção. A paixão controla a expressão de
emoções e sentimentos para atingir um objetivo; tem, pois, a função de
autocontrole, para atingir o objetivo relevante.
Reafirmo que escolhi a psicogenética Walloniana porque considera a
afetividade, a cognição e a motricidade integradas, constituindo uma pessoa
não fragmentada. De forma integrada, os conjuntos constituem o psiquismo
humano. Outro aspecto que determinou minha escolha foi a sensibilidade de
Wallon pela arte, pela justiça social, pelos oprimidos e pela educação. Seu
projeto educacional visava uma educação mais justa para uma sociedade mais
justa.
1.3.2. Integração organismo meio
Na concepção de desenvolvimento de Wallon, o biológico e o social
são indissociáveis:
“Nunca pude dissociar o biológico do social, não porque os julguem
redutíveis um ao outro, mas porque me parecem tão estritamente
complementares desde o nascimento, que é impossível encarar a vida
psíquica sem ser sob forma de suas relações recíprocas”. (WALLON,
1941/1995, p. 14).
O biológico e o social têm basicamente a mesma importância para a
teoria Walloniana. O indivíduo se relaciona com o meio desde o nascimento até
29
a morte. Nesta relação ambos se transformam e transformam a realidade. É
um constante vir a ser, pois indivíduo e meio são construídos historicamente.
“O meio é um complemento indispensável ao ser vivo. Ele deverá
corresponder a suas necessidades e as suas aptidões sensório-motoras e
depois psicomotoras [...] Não é menos verdadeiro que a sociedade coloca
o homem em presença de novos meios, novas necessidades e novos
recursos, que aumentam as possibilidades de evolução e diferenciação
individual. A constituição biológica da criança ao nascer não será a única
lei de seu destino posterior. Seus efeitos podem ser amplamente
transformados pelas circunstâncias de sua existência, da qual não se
exclui sua possibilidade de escolha pessoal.” (WALLON, 1986, p. 168,
169).
O componente biológico do indivíduo ao nascer, no decorrer da vida
é transformado pela ação do meio. Este meio tanto pode contribuir como barrar
o desenvolvimento. Em sendo acolhedor, oferecendo condições materiais,
afetivas e intelectuais satisfatórias para que o indivíduo possa explorar o
mundo, desenvolver suas habilidades, potencialidades e fazer as suas
escolhas, favorece o desenvolvimento (Mahoney e Almeida, 2010). A
sociedade está em constante mutação, trazendo novos saberes e desafios
para que o homem se aproprie, evolua e se diferencie. O exemplo da
tecnologia é sugestivo. Com o uso do computador surgiram novos recursos e
novas necessidades, exigindo mudanças no comportamento do homem. Ele
teve no mínimo que aprender a usar essa máquina para se comunicar, para
trabalhar, etc. Isso foi uma exigência do meio social, que desencadeou um
avanço no comportamento do homem e um avanço em muitas áreas do saber.
30
1.3.3. A relação Eu-Outro
Eu e outro têm para Wallon uma relação fundamental para o
desenvolvimento da pessoa. A criança já nasce inserida no meio social,
completamente dependente; precisa do outro para garantir sua sobrevivência.
É pela emoção que ela se vincula ao outro em uma relação simbiótica,
indiferenciada. No decorrer do seu desenvolvimento, por meio das interações
estabelecidas e experiências decorrentes de seu meio é que ela vai
alcançando a individualidade, numa complexa diferenciação entre o eu e o
outro.
No decorrer do processo de desenvolvimento, a partir de jogos de
alternância, atuando sobre o meio, a criança se diferencia dos objetos, das
coisas e dos outros seres.
O grupo terá papel fundamental nesse processo, pois a criança
defrontando-se com as diferenças que permeiam as relações humanas e
tomando consciência das mesmas passará, também, a perceber seu lugar em
determinado grupo e por que faz parte dele; percebe-se como diferente dos
demais. Identificar-se com determinado segmento grupal não exime ninguém
de se deparar com diferenças, pois elas existem em qualquer relação humana.
Sendo, então, essencialmente social, o indivíduo parte da
socialização para a individuação. O social deixa nele suas marcas, seus
valores, contribui com a formação de sua personalidade, e o indivíduo,
reconhecendo sua individualidade é agora capaz de refletir sobre o social,
sobre suas ações, sobre si.
31
“Essa modelagem do eu pelo meio, da consciência individual pelo
ambiente coletivo (...) é consequência das inaptidões prolongadas às quais
o filho do homem está condenado pela lentidão extrema de seu
desenvolvimento, aliás, possível graças à instituição de uma sociedade
organizada e protetora.” (WALLON, 1986, p. 168, 169).
Wallon aponta três tipos de outro: o outro das relações
interpessoais, com os quais os indivíduos interagem; o outro enquanto conceito
geral, englobando todos os outros; e o socius, o outro íntimo, companheiro
constante do eu, que traz as marcas e valores de seu meio social. O socius
emerge do processo de diferenciação entre eu e outro. É por vezes negado e
escondido, mas aparece de acordo com as situações e emoções suscitadas. É
um outro silencioso; que dialoga com o eu, e nesse diálogo um pode se
sobrepor ao outro (ALMEIDA, 2014).
1.4. As águas se encontram
A escolha destes teóricos se deu devido todos contemplarem a realidade
do sujeito, suas experiências e vivências. Eles acreditam que a educação tem
como objetivo principal promover uma sociedade mais justa e democrática. A
escola é uma das principais instituições que deveriam desempenhar este
papel, pois ela guarda em seu bojo a cultura universal, transforma o saber e
produz novos saberes. É no âmbito escolar que o indivíduo, independente da
sua classe social, etnia e diferenças deveria desenvolver as suas habilidades e
aptidões. É o lugar legítimo para apropriar-se da leitura e da escrita como um
direito de todos e não como um “favor” ou “doação”.
32
Os autores, partindo de lugares e formações diferentes, têm uma
preocupação, a construção do conhecimento. Sendo assim:
(...) à medida que um método ativo ajude o homem a se conscientizar
em torno de sua problemática, em torno de sua condição de pessoa, por
isso de sujeito, se instrumentalizará para as suas opções”. (FREIRE, 1967,
p. 119).
Para Soares (2012):
“Concluiu-se que só se estará contribuindo para a conquista da
cidadania se, ao promover a alfabetização, propicia-se, sobretudo,
condições de possibilidade de que os indivíduos se tornem conscientes de
seu direito à leitura e à escrita, de seu direito a reivindicar o acesso à
leitura e à escrita”. (SOARES, 2012, p. 57).
Para Wallon (1969):
“a introdução da justiça na escola pela democratização do ensino
porá cada um no lugar que suas aptidões lhe apontam para o maior bem
de todos. A diversidade das funções já não será regulada pela fortuna ou
pela classe social, mas pela capacidade para desempenhar a função”.
(Plano Langevin-WALLON, 1969, p. 158).
A escola é o lócus da construção de conhecimentos que estejam a
serviço do coletivo e do bem-estar individual, ou seja, para desenvolver a
cidadania. O ensino democrático deve estar pautado na participação e no
diálogo entre aluno e professor, pois ambos são detentores de saberes que se
encontram e que se transformam para “formar” uma nova sociedade. Uma
sociedade na qual todos tenham o seu lugar de direito. Um espaço de
produtividade, reconhecimento e acesso ao patrimônio cultural.
Uma sociedade democrática concebe a educação como um direito de
todos e não como um privilégio de alguns. Para tanto, é necessário que os
33
professores(as), mediadores do aprendizado, recebam uma formação efetiva e
de qualidade e que sejam tratados com respeito e dignidade!
34
CAPÍTULO 2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
“O êxito da vida não se mede pelo caminho
que você conquistou, mas sim pelas dificuldades
que superou no caminho.” Abraham Lincoln
Para a elaboração desta pesquisa foi escolhida a abordagem qualitativa.
2.1. Coleta de Dados
Para coleta de informações foi realizada entrevista do tipo reflexivo, com
o aluno já referido anteriormente, o qual me afetou de forma significativa. Essa
modalidade prevê questões desencadeadoras que, durante a entrevista, são
realizadas para esclarecimento e complemento de algumas informações.
Outras informações foram fornecidas pelo registro de observações no
cotidiano da sala de aula, pois durante o processo de ensino e aprendizagem
foram anotadas no diário de bordo da pesquisadora as falas do sujeito inserido
no processo de alfabetização.
2.1.1 Caracterização da Escola e do Aluno Selecionado
A pesquisa foi realizada em uma Escola Municipal de Ensino
Fundamental na periferia da cidade de São Paulo. A escola é composta por
1.100 alunos e 70 professores. Essa escola funciona em três turnos: manhã,
tarde e noite. O curso de Educação de Jovens e Adultos funciona no período
noturno.
35
A entrevista foi realizada com um aluno da 1ª Etapa do curso de
alfabetização de Jovens e Adultos. Os alunos dessa etapa estão registrados no
quadro 1 (um) do Apêndice. Este quadro é importante para visualizarmos a
heterogeneidade do grupo, as suas origens. O entrevistado é do sexo
masculino, tem 55 (cinquenta e cinco) anos, é casado, pai de dois filhos
adultos, trabalha na feira e mora próximo à escola.
A entrevista foi agendada pela pesquisadora, que trabalha como
professora alfabetizadora nessa escola e foi realizada no período noturno, em
uma sala reservada para reuniões. Esse local foi escolhido por ser um lugar
tranquilo e sem interferências.
No início da entrevista, percebi que o aluno estava muito bem-
humorado e disposto a contribuir com este trabalho. Fizemos um acordo, onde
ele só iria responder o que quisesse. Com a sua permissão a entrevista foi
gravada, pois esse procedimento iria permitir uma análise mais fiel e rigorosa
do conteúdo. Foi acordado que sua identidade seria preservada e que usaria
um nome fictício. O nome escolhido foi Raimundo.
2.1.2 Quanto à entrevista, foi proposta da seguinte forma:
Primeira questão: Conte-me a sua história;
Segunda questão: O que o levou a procurar a escola?
Terceira questão: Conte-me como foi seu primeiro dia na escola.
A primeira questão teve a proposta de levantar a trajetória de vida de
Raimundo: a segunda, a de identificar o que o levou a procurar a escola aos 55
36
(cinquenta e cinco) anos, tendo já conseguido trabalho em várias empresas; a
terceira na tentativa de compreender seus sentimentos e aprendizagens na
escola.
2.1.3 Anotações do diário de bordo da professora
Selecionei alguns registros, dentre os muitos que fiz, durante meu
trabalho com Raimundo. Escolhi-os em função de meu tema de pesquisa.
Algumas falas de Raimundo, depois que aprendeu a ler, estão em anexo.
2.2. Análise dos dados
A partir da entrevista, elaborei um quadro constando:
Depoimento do sr. Raimundo;
Explicitação dos significados, isto é, o que a pesquisadora
interpretou do depoimento:
Identificação, no depoimento, de alguns temas para discussão.
O Quadro 2 (Apêndice) registra o depoimento e os significados
aprendidos pela pesquisadora.
A partir do quadro selecionei quatro temas, que passo a discutir juntando
na discussão as falas que registrei no diário de bordo brevemente.
37
CAPÍTULO 3. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
A formação psicológica dos professores não pode ficar
limitada aos livros. Deve ter uma referência perpétua nas
experiências pedagógicas que eles próprios podem
pessoalmente realizar. Henri Wallon
3.1. Trajetória de vida do sr. Raimundo
A história de vida do sr. Raimundo representa a vida de muitos
Raimundos e Raimundas, excluídos(as) da escola, do mercado de trabalho
formal, dos sonhos, enfim, da cidadania.
“Nada o distingue, nada o singulariza: Nem seu nome, nem seus pais,
nem passado, nem o corpo, nem o lugar onde vive, nem a vida, nem a
morte o individualizam. Sua identidade transcende sua individualidade”.
(CIAMPA,1987, p. 24).
O sujeito desta pesquisa, a quem chamo de Raimundo, nasceu na
cidade de Brumados, Bahia. É o único homem de uma prole de mais quatro
irmãs. Seu pai, bem mais velho que sua mãe, faleceu quando ele tinha seis
anos. Após perder o marido, sua mãe mudou com os filhos(as) para a roça,
para trabalhar na lavoura de algodão. Raimundo, com 6 (seis) anos, ajudava a
mãe na roça. Quando tinha 7 (sete) para 8 (oito) anos, sua mãe resolveu
migrar para São Paulo com o namorado, deixando os filhos (as) com a avó.
Nesse período, ele foi trabalhar na lavoura de arroz, espantando passarinhos
com gritos e pedras; em troca, ganhava comida, roupa e moradia.
“Então eu ficava cuidando para os passarinhos não comer o arroiz”
(...) Nois pegava o boneco vestia, parece boneco de Olinda, e colocava no
38
meio da plantação (...) Ficava o dia inteiro gritando com os passarinhos e
jogava pedras para eles avoarem. A colheita que era dura. Tinha que
cortar o arroz e não aguentava carregar muito, eu pegava aos poucos (...).
“Um tempo Severino que vivido como quotidiano estruturado na luta
pela sobrevivência. O quotidiano o produz e ele o reproduz Severino: esta
sua sina”! (CIAMPA, 1987, p. 25).
Nas palavras de Ciampa, Raimundo, assim como Severino, defende a
sua sobrevivência, marcado pela rotina do trabalho cotidiano. Raimundo não
produz, não cria o seu trabalho. Ele é a expressão viva do espantalho, espanta
os passarinhos, num movimento repetitivo e empobrecido, que leva ao
achatamento da condição humana, minando seu poder criativo e
transformador.
Nesta condição de espantalho vivo não havia tempo e nem lugar para a
escola.
Ele desconhecia o que era escola até a chegada de uma professora.
“Não tinha escola, não tinha nada, era só roça”.
“(...) o risco da banalização da vida humana, que pode ser provocado
pela rotina, pelo trato cotidiano de situações de segregação, de injustiça.”
(MARTINELLI, MUCHAIL e ON 1998, p. 110).
Raimundo está inserido em uma realidade na qual essa é a única opção,
para garantir a sobrevivência, é o trabalho na roça. A sua condição é
semelhante à do escravo, obrigado a trabalhar, ininterruptamente, sem
remuneração. Essa condição de semiescravidão banaliza a vida, impedindo
39
que o sujeito se aproprie da maior riqueza humana, que é a capacidade de
expressar todo o seu poder criador e transformador por meio do trabalho.
A professora chegou, na roça, para dar aula no pé da árvore e trouxe um
livro para cada criança. O nome do livro era Pelé e a Bola. Mas, como ela
morava muito longe, a 30 km da cidade, desistiu no primeiro dia. Só restou o
livro, que marcou a memória de Raimundo. O livro que guarda em suas
páginas as letras, que formam as palavras, que formam as frases que
exprimem um sonho de menino de aprender a ler e escrever, então “Só fica o
que significa”. (PLACCO e SOUSA, 2006, p. 38). O livro significou, naquele
momento, a possibilidade de apropriação da leitura e escrita.
Raimundo foi crescendo sem escola, e se transformando em pré-
adolescente com mais força e capaz de tirar leite da vaca e ser o vaqueiro da
fazenda. “(...) aí eu já guentava tirar leite, tem que ter força pra tirar, eu
tenho até olho-de-peixe daquela época (...)” Com toda a sua força de quase
homem, assumindo responsabilidade de um adulto, não tinha um salário;
continuava trabalhando em troca de casa, comida e roupa. O pouco dinheiro
que conseguiu juntar era vendendo cachaça, que pegava fiado na cidade, para
os colegas na roça.
“Os sonhos impossíveis, as fantasias sentimentais não atingem todos
os jovens com a mesma intensidade, podendo ser contidos conforme as
exigências de sua vida cotidiana. Uma das causas frequentes é o início da
atividade profissional precoce, que põe o jovem em contato imediato com a
realidade social e pode oferecer-lhe o sabor da sua independência, mas
também colocá-lo diante de responsabilidades para as quais pode ainda
não estar preparado”. (MAHONEY e ALMEIDA , 2012, p. 63).
40
A criança que carregava arroz, aos poucos, porque não aguentava o
peso, agora, na adolescência, assume a responsabilidade de um vaqueiro, pois
se sente dotado de força para tirar o leite da vaca e cuidar do gado. Embora
tenha mudado de função e adquirido mais autonomia no trabalho, ainda
permanece em uma situação aviltante, ou seja, sem remuneração. Ele muda
de função, consegue mais autonomia no trabalho, mas não muda o seu lugar
no mundo, pois não tem ainda autonomia suficiente sobre sua própria vida.
Na concepção Walloniana, alguns adolescentes são obrigados a
trabalhar para suprir as carências materiais, suas ou da família. Essa
necessidade, muitas vezes, impossibilita o jovem de viver intensamente suas
fantasias, sonhos e sentimentos. No caso de Raimundo, a necessidade de
trabalhar chegou na infância e se intensificou na adolescência, com mais
responsabilidades, e o que é mais humilhante, sem pagamento em dinheiro.
Não lhe foi concedido um espaço acolhedor, nem na infância e muito menos na
adolescência, que lhe possibilitasse: jogar bola, rodar pião, ser embalado por
cantigas de ninar, ouvir e contar histórias, conhecer letras, formar palavras,
escrever frases, histórias, escolher roupas, calçados, sonhar e fantasiar.
A exclusão e a mesmice do cotidiano marcaram a sua trajetória até os
18 (dezoito) anos, mas não cristalizaram o seu potencial para a labuta.
Atingindo a maioridade, conheceu uma moça (de São Paulo) que estava
passeando na cidade de Brumado. Ela percebeu o seu talento para o trabalho
e o incentivou a migrar para a capital paulista, em busca de uma melhor
ocupação.
41
“Uma moça que me falou, você pode ir pra São Paulo que você vai
se dar bem, vai ganhar dinheiro”.
Nesse momento ela reconheceu o valor da sua força de trabalho e lhe
sugeriu trilhar um novo caminho, que o libertaria da condição de espantalho.
Espantado com essa proposta, olhou para si e percebeu o quanto estava
estagnado. Ao mesmo tempo em que reconheceu a sua estagnação, foi
tomado por uma profunda irritação, que o despertou para a mudança. Podemos
perceber esse movimento na sua própria fala:
“Eu me invoquei, fiquei nervoso porque eu ajudava a ganhar
dinheiro e eu não ganhava, fui lá e falei: vou embora, foi coisa do
momento, coisa rápida, não quero viver mais na fazenda porque não
ganhava nada, era uma escravidão, aí eles me deram o dinheiro da
passagem”.
Ao perceber que “doava” a sua força de trabalho para enriquecer o
outro, e em contrapartida estava “contribuindo” com o seu empobrecimento
material e humano, foi tomado por um estado de tensão e se rebelou contra o
“patrão”, e exigiu que o mesmo pagasse a sua passagem para São Paulo.
“O homem se constrói e se recria quando se opõe para romper com o
domínio do outro, na tentativa de busca de si mesmo”. ( MAHONEY e
ALMEIDA, 2010, p. 98).
O olhar do outro (mulher) refletiu no olhar de Raimundo, permitindo que
ele enxergasse e reconhecesse o seu potencial para romper com o domínio do
42
outro, tomar as rédeas da sua vida e continuar escrevendo a sua história, mas
agora sendo ele o protagonista. Segundo Almeida e Mahoney (2005):
“Emoções são sistemas de atitudes, reveladas pelo tônus. Atitude é a
expressão da combinação entre tônus (nível de tensão muscular) e
intenção, cada atitude é associada a uma ou mais situações”. (MAHONEY
e ALMEIDA, 2005, p. 20).
Raimundo deixa a sua terra trazendo a marca, no seu polegar, do olho-
de-peixe, que representa o trabalho repetitivo e desumano. Ele chega na antiga
rodoviária da Estação da Luz, na cidade de São Paulo. Mesmo sem saber ler e
escrever trabalhou em várias funções, constituiu família e, atualmente, é
feirante e frequenta o curso de alfabetização em uma escola da periferia da
capital.
3.2. Motivo que o levou a procurar a escola
Como já citado no tópico anterior, Raimundo tem dois filhos. O filho mais
novo sofre de sinusite há muito tempo. Em uma crise muito severa, foi levado,
(pelo pai) ao pronto-socorro. Na recepção do hospital, a funcionária entregou
uma ficha para Raimundo preencher. Quando este olhou a ficha, sentiu-se
incapaz de preenchê-la e relatou:
“Senti uma decepção. Parece que você tem mão, perna, braço e não
tem utilidade nenhuma para fazer o que precisava”.
Na fala de Raimundo, podemos observar que ele se sentiu refém da
situação, pois lhe faltava o conhecimento da leitura e escrita para realizar a
exigência do preenchimento da ficha. Essa experiência o afetou
43
profundamente, desencadeando um sentimento de frustração e desvalia.
Relembrando Wallon:
“Afetividade refere-se à capacidade, à disposição do ser humano de
ser afetado pelo mundo externo/interno por sensações ligadas a
tonalidades agradáveis ou desagradáveis”. (MAHONEY e ALMEIDA, 2005,
p. 19).
Em um primeiro momento, a situação desagradável desencadeou outros
sentimentos e ações que Raimundo relata com clareza:
“A ficha ficou tudo branco. Porque eu fiquei aéreo, não consegui
fazer o que tinha que fazer para meu filho que estava doente (...) pensei:
vou estudar porque serviço não mata home e se Deus quiser vou
conseguir. Vou conseguir ler e escrever, nunca é tarde para aprender”.
A impossibilidade de preencher a ficha afetou Raimundo
“negativamente”. No dizer de Wallon, “a emoção obnubilou a razão”. “Caso ele
se entregue às manifestações extremas de fúria, chegará a uma obnubilação
total da percepção e da inteligência” (ALMEIDA, Wallon, apud 2010a, p. 80).
Suas emoções se sobressaíram, obscurecendo sua visão, e por alguns
minutos se desconectou da realidade, desencadeando um estado de tristeza,
inutilidade e impotência.
(...) “emoção é um estado afetivo, comportando sensações de bem-
estar ou mal-estar que têm um começo preciso, é ligado a um objeto
específico e de duração relativamente breve e inclui ativação orgânica”.
(MAHONEY e ALMEIDA, 2005, p. 19).
Este estado de impotência, desencadeado pelo não preenchimento da
ficha, foi passageiro. Ao mesmo tempo em que foi tomado pela inércia, pela
44
impossibilidade de auxiliar o filho, reconheceu e refletiu a sua condição de
“iletrado”. Segundo Soares (2012):
“uma pessoa iletrada = uma pessoa que não tem conhecimentos
literários, que não é erudita; analfabeta, ou quase analfabeta”. (SOARES,
2012, p. 32).
Na sua imperícia frente ao ato de ler, ele desvelou o valor da leitura e
escrita e decidiu voltar a estudar, mesmo tendo uma jornada de trabalho
extensa e estressante. A situação em que vê o filho doente, sem poder
preencher a ficha por não saber ler e escrever faz com que Raimundo reveja a
importância de adquirir esta habilidade e ambas ganham um valor maior para
ele.
Podemos afirmar que as situações negativas, desencadeadas por
elementos internos ou externos ao sujeito, podem desencadear uma ação
positiva ou negativa. No caso de Raimundo, foi desencadeada uma ação
positiva, voltada para sua realidade, pois a experiência que viveu o estimulou a
ir à escola e transformar a sua condição de “iletrado” em sujeito letrado, ou
seja, que interage com o universo da leitura e escrita.
3.3. O processo de inserção do aluno e seus sentimentos
despertados no processo de escolarização
Ao chegar à escola, Raimundo encontrou um ambiente pouco acolhedor.
A carteira escolar uma atrás da outra, pouco confortável para acomodar o
aluno adulto (a Escola Municipal de Ensino Fundamental foi pensada para
45
acolher crianças e adolescentes em fase regular de aprendizagem), o caderno,
o lápis e uma lousa imensa cheia de conteúdo para ser copiado.
Raimundo se vê diante da vida escolar, algo que, talvez, também tivesse
de alguma forma evitado, justamente para não ter que se deparar com o seu
“não saber”.
Raimundo estava habituado a domar animais, roçar, embalar comida,
entregar marmita, trabalhar em firma, e atualmente trabalha na ponta da feira
vendendo frutas, legumes e temperos. Adentrando o espaço escolar e
principalmente a sua sala de aula, deparou-se com o mundo das palavras, não
aquelas que ele ouve e fala no cotidiano do trabalho, da família e do lazer, mas
palavras que ocupavam a lousa e que não apresentavam nenhum sentindo e
significado, pois não contemplavam o seu conhecimento prévio. O universo
escolar não contemplou o educando, desde o mobiliário, os conteúdos, o ritmo
de aprendizagem dos seus colegas, parece que tudo estava “incompatível”
com sua história. Ele relata os momentos iniciais da sua primeira experiência
escolar:
“O primeiro dia foi muito nervoso, no segundo um pouco tenso e o
terceiro já me relaxei mais”.
“Mas na sala dela os outros já sabiam mais do que eu. Eu não tava
acompanhando, os outros tinham mais tempo de escola que eu, aí eu
comecei a faltar”.
O nervosismo, a tensão e a dificuldade em acompanhar os colegas
foram os primeiros sentimentos relatados. Ele sentiu certo estranhamento com
46
o ambiente escolar. Sua primeira atitude foi começar a faltar, o que,
provavelmente, o levaria à evasão; sentia-se afetado por uma sensação de não
pertencimento ao grupo.
A situação descrita foi alterada quando a professora inicial entrou em
contato com ele e o convidou a frequentar a sala de reforço com outra
professora. É importante deixar claro que a sala de reforço não é um lugar de
inclusão, mas um espaço destinado ao aluno que, por algum motivo,
apresentou dificuldades para acompanhar o grupo classe. Esse novo espaço é
marcado pelo acolhimento, pelo diálogo, por atividades elaboradas mediante
situações discutidas em sala de aula, pela presença de uma minibiblioteca para
uso dos alunos, por materiais alternativos, como o alfabeto móvel, massa de
modelar, contação de histórias, poesia, músicas e filmes. Recursos que
deveriam existir em qualquer sala de alfabetização, principalmente, e, se
existem, deveriam ser mais bem utilizados com o aluno. Esses recursos são
facilitadores que visam atender às dificuldades específicas do aluno,
propiciando uma aprendizagem significativa. A aprendizagem significativa só
tem possibilidade de ocorrer na relação professor-aluno, assim como os
possíveis recursos materiais só ganham sentido quando inseridos e utilizados
corretamente, tendo o professor como mediador. Sendo assim, a sala se
diferencia da anterior, como relata o próprio aluno:
“O ensinado dela é diferente do seu, aqui na sala de reforço você
deu aquele tempero, o que você fez, fez nós crescer, foi diferente pra nós.
Lá a gente copia, copia, copia, não adianta, tem que saber o que tá
copiando, se não, não dá. Você pega mais legal, o jeito seu pra trabalhar
ajuda a gente. A ensinação, o trabalho seu é mais esforçado”.
47
Resgatando o filme Tempos Modernos (CHAPLIN), podemos fazer um
paralelo com o ato de copiar o conteúdo da lousa e o ato de apertar parafusos
na fábrica. Ambos são movimentos repetitivos e frenéticos que,
paulatinamente, vão cindindo o homem do seu poder criador e transformador,
levando-o à alienação. Esse estado de alienação afeta profundamente o
sujeito, causando a impossibilidade de se reconhecer e ser reconhecido na
produção da sua obra. O indivíduo perde a consciência do ato que está
realizando, não se apropriando do seu saber, que é histórico e socialmente
construído, é um fazer mecânico, que causa um abismo entre o existir no
mundo e com o mundo.
Na percepção de Raimundo, na sala de reforço existia uma “ensinação”
e um “tempero” diferente. Mas de fato o que é uma “ensinação” e um “tempero”
diferente?
Penso que, na sala de reforço, entrar em contato com a “ensinação” do
alfabeto, tendo como recurso mobilizador a contação de história, foi um convite
para o grupo, por meio da letra, vasculhar sua memória e partilhar as suas
experiências, trazendo para o presente sensações, lembranças, desejos e
emoções. É importante deixar claro que o contato com o alfabeto foi realizado
por meio de atividades com o alfabeto móvel (alfabeto móvel são letras
plásticas, passíveis de ser manuseadas).
Agora a letra não está oca, estática e perdida no tempo e no espaço.
Mas manuseadas pelo calor das mãos humanas ganham corpo, vida e
48
significado, que representam o pensamento e o sentimento do aluno no
presente.
Acredito que o “tempero” diferente está atribuído à maneira como as
atividades foram desenvolvidas em sala, como relata abaixo:
“Na sala de reforço eu me senti bem porque eu achei que eu ia me
apertar mais um pouco e ia ser melhor. As cruzadinhas, caça-palavra, lê
as frutas, as palavras, as histórias que você conta, os versos era legal
porque a gente não sabia o que era verso”.
Raimundo deixa claro que as atividades propostas na sala de reforço
foram realizadas com prazer. Acredito que essas atividades contemplaram a
realidade do seu trabalho (pois não podemos nos esquecer que ele vende
frutas) e da sua vida pessoal. Ele se sentiu “representado” nas atividades.
“Caso a aprendizagem da leitura se vincule a processos prazerosos,
relacionada com a vida real e imaginária do aluno, o esforço exigido na sua
aprendizagem terá algum sentido, já que levará ao sujeito um canal
inesgotável de informação, conhecimento, divertimento, crescimento, etc.”.
(BRENMAN, 2012, p. 68).
Raimundo pensou inicialmente que na sala de reforço teria que realizar
um esforço intenso para aprender a ler e escrever. O conteúdo programático
iria ser depositado em seu corpo inerte e ele teria que se ajustar como um
parafuso ao novo conhecimento vindo de fora. Mas veio a surpresa, quando se
deparou com a lousa vazia, mas com o ambiente da sala de aula preenchido
por uma conversa acolhedora, entre educador e educando sobre a origem do
nome de cada um (nada é mais significativo do que o próprio nome). “Daí que o
papel do educador seja fundamentalmente dialogar com o analfabeto.” (...)
49
(FREIRE, 1967, p. 110). Nesse diálogo acolhedor, muitas informações,
pertinentes à vida do educando, foram registradas e utilizadas na preparação
de atividades (caça-palavras de nomes, cruzadinha, construção do próprio
nome com alfabeto móvel, etc.) que foram realizadas nos primeiros dias de
aula.
Diante dessa nova proposta de aprendizagem, observei que o aluno foi
se esforçando, mas aprendendo com gosto, saboreando cada união de letras,
cada sílaba e cada palavra formada. Raimundo provou, com seus sentidos, o
tempero usado na sua aprendizagem.
Todas essas atividades relatadas por Raimundo lhe trouxeram
sentimentos de tonalidades agradáveis, apesar de reconhecer a situação que o
levaria a se esforçar mais.
Dentre as atividades que relatou, desenvolvidas na sala de reforço,
refere-se particularmente à contação de história da lenda da Iara:
“A história que me marcou foi da índia. Às vezes a história cola a
gente, é uma lembrança que a gente tem pra sempre, é igual a uma
tatuagem. Tem algum passado que entra no meio daquela história, aí
lembrei da Eva, a primeira namorada lá no interior, eu tinha 14 anos. Um
amor que a gente teve, gostei um bocado, você vê que a gente não
esquece”.
A fala de Raimundo nos remete a Ecléa Bosi:
50
“pertencer a novos grupos nos faz evocar lembranças significativas
para este presente e sob a luz explicativa que convém à ação atual”.
(BOSI, 1987, p. 335).
Ao ouvir a lenda da Iara, emergiram lembranças da sua adolescência, do
seu primeiro amor, houve uma identificação com a narrativa. Esse momento
reflexivo foi compartilhado e confrontado com outras histórias de amor
vivenciadas pelo grupo, confrontadas com o momento presente:
“Contar e recontar tudo” “significa partilhar a lembrança das
experiências do cotidiano e a sabedoria adquirida ao longo da vida”.
(PATRINI, 2005, p. 106).
Por alguns momentos, passado e presente se entrelaçaram com a
história. Nesse clima narrativo, as experiências e os sentimentos são
partilhados sob um novo olhar, que foi se transformando por outras
experiências amorosas, vividas ao longo do tempo.
“A memória pode ser enfocada tanto como função quanto como
recurso para o ato de aprender. Em qualquer uma destas abordagens, podemos
afirmar que sem ela não se aprende”. (PLACCO E SOUSA, 2006. p. 28).
A memória sendo um reservatório inesgotável das experiências vividas
pelo ser humano é um recurso, imprescindível, na aprendizagem de jovens e
adultos analfabetos. O caminho escolhido para acessar a memória desta
população foi a contação de história e a partir dela abriu-se um espaço para o
diálogo. Essa escolha não foi ingênua, ler ou contar história, além de evocar as
lembranças, possibilita suscitar o imaginário, responder perguntas, encontrar e
criar novas ideias, estimular o intelecto, descobrir o mundo imenso dos
conflitos, das dificuldades, dos impasses e das soluções. É ouvindo histórias
que se pode sentir e reconhecer emoções, como raiva, tristeza, irritação, pavor,
51
alegria, medo, angústia, insegurança, viver profundamente tudo o que as
narrativas provocam de uma forma significativa e verdadeira. Com a escuta e o
olhar do presente é possível ou não ressignificar os sentimentos do passado
desencadeados pela narrativa.
“A força da história é tamanha que narrador e ouvinte caminham
juntos na trilha do enredo e ocorre uma vibração recíproca de
sensibilidade, a ponto de diluir-se o ambiente real ante a magia da palavra
que comove e enleva. A ação se desenvolve e nós participamos dela,
ficando magicamente envolvidos com os personagens, mas sem perceber
o senso crítico que é estimulado pelos enredos”. (COELHO, 1991, p. 11).
Essa magia e ludicidade despertada pela narrativa e pelo diálogo é
espaço fértil para garimpar a palavra geradora ou os temas geradores visando
promover com significância e sentido o processo de ensino e aprendizagem.
Ou seja, acredito que é no brincar com a leitura, com as letras e com as
palavras que a criança e o adulto têm maior possibilidade de abrir as portas da
imaginação para a apropriação da leitura e escrita, com maior criatividade,
afetividade e propriedade. Para Winnicot:
“É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto
fruem sua liberdade de criação”. (WINNICOT, 1975, p. 79).
É na ludicidade da palavra que a leitura transmite todo o conhecimento
produzido pela humanidade e é no brincar que o indivíduo vai se apropriando
dessa produção e produzindo outras tantas novas. A escuta literária nos
permite conhecer o homem do passado e do presente, saber como viviam, e
como vivem agora, como se relacionavam e como se relacionam hoje e como
resolviam os seus problemas e como resolvem hoje, é um convite para que o
52
indivíduo possa se como(ver) com a sua experiência e com a do outro,
aprendendo e ensinando. É um espaço potencial onde podemos explorar o
melhor e o pior da nossa condição humana, expressar a nossa individualidade
e viver temporariamente, na nossa casa imaginária, outros tipos de papéis.
Nesse jogo de escuta, o educando vai entrar em contato com a norma culta,
possibilitando a elaboração e a construção da leitura e da escrita.
“Jogos com os sons das palavras, jogos com o sentido delas, ou com
o modelo de mundo que cada poema ou narrativa inevitavelmente criam,
ampliam nossas possibilidades de relação, tanto com a linguagem, quanto
com o mundo”. (CADERMATORI, 2010, p. 32).
O aspecto lúdico da história reflete a ludicidade inerente ao ser humano.
A “ensinação” do ler e escrever, por se configurar em um caminho árido,
deve ser sentida a partir do mundo da vida. E a vida nada mais é do que um
entrelaçamento de histórias, sejam elas individuais, universais e regionais.
Quanto mais a “ensinação” contemplar esse patrimônio, mais significativa,
prazerosa e mais legítima será a apropriação da leitura e escrita pelo
educando.
3.4. Sentimentos vivenciados no processo de alfabetização
Não cabe aqui uma discussão sobre todo o processo de alfabetização,
que foi desenvolvido na sala de reforço. Selecionei alguns pontos relevantes
em função do problema de pesquisa.
53
Para compreender a dimensão afetiva no processo de alfabetização
temos que recorrer aos conceitos de Wallon, que já foram expostos no
referencial teórico. Relembrarei, brevemente, alguns conceitos desta teoria
para elucidar este capítulo; eu o faço concordando com Mahoney:
“A escola, assim como nossa sociedade, desvaloriza, nega a emoção
nas suas práticas, como se esta impedisse a consecução de seus
objetivos. E esse descaso pode ser um dos muitos fatores responsáveis
pelo fracasso escolar”. (Mahoney, 1993).
É importante lembrar que o ator desta pesquisa quase desistiu de
frequentar o curso de alfabetização, como ele explicita:
“Eu não estava acompanhando, os outros tinham mais tempo de
escola que eu, aí eu comecei a faltar”.
Sua atitude faltosa, o que levaria ao fracasso escolar, nos leva a
entender que o mesmo não estava sendo contemplado no seu saber e nos
conteúdos administrados na sua sala de origem, o que o levou a ser convidado
a frequentar a sala de reforço. Possivelmente, se essa atitude não fosse
tomada, a sua desistência se consolidaria, engrossando as estatísticas da
evasão escolar.
Diante deste contexto, penso que, para atingir um aprendizado
satisfatório, é fundamental que a relação professor e aluno, assim como o
conteúdo programático, sejam mediados pela afetividade. A afetividade
engloba a emoção e sentimento e faz parte da constituição da pessoa, assim
como a cognição e o ato motor. Se o indivíduo é constituído por esses
elementos, acredito que seja fundamental o professor desenvolver um olhar
54
afetivo e promover estratégias de aprendizagem que contemplem todos esses
aspectos no decorrer do processo de escolarização, visando atingir uma
aprendizagem significativa e libertária. Almeida deixa clara a importância da
mediação:
“A mediação do professor será tanto mais eficaz quanto maior for o
número de linguagem de que dispõe. Os recursos da literatura, da
dramatização, da música são possibilidades que servem para canalizar as
emoções em favor do pensar, bem como para ampliar a cultura, e é dever
da escola oferecer à criança e ao jovem, sem discriminação, o que há de
melhor na cultura”. (ALMEIDA, 2010b, p. 127).
O uso da literatura não é novidade, mas também não é usual, pois a
maioria das escolas prioriza a realização de tarefas (perguntas e respostas), a
cognição, o pensamento lógico, a razão. Na minha prática pedagógica, eu
escolhi a literatura por acreditar que é atemporal; sendo assim, está mais
próxima da natureza humana em qualquer época ou lugar. É um canal lúdico
para tocar a emoção e, simultaneamente, evocar a memória e mobilizar a
cognição, momento fértil para despertar o aprendizado se utilizada como
recurso para mediar o conteúdo programático. Ela aborda de uma forma
singela a vida e a morte, o belo e o feio, a bondade e a maldade, a
solidariedade, vitórias, derrotas, o amor e o ódio, a alegria e a tristeza, as leis
da natureza, os desejos, as dificuldades humanas, enfim ela retrata com
fidelidade o ser humano em todas as suas nuances.
As falas de Raimundo em processo de alfabetização evidenciam a
presença e o poder da literatura como recurso de mediação e por que razões
elas ocorreram na sala de reforço e não na sua sala de origem.
55
Começarei pelo primeiro dia que o recebi no grupo de reforço em
alfabetização. No primeiro contato com o grupo, foi lida a crônica “Vergonha do
nome (ACIOLI). A escolha pela leitura de uma crônica para mediar a
apresentação de educando e educador nos remete à fala de Wallon:
“O meio nada mais é que o conjunto mais ou menos durável de
circunstâncias nas quais se desenvolvem existências individuais. Ele
comporta, evidentemente, condições físicas e naturais, que são, porém,
transformadas pelas técnicas e pelos usos do grupo humano
correspondente (...)”. (WALLON, 1986, p. 170).
Como podemos perceber, Raimundo continua no mesmo espaço
escolar, mas inserido em uma sala de aula diferenciada, pois o que vai mediar
a relação professor e aluno, aluno e aluno, professor, aluno e conteúdo
programático é a técnica “inovadora” da contação de história, dentre outros
recursos permeados pela afetividade. Essa técnica foi utilizada para abrir um
espaço potencial para dialogar, acessar a emoção e o pensar, o que de fato
aconteceu. Os alunos e a professora contaram a história do seu nome e na
esteira revelaram fragmentos da sua história de vida, elementos importantes
para a seleção pertinente do conteúdo programático. Dar voz ao aluno e
utilizar-se de elementos da sua realidade para planejar o conteúdo
programático e as atividades é um ato de afeto, pois a sua realidade está
sendo considerada e contemplada na transmissão do conhecimento
sistematizado.
A abordagem do nome próprio no primeiro contato não foi por acaso,
pois como afirma Garcia:
56
“O nome próprio possui um estatuto particular na língua, o de ser
puro significante caracterizado pela afinidade do nome próprio com a
sua marca (...)”. (GARCIA, 1991, p. 192).
O nome próprio identifica o indivíduo desde o seu nascimento, é a sua
marca inalienável no mundo e está repleto de historicidade. Aproveitando esta
riqueza que o nome representa, foi apresentado o alfabeto móvel, para que o
sujeito, pelo toque das suas mãos, percebesse a estrutura de cada letra, as
sua semelhanças, diferenças, e escrevesse seu nome e o dos colegas. Nesta
atividade, Raimundo exterioriza:
A letra M e W são as mesmas, professora? (...) Ah tem diferença
sim, a M é mais aberta e o W é mais fechado.
A letra M é diferente da letra N porque o M tem mais perna que o N.
A letra d é diferente da b, a barriga de uma é prum lado, a de outra é
pro outro.
Por que o uso do alfabeto móvel? Quem nos responde primeiro é
Cazade & Compagnon:
“Não é possível ignorar esse simbolismo do alfabeto que se expressa
na anatomia das letras e que, não por acaso, é similar à do corpo (...).
(CAZADE & COMPAGNON, 1987, p. 173-182).
Acredito que a primeira resposta esteja aí! Muitas letras do alfabeto são
semelhantes às partes do corpo humano, o que provoca uma aproximação
legítima, pra não dizer uma fusão entre letra e corpo. Observei que essa
aproximação de ambos afeta o educando de uma forma tão agradável e
significativa que o convida a não só escrever o próprio nome, mas escrever
57
outras palavras. Afetado por esta descoberta, ele percebe que as palavras, o
pensamento e o sentimento se materializam no alfabeto móvel e no mundo em
que vive. Nessa atividade fica clara a conexão do cognitivo, afetivo, motor e a
pessoa.
Mahoney, ao responder à pergunta: O que o conjunto cognitivo oferece
para a constituição da pessoa? Também oferece elementos para justificar seu
uso:
“Oferece um conjunto de funções responsáveis pela aquisição, pela
transformação e pela manutenção do conhecimento por meio de imagens,
noções, ideias e representações. Transforma em conhecimento a mistura
combinada de coisas e ação, que constituem a experiência concreta. O
concreto, a experiência bruta, é indispensável para a elaboração do
conhecimento”. (MAHONEY, 2010, p. 18).
A segunda resposta está contemplada pela autora, então constatei que
apesar de ser adulto, Raimundo precisou experienciar as letras e a construção
de palavras no concreto, pois sabemos que o seu cotidiano profissional, social
e pessoal está calcado no concreto; sendo assim, na escola, não poderia
acontecer diferente, pois cabe a ela como espaço legítimo de aprendizagem
contemplar a realidade do aluno, as suas dificuldades e o seu conhecimento
acumulado. Observei que o contato constante do educando com o alfabeto
móvel, com a palavra geradora e com o seu conhecimento prévio possibilitaram
que o educando fosse vendo, escrevendo e lendo seu mundo. Nessa relação
dinâmica de aprendizagem, os conjuntos funcionais se inter-relacionam.
Nesta mediação lúdica do alfabeto, da contação de história e do diálogo
foram surgindo outras palavras geradoras, que foram sendo trabalhadas,
58
possibilitando a Raimundo se apropriar e exteriorizar os seus conhecimentos
da leitura e escrita. Para ilustrar este momento, vou traçar um paralelo do
personagem João, 7 (sete) anos, em processo de alfabetização (da história O
Menino que Aprendeu a Ver (ROCHA, 1998, p. 28, 29, 31)) e Raimundo, de 55
(cinquenta e cinco) anos, também em processo de alfabetização. Ambos,
embora com idade e vivendo fases diferentes da vida, estão vivenciando uma
situação de aprendizagem muito semelhante, como ilustra o trecho abaixo:
(...) “Quando João chegou em casa foi logo falar com o pai:
- Papai, o que é que está acontecendo? Cada vez que eu vou pra escola
pintam nas placas, nos livros, nos pacotes, nas paredes, as letras que estou
aprendendo.
O pai de João explicou:
- É que você está aprendendo a ver, João.
- Mas eu já sei ver, papai, desde que eu era pequenino.
- Não, meu filho, você agora está aprendendo a ver o que você está
aprendendo a ler. Entendeu?
Joãozinho coçou a cabeça:
- Não entendi nada...” (...)
“(...) João saía da escola e se punha a procurar.
E assim João viu surgir nas placas e nos postes, no ônibus e nos postes,
tudo que ele aprendia. (...)”.
Raimundo, assim como João, foi afetado pela beleza do mundo das
letras que impregna o mundo da vida. As letras “unidas” se transformam em
palavras com significado e nos transmitem uma informação. Ele começa a ler
59
de uma forma sistematizada o que já via no seu dia a dia, como nos mostram
os trechos abaixo:
“Não vejo um poste que não leio!
As pessoas falam: o que você tá vendo aí?
Eu tô vendo? Eu tô é lendo!”
“Fui comprar frutas com meu filho no Ceasa e li as placas dos
carros, tinha Araraquara, Sorocaba, Rio de Conta, Salvador – Salvador
começa com S e termina com O. O nome mais bonito que achei foi
Araraquara, tem muito R”.
Não é por acaso que o sujeito percebeu e reconheceu as letras no seu
cotidiano. Na sala de aula, trabalhando o alfabeto, foi sugerido ao aluno que
observasse as placas de rua por onde costumava passar, as embalagens de
produtos que consumia, os jornais de propaganda e outros, o nome do ônibus
que utilizava e isso de fato ocorreu. O educador deve oferecer os instrumentos
para que o aluno se aproprie e estes devem ser aplicados na sua realidade. O
educando precisa vivenciar concretamente o que aprendeu na escola, e nada é
tão concreto como a realidade.
A realidade é um referencial legítimo para que os conhecimentos
apreendidos pelo aluno vão adquirindo visibilidade e sentido. Nas palavras de
Mahoney:
“Cabe ao ensino oferecer pontos de referência, pré-requisitos para que
a aprendizagem se concretize na direção de conceitos cada vez mais
diferenciados e abstratos”. (MAHONEY, 2010, p. 20).
60
O espaço escolar é destinado ao aprendizado sistematizado da leitura e
escrita, mas é na interação social que esses conhecimentos vão se revelando,
se abstraindo e se confirmando para o educando, principalmente para o jovem
e adulto.
Esta fala explicita a manifestação do ato motor no aluno.
“Tô em tempo de quebrar o pescoço dentro do carro de tanto que
tô lendo placa, tava passando um ônibus Perus. Perus começa com P, né
professora? (o filho dirige o caminhão)
A fala “quebrar o pescoço” evidenciou que o ato motor possibilitou a
expressão da emoção e a exteriorização da cognição que se objetivou na
leitura da placa. Os conjuntos funcionais se inter-relacionaram, possibilitando
ao sujeito acessar o seu mundo interno e externo, sendo assim:
“(...) Henri Wallon considera que o movimento corporal humano não é
apenas deslocamento voluntário do corpo ou de partes do corpo no tempo
e espaço, mas é uma atividade de relação da pessoa consigo mesma, com
os outros e com o meio, na qual são construídos e expressos
conhecimentos e valores”. (LIMONGELLI, 2010, p. 59).
A ânsia de ler o mundo é um agradável convite para que Raimundo se
relacione com o seu conhecimento adquirido, com sua realidade e com o outro.
É nessa relação dinâmica que a trama do conhecimento se entrelaça com a
trama da vida, ambos vão se completando se transformando e se renovando.
Podemos perceber que o educando, no espaço da sala de aula, pede para que
o conhecimento construído neste espaço e “encontrado” no mundo seja
confirmado pela escola e pela professora.
61
“A presença do outro humano nesse processo de aprendizagem é
primordial e indispensável. A atração que a criança sente pelas pessoas
que a rodeiam é uma das mais precoces e das mais poderosas”.
(WALLON, 1995, p. 161).
Não é só a criança que precisa do outro para aprender, mas o adulto,
embora tenha uma “consciência” mais clara de sua identidade, de sua
realidade, de seus valores, de suas possibilidades e de seus limites precisa
que seu conhecimento seja legitimado, isso mostra a credibilidade que o aluno
deposita em ambos.
Na roça, Raimundo domava animais e atualmente ele está domando as
letras com tanta propriedade que se dispõe a ler para o outro, como
verificamos no trecho abaixo:
“Tava no açougue e li coxão mole, aí chegou uma senhora bem
mais velha, perguntou; tem patinho? Eu olhei na placa e li patinho, e falei:
tem patinho também! Isso é bom demais”.
“É no entrelaçamento com o motor e o cognitivo que o afetivo propicia
a constituição de valores, interesses, necessidades, motivação que
dirigirão escolhas, decisões ao longo da vida”. (MAHONEY, 2010, p. 18).
Raimundo se utiliza do seu conhecimento de leitura e se relaciona com
propriedade com o mundo. Ele vai até o açougue e localiza, pela leitura da
placa, a carne que quer comprar e, ainda por meio da leitura, responde à
pergunta da senhora: tem patinho? Tem patinho também! Ele é despertado
pelo prazer de ler para si e ler para o outro, ou seja, de posse do conhecimento
da leitura, decodifica para o outro parte do universo letrado que até há pouco
62
tempo lhe era estranho . Raimundo, agora, se assume como um leitor letrado e
autônomo.
Essa autonomia é estendida para a leitura e assinatura de documentos e
escolha de sabores, como mostram as falas abaixo:
“Antes, quando eu ia assinar um cheque dava uma suadeira, agora
de uns dias pra cá eu tô mais concentrado, eu assino”.
“Quando eu fui comprar mercadoria no Ceasa eu li na caixa: Fruta
Reginaldo”.
“É bom quando você lê: 3 caixas de morango”
“Tem banheiro juntinho de homem e mulher, se você não sabe ler
você se ferra todinho, pode entrar em banheiro errado”.
“Tô ficando xarope, tudo que eu pego no mercado eu olho o nome e
a data de validade, quando você vê oferta, você tem que ficar esperto com
a data de validade, antes eu não olhava, agora eu olho, tô lendo né!
“Quando eu ia comprar bolo no mercado eu não lia, agora eu leio:
bolo de fubá e sei o sabor que estou levando”.
Raimundo vai paulatinamente dominando e fazendo uso saborosamente
da técnica de leitura e escrita nas suas relações de trabalho e pessoais, esse
movimento nos lembra Soares (2013):
“(...) dos indivíduos já se requer não apenas que dominem a
tecnologia do ler e do escrever, mas que saibam fazer uso dela,
incorporando-a a seu viver, transformando-se assim seu “estado” ou
condição, como consequência do domínio dessa tecnologia”. (Soares,
2013, p. 29).
63
A humanidade vive na era tecnológica. O uso da tecnologia está
presente em quase todos os lugares do mundo. Sendo assim, o indivíduo
analfabeto é aquele que mesmo alfabetizado não sabe fazer uso dessa técnica
nas suas relações, está praticamente “excluído” socialmente. É papel da escola
e tão somente da escola promover uma alfabetização significativa que facilitará
a inserção social do indivíduo. Nas palavras de Leite:
“a função da escrita se concretiza por seus usos sociais, ou seja, o que dá
sentido à alfabetização é a possibilidade de os indivíduos envolverem-se
com práticas sociais por meio da escrita, reconhecendo que o mero
domínio do código não garante o envolvimento com essa prática”. (LEITE
apud LEITE, 2013, p. 35).
Para o educando se envolver com as práticas sociais de leitura e escrita
é fundamental que ele perceba que as suas dificuldades e o seu conhecimento
prévio sejam contemplados no conteúdo programático. É de igual importância
que a mediação entre aluno, conteúdo e professor seja permeada por uma
prática afetivamente positiva, ou seja, respeitar o ritmo do aluno, as suas
limitações biológicas, se houver e as suas dificuldades em relação ao tempo e
a permanência na escola, assim como as dificuldades na realização de tarefas
são imprescindíveis para uma aprendizagem satisfatória. Esta dinâmica vai
ampliando seu conhecimento, aumentando sua autoestima e despertando-lhe
sensações de tonalidades agradáveis, convidando-o a buscar outras formas de
leitura na vida e na escola. Em nosso caso, esta busca pode ser confirmada na
fala de Raimundo:
“Hoje de manhã sentei no banco da praça, peguei o jornal e li
governo do Estado, ai eu perguntei pro meu amigo: tá certo? Ele
respondeu: aí véio, tá aprendendo”! [sorriu]
64
E, também, no diálogo travado com a professora:
Após Raimundo ler a poesia, Ipê amarelo, construída pelo grupo – sala:
Raimundo: Aquele livro lá em cima tô com sede!
Professora: O senhor falou aquele livro lá em cima? Em cima de onde?
Raimundo: Aquela sala lá em cima cheia de livros que de vez em
quando a gente vai.
Professora: Ah, a sala de leitura!
Raimundo: É isso mesmo! É pra nois lê eles se Deus quiser!
Professora: Vocês estão gostando das poesias?
Raimundo: Pra mim tá dando vida, tá clareando, porque nois tá
lendo. Lá fora se tiver poesia a gente vai saber!
Leite (2013), em seus estudos com esta população afirma:
“(...) o trabalho pedagógico deve utilizar uma estratégia que possibilite,
ao aluno de EJA, ampliar suas habilidades com as práticas de leitura e de
escrita; tal processo deve permitir que tenha condições de usufruir melhor
das possibilidades sociais e culturais que a escrita permite. Neste sentido,
ao desenvolver um trabalho a partir das demandas iniciais apresentadas
pelos alunos e de forma afetivamente positiva, criam-se as condições para
que novas demandas sejam apresentadas pelos professores nas etapas
posteriores do trabalho pedagógico. Assim, muitos jovens e adultos
procuraram a EJA motivados, inicialmente, para realizar, com sucesso, o
exame de habilitação para motorista, mas acabaram descobrindo a
importância da leitura de jornal ou das obras da nossa literatura (...)”.
(LEITE, 2013, p. 53).
Raimundo não precisou esperar a etapa seguinte para se aventurar na
leitura de ler jornal e livro. De posse dos primeiros aprendizados da leitura e
65
escrita já leu a manchete de jornal e pegou emprestado um livro na sala de
leitura.
Esse desempenho me leva a pensar o quanto o conteúdo programático
e a mediação afetiva contribuíram para esta evolução. A busca pela palavra
geradora carregada de sentido existencial e emocional, norteando a construção
de versos poéticos, a contação de histórias, as atividades desenvolvidas
vinculadas aos conteúdos contextualizados em sala de aula formam um leque
de atividades que, se forem afetivamente e adequadamente desenvolvidas,
desencadearão o sucesso na aprendizagem e a formação de um aluno leitor.
É importante frisar o valor da literatura na aprendizagem das séries
iniciais, mesmo com jovens e adultos, e acredito que principalmente com esse
segmento, pois muitos deles não tiveram quem lhes contasse uma história ou
declamasse uma poesia ou cantasse uma cantiga. É resgatando a criança
interior que se desperta o homem cidadão.
“Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a estória.
A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras:
quando alguém lê e a escuta (...) com prazer. “Erotizada” – sim erotizada!
– pelas delícias das leituras ouvidas, a criança se volta para aqueles sinais
misteriosos chamados de letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los
porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no
livro”! (ALVES, 2002, p. 41).
Raimundo ouvindo prazerosamente histórias, poesias e contando os
seus “causos”, lendo a poesia construída por ele e pelo grupo, reconheceu-se
sujeito da sua aprendizagem, capaz de ler o que ele produziu e ler outros livros
e jornais. Sentindo-se um sujeito leitor, encontrou a chave para abrir as
66
inúmeras portas da leitura, da escrita e da literatura que o levarão a se
conhecer interiormente, conhecer a sua realidade, interagir com o meio social e
conhecer outros mundos imaginários e reais. Ele está a caminho para “saciar”
a sua sede de ler e escrever! Convicto de que se apropriou do código da
leitura, ele afirma:
“Tô lendo mais que moeda de um centavo”.
“Virei o bicho, agora tô lendo tudo”.
“Papagaio véio não aprende a falar, mas aprende a voar, eu tô
voando”.
Raimundo apreendeu as letras e está em estado de letramento.
Relembrando a definição de letramento por Soares:
“Letramento: Estado ou condição de quem não apenas sabe ler e
escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita
cultiva = dedica-se à atividade de leitura e escrita exerce = responde às
demandas sociais de leitura e escrita”. (SOARES, 2012, p. 47).
Raimundo interioriza as letras, cria asas e começa a voar. Ele conquista
um novo lugar no mundo no seu mais amplo sentido (um mundo letrado, ele
como sujeito e cidadão). Essa conquista foi fruto de uma prática permeada pela
afetividade, promovida pela escola e pela professora. Esta considerou o seu
potencial de aprendiz, o seu conhecimento prévio e construiu uma ponte entre
escola, conteúdo programático e o seu cotidiano, respeitando o seu ritmo e as
suas dificuldades. Nas palavras de Alves:
(...) “Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que
elas amam são os pássaros em voo. Existem para dar aos pássaros
coragem para voar. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o
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voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode
ser encorajado” (...) (ALVES, 2011).
O ser humano nasce com potencial para aprender e cabe à escola,
como espaço legítimo para a aprendizagem da leitura e da escrita,
desempenhar esse papel em consonância com a realidade do educando.
“A escola de Wallon não limita sua ação à instrução, mas considera o
aluno uma pessoa em processo de desenvolvimento, e reconhece que seu
papel repousa no conhecimento desse aluno, de suas possibilidades e
necessidades; reconhece também que o saber escolar não pode se isolar
do meio físico e social, mas sim nutrir-se das possibilidades que esse meio
oferece”. (ALMEIDA, 2010, p. 122).
É fundamental que a escola perceba o aluno como um ser em
desenvolvimento. Seu papel é transmitir os conhecimentos acumulados pela
humanidade e, na interação com o aluno e a realidade, produzir novos
conhecimentos. A identidade escolar vai se confirmando à medida que os
alunos vão potencializando os seus conhecimentos.
Podemos notar a importância dos diferentes papéis exercidos pela
escola, professor e aluno no processo de construção do conhecimento, em
nosso caso particularmente, na aprendizagem da leitura e escrita. Podemos
notar, enfim, que a ponte que o professor estabeleceu entre a escola, aluno,
conteúdo programático, mediados pela afetividade, foram imprescindíveis para
a construção do conhecimento do nosso Raimundo nesta pesquisa.
68
CAPÍTULO 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa iniciou-se quando me deparei com a população de jovens
e adultos analfabetos. Após percorrer alguns caminhos, infrutíferos, para
alfabetizá-los, encontrei na literatura, na afetividade, no diálogo e no lúdico o
tempero essencial para atingir satisfatoriamente a construção do
conhecimento.
Selecionei Raimundo, como sujeito desta pesquisa, com a finalidade de
acompanhar o seu processo de alfabetização e letramento e confirmar a
eficácia dos recursos utilizados nesse processo. Após ter anotado no meu
diário de bordo várias observações feitas por Raimundo, antes, durante e
depois das atividades realizadas em sala de aula, selecionei alguns registros
que considerei pertinentes para melhor compreensão do objetivo desta
pesquisa. Uma entrevista com a finalidade de conhecer sua história de vida,
ampliou a compreensão dos motivos que o levaram a iniciar o seu processo de
escolarização aos 55 anos de idade, bem como os sentimentos vivenciados
tanto para a procura da escola como para permanecer nela.
Com a “finalização” da pesquisa vou relatar, brevemente, as suas
contribuições para a prática profissional e acadêmica.
A contribuição para a prática educacional é o recurso da literatura para
mediar a relação de ensino e aprendizagem entre educador e educando. Essa
69
foi uma escolha afetiva por que as histórias me afetam de uma forma muito
positiva e julguei que o mesmo poderia acontecer não só com crianças, mas
com educandos adultos. A história é tão antiga quanto o homem, é atemporal,
lúdica, é significativa e expõe as condições existenciais humanas. Portanto,
cria um clima intimista, afetando o educando e educador, propiciando um
espaço para o diálogo entre ambos. Esse diálogo é um campo fértil para o
educador colher informações pertinentes, que poderão nortear os conteúdos
programáticos e propiciar um aprendizado significativo em sala de aula,
evitando a evasão escolar.
Muitos outros recursos poderiam ser utilizados para integração cognitiva
e afetiva, além da literatura, como o desenho, a música, ou seja, a arte em
geral.
A contribuição desta pesquisa para área acadêmica é a constatação da
possibilidade de se produzir pesquisa na área de alfabetização e letramento
com o recorte da afetividade, o que é extremamente importante, uma vez que
as taxas de analfabetismo de crianças, jovens e adultos são expressivas no
Brasil.
Para realizar esta pesquisa foi necessário construir um olhar Walloniano.
Um novo olhar para a realidade - um olhar Walloniano não se constrói da noite
para o dia, é como uma fruta que vai amadurecendo ao sabor do tempo. Não
tive tanto tempo assim! Quando ficou decidido que seria Wallon meu referencial
teórico desta pesquisa, realizei muitas leituras, assisti às aulas, busquei na
minha prática profissional e na minha vida pessoal encontrar os princípios
70
Wallonianos, e de fato encontrei. Realizei a minha dissertação tendo como foco
a psicogenética de Wallon. Foi um caminho árduo, mas prazeroso, pois adquiri
muitos conhecimentos novos e aprimorei outros que ao longo da vida acumulei.
Finalizo esta pesquisa na certeza de que é um ponto de partida, com uma
frase:
Na incompletude do meu ser, Wallon ofereceu-me elementos para
compreender melhor a realidade, a prática profissional e a mim mesma!
71
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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76
APÊNDICE .
Quadro 1. Caracterização dos alunos da 1ª etapa de EJA
Nome do
aluno
Data/nasc UF Est. civil Emprego
Atual
Já frequentou a
escola?
Arnaldo 17/07/67 Bahia casado Feirante Não
Cleber 27/07/79 São Paulo casada Construtor Não
Daiane 29/03/92 Bahia casada Aux.
limpeza
Sim
Francisco 28/04/61 Ceará casado Comércio Sim
Ionice 20/03/68 Bahia separada Doméstica Não
Isaura 01/07/55 Bahia casada Doméstica Não
Ivoneide 06/03/79 Piauí casada A.Produção Sim
Isidorio O2/11/86 Bahia solteiro Pedreiro Sim/1 ano
Marcilene 24/10/77 Minas
Gerais
casada Do lar Sim quando
criança
M.
Edneide
28/04/84 Pernambuco separada A.
produção
Sim quando
criança
M. José 04/11/58 Bahia solteira Doméstica Não
Marizete 05/06/71 Bahia casada Do lar Sim quando
criança
Neilza 28/07/74 Bahia solteira Doméstica Não
Otávia 04/03/67 Bahia casada Cuidadora 6 m/SESI
Obs.: Dados obtidos diretamente com os alunos – 1º semestre de 2014.
77
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84
ANEXOS
ANEXO 1. Relatos de Raimundo, registrados no diário de bordo da
professora.
A letra M e W são as mesmas professora? (...) Ah tem diferença sim a M é
mais aberta e o W é mais fechado.
A letra M é diferente da letra N porque o M tem mais perna que o N
A letra d é diferente da b, a barriga de uma é prum lado a de outra é pro
outro.
“Não vejo um poste que não leio!
As pessoas falam: o que você tá vendo aí?
Eu tô vendo?? Eu tô é lendo!”
“Fui comprar frutas com meu filho no Ceasa e li as placas dos carros,
tinha Araraquara, Sorocaba, Rio de Conta, Salvador – Salvador começa
com S e termina com O. O nome mais bonito que achei foi Araraquara,
tem muito R”.
“Tô em tempo de quebrar o pescoço dentro do carro de tanto que tô
lendo placa, tava passando um ônibus Perus. Perus começa com P, né
professora”? (o filho dirige o caminhão)
85
“Tava no açougue e li coxão mole, aí chegou uma senhora bem mais
velha perguntou; tem patinho? Eu olhei na placa e li patinho, e falei: tem
patinho também! Isso é bom demais”.
“Antes quando eu ia assinar um cheque dava uma suadeira, agora de uns
dias pra cá eu tô mais concentrado eu assino”.
“Quando eu fui compra mercadoria no Ceasa eu li na caixa: Fruta
Reginaldo”.
“É bom quando você lê: 3 caixas de morango”
“Tem banheiro juntinho de homem e mulher se você não sabe ler você se
ferra todinho, pode entrar em banheiro errado”.
“Tô ficando xarope tudo que eu pego no mercado eu olho o nome e a data
de validade, quando você vê oferta você tem que ficar esperto com a data
de validade antes eu não olhava agora eu olho tô lendo né!
“Quando eu ia comprar bolo no mercado eu não lia, agora eu leio: bolo de
fubá e sei o sabor que estou levando”.
“Hoje de manhã sentei no banco da praça, peguei o jornal e li governo do
Estado ai eu perguntei pro meu amigo: tá certo? Ele respondeu: aí veio tá
aprendendo”! [sorriu]
Dialogo de R com a professora:
“Após Raimundo ler a poesia, Ipê amarelo, construída pelo grupo sala:
Raimundo fala: Aquele livro lá em cima tô com sede!
86
Professora: O senhor falou aquele livro lá em cima? Em cima de onde?
Raimundo: Aquela sala lá em cima cheia de livros que de vez em quando
a gente vai.
Professora: Ah a sala de leitura!
Raimundo: É isso mesmo! É pra nois lê eles se Deus quiser!
Professora: Vocês estão gostando das poesias?
Raimundo: Pra mim tá dando vida tá clareando porque nois tá lendo. Lá
fora se tiver poesia à gente vai saber!
“Tô lendo mais que moeda de um centavo”.
“Virei o bicho, agora tô lendo tudo”.
“Papagaio veio não aprende a falar, mas aprende a voar eu tô
voando.
87
ANEXO 2. “Causo” relatado pelo Raimundo em sala de aula.
Após a contação e contextualização da história do “Bicos Quebrados”
(Ingpen, 2007) na sala de reforço, Raimundo narra um “causo” que vou
relatar na íntegra.
A senhora alembra do governo Collor de Mello. Foi nessa época que eu
e mais uma cambada de gente ia pro Paraguai comprar coisa e vender aqui.
Eu tinha os meus clientes. Uma cliente me encomendou dois papagaios.
Aí eu peguei o ônibus de excursão e fui pro Paraguai. Chegando lá eu comprei
dois papagaios por 20 dólares cada um. Chegando aqui eu ia vender por 100
dólares, ia ganhar um dinheirão!
Na volta o ônibus veio cheio de muamba. Chegando na fronteira, a
polícia tava lá! Aí o motorista avisou: - a polícia!
Aí eu falei: - Ai minha Nossa Senhora, o que é que eu vou fazer com
estes filhotinhos de papagaio? Eu olhei pra trás e tinha uma japonesa no maior
ronco, no último banco. Eu catei a gaiolinha e pus lá perto dela.
O policial parou o ônibus e fez todo mundo descer. Os caras tinham uns
baita cachorrão. Os cachorrões subiram e foram farejando direto nos
papagaios, lá no fundinho do ônibus. Os caras cataram as gaiolas e vieram pra
fora do ônibus. Eles foram perguntando pra cada um de quem era o papagaio.
Ninguém respondia. Eles perguntaram três vezes, na quarta eles falaram: - se
não aparecer o dono do papagaio, vão todos pra delegacia, aí vai ficar pior. Eu
assustei. Aí eu pensei, o jeito é me entregar. Aí eu falei: - O papagaio é meu. O
guarda disse: - O senhor vai ter que me acompanhar até a delegacia. Na
delegacia o delegado me perguntou: - Você não sabe que é proibido o tráfico
88
de animais silvestres? Aí eu falei: - eu não sei disso não. Eu cheguei do norte
não faz muito tempo (tive que mentir né professora!). E lá isso é normal. A
gente vai pra mata, pega os filhotinhos de papagaio e vende na cidade e não
acontece nada. Aí o delegado disse: - Já que o senhor disse a verdade, eu vou
liberar, mas os papagaios ficam! Aí eu fui embora, nesta viagem eu tomei
prejuízo.
Hoje eu não faço mais isso não. Hoje eu monto minha barraquinha na
praça e ponho comida pros passarinhos. Aí na praça vem tudo. Passarinho,
papagaio, maritaca, vem até tucano!
89
ANEXO 3. Termo de consentimento livre e esclarecido
O objetivo da presente pesquisa é a identificação dos motivos que levam
alunos a buscar a escola na idade madura, bem como sentimentos e emoções
vivenciados em sala de aula. Sua participação consistirá em dar uma
entrevista. Entretanto, de antemão lhe é assegurado total sigilo sobre suas
respostas. Elas serão analisadas e eventualmente o produto final poderá ser
publicado ou divulgado em eventos, mas essa divulgação assegurará a
omissão de qualquer elemento que permita a sua identificação.
Sua participação voluntária poderá ser interrompida a qualquer
momento, sem que isso lhe cause qualquer ônus ou transtorno de qualquer
espécie.
___________________________________
Pesquisadora: Léa Nunes de Assis
Comitê de Ética em pesquisa da PUC 3670-8466
Entendi todos os aspectos envolvidos na minha participação na pesquisa
e concordo em fazê-lo de forma voluntária.
Nome do Participante: ____________________________________________
Assinatura: ______________________________