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Page 1: Leituras de Sociologia 1 - Comte e Durkheim

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICA

LEITURAS DE SOCIOLOGIA

Mossoró – 1999

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AUGUSTE COMTE: O FUNDADOR DA SOCIOLOGIA ÉMILE DURKHEIM E O ESTUDO DOS FATOS SOCIAIS

Maria Cristina Rocha Barreto

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UNIVERSIDADE REGIONAL DO RIO GRANDE DO NORTE FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

LEITURAS DE SOCIOLOGIA

COMISSÃO EDITORIAL: Edmilson Lopes Júnior Maria Cristina Rocha Barreto

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE CAMPUS UNIVERSITÁRIO CENTRAL

BR 110 • Km 48 • CEP:59.600-900 • MOSSORÓ • RN FONE: (084) 3315.2195

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BARRETO, Maria Cristina R. Auguste Comte: o fundador da Sociologia. Émile Durkheim e o estudo dos fatos sociais. Mossoró, DCS/URRN, Leituras de Sociologia 1, 1999, 30 pp.

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Sumário

APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................1

1. AUGUSTE COMTE: O FUNDADOR DA SOCIOLOGIA ............................................................................3

1.1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................................................3 1.2 BREVES PALAVRAS SOBRE... .............................................................................................................................3 1.3 VOLTANDO A COMTE........................................................................................................................................4 1.3.1 Três etapas do pensamento comtiano.....................................................................................................4 1.3.2 A sociedade industrial ............................................................................................................................6 1.3.3 A Sociologia – ciência da humanidade...................................................................................................8 1.3.4 Da filosofia à religião.............................................................................................................................9

1.4 CLASSIFICAÇÃO DAS CIÊNCIAS .......................................................................................................................10 1.5 CONCLUSÃO....................................................................................................................................................11

2. ÉMILE DURKHEIM E O ESTUDO DOS FATOS SOCIAIS......................................................................12

2.1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................................12 2.2 REGRAS PARA A EXPLICAÇÃO DOS FATOS SOCIAIS ..........................................................................................13 2.2.1 Principais obras ...................................................................................................................................13 2.2.2 Fatos Sociais Normais e Patológicos ...................................................................................................14

2.3 AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO ...........................................................................................................16 2.4 DA DIVISÃO DO TRABALHO SOCIAL ...............................................................................................................17 2.4.1 Aprofundando um pouco mais... ...........................................................................................................20

2.5 O SUICÍDIO ......................................................................................................................................................24 2.6 AS FORMAS ELEMENTARES DA VIDA RELIGIOSA..............................................................................................27

3. BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................................................................30

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Apresentação

Edmilson Lopes Júnior1

A introdução ao universo da produção dos autores considerados clássicos nas ciências sociais foi sempre algo muito problemático no nosso país. O menosprezo em relação à produção de material didático, acessível aos nossos alunos de cursos de graduação, foi uma marca da cultura acadêmica nas ciências sociais. O elitismo acadêmico confundia "socialização de informações, métodos e teorias" com a sua simplificação. Esse preconceito terminou por produzir aquela realidade que esperava combater: a produção de material didático, desdenhada pelos cientistas sociais melhores situados no campo sociológico brasileiro, tornou-se o terreno da simplificação, da improvisação e dos empobrecidos manuais.

Na atualidade, a consolidação das ciências sociais no Brasil passa pela revisão e superação dessa postura preconceituosa. A produção de materiais que facilitem o contato dos nossos alunos com o universo da produção teórica dos clássicos, especialmente dos "pais fundadores" das ciências sociais, é uma tarefa estratégica para a consolidação e profissionalização das ciências sociais.

Os textos reunidos na presente publicação tem como objetivo introduzir o aluno nas noções, conceitos e pressupostos das obras sociológicas de August Comte e Émile Durkheim. Informando, sem esquematismo ou simplismo, os textos aqui apresentados apresentam a contribuição dos fundadores da sociologia, levando em conta o contexto histórico de suas obras.

Acredito que o lançamento desta publicação, com os textos escritos pela Profª Maria Cristina Rocha Barreto, apontam para um momento novo no curso de Ciências Sociais na URRN. Estamos iniciando uma ruptura com os modelos tradicionais de docência nas ciências sociais que, não raro, ritualizam o contato dos alunos com os autores clássicos. Contato esse marcado, de um lado, pela leitura desconexa de textos clássicos e, de outro, pela incorporação acrítica de manuais de duvidosa consistência teórica. Esta publicação aponta para uma postura nova: a atividade de sala de aula como um momento constitutivo de professores e alunos como sujeitos do processo de aprendizagem.

Mossoró, 29 de Julho de 1999

1 Edmilson Lopes Júnior é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFRN.

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MARIA CRISTINA ROCHA BARRETO

AUGUSTE COMTE: FUNDADOR DA SOCIOLOGIA ÉMILE DURKHEIM E O ESTUDO DOS FATOS SOCIAIS

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1. Auguste Comte: o fundador da Sociologia

1.1 Introdução

Auguste Comte nasceu na cidade de Montpellier (França), em 1798. Aos 16 anos ingressou na Escola Politécnica de Paris, um dos frutos da Revolução Francesa e do recente desenvolvimento científico e tecnológico. Aí recebeu influência de vários ramos da ciência como a matemática, a física, a astronomia e também de alguns ideólogos franceses, economistas, filósofos e historiadores.

Esta época, final do século XVIII e início do XIX, se caracterizava por uma revolta contra as autoridades, principalmente as autoridades clericais. Os ideólogos franceses promovem uma intensa atividade intelectual, cujo conhecimento se alicerça sobre novas bases, isto é, pretendem realizar uma ciência das idéias para substituir a metafísica e a psicologia. A “ideologia”, tal como é chamada a ciência das idéias, pretendia uma aproximação com os métodos utilizados pelas ciências naturais, com o fim de “repensar a política a partir do conhecimento”

“Sob muitos aspectos foram eles os verdadeiros fundadores das ciências humanas, pelo menos na França. Pois, ao situarem o homem no centro de suas preocupações científicas, os ideólogos abriram um caminho original, para a pesquisa, que seria seguida pelos inventores da ‘fisiologia social’, que, em seus inícios, foi concebida e apresentada como uma ciência eminentemente moral.” (Cuin, 1994:26).

Em 1816, depois da derrota de Napoleão em Waterloo, uma onda reacionária se apoderou da Europa, resultando no fechamento temporário da Escola Politécnica. Porém, já antes de deixar a Escola, Comte havia se tornado secretário de Saint-Simon, do qual receberia grande influência, apesar de suas posteriores divergências. Este, um nobre cuja árvore genealógica remontava às Cruzadas, aos 40 anos rompeu com suas tradições para abraçar uma nova carreira “físico política”.

1.2 Breves palavras sobre...

SAINT-SIMON acreditava que o Antigo Regime não tinha solução e que era preciso lutar para construir uma nova sociedade. Era preciso realizar uma crítica forte à ordem existente e refletir sobre essa nova sociedade a construir. Foi bastante perspicaz, ao intuir que as antigas formas sociais dariam lugar a uma crescente racionalidade econômica na sociedade industrial. No entanto, para ele estas transformações não iriam acontecer exclusivamente no âmbito econômico, mas também nos domínios do simbólico e do religioso. Saint-Simon dedicou sua vida à idealização da nova sociedade industrial, que transformaria pacificamente a natureza e garantiria a cada um a satisfação de suas necessidades espirituais e materiais. Essa visão otimista do sistema

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industrial vai ser cada vez mais ofuscada no fim de sua vida ao ver a crescente miséria dos operários e o fortalecimento do socialismo.

Sua obra é fundamental para se entender o surgimento do novo campo de estudo do social, principalmente por quatro motivos:

• À semelhança dos ideólogos, prega abertamente uma ciência do homem; • Afirma que a sociedade não é uma simples aglomeração de seres vivos, mas uma “máquina

organizada, cujas partes (...) contribuem de uma maneira diferente para o avanço do conjunto”;

• Ao sistematizar seu “pensamento sobre a ‘história da civilização’, reexamina os fenômenos sociais a partir da atividade de produção ou (...) da indústria;

• Acreditava que a passagem de um tipo de sociedade para outro se dava através da violência e pelo enfrentamento de classe antagônicas (Cuin, 1994:28-29).

1.3 Voltando a Comte

O centro da filosofia de Comte está na idéia de que a sociedade só pode ser reorganizada através de uma completa reforma intelectual do homem. Ao contrário de outros pensadores de sua época (Saint-Simon e Fourier – socialistas utópicos) que acreditavam que seria necessária também uma reforma das instituições, Comte achava que era preciso dar aos homens novos hábitos de pensar de acordo com o estado das ciências de seu tempo.

Seu pensamento está estruturado em três temas básicos:

• Uma filosofia da história para mostrar os motivos pelos quais uma maneira de pensar – O POSITIVISMO – deve imperar sobre os homens;

• Uma fundamentação e uma classificação das ciências, baseadas na filosofia positiva; • E uma sociologia, que determinando as estruturas e os processos de modificação da

sociedade, permitisse a reforma prática de suas instituições e do próprio homem. Devendo-se acrescentar a esse sistema a forma religiosa assumida pelo plano de renovação social.

1.3.1 Três etapas do pensamento comtiano

A filosofia da história pode ser sintetizada na lei dos três estados, segundo a qual todas as ciências e o espírito humano desenvolvem-se através de três fases distintas: a teológica, a metafísica e a positiva.

Na primeira etapa de seu pensamento reflete sobre a sociedade de seu tempo, como a maioria dos seus contemporâneos do século XIX. Segundo ele, um certo tipo de sociedade – a teológico-militar – está em vias de desaparecer para dar lugar a outra positiva e industrial.

A sociedade teológico-militar era sua definição para a sociedade feudal, cujo cimento era a fé transcendente, interpretada pela Igreja Católica. Esse modo de pensar era contemporâneo a atividade militar, de forma predominante, que dava as primeiras posições aos homens de guerra.

A nascente sociedade industrial e positiva substituiria a antiga sociedade teológico-militar. O pensamento científico viria substituir o antigo pensamento teológico, ou seja, no lugar dos

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sacerdotes e teólogos, ficariam os cientistas como categoria de base intelectual e moral da nova ordem social. Da mesma forma que os cientistas substituiriam os teólogos, os industriais (tomando-se essa categoria de modo amplo – empreendedores, diretores de fábrica, banqueiros etc.) assumiriam o lugar dos militares.

A partir do momento em que o homem passa a pensar cientificamente, deixa de lado também a atividade militar como a principal da comunidade (luta do homem contra o homem), para dar lugar à luta do homem contra a natureza através da exploração racional dos recursos naturais.

Aí está uma das principais discordâncias de Comte em relação à Saint-Simon. Ao contrário deste que afirma que a passagem de uma ordem social a outra só se dá através da violência e do enfrentamento, acha que para a reorganização de uma sociedade em crise é preciso uma síntese das ciências e a criação de uma política positiva. A explicação para a crise da sociedade moderna está na contradição histórica da ordem teológico-militar, em vias de desaparecer, e a ordem científica-industrial que nasce. Caberia então à sociologia compreender o devenir2 inevitável da história, para ajudar a realização da ordem fundamental.

Na segunda etapa amplia essa perspectiva. Leva em consideração a história da Europa como se ela fosse uma síntese da história de todo gênero humano; pressupõe que a ordem social para a qual sociedade européia tende, será necessariamente a ordem social válida para toda a espécie humana.

Nessa etapa desenvolve e confirma as duas leis essenciais: a lei dos três estados e a classificação das ciências. Segundo a lei dos três estados, o espírito humano teria passado por três fases sucessivas. Na primeira, o espírito humano explica os fenômenos atribuindo-os a seres ou forças comparáveis ao próprio homem. É a idade teológica. Na Segunda, invoca entidades abstratas como a natureza. É a idade metafísica. Na terceira, o homem observa os fenômenos e fixa relações entre eles num dado momento ou no curso do tempo. É a idade positiva.

Essa lei dos três estados só tem sentido se combinada com a classificação das ciências, nos revelando como a inteligência se tornou positiva nos vários domínios. Segundo Comte, a maneira de pensar positiva se impôs primeiramente na matemática, na física, na química e depois na biologia, em outras palavras, o pensamento positivo aparece primeiro nas disciplinas mais simples (sic) e mais tarde nas mais complexas.

O objetivo da combinação das leis dos três estados com a classificação das ciências é provar que a maneira de pensar que triunfou na matemática, na física, na astronomia, na química e na biologia, deve se impor também na política, levando a constituição de uma ciência positiva da sociedade – A SOCIOLOGIA.

A partir da biologia as ciências deixam de ser analíticas para serem sintéticas. Termos que têm, na linguagem de Comte, múltiplos significados.

As disciplinas analíticas são aquelas, como as ciências da natureza inorgânica, a física e a química, que estabelecem leis entre fenômenos isolados necessariamente. As ciências, como a

2 “Transformação incessante e permanente pela qual as coisas se constróem e se dissolvem noutras coisas; devir; vir-a-ser” (Aurélio).

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biologia, são sintéticas, pois não é possível explicar um órgão ou uma função sem considerar o ser vivo como um todo e é em relação a ele que o fato biológico se explica.

Essa preponderância do todo sobre as partes é transposta para a sociologia. Segundo ele, não é possível compreender um fenômeno social particular se este não estiver inserido no todo social e no devenir histórico. É preciso levar em conta todo o desenrolar da evolução histórica para entender um momento específico. Esse pressuposto impõe uma dificuldade metodológica, pois para se entender a evolução da nação francesa seria necessário refletir sobre a totalidade da história da espécie humana. Isto leva à idéia de que o objeto da sociologia é a história da espécie humana, considerada como uma unidade.

Cria-se então a sociologia que é uma ciência que admite a prioridade do todo sobre a parte, e da síntese sobre a análise, tendo por objeto a história da espécie humana. Comte supõe também que não há liberdade de consciência na sociologia, assim como não há na física e na astronomia. Os cientistas devem impor seu veredito aos ignorantes e aos amadores, o que se supõe que a sociologia possa determinar o que é, o que será e o que deve ser, de acordo com o que chama de realização da ordem humana e social.

Na terceira etapa de seu pensamento, justifica, por uma teoria da natureza humana e da natureza social, essa unidade da história humana. Justifica através de uma fundamentação filosófica, a noção de uma história única para a humanidade. Para isso é preciso que o homem tenha uma natureza própria, reconhecível e definível, em todos os tempos e todas as sociedades. Toda a sociedade deve se comportar de acordo com uma ordem essencial que se possa reconhecer através da diversidade das organizações sociais. Essas naturezas humana e social devem ser tais que possamos inferir delas as principais características do devenir histórico. Podemos dizer que a teoria da mudança social de Comte se baseia no pensamento de que “toda a história tende à realização da ordem fundamental, da ordem social (...) e à realização do que existe de melhor na natureza humana” (Aron, 1990:76).

A sociologia de Comte pretende resolver a crise do mundo moderno, isto é, fornecer o sistema de idéias científicas que presidirá a reorganização social. Comte deseja ao mesmo tempo ser cientista e reformador. Quer, através da descoberta de leis universais e fundamentais da evolução humana, descobrir o determinismo global, para que os homens possam utilizar de modo positivo.

A filosofia de Comte se baseia em 3 pressupostos:

� A sociedade industrial – a sociedade européia – é exemplar e se tornará universal; � O pensamento científico ou positivo é duplamente universal. No sentido de sua adoção por

todos os homens e no sentido de que será adotado em todas as disciplinas; � A história da humanidade é o desenvolvimento da natureza humana.

1.3.2 A sociedade industrial As idéias de Comte não eram originais, pelo contrário, ele as recolheu de seu próprio

tempo e são estas:

� O poder teológico era passado; � O pensamento científico dominaria, dali em diante, a inteligência do homem moderno; � O desaparecimento da estrutura feudal e da organização monárquica;

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� Os cientistas e industriais dominariam a ordem de nosso tempo.

Ele escolheu essas idéias dentre algumas que eram correntes na época, dentre as quais:

� Indústria baseada na organização científica do trabalho, com vistas ao rendimento máximo, graças ao que a humanidade desenvolve enormemente seus recursos;

� A produção industrial leva a concentração de trabalhadores nas fábricas e nas periferias das cidades, surgindo assim as massas operárias;

� A oposição latente ou aberta entre patrões e empregados; � Crises de superpopulação ao lado da miséria absoluta; � Liberalismo econômico prevalecia e pregava que a condição essencial do desenvolvimento da

riqueza é a busca do lucro, a concorrência e a intervenção cada vez menor do Estado.

Comte enfatiza as três primeiras idéias, porém, para ele, a oposição entre patrões e empregados devia-se a má organização da sociedade industrial, podendo ser reorganizada e corrigida por reformas. Critica tanto os liberais quanto os socialistas. Acusa os liberais de metafísicos, isto é, pensam de forma abstrata, apenas através de conceitos, o funcionamento do sistema. Esses economistas cometem também o erro de pensar os fenômenos econômicos separados do social.

Tem, no entanto, um ponto em comum com eles. Não existe oposição fundamental entre os patrões e empregados, pois o desenvolvimento da produção se ajusta aos interesses de todos. Comte acredita que a concentração de riqueza e dos meios de produção, não são contraditórios com a propriedade privada. Pelo contrário, defende a propriedade privada das riquezas concentradas. Esta contradição faz parte do desenvolvimento da ordem social e como esta melhora inevitavelmente – idéia de progresso –, a concentração não é necessariamente má, pois a civilização material só poderá se desenvolver se cada geração produzir mais do que necessita para a sobrevivência, transmitindo o excedente de riqueza para a geração seguinte e assim por diante.

Entretanto, Comte é um reformador que deseja transformar o sentido da propriedade atribuindo-lhe uma função social. Os patrícios (industriais, banqueiros etc.) não devem abusar de suas propriedades. Para exercer sua autoridade, os industriais devem obedecer a duas ordens: a ordem temporal (lugar que ocupam na hierarquia econômica) e a ordem espiritual, que é a dos méritos pessoais. Isso justificaria, para ele, a ascensão de alguém de classes inferiores que superassem em merecimento moral e pessoal, pelo devotamento à coletividade, seus superiores hierárquicos. Essa ordem espiritual não é transcendente, mas deste mundo, substituta da hierarquia temporal do poder, baseando-se nos méritos morais.

Os temas fundamentais de Comte são o trabalho livre, a aplicação da ciência à indústria, a predominância da organização, temas bem características da sociedade industrial. Foi desacreditado porque quis determinar, nos mínimos detalhes, a hierarquia temporal, chegando até o número de patrícios e a população de cada cidade.

Afirmou também que as guerras, na sociedade industrial, seriam anacrônicas. Elas teriam servido na sociedade teológico-militar para o aprendizado do trabalho e a formação de grandes

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Estados. Na nova sociedade não haveria mais por quê combater. Crença amplamente negada, principalmente no período de 1840 a 1945.

Comte não pretendia interpretar a sociedade industrial, mas sim a reforma do poder temporal pelo espiritual, que deveria ser exercido pelos cientistas e filósofos, que substituiriam os sacerdotes.

1.3.3 A Sociologia – ciência da humanidade Diz apoiar-se em três autores para introduzir alguns dos temas fundamentais do seu

pensamento sociológico: Montesquieu, Condorcet e Bossuet.

De Montesquieu absorveu o determinismo dos fenômenos sociais e do devenir das sociedades humanas. De Condorcet trouxe a noção de progresso, que pretendia descobrir no passado as fases pelas quais passou o espírito humano. Comte colhe desse pensador a idéia de que o progresso do espírito humano é o fundamento do devenir das sociedades humanas.

Através dessas duas idéias chega-se à concepção central de Comte: “os fenômenos sociais estão sujeitos a um determinismo rigoroso, que se apresenta sob a forma de um devenir inevitável das sociedades humanas, comandados pelos progressos do espírito humano” (grifo nosso) (Aron, 1990:87). Esse modo de ver o devenir histórico leva à visão de uma história única, em marcha para um estado definitivo do espírito humano e das sociedades humanas, semelhante ao providencialismo de Bossuet.

Comte é o sociólogo da unidade humana. Visa reduzir a diversidade das sociedades, no espaço e no tempo, a uma série fundamental, o devenir da espécie humana, e a um projeto único, o de chegar a um estado final do espírito humano. Em última instância, o desígnio da história é o progresso do espírito humano.

O motor do movimento histórico é a incoerência no modo de pensar de cada época, ou seja, Comte vê uma sociedade como caótica quando se justapõem modos de pensar contraditórios, e é então que o progresso do espírito humano vai eliminando essas contradições através do método POSITIVO. Em outras palavras, através da observação, da experimentação e da formulação de leis que têm validade universal (tanto em política, quanto na astronomia), o método positivo procura entender fenômenos que antes eram deixados por conta da teologia e da metafísica.

Procura entender a diversidade humana, justificando-a através de três fatores: a raça, o clima e a ação política. Atribuiu a cada raça uma predominância de certas características. De acordo com sua teoria, as diferentes partes da humanidade não evoluíram do mesmo modo porque, no ponto de partida, não tinham os mesmos dons.

Ele chama de clima o conjunto das condições naturais em que se encontra parte da humanidade, que sendo muito variados e gerando problemas diferentes que devem ser resolvidos por cada sociedade, explicam também essa diversidade humana.

Quanto a ação política, encontramos novamente o providencialismo. Embora não acredite que apenas um indivíduo possa modificar substancialmente o curso da história, pois é inevitável para um determinado fim, a aceleração ou não do processo também depende dele.

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À sociologia cabe descobrir a ordem geral da história, de forma a apressar o surgimento do positivismo e diminuir o seu custo. Essa nova ciência social seria o estudo das leis do desenvolvimento histórico e se fundamenta na observação e na comparação, utilizando, portanto, métodos semelhantes aos das outras ciências, principalmente a biologia.

A estática e a dinâmica são duas categorias centrais da sociedade de Comte.

A ESTÁTICA seria o estudo do que ele chama de consenso social. Uma sociedade é semelhante a um organismo vivo, desse modo é impossível estudar o funcionamento de um órgão sem situá-lo no conjunto do ser vivo, também é impossível estudar a política e o Estado sem situá-los no conjunto da sociedade, num dado momento. A estática seria, então, a análise anatômica da sociedade num dado momento e a análise dos elementos que determinam o consenso, isto é, que fazem do conjunto dos indivíduos ou famílias uma comunidade e da pluralidade das instituições uma unidade.

A DINÂMICA, em seu ponto de partida, é a descrição das etapas sucessivas percorridas pelas sociedades humanas. O devenir das sociedades humanas e o espírito humano são comandados por leis.

1.3.4 Da filosofia à religião Comte é um reformador social. Desvaloriza o econômico e o político, em favor da ciência

e da moral. A organização científica do trabalho é necessária, mas é relativamente fácil de realizar. Não é essa, segundo ele, a essência da reforma que acabará com a crise das sociedades modernas.

Quer transformar o modo de pensar dos homens, divulgar o pensamento positivista e estendê-lo ao domínio da sociedade, eliminando o que resta da sociedade feudal e teológica.

A síntese filosófica de suas idéias pode ser agrupada em torno de quatro idéias (Aron, 107-09):

1. A ciência é uma fonte de dogmas. Mesmo querendo eliminar os traços do espírito teológico, ele procura verdades definitivas, que não possam ser questionadas.

2. Para ele, o conteúdo da verdade científica é representados por leis, isto é, relações necessárias entre fenômenos ou fatos dominantes ou constantes. Sua ciência não busca explicações últimas, nem pretende atingir as causas. Ela se limita a constatar a ordem que existe no mundo, para assim Ter condições de explorar os recursos naturais e para pôr ordem em nosso próprio espírito.

3. Existe na natureza uma hierarquia, que vai dos fenômenos mais simples aos mais complexos, da natureza inorgânica à orgânica, dos seres vivos ao homem. O inferior condiciona o superior, mas não o determina.

4. As ciências que constituem a expressão e a realização do espírito positivo correm o sério risco de se dispersarem na análise. É preciso que ocorra uma síntese das ciências, tendo como centro ou princípio a própria sociologia, que é o nível mais alto de complexidade. Pois é ela o único princípio subjetivo de síntese, pois a reunião de conhecimentos e de métodos só tem sentido se se toma como ponto de referência a humanidade.

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“Para Comte, a sociologia é, portanto, a ciência do entendimento. O homem só pode entender o espírito humano se observar sua atividade e sua obra na sociedade através da história” (Aron, 1990:110).

1.4 Classificação das ciências

Comte procura, em seu Curso de Filosofia Positiva, estabelecer uma hierarquia e uma classificação das ciências. Segundo ele, até aquela ocasião não haveria uma classificação satisfatória das ciências, e esta tarefa só seria realizada se se empregasse o método positivo, ou seja, através da observação e do próprio estudo dos objetos a serem classificados e não de considerações apriorísticas (Comte, 1983:22).

Busca a base racional da ação do homem sobre a natureza, conhecendo as leis que governam os fenômenos e, consequentemente, prevê-los e modificá-los em nosso proveito. “Em resumo, ciência, daí previdência; previdência, daí ação: tal é a fórmula muito simples que exprime, duma maneira exata, a relação geral da ciência e da arte, tomando essas duas expressões em sua acepção total” (:23).

Comte afirma que o objetivo último da ciência não é servir à indústria, embora tenha contribuído significativamente para o seu desenvolvimento. Segundo ele, o homem tem a necessidade imperiosa de conhecer as leis dos fenômenos e dispor os fatos segundo uma ordem. A inteligência humana que se ocupa unicamente com investigações que tenham uma utilidade prática, encontra-se impedida em seu progresso, pois “as aplicações mais importantes derivam constantemente de teorias formadas com simples intenção científica, e que muitas vezes foram cultivadas durante vários séculos sem produzir resultado prático algum (:23).

Ele observa, na sociedade industrial, a criação de uma classe intermediária entre os cientistas e os diretores efetivos dos trabalhos produtivos: a classe dos engenheiros, que tem por finalidade organizar as relações entre a teoria e sua aplicação prática (:24).

Divide as ciências em dois gêneros que estudam fenômenos distintos.

• As ciências gerais e abstratas que visam a descoberta de leis que regem os diversos fenômenos e consideram os casos possíveis de ocorrer (:25);

• As ciências naturais que são as ciências concretas, particulares, descritivas e que são a aplicação dessas leis à história dos seres.

É sobre esse primeiro tipo de ciência (geral) que Comte fala em seu curso de filosofia

positiva. E é nesse esforço que ele afirma que as ciências podem ser expostas através de dois caminhos:

• o histórico � a exposição dos acontecimentos segue uma ordem cronológica, ordem esta segundo a qual o espírito humano os obteve. Esse forma se torna muitas vezes impraticável por existirem uma longa série de avanços e recuos e intermediários que obrigaram o espírito a percorrer

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• e o dogmático � o conhecimento é exposto como seria concebido por um único espírito conhecedor, cuidaria de refazer a ciência em seu conjunto. Em outras palavras, o modo dogmático foram um sistema que permita ser apresentada de forma lógica (:27-28).

1.5 Conclusão

Sem dúvida, hoje em dia Auguste Comte não tem mais a mesma importância que alcançou no século passado. Porém, por mais críticas que tenhamos ao método por ele desenvolvido – o positivista – não podemos deixar de reconhecer que ele deu o primeiro passo para o desenvolvimento da investigação empírica nas ciências humanas e posteriormente de uma ciência exclusivamente do social.

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2. Émile Durkheim e o estudo dos fatos sociais

2.1 Introdução

David Émile Durkheim nasceu em 15 de abril de 1858 na cidade de Epinal, França. Sua formação se dá primeiramente em filosofia e psicologia. Talvez, devido a suas ambições em tornar-se um rabino, como seu pai e seu avô. Posteriormente estudou na Alemanha antropologia e psicologia dos povos e, a partir daí, resolve dedicar-se às ciências sociais, começando a desenvolver seu projeto de tornar a sociologia em ciência autônoma. Criou pela primeira vez na história do ensino superior francês, na universidade de Bordéus, uma cadeira exclusivamente dedicada à sociologia.

Ele pretendia dar às ciências sociais (principalmente a antropologia e a sociologia ) um caráter de disciplinas rigorosamente objetivas e foi contra qualquer interpretação que transformasse a investigação social numa “dedução de fatos particulares a partir de leis supostamente universais” (Durkheim, 1983:VIII).

Para ele, a sociologia deveria se basear em uma teoria do fato social. Procurou desenvolver o projeto de uma ciência autônoma, com objeto claramente definido - os fatos sociais -, distinguindo-se das outras ciências, e que possa ser observado e explicado com um método científico - a observação e a experimentação indireta e o método comparativo. Com essas exigências formula duas regras com as quis nos habituamos a resumir seu pensamento: é preciso considerar os fatos sociais como coisas e sua característica principal é que eles exercem uma coerção sobre os indivíduos (Aron, 1990:336).

A tarefa da sociologia seria investigar as leis e as expressões precisas das relações existentes entre os diversos grupos sociais, e fenômenos tais como Estado, soberania, liberdade política etc., das quais fazemos apenas uma idéia e formular a questão cientificamente, afastando sistematicamente todas as noções previamente formadas a respeito desses fatos determinados e estudá-los do exterior, assim como nos fenômenos físicos.

Seu objetivismo, porém, não transforma o fato social em fato puramente físico, mas a partir da forma como ele aparece para a sociedade procurar entender as idéias que fazem parte dos homens dessa mesma sociedade. Os fatos sociais são tomados como coisas porque são dados imediatos para nós, enquanto as idéias não são diretamente dadas. Qualquer realidade observável do exterior e cuja natureza não conhecemos pode ser chama de coisa.

Os fenômenos sociais são exteriores ao indivíduo, ou seja, não dependem de sua consciência nem de suas manifestações individuais, mas do conjunto de indivíduos que formam a sociedade, exercendo uma coerção sobre ele.

“Há coerção quando, numa assembléia ou numa multidão, um sentimento se impõe a todos, como, por exemplo, quando por reação coletiva todos riem. Este é um fenômeno tipicamente social, porque tem como apoio e como sujeito o grupo em seu conjunto, e não um

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indivíduo em particular. Assim também a moda é um fenômeno social: cada um se veste de uma certa maneira, num determinado momento, porque todos se vestem daquele modo. Não é um indivíduo que origina a moda, é a sociedade que se manifesta por meio de obrigações implícitas e difusas. Durkheim exemplifica também com as correntes de opinião, que levam ao casamento, ao suicídio, a uma maior ou menor natalidade, e que qualifica de estados de alma coletivos. Cita, por fim, as instituições da educação, o direito, as crenças, que têm igualmente como características o fato de serem dados exteriores aos indivíduos, e que se impõem a todos” (Aron, 1994:337).

A definição de fatos sociais em gêneros e espécies levam a distinção entre o que é normal e o que é patológico. Um fato social é normal, para Durkheim, quando se considera um período determinado de desenvolvimento em uma sociedade e quando ele nela se produz de forma corriqueira e comum. A distinção do normal e do anormal implica a elaboração de categorias sociais. Devem-se procurar as características dos fatos sociais. Essas características são de ordem morfológica - morfologia social diz respeito à forma como aparecem - e a sociologia tem como objetivo constituir e classificar os tipos sociais (morfologia social).

2.2 Regras para a explicação dos fatos sociais

A morfologia social é apenas uma forma de classificar os fatos para facilitar a sua explicação. Assim como a normalidade é definida pela generalidade (freqüência que os fenômenos ocorrem), a explicação, segundo ele, é definida pela causa. Explicar um fato social é buscar sua causa eficiente, identificar o fenômeno antecedente que o produz. Uma vez descoberta a causa, pode-se procurar sua função, sua utilidade para a sociedade, pois a utilidade de um fato não explica sua existência (Aron, 1990:342). As causas dos fenômenos sociais devem ser procuradas no meio social, ou seja, um fato social só pode ser explicado por outro fato social. É a estrutura da sociedade considerada que constitui a causa dos fenômenos que a sociologia quer explicar.

2.2.1 Principais obras A obra de Durkheim é dividida, para efeitos didáticos, em três partes nas quais ele utiliza

o termo social de maneiras diferentes:

Em Da Divisão do Trabalho Social (1893), ele dá prioridade à sociedade sobre os fenômenos individuais. Destaca o volume e a densidade da população como causa da diferenciação social e da solidariedade orgânica.

Em As Regras do Método Sociológico (1895) define o que é “fato social”.

Em O Suicídio (1897) afirma existir uma “corrente suicidógena”, isto é, uma tendência para o suicídio na sociedade em função de circunstâncias de ordem individual.

Em As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912) e em outros trabalhos sobre religião, a explicação sociológica tem dupla característica:

(a) Exaltação coletiva provocada pela reunião de indivíduos num mesmo lugar, que faz surgir o fenômeno religioso e inspira o sagrado;

(b) A adoração da própria sociedade pelos indivíduos que o fazem sem saber.

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2.2.2 Fatos Sociais Normais e Patológicos Neste trabalho – As regras do método sociológico – Durkheim constrói e explicita o

objeto de estudo da Sociologia. A Sociologia é o estudo dos fatos sociais e sua explicação sociológica. Para que se explicar sociologicamente um fenômeno é preciso:

que seu objeto se diferencie das outras ciências;

que possa ser observado e explicado de modo semelhante ao que acontece com os fatos observados e explicados pelas outras ciências.

Essas exigências levam a duas fórmulas do pensamento durkheimiano (ou em sua metodologia)3: os fatos sociais são como coisas, são coercitivos e independem das consciências individuais.

O fato social é uma coisa porque “todo objeto de conhecimento que não é naturalmente compenetrável pela inteligência, tudo aquilo de que não podemos adquirir uma noção adequada por um simples processo de análise mental, tudo o que o espírito só consegue compreender na condição de sair de si próprio, por via da observação e de experimentações, passando progressivamente das características mais exteriores e mais imediatamente acessíveis às menos visíveis e às mais profundas. Tratar fatos de uma certa ordem como coisas não é, pois, classificá-los nesta ou naquela categoria do real; é observar em relação a eles uma certa atitude mental. É abordar o seu estudo partindo do princípio de que se ignora por completo o que eles são, e que as suas propriedades características, tal como as causas desconhecidas de que dependem, não podem ser descobertas pela introspecção, por mais atenta que seja” (Silva, 1988:12-13).

Em outras palavras coisa é toda realidade observável do exterior e cuja natureza não conhecemos imediatamente, mas que precisa ser descoberta ou elaborada progressivamente. Temos uma vaga idéia sobre o Estado, soberania, liberdade política, democracia, socialismo, comunismo, daí temos que tratar esses fatos como coisas, ou seja, afastar as pré-noções e os pré-conceitos para conhecê-los cientificamente. Observar os fatos do exterior, descobri-los como descobrimos os fatos físicos. As coisas são os únicos fatos a nos ser imediatamente dados.

Isso leva a uma crítica da economia política, isto é, a uma crítica da discussão abstrata, dos conceitos como o de valor. Para Durkheim, todos esses métodos têm o defeito de partir da idéia falsa de que podemos compreender os fenômenos sociais a partir da significação que lhes atribuímos espontaneamente, quando na verdade o sentido real dos fenômenos só pode ser descoberto pela exploração objetiva e científica.

Reconhece-se o fenômeno social porque ele se impõe ao indivíduo, exercendo assim a coerção. Ex. assembléia ou multidão, moda, correntes de opinião, estados de alma coletivos, a educação, o direito etc. Nestes fenômenos Durkheim reconhece a mesma característica fundamental: são gerais porque são coletivos, são diferentes nas repercussões que exercem sobre cada indivíduo, mas têm como substrato o conjunto da coletividade.

3 A metodologia é definida como o caminho e o instrumental próprio de apreender a realidade. Ocupa o lugar central no interior das teorias sociais, e possui um papel de fazer a relação entre o pensamento e a existência e vice-versa. Entretanto, para outros autores, a metodologia deve ser mais abrangente e incluir as concepções teóricas de abordagem.

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Para Raymond Aron (1990), Durkheim é um conceitualista (ou nominalista) que tende a considerar os conceitos como realidades ou achar que a distinção entre gêneros e espécies já está inscrita na própria realidade. Na sua teoria, os problemas de definição e classificação tomam um lugar importante. Ele tinha a tendência para ver os fatos sociais como suscetíveis à classificação em gêneros e espécies – construção de TIPOS SOCIAIS.

Em suas obras Durkheim começa por definir o fenômeno considerado. Isola uma categoria de fatos pelas características externas que lhe são comuns. Uma vez definida certa categoria de fatos, acredita que pode chegar a uma causa única que a explique. Um efeito determinado provém sempre da mesma causa. Assim, há vários tipos de suicídio, vários tipos de crime etc.

As sociedades possuem diferentes graus de complexidade que as diferenciam. Marx e Comte quiseram determinar os momentos principais do devenir histórico e as fases do progresso intelectual, econômico e social da humanidade.

Para Durkheim isso não leva a nada, mas é possível fazer uma classificação científica e válida dos gêneros e espécies de sociedades com base no critério que reflita a estrutura da sociedade considerada: o número dos segmentos justapostos numa sociedade complexa e o modo de combinação desses segmentos. Esta classificação dos gêneros leva à distinção do normal e do patológico.

A distinção entre o normal e o patológico medeia a observação e os preceitos aplicáveis para um aperfeiçoamento da sociedade. Se uma coisa é normal não há porque ser eliminada, mesmo se nos afeta moralmente. Se é patológica, existe um argumento científico para justificar projetos de reforma.

Um fenômeno é NORMAL quando pode ser encontrado de modo geral numa sociedade determinada, em uma fase de seu processo de desenvolvimento. A normalidade é determinada pela generalidade, mas como as sociedades são diferentes, não é possível encontrar uma generalidade de modo abstrato e universal. Paralelamente à definição de normalidade, não é excluída a possibilidade de se procurar explicar a causa que determina a freqüência do fenômeno considerado. Porém o sinal decisivo da normalidade é simplesmente sua freqüência.

A normalidade é definida pela generalidade e a explicação pela causa. Explicar um fenômeno social é procurar sua causa eficiente, identificar o fenômeno antecedente que o produz. Subsidiariamente, uma vez estabelecida a causa de um fenômeno pode-se procurar a função que ele exerce, sua utilidade. Mas a explicação funcionalista, apresentando um caráter teleológico4, deve estar subordinada à procura da causa eficiente. Pois, mostrar a utilidade de um fato não é explicar como ele aconteceu, nem como ele é. A utilidade pressupõe sua caracterização, mas não sua criação. Ter necessidade de uma coisa não implica que ela seja como desejamos. As causas dos fenômenos sociais devem ser procuradas no meio social. É a estrutura de uma sociedade que constitui a causa dos fenômenos que a sociologia quer explicar. “É na natureza da própria sociedade que devemos procurar a explicação da vida social”.

4 Relativo à teleologia. Diz-se de argumento, conhecimento ou explicação que relaciona um fato com sua causa final. Teleologia é o estudo da finalidade. É também uma doutrina que considera o mundo como um sistema de meios e fins. Estudo dos fins humanos.

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A causalidade eficiente do meio social representa a condição da existência da sociologia científica, ou seja, estudar os fenômenos do exterior, definir rigorosamente conceitos graças aos quais se pode isolar categorias de fenômeno, classificar as sociedades em gêneros e espécies e, por fim, dentro de uma dada sociedade, explicar um fato particular pelo meio social.

A prova da explicação é obtida pelo emprego do método das variações concomitantes: comparar os casos em que estão presentes ou ausentes e verificar se as variações apresentadas nestas diferentes combinações de circunstâncias revelam que um depende do outro. Quando podem ser provocados artificialmente, de acordo com a vontade do observador, é o método experimental. Se isso não é possível – como é o que acontece com as ciências humanas – só se pode abordá-los tal como ocorrem, o método é o da experimentação indireta – método comparativo.

Durkheim procura aplicar este método em seu trabalho O Suicídio, onde compara taxas de suicídios dentro de uma mesma sociedade ou dentro de sociedades próximas. Mas o método das variações concomitantes pode e deve comportar a comparação de um mesmo fenômeno – por exemplo a família ou o crime – também em sociedades diferentes, com o objetivo de acompanhar o desenvolvimento integral de um fenômeno dados através de todas as espécies sociais.

2.3 As regras do método sociológico

Durkheim formula as seguintes regras para o estudo do Fato Social:

1) Afastar as prenoções a) O sociólogo deve se privar de utilizar conceitos formados exteriormente à ciência – as

prenoções. b) As prenoções são idéias que formamos de forma generalizada sobre a vida coletiva,

representações esquemáticas e sumárias, que nos servimos para usos cotidianos. c) São produtos de experiências repetidas, hábitos e tomamos essas representações muitas

vezes como verdadeiras. Mas elas não passam de noções confusas, impressões vagas, de preconceitos e paixões (políticas, religiosas e práticas morais)

d) Algumas dessas noções podem ter tal prestígio que não suporte nem mesmo o exame científico.

e) Elas, assim como o conhecimento científico, também foram formadas historicamente, mas são fruto de uma experiência confusa e inorganizada.

2) Definir as coisas que se quer estudar a) a definição deve exprimir propriedades inerentes ao fenômeno estudado, por elementos

integrantes da sua natureza, pois estas características exteriores são as únicas que são imediatamente visíveis.

b) “Nunca tomar por objeto de pesquisa senão um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhe são comuns, e compreender na mesma pesquisa todos aqueles que correspondem a esta definição” (Durkheim, 1978:30-31)

c) Necessidade então de se construir conceitos novos, apropriados às necessidades da ciência e expressos através de uma terminologia especial.

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3) Afastar as sensações subjetivas e não tomar os fatos em suas manifestações individuais. a) Os hábitos coletivos se manifestam através de regras jurídicas, morais, provérbios

populares etc. Essas formas existem de maneira permanente e constituem um objeto fixo, sempre a disposição do observador, não dando lugar a impressões subjetivas.

2.4 Da Divisão do Trabalho Social

Este livro é a sua tese de doutoramento e tem como tema a relação entre os indivíduos e a coletividade. A questão é: como pode um conjunto de indivíduos constituir uma sociedade? Para responder a esta questão, Durkheim distingue duas formas de solidariedade: a mecânica e a orgânica.

� Solidariedade mecânica, ou por semelhança, ocorreria quando os indivíduos de uma sociedade diferem pouco uns dos outros. Eles se assemelham porque têm os mesmos sentimentos, os mesmos valores, reconhecem os mesmos objetos como sagrados.

� Solidariedade orgânica é oposta à mecânica. Ocorre naquelas sociedades onde o consenso resulta de uma diferenciação. Essa diferenciação é feita por analogia aos órgãos de um ser vivo, cada um exerce sua função própria e, embora não se pareçam uns com os outros, todos são igualmente indispensáveis.

Essas duas formas de solidariedade correspondem a duas formas extremas de organização

social: nas sociedades primitivas (arcaicas ou sem escrita), prevalece a solidariedade mecânica. Nesse tipo de sociedade, o indivíduo é o que os outros são, predominando na consciência de cada um os sentimentos comuns a todos, os sentimentos coletivos.

A oposição entre essas duas formas de solidariedade se combina com a oposição entre sociedades segmentárias e aquelas em que aparece a moderna divisão do trabalho.

Segmento, para Durkheim, designa um grupo social, onde seus membros estão estreitamente integrados. É também um grupo situado localmente, relativamente isolado dos demais, tendo vida própria. Comporta uma solidariedade por semelhança, mas pressupõe também a separação do mundo exterior, se comunicando pouco com ele.

Em algumas sociedades, cuja divisão econômica do trabalho, está bastante desenvolvida, subsiste parcialmente uma estrutura segmentária. Sendo assim, a noção de estrutura segmentária não se confunde com a solidariedade por semelhança. “É possível a existência de um grande número de clãs, tribos, ou grupos regionalmente autônomos, justapostos e talvez até mesmo sujeitos a uma autoridade central, sem que a coerência por semelhança do segmento seja quebrada, sem que se opere, no nível da sociedade global, a diferenciação das funções características da solidariedade orgânica.

A Divisão do trabalho social, de Durkheim é a diferenciação das profissões e a multiplicação das atividades industriais. Esta diferenciação social se origina da desintegração da solidariedade mecânica e da estrutura segmentária.

Outra idéia presente desde cedo na teoria geral de Durkheim é a consciência coletiva. Para ele, consciência coletiva é o “conjunto das crenças, dos sentimentos comuns à média dos

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membros da sociedade” (Aron, 1990:300), “forma um sistema determinado, que tem vida própria” é difusa na sociedade e liga uma geração às outras. Ela só existe em função dos sentimentos e crenças presentes nas consciências individuais, mas se distingue, pelo menos analiticamente, destas últimas, porque evolui segundo suas próprias leis, não sendo apenas expressão ou efeito das consciências individuais.

Tem maior ou menor força de acordo com as sociedades. Nas sociedades dominadas pela solidariedade mecânica, a consciência coletiva abrange a maior parte das consciências individuais, maior número de tabus e proibições. Nas sociedades onde há diferenciação dos indivíduos, cada um tem maior liberdade de crer, querer e agir conforme suas preferências.

Aqui o adjetivo social tem para Durkheim o sentido de que as proibições se impõem à média, à maioria dos membros do grupo, tem por origem o grupo e não o indivíduo, que este se submete a um poder superior.

A consciência coletiva abrange a maior parte da existência individual, nas sociedades primitivas, e também os sentimentos coletivos têm força extrema, que se manifesta no rigor dos castigos impostos aos que violam as proibições sociais. Quanto mais forte a consciência coletiva, maior a indignação com o crime, isto é, contra a violação do imperativo social. A consciência coletiva define cada um dos atos da existência social, particularmente os detalhes relativos aos atos religiosos, o que se deve crer etc.

Nas sociedades onde reina a solidariedade orgânica há uma relação da esfera da existência que cobre a consciência coletiva, um enfraquecimento das reações coletivas contra a violação das proibições e, sobretudo, uma maior flexibilidade na interpretação individual dos imperativos sociais.

Daí vem a idéia defendida por Durkheim, toda a sua vida, de que o indivíduo nasce na sociedade e não que esta nasce dos indivíduos. Embora se expresse de forma paradoxal, Durkheim afirma essa preponderância da sociedade sobre os indivíduos com pelo menos dois sentidos:

� O da prioridade histórica das sociedades em que os indivíduos se assemelham e estão, por assim dizer, perdidos no todo.

� E o da prioridade lógica. Se a solidariedade mecânica veio antes da orgânica, não se pode explicar os fenômenos de diferenciação social e da solidariedade orgânica a partir dos indivíduos. A consciência da individualidade não podia existir antes da solidariedade orgânica e da divisão do trabalho.

Nesse ponto, Durkheim define a sociologia como a prioridade do todo sobre as partes, ou

a irredutibilidade do conjunto social a seus elementos e a explicação dos fenômenos pelo todo.

Em Da divisão do trabalho social, Durkheim também estabelece a função da divisão do trabalho que é a de procurar estabelecer relação com uma necessidade. Começa sua argumentação na construção deste conceito afirmando que as sociedades não podem ver sem regras morais. É o mínimo indispensável para a convivência. A moral nos leva, através do constrangimento, a seguir para um fim definido.

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A ciência, as artes e a indústria estão fora do campo da moral, pois são campos abertos a todos, mas não há obrigatoriedade de aquisição. São luxos, adornos – o que é supérfluo não se impõe.

Nesse aspecto Durkheim se diferencia dos moralistas. Para estes, moral é tudo o que tem nobreza, valor objeto das inspirações elevadas. Durkheim acredita que a moral é composta de regras de ação que se impõem à conduta e às quais está ligada uma proibição.

A atração entre as pessoas se dá por semelhança ou por diferenças, não no sentido de exclusão, mas no de complementaridade. Nós buscamos nas pessoas as qualidades que nos faltam porque unindo-nos, participamos de alguma maneira da natureza uns dos outros e assim nos completamos. Há uma troca, uma partilha de funções, uma divisão do trabalho que determina as relações de amizade.

Sob este aspecto a divisão do trabalho tem efeito moral e sua função é criar um sentimento de solidariedade entre as pessoas – os efeitos econômicos, para Durkheim são secundários.

É nesse caso que se insere a divisão sexual do trabalho. Homens e mulheres são diferentes, por isso se unem, pois se completam. Isolados são partes diferentes de um mesmo todo concreto – divisão sexual é a fonte da solidariedade conjugal. Pode referir-se apenas à reprodução ou estende-se a todas as funções orgânicas e sociais. As semelhanças anatômicas entre homens e mulheres, nas sociedades primitivas, são acompanhadas de semelhanças funcionais.

semelhantes à

Quando maiores as obrigações e deveres que ele sanciona para sua realização e dissolução, maior divisão sexual do trabalho e maior diferença nas funções masculinas e femininas, implicando em funções intelectuais e afetivas respectivamente.

A divisão do trabalho torna possível melhorar as sociedades porque torna as funções divididas mais solidárias. Ela vai além dos resultados econômicos para ser o cimento entre os indivíduos. Em vez de se desenvolverem separadamente, eles conjugam esforços, são solidários e esta solidariedade transcende os momentos de troca de serviços. A divisão do trabalho, repartição dos trabalhos humanos, é a fonte da solidariedade social, pois não se limita a sua utilização material, mas une os diferentes povos, esta repartição constante é a causa básica da crescente complexidade da organização social. A divisão do trabalho é a condição para a existência da vida em sociedade, pois garante sua coesão. Se esta é a função da divisão do trabalho, então ela deve ter um caráter moral, pois as necessidades de ordem, de harmonia, de solidariedade social são geralmente morais.

Funções femininas

Função masculina

Solidariedade conjugal fraca

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Solidariedade social é um fenômeno moral e não se presta à observação exata, nem à medida. Para realizar uma classificação é preciso substituir o fato interno (moral), por um exterior que o simbolize (símbolo visível, direto) e estudar o primeiro através do segundo.

Quando mais os membros de uma sociedade são solidários, mais mantém relações diversas. Manter-se juntos reforça os laços que, do contrário, seriam apenas causais. O número de relações estabelecidas é proporcional ao das regras jurídicas que as regulam. A vida social, onde é durável, tende a estabilizar-se e a organizar-se - o direito reflete todas as variedades de solidariedade social, porém reflete apenas uma parte da vida social. Os costumes também são reguladores da vida social e algumas vezes conflituam-se com o direito, pois em sua luta pela consolidação permanecem nos costumes apenas, sem penetrar na esfera jurídica. No entanto, normalmente os costumes são a base do direito.

A ciência só pode conhecer as causas de um fato social por seus efeitos e, dentre estes, os mais objetivos. O que dá as características específicas à solidariedade social à cada grupo é a natureza deste grupo e só podemos apreendê-las através das diferenças que apresentam os efeitos sociais da solidariedade. O que existe realmente são as formas particulares da solidariedade – doméstica, profissional, nacional etc.. Excluir estas particularidades sobraria apenas uma abstração da sociedade que perpassa a todas as sociedades e que não está ligada a nenhum tipo social em particular.

Por que o estudo da solidariedade pertence à sociologia? Porque é um fato social que só pode ser reconhecido através de seus efeitos sociais. A psicologia elimina tudo o que há de social para reter apenas o germe psicológico, mas que permanece indefinida por não abarcar os efeitos sociais externos que a traduzem.

2.4.1 Aprofundando um pouco mais...

A SOLIDARIEDADE MECÂNICA é o elo de solidariedade social que corresponde ao direito repressivo. Sua ruptura é CRIME e é sujeita a uma pena.

Durkheim conceitua o crime como atos reprimidos por castigos definidos e afetam da mesma maneira a consciência moral das nações, portanto, contém uma “propriedade essencial”, uma característica constante que se encontra nas relações que eles mantém com alguma condição que lhes é exterior.

Essa relação não viria apenas de um antagonismo entre as ações criminosas e os grandes interesses sociais, uma ofensa aos sentimentos coletivos. Mas nem todo crime põe em risco a sociedade – ir de encontro a costumes, rituais e tabus. A única característica comum a todos os crimes é que eles são reprovados universalmente pelos membros de cada sociedade. Se uma ação é punida é porque vai de encontro a uma regra obrigatória, que evoca sentimentos de uma certa intensidade média e se esta não é expressamente formulada é porque ela é conhecida e aceita por todos.

Os sentimentos que protegem sanções morais são menos intensos, menos organizados (direitos) do que aqueles que protegem penas (crimes). Ex. mau filho não é criminoso. Esses

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sentimentos, além de fortes, devem ser precisos, relativos a uma prática bem definida – fazer ou não fazer (matar, ferir, etc.). As regras penais são claras e precisas, as morais são flutuantes.

Para ser crime é preciso que um ato fira a consciência comum. Se esse sentimento, positivo ou negativo, for abolido, então o crime e, consequentemente, a sanção que lhe é correspondente será também abolida, isto é, deixa de ser crime.

Mas, mesmo que um crime não fira sentimentos coletivos, mas sim a um poder governamental (Estado) ou diretor, cuja principal função é defender a consciência comum contra todos os inimigos internos e externos, ele continua sendo crime. Ele não é apenas uma função social, mas o tipo coletivo encarnado e daí retira sua força e o que lhe permite criar crimes e delitos. A força dessas penalidades depende do grau de reconhecimento desses crimes.

“O crime não é apenas uma lesão aos interesses mesmo graves; é uma ofensa contra uma autoridade de alguma forma transcendente. Ora, experimentalmente não há força moral superior ao indivíduo, salvo a força coletiva” (Durkheim, 1983:43).

As características de um crime determinam a pena. Esta é considerada por Durkheim, uma reação passional, uma vingança pelo crime praticado (forma primitiva da pena), ou uma forma de defesa para que o terror da pena impeça o crime.

“Ela [a pena] é ainda um ato de vingança porque é uma expiação. O que nós vingamos, o que o criminoso expia, é um ultraje feito à moral” (p. 45). Para que a pena nos sirva de proteção no futuro, pretende-se que ela seja uma expiação do passado. A pena é, pois, uma reação passional de intensidade graduada. Varia de acordo com a intensidade e qualidade do crime cometido e tem um caráter social, pois a sociedade também é atingida quando os indivíduos o são. A reação não é apenas geral é coletiva, pois não se reproduz isoladamente nos indivíduos, mas no seu conjunto e em uma unidade.

O direito penal, em sua origem, tinha um caráter essencialmente religioso, era tido como revelação. A religião é também essencialmente social, pois não persegue fins individuais e exerce constante constrangimento sobre o indivíduo – sacrifícios, oferendas, tempo para realização dos ritos etc. Exige sentimentos de abnegação. Portanto, se o direito penal em sua origem é religioso, conclui-se que os interesses aos quais serve são também sociais. Os deuses vingam pela pena as ofensas à sociedade – ofensas contra a sociedade.

A expiação do ato criminoso é como uma satisfação a alguma potência real ou ideal que nos é superior. A repressão a um crime não é uma vingança pessoal, mas algo de sagrado, exterior e superior a nós, quer seja, a moral, o dever, os ancestrais, as divindades. Por isso, o direito penal tem algo de religioso. Ele pune atos contra algo que transcende – ser ou conceito (p. 52). Essa representação é ilusória porque é em nós que estão os sentimentos ofendidos, porém eles são fortes e intensos por sua origem coletiva. São o eco de uma força superior que é a sociedade.

“Ora, o crime só é possível se esse respeito não é verdadeiramente universal; por conseguinte, implica que não são absolutamente coletivos e rompe essa unanimidade, fonte de autoridade. Portanto, se quando ele se produz, as consciências que ele fere não se unissem para testemunhar umas às outras que elas permanecem em comunhão, que este caso particular é uma anomalia, não poderiam deixar de ser abaladas com o tempo” (p. 53). Esta comunhão é a

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transcendência, é um sentimento religioso que renova o sentido e os efeitos na medida em que o ato é reproduzido.

O indivíduo possui duas consciências: a individual e a coletiva.

� A consciência individual contém estados pessoais e nos caracterizam, representa e constitui a personalidade individual.

� A consciência coletiva são estados comuns a toda a sociedade, representa o tipo coletivo e a sociedade na qual ela existe. Produto do desenvolvimento histórico, traz as marcas dos tipos das sociedades que passaram.

As duas consciências são indissociáveis, pois pertencem a um mesmo organismo (corpo).

São pois solidárias e relacionam indivíduo e sociedade. É esta a solidariedade que define o direito repressivo, pois mostra diretamente uma diferença violenta entre o indivíduo que pratica o crime e o tipo coletivo ou ofende o órgão de consciência comum. O direito penal procura proteger a coesão social, a consciência coletiva.

Muitas das inclinações que o indivíduo recebeu de seus ancestrais não têm mais razão de ser, mas a reprovação social se mantém, pois faz parte do tipo coletivo. Romper com uma dessas tendências (tradições) significa afrouxar os laços de coesão social, comprometendo a sociedade. Por isso, é positivo que não se tolerem os atos que as ofendem.

A penalidade e as sanções são signos que atestam que os sentimentos coletivos são sempre coletivos, “que a comunhão dos espíritos na mesma fé permanece inteira e, através disto, ela repara o mal que o crime fez à sociedade” (p. 56). Sem essa satisfação a “consciência moral” não poderia ser conservada.

Pode-se dizer que o castigo está destinado a agir mais sobre as pessoas honestas, porque serve para curar as feridas feitas nos sentimentos coletivos e só preenche este papel onde estes sentimentos estão vivos. “[...] existe uma solidariedade social que provém do fato de que um certo número de estados de consciência é comum a todos os membros de uma mesma sociedade” (p. 57).

A SOLIDARIEDADE ORGÂNICA corresponde à sanção restituitória. Ou seja, ao contrário da expiatória que exige pena, ela constitui-se de uma restituição sob condição. A pessoa que perde o processo paga os custos.

Corresponde a instâncias administrativas da sociedade e não corresponde em nós a nenhum sentimento. Diferente em casos de corrupção, por exemplo, que abala a opinião pública e gera sentimentos repressivos. Isto indica que os diferentes domínios da vida moral não estão radicalmente separados uns dos outros.

O direito repressivo se mantém difuso na sociedade, o direito restituitório cria órgãos especializados (tribunais consulares, administrativos) – o direito civil também faz parte dele e também funciona baseado em funcionários particulares (magistrados, advogados) que estão aptos para este papel devido à sua formação especial.

Mas mesmo estando fora da consciência coletiva, interessa também a toda a sociedade senão não teria nada em comum com a solidariedade social, “pois as relações que ele

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regulamenta reuniriam os indivíduos uns aos outros, sem ligá-los à sociedade”. Seriam simples acontecimentos da vida privada como a amizade.

O direito restituitório não intervém por si mesmo, mas precisa ser acionado pelos interessados. Mas não é meramente como árbitro que a sociedade é levada a interferir através desse direito e sim para legitimar socialmente o acordo entre as partes. No casamento, os esposos não podem estabelecê-lo nem rescindi-lo dependendo da sua vontade.

Os contratos podem ser rompidos por acordo entre as partes, mas se o contrato tem o poder de ligar é por causa da sociedade que o comunica, do contrário seriam apenas promessas que teriam meramente uma autoridade moral. Por trás dos contratos está a sociedade que interfere de modo a fazer cumpri-lo. Ela confere esta força apenas aos contratos regulados por regras do direito.

O direito repressivo é diferente do restituitório. O primeiro liga a consciência particular à consciência coletiva. O segundo estabelece relações entre as partes restritas e especiais da sociedade, podendo ser negativo ou positivo.

A relação negativa do direito restituitório une a coisa à pessoa. Coisas fazem parte da sociedade e desempenham um papel, então é necessário que suas relações com a sociedade sejam determinadas. Há uma solidariedade das coisas, cuja natureza é bastante especial para se traduzir exteriormente por conseqüências jurídicas de um caráter muito particular.

Reais � direito de propriedade5, hipoteca

Direitos restituitórios são

Pessoais � direito de crédito

A solidariedade real é negativa porque é somente através das pessoas que as coisas são integradas na solidariedade. As vontades não se movem para fins comuns, mas as coisas gravitam em torno das vontades, não existe consenso (consenso é geral e coletivo). As pessoas não convergem, não há cooperação.

A solidariedade (orgânica) que estas relações exprimem é apenas para reparar ou prevenir uma lesão (delito) aos interesses do outro, com efeito, o direito individual, referente a pessoas e a coisas, só pode ser determinado por compromissos e concessões mútuas. Para que os homens garantem mutuamente seus direitos é preciso que se apeguem uns aos outros e à sociedade de que fazem parte.

Os direitos restituitórios formam um sistema e exprimem uma positividade, uma cooperação fruto da divisão do trabalho. São eles:

� Direito doméstico � Direito contratual � Direito comercial

5 A forma mais completa de direito real e pode derivar outros direitos reais e secundários – usufruto, aluguéis, posse e a habitação (propriedade literária, artística, industrial, mobiliária e imobiliária) – herança.

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� Direito de processos � Direito administrativo � Direito constitucional

O direito doméstico determina quem se encarrega das diferentes funções domésticas, que é esposo, pai, filho legítimo, tutor etc. Qual o tipo normal dessas relações e funções. O contrato de casamento, sua validade, filiação legítima, natural, adotiva etc. Direitos e deveres dos cônjuges, estado das relações em caso de divórcio, anulação de casamentos, separação de corpos e bens, poder paterno, efeitos da adoção, relação tutor/pupilo etc. Regula funções familiares e exprime solidariedade que une os seus membros em decorrência do trabalho doméstico.

O contrato é a expressão jurídica da cooperação. O compromisso de uma parte resulta do compromisso de outra ou de um serviço já prestado. Esta reciprocidade só existe onde há cooperação e esta depende da divisão do trabalho – cooperar e dividir tarefa comum. Contrato é o símbolo da troca.

2.5 O suicídio

Este livro está ligado ao estudo da Divisão do Trabalho. Trata de um aspecto patológico das sociedades modernas e revela de modo mais marcante a relação entre indivíduo e coletividade.

Procura mostrar até que ponto os indivíduos são determinados pela realidade coletiva. Aparentemente nada mais individual que alguém destruir sua própria vida. Mas, segundo Durkheim, mesmo quando o indivíduo está só e desesperado, a ponto de se matar, é ainda a sociedade que está presente na sua consciência e o leva a este ato solitário (Aron, 1990:308).

O método de Durkheim nesse livro segue os seguintes passos:

1. definição do fenômeno; 2. refutação das interpretações anteriores; 3. estabelecimento de uma tipologia; 4. e com base na tipologia desenvolve uma teoria geral do fenômeno considerado.

Define suicídio como “todo caso de morte provocado direta ou indiretamente por um ato positivo ou negativo realizado pela própria vítima e que ela sabia que devia provocar esse resultado” (Aron :309).

A expressão direta ou indiretamente compara-se à distinção entre positivo e negativo. Um tipo de revolver ou uma greve de fome. Enquadram-se ainda na definição de suicídio as mortes voluntárias envoltas com aura de heroísmo e glória, como por exemplo, o capitão que afunda com seu navio; o samurai que se mata por se sentir desonrado etc.

As estatísticas mostram que as taxas de suicídios, isto é, a freqüência do fenômeno em relação a uma população determinada é relativamente constante, fato considerado essencial por Durkheim.

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A taxa de suicídio é característica de uma sociedade global, de uma região ou de uma província. Não varia arbitrariamente, mas em função de múltiplas circunstâncias. A tarefa do sociólogo é estabelecer correlações entre essas circunstâncias e as taxas de suicídio, variações que são fenômenos sociais.

diferente fenômeno individual fenômeno social

Durkheim procura explicar e buscar uma relação entre os dois fenômenos o individual e o social. Ele afasta as explicações do tipo psicológico ou psicopatológico. Embora admitindo haver predisposição psicológica ao suicídio, afirma que a força que determina o suicídio é social.

Para demonstrar a distinção entre predisposição psicológica e determinação social, ele emprega o método das variações concomitantes, ou seja, estuda as variações da taxa de suicídio em diferentes populações e procura provar que não há relação entre a freqüência dos estados psicopatológicos e a freqüência dos suicídios.

Entre os judeus, grande número de alienados, taxa de suicídio baixa. Refuta a idéia do suicídio ser uma predisposição hereditária pelo estudo de ocorrências em uma mesma família.

Ele vai de encontro às idéias de Gabriel Tarde, que afirma que a imitação é o fenômeno-chave da ordem social. Segundo Durkheim, a imitação confunde três fenômenos distintos:

� A fusão das consciências, na qual o mesmo sentimento afeta um grande número de pessoas. Ex. a massa revolucionária, onde os indivíduos tendem a perder a identidade de sua consciência. Os sentimentos que agitam os indivíduos são sentimentos comuns a todos. Mas o suporte dos sentimentos é a própria coletividade e não os indivíduos.

� A adaptação do indivíduo à coletividade sem haver fusão de consciências. Nesse caso o sujeito se submete a uma regra coletiva. Ex. a moda imperativo social.

� E a imitação que é apenas aquele ato que tem como antecedente imediato a representação de ato semelhante, realizado anteriormente por outra pessoa, sem que entre a representação e execução se intercale qualquer operação intelectual.

Ele afirma que a taxa de suicídio não seria determinada nem pela imitação, nem pelo

contágio, pois do contrário seria possível rastreá-lo através de um mapa. Porém, a distribuição de taxas é irregular.

Após definir o suicídio e refutar algumas explicações anteriores, Durkheim procura estabelecer uma tipologia. Define três tipos de suicídio: o egoísta, o altruísta e o anômico.

Realiza sua análise sobre o suicídio egoísta com base na correlação entre taxas de suicídio e os contextos sociais integradores – família e religião. A taxa de suicídio varia com a idade, é maior entre os mais velhos. Flutua com a religião, é mais freqüente entre os protestantes. Compara as taxas entre os casados, solteiros e viúvos. Os casados sem filhos detêm a maior taxa.

SUICÍDIO TAXA DE

SUICÍDIO

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Toda situação que tende a fazer aumentar a disparidade entre desejos e satisfação se traduz por um coeficiente de agravamento.

Chama de suicídio egoísta aquele em que homens e mulheres pensam essencialmente em si mesmos, quando não estão integrados no grupo social e pela força de obrigações impostas por um meio estrito e vigoroso.

O suicídio altruísta pode ocorrer pelo completo desaparecimento do indivíduo no grupo (ex. viúva indiana que se deixa queimar na fogueira junto com o corpo do marido) e por imperativos sociais, sem pensar nem sequer em defender seu direito à vida.

O suicídio anômico é o mais característico da sociedade moderna. É revelado pela correlação estatística entre a freqüência do suicídio e as fases do ciclo econômico. Ocorre tanto em períodos de crise, quanto também em épocas de grande prosperidade.

Há uma tendência à redução durante os grandes acontecimentos políticos e também durante os períodos de guerra. O suicídio anômico cresce também com a crise da sociedade moderna, definida pela desintegração social e a debilidade dos laços que prendem o indivíduo ao grupo. Além disso, a concorrência, as expectativas diante da vida favorece o desenvolvimento dessa “corrente suicidógena”.

Procura demonstrar os tipos sociais que corresponderiam à tipos psicológicos:

� O suicídio egoísta a estados de apatia e ausência de vinculação com a vida. � O suicídio altruísta a energia e paixão. � O suicídio anômico a irritabilidade associada às inúmeras situações de decepção da vida

moderna.

Resumo da teoria de Durkheim:

O suicídio são fenômenos individuais cujas causas são essencialmente sociais. Há “correntes suicidógenas” que atravessam a sociedade, originando-se não no indivíduo, mas na coletividade e, que são a causa real e determinante dos suicídios. Sem dúvida, essas correntes suicidógenas não atingem qualquer indivíduo indiscriminadamente. Quem se suicida está predisposto psicologicamente, possui fraqueza nervosa ou distúrbios neuróticos. Mas as circunstâncias sociais que criaram essas correntes, criam também essas predisposições psicológicas, porque a vida na sociedade moderna torna os indivíduos mais sensíveis e mais vulneráveis.

As causas reais dos suicídios são forças sociais que variam de sociedade para sociedade, de grupo para grupo e de religião para religião. Emanam do grupo e não do indivíduo.

Para tirar conseqüências práticas do estudo do suicídio, Durkheim questiona o caráter normal ou patológico deste fenômeno (Aron :316). Considera o crime normal como fenômeno social, o que não impede que os criminosos sejam por vezes psiquicamente anormais, nem que o crime deva ser punido.

Um fenômeno é normal quando há uma determinada freqüência na sociedade, como é o caso do crime e do suicídio. O aumento do fenômeno para além das taxas normais é que é patológico.

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O aumento do suicídio na sociedade moderna é patológico e revela aspectos patológicos da sociedade moderna: a diferenciação social, a solidariedade orgânica, a densidade da população, a intensidade das comunicações, a luta pela vida. Esses fenômenos em si não podem ser considerados anormais. Mas Durkheim afirma que as sociedades modernas apresentam sintomas patológicos como a pouca integração do indivíduo na coletividade.

Nesse aspecto o suicídio que interessa a Durkheim é o anômico. Embora causado por alguns fenômenos inseparáveis da vida em sociedade, a partir de um certo limite torna-se patológico.

2.6 As formas elementares da vida religiosa

Como acontece em outras obras suas, Durkheim começa relembrando o método utilizado em suas investigações:

Que os fatos sociais devem ser tratados como coisa, porque são dados empíricos, sendo diferentes das idéias, pois estas não são dadas diretamente à observação;

Que são exteriores aos indivíduos;

Que independem da vontade destes e de suas manifestações individuais;

E que exercem uma ação coercitiva sobre os mesmos.

Neste livro – As formas elementares da vida religiosa – ele se propõe a estudar a forma religiosa mais simples conhecida na época, analisá-la e depois dar uma explicação sociológica. Isto porque considera a finalidade da ciência positiva explicar a realidade social atual (de sua época no caso), próxima a nós e que pode afetar nossas idéias e atos. A explicação só pode ser alcançada estudando os fenômenos a partir de suas manifestações primitivas às mais complexas. No caso em questão o totemismo (mais simples, mais homogênea) ao cristianismo, que exige funções mentais mais elevadas, mais ricas em idéias e sentimentos, possui mais conceitos e se baseia menos em imagens. Em suma, é uma religião possuidora de uma maior sistematização.

Os ritos, por mais bárbaros que sejam, traduzem uma necessidade humana, seja individual ou social. Portanto, respondem a condições objetivas da existência humana. Ele critica a explicação histórica que coloca os fenômenos sociais numa hierarquia mas classificando-os como inferiores. Para ele, não existem religiões verdadeiras ou falsas, embora se possa colocá-las em uma hierarquia. Afirma então que “se nos dirigimos às religiões primitivas, não é com a Segunda intenção de depreciar a religião em geral, pois aquelas religiões não são menos respeitáveis que as outras. Elas respondem às mesmas necessidades, desempenham o mesmo papel, dependem das mesmas causas; portanto, elas podem servir para manifestar igualmente bem a natureza da vida religiosa e, por conseguinte, para resolver o problema que desejamos tratar” (Durkheim, 1983:206).

Escolhe estas religiões ditas primitivas por razões de método, com o objetivo de compreender as religiões mais recentes. Segundo ele, “a história é o único método de análise explicativa que é possível aplicar-lhes. Apenas ela nos permite resolver uma instituição em seus elementos constitutivos, porque ela no-los mostra nascendo no tempo, uns após os outros. Por

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outro lado, situando cada um deles no conjunto das circunstâncias nas quais ele nasceu, ela coloca em nossas mãos o único meio que temos para determinar as causas que os suscitaram. Portanto, todas as vezes que se empreende explicar uma coisa humana, tomada em um momento determinado do tempo [...] é preciso começar por retroceder até a sua forma mais primitiva e mais simples, procurar dar conta dos caracteres pelos quais ela se define neste período de sua existência, depois mostrar como ela se desenvolveu e se complicou pouco a pouco, como ela se tornou o que é no momento considerado” (Durkheim, 1983:206-07).

O objetivo é buscar o que existe de mais geral que perpassa as religiões de um modo geral, em detrimento de uma religião em particular. Busca a essência do fenômeno que é o que há de comum a todas as representações fundamentais, independente das formas variadas. É nas religiões primitivas que Durkheim vai buscar a essência do fenômeno religioso, aquilo sem o quê não haveria religião, e por ser isenta de excesso de formas, possui uma maior facilidade de enxergar os fatos e suas relações.

Durkheim parte das categorias de entendimento para construir sua argumentação. Segundo ele, as primeiras representações do homem a respeito do mundo e de si mesmo são religiosas. Essas representações são chamadas categorias fundamentais do entendimento – tempo, espaço, gênero, número, substância, personalidade, força etc. Elas nasceram da religião. Religião, portanto, é algo eminentemente social, pois expressam realidades coletivas. Os ritos nascem no meio de grupos sociais, assim como as noções de tempo, espaço etc., por isso são representações coletivas (Durkheim, 1983:212).

O conhecimento tem então, segundo Durkheim, uma origem social. Ele descarta os apriorismos, ou seja, idéias que ultrapassam a experiência como as categorias do entendimento e que são fruto da razão divina e são imutáveis.

Introduz então o conceito de representações individuais e sociais ou coletivas. As primeiras são construídas a partir de sensações que as coisas suscitam nos espíritos individuais. As representações sociais ou coletivas representam estados da coletividade, dependem de como a coletividade é formada, de suas instituições religiosas, morais, econômicas etc. E são produtos do espaço, do tempo e da cooperação coletiva. Exercem influência também nas representações individuais.

O homem é um ser, ao mesmo tempo, individual e social. Ele manifesta o caráter social quando aceita uma idéia sem exame prévio, tomando-a como verdade (caso das categorias fundamentais do entendimento). Essa unanimidade – a verdade – é o que faz com que se viva em sociedade. São as noções fundamentais, ou seja, as representações coletivas e, em última instância, a própria autoridade da SOCIEDADE. A sociedade se impõe sobre os indivíduos através da opinião pública e através da moral (que é uma opinião interna – a consciência).

Diferencia as funções da religião e da ciência. A primeira procura nos auxiliar a viver e a agir, religar, produzir sentido para existência, a outra auxilia-nos a pensar e a produzir conhecimento. A religião permite que amemos algo e “é preciso que deste objeto emanem energias superiores àquelas de que dispomos e, além do mais, que tenhamos algum meio de fazê-las penetrar em nós e de misturá-las à nossa vida interior. [...] Numa palavra, é preciso que ajamos e que repitamos os atos que são assim necessários, todas as vezes em que isso é útil para renovar seus efeitos” (:222). Os ritos são cultos simbólicos da sociedade, que causa a experiência

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religiosa e só se manifesta quando os indivíduos estão reunidos e agem em comum – cooperação ativa.

“A ação domina a vida religiosa apenas porque a sociedade é sua fonte” (:223). O direito e a moral, antes faziam parte dos rituais religiosos, depois tornaram-se instituições. Portanto, se a religião gerou o que há de essencial na sociedade é porque a sociedade é a lama da religião.

As forças religiosas são morais e humanas. São expressas através de sentimentos coletivos que só tomam consciência de si mesmos através de manifestações exteriores (rituais). Esta sociedade não é um dado empírico. É um sonho que os homens nunca viveram. É uma sociedade IDEAL. Mas que, ao mesmo tempo, tem seu lado negativo/positivo, por isso, por ser uma representação social, a religião é também a imagem da sociedade.

Na experiência religiosa o homem não se reconhece, sente-se transformado e, dessa maneira, transforma o seu ambiente. Cria então uma explicação, atribuindo às coisas poderes excepcionais. Ele superpõe ao mundo real, um outro que existe apenas no seu pensamento e ao qual atribui uma dignidade mais elevada. Porém, a sociedade ideal não está separada da sociedade real, mas faz parte dela. Uma sociedade não é um mero ajuntamento de indivíduos, mas também é formada pela idéia que faz de si mesma. É na sociedade que o indivíduo aprende a idealizar. Os ideais coletivo, encarnados nos indivíduos, tendem a individualizar-se, pois cada um os compreende à sua maneira.

Periodicamente as sociedades sentem necessidade de se reunirem para reatar, conservar e reforçar os sentimentos e idéias coletivos que as ligam. Reuniões, assembléias etc. isso é o que há de eterno nas religiões.

A religião é um sistema de práticas e idéias que tem o objetivo de exprimir o mundo. Tanto a religião como a ciência tem como fonte a vida social. A ciência apenas utiliza o pensamento lógico, cuja matéria-prima são os conceitos. Estes se diferenciam das representações sensíveis (percepção, sensação etc.) porque, enquanto estas são mutáveis, os conceitos são permanentes. Esta maneira de pensar está cristalizada através da linguagem que forma um sistema de conceitos. O conceito é universalizável. É comum a todos os homens ou pode ser transmitido. É comunicável.

A linguagem exprime a forma pela qual a sociedade, em seu conjunto, representa os objetos da experiência. As palavras são representações coletivas. Acrescentam à nossa experiência pessoal tudo o que a coletividade acumulou de conhecimento no decorrer dos séculos.

Como então as categorias são coisas sociais?

� Porque elas são CONCEITOS – representações coletivas; � Porque as coisas que elas exprimem são sociais. � As categorias não se aplicam apenas ao que é social, mas à realidade inteira. Uma coisa não

existe até que seja socialmente pensada e, a partir daí, toma lugar na sociedade. A sociedade é a TOTALIDADE, porque engloba todas as coisas, a classe suprema que engloba todas as outras.

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3. Bibliografia ARON, Raymond (1990). As Etapas do Pensamento Sociológico. 3 ed. São Paulo: Martins

Fontes; Brasília: UnB.

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DURKHEIM, Émile (1983). Os Pensadores. 2 ed. São Paulo: Abril Cultural.

–––––––––– (1978). As regras do método sociológico. 9 ed. São Paulo: Ed. Nacional.

RODRIGUES, José Albertino (org.) (1990). Sociologia: Durkheim. São Paulo: Ática.

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Ciências Sociais. Lisboa: Afrontamento.