Lembranças e imagens: fotografias e memórias da Guerra Civil Espanhola
MARCO ANTÔNIO MACHADO LIMA PEREIRA∗
Utilizando fontes fotográficas como ponto de partida, este trabalho tem como
objetivo central analisar a construção das memórias dos voluntários brasileiros que
lutaram ao lado das forças militares republicanas durante a Guerra Civil Espanhola
(1936-39), privilegiando suas percepções, vivências, sensibilidades. Dessa maneira,
recordar aquele evento foi importante para o grupo em apreço por duas razões que julgo
centrais: como suporte da identidade dos voluntários de esquerda envolvidos no
conflito; como uma maneira de compreender seu próprio tempo, preservando para as
futuras gerações um dos capítulos cruciais da história política do século XX.
Nos anos 1930, o antifascismo caracterizou-se como um dos elementos
constitutivos da unidade comunista, melhor dizendo, um dos principais componentes de
sua cultura política. Fenômeno extremamente complexo, mas que sem dúvida ocupou
um lugar relevante na história do movimento comunista, o antifascismo deve ser visto
como uma sensibilidade política compartilhada por todos aqueles que se preocuparam
com a ascensão ao poder do nazismo e de outros movimentos fascistas. Mesmo que a
oposição ao fascismo tenha sido o denominador comum de correntes políticas e
culturais diversas, cada uma teve seu próprio projeto político e sua própria visão de
sociedade. Na Espanha de 1936, por exemplo, os comunistas não foram mais que um
componente bastante minoritário no panorama da luta antifascista dominada pelos
anarquistas (GROPPO, 2007). Por outro lado, o antifascismo também foi um dos
principais vetores responsáveis pela expressão de uma profunda vontade de
transformação política e social. Em linhas gerais, “para as gerações de militantes
comunistas que se formaram durante os anos trinta, em particular para os da Frente
Popular e da guerra da Espanha, o antifascismo tem sido certamente uma experiência
política central e o fundamento de sua identidade política” (GROPPO, 2007: 113).
∗ Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. E-mail: [email protected]
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Um elemento extremamente peculiar ao conflito espanhol deve-se ao fato deste
evento ter reunido diferentes grupos civis – que agrupavam pessoas de diversas faixas
etárias, profissões e, até mesmo ideologias – para defender um ideal republicano de
nação. Todavia, enquanto os nacionalistas se uniram em torno de Franco, os
republicanos se dividiam entre os que queriam ganhar a guerra e preservar a República
(grupo liderado pelo Partido Comunista Espanhol e pelo Partido Socialista Operário
Espanhol) e os que pretendiam fazer a revolução e pôr fim à República burguesa (grupo
controlado pela Confederação Nacional do Trabalho, de tendência anarcossindicalista, e
pelo Partido Operário de Unificação Marxista, formado a partir da fusão, em 1935, do
Bloco Operário e Camponês de Joaquin Maurin e da Esquerda Comunista de Andrés
Nin).
Não obstante, as origens da Guerra Civil Espanhola remontam bem fundo na
história do país. A noção de que a violência poderia resolver os problemas políticos
melhor do que o debate de ideias, diz Paul Preston, “estava firmemente implantada num
país em que durante mil anos a guerra civil, se não foi rigorosamente a regra, não foi
pelo menos uma exceção. A guerra de 1936-1939 foi o quarto conflito desta natureza
desde a década de 30 do século XIX” (PRESTON, 2005: 27).
Dito isto, uma primeira pergunta deve ser colocada: que lugar a Guerra Civil
Espanhola ocupou nas memórias e no imaginário dos voluntários brasileiros (filiados ou
não ao Partido Comunista)? Em seu relato autobiográfico, o ex-tenente Apolônio de
Carvalho chama atenção para o número reduzido de voluntários brasileiros, “não mais
que uma vintena de combatentes, dispersos por frentes e armas”. Não obstante, o autor
enfatiza o caráter homogêneo e politicamente engajado do grupo – “na ANL, todos, no
PC, um terço” (CARVALHO, 1997: 122-123). A relação de voluntários brasileiros que
lutaram a favor do campo republicano – uma frente reunindo socialistas, democratas e
comunistas, contando com o apoio instável dos anarquistas – é a seguinte1: 1) Alberto
1 “A esse conjunto de combatentes brasileiros deve ser acrescentado alguns nomes de oficiais voluntários que não chegaram contudo a pegar em armas pela Espanha republicana, são eles: o major Alcedo Cavalcanti, ex-professor do Estado-Maior do Exército brasileiro e provisoriamente exilado no Uruguai, os oficiais Celso Tovar Bicudo de Castro e Paulo Machado Carrión e o tenente aviador Carlos Brunswick França, todos participantes do movimento aliancista. Os três primeiros não chegaram a ir para a Espanha: em Paris desentenderam-se com as autoridades espanholas e voltaram para o Uruguai; o tenente França
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Bomilcar Besouchet; 2) Apolônio de Carvalho; 3) Carlos da Costa Leite; 4) David
Capistrano da Costa; 5) Delcy Silveira; 6) Dinarco Reis; 7) Eny Silveira; 8)
Hermenegildo de Assis Brasil; 9) Homero de Castro Jobim; 10) Joaquim Silveira dos
Santos; 11) Enéas Jorge de Andrade; 12) José Gay da Cunha; 13) José Homem Correia
de Sá; 14) Nelson de Souza Alves; 15) Nemo Canabarro Lucas; 16) Roberto Morena.
Uma das contribuições de Jorge Christian Fernandez (FERNANDEZ, 2003) diz
respeito à composição da delegação brasileira: grupos, origem, formação e atividade
político-militar. Segundo Jorge Fernandez, o conjunto dos voluntários brasileiros que
combateram pela República Espanhola pode ser dividido entre o grupo de voluntários
militares – formado por ex-militares expulsos do Exército Brasileiro em decorrência de
suas atividades políticas ligadas ao PCB ou a ANL – e o grupo de voluntários civis.
Embora o primeiro grupo em questão fosse mais homogêneo, sua origem social era
bastante variada. Alguns pertenciam à classe média ou média-baixa, “onde as poucas
chances de ascensão social passavam necessariamente ou pela incorporação ao serviço
público ou pelo ingresso nas Forças Armadas”, como foi o caso de David Capistrano da
Costa, Dinarco Reis, Nelson de Souza Alves, Enéas Jorge de Andrade e José Homem
Correia de Sá. Outros membros seguiram a profissão militar como continuidade da
trajetória familiar, como por exemplo, Carlos da Costa Leite e Apolônio de Carvalho2.
Outra parte dos indivíduos do grupo militar provinha das classes mais abastadas, ou
seja, eram filhos de famílias tradicionais da sociedade, como foi o caso dos gaúchos
Nemo Canabarro Lucas, Hermenegildo de Assis Brasil, Delcy Silveira, Homero de
Castro Jobim e José Gay da Cunha (FERNANDEZ, 2003: 82-83).
foi à Espanha, mas não chegou a combater, pois as autoridades militares já estavam retirando os pilotos estrangeiros”. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: combatentes na luta contra o fascismo. Revista de Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, nº. 12, jun. 1999. p. 55. 2 É digno de nota que para o ex-tenente de artilharia Apolônio de Carvalho um dos motivos de orgulho de seu pai foi ter sido cadete de Benjamin Constant e, igualmente, ter participado da luta pela República: “Tornou-se um jovem oficial muito ligado às massas, o que o levou a choques que mais tarde conduziriam à sua reforma precipitada. Esse espírito de meu pai, pela democracia e pelas liberdades democráticas, desbordou naturalmente na formação familiar. Assim, meu irmão mais velho e os demais participaram da luta contra a ditadura Bernardes e, na minha juventude, nos anos 30, eu também entraria na luta, num período em que a classe operária começava a surgir no plano nacional, e num momento em que a única vanguarda era o Partido Comunista Brasileiro”. CARVALHO, Apolônio de. Entrevista. Pasquim, Rio de Janeiro, ano XI, nº. 532, 7-13 de setembro, 1979.
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Em linhas gerais, o grupo em questão obteve sua formação em um ambiente
militar profundamente marcado pela efervescência política dos anos 1920 e 1930:
[...] foi na Escola Militar do Realengo que os jovens cadetes tomaram um contato mais direto e amplo com as ideias políticas que estavam em discussão naquele tempo. Vivendo numa atmosfera técnica e ‘científica’, dado o paradigma do profissionalismo militar, os estudos e as leituras complementares ocupavam boa parte do dia dos cadetes. Seja pela influência dos mestres ou dos colegas, a questão é que existia um ambiente propício para a discussão política e, consequentemente, para a tomada de consciência política e social (FERNANDEZ, 2003: 90).
Thaís Battibugli assinalou, em pesquisa recente, que todos os 14 militares
analisados sofreram alguma forma de repressão após as revoltas de 1935, melhor
dizendo, foram expulsos do Exército e perderam suas respectivas patentes em
julgamento no Supremo Tribunal Militar (STM). Com efeito, para o grupo de
brasileiros, “a guerra na Espanha era também uma alternativa de luta, uma forma de
ausentar-se de um país que vivia sob forte pressão iniciada após o levante de novembro
de 1935, porque essa perseguição havia inviabilizado sua ação enquanto militantes no
país” (BATTIBUGLI, 2004: 85). Por outro lado, a participação de militantes do PCB na
Guerra Civil Espanhola “foi a primeira e única ação militar do partido fora do território
nacional”. Ademais, “a meta inicial era enviar cerca de 100 pessoas, mas a repressão do
governo Vargas acabou dificultando os planos. Essa foi a razão pela qual apenas 22
voluntários ligados ao partido embarcaram para a Espanha, mas, desses 22, apenas 16
combateram” (BATTIBUGLI, 2004: 87).
∗
∗ ∗
É preciso considerar a fotografia, bem como as imagens em geral, como
ingredientes de nossa realidade social. Cumpre assinalar que as imagens servem de
instrumentos para orientar os homens no mundo: historicamente, ao compor a
“textualidade de uma determinada época”; do ponto de vista temporal, ao permitir a
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“presentificação do passado”. Em linhas gerais, o corpus fotográfico será trabalhado
aqui a partir de seu papel no que tange à organização e/ou suporte das memórias dos
voluntários brasileiros. Em vista disso, defende-se aqui a ideia de que as imagens, assim
como textos e testemunhos orais, devem ser vistas como uma forma importante de
evidência histórica, na medida em que registram atos de “testemunha ocular” (BURKE,
2003: 17).
Cabe salientar que as imagens a seguir não podem ser entendidas apenas como
registro mecânico da realidade factual, tampouco apenas como meras “ilustrações”
artísticas do passado, mas sim como um meio através do qual se torna possível
reconstituir as trajetórias dos personagens pesquisados. De forma similar, a fotografia
também permite “[...] reestruturar os quadros de representação social e os códigos de
comportamento dos diferentes grupos socioculturais, em contextos e temporalidades
diversos” (CARDOSO & MAUAD, 1997: 401-418). No limite, “[...] as imagens
fotográficas [...] não se esgotam em si mesmas, pelo contrário, elas são apenas o ponto
de partida, a pista para tentarmos desvendar o passado” (KOSSOY, 1993: 14).
A Guerra Civil Espanhola representa o contexto ideal para o estudo do passado
através das fontes fotográficas, uma vez que foi o primeiro conflito a ser amplamente
fotografado para o grande público, produzindo uma série de fotografias de impacto
extraordinário (BROTHERS, 1997). Por outro lado, as fotografias utilizadas neste
trabalho foram obtidas graças à existência de acervos pessoais dos familiares dos ex-
combatentes e das pesquisas feitas pela historiadora Nélie Sá Pereira. A meu ver, tais
imagens foram cuidadosamente conservadas enquanto “memória cristalizada”, ou seja,
como parte indissociável da experiência de guerra dos militares brasileiros. São,
portanto, fotografias anônimas de valor subjetivo que, “[...] por se encontrarem fora do
contexto em que foram produzidas, revelaram-se através do observador que as recolheu
ou as tornou visíveis” (LEITE, 2001: 64). Enquanto materialização da experiência
vivida, a fotografia cumpre um papel de “[...] agente do processo de criação de uma
memória que deve promover tanto a legitimação de uma determinada escolha quanto,
por outro lado, o esquecimento de todas as outras” (CARDOSO & MAUAD, 1997:
401-418).
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Ora, se a fotografia caracteriza-se como imagem/documento e, simultaneamente,
imagem/monumento, não podemos esquecer também que se ela informa, ela também
conforma uma determinada visão de mundo (MAUAD, 1996: 80). Portanto, é preciso
levar em conta que todo “testemunho fotográfico” se presta à construção/criação de
realidades (KOSSOY, 1993: 15). Como o próprio título deste trabalho indica, a ênfase
maior será dada às relações entre fotografias e memórias de guerra, na medida em que
as imagens se constituem num “[...] excelente documento que preserva em si a memória
dos cenários, personagens e fatos da vida passada” (KOSSOY, 1993: 21), selecionando
o que deve ser lembrado. Em outras palavras, as fotografias representam um conjunto
de regras visuais que trazem à tona as experiências, as memórias e as trajetórias de vida
dos voluntários brasileiros.
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Figura 1
Paris, setembro de 1937.
Voluntários brasileiros em trânsito para a Espanha. Da esquerda para a direita: Lygia Prestes; David Capistrano da Costa; Dona Leocádia Prestes; Victor (?) – oficial de cavalaria do
Paraguai; Celso Tovar Bicudo de Castro; Hernandez Gutierrez – oficial do Paraguai; José Homem Correia de Sá.
Fonte: Nélie Sá Pereira – Arquivo Pessoal
A fotografia acima, registrada pelo ex-combatente Enéas Jorge de Andrade,
exemplifica no plano empírico (visual) a seguinte tese: uma única imagem contém em si
um inventário de informações acerca de um determinado momento passado (KOSSOY,
2009: 107). Não obstante, é preciso reconhecer que algumas imagens “[...] pouco ou
nada informam ou emocionam àqueles que nada sabem do contexto histórico particular
em que tais documentos se originaram” (KOSSOY, 2009: 158). Paris foi palco tanto da
afirmação do apoio aos republicanos como também de um encontro do grupo de
voluntários brasileiros com alguns colegas militares como o major Alcedo Cavalcanti, o
oficial Paulo Machado Carrión e o tenente aviador Carlos Brunswick França, todos
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participantes do movimento aliancista (ALMEIDA, 1999: 55). Nos depoimentos de
Delcy Silveira e Nelson de Souza Alves, os ex-combatentes chamam atenção para o
aspecto desagradável e tenso desta reunião, pois os oficiais citados defendiam de
maneira peremptória que a República havia sido derrotada militarmente. O primeiro,
inclusive, chegou a se manifestar contra a participação do grupo brasileiro naquele
conflito, já que o governo republicano seria incapaz de garantir uma indenização às
famílias em caso de morte em combate:
[...] Logo ficou clara a divisão entre quem queria ir e quem não estava com a decisão tomada. Apesar de terem ido a Paris com destino à Espanha, o Alcedo e o Carrión ficaram na França. Pior ainda é que começaram a criar problemas com o governo espanhol, pois queriam certas garantias que evidentemente o governo espanhol não podia dar. Eles queriam, por exemplo, que o governo espanhol depositasse uma quantia de dinheiro como seguro para a família caso morressem ou fossem invalidados. Os republicanos não aceitariam, pois não estavam pensando em contratar soldados, e sim em contar com voluntários que acreditavam na causa antifascista. Lembro-me que nessa ocasião o Alcedo comentou que a situação era grave, com possibilidades de derrota, pois a Espanha estava dividida em duas zonas equilibradas e que, em vista da progressão da guerra, a República estava derrotada. Enfim, eles achavam que nós não devíamos ir. Aquela era uma decisão estranha, pois as pessoas tinham ido para a luta independentemente da certeza da vitória. Pelo nosso lado, quem falou foi Dinarco Reis, que era ponderado e convicto de nosso ideal. O Alcedo e o Carrión ficaram em Paris e mais tarde deixaram a causa por completo. O argumento do pessoal que não foi à luta era ridículo, pois imagine alguém que vai para uma guerra ideológica como era a da Espanha e pede seguro de vida!3
Mesmo ciente do quadro exposto sobre a situação militar da República
espanhola, dividida em duas, o pequeno grupo de voluntários brasileiros decidiu seguir
em frente com o compromisso assumido, sobretudo após o encontro com dona
Leocádia, mãe de Prestes:
[...] Ela era realmente uma figura incrível. Pena que as pessoas não se dediquem a analisar, a estudar melhor e divulgar sua vida. Pena
3 ALVES, Nelson de Souza. Depoimento, In: MEIHY, José Carlos Sebe Bom. A revolução possível: história oral de soldados brasileiros na Guerra Civil Espanhola. 1.ª ed. São Paulo: Xamã, 2009. pp. 200-201.
9
mesmo, pois as campanhas feitas por ela, internacionalmente, para a libertação do filho, projetaram não apenas ele, mas também o partido brasileiro. Ela era valente como ninguém e foi um exemplo de adesão irrestrita. Neruda dedicou-lhe o poema ‘La madre heroica’4.
Dessa maneira, parte-se aqui do pressuposto de que “[...] o vestígio da vida
cristalizado na imagem fotográfica passa a ter sentido no momento em que se tenha
conhecimento e se compreendam os elos da cadeia de fatos ausentes da imagem”,
melhor dizendo, “além da verdade iconográfica” (KOSSOY, 2009: 124).
No contexto imediatamente posterior a guerra civil na Espanha, outro evento
marcou de maneira indelével as trajetórias dos militares brasileiros, como foi o caso da
passagem pelo campo de concentração em Gurs (França) no inverno de 1939 a 1940. As
imagens a seguir representam o momento seguinte à retirada dos voluntários
estrangeiros, decisão tomada pelo Comitê de Não-Intervenção – formado pelas
chancelarias diplomáticas dos países ocidentais – e ratificada no dia 23 de setembro de
19385. A intenção era retirar as tropas estrangeiras dos dois lados. Contudo, só houve a
retirada dos voluntários do lado republicano6, pois os alemães e italianos que apoiavam
Franco continuaram até o fim da guerra. Em seu depoimento, o ex-combatente José
Homem Correia de Sá recorda o encerramento de sua atuação militar na Espanha da
seguinte maneira:
Fui, depois de tudo isso, para um campo de concentração numa praia do Mediterrâneo, em Gurs, onde havia um areal medonho, localizado
4 SILVEIRA, Delcy. Depoimento, In: MEIHY, José Carlos Sebe Bom. A revolução possível: história oral de soldados brasileiros na Guerra Civil Espanhola. 1ª. ed. São Paulo: Xamã, 2009. p. 146. 5 “[...] Em Moscou também é possível encontrar um documento de 1938, assinado por Dimitrov, chefe da Internacional Comunista, sobre a decisão de ‘liquidar’ as Brigadas. O complexo jogo diplomático voltou a ser predominante: Stalin já não se interessava pela Espanha”. LEFEBVRE, Michel; SKOUTELSKY, Rémi. Las Brigadas Internacionales: imágenes recuperadas (Trad. Marga Latorre). Barcelona, Madrid: Lunwerg Editores, 2003. p. 9. 6 De acordo com os estudos do historiador Rémi Skoutelsky, o número total de voluntários do lado
republicano, durante toda a guerra, chegou a 35.000 e 40.000 homens, incluindo aqueles que só atravessaram os Pirineus por algumas semanas. Ver SKOUTELSKY, Rémi. Las Brigadas Internacionales: algunas definiciones. Congreso La Guerra Civil Española 1936-39, 2006. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2571080>, acesso em 20 de dezembro de 2012. Outro dado a ser destacado é o seguinte: a média de idade da grande maioria dos voluntários estrangeiros girava em torno de 18-36 anos. Ver ALPERT, Michael. El ejército popular de la república, 1936-1939. Barcelona: Crítica, 2007. pp. 247-249.
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a uns 40 quilômetros da fronteira. Os franceses colocaram ali uma imensa massa de gente: militares, civis, velhos, mulheres, jovens e crianças: todos juntos! O que veio da Espanha, ‘jogaram’ lá. E éramos patrulhados por senegaleses, soldados negros e árabes. Os árabes formaram, durante a guerra, a cavalaria: os marroquinos com os cavalos e os negros com a infantaria. Eram de uma violência indescritível. Ficamos no campo de concentração de maio, em pleno verão, até o inverno, mas não podíamos permanecer ali, pois o avanço do frio e a falta de estrutura nos mataria. Quando começou a esfriar, tivemos de cavar buracos para dormir, porque as barracas que nos foram dadas – verdadeiros galpões de lona – não nos protegiam. Mais tarde, por ocasião do inverno, fomos transferidos para um campo de concentração enorme, algo um pouco melhor, e lá passamos o inverno de 1939 para 1940. Nesse campo havia só homens, a maioria composta por estrangeiros das Brigadas Internacionais. Havia uns poucos espanhóis, minoria. Éramos pessoas de todas as nacionalidades, inclusive russos brancos que foram combater na Espanha e por isso foram condenados. Para se reabilitarem, os combatentes esperavam receber do governo francês novos documentos, para assim serem aceitos de volta nos países de origem7.
Durante o período em que ficaram confinados no campo de concentração, os
militares brasileiros receberam a visita do então embaixador Silveira Martins,
oferecendo-lhes a oportunidade de regresso ao Brasil. Os que não tinham condenação
aceitaram: os irmãos Eny e Delcy Silveira, Homero Jobim, Nelson de Souza Alves,
Nemo Canabarro Lucas. Os demais permaneceram na França: Costa Leite, Dinarco
Reis, Joaquim Silveira, Apolônio de Carvalho, Hermenegildo de Assis Brasil e José
Homem Correia de Sá.
Sabe-se que milhares de voluntários oriundos de países que viviam sob regimes
fascistas ou autoritários não podiam abandonar a Península. Muitos ficaram no Exército
Republicano e lutaram até o fim, protegendo a retirada de civis na fronteira com a
França. Conduzidos aos campos de internamento em Gurs e Vernet, cerca de 5.000
veteranos do conflito civil espanhol (alemães, austríacos, italianos, polacos, iugoslavos)
foram presos atrás de cercas com arame farpado em condições indignas. Boa parte
retomou o caminho das armas em 1939 nas legiões organizadas pelo exército francês
7 CORREIA DE SÁ, José Homem. Depoimento, In: MEIHY, José Carlos Sebe Bom. A revolução
possível: história oral de soldados brasileiros na Guerra Civil Espanhola. 1ª. ed. São Paulo: Xamã, 2009. . p. 76.
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ou, mais tarde, na Resistência, onde desempenharam um papel relevante8. Destes,
muitos sofreram punições em seus países de origem, particularmente por terem
participado de “atividades comunistas”. Outra parcela considerável foi perseguida pelo
stalinismo durante a Guerra Fria9.
Embora o testemunho de imagens levante alguns obstáculos no que se refere ao
contexto, função, retórica e lembrança, é preciso ponderar que “[...] se não fossem as
narrativas e as imagens, e também as vozes, transmitidas desde o passado, como chegar
até lá, na tragédia que não presenciamos e na qual não fomos atores?”10. Com efeito, a
principal tarefa do historiador é interpretar o passado a partir dos vestígios de
historicidade deixados.
Figura 2
Voluntários republicanos no campo de internamento francês de Gurs.
Fonte: Dinarco Reis Filho – Arquivo Pessoal
Figura 3
8 Apolônio de Carvalho fugiu em dezembro de 1940, do campo de concentração onde foi confinado, em Gurs, nos Baixos Pirineus, ao sul da França, e se engajou, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, nas fileiras da resistência francesa contra a ocupação alemã. Chegou ao final da guerra, em 1944, ao posto de tenente-coronel das Forças Francesas do Interior, depois de comandar todas as forças de franco-atiradores e partisans formados por imigrantes na costa sul, e condecorado pelo governo francês com a Cruz de Guerra e o grau de cavaleiro da Legião de Honra. Foi em Marselha, no sul da França, que o ex-combatente conheceu Renée, com quem foi casado e teve dois filhos. ARBEX, José. O aniversário da Guerra Civil Espanhola. Folha de São Paulo, 2.º Caderno – Exterior – domingo, 13 de julho de 1986. 9 LEFEBVRE; SKOUTELSKY, 2003, p. 166. 10 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Memória e história: as marcas da violência. Fênix (Uberlândia), v.4, 2006, p. 03.
12
Campo de internamento francês de Gurs.
José Homem Correia de Sá (1) e Dinarco Reis (2).
Fonte: Dinarco Reis Filho – Arquivo Pessoal
13
Referências bibliográficas:
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Brasileiros na Guerra Civil Espanhola: combatentes na luta contra o fascismo. Revista de Sociologia e Política. Curitiba: UFPR, 1999, pp. 35-66. ALPERT, Michael. El ejército popular de la república, 1936-1939. Barcelona: Crítica, 2007. BATTIBUGLI, Thaís. A solidariedade antifascista: brasileiros na guerra civil espanhola (1936-1939). Campinas, SP: Autores Associados, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. BROTHERS, Caroline. War and photography: a cultural history. London: Routledge, 1997. BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem (Trad. Vera Maria Xavier dos Santos). Bauru, SP: EDUSC, 2003. CARDOSO, Ciro Flamarion & MAUAD, Ana Maria, “História e imagem: os exemplos da fotografia e do cinema”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CARVALHO, Apolônio de. Vale a pena sonhar. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. CASANOVA RUIZ, Julián. Europa en guerra: 1914-1945. Ayer, núm. 55, 2004, Madrid, Marcial Pons, pp. 107-126. FERNANDEZ, Jorge Christian. Voluntários da Liberdade: militares brasileiros nas Forças Armadas Republicanas durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). São Leopoldo: Dissertação (Mestrado em História) – UNISINOS, 2003. GROPPO, Bruno. “El antifascismo en la cultura política comunista”. In: CONCHEIRO, Elvira; MODONESI, Massimo; CRESPO, Horacio (coords.). El comunismo: otras miradas desde America Latina. México: UNAM-CEIICH, 2007. JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem (Trad. Marina Appenzeller). 10.ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2006. KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 3.ª ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.
14
______. Estética, memória e ideologia fotográficas: decifrando a realidade interior das imagens do passado. Acervo: Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 6, nº. 12, 1993, pp. 13-24. LEFEBVRE, Michel; SKOUTELSKY, Rémi. Las Brigadas Internacionales: imágenes recuperadas (Trad. Marga Latorre). Barcelona, Madrid: Lunwerg Editores, 2003. LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família: leitura da fotografia histórica. 3.ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. MAUAD, Ana Maria. Fotografia e História: Interfaces. Tempo, Niterói, v. 2, nº. 1, 1996, pp. 73-98. MEIHY, José Carlos Sebe Bom. A revolução possível: história oral de soldados brasileiros na Guerra Civil Espanhola. 1ª. ed. São Paulo: Xamã, 2009. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Memória e história: as marcas da violência. Fênix (Uberlândia), v.4, 2006, pp. 01-15. POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, nº. 10, 1992, pp. 200-212. PRESTON, Paul. A Guerra Civil de Espanha (Trad. António Belo). Portugal: Edições 70, 2005. SKOUTELSKY, Rémi. Las Brigadas Internacionales: algunas definiciones. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2571080>, acesso em 20 de dezembro de 2012.