LÍNGUA, IDENTIDADE E CULTURA: CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DA LÍNGUA TERENA NA ESCOLA SULIVAN SILVESTRE OLIVEIRA –
TUMUNE KALIVONO
Yaisa Melina de Araújo Custódio1 Valdir Aragão do Nascimento2
RESUMO: O artigo em questão aborda o ensino de língua terena na escola Sulivan Silvestre Oliveira, escola que não se caracteriza por ser uma escola indígena. Os objetivos principais da produção desse artigo foram: i) compreender o porquê da implantação do ensino de língua terena na escola Sulivan Silvestre; ii) como o professor prepara as suas aulas, já que não existe material didático elaborado para esse fim; iii) e como, na opinião dos professores, o aluno indígena e o não indígena enxerga o ensino da língua na escola em questão. Os métodos aqui adotados para a realização do trabalho foram: análise bibliográfica sobre os Terena, levando em consideração os aspectos relevantes atinentes ao uso da língua terena para seus falantes; entrevistas com o professor da língua terena e alunos – entrevistas realizadas através de formulários com questões semiestruturadas e livres. O referencial teórico adotado é interdisciplinar, tributário das áreas de Letras/Linguística e Antropologia Indígena, especificamente os textos e teorias voltados ao ensino da língua terena e à relevância desta como instrumento de valorização cultural e autoidentificação identitária. A conclusão a que chegou o trabalho aqui exposto em relação ao ensino/aprendizado da língua terena na escola em questão é que este não se efetiva. Em verdade, a implantação da disciplina na grade da escola não passa de falsa propaganda dos governos do estado de Mato Grosso do Sul em relação à preservação da cultura dos povos indígenas que aqui se localizam. Inserir a disciplina de língua terena em uma escola sem dar suporte logístico e humano é, no mínimo, uma irresponsabilidade e um desrespeito aos povos aos quais essas ações são dirigidas. Palavras-chave: Identidade; Cultura; Ensino; Língua Terena. Grupo De Trabalho 2. Povos Tradicionais, Autonomia E Direitos Humanos
1 Especialista em Antropologia e História dos Povos Indígenas SECADI/MEC/UFMS. Mestranda em Estudos de Linguagens UFMS. Graduação em Letras Português/Inglês/UCDB. 2 Doutorando em Saúde e Desenvolvimento na Região Centro-Oeste/PPGSD/UFMS – Bolsista Capes. Mestre em Antropologia Sociocultural/PPGAnt/UFGD. Bacharel em Ciências Sociais (Sociologia)/UFMS. Professor/orientador do Curso de Especialização em Antropologia e História dos Povos Indígenas SECADI/MEC/UFMS.
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1 INTRODUÇÃO
É inegável o fato de que a língua de um povo é determinante na sua sobrevivência
enquanto nação, haja vista que é através dela que se transmitem conhecimentos; crenças;
valores; ideologias, dentre tantas outras categorias que uma determinada cultura encerra
em sua dinâmica existencial. Uma língua é muito mais que a mera junção de caracteres
linguísticos, ou a combinação entre significantes e significados, é também uma maneira
única de conceber a realidade. Desse modo, cada língua guarda em si um entendimento
particular do mundo (SAPIR, 2013).
Nesse sentido, preservar um idioma é também preservar uma forma sui generis de
concepção e representação do real como apreendido pelos sentidos. É, antes de tudo, uma
codificação elaborada para transmitir pensamentos e promover a interação entre os
indivíduos e, com isso, facilitar a comunicação humana, indispensável a qualquer
organização social3 (SAPIR, 2013; WHORF, 1952).
As culturas não são estáticas, mas dinâmicas. Assim, se transformam ao longo do
tempo, perdendo alguns elementos, ganhando outros, enfim, atendendo à logica interna e
externa que as situações de interação entre indivíduos e povos oportunizam. A língua é
patrimônio cultural de todos os membros de uma dada sociedade, mas não pertence a
nenhum deles de forma particular (WHORF, 1952; HUMBOLDT, 1972; 2006).
Diante da importância da língua na constituição sociocultural e identitária do povo
terena, e da constante desvalorização desse idioma por parte dos seus próprios falantes, o
artigo em questão aborda a problemática que envolve o tema do ensino/aprendizado da
língua terena nas escolas indígenas do estado de Mato Grosso do Sul, tomando como
exemplo a Escola Municipal Sulivan Silvestre Oliveira.
Cada escola tem suas particularidades, portanto, a escolha da Escola Sulivan
Silvestre como objeto desse trabalho não significa que o que nela for constato a respeito do
ensino/aprendizado é valido para todas as outras escolas indígenas, até mesmo porque sua
regulamentação não a define como tal. Assim, opiniões de professores podem divergir dos
3 As contribuições teóricas de Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf ficaram conhecidas pelas denominações de a hipótese Sapir/Whorf e relativismo linguístico. Para mais informações, veja: CUNHA, Adam Fhelipe. A emergência da hipótese do relativismo linguístico em Edward Sapir (1884-1939). 2012. 211 f. Dissertação (Mestrado em Linguística e Semiótica) – Universidade de São Paulo/USP, São Paulo, 2012. Disponível em: www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8139/tde.../2012_AdanPhelipeCunha.pdf Acesso em: 25 fev. 2017.
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dados colhidos em outras pesquisas, o que não diminui a relevância de nenhum deles, são
somente diferentes faces de um fenômeno social.
No entanto, não se buscou aqui verdades universais, mas o delineamento de
formações discursivas válidas sobre o ensino/aprendizado da língua terena em escolas
indígenas e não indígenas. Observamos, baseados em Foucault (1987, p. 135), que um
discurso “[...] é um conjunto de enunciados que se apoiam na mesma formação
discursiva”. Portanto, como observa Porto (2012), é nesse espaço de discursividade que, de
maneira consciente ou não, outras influências, advindas de outras vozes, podem estruturar
em termos inteligíveis a voz desse sujeito; vozes estas que Authier-Revuz (1990) denomina
de “interdiscurso”, “[...] isto é, vozes outras, de outras instâncias de poder, de outros
tempos, que entram no interjogo discursivo pela voz do sujeito identificado, como poder de
fala, de conhecimento.” (PORTO, 2012, p. 28).
2 LÍNGUA, SOCIEDADE E CULTURA ENTRE OS TERENA
A respeito da etnia terena4, o que se sabe é que são o único subgrupo remanescente
da nação Guaná no Brasil, pertencente ao tronco linguístico Aruak. De acordo com a
historiografia5, o povo terena cruzou o Rio Paraguai em meados do século XVIII, por meio
de várias ondas migratórias. Vindos do Chaco paraguaio/boliviano, a mítica região
denominada de Êxiva (Chaco) na história oral terena, tinham como destino à epoca o atual
estado de Mato Grosso do Sul. O grupo à época não era homegêneo, sendo constituído por
Guaná (denominados pelos cronistas de Xané) os Layana, Kinikinaua e Exoaladi, 4 A convenção da ABA de 1953 decidiu que a grafia dos nomes de etnias indígenas deve ser feita com inicial maiúscula, sendo facultativo o uso dela quando tomados como adjetivos. Respeitou-se aqui as diretrizes da convenção, então os nomes das etnias aparecem nesse texto grafados com inicial maiúscula, exceto aquelas em que o nome da etnia funciona como adjetivo. Exemplo: Os Terena; os Xavante; mas o povo terena; o povo xavante; a cultura terena, a cultura xavante. Cf.: ABA (Associação Brasileira de Antropologia) Convenção para a grafia dos nomes tribais. Revista de antropologia, São Paulo: USP, ano 2, número 2, 1954. Disponível em: http://www.juliomelatti.pro.br/notas/n-cgnt.pdf Acesso em 22 jun. 2017. 5 Sobre algumas contribuições sobre a história do povo terena, vide: (1) OLIVEIRA. Roberto Cardoso de. Urbanização e Tribalismo: A integração dos Índios Terena numa sociedade de classes. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. (2) OLIVEIRA. Roberto Cardoso de. O processo de assimilação dos Terena. Museu Nacional. Rio de Janeiro, 1960. (3) PEREIRA, Levi Marques. Os Terena de Buriti: formas organizacionais, territorialização e representação da identidade étnica. Dourados: UFGD, 2009. (4) GARCIA, Adilson de Campos. A participação dos índios Guaná no processo de desenvolvimento econômico do Sul de Mato Grosso (1845-1930). 2008. 145f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados, MS, 2008. (5) CARVALHO, Edgar de Assis. As alternativas dos vencidos: Índios Terena no Estado de São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1997. (6) ALTENFELDER SILVA, Fernando. Mudança Cultural dos Terena. Revista do museu Paulista. São Paulo, n.s, v3, 1946.
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atualmente todos indistintamente reconhecidos sob a generalização nominal de terena
(EREMITES DE OLIVEIRA; PEREIRA, 2007).
A língua terena, da família Aruak, é utilizada por todos aqueles indivíduos que
atualmente se reconhecem, e são reconhecidos, como Terena. No entanto, sua utilização
não é unânime nem no conteúdo nem na forma, tendo frequência bastante variada de uma
aldeia para outra ou mesmo em diferentes territórios. Isso fica claro quando se observa o
uso da língua terna em Buriti e em Nioaque, onde poucos fazem uso desse idioma.
Situação bastante diferente da aldeia Cachoeirinha, em que existem jovens que conhecem
do idioma português apenas rudimentos, comunicam-se em sua grande maioria na sua
língua materna: terena (LADEIRA, 2001).
O Terena pode ser entendido como um povo bilíngue, haja vista o constante contato
que esse povo teve com a sociedade envolvente durante sua trajetória histórica e
sociocultural (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1968; 1976; FERREIRA, 2007). O bilinguismo
aqui aduzido e presente em várias sociedade indígena em todo o país, caso também dos
Terena, não é aquele cujo entendimento leva em questão o domínio total e absoluto da
língua. O Terena fala e entende o português, mas raramente tem domínio sobre os códigos
de escrita constantes da gramática normativa da língua portuguesa (ESPÍNDOLA, 2014).
Contudo, não uma hierarquização entre oralidade e escrita, dado que a segunda é derivada
da primeira e esta perpetua e significa uma interpretação do mundo para além dos
indivíduos, ou seja: “A língua é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser
consideradas em sua solidariedade sincrônica.” (SAUSURRE, 2006, p. 102).
O bilinguismo terena tem ainda particularidades sociológicas, posto que se
distingue da conceituação adotada pelas sociedades não indígenas; sendo entendido como:
[...] uma realidade social em que a distinção entre uma língua "mãe" (por suposto, indígena) e uma língua "de contato" ou "de adoção" (o português, no caso) não tem sentido sociológico. [...] A língua 'materna' para os Terena não tem importância socializadora, no sentido de integrar o indivíduo em um mundo próprio, conceitualmente diferente do 'mundo dos brancos'. Podemos afirmar que seu uso está ligado a uma socialidade apenas afetiva. Em outras palavras, a língua terena não é usada nestas sociedades enquanto sinal diacrítico para afirmar sua diferença frente aos "brancos". Na verdade [...] os Terena têm orgulho de dominarem, inclusive por meio do uso da língua do purutuya [Homem Branco], a situação de contato com a sociedade nacional, e é este domínio que lhes permite continuar existindo enquanto um povo política e administrativamente autônomo (LADEIRA; AZANHA, 2004, p. 1 grifos no original).
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Mas o problema não se localiza somente em relação à língua portuguesa. A própria
língua terena não é conhecida em termos de sinais escritos por grande parte do povo terena.
Nos dias atuais se faz necessário ensinar a língua terena nas escolas, principalmente
aquelas sob a denominação de escola indígena. O idioma nativo vem sendo aos poucos
esquecido pelas novas gerações, que não veem utilidade para o aprendizado da língua na
atualidade (REIS; RODRIGUES; GOMES, 2016).
Por essa razão, os professores de língua terena que atuam na região de Mato Grosso
do Sul acreditam ser uma questão urgente o ensino/aprendizado do idioma, para que não se
percam os inúmeros conhecimentos que essa língua encerra em sua estrutura. Outro motivo
repousa na questão de afirmação identitária, haja vista que o idioma de um povo o
identifica diante das outras etnias e dos membros da sociedade envolvente.
Em que pese à importância do ensino/aprendizado do idioma terena, a tarefa não é
das mais fáceis, dado o nível de dificuldades encontrado no processo: escassez de material
didático6 preparado somente para a língua terena; desvalorização social do idioma por
parte de muitos jovens indígenas, dentre tantos outros empecilhos à realização do trabalho
em sala de aula. No caso específico do material didático, o depoimento de um professor
terena entrevistado por Porto confirma as dificuldades aduzidas:
Pesq. - O que que você acha que é o maior desafio a maior dificuldade pra trabalhar com a língua Terena na Escola, na sala de aula? SP10 - Eu posso responder... eu vejo a maior dificuldade em termo de sala de aula a questão do material... não tem o material didático próprio... sempre temos que tratar criando o dia-a-dia... os livros da sala de aula que vamos trabalhar o texto, não temos o conteúdos específicos pra essa disciplina...[..] até o próprio professor deixa de lado essa disciplina... posso falar por mim mesmo... muitas vezes eu até brinco com ele, vamos deixar o Terena um pouco... mas a gente analisando profundamente você está... a si próprio mesmo também, esta deixando de valorizar sua própria pessoa... e o grupo de professor pra nós trabalhar essa questão é difícil... aqui é difícil... porque até mesmo os... muita dificuldade... e é difícil sim a língua Terena, é difícil... e como a gente não tem esse... esse material tem que está sempre improvisando né... aí se torna difícil nesse ponto (PORTO, 2012, p. 175 grifos no original).
6 Em 2016 a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS abriu vagas para o Curso de Especialização em Língua Terena. O curso de Especialização em Língua e Cultura Terena objetivou a capacitação de professores e a elaboração e desenvolvimento de projetos científicos no âmbito escolar, além de desenvolver gramáticas e dicionários pedagógicos da língua Terena, entre outros aspectos. Mais informações, vide: http://www.uems.br/dead/menu/2f0e236009a4e89951e1931fbb93a707 Acesso em 12 abr. 2017.
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Levando-se em consideração que a língua de um povo é um dos principais veículos
de manifestação e preservação de sua identidade, já que é por meio “[...] dela que a sua
comunidade repassa a sua cultura para os mais jovens, e é a língua que identifica uma
nação através do uso da sua própria língua materna, um povo sem língua é um povo sem
identidade.” (FIALHO, p. 77), é indubitável a necessidade de preservá-la. Mas não
engessada em si mesma, coisa impossível, já que como as culturas a língua é viva e se
transforma ao longo do seu processo histórico; mas como parte indissociável da
constituição sociocultural e psíquica de um povo. A identidade de um povo é algo formado
ao longo do tempo, sendo – em última análise – um processo sociocultural (HALL, 2006);
e a língua é – desse processo – o instrumento básico e indispensável.
Os professores terena sabem disso, reconhecem a importância da língua na
construção da identidade de um povo. Isso pode ser verificado na fala de um professor
terena entrevistado por Porto em 2012:
Pesq. - Professor, qual a importância da língua para você e qual a relação que você faz entre a língua e a identidade?
SP3 - É uma questão política... de sobrevivência... porque pra você sobreviver você precisa trabalhar... e se você falava Terena e falava mal o português antigamente como é que você ia se comunicar com seu patrão... por mais que seja na fazenda e nas outras regiões... é um motivo muito forte... e hoje já tá... sabe.... valorizando mais as coisas da língua... o pessoal já tão voltando...[...]... pra ter uma identidade completa eu acredito que a língua tá no meio da identidade... não só a língua... mas a cultura... a dança né... isso que eu acredito.... eu acredito que: que a língua faz parte da nossa identidade... É... como você vai responder a uma pessoa que tá pedindo pra você falar em Terena sendo que você não é um falante... então eu acho pra mim que a língua é muito importante... faz parte.... (PORTO, 2012, p. 163).
Desse modo, irremediavelmente associada à formação sociopsíquica e cultural dos
indivíduos, a língua e o universo infinito de suas possibilidades constituem-se em
[...] um sistema social e não um sistema individual. Ela preexiste a nós. Não podemos, em qualquer sentido simples, ser seus autores. Falar uma língua não significa apenas expressar nossos pensamentos mais interiores e originais; significa também ativar a imensa gama de significados que já estão embutidos em nossa língua e em nossos sistemas culturais (SAUSSURE apud HALL, 2006, p. 40).
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O papel das escolas bilíngues é de extrema relevância, já que se configuram em
alternativa para perpetuar os idiomas indígenas, ameaçados de extinção, como observa
Potiguara.
O aprendizado das línguas indígenas na escola pode proteger e promover os usos dessas línguas minoritárias perante a língua portuguesa, sem que uma seja considerada superior à outra. Todas as línguas indígenas no Brasil se encontram em risco de extinção e seu uso nas escolas pode trazer a revitalização e modernização com a criação de novos léxicos, a adoção da escrita da língua em materiais didáticos e paradidáticos de autoria indígena e a produção de vídeos para valorização do uso oral [...] (POTIGUARA, 2017, p. 1).
No tocante à presença de indígenas, o estado de Mato Grosso do Sul é bastante
pródigo, tendo a segunda maior população do país com nove etnias que, conforme os dados
colhidos pelo censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010),
contabilizavam em 2010 73.295 indivíduos; dos quais, 14.457 residentes em áreas urbanas,
sendo 5.898 em Campo Grande, capital do estado. Por conta desse número expressivo, os
indígenas são facilmente identificados nos perímetros urbanos e rurais das cidades do
estado, frequentando escolas públicas municipais, estaduais e cursos universitários (REIS;
RODRIGUES; GOMES, 2016).
Em relação à etnia terena, são 7948 falantes da língua nativa, segundo o IBGE
(2010), sendo a terceira língua mais falada por indígenas na região – a primeira é a
guarani-kaiowá (25687) seguida pela língua xavante (13248). Habitam os seguintes
territórios: Aldeinha; Araribá; Buritizinho; Dourados; Lalima; Nioaque; Pilade Rebuá;
Nossa Senhora de Fátima; Cachoeirinha; Buriti; Terena Gleba Iriri; Kadiwéu; Icatu;
Taunay/Ipegue; Água Limpa e Limão Verde.
O povo terena sofreu grandes mudanças devido ao intenso contato com a sociedade
envolvente. Dessas mudanças, ressaltam-se às atinentes à construção das casas; as
vestimentas; ao trato com a terra e à produção de alimentos. Mas apesar dessas
transformações, a língua terena ainda existe em muitas aldeias (SILVA, 2013).
O autor em questão acredita que a língua permaneceu inalterada. Em certa medida,
o raciocínio está correto. Por exemplo, a fala dos anciãos é ainda preservada em sua
essência, principalmente por aqueles que não falam a língua portuguesa. Mas os adultos
mais jovens não possuem o mesmo vocabulário e nem dominam com maestria as
construções linguístico/semânticas presentes no idioma terena, e boa parte dos
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adolescentes não conhece nem os rudimentos da língua, nem têm interesse em aprender
(REIS; RODRIGUES; GOMES, 2016).
A esse respeito, o professor de língua portuguesa e índio terena Aronaldo Júlio
afirma que a língua: “[...] mesmo falada em minha comunidade, perdeu muito de seu
contexto linguístico, extralinguístico, estrutural, e nos aspectos lexicais, fonéticos e
fonológicos, morfossintáticos e semânticos.”; em outras localidades, complementa, “como
Limão Verde, Ipegue, Buriti, por exemplo, está desaparecendo.” (JÚLIO; SOUZA. 2014,
p. 3).
Esse fato verificado por Aronaldo (2014) traz à baila questões referentes ao
letramento versus oralidade. Aqui, as dificuldades são facilmente perceptíveis,
notadamente aquelas voltadas ao letramento de indivíduos em uma segunda língua (o
português do Brasil), em que “[...] a primeira (a língua terena) se mantém numa relação de
adstrato, cujo povo, originalmente, advém de cultura ágrafa [...]” (REIS; RODRIGUES;
GOMES, 2016).
Em verdade, como observa o professor terena Ramão Alves, a língua tem sofrido
ao longo dos anos um processo de esquecimento
[...] Eu acho é o seguinte que não só a escola, por exemplo, onde eu trabalho, mas como a comunidade inteira precisa de buscá novamente a língua Terena que já tá no esquecimento há muito tempo. Olha, eu quando era criança em 1954 a aldeia inteirinha falava a língua Terena, aí a partir de 1965 pra cá aí já começou [...] A Língua Terena ir sumindo devagarzinho, com aquele povo antigo foram falecendo, e aí os novos pais não botaram em prática aquilo que era necessário pra nossa comunidade, hoje a gente tem que buscá, incentivá as crianças, talvez os pais, as mães prá pode levá os seus filhos a escola aprender falar a língua Terena (BROSTOLIM; CRUZ, 2010, p. 48).
Mas levar mães e pais aos bancos escolares é uma estratégia inviável nos dias
atuais, cheios de mil afazeres e obrigações de toda sorte. Soma-se a isso o fato de as
escolas indígenas não possuirem infraestrutura e logística para atender esse tipo de
demanda, haja vista as condições vigentes na educação no estado de Mato Grosso do Sul e
no país de forma geral. Outro fator preponderante é o crescente desinteresse no
aprendizado da língua por parte dos jovens terena.
Mas em algumas aldeias, a situação é completamente diferente. No entanto, o
interesse dos jovens no aprendizado da língua terena é fruto de outras ambições, não se
constituindo em uma preocupação com a preservação da identidade terena ou mesmo com
questões culturais. Assim, querem aprender o idioma para disputar uma vaga nos
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concursos públicos para professor de língua terena ou trabalhar na área de saúde, em que
também se exige domínio do idioma terena. Atesta a assertiva o depoimento colhido por
Porto sobre o tema:
[...] pra você fazer um concurso hoje você tem que ser falante... então o que que tá acontecendo.... nas aldeias onde os jovens... essas pessoas já não são falantes... estão procurando a voltar a falar o Terena por causa desta questão... entendeu... o último concurso que teve... teve a questão da língua Terena [...] concurso do município... pra professor... não só de professor... mas na área da saúde também... em todas as aldeias têm postos de saúde e tem ESCOLA... é só para os indígenas... quer dizer... tem vinte vagas para... para área indígena... então os vinte primeiros colocados ocupam essas vagas... mas pra você passar você tem que saber ler e escrever a língua Terena... então o que que tá acontecendo... os professores... as pessoas né... aconteceu um caso que vai ser contratado no hospital da cidade em Aquidauana... aí a candidata que passou... ela assim... num falava mais a língua Terena... aí foi chamada... nós queremos escutar se você fala realmente a língua Terena porque você vai tá acompanhando as pessoas que não sabem falar o português quando chegarem lá no hospital... o que que aconteceu... ela chegou falando o Terena... quer dizer... essas questões faz com que as pessoas voltem... sabe... a falar o Terena... antigamente era discriminado... as pessoas falavam assim... ah... é uma língua pobre... língua: sabe... da minoria... você tem que falar o português porque o português é mais chique... hoje não.. as pessoas... os mais jovens... as pessoas que moram aqui até as pessoas que moram na cidade eles não tão deixando de falar mais a língua Terena por causa disso... (PORTO, 2012, p. 164).
A questão da utilidade do aprendizado de um idioma é uma constante nos discursos
de jovens, tanto indígenas quanto não indígenas. Tal comportamento é fruto de uma
educação em que se educa o indivíduo apenas para o trabalho, para ocupar este ou aquele
espaço em um mercado cada vez mais exigente e menos generoso nas suas
contraprestações. As escolas públicas e particulares produzem em massa pessoas alienadas
em relação ao seu papel politico e social, mas exímios conhecedores do que é preciso
vender no Mercado de trabalho. Portanto, como assevera Bourdieu (1996, p. 4) “[…] toda
situação linguística funciona como um mercado onde se trocam coisas […]” Essas coisas
são bens simbólicos, que sob a égide da lógica do capital adquire valor econômico, aos
quais se atribui – quase sempre – mais prestígio do que o valor sociocultural.
A língua, assim considerada, é também uma mercadoria à venda, não pelo seu valor
sociocultural, pela enorme riqueza de sentidos e saberes que encerra em sua essência, não
pelas possibilidades de outras formas de conceber o mundo material e imaterial, ou ainda
como último instrumento de defesa e manutenção de identidade étnica; mas pelo preço e
prestígio social que seu domínio pode valer na realidade contemporânea da lógica
capitalista, em que não só o que é sólido desmancha no ar.
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2.1 O ENSINO DA LÍNGUA TERENA NA ESCOLA SULIVAN SILVESTRE OLIVEIRA TUMUNE - KALIVONO
São comuns em várias partes do país as narrativas de professores de responsáveis
por ministrar as disciplinas relacionadas ao aprendizado das línguas portuguesa, inglesa e
espanhola. A realidade, guardadas das devidas proporções, é a mesma em relação ao
aprendizado das línguas indígenas por parte de membros não falantes das etnias. O teor dos
discursos segue a linha dos fracos desempenhos alcançados por esses alunos no tocante à
apreensão e domínio do conteúdo das matérias supracitadas. Em verdade, professores se
surpreendem com inadequação das respostas às questões que formulam aos alunos, e estes,
por sua vez, alegam serem ininteligíveis – e por isso não cognoscíveis – os enunciados
elaborados para aferir suas competências linguísticas (SOUZA, 2012).
A linguística, mais especificamente a linguística aplicada, tem investigado esses
problemas em relação ao ensino/aprendizado, em que professores são acusados de não
saberem formular suas questões, para melhor transmitir os conteúdos programáticos de
suas disciplinas, e os alunos incompetentes nas suas tentativas de compreensão das normas
e sutilezas das línguas às quais se debruçam na esperança de aprendizado
(CONDEMARÍN, 2005; MOITA LOPES, 2005).
Nessa condição, digamos, complicada e aparentemente insolúvel, a linguística
aplicada desponta como a disciplina que tem o potencial de mudar essa situação, haja vista
que uma “[...] disciplina que se ocupa e, exclusivamente, de situações em que o homem usa
a língua para falar dela mesma.” Mas é necessário reconhecer que este ramo da ciência não
tem, sozinha, o poder de transformar a realidade do ensino/aprendizado no Brasil. Muitos
outros fatores entram em cena na tomada de decisão e na possibilidade de real efetivação
das sugestões elaboradas pelos teóricos da área.
Diante do exposto, é forçoso reconhecer as inúmeras influências de diversos setores
da realidade social do país, tais como a dinâmica por vezes insondável da classe política e
econômica brasileira; as divergências técnico-teóricas e ideológicas que perpassam o
exame e as decisões a respeito dos temas atinentes ao ensino/aprendizado de idiomas.
No caso do ensino/aprendizado da língua terena na Escola Municipal Sulivan
Silvestre Oliveira, a situação atinge um nível preocupante. Não há, segundo os professores
da escola, material didático preparado para facilitar as atividades pedagógicas de ensino, o
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que deixa sob a responsabilidade do professor engendrar os mecanismos que possibilitem a
apreensão dos rudimentos da língua terena por parte dos alunos.
Diante da falta de material, surgem algumas indagações: como os professores que
ministram a língua terena elaboram seus planos de aula, que material costumam utilizar? O
que eles acham da falta de material didático/pedagógico em relação ao ensino da língua
terena?
De acordo com as informações dos professores da escola, em entrevistas7 realizadas
com a autorização da diretora e com a anuência dos docentes, a falta de material é um fator
comprometedor para a aprendizagem, pois segundo o relato dos professores, os alunos
vieram a receber o kit escolar na escola apenas na semana passada, ou seja, na metade do
ano letivo. Eles afirmaram que os cadernos que os alunos têm, seja do ano anterior ou
porque as mães se esforçaram para comprar, são destinados primeiramente às outras
disciplinas.
Os planos de aula no tocante à disciplina de língua terena de são elaborados
juntamente com a ajuda da coordenadora e diretora, e a elas são solicitadas sugestões de
conteúdos a serem ministrados em sala de aula. Existe uma orientação curricular para as
disciplinas de Língua Terena e Arte e Cultura, que são os diferenciais na matriz curricular
da escola, no entanto, a coordenadora disse que até o final do ano pretende, juntamente
com o professor e ajuda da SEMED, reestruturar tais orientações, pois estas foram feitas
em ocasião de anos passados.
O responsável pela disciplina de língua terena, respondendo à questão “Como se dá
o ensino da língua terena na escola Escola Municipal Sulivan Silvestre Oliveira - Tumune
Kalivono?”, relatou que “Acontece do Pré ao 5º ano, com uma aula de 50min em cada
série por semana, contando com um professor Terena, que ministra as aulas para todas as
7 Entrevistas realizadas no dia 20 do mês de junho, de 2017, nas dependências da Escola Municipal Sulivan Silvestre Oliveira – Tumune Kalivono, situada na Aldeia Urbana Marçal de Souza, no bairro Tiradentes, em Campo Grande/MS. Foram entrevistados a coordenadora do pré ao 5º ano, dois alunos do 5º ano, um sendo indígena e o outro não, e o professor da disciplina de Língua Terena. As entrevistas ocorreram tanto na sala da coordenação, com a coordenadora, quanto na sala de reforço, espaço que a coordenadora nos concedeu para que se pudesse haver uma conversa sem ruídos com outros alunos e influência do ambiente externo. Conversas informais também ocorreram, tendo vários alunos contribuído com suas opiniões. As entrevistas foram registradas mediante a gravação de voz e também com o registro no caderno de campo, conforme diretrizes estabelecidas no período de orientação desse trabalho.
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turmas8.” [Entrevistado/professor n. 1]. No que diz respeito ao tempo, o professor acha
insuficiente:
O nível de aproveitamento dos alunos pra 50 min de aula por semana é muito baixa. Gastamos em media 10 min de acolhida mais 5min até chegar na sala de aula mais 5min de organização e chamada. Em media menos de meia hora. Assim não tem como render [Entrevistado/professor n. 1].
A opinião do professor de língua terena é compartilhada por professores de outras
disciplinas cujo objeto é o ensino de idiomas, a exemplo do inglês e do espanhol. Apesar
de não lecionarem essas línguas na escola Sulivan Silvestre, porque a escola não tem inglês
e espanhol na sua grade curricular, os professores que se dedicam a essas matérias, por
conta de suas formações acadêmicas, geralmente na área de Letras/Inglês ou
Letras/Espanhol, concordam que 50 minutos de aula distribuídos durante a semana é
insuficiente.
Em relação ao número e à formação dos professores que atuam na escola em tela,
tem-se que ao todo são 23 profissionais, sendo que apenas um deles é habilitado – por ser
falante da língua terena – a ministrar a disciplina. O professor não concluiu ainda sua
formação superior, cursa Letras na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul/UEMS,
mas é formado no antigo Magistério; e por isso recebe seu soldo como professor leigo. As
formações acadêmicas foram realizadas nas áreas de Letras, Pedagogia e Licenciatura
Indígena. Foi indicado à vaga pelo antigo titular do cargo, que também é da etnia terena e
atualmente está lotado na SEMED – Secretaria Municipal de Educação, na DED – Divisão
de Educação e Diversidade.
A escola Sulivan Silvestre Oliveira, que não é uma escola indígena, tem a disciplina
de língua terena em sua grade por cinta de sal localização, dentro da aldeia urbana Marçal
de Souza, que na ocasião de sua criação estava pronta para atender aos filhos dos índios
terena desaldeados que estavam em idade escolar (HEIMBACH, 2008).
Os alunos, quando inqueridos sobre a importância da disciplina língua terena,
afirmaram que “É importante pra poder falar com um indígena caso ele não saiba a língua
portuguesa” [Entrevistado/aluno não indígena n. 1]. A disciplina é obrigatória, mas o
8 As falas/depoimentos dos entrevistados serão apresentadas no texto entre aspas e em itálico, até três linhas; e com letra menor (fonte 11) e com recuo à esquerda de 3cm e espaço simples. O expediente é para destacar as falas dos interlocutores das citações de excertos de textos chamados ao manuscrito para corroborar, contestar e/ou contextualizar os argumentos expostos no discurso do autor deste artigo.
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professor não passa tarefa, não há avaliação com “provas”, apenas a disciplina no quadro e
algumas aulas na sala de informática para fazer pesquisa sobre a língua e os costumes. A
escola possui uma matriz curricular diferenciada em que estão inseridas as disciplinas de
Arte Cultura e Língua Terena.
O descaso do município de Campo Grande com o ensino/aprendizado da língua
terena na Escola Sulivan Silvestre Oliveira é patente. Segundo o professor que ministra a
disciplina, quando da realização de treinamentos e cursos de capacitação, a disciplina não é
contemplada, não havendo preocupação com aspectos técnico-metodológicos na
transmissão de conhecimentos concernentes ao ensino da língua terena.
Importante destacar que, a Semed oferece formação para professores em média 4x
ao ano. O professor de língua terena relatou que sempre que vai às formações não há
atendimento específico para sua disciplina. Disse também que, até ano passado, a Divisão
de Educação e Diversidade – DED oferecia 1x na semana oficina da língua para as escolas
que possuem crianças indígenas, como a escola João Candido de Souza, Frederico Soares,
Oliva Enciso e Rachid Saldanha Derzi, e que este ano não obteve continuidade.
Se o município decidiu pela opção de ensino de língua terena, deveria levar em
consideração as diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e fazê-lo com o
mínimo de respeito aos alunos, e não como mera propaganda de uma falsa preocupação
com as populações indígenas e suas culturas.
A propósito da menção aos Parâmetros Curriculares Nacionais, estes preconizam
que
O domínio da língua, oral e escrita, é fundamental para a participação social efetiva, pois é por meio dela que o homem se comunica, tem acesso à informação, expressa e defende pontos de vista, partilha ou constrói visões de mundo, produz conhecimento. Por isso, ao ensiná-la, a escola tem a responsabilidade de garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes linguísticos, necessários para o exercício da cidadania, direito inalienável de todos (PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS, 2001, p. 21).
Perguntados a respeito do grau de dificuldade percebido pelos alunos em relação ao
aprendizado da língua terena, em comparação com o Inglês ou o espanhol, alguns não
souberam responder em razão de que nunca tiveram essas disciplinas como objeto de
estudo. A escola não disponibiliza, como já observado, as disciplinas de língua inglesa e
espanhola em sua grade. Fato que desagrada a maioria dos alunos com quem se
estabeleceu relação durante o trabalho de campo.
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Os alunos disseram que gostariam de aprender inglês e/ou espanhol, afirmaram
categoricamente que trocariam – caso lhes fosse facultado escolher – as aulas de língua
terena por aulas de inglês e/ou espanhol. A assertiva não advém somente de alunos não
indígenas. Discentes indígenas, em sua maioria da etnia terena, também alegaram que, se
pudessem escolher, preferiam estudar outras línguas, como as mencionadas.
Nesse sentido, chama atenção a importância do contato direto e cotidiano com a
língua que se quer aprender, não importa qual idioma seja, se não houver continuidade,
exercício diário no uso da língua em suas formas clássicas: falada, escrita, e ouvida, a
empreitada fica comprometida e o aprendizado muito mais difícil de ser alcançado. Face à
ausência de referenciais diários e frequentes no que respeito à língua terena, dado que
distante dos bancos escolares o contato com falantes da língua terena não é constante, o
aprendizado da língua não se realiza; já que este só é realmente apreendido em todas as
suas formas se e quando “[...] o aluno encontra a relação com a sua língua materna e sua
realidade.” (AOKI, 2013, p. 7).
O aprendizado da língua terena não é levado a sério pela maioria dos alunos, já que,
como alegaram, “ninguém reprova, então a gente nem estuda”. A disciplina só é objeto de
atenção dos discentes quando a realização de alguma atividade está associada a pontos que
serão destinados a outras matérias. O desprestígio em relação à língua terena na Escola
Sulivan Silvestre Oliveira também atinge o professor responsável por ministrá-la: quando
há reunião de pais, os outros professores têm sala para atender e conversar com os pais,
algo que não acontece com ele.
3 ANÁLISE DO DISCURSO DOS ENTREVISTADOS
O discurso é, em última análise, um constructo elaborado no contexto sociocultural
no qual se localizam os indivíduos, assim sendo, consiste em uma construção linguística
intrinsecamente associada à dinâmica dialética da realidade que a produz. Em outras
palavras, as idiossincrasias e as ideologias emanadas pelos sentidos do discurso são
determinadas, de maneira direta, pelo contexto sociocultural e político no qual estão
inseridos seus autores. O discurso é, assim, produto das inúmeras relações estabelecidas
entre os indivíduos e a estrutura social que os normatiza (FOUCAULT, 1987).
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A propósito da menção à ideologia, Pêcheux a considera a matriz por excelência do
sentido, em que as palavras, expressões, proposições “[...] mudam de sentido segundo as
posições sustentadas por aqueles que as empregam, o quer dizer que elas adquirem seu
sentido em referência a essas posições, isto é em relação às formações ideológicas.”
(PÊCHEUX, 1995, p. 160).
Tomando como partida o exame apurado dos vários aspectos que correspondem às
estruturas discursivas, obtém-se sua característica mais relevante e significativa: o sentido.
Mas não um sentido marcado pela fixidez dos elementos que o compõem, mas sim um
sentido que se expressa e se localiza na sua ordem de emissão e pelos conteúdos que
perfazem e o constituem.
As razões de os sentidos oriundos dos discursos não serem fixas, enquistadas em si
mesma, é que estes funcionam a partir de determinantes inseridos pelo contexto, pela
estética, pela ordem do discurso e pela sua forma de construção. Desse modo, o sentido do
discurso é dotado de plasticidade conceitual, haja vista sua constante abertura às inúmeras
possibilidades de interpretação das mensagens por parte de seus receptores.
Os discursos veiculados pelos entrevistados na escola Sulivan Silvestre Oliveira
localizam-se nessas esferas de sentido, são tributários da realidade e das experiências
particulares e coletivas desses sujeitos. Traduzem, dessa maneira, a realidade como esta se
lhes apresenta aos sentidos, sempre levando-se em conta os aspectos idiossincráticos e
ideológicos de suas posições.
Não se apresentam nos discursos dos interlocutores o aspecto eminentemente
político das condições a que são submetidos os profissionais e alunos no processo
cotidiano de ensino/aprendizado da língua terena na escola em tela. As reclamações não
mencionam as estruturas político-oligárquicas e clientelistas que vicejam na forma de fazer
política no estado de Mato Grosso do Sul. A análise que surge das entrevistas e da
verificação in loco da situação da educação, especificamente o ensino aprendizado da
língua terena, é bastante negativa, dado a falência dos propósitos preconizados pelos PCNs
no Brasil.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ensino/aprendizado da língua terena na Escola Municipal Sulivan Silvestre está
muito distante de alcançar seus objetivos. Não há preocupação por parte do município de
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Campo Grande com o real domínio da língua terena, seja por alunos indígenas ou não
indígenas. Existe apenas preocupação, de parte dos gestores da educação do município de
Campo Grande, em parecer preocupados com a cultura indígena e com a ameaça da perda
de seu idioma materno.
Atesta a afirmação o crescente descaso com a educação em todas as esferas de
governo, cortes contínuos de orçamento; pouco ou nenhum investimento efetivo na
formação continuada de professores; salários defasados em relação a outras profissões de
nível superior, dentre outros fatores.
O trabalho aqui desenvolvido teve como um dos objetivos principais compreender
o porquê da implantação do ensino de língua terena na escola Sulivan Silvestre; a resposta
de que a razão reside no fato de a escola se localizar em aldeia urbana é aceitável do ponto
de vista do discurso político enquanto estratégia de marketing de imagem.
Durante a realização da pesquisa, constatou-se a inviabilidade do ensino e do
aprendizado da língua terena na escola em questão, isso porque não há investimentos do
estado e do município no que tange ao ensino de línguas na escola em análise. Em verdade,
haja vista o fraco desempenho do povo brasileiro no domínio de idiomas, a falta de
preocupação se estende ao governo federal e aos prepostos que respondem pelos seus
ministérios, não só do governo atual, mas de diversos outros ao longo da história do país.
A disciplina de língua terena não conta com suporte pedagógico para suas
atividades, por não ser obrigatória, os alunos não se importam com a apreensão dos
conteúdos referentes à matéria; não desenvolvem as atividades que lhe são solicitadas a
não quando estas estão vinculadas a outras disciplinas e sua realização lhes permite a
permuta de pontos entre elas.
Não existe, a bem da verdade, interesse em aprender a língua terena por parte dos
alunos, nem indígenas nem não indígenas. Isso porque desconhecem a importância do
domínio do idioma para a preservação de sua identidade indígena, para a manutenção de
sua cultura e modos de vida. Cultura e modos de vida que os mais jovens não querem
preservar, a não ser se isso lhes trouxer alguma vantagem nas disputas por espaços de
trabalho na sociedade envolvente.
A imposição de apenas um idioma na escola, em detrimento de outros cuja
preferência é facilmente identificável na fala dos entrevistados, pelas razões já
apresentadas, é demonstração de insensibilidade política e ignorância cultural. Decisão
tomada de maneira arbitrária, sem consulta prévia aos jovens, maiores interessados no
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tema, só atesta o caráter antidemocrático dos grupos político-partidários que têm
governado o estado e o município de Campo Grande nos últimos anos.
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