UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA.
ÉLISSON DE OLIVEIRA GONÇALVES.
CONFISSÕES DO FIM:
Quando a necessidade de existir transforma-se na necessidade de escrever
Goiânia
2011
TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E
DISSERTAÇÕES ELETRÔNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG
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1. Identificação do material bibliográfico: [ X] Dissertação [ ] Tese
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Autor (a): Elisson de Oliveira Gonçalves
E-mail: [email protected]
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Vínculo empregatício do autor Secretaria de Estado da Educação de Goiás
Título: Confissões do fim: quando a necessidade de existir se transforma na
necessidade de escrever
Palavras-chave: Narrador não-confiável, confissão do fim, compulsão, escrita. Título em outra língua: Confessions of the end: when the need of being becomes in
the need of writing.
Palavras-chave em outra língua: Unreliable narrator, confession of the end, compulsion,
writing. Área de concentração: Estudos Literários
Data defesa: (07/07/2011)
Programa de Pós-Graduação: Letras e linguística
Orientador (a): Prof. Dr. Anselmo Pessoa Neto
E-mail: [email protected]
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suscita justificativa junto à coordenação do curso. Todo resumo e metadados ficarão sempre disponibilizados.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA.
CONFISSÕES DO FIM:
Quando a necessidade de existir se transforma na necessidade de escrever
Élisson de Oliveira Gonçalves.
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
do Programa de Pós-Graduação em Letras e
Linguística da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Goiás, como
exigência para obtenção do título de MESTRE
EM LITERATURA. Orientador: Prof.º Dr.
Anselmo Pessoa Neto.
Goiânia
2011
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)GPT/BC/UFG
G635cGonçalves, Élisson de Oliveira.
Confissões do fim [manuscrito]: quando a necessidade de existir se transforma na necessidade de escrever / Élisson de Oliveira Gonçalves. - 2011.
151 f.
Orientador: Prof. Dr. Anselmo Pessoa Neto.Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de
Goiás, Faculdade de Letras, 2011. Bibliografia.
1. Análise do discurso narrativo - Narrador não-confiável 2. Estudos literários comparados - Confissão do fim. 3. Literatura comparada. 4. Análise do discurso - Escrita. 5. Memórias Póstumas de Brás Cubas. 6. O falecido Mattia Pascal. 7. A família de Pascual Duarte. 8. Assis, Machado de. 9. Pirandello, Luigi. 10. Cela, Camilo José. I. Título.
CDU: 82.091
ÉLISSON DE OLIVEIRA GONÇALVES
CONFISSÕES DO FIM: quando a necessidade de existir se transforma na necessidade de
escrever.
Dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, para a obtenção do título de Mestre,
aprovada em 07 de Julho de 2011, pela Banca Examinadora constituída pelos professores:
_______________________________________________________
Prof. Dr. Anselmo Pessoa Neto – UFG
Presidente da Banca
_______________________________________________________
Prof. Dr. Heleno Godói de Souza – UFG
________________________________________________________
Prof. Dr. Luís Alberto Nogueira Alves – UFRJ
Goiânia
2011
À minha mãe, companheira de mestrado e conselheira,
aos professores Anselmo e Heleno, pessoas que um dia almejo
alcançar em grau de sabedoria e conhecimento, e aos grandes
romancistas, nobeis ou não, por terem nos confrontados com o
mundo da ficção.
AGRADECIMENTOS
A DEUS, por nos conceder as faculdades de escolha e reflexão.
À família, por ter acreditado e insistido no valor do mestrado.
À Sylmara, minha esposa, pessoa que mais conviveu com meus anseios e minhas limitações.
Aos amigos e parentes que fizeram de suas expectativas um incentivo constante.
À Kelly Cristine, Thales, Elza, Raphaela e Priscila.
Ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás
representado por sua coordenadora, Profª. Drª. Kátia Menezes de Sousa e pelos secretários
administrativos Bruno Calassa e Consuelo de Lourdes pela atenção dispensada às muitas
demandas dos pós-graduandos.
Ao Prof. Dr. Anselmo Pessoa Neto, orientador desta dissertação que com sinceridade e
sabedoria soube sempre acrescentar e me guiar na busca por respostas para minhas
inquietações na superação desta fase acadêmica.
À professora Drª Suzana Cannovas.
Aos meus sogros, seu Constantino e dona Áurea.
Às irmãs dona Julieta e dona Geralda, ao seu Wivaldo e Waldelísia.
Aos professores Drª. Zênia de Faria, da UFG, Dr. Heleno Godói de Souza e Dr. Luís Alberto
Nogueira Alves, da UFRJ pela leitura atenta e pelas observações feitas, no intuito de
contribuir para a consumação deste trabalho.
RESUMO
Esta dissertação analisa comparativamente os romances Memórias póstumas de Brás
Cubas, de Joaquim Maria Machado de Assis, O falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello, e
A família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela, tendo como foco o entrecruzar de
discursos narrativos em primeira pessoa, ou seu predomínio, que resulta no que propomos
chamar aqui de “confissões do fim”. Nessas obras, o narrador escreve sua história para
justificar o seu fracasso de vida e sobreviver no e através de seu livro, como forma de burlar a
morte. Esse tipo de narrador, o narrador-escritor, que alega ser o autor do livro de memórias
que nós leitores lemos, é pouco digno de confiança, de acordo com a classificação proposta
por Wayne C. Booth, em A retórica da ficção. Em relação às suas configurações textuais,
essas “confissões do fim” são vistas como textos forjados por seus supostos autores, como
narrativas confessionais cujo intento é convencer o leitor a aceitar o seu ponto de vista. Ao
avaliar esse tipo de discurso comprometido, podemos analisar as formas como o homem é
problematizado por meio de modelos negativos de vida, que o forçam a formalizar teses para
resgatar suas próprias imagens. Por termos modos paralelos de construção de sentido (de um
lado, os autores efetivos, de outro, os supostos autores, personagens-narradores), a construção
da escrita ficcional representa o modo através do qual podemos questionar as dolorosas
figuras dos personagens em questão. Através de suas narrativas e de sua compulsiva
necessidade de escrever, mesmo se tendenciosamente, esses narradores-escritores garantem a
si próprios uma vida perene.
Palavras-chave: Narrador não-confiável, confissão do fim, compulsão, escrita.
ABSTRACT
This thesis comparatively analyses the novels Posthumous Memoirs of Bras Cubas,
by Joaquim Maria Machado de Assis, The Deceased Mattia Pascal, by Luigi Pirandello, and
Pascual Duarte’s Family, by Camilo José Cela, having as its focus the intercession of
narrative speeches in the first person, or its predominance, which results in what we propose
to call here “confessions of the end”. In those works, the narrator writes his story to justify his
failure in life and to survive in and through his book, as a way of tricking death. This kind of
narrator, the writer-narrator, who claims to be the author of the book of memories that we
readers read, is very unreliable, according to the classification proposed by Wayne C. Booth
in The Rhetoric of Fiction. In relation to its textual configurations, these “confessions of the
end” are seen as texts forged by their supposed authors and as confessional narratives whose
aim is to convince the reader to accept their point of view. When we evaluate this kind of
compromised speech, we can analyze the forms through which man is problematized through
negative patterns of life which force him to formalize thesis in order to rescue his own image.
Since we have parallel ways for the construction of meaning (on one side, the actual authors;
on the other, the supposed authors-narrators-characters), the construction of the fictional
writing represents the way through which we can question the painful figures of the characters
in question. Through their narratives and their compulsive necessity of writing, these
narrators-writers grant themselves a perennial life.
Key-words: Unreliable narrator, confession of the end, compulsion, writing.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10
1. “EU”, “ME CHAMO”, “EU (NÃO) SOU...” ....................................................................... 23
1.1. DO PONTO DE PARTIDA E O SEU CONSTANTE RETORNO: A NECESSIDADE DE
SE ENTENDER O TÍTULO ................................................................................................. 50
1.2. O “EU” ESCRITURAL: ESTRATÉGIAS E INCOERÊNCIAS DO MUNDO
PARTICULAR DA NARRATIVA ....................................................................................... 51
2. MARCAS DE UM TEXTO: O PROBLEMA DA IMAGEM DO PERSONAGEM ........... 56
2.1. DUAS QUESTÕES DE ESTILO: O MODELO E A FISIONOMIA DE CLASSE ......... 68
2.2. O PROBLEMA DA (DISTORÇÃO DA) IMAGEM ....................................................... 83
3. ÁLBUM DE RETRATO: AS RELAÇÕES DE FAMÍLIA, O FRACASSO E O LEGADO94
3.1. O LEGADO ................................................................................................................. 104
3.2. O TIPO DE LEITOR ................................................................................................... 110
4. O DISCURSO PÓSTUMO: CONDIÇÃO DA ESCRITA, EXIGÊNCIA DA MORTE .... 118
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 148
INTRODUÇÃO
Em 1880, entre os meses de março e dezembro, Machado de Assis publicava nos
volumes de III a VI da Revista Brasileira um romance que seria considerado um marco na
mudança das técnicas romanescas adotadas por escritores brasileiros. Com a dimensão
psicológica dos personagens aprofundada, e a forma da narrativa enriquecida, exigindo muito
mais do leitor, Memórias póstumas de Brás Cubas é um romance em primeira pessoa
supostamente escrito por um morto, que nem sempre dirá a verdade, enganando diversas
vezes leitores, principalmente pelos artifícios da ironia e da digressão. Um ano depois, com
algumas modificações que aperfeiçoaram ainda mais o seu primeiro grande livro,2 Machado
volta a publicá-lo, agora em uma edição em brochura.
Quase um quarto de século mais tarde, na Itália, entre 16 de abril e 16 de junho de
1904, em fascículos na revista literária Nuova Antologia,3 Luigi Pirandello publicava outro
romance cujo título alude à morte: O falecido Mattia Pascal. Novamente em primeira pessoa,
a narrativa é escrita por um hipotético morto. Este se diferencia de início de Brás Cubas por
ser um falso morto, supostamente falecido por um engano, que é desfeito logo nos primeiros
capítulos e serve de argumento para toda a narrativa.
Em 1942, outro livro narrado em primeira pessoa também utilizará o mesmo recurso –
ter sido escrito pelo protagonista do enredo, seu suposto autor. Agora trata-se do relato de um
pobre camponês, vítima das batalhas armadas e do processo social que culminaria na guerra
civil espanhola. Esse livro é A família de Pascual Duarte,4 do espanhol Camilo José Cela.
Sem saber se houve ou não influência de uma obra sobre a outra, se os autores leram
ou não seus antecessores, os três livros têm em comum diversos aspectos. O principal deles é
o imperativo da escrita como forma de personagens lutarem contra a morte e de ser essa
escrita, o livro, fruto do fracasso. Isso confere às escritas desses narradores o lugar de modelo
para se pensar o fracasso do ser humano, o que, pelo bem do leitor, pode vir a evitar que
pessoas sigam o mesmo caminho dos desafortunados personagens.
A ficcionalização da figura do narrador juntamente com o artifício de narrar uma
trajetória de vida, servindo de exemplo para seus leitores, é recorrente desde as origens do
2 Informações extraídas da edição crítica do Instituto Nacional do Livro – INL (1960). No livro, há uma
introdução crítico-filológica (p. 45-102), importante para entender as variações iniciais das primeiras edições
e o aperfeiçoamento do livro. 3 A informação sobre a publicação do romance consta em Guglielminetti (2006, p. 87).
4 A fim de facilitar as repetições, os títulos dos romances serão mencionados doravante por suas iniciais: MPBC,
para Memórias póstumas de Brás Cubas; FMP, para O falecido Mattia Pascal; e FPD, para A família de
Pascual Duarte.
11
romance, quando estes ainda se apresentavam sob títulos extensos, que já explicavam o tipo
de personagem adotado. Personagens-narradores, que alegavam escrever o livro de suas vidas
e relatá-las ao leitor, firmando um pacto de honestidade narrativa para com ele, serviram de
base para a criação de um público leitor de romances, como defende Ian Watt, em A ascensão
do romance. Nesse livro, nos dois primeiros capítulos, Watt trata do que chama de impressão
da realidade e das adaptações feitas pelos autores ingleses Defoe, Richardson e Fielding para
adequar o romance a essa exigência.
Com a evolução das técnicas narrativas e pelos romancistas que sucederam os três
ingleses, o romance em primeira pessoa de narradores-escritores tornou-se um importante
meio de questionamento da verdade apregoada e firmada no pacto de leitura. Essa condição
força o leitor a ser mais atento, crítico e, por que não dizer, humanístico, na proporção do
efeito imediato de a leitura ser o julgamento de uma vida humana cheia de defeitos, ao mesmo
tempo em que ele, leitor, tem o dever de rever seus conceitos e avaliar também as sociedades
da época do narrador e da sua, retirando da leitura tudo aquilo que acha que transcende
determinada época e serve de ensinamento moral.
A presente pesquisa foi concebida com o objetivo de analisar os três romances em
primeira pessoa acima mencionados, que se apresentam como confissões de personagens-
escritores considerados pouco dignos de confiança, as quais podem ser chamadas de
confissões do fim porque têm em comum terem sido motivadas pela necessidade ou pelo
desejo de seus protagonistas de contar o fracasso de suas vidas. Na análise, procuramos
manter o foco sobre os narradores e o ato escritural deles, produzido pelo argumento de um
projeto de escritura de personagens, resultado do confronto do passado com o presente
degradado deles, e diante da visão de um futuro sem mudanças. Cada projeto tem uma
justificativa, um objetivo central e uma metodologia, além de valorizar a obtenção de um elo
comunicativo por um pacto de leitura entre um suposto autor e os seus leitores.
Como se trata da análise de projetos de escrituras de personagens derivados do
sentimento de fracasso, pressupõe-se o predomínio dos fatos negativos. A função assumida de
suposto escritor emerge do enfrentamento, pelos protagonistas de cada romance, dos seus
fantasmas, quando se instaura uma insuportável angústia, que servirá de motivo para a
produção do texto escrito.
Para realizar esta análise, nossas escolhas partiram inicialmente da definição e
delimitação de um problema. Deve-se entender uma confissão do fim como uma escrita
condicionada pela situação em que se encontra o personagem-central, em um momento em
que não pode mais mudar sua condição, o que caracteriza o fim. Esse problema de
12
posicionamento temático possibilita (mediado pela reflexão) a transformação de um
personagem em um personagem-escritor, pois não resta a ele mais nada a fazer, senão
escrever. Nessa situação, a escrita emerge como uma necessidade e, ao mesmo tempo, um
lugar próprio para se questionar os valores éticos e sociais de determinada época e sociedade.
Além de permitirem a realização de um estudo baseado na definição acima, os três
livros escolhidos para análise mantêm um grande e coeso conjunto de semelhanças e
aproximações, mesmo sendo livros de autores diferentes, de países diversos, de épocas e
situações distintas. Nesse ponto, por diferirem, somos levados a crer que diferentes escritores
foram motivados a escrever, mesmo que de pontos de vistas diversos, sobre esse mesmo
problema, que é a necessidade da escrita dentro da ficção como forma de existir ou de garantir
sua existência.
Para efeito de estudo, a análise a que nos propusemos é uma análise comparativa. Os
romances analisados deixam entrever que, levando-se em conta a necessidade de escrever do
narrador, por comparação, pode-se organizar um grupo de personagens que desenvolvem uma
escrita com características semelhantes, sendo as que se seguem as principais para se
caracterizar a configuração do fim: a) o relato escrito vem a ser o testemunho de uma vida
fracassada; b) o narrador tenta se justificar para o leitor, mesmo que finja não se importar com
ele; c) a escrita é manipulada, ora escondendo a verdade, ora usando a mentira, ora
escancarando os fatos que interessam aos respectivos narradores-escritores; d) há uma
tentativa explícita de induzir a opinião do leitor, quando os narradores-escritores comentam as
situações vividas; e) esses personagens dispostos a escrever são narcisistas e não conseguem
se adequar à sociedade, esperando, durante toda a vida, que a sociedade se ajustasse a eles; f)
todos os narradores têm um mesmo problema: – a falta de perspectiva de ser livre, para agir
da maneira que lhes aprouver, ou de uma forma mais ampla, e, por consequência, a
impossibilidade de poder viver do jeito que quiser; e, g) os narradores parecem participar de
uma tradição predominantemente masculina de escritores ficcionais, principalmente na
primeira metade do século XX, e estão presos-mortos no momento em que começamos a ler
os romances, de forma literal ou metafórica.
Esse conjunto de características faz-se ainda mais coeso porque os livros, por serem de
teor memorialístico, giram em torno de um eixo temático-estrutural comum. As características
estipuladas acima são resultado do fim. Isto é, a vida acaba, de uma forma ou de outra, e o
narrador, limitado por uma vida-prisão, procura poder viver na escrita, ao recriá-la em um
texto.
A rede de características que se estabelece representa a luta pela sobrevivência do
13
nome do suposto autor na memória do leitor, estando sua vida agora circunscrita ao livro,
após a morte física do narrador-escritor. É lógico imaginar que a leitura de tais obras levará ao
questionamento dos valores morais do indivíduo e, indo além, pensando não mais em um
determinado indivíduo, mas no indivíduo em geral, universal, provocará um questionamento
maior que ultrapassa os limites culturais de uma época e uma sociedade. A fixação de um
ponto para o qual possamos olhar para os narradores – o fato de a produção da escrita ocorrer
no fim de uma vida, a escolha de uma forma confessional no formato de um livro de
memórias – permite-nos perceber ainda mais os aspectos comuns a todos nós, meros mortais,
homens e mulheres, sabedores de que um dia morreremos.5
Quanto ao aspecto estrutural, nos três romances, os narradores de confissões do fim
são estratégias narrativas de seus autores reais e nós, leitores, sabemos que para os três
romances existem autores efetivos e supostos autores.6 Machado de Assis, Luigi Pirandello e
Camilo José Cela escreveram realmente os livros. Eles são os autores efetivos. Brás Cubas,
Mattia Pascal e Pascual Duarte são autores dentro da ficção. Eles são supostos autores. As
informações editoriais nos permitem saber isso desde o momento em que apreciamos a capa
do livro. Temos consciência de estarmos diante de um jogo de ficcionalidade e mantemos
sempre a lembrança dessa situação durante a leitura e análise do conteúdo de todo o livro,
embora, para o bem da lógica dos romances, nos comportemos como se estivéssemos
realmente diante de escritores reais, quando estamos apenas diante de supostos autores.
Como há essa divisão, para nos apoiarmos em face das dificuldades oriundas do
confronto do mundo da ficção com o universo da realidade, uma sugestão parece tornar-se
bem prática nos dias atuais. Umberto Eco, no seu Seis passeios pelos bosques da ficção,
propõe uma abordagem na qual é possível “ler a vida como se fosse ficção, [...] ler ficção
como se fosse a vida” (ECO, 1994, p. 124). Para bons leitores, a separação do que é e do que
não é real é algo óbvio. Mesmo assim, Umberto Eco aprimora esse conceito e estuda
justamente essa separação, sua mistura e seus aspectos nesse e em outros livros seus,
5 Como estudo humanista, como filosofia, o existencialismo (de Heidegger, Sartre e outros) é posterior a
Machado de Assis e Luigi Pirandello. Mas há nesses romancistas uma reflexão existencialista, que antecipa a
formalização da corrente filosófica. Essa dissertação surgiu em um primeiro momento da leitura dos
romances de Pirandello e Machado de Assis à luz da teoria de Sartre. Por motivos diversos a proposta de
estudo tomou outros rumos. É válido que outros trabalhos possam fazer essa leitura e estudo, mostrando
como o existencialismo é um problema atemporal e, portanto, tratado por diversos romancistas, antes mesmo
de Sartre e Heidegger. 6 Como se trata da análise da escrita de personagens-escritores, adotamos a forma de se referir ao autor proposta
por Abel Barros Baptista na análise de Dom Casmurro: autor efetivo para o autor real, no caso Machado de
Assis, e autor suposto, para personagens-escritores como Bento Santiago, Brás Cubas, Mattia Pascal, Pascual
Duarte. Nesse último caso, apenas optamos por inverter os termos, preferindo falar em “suposto autor”. Ver
BAPTISTA (2003a).
14
mostrando que nem sempre essa separação foi tão óbvia como aparenta ser. Para efeitos da
ficcionalidade, nos é conveniente manter, na leitura do romance, a suspensão da desconfiança
da realidade, fingindo ser real aquilo que é puramente ficcional, ao mesmo tempo em que
podemos aplicar questionamentos teóricos que foram feitos para escritores efetivos.
Retomando algo dito há pouco, na delimitação do escopo deste trabalho, o primeiro
dos três narradores-escritores, Brás Cubas, fala em “angariar a opinião do leitor”, diz não ser
“cínico” e acrescenta que é “homem” (ASSIS, 1960, p.170), e ainda nos informa que adotou o
método difuso de um Sterne, um Xavier de Maistre. Nessa ordem, conforme a ideia do projeto
narrativo, podemos entender que Brás Cubas tem um objetivo, uma justificativa e um método.
Mesmo que não esteja nessa ordem de apresentação no romance, se falamos em
questionamentos teóricos, os três romances partem de princípios comuns a seres reais, fora da
ficção. No caso, esses seres somos nós, os leitores, e os próprios escritores, o que reforça mais
ainda a impressão da realidade.
Pensando primeiro no objetivo, quando olhamos para o tal desejo de angariar as
simpatias do leitor, algo que devemos nos perguntar é se nós queremos descobrir a fundo a
necessidade dessa aceitação. Ela pode estar em uma proposição simples, mas bastante
objetiva, que está presente em uma das obras de Roland Barthes.
Em A preparação do romance, volume II, Barthes nos faz a seguinte pergunta: “Por
que escrevo?”. A resposta que sucede é: “escrevo para contentar um desejo”, o “desejo de
escrever” (BARTHES, 2005, p. 11). Relacionando e destacando os termos, dentro dos
parâmetros da proposta de análise de confissões mediadas pelo fim, o desejo estaria na
necessidade do personagem escrever para poder viver dentro da escrita. Essa necessidade é,
como defendemos, o desejo de escrever de Brás Cubas, Mattia Pascal e Pascual Duarte. Mas
este é apenas um dos desejos, ou o grande desejo, visto que em toda escrita há sempre
interesses tanto de classes como da própria subjetividade incluídos.
Ao ler os romances, tomamos conhecimento de que os narradores-escritores não eram
escritores antes de começar a redigir os seus livros de memórias. Para realizar esse desejo de
escrever, isto é, para satisfazer essa transformação de nível ou função, passando de
personagem para personagem-autor, ou, como adotamos a partir de agora, narradores-
escritores, encontramos a necessidade de se formatar toda uma técnica narrativa, um meio de
compor sua história.
Continuando com Barthes, no mesmo livro, ele estipula que há um percurso do
“Querer-Escrever” ao “Poder-Escrever”, ou do “Desejo de Escrever” ao “Fato de Escrever”
(BARTHES, 2005, p. 4, grifo do autor), e aí pensaríamos no método, na metodologia
15
adquirida e adotada, na leitura de outros livros, na questão da intertextualidade, na questão
mesma de como alguém compõe um livro. O método de cada narrador-escritor tem uma série
de particularidades. Algumas são comuns a todos eles, como os apelos retóricos e os
comentários. A inclusão desses elementos contribui para que os textos dos três narradores
sejam mais descritivos do que narrativos e, por serem subjetivos, fazem-se mais analíticos do
que os textos objetivos a sintetizarem apenas o panorama de uma realidade.
Na ultrapassagem das escolhas na relação do “Fato de Escrever”, para se pensar direto
no alcance do “Poder-Escrever”, dificilmente na leitura dos romances separamos um do outro.
Uma vez encontrada a medida da formatação dos textos por parte dos narradores, para tratar
do seu reconhecimento, buscamos auxílio em outro teórico do romance a fim de refletir sobre
o ato da escrita e o fato de se escrever: Wayne Booth. Esse teórico estuda diversos aspectos da
relação de influência do autor sobre o leitor e do poder comunicativo do primeiro sobre o
segundo, como o uso de apelos retóricos, as intrusões, os comentários. Já no prefácio de A
retórica da ficção, Booth fala em “arte de comunicação com os leitores”, nos “recursos
retóricos que se encontram ao alcance do escritor [...] na sua tentativa [...] de impor ao leitor
um mundo fictício”, e por fim, nos “meios que o autor usa para controlar o seu leitor”
(BOOTH, 1980, p. 11). A imposição parece ser algo com mais intensidade e bem mais
tirânico, se comparada com a ideia de cooperação interpretativa de Umberto Eco, do Lector in
fabula. Antes de falarmos no conceito de parceria de Eco, Booth descreverá meios de manter
essa imposição do mundo do autor. Ao pensar em apelos retóricos, lembramo-nos da
estratégia de se invocar constantemente o leitor para participar do ato narrativo, dando suas
opiniões e aceitando ou não a opinião do suposto autor. Como estamos diante de
possibilidades – e o narrador sabe disso – ele procura nos orientar, nos convencer
impositivamente com comentários tão cheios de intencionalidades que, às vezes, são bem
maldosos, cínicos ou ferinamente irônicos. Comentários para Booth são “intrusões pessoais”,
“juízos explícitos” (BOOTH, 1980, p. 34), e “instruções” (BOOTH, 1980, p. 35, nota de
rodapé). Por meio deles, somos orientados pelo narrador a aceitar o seu ponto de vista.
Do outro lado, Umberto Eco propõe no subtítulo de Lector in fabula (“A cooperação
interpretativa nos textos narrativos”) algo necessário para o objetivo do narrador-escritor.
Neste, como em outros livros e estudos, Eco fala com frequência em previsões e
pressuposições, reiterando a importância dos termos para o propósito interpretativo planejado
pelo próprio autor, seja ele suposto ou efetivo. Segundo ele, “o texto é um artifício sintático-
semântico-pragmático cuja interpretação prevista faz parte do próprio projeto gerativo” (ECO,
2004, p. 51). Escrever sem segundas, terceiras e quartas intenções para narradores de
16
confissões do fim (e, quem sabe, praticamente para os de quase todos os textos) seria uma
crença um tanto ingênua por parte de nós, leitores.
De Booth para Eco, a imposição passaria para a cooperação, abrandando, de certa
forma, certos ímpetos que comprometeriam o narrador e sua ideologia egoísta e dominada
pelo seu fracasso. A bem da verdade, todo texto é “incompleto” (ECO, 2004, p. 35) porque
depende do seu destinatário para preencher o que falta e ainda pela razão de ser uma máquina
preguiçosa, cheia de espaços em branco, esperando que o leitor faça o trabalho do texto de
esclarecer tudo. Chegando a esse ponto, o do preenchimento dos espaços em branco, dentro
do projeto de orientação interpretativa, alcançamos outro questionamento. Por ser entremeado
de espaços vazios, de ter entrelinhas, não há como o texto dizer ou explicitar tudo. “Que
problema seria se um texto tivesse de dizer tudo que o receptor deve compreender – não
terminaria nunca” (ECO, 1994, p. 9). Isso seria uma vantagem para quem o compôs, pois não
precisaria se desmascarar constantemente, disfarçando sua aparência e o seu egocentrismo.
Sendo artifício, devemos pensar na ideia implícita de o ato de angariar as simpatias do
leitor ser um meio também de justificativa, quando os narradores escrevem para justificar suas
vidas e seus fracassos. Não teria cabimento eles ficarem falando apenas de seus defeitos, de
suas imperfeições. A tática da exposição do caso de vida parece encobrir ou disfarçar o
passado mais que o presente, ou até o seu inverso, pela razão de evitar esse constante
rebaixamento próprio. A solução para narrar sua vida seria selecionar os fatos e interpretá-los
antes, amenizando-os, mesmo fingindo colaborar com o leitor e deixá-lo resolver o caso.
Se o cooperar acabar na aceitação da opinião do narrador, aí ele terá realizado e
satisfeito seu desejo de escrever, presente nas confissões do fim. A lógica da ideia está
implícita no pensamento de Eco, quando ele se refere ao texto como construção ou conjunto
de pressuposições que o autor é capaz de assumir em uma estratégia textual. Sendo o texto
“entremeado do não-dito” (ECO, 2004, p. 36, grifo do autor), mesmo que seja uma estratégia
textual, ele “quer deixar [fingir deixar ao menos] ao leitor a iniciativa interpretativa” (ECO,
2004, p. 37), na forma de uma duvidosa parceria. Não foi à toa que Brás Cubas, para não cair
em cheio no estereótipo de cínico, fala que é homem, deixando mais ainda a impressão do seu
cinismo. Dizer que é homem é equiparar-se aos outros, principalmente ao leitor. Assim, a
cooperação interpretativa em narrativas transcende o texto e transforma a cooperação em
ideologia, na aceitação das proposições do narrador.
Todo o pensamento de Eco sobre o leitor cooperando interpretativamente pressupõe as
previsões da leitura. Por estarem rodeadas de previsões e o leitor tendo a escolha de rejeitar as
opiniões do narrador, a leitura é um ato orientado, que o seu autor planejou de modo a forçar,
17
cheio de disfarces, ser aceito: “Para organizar a própria estratégia textual, o autor deve referir-
se a uma série de competências [...] que confiram conteúdo às expressões que usa” (ECO,
2004, p. 39). O narrador-escritor visualiza primeiro o texto e sua realidade, as implicações
morais que afetariam o leitor, depois censura aquilo que o ofenderia, deixando escrito apenas
o que pode ser aceito. Esse parâmetro de corte e seleção acarretaria pensarem como dizer o
passado.
Antes de pensar em como dizer o passado, um passo importante é sugerido por
Jeanne-Marie Gagnebin, antecipando o fato de que dizer o passado implica o problema de
elaborar o passado. Justamente com esse pensamento, Gagnebin intitula um ensaio (“O que
significa elaborar o passado?”) no qual ressalta algumas considerações sobre a memória,
partindo do princípio social de que o “nosso dever consistiria em preservar a memória, em
salvar o desaparecido, o passado, em resgatar, como se diz, tradições, vidas, falas e imagens”
(GAGNEBIN, 2006, p. 97). No mesmo rumo de intenções, porém em outro ensaio de outro
livro, a mesma autora traz à reflexão a ideia de que a “a escrita é, também e com certeza,
memória da morte” (GAGNEBIN, 2005, p. 65). Se pensadas as condições de narradores de
confissões do fim, escrever teria essa função de salvar vidas, no caso, a própria vida do
narrador. Não a vida real (exceto a de Pascual Duarte), mas a vida nas lembranças, a
lembrança de vidas de personagens feito pessoas como nós somos, cheios de defeitos,
algumas virtudes e uma existência limitada.
Gagnebin articula em seus estudos o pensamento de que “não [nos] lembramos de
muitos nomes e perdemos a conta de outros tantos acontecimentos ditos importantes”
(GAGNEBIN, 2006, p. 97-98), com o “sentimento tão forte de caducidade das existências e
das obras humanas, que precisamos inventar estratégias de conservação e mecanismos de
lembrança” (GAGNEBIN, 2006, p. 97). Embora a maior parte dos estudos de Gagnebin trate
dos perseguidos pelo regime de Hitler na Alemanha nazista, a maior observação proposta
neles é interessante para se pensar em outras situações, entre elas a de livros memorialísticos.
Nessa linha de raciocínio, acolhemos o preceito de que elaborar o passado significa “decifrar
os rastros e a recolher os restos” (GAGNEBIN, 2006, p. 118). Essa proposição nos leva a
pensar na possibilidade de decifrar os rastros deixados por narradores de confissões do fim.
Para tanto, basta buscar a identificação dos mecanismos de lembrança aperfeiçoados pelas
estratégias escriturais, capazes de manter e prolongar a conservação da memória dos
narradores-escritores.
Novamente retomamos o mesmo ponto da necessidade de escrita: o mecanismo da
lembrança, a estratégia de conservação é o livro de memórias. Gagnebin, entre outros
18
intelectuais, é uma das estudiosas que indicam, não só a importância de elaborar o passado,
mas a sua necessidade. Temos, nesse caso, a justificativa também do escrever de narradores-
escritores. Se, por um lado, o objetivo central é convencer o leitor de que somos pessoas-
personagens de um destino cruel, que está acima de nós, e com o resultado de nossas escolhas
alcançarem o fracasso, poderíamos acrescentar, nessa justificativa, a proposta dos narradores
de poder sobreviver os seus nomes na escrita. Satisfeita essa vontade de escrever, pensado e
repensado, o projeto de escrita de narradores-escritores de confissões do fim chegaria à
exigência de materialização. Estipuladas as metas, o propósito do livro, seus narradores
desenvolvem estilos específicos, conforme suas respectivas condições intelectuais e sociais.
Sem querer adentrar em uma discussão estilística, usamos o termo “estilo” na sua forma mais
simples, “sinônimo de „escritura‟ e, portanto, de modo de exprimir-se literariamente” (ECO,
2004, p. 151). Sem querer cair também em um debate teórico de análise do discurso, mesmo
analisando discursos de personagens em configurações do fim, a visão da formulação do
estilo nos faz pensar em separar determinados discursos, ou, pelo menos, o estudo ou a prática
de dar rótulos a eles.
É válido dizer que nosso pensamento é propor para a análise e interpretação de uma
configuração do fim a sua organização a partir de três tipos básicos de discurso, estudando-os
ao longo dos próximos quatro capítulos: o discurso póstumo (evidente desde o título em
MPBC e em FMP), em que o escritor é um morto social, alguém isolado da comunidade; o
discurso prisioneiro, limitador do indivíduo, proveniente da representação do cárcere como o
vivido por Pascual Duarte (a própria morte é um cárcere, como pretende ser demonstrado no
caso de Brás Cubas e também de Mattia Pascal); e o discurso narcísico, o qual escancara o
“eu” do narrador, tornando-o sujeito e objeto da própria narração. A aparição do “eu” do
narrador-escritor é e representa a fonte dos desvios morais do sujeito, não uma força capaz de
transformação (talvez possamos e devamos pensar, por exemplo, Brás Cubas ser uma espécie
de parasita do sistema capitalista da época; Mattia, um preguiçoso, um incapaz para o
trabalho, deslocado na realidade da burguesia decadentista, e Pascual, um assassino e um
violador de princípios). Embora a ideia inicial pareça permitir a separação dos discursos, há o
entrelaçamento deles, sendo que há (ou pode haver), geralmente, o predomínio de um tipo de
discurso.
Quando o narrador consegue atingir a medida justa para ele de como compor um livro,
na escolha do método de como dizer o passado, e de achar uma justificativa e um objetivo
para si e para o seu livro, do outro lado desse processo está o leitor diante da necessidade de
julgar. Quando estamos diante de um relato escrito, somos obrigados “a optar o tempo todo”
19
(ECO, 1994, p. 12). Sobre a necessidade de avaliar, de medir, a metáfora do bosque (presente
no título do livro de Eco) é bastante interessante para pensar na parte que nos toca como
leitores. “„Bosque‟ é uma metáfora para o texto narrativo” porque mesmo “quando não
existem num bosque trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha” (ECO,
1994, p. 12).
À medida que vamos fazendo nossas escolhas na leitura de confissões, nos deparamos
com a necessidade de avaliar se pode ser verdade o que o narrador diz, se é verdade, se não é,
se podemos estar enganados. A dificuldade está ainda em os autores efetivos terem criado
propositadamente enigmas e os supostos autores não falarem tudo, ou não falarem tudo
abertamente. A própria constituição originária do gênero confissões cria esse problema para
nós. “O gênero discursivo das Confissões [de Santo Agostinho] se situa num cruzamento
privilegiado entre história e literatura. Com a história, ele compartilha uma pretensão de
verdade como reconstrução exata e verificável dos acontecimentos do passado”
(GAGNEBIN, 2005, p. 67). Verificável em certa medida, essa pretensão de o texto ser
verdade pode servir para avaliar: primeiro, o narrador diz a verdade ou não e, segundo, o
narrador interpreta a verdade, parecendo a nós que ela pode ser um engano. A
responsabilidade recai sobre nós, está em nossas mãos, em nosso olhar, o que nos obriga a nos
apegarmos ainda mais à leitura. Ao identificarmos claramente a verdade, tiramos esse peso do
ombro. Agora, quando temos uma interpretação, ao nosso modo, reinterpretamos os fatos
dentro dos limites de orientação e cooperação do qual sistematizaram Booth e Eco, nos seus
livros aqui mencionados.
Retomando o outro lado, o do narrador,
com a literatura, o gênero das Confissões compartilha as estratégias da ficção, em
particular a construção do enredo, da trama [...], construção que remete a uma noção
de verdade não mais como exatidão da descrição, mas sim, muito mais, como
elaboração de sentido, seja ele inventado na liberdade da imaginação ou descoberto
na ordenação do real (GAGNEBIN, 2005, p. 68).
De acordo com o aspecto literário, o intuito confessional, além da condição de
motivação da escrita a partir de casos de fracasso, requer que pensemos em seus narradores.
Não somente neles, mas também na interpretação dos fatos na narração, na ordenação e no
modo de como elaborar o passado. Portanto, o poder da ficção, a influência dessa
característica, deixa-nos mais alerta.
Em geral, uma escrita assim, sem saber se é uma confissão do fim, seria construída
com o objetivo de se contar a própria vida, para se justificar e, em alguns casos, confidenciar
os seus erros para sofrer por ela um processo de purificação no sentido de libertação e de
20
arrependimento, ou, ainda, aceitar a premissa de se escrever para professar a verdade
existencial comum a todos e revelar a finitude do ser humano. Haveria nessas condições um
fim nobre para o gênero memorialístico-confessional, enquanto estamos nas ponderações do
altruísmo possível da confissão. Caso não seja esse o propósito escritural, a confissão
aceitaria uma nova projeção, na exceção moral que tende a se encontrar na qualidade da
particularidade do ato narrativo.
Como nem toda confissão escrita requisita o bem comum dos seus leitores, os três
romances indicam que haveria ainda uma terceira via a ser considerada, que implica a razão
de o narrador estar fora do estado de arrependimento. Essa terceira via seria a escrita de
justificação sem motivação de arrependimento ou alteridade e, sim, em busca de
sobrevivência do nome na memória. Nesse caso, por ser uma via motivacional com foco
egocêntrico, ela defende apenas, em razão da visibilidade explícita do ego, os seus narradores,
quando a constituição do discurso apresenta constantes marcas de um caso de fracasso do
“eu” vivencial, aquele do passado do protagonista antes da narração. Essa estratégia força o
leitor a pensar em caracterizá-lo para avaliar quais são os reais critérios de escrita do “eu”
narrativo, o do personagem-narrador, qual a motivação e qual o ponto em que o narrador se
desviou dos padrões morais, se antes ou durante a escrita, e quando o fracasso realmente se
consolidou, servindo de contraponto na balança do julgamento de opinião. A partir dessas
considerações, devemos apreciar a possibilidade de se ter a ocorrência de narradores pouco
dignos de confiança.
Ao falar em narradores pouco dignos de confiança,7 temos a impressão de que estes
sempre tentarão nos enganar. Caso isso ocorra, caso se confirme esse pressentimento, então a
narração não se sustentaria, pois tudo dito pelo narrador é falso. A lógica da definição aponta,
assim, para um ser escritural suspeito, porém imaginamos que, mesmo pouco digno de
confiança, em vários momentos ou na maioria deles, ele terá de dizer a verdade para sustentar
seu discurso. Talvez nem seja preciso mentir para se manipular os fatos.
Acreditamos que, pela opção do uso do termo “pouco digno de confiança”, o narrador
fala a verdade também e joga com o poder cognitivo dos fatos vivenciados, primeiro na vida
ativa do personagem, depois na rememoração forçada pela escrita. Os narradores terão de se
desmascarar perante o leitor e mostrar sua verdadeira face. Este é o momento claro da
conclusão do livro, momento da aparição desvelada do lamento do narrador do seu caso de
7 Tomamos de empréstimo o termo a Wayne Booth, em A retórica da ficção. O livro trata do que se pode chamar
de narrador não-confiável ou pouco digno de confiança e do uso de apelos retóricos para convencimento do
leitor. Ver Booth (1980).
21
vida. O jogo, então, implicaria o leitor ter diante de si a necessidade de duvidar, acreditar e
desacreditar, simultaneamente, até tomar posição perante o narrador de confissões do fim.
Tentar perceber quem são os narradores, dar um contorno mais estável ao caráter
narrativo dos três, partindo da descrição e da tentativa de fixação de uma imagem, é uma
obrigação em confissões do fim. Como teremos um capítulo próprio para ver como o narrador
entende ser o que ele é, é válido antecipar, em parte, a necessidade de se falar em imagem
externa dos narradores pelos caracterizadores histórico e social. O leitor deve ter em mente
esses agravantes na conduta escritural dos protagonistas.
Para nós, importa entender como caracterizador histórico a época e as condições do
seu tempo. Podemos afirmar, e repetimos, que cada protagonista é uma representação de um
povo em uma época específica. Em relação aos três narradores, isso é mais evidente em
Pascual Duarte, um narrador que viveu a Guerra Civil Espanhola e os anos que a precederam.
Da mesma forma Brás Cubas não nega e usufrui tremendamente o fato de fazer parte de uma
elite bastante privilegiada, com base na exploração do trabalho escravo. Mattia vive no
intermezzo histórico dos anos do decadentismo literário italiano, nos anos que se seguiram ao
Risorgimento e anteriores e próximos à Primeira Guerra Mundial. Brás Cubas representa a
alta burguesia brasileira, uma falsa aristocracia, ou uma aristocracia mediada pelo
enriquecimento. Mattia é um burguês falido e Pascual, um camponês simples. Temos, com a
nomeação de classe, o caracterizador social que se refletirá no estilo de escrita adotado.
Após destacar a necessidade de se olhar para os três narradores, na medida em que são
representações ficcionais de universos distintos, de realidades diversificadas e específicas,
temos em jogo duas coisas que se confundem, e um terceiro elemento distinto, para se definir
o sujeito narrador. A primeira delas é o caráter dos narradores, que parece estar em jogo. A
segunda delas é a própria narrativa, pela razão de ser um privilégio do narrador e depender
diretamente da vontade dele. O terceiro elemento a se considerar é o meio social representado
na narração e no tipo de escrita, na medida em que a parte representada serve de influência e
órgão delimitador do indivíduo, servindo de desculpa para se encobrir o fracasso. Prefere-se
falar em fracasso, pois erro seria um julgamento explícito somente do caráter do narrador,
embora estejamos apreciando a narração e as suas características. É importante pensar em que
medida o narrador sofre a influência do meio, aceita-a, rejeita-a, distorce-a, em suma, ele tem
poder de decisão e consciência do seu poder de decisão e ação.
A verificação do alcance da força de persuasão do narrador sobre a escrita e, por sua
vez, do meio sobre o narrador, leva-nos a crer que o narrador-escritor, personagem que é,
precisa e tem um contorno estável no relato, previsto e visível desde a infância até o seu fim,
22
não modificando sua atitude nem mesmo na escrita, lugar propício para se pensar na vida, nos
erros e nas possibilidades restantes de modificar a situação em que se encontra ou o modo de
se relacionar com os demais seres. Até mesmo de se arrepender.
Os aspectos físicos e, principalmente, os aspectos psicológicos, fazem parte do jogo
para influenciar o ato da leitura. A temporalidade e a espacialidade são as fontes objetivas de
informações a compor a imagem de cada personagem. A textualidade em primeira pessoa tem
na qualificação do narrador uma de suas bases para manter compacta a imagem do seu retrato,
não apenas como narrador, mas principalmente como objeto e personagem do seu testemunho.
O testemunho, a narração, tem no problema de classe, no tipo social, o seu desenho peculiar
para a necessidade de se encontrar a veracidade textual.
Mesmo com essa complexidade de linhas cruzadas pela subjetividade do narrador e
pela objetividade de se retratar uma época, um povo e uma determinada camada da sociedade,
a análise dos aspectos biográficos do narrador, levando-se em consideração o problema de
classe, não vai convertê-la na leitura de um romance de tese, de cunho partidário ou
ideológico. A classe social é um aspecto a mais, essencial para se refletir sobre um conjunto
de problemas no qual prevalece o fracasso.
Sabendo que há um fracasso na vida dos três narradores e que eles são suspeitos em
seus relatos, nosso estudo pretende interpretar romances em que a intimidade é posta à prova
e o poder de detetive é supervalorizado. Após propor os principais pilares teóricos de nossa
pesquisa (Watt, Eco, Booth, Gagnebin mesmo), um último destaque nos vem à mente. Por que
precisamos ler ficção, sabendo que é ficção, como se fosse (e o é) útil por ser real a ficção em
si? Nossa análise dos três romances e o estudo comparativo estão pautados neste ponto, que é
primordial para se pensar literatura: ela é, com certeza, fonte de humanização.
1. “EU”, “ME CHAMO”, “EU (NÃO) SOU...”
Hospes quod deico, paullum est, asta et pellege...
[Forasteiro, o que digo é pouco; detém-te e lê até o fim...]
Anônimo
Para começar a falar sobre a necessidade da escrita como tema de nossa pesquisa,
tomemos como ponto de partida a seguinte afirmação:
Acreditava-se que um espírito pudesse sobreviver enquanto perdurasse sobre a terra
o que estava ligado a seu nome. Se o tempo chegasse a destruir os sinais do seu
nome de tal modo que não sobrevivesse nenhum modo humano de evocar a
memória do desaparecido, somente a partir daquele momento, e para sempre, seria
considerado morto (UNGARETTI, 1994, p. 176)
Essa consideração feita pelo escritor italiano e crítico de arte e literatura Giuseppe
Ungaretti refere-se à tradição dos faraós e do povo egípcio de adornar os túmulos dos
soberanos com pinturas, adereços e outras práticas que fizessem com que, na memória do
povo, o nome do mais importante representante da antiga cultura egípcia pudesse sobreviver.
Os faraós, pela suntuosidade de suas sepulturas, estão bem presentes até hoje na memória da
Humanidade e seus túmulos-pirâmides, bem visíveis8 – as pirâmides têm grandes dimensões,
portanto mais visíveis ainda.
Conforme a lógica do pensamento de Ungaretti, embora as pirâmides representem um
privilégio da realeza, enquanto o nome de uma pessoa morta for lembrado e perdurarem as
marcas de sua identidade (a função histórica para um povo, o valor afetivo familiar, a atuação
da pessoa em meio à sociedade), pelas características das marcas de suas respectivas
sepulturas, essa pessoa ainda não pode ser considerada morta. Mesmo com a ausência física
do corpo, é a proximidade da imagem que faz uma pessoa ser considerada ainda viva, embora
apenas na lembrança. Estar presente na memória é também, por assim dizer, um meio de
prolongar a vida, mesmo em sentido abstrato.
Mas a construção de pirâmides não é o único meio de prestar tributo e manter viva a
presença de um finado querido ou um indivíduo exemplar. São também notórias no mundo
8 Tanto que o menor detalhe ilustrativo faz diferença e também é levado em consideração para enaltecer a
riqueza e o poderio do monarca, considerado de ascendência divina. Assim, a parte interna das paredes das
pirâmides é recoberta de desenhos contando a história do faraó morto e do povo egípcio com suas tradições
míticas e relatos históricos, enquanto a parte externa pode ser vista por qualquer viajante a quilômetros de
distância, provocando em quem se aproxima um forte sentimento de admiração ao contemplar algo tão grandioso
e de difícil construção, a ponto de sentir-se pequeno diante desse tipo específico de sepultura. Não é de se
estranhar que a beleza e a magnitude das pirâmides as tenham consagrado como uma das sete maravilhas do
mundo antigo, sendo visitadas e apreciadas até os dias atuais.
24
moderno práticas como erigir estátuas, construir edifícios, fontes, casas, que recebem o nome
de pessoas importantes para a sociedade, bem como homenageá-las, dando seus nomes a
escolas, centros culturais, ruas ou praças.
Para os menos privilegiados, formas mais populares e bem mais econômicas de manter
o nome presente ou tentar prolongá-lo, prestando homenagem a alguém, surgiram durante a
história. Entre elas estão algumas recentes, como a fotografia e o filme, e outras mais antigas,
desde a organização dos primeiros impérios, como a pintura e o livro. Além dessas formas, há
o hábito de muitas pessoas de preservar objetos pertencentes ao morto, ou usados por ele
enquanto esteve vivo. Dessas formas populares, o livro é a de maior acesso pela possibilidade
de reprodução em maior escala.9 Além do mais, o livro é o meio com mais informações e
maior número possível de comentários.10
Por ser a escrita consagrada no percurso histórico da Humanidade como meio
essencial de difusão de informações e conhecimento, o livro configurou-se como o lugar
próprio de constituição documental de qualquer sociedade. Ele pode ser de caráter coletivo,
como um singelo livro de registro de compras e doações ou os livros oficiais de história, ou de
feição meramente subjetiva, autobiográfica, como os livros de experiências escritos por quem
as vivenciou (as memórias) ou por outras pessoas (as biografias). O documento escrito
enaltece a experiência, e toda experiência é mediada pela ação humana na comunidade.
Com a visibilidade do livro, ao mesmo tempo um documento material e um
monumento existencial, um marco presente, o livro escrito por outra pessoa, que não o
homenageado, confere honras e não permite o desaparecimento imediato do indivíduo.
Demonstra os laços afetivos, familiares ou não, faz saber aos outros que, mesmo com a morte,
há uma transmissão de valores. Basta haver exemplaridade e dignidade, ou algo especial,
extraordinário na existência interrompida. É o que poderíamos chamar “uma vida digna de
nota”. Ou “um ser exemplar”. Essas expressões ajuízam méritos concebidos como positivos,
bons. A positividade do “digno de nota” seleciona e exclui, torna uma vivência rica e
aquilatada e, no reverso do processo, destina à obscuridade os demais indivíduos. Esses
últimos, se quiserem viver após a morte no mundo dos vivos, terão de, por conta própria,
9 Hoje em dia, devido ao farto acesso propiciado pela pirataria e com os recursos tecnológicos da chamada “era
digital”, principalmente a internet, pensamos que, recentemente, o melhor meio de reprodução em larga
escala passou a ser a mídia de cinema, por manter a imagem e o som, e por ser mesmo bem mais barato.
Contudo, devemos considerar que publicar um livro foi o meio mais barato durante alguns séculos, e para
muitas pessoas e diversas realidades, ele ainda persiste como o meio mais acessível e mais barato. 10
A constituição do livro em páginas, além dos comentários do autor e de outras pessoas nas notas de rodapé,
prefácios, prólogos, posfácios, e dos comentários embutidos no meio mesmo e no fruir do texto, permite ao
leitor escrever e sublinhar ao redor ou sobre o texto. Abel Barros Baptista faz um breve estudo sobre o valor
do livro em Autobibliografias (BAPTISTA, 2003b).
25
mostrar-se dignos de nota e merecedores de estima alheia. É o momento do levante adverso à
imortalização de “nobres seres”, quando do seleto grupo não fazem parte sujeitos com casos
de vida extravagantes, peculiares.
O livro ainda serve ao próprio sujeito para tentar mostrar-se digno de nota. Basta
pensar na escolha feita por pessoas comuns pelos gêneros de teor autobiográfico, como o livro
de memórias. E no nosso caso, na escolha dos narradores-escritores11
Brás Cubas, Mattia
Pascal e Pascual Duarte, entre vários outros narradores-escritores, capazes de escrever um
livro que possa relatar um caso estranho de vida. E este seria o argumento necessário para
cada narrador ter de explicar por que resolveu lançar-se à empresa inglória de narrar suas
vidas.
Assumindo essa condição de documento, as três obras que nos propusemos a estudar
por adotarem o argumento de serem memórias de narradores-escritores, narram histórias de
vidas, mais ou menos desde a infância, suas relações de parentesco, passando por problemas
iniciais de relacionamentos amorosos, até atingirem o conflito central dos romances, os quais
os narradores não conseguem superar e, muito menos, resolver. É por causa desses problemas
que os narradores mostrar-se-ão incapazes de seguir vivendo dentro dos parâmetros sociais de
suas épocas, contra os quais, de certa forma e por razões diferentes, se batem. Cabe dizer de
antemão que, mesmo não conseguindo viver dentro da sociedade, mesmo que o narrador
esteja inconformado com sua condição (Brás Cubas, por exemplo, lamenta morrer justo
quando estava quase descobrindo a fórmula do remédio contra a hipocondria), da situação
(Mattia Pascal reclama o direito de ter direitos, mesmo não querendo ter responsabilidades,
por exemplo, de ter seu filho, sua esposa, mas de não ter de suprir os mesmos com suas
necessidades), ou posição (Pascual Duarte não gosta de lugares pequenos, prefere morar na
grandiosidade de Madri ou La Coruña, detesta mesmo estar entre pessoas de baixa renda e em
lugares mal desenvolvidos e atrasados economicamente), eles tentam rever o mundo, da
mesma forma que se autoavaliam. Por tentarem – em vão – viver livres em uma sociedade,
viver a seu modo e, em termos gerais, não conseguirem, terem de aceitar regras, os três
narradores-escritores projetam seus problemas sobre a sociedade, pensam e conseguem
enxergar os dilemas de suas épocas, deixando, mesmo que de um ponto de vista parcial e,
como veremos, mal-intencionado, um retrato de suas sociedades: o Brasil do Segundo
Império, por Brás Cubas; a Itália posterior à reunificação (Risorgimento) e anterior à Primeira
11
Como a presente pesquisa estuda livros de narradores em primeira pessoa, que em seu papel ficcional é de
escritores, achamos por bem usar o termo narrador-escritor sempre em relação aos personagens Brás Cubas,
Mattia Pascal e Pascual Duarte.
26
Guerra Mundial, por Mattia Pascal, e a Espanha nos anos antecedentes e imediatos da Guerra
Civil.
No caso do primeiro narrador, Brás Cubas é um senhor de propriedades, que nunca
precisou trabalhar. Na verdade, o verbo trabalhar parece não existir para Brás Cubas, sendo
muito mais adequado falar em gastar ou passar o tempo. É um indivíduo volúvel, incapaz de
terminar algo, conformando-se facilmente com os fatos. Não reage e nem busca com
eficiência mudanças razoáveis e consideráveis. Aproveita-se das circunstâncias para viver e
tenta sempre achar uma solução para permanecer dentro do sistema de aparências. Gilberto
Pinheiro Passos, ao analisar Brás Cubas, fala na “situação de homem abastado e culto”,
apoiado no “desejo de nomeada” (PASSOS, 1996, p. 34). É Passos, entre outros críticos
literários, um dos que fará um estudo das muitas leituras e citações feitas pelo narrador das
memórias póstumas. Ao observar o cultivo de tantas leituras, a ideia mais provável para um
leitor inocente das artimanhas discursivas de Brás Cubas é que ele leu muito, teve acesso a
fatos e livros, principalmente de origem europeia, desenvolveu um vasto domínio de
conhecimento das modas literárias em todo o percurso histórico, por fazer alusões aos textos,
personagens, lugares e situações, como se dominasse profundamente as informações de
destaque na história oficial ocidental do mundo. Com as inúmeras leituras, considera-se que
ele teve tempo e dinheiro de sobra, para poder ler e ter sob seu domínio tão vasta quantidade
de livros e informações. Ou seja, até pela leitura pode-se notar os privilégios de classe do
narrador.
Brás Cubas narra sua vida, de forma estranha. Começando com a sua morte, para
depois falar do seu nascimento em um lar abastado, passa pelos primeiros namoros e
aventuras amorosas, indo estudar em Portugal, a mando do pai, e retornar ao Brasil, por causa
da doença e morte de sua mãe, vivendo, logo depois, as pré-etapas do projeto do seu pai de ter
o filho ocupando um cargo político e se casando, sendo os dois projetos inacabados e
frustrados. Com isso, depois de aceito o fracasso nos dois casos, ele resolve cultivar uma
relação de adultério com Virgília, narrando-o na maior parte do romance, indo até os capítulos
finais, quando já se encontra velho, ocupando-se em nos contar a experiência da decadência e
das mortes de alguns personagens que rodearam a sua vida.
Ao interpretar a narração de um homem egoísta, considerando o narrador um
aproveitador de classe e da condição de ser um rico por herança, o caso mais evidente do
poder econômico e das liberdades concedidas para quebrar regras sociais está na reflexão
sobre o fracasso nos relacionamentos amorosos. O personagem Brás Cubas não consegue se
casar e confessa ter vivido, após o retorno ao Rio de Janeiro, três casos de paixão: um
27
namorinho instantâneo, bem rápido, com Eugênia, com quem não se casa pela diferença
social e pelo defeito físico; enamora-se depois da gananciosa Virgília, de quem se torna
amante, e no terceiro, predispõe-se a casar com a atraente Eulália, a Nhã-loló, sobrinha de seu
cunhado Cotrim, vitimada em breve por uma epidemia.
Dos três relacionamentos do narrador, o principal é o relacionamento sexual com
Virgília, e este o faz habituar-se a ser apenas amante, enquanto desfruta das riquezas e da
herança deixadas por seu pai. Brás é um aproveitador nato, pois, mesmo que a herança seja
sua por direito, ele jamais procurou perpetuar o patrimônio pelo trabalho ou mesmo pela
exploração nos moldes escravagistas da época. Para ele, não há refluxo de capital, justamente
porque ele está no bom usufruto de seu direito e no duplo poder de escolher não se casar e
nem ter de trabalhar. Imbuído desse “poder de classe”, o narrador não passa pelas obrigações
do casamento e do trabalho, mesmo desejando-os em parte, em favor de uma possível
notoriedade adquirida.
De suas memórias, o capítulo final é um capítulo de negativas, no qual conta não ter
deixado nem um filho, nem ter constituído uma família, nem ter ocupado algum cargo político
importante e nem ainda ter conseguido descobrir a fórmula do remédio contra a hipocondria.
Brás Cubas, que sempre falhou em seus projetos em vida, decide usufruir da sua condição de
morto para, em seu novo projeto – único realizado –, escrever suas célebres memórias
póstumas.
No romance FMP, estão narradas as desventuras do falido burguês que dá nome ao
livro. Ele é um personagem pequeno-burguês, que escreve sobre sua vida enquanto espera sua
morte definitiva (a física). Aparentemente, o título indica que Mattia Pascal já morreu e o
romance contará sua vida. Acontece justamente o contrário, pois o falecido está vivo e
trabalha em uma igrejinha “fora de mão” e “dessagrada”, que serve de depósito de livros que
um tal monsenhor Boccamazza doou para a cidade de Miragno. Porém pela falta de vontade
da cidade e dos cidadãos a igrejinha transforma-se em uma biblioteca e o contato direto com
os livros faz Mattia relatar sua vida.
Fala inicialmente de sua família. Não conhece muito o seu pai, tem profundo apego à
mãe, tem um irmão, a quem chama de Roberto, e ainda é sobrinho de Scolástica, uma tia de
quem teve medo na infância e nem gosta muito.
Ele narra no livro os episódios decorrentes das suas duas supostas mortes. Estas são
consequência da fuga e do fato de Mattia não conseguir enfrentar o fracasso do primeiro
casamento com uma mulher insatisfeita e uma sogra infernal e mais a falência do patrimônio
familiar e as mortes, mais ou menos ao mesmo tempo, de suas filhas e de sua mãe. Com a
28
morte delas, ele se aproveita do aparecimento de um cadáver e desaparece em um trem, sendo
dado como morto pela família. Foge para Montecarlo, onde arrisca a sorte no jogo de cassino
e acaba ficando rico. O dinheiro e a notícia de sua morte fazem com que ele adote um novo
nome e recomece tudo com uma nova vida.
A segunda morte de Mattia Pascal acontece depois que ele, já usando o falso nome –
Adriano Meis –, enamora-se de uma moça chamada Adriana. Ele vai constatar que não pode
manter qualquer relação social, nem mesmo casar-se novamente ou comprar uma propriedade,
pela falta de documentos. Se antes Mattia não conseguia encarar a tradicional estrutura do
casamento e do trabalho, sendo vítima dessa sociedade por suas dívidas, agora ele não suporta
viver uma mentira, por ter de conviver justamente com as mesmas regras sociais. Planeja ser
considerado morto pela segunda vez por afogamento, deixa um bilhete com o chapéu e a
bengala em uma ponte e desaparece novamente. Mattia foge nos dois casos, mas não escapa
da vida que tem e leva consigo o problema de não poder ser livre socialmente, procurando
usufruir da chance de ser considerado um morto. Com as duas supostas mortes, e à espera de
uma “terceira, última e definitiva” (PIRANDELLO, 1972, p.10), o personagem já não possui
direitos civis e usa a frase “me chamo Mattia Pascal” como lema, por lhe restar apenas o
nome. Ao retornar a Miragno, encontra sua antiga esposa casada com seu amigo de infância
Pomino, e agora vive o drama de ter se tornado um fantasma para ela e para outros
conhecidos e se enterra metaforicamente na igreja, “campo santo”, onde vira bibliotecário e
escreve suas memórias.
O discurso narrativo se desenrola, tendo como vertentes, além das duas mortes, as
experiências paralelas das duas falências sofridas pelo narrador. Ele perde a herança do pai e
perde a própria riqueza por egoísmo. Seu estilo de falecido baseia-se nessa sua condição de
falência (embora a falência não represente esforço de trabalho). Duas vezes rico, a primeira
vez na infância e na adolescência, a segunda pela sorte em uma mesa de jogo, a falência
pessoal se dá também pela impossibilidade de Mattia Pascal assumir uma outra identidade
(nesse caso, a de Adriano Meis).
Preguiçoso nato, Mattia encontra-se, por fim e pelo favor de conhecidos, em uma
igreja que não é mais uma igreja. Ele não tem muita coisa a fazer senão conversar com o
padre Eligio Pellegrinotto, com quem discute os métodos literários e recebe sugestões de
leitura. Lê o suficiente para mostrar-se inconformado com o estado em que se encontra, mas
aproveita-se de, pelo menos, não ter de trabalhar para sustentar um lar. Imprensado entre a
classe trabalhadora, principalmente de fazendas, e os ricos exploradores, Mattia Pascal é um
meio-termo em tudo. É um pseudofilósofo, um conhecedor mediano de literatura, um
29
intelectual sem aprofundar-se no termo. Não consegue trabalhar nem sabe dar ordens e impor
sua presença. Não tem influência entre os homens e sofre tremenda atração pelas mulheres.
Aproveita-se de tudo o que pode, foge quando necessário. Vive em uma classe sem lugar em
uma cidade pequena, na qual ou se é rico ou se é pobre.
No caso de FPD, o título do romance aponta para o narrador que vive no contexto
imediatamente anterior à Guerra Civil Espanhola, ocorrida entre 1936 e 1939, pouco antes da
Segunda Guerra Mundial. Pascual Duarte é um camponês de um vilarejo chamado
Almendralejo e foi preso e condenado à morte, por ter assassinado um nobre durante um dos
dias dos confrontos que culminaram na Guerra Civil. Porém, esse narrador está escrevendo
suas memórias durante sua terceira estadia na prisão e só narra os motivos da primeira e
segunda condenação – no caso, os assassinatos de sua própria mãe e de Paco ou Estirao, seu
inimigo, explorador de sua irmã, e o responsável por engravidar Lola, sua primeira esposa.
O romance se chama A família de Pascual Duarte porque sãos as relações familiares
que serão expostas como motivos para a condenação do protagonista. A primeira, pela
gravidez de sua esposa por Estirao. Pascual acrescenta, nesse momento da narração, que ele é,
em parte, responsável pelo adultério da esposa por haver fugido (como Mattia Pascal), após a
morte de um filho de onze meses de vida, ocorrida depois de sua mulher haver abortado outra
criança. Pascual, antes e durante a gravidez da esposa, havia fugido para Madri e La Coruña,
sentiu-se bem nessas duas cidades, chegando a pensar até em ir para as Américas. No entanto,
depois de cerca de um ano e meio, sente falta da família e retorna a Almendralejo. Chegando,
descobre o adultério e comete seu primeiro crime. O segundo assassinato é cometido por
Pascual contra sua mãe, que tanto o atormentava. O relato do narrador é interrompido na luta
física de Pascual com a mãe, que termina com a morte dela. Depois, com o acréscimo das
cartas do editor ficcional, do pároco e de um policial, ficamos sabendo que Pascual é morto e,
ao mesmo, tempo, que ele matou também o conde de Torremejía em um caso posterior: “o
fato é que [se penitenciava] às segundas-feiras, porque numa delas havia matado sua mãe, e às
terças, porque havia sido o dia em que matara o senhor conde de Torremejía, e às quartas,
porque havia matado não sei quem” (CELA, 1986, p. 144).
A narrativa vai mostrar que, diretamente, ele acusa, durante todo o tempo, sua família,
por ser, em grande parte, responsável por suas fraquezas. Antes de acusar, ele se mostra
acusado e tenta se defender. Essa prática discursiva será defendida como tese de sua inocência
em prol de uma outra tese: a da liberdade. Mas, entendida nos termos da mentalidade de
Pascual, este mantém uma política de viver livre acima de tudo. Só pode considerar-se livre
sem o olhar acusador do próximo. A morte da cadela Chispa e da mãe de Pascual referem-se a
30
motivos semelhantes. Pascual não aceita ver-se acuado nem por um hipotético olhar acusador.
Ele mata, porém tem medo de morrer, tentando se livrar da condenação com o livro de
memórias.
A primeira e a última fala do relato memorialístico revelam bem o intento do suposto
autor: “Eu, senhor, não sou mau” (CELA, 1986, p. 15) e “Podia respirar...” (CELA, 1986, p.
138). Ele começa tentando se defender e termina defendendo a ideia de que o que fez, só o fez
para poder viver. O viver, para Pascual, representa viver com dignidade e com honra. Para
tanto, seria necessário um lar nobre ou uma inteligência e lealdade, ou outro sentimento
nobre, acima do normal. Pascual vem de uma família pobre, inculta e cheia de vícios. Falta-
lhe virtude e inteligência. Pode-se notar a prática, comum em todo o romance, da comparação
constante e desnecessária. Além do mais, Pascual, por ser homem do campo e não ter
estudado o suficiente, tendo abandonado muito cedo os estudos, desenvolve a lógica do
romance com ideias confusas e simplistas, atenuadas pelas imagens recorrentes do imaginário
muitas vezes arcaico e primitivista. Constantes no estilo do narrador estão metáforas e
hipérboles construídas, na maioria das vezes, com referência a figuras de animais da região,
presentes no imaginário bíblico e religioso da Idade Média, conforme veremos
posteriormente.
Pascual é um narrador que, no papel de personagem, vendo-se no passado, não
esquece de tudo o que sofreu e usa isso para justificar-se. É das três narrativas de confissão do
fim aquela em que esse recurso é usado com maior intensidade. A família inteira age de forma
desleal e humilhante para com o narrador. Lola o trai, a irmã, Rosário, prostitui-se e mantém-
se como amante de alguns homens com renda um pouco mais considerável que a de seus
parentes, o pai só o tratava com violência, e sua mãe é a grande responsável por ele ser infeliz.
Por isso, a visibilidade da intenção de acusar em larga escala os familiares será lugar-comum
na obra. O editor das memórias, conhecedor desse fato, antecipa como o leitor deve ler o
livro: vendo como Pascual Duarte acusa a sua família, como ele age no meio dela e quais as
evidências da agressividade e criminalidade, levando em conta a forma de agir de Pascual
Duarte com as outras pessoas que não são seus familiares. Se o leitor mantiver isso em mente,
verá que Pascual Duarte é parcial e egocêntrico, não pode dizer toda a verdade, perde o
controle sobre sua narração e, por fim, se condena pela escrita de próprio punho.
Situados os personagens e olhando para o problema da presença do “eu” nos
romances, vemos que a identificação do indivíduo pauta-se na necessidade de uma
diferenciação de cada participante, obrigando-o a nomear-se e a qualificar-se. A nomeação
exige a qualificação e não é mais que a substituição de um inventário de características
31
descritivas fixas. Com esse inventário é possível substituir o uso de frases para falar de
alguém como “ele era alegre”, “um homem trabalhador” ou “ela era louca pelos filhos” por
substantivos próprios como Mattia, Pomino, Virgília, Rosario.
Mediante a utilização do ato distintivo estático é que, valendo-se de outro ato
distintivo, agora dinâmico, que é a ação, a lembrança prenderá ao conjunto de acontecimentos
vividos o nome do personagem. Ao se pronunciar o nome Brás Cubas, por exemplo, o leitor
poderá ter em mente imediatamente que ele é um “defunto autor”, como ele se autonomeia
(ASSIS, 1960, p. 111), ou “um solteirão sem filhos”, para sua irmã Sabina (ASSIS, 1960, p.
269). O livro deixa de ser um meio de homenagem, passando da qualificação para ser
simplesmente o lugar de prolongamento do nome, função não idêntica, porém semelhante ao
propósito dos faraós ou de outros monarcas.
Uma outra função surge para o livro ao assumir o caráter daquilo que em geral se
chama de confessional. Se o livro é fundamental, por sua praticidade, ele é exemplar para o
ser humano por permitir o aprendizado e aperfeiçoamento da espécie por meio de situações já
vividas. É graças ao sentimento da necessidade de escrever, uma espécie de angústia, que, em
situações marcantes nas quais uma pessoa fracassa ou é bem-sucedida, determinada
experiência é narrada, a reflexão apoiada no desvendamento sucessivo dos fatos serve para a
constituição desse elo de modelo para outras pessoas na construção da rede de leitores. É, em
outras palavras, o caso alegado por Mattia Pascal, de ser o seu destino “realmente estranho e
capaz de servir de ensinamento a algum leitor curioso” (PIRANDELLO, 1972, p. 10). Ou o
de Pascual Duarte, que vê utilidade no seu livro (pelo menos assevera isso) e valor a ponto de
não destruir os manuscritos de suas memórias, “privando desta forma algumas pessoas de
aprender o que eu [Pascual Duarte] não soube antes que fosse já demasiado tarde” (CELA,
1986, p. 9).
A captação do “eu” no livro, a disposição de seus objetivos e limites, bem como do
tipo e nível de ensinamento, tem um problema comum e imediato – o distanciamento.12
A
impossibilidade do narrador de estar presente em tempo diverso e no espaço diferente do seu,
em que viveu e escreveu, reivindica a questão da representação dinâmica, do ser em
movimento, na reconstrução da vida no universo do livro. O movimento em que é
representado o seu autor repousa na dificuldade presente em uma superfície comunicativa,
sem a possibilidade de um diálogo recíproco e constante. Estar dentro de alguma inscrição é o
problema central do conjunto de obra de Pirandello, apontado por Alfredo Bosi quando se
12
Sobre o problema do distanciamento sugerimos a leitura do ensaio “O narrador”. In: (BENJAMIN, 1994).
32
refere ao problema vivenciado diretamente por Mattia Pascal de “viver” e “ver-se viver”.13
Esse problema é aplicável aos outros dois narradores, e uma prova disso é quando Pascual
Duarte tenta provar de imediato ao leitor que não é mau, hipótese refutada a todo instante pela
ação e pelo pensamento do protagonista no desenrolar das páginas de suas memórias.
Na captação da individualidade, há a tentativa de recuperar o passado para satisfazer o
ego do narrador em sua ânsia de ocupar o centro da narrativa. Os demais seres da história
devem estar ao redor, em função da subjetividade do protagonista. Os narradores-escritores
pensam ser pessoas acima dos limites sociais, presos, mesmo assim, nos moldes da aparência
pública. Pascual Duarte e Mattia Pascal são limitados pela família e pelo povo de cidades
pequenas. Estão, no pensamento deles, condicionados a seguir sempre errantes, sem nunca
poder ter uma vida alternativa. Diferente é Brás Cubas que, entediado desde quando era vivo,
é escolhido para viver os privilégios de classe. Mesmo tolhido pelo destino em algumas
situações, como a morte de Eulália, o narrador só não mudou de condição porque não quis,
tendo uma maior liberdade de ação que os outros dois narradores. É claro que ele vivencia os
limites sociais e depende deles. Seu amor à fama e o desejo de ser aplaudido e reverenciado
fazem Brás Cubas refém da opinião pública de sua época. E, no estado de morto, as
convenções humanas são mais presentes ainda, pois a escrita é um valor e patrimônio dos
homens e, da mesma forma, os juízos de valores emitidos na invocação do leitor. De modo
que frases jocosas, embora carregadas das rabugens de pessimismo, costumam sempre
ironizar a opinião alheia, mesmo dependendo delas.
Cada confissão do fim leva em si o problema do ver-se morto e, em um ponto distante,
ainda vivo. Os três narradores-escritores prestam homenagem, pelo memorialismo, a si
mesmos e parecem falar de uma outra pessoa. Juracy Assmann Saraiva é da opinião de que o
defunto-autor Brás Cubas, o narrador e escritor de MPBC, não é o Brás Cubas do livro, o
protagonista da história, pois ambos são seres distintos. O narrador que fala de Brás Cubas é o
defunto, tentando assumir diversas vezes o papel de terceira pessoa (SARAIVA, 2009, p. 42-
59). Guido Baldi, em atitude idêntica, afirma que o falecido Mattia Pascal é o narrador que
relata os fatos vividos por Mattia Pascal personagem e, pelo seu desdobramento, o heterônimo
Adriano Meis (BALDI, 2006, p. 33).
Atitude próxima pode-se enxergar mesmo no condenado Pascual Duarte, quando este
13
A citação faz parte da palestra proferida no dia 15 de abril de 2008, na ABL, por Alfredo Bosi, com o título de
“O romance de Machado de Assis”, em comemoração ao centenário da morte de Machado de Assis. O tema
da escrita e do narrador-escritor serve de exemplificação também em Serafino Gubbio, operador, outro livro
de Pirandello, para mostrar a dificuldade do indivíduo em “dizer tudo” e em ser entendido. Outro estudo de
Bosi que fala sobre a questão da aparência pública é o ensaio “A máscara e a fenda” (BOSI, 2007, p. 73-125).
33
fala ainda do Pascual Duarte camponês. O distanciamento provocado pela morte gera a
reflexão e o rememorar, aliado ao momento da escrita, possibilita a distinção entre os
narradores e os personagens.
Na perspectiva das considerações feitas acima, pode-se dizer ainda que, fora da prática
da homenagem, a principal função da tentativa de prolongar a permanência da imagem do
morto pelo próprio morto (ou quase morto, ou morto metafórico) seria ver-se viver e olhar
para si de um jeito tal que bem lhe diz respeito, satisfazendo o ego e apresentando, mesmo
assim, um elo coerente com a realidade.
Fora o lado mal-intencionado ou não confiável do narrador cheio de apelos retóricos, a
perpetuação de uma forma de ser visto torna-se um desejo revelado no texto com o objetivo
mesmo de cultuar o morto, no sentido de fazê-lo vivo e presente. “Cultuar”, a palavra já na
origem latina traz essa significação, pois “cultus, us, substantivo, queria dizer não só o trato
da terra como também o culto dos mortos” (BOSI, 1992, p. 13, grifo do autor). A palavra
reveste-se do sentido de cultivar, criar raízes e o seu correspondente ato verbal é não deixar
algo no esquecimento, é lembrar-se antes da condição perpétua do homem social, forçando-o
a ter de meditar sobre o que já serviu de experiências a outras pessoas. É o que liga os vivos
ao plano dos mortos.14
É a sensação vivenciada por Mattia, ao depositar flores no próprio
túmulo. A passagem a seguir é bastante significativa para a conclusão se tornar uma verdade
fundamental para o título do seu livro: “Levei ao túmulo a coroa de flores que prometera e, de
vez em quando, vou lá, ver-me morto e enterrado” (PIRANDELLO, 1972, p. 279).
A imortalidade desejada proporcionaria aos seres vivos a condição seletiva de
assegurar o não-esquecimento de determinados mortos. É o caso da classe aristocrática
egípcia, privilegiada até mesmo após a morte, tanto por conservar na tradição o culto oficial
em memória e invocação dos mortos nas oferendas, como no cultivo dos processos de
preservação corporal chamados de mumificação. Seria também preservar os rastros e os
restos, na prática analítica de Gagnebin, referida na introdução deste estudo.
O processo de mumificação leva em consideração a preservação máxima do rosto e do
corpo. Semelhante emprego tem o livro ao tornar rígidas e bem delineadas as características
corporais, de tal maneira que seja possível ao leitor reconstituir diante de si a imagem do
narrador-escritor sorrindo ou esbravejando, ou se contorcendo em suas caretas, ao desnudar-se
das máscaras sociais.
14
Walter Benjamin explora com muita acuidade essa ideia de transmissão de valores pelo moribundo aos que
ficam, pois este teria a autoridade do mundo dos mortos (BENJAMIN, 1994, p. 207-208). Alfredo Bosi
analisa os significados em latim da palavra culto e suas derivações no processo de colonização das terras
brasileiras (BOSI, 1992).
34
Agora, retomando o aspecto da homenagem, nos cabe de imediato uma determinada
pergunta: e se não forem feitas oferendas em prol do personagem por parentes ou amigos?
Caso isso acontecesse, dada a consequente obviedade do fato, o narrador-escritor cairia no
esquecimento e desapareceria. Ele deve, portanto, conquistar leitores, substituindo aqueles
que seriam os invocadores tradicionais da sua memória. Afinal, o manejo das informações já
seria uma delineação dos traços subjetivos. Com essa substituição dos invocadores da
memória, o leitor procura se aproximar do limite de ser capaz de reconhecer a aparência e as
características do personagem.
Posto desse modo a questão, é possível ir além e pensar em um “como” apresentar-se,
desnudar-se, descrevera si próprio narrativo. Pode-se pensar o arranjo desses traços subjetivos
da seguinte forma simbólica da modernidade:15
quando uma pessoa é velada, ela está vestida
e paramentada com roupas condizentes com a situação de velório e a sua própria. O ritual
reafirma os laços humanos no pacto de olhar para o morto antes de desaparecer fisicamente
sob a terra. Logo, se o livro tem a forma estrutural de manifestação similar à estrutura do
túmulo, o leitor é o curioso visitante que lança um último olhar sobre o morto. O diferencial
está no avesso das lamentações (e é possível reconhecê-las em relação aos três narradores-
escritores), compostas pela apreciação de um retrato cômico, mesmo no caso de Pascual
Duarte. A covardia manifesta no episódio final, no qual ele será morto, nega as ponderações
de resignação de um homem honrado, nos moldes antigos, dos tempos dos cavaleiros, em que
o homem que não teme a própria morte, sabe morrer com dignidade. A figura patética acaba
se tornando cômica. Mas essa não é a única razão da comicidade. O estilo de escrever de um
homem inculto, tentando assumir a performance de escritores bíblicos, profetas, literatos, gera
a distorção de formas literárias consagradas para um provável leitor respeitado.
Retomando a afirmação de que o livro é uma espécie de sepultura, temos, em
referência ao uso do nome próprio, na representação de uma vida, a vantagem de o livro ser
um objeto fechado, concluso e mantido com símbolos concretos, visíveis.16
A materialidade
do objeto permite a consulta e serve para confirmar algo como prova, pois o livro está ali,
pronto para ser confrontado em caso de dúvida. As folhas preenchidas e tornadas públicas
estão finalizadas e, com o tempo, fazem-se consagradas (de acordo com o interesse
comunitário) pela leitura, consagrando também determinado(s) olhar(es) sobre o sujeito,
15
Como este trabalho não incluiu nenhuma história dos mortos ou teoria dos atos simbólicos da morte,
presumimos que isto seja uma prática a partir da incorporação do uso do caixão, e da democratização deste e
dos cemitérios dentro dos limites da cidade. 16
O livro seria, nesse caso, a autoridade sobre o caso, pois é a fonte direta, talvez única, do que pensa o
narrador-escritor, e do que ele viveu. Diferente da assimilação de uma tradição, como a “oral” que Benjamin
descreve, valorizando o contador de histórias, para ele, o verdadeiro narrador (BENJAMIN, 1994, p. 201).
35
participante da dinâmica social. O livro teria, com isso, vantagens sobre as narrativas orais,
uma vez que a narrativa oral está fadada a desaparecer com a morte do último conhecedor do
relato. Com o livro isso não aconteceria, a não ser que houvesse a destruição cabal de todos os
exemplares e com a morte de todas as pessoas conhecedoras desse texto.
Em seu aspecto funcional, o livro pode ser redescoberto e ressuscitar. Ele sobrevive
mesmo no esquecimento e um dia, se encontrado por acaso e lido de novo ou mesmo pela
primeira vez, consegue restaurar a memória de alguém (a casualidade é um dos pressupostos
da verossimilhança textual, principalmente no caso de Pascual Duarte). A exposição narrativa,
ao transmitir os caracteres biográficos, possibilita a visão de que o sujeito retratado está em
uma presença contemplativa e distante, sentida pela ausência do corpo daquele que dá nome
ao livro.17
Essa visão afastada do seu objeto é uma mediação controlada pela realidade final,
falseada no início, ou simplesmente disfarçada, mas que retoma em todo o seu conjunto a
ideia de ser uma interpretação já de quem narra. No mais, o que importa em narrativas escritas
é ver no livro a possibilidade de servir de meio de informar alguém sobre alguém. É a função
primordial livresca, desde os relatos bíblicos, em que Deus é visto em sua majestade e glória e
o leitor, não podendo ver Deus, deve pelo menos ter a noção da sua grandeza.
O livro, além de economicamente acessível e exemplar para a coletividade, tem a
vantagem da acessibilidade da escrita. Na prática, qualquer pessoa alfabetizada é um autor em
potencial. Sendo assim, cabe a ela decidir se quer ou não registrar sua presença no papel.
Portanto, os narradores-escritores, dispostos a viver dentro do livro em forma de
confissões, no imaginário, em razão do fracasso de suas vidas, objetivam em primeiro lugar,
permanecer presentes, no mundo autoral e, em segundo lugar, por precisarem ser julgados e
justificados na nossa consciência, preferem ser justificados bem mais do que plenamente
julgados. É o caso do já falado episódio no qual Brás Cubas cinicamente se justifica apenas
com a expressão “fui homem” (ASSIS, 1960, p. 170), no desenlace do rápido relacionamento
entre ele e Eugênia, a “flor da moita”.
Contudo, como estamos partindo de regras do universo do livro, mesmo que na ficção,
escrever não significa publicar. São vários os procedimentos de seleção e censura18
para
17
Ecléa Bosi estuda algumas memórias de pessoas mais velhas em São Paulo e destaca como ponto de partida o
pensamento de Henri Bergson e o fato de ele interpretar a memória como um conhecimento mediado pelo
corpo, no momento da rememoração. Mas, como pensar a representação dos narradores já falecidos como
Brás Cubas? A decomposição do corpo, segundo nos parece, pode revelar a decomposição do caráter, quando
se está à frente do sentimento de fracasso ou de ausência. Seu estudo baseia-se nos pressupostos de Bérgson.
Ver: Bosi (1994, p. 44). 18
A respeito desse assunto, recomenda-se ler o excelente ensaio de Michel Foucault, A ordem do discurso, em
que o filósofo trata, entre outros pontos, dos processos de exclusão, entre eles a interdição, e da necessidade
da identificação de uma pessoa para se dar autenticidade e autoridade a um texto (FOUCAULT, 2007).
36
determinado texto ser editado e impresso. Porém, há a possibilidade de a leitura ser feita por
alguma pessoa próxima ao original do livro, mesmo (se) não publicado. O argumento da
verossimilhança está em alguém encontrar os manuscritos, ler, resolver publicar, para o acesso
de outros leitores, por achar os papéis importantes para alguém. É o argumento de FPD, em
que existe um personagem identificado como transcritor.
A facilidade advinda de ser o livro um objeto, que se pode carregar para inúmeros
lugares é ainda mais acentuada, quando se leva em conta a questão da intimidade. A leitura
potencializa a aproximação afetiva pelo duplo caráter de sua propriedade. O livro pertence
tanto a quem o escreve, quanto àquele que o compra e o lê. As anotações e juízos de valor
fazem da leitura algo único na vida de cada indivíduo. As relações de empatia ou de inimizade
concretizam esse jogo, no qual o narrador, dono do livro por excelência, procura fazer-se
visível, a seu modo, e compreendido.
A intimidade entre leitor e narrador e as relações resultantes dela passam pelo
discernimento dos problemas inerentes à composição narrativa. No âmbito da teorização da
composição do livro, o primeiro problema a que somos expostos em uma confissão do fim é
entender a dificuldade no planejamento da escrita e a construção do discurso, mediado pela
capacidade do narrador para criar uma unidade potencial que permita ao leitor os meios de
juntar os fatos, depois para construir uma linha reta até chegar ao fracasso final, atravessando
todo o tempo o conjunto das memórias, principalmente no primeiro e nos derradeiros
capítulos, ápices da narrativa. O narrador, pela condição de morto, vê-se livre e com tempo
para escrever, pensa naquilo jamais esquecido, raciocina e delimita o que deve dizer e pensa
como dizer isso ao leitor sem ferir os seus princípios. Por mais que sejam consideradas
ofensa, desrespeito, rebaixamento, as atitudes do narrador Brás Cubas para com o leitor são
verdadeiras provocações, que vistas de forma errada, parecem falsas adulações ao figurino
pseudo-intelectual do leitor invocado.
Cada autor, ao ver-se liberto com a morte (e por isso não dever nada aos vivos), pode,
em tese, dizer tudo sem temer nada. Em outras palavras, a declaração de desprezo por toda a
opinião dos vivos (nessa situação, estão às claras Brás Cubas e Mattia Pascal) é falsa. É ao
mundo dos vivos que se recorre para efeitos de produção de sentido. O altruísmo de ensinar o
próximo sem esperar a opinião dele já seria uma contradição e não coaduna com a verdade. O
motivo essencial não é permitir somente a leitura, mas convencer o leitor.19
O que comprova
19
É com a prática de convencimento que Wayne Booth fala, por exemplo, em apelos retóricos. Tanto Booth
quanto Foucault fazem menção ao uso do comentário. O primeiro para avaliar o que chama retórica da
ficção, e o segundo para investigar a origem do discurso, a representação do autor.
37
que, desde o nascimento até a morte, a escrita consiga manter uma unidade pelo fato de, a
todo o momento, em vias de retorno ao título e ainda mediado pela introdução das narrativas
pelos prólogos, ou o próprio fato de, logo nos primeiros capítulos, antecipar o insucesso e
clarificar o contorno da imagem do caráter do narrador, delineado nos respectivos romances
com a tinta da melancolia, a teoria do humorismo,20
ou segundo a lógica de um inculto
homem do campo.
O primeiro ponto para decifrar o morto, analisá-lo e ir contra a sua opinião ou a favor
dela, aparece na dissecação das marcas do estilo composicional, já presentes no título da obra.
Nele, há a interferência de um ser próximo, que provavelmente conheceu o narrador, ou em
outra hipótese alguém mais próximo no tempo ou no espaço em que ele viveu, ou nos dois.
Visto parecer não ser o narrador que outorga o título impresso na capa do livro, de acordo
com a realidade propagada pela ficcionalidade, haveria, assim, um tradutor mínimo e inicial
dos fatos narrados. Um personagem-editor, como o transcritor de FPD.
Como o título é composto com poucas palavras, se bem assimilado, conseguiria
sempre ser espelho e funcionar como padrão ou medida na investigação sobre o discurso do
narrador. Ao considerar o título parte do jogo ficcional que dá vida e voz a Brás, Mattia e
Pascual, e supondo essa interferência de um terceiro elemento narrativo – o personagem-
editor –, além do narrador-escritor e do leitor, teríamos esse ente capaz de realizar a primária
função literária de sugestão de leituras.
Existe em cada romance, caracterizado como uma confissão do fim, o aspecto da
sugestão da leitura em pelo menos dois lugares muito importantes. O primeiro dele diz
respeito ao personagem-editor, que chamaremos de editor ficcional. O papel desse elemento
textual na dinâmica do romance é servir de pista para desvendar o mundo dos narradores. Na
verdade, é a primeira pista, que pode passar despercebida. Porém, a leitura do romance
remeterá sempre ao título, de forma circular. De modo que o leitor encontra as informações
contidas nesse título, começa sua leitura, volta a ele, retorna à leitura e assim por diante.
Vejamos como essa primeira sugestão de leitura ocorre.
Mesmo como uma hipótese, é plausível dizer que um editor ficcional possa ter existido
20
Em 1908, Pirandello escreve seu famoso ensaio “O humorismo”, no qual debate, em primeiro lugar, a ideia de
humorismo no curso da história, e depois propõe uma arte humorística chamada por ele de “sentimento do
contrário”. O humorismo não é uma arte caricatural apenas cômica. Carrega, assim, segundo o conceito
pirandelliano, a dramaticidade de o personagem ter de ser visto e interpretado através de uma máscara. O
conflito da visão interna do personagem em oposição às cem mil imagens e visões dos outros suscita o
problema da necessidade de usar a máscara desenvolvida principalmente no teatro de Pirandello. De acordo
com essa dificuldade de ser visto de diversas formas e assim não ter nenhuma forma fixa e aceitável, Antonio
Candido fala na noção de “verdade plural”, ao citar rapidamente Pirandello no ensaio “A personagem do
romance” (CANDIDO, 2007).
38
nos três livros para a escolha do título. Isso faz parte do enredo de FPD e é possível que nos
outros dois romances, para a criação da verossimilhança textual, no uso da aparência do
mundo editorial no universo da constituição das confissões do fim. Em FPD, existe uma
cláusula de um testamento, no qual consta a vontade do proprietário dos manuscritos, em
relação ao “pacote de papéis [...] atado com barbante e rotulado com lápis vermelho dizendo:
Pascual Duarte” (CELA, 1986, p. 12). No livro ainda não publicado existe apenas o nome do
narrador-escritor no conjunto de papéis manuscritos. Em MPBC e em FMP não existe essa
informação. De volta a FPD, o editor ficcional pode representar uma solução interpretativa
para os outros dois romances. Não sabemos quem publica MPBC, por ser um escrito do
mundo de lá da vida. Tomamos conhecimento de que o manuscrito das memórias de Mattia
Pascal encontra-se na Biblioteca de Miragno. Se existe mesmo como personagem esse editor,
receberíamos sua opinião e o modo de entender o problema dos narradores.
Em FPD, o editor ficcional encontra os papéis de Pascual “em meados do ano de 39,
em uma farmácia de Almendralejo” (CELA, 1986, p. 7). O transcritor é quem revisa e publica
o livro, seleciona o que deve vir a público. Nos outros dois livros, as únicas informações que
temos a respeito disso é Mattia Pascal ter deixado suas memórias na biblioteca em que
trabalhou. Em MPBC, nem ao menos temos essa informação. O narrador nega-se a explicar
totalmente o processo de transmissão do livro. Não se sabe quem encontrou os textos nos
casos de Brás Cubas e Mattia Pascal. Os de Pascual Duarte sabe-se que estão de posse do
transcritor.
Se levarmos em consideração a existência do editor ficcional como um dos primeiros
leitores nos três livros, então esse indivíduo da ficção também pode (tentar) manipular o
leitor. Pode fazê-lo, por exemplo, na seleção do que deve vir a público e, em primeira
instância, na escolha do título. Ninguém garante que, além da omissão e seleção de fatos, algo
tenha sido acrescentado à narrativa ou alterado. Acredita-se, de acordo com os padrões de
invocação do leitor, que este vá receber as informações e considerar que o narrador-escritor
usa a veracidade dos fatos no desenrolar da narrativa e que esta venha por via direta da fonte
ao leitor, sem nenhuma alteração. O transcritor mesmo alega ter sido necessário excluir fatos
considerados repugnantes do livro, mesmo depois de afirmar não ter acrescentado nem um til
ou um acento. Então, já podemos desconfiar pelo menos de que a narrativa esteja
intencionalmente incompleta, não só por faltar uma parte, mas por faltar uma parte talvez
necessária ao entendimento do leitor. Sabe-se que Pascual pratica atos repugnantes, mas não
se sabe o quão repugnantes são e quais são os limites do baixo caráter dele.
O editor ficcional seria talvez o primeiro leitor com interesse público e, além do mais,
39
bem mais próximo do tempo do narrador, fato capaz de fazê-lo compreender melhor o(s)
objetivo(s) exposto(s) nas memórias e de julgar o modo de levar a público esses textos. Mas,
fugindo das muitas hipóteses possíveis da publicação do livro e da atuação do editor ficcional,
alguém escolheu um título,21
na forma de uma sugestão clara de prender a atenção do leitor e
de iniciar o conteúdo da obra, antes de ser aberta a primeira página do livro. Caso
consideremos a existência desses editores ficcionais para a efetivação do jogo narrativo, estes
seriam importantes também, ao deixarem pistas,22
a ditarem maior veracidade ao texto.
Identificado quem batiza a obra como elemento ficcional, a sua sugestão de leitura está
presente na organização sintática do título. É comum, aos três livros, a presença na capa do
nome do personagem-central antecipado por alguma informação que servirá de guia para a
leitura. Nesse ponto, os autores efetivos (Machado de Assis, Luigi Pirandello e Camilo José
Cela), seguem uma tendência de nominalização antiga, com destaque em romances de
cavalaria, novelas picarescas, e em grande parte da literatura do século XVIII, principalmente
na literatura inglesa. São exemplos os títulos Vida e opiniões de Tristram Shandy, de
Lawrence Sterne (The life and opinions of Tristram Shandy, Gentleman, 1759), ou Moll
Flanders (título em sua forma diminuta, versão em que ficou conhecido), que em inglês é The
fortunes and misfortunes of Moll Flanders, de 1722, e Barry Lyndon, de 1844, que teve pelo
menos dois outros títulos prolongados antes da forma composta apenas pelo nome (o primeiro
deles, quando da sua publicação em fascículos na Fraser’s Magazine, em 1844, The lucky of
Barry Lyndon. O segundo título já aparecendo em dois volumes na sua primeira edição em
livro, em 1852, The memoirs of Barry Lyndon, esq). Estes são, portanto, modelos de
nominalização do título, ao mesmo tempo como uma primeira pista e como sugestão de
leitura proposta pelo editor ficcional. Esse uso do título com o nome vai perder força no
século XX, permitindo que obras como Dom Casmurro, escrita por Machado de Assis e
publicada em 1899, São Bernardo, escrita por Graciliano Ramos e publicada em 1934, e O
túnel, escrita por Ernesto Sábato e publicada em 1948, também possam ser consideradas
21
É claro que se sabe que o autor efetivo deu nome ao seu romance. O que se usa aqui como argumento é o fato
de, no jogo da ficcionalidade, considerar o texto como sendo de um narrador-personagem, um suposto autor,
e, a partir desse argumento, considerar também o romance como um livro com valor confessional. Decorre
disso a possibilidade ficcional de o texto ter sido encontrado e publicado por uma outra pessoa e nomeado
por ela. Assim, teríamos uma intervenção, uma sugestão, e o indício de manipulação de um editor, o qual
poderia ou não selecionar e interferir no texto, censurando, cortando passagens consideradas desnecessárias,
ou ainda acrescentar comentários ou coisas assim. Sobre a noção do desenvolvimento da ficcionalidade, ver
novamente Watt (1990). 22
Essas pistas são, em parte, o que Gérard Genette chama de paratextualidade. Como a construção de romances
por personagens que exercem a função de autores supostos geralmente mistura notas explicativas,
advertências ao leitor e outros meios editoriais, por sua extensão, não se faz aqui uma abordagem
aprofundada com a nomenclatura proposta por Genette, embora se faça alusão ou uso da mesma.
40
confissões do fim, mesmo sem trazer o nome do personagem estampado na capa.
Os romances cujos títulos carregam o nome do personagem associado a alguma
informação, como Andanças de Lazarilho de Tormes, novela anônima datada de 1554,
Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, publicado em 1726, A história maravilhosa de Peter
Schlemhl, de Adelbert von Chamisso, publicado em 1814, e outros, podem ser vistos como
demarcadores da atitude do narrador. Olhando o problema apenas do título, existe a ideia da
indicação referencial de um indivíduo, na presença de um delimitador, que serve como uma
prova do tipo de vida ou da situação final, criando um círculo na maneira de se pensar e
definir o protagonista. Enxergamos Brás Cubas como um morto porque ele escreveu um livro
de memórias póstumas. Devemos pensar nas opiniões, talvez extravagantes, do cavalheiro
Tristram Shandy, e o que faz a história da Peter Schlemhl ser maravilhosa. No tocante à
referencialidade da vida de uma pessoa, as confissões do fim são derivações desses romances
e novelas, com a diferença clara da ligação ostensiva com a morte, com o pessimismo,
frustração e derrota no final, sem possibilidade de redenção.
Os títulos23
com nomes de personagens, nos quais aparecem expressões tais como “as
aventuras”, os “infortúnios” ou “memórias”, são abundantes, até por permitirem o uso em
uma mesma frase das indicações do tipo de texto, o objeto de análise, ou das experiências
excêntricas do protagonista. MPBC parece estar próximo e seguir o modelo de Vida e opiniões
de Tristram Shandy. Ou tem a mesma lógica de The memoirs of Barry Lyndon, porém
acrescido da palavra “póstuma”, o que ironicamente diferencia o tipo de escrita e ao mesmo
tempo destaca uma situação controversa, a da escrita de um morto.
Além deles, uma outra forma comum de proposição de leitura do título é a adjetivação
do personagem. Essa caracterização absolutiza, assim, o caso da vida na narração. Dessa
vertente tem-se como modelo um romance francês de 1796, Jacques, o fatalista (Jacques le
fataliste et son maitre). FMP, se comparado com Jacques le fataliste, seria uma inversão de
posicionamento no título, quando este poderia ser “Mattia Pascal, o falecido”, e continuar a
ter o mesmo significado. Na esfera semântica e pragmática, a diferença desse posicionamento
de termos nos faz pensar na estratégia de servir como uma falsa pista, e nós leitores, em um
23
Acerca do título, vale como sugestão a leitura do terceiro capítulo de Seuils, de Gérard Genette. Ele trabalha
questões interessantes, como a divisão dos títulos em temáticos (titres thématiques) e remáticos (titres
rhématiques). Os títulos temáticos destacam basicamente o conteúdo, podendo destacar o objeto central da
obra (primeiro caso, e em um primeiro olhar, o caso dos narradores de confissões do fim). Ou podem destacar
mesmo o desenlace (uma variante do primeiro caso e, pelo que nos parece, em parte, o caso de Mattia
Pascal), um objeto menos central ou marginal na obra (terceiro caso e o caso de FPD), ou ainda ser de um
tipo metafórico como O túnel, de Ernesto Sábato (terceiro caso). Os títulos remáticos são designações
genéricas do tipo de texto e tem no caso de Brás Cubas o gênero “memórias” em destaque (na verdade, um
novo tipo de memórias, que são as póstumas).
41
primeiro momento, caímos nessa armadilha, por cultivarmos o tom respeitoso, tal como em
um momento de contemplação na cerimônia fúnebre de um desconhecido. É bem provável
que não seja o riso a nossa primeira reação ao contato, ainda mais se, no plano paratextual, a
capa do livro for preta. Caso haja uma ilustração na capa, aí, sim, talvez possamos ter como
primeira experiência o riso ou um comentário irônico. Ficamos em silêncio, se mantidas as
conveniências quanto às regras de sociabilidade em velórios. Não podemos duvidar ainda da
morte do personagem, justamente por nos apoiarmos no pressuposto de não conhecermos
Mattia Pascal, nem o livro. Sabendo depois que Mattia Pascal não é um falecido, no retorno
ao título, podemos usá-lo para transformar o engano em metáfora de sua morte social. Esse
formato de apresentação de uma falsa pista (Mattia não está morto) encaixa-se no objetivo de
envolver o testemunho no plano da dúvida, esfera a cobrir a imagem metafórica do narrador.
Além de ter o propósito de servir de elemento de sedução (GENETTE, 1987, p. 95-98) do
leitor para este se perguntar, ao deparar-se com a capa do livro e antes de abri-lo e começar a
folheá-lo: quem é este falecido e qual a sua importância?
Se para nós leitores, o que fica mais evidente em um título é o nome de alguém e a
curiosidade de saber quem foi tal pessoa, antepor algo ao nome ganha mais significado, se o
narrador é ainda um indivíduo desconhecido ou alguém com pouco ou nenhum mérito. Temos
a impressão de estarmos sendo seduzidos para escolher o livro por acreditarmos que em sua
construção foram empregadas maneiras para ele ser algo atraente. O título unido à estrutura
do livro pode tornar esse algo aparente em imediatamente agradável ou no mínimo chamativo,
provocante. Dos três livros, FPD é aquele em que isso fica mais evidente, pois, além do título,
a estrutura do livro apresenta o narrador pelas intervenções e acréscimos das cartas de um
pároco e de um militar, das notas do editor ficcional, da carta de envio do manuscrito do
próprio Pascual Duarte, e da cláusula de publicação do testamento de don Joaquín Barrera
López, o personagem que recebe os escritos de Pascual Duarte, sendo provável que haja sido
seu primeiro leitor.
Além do título, existem outros elementos paratextuais que zelam pelo equilíbrio da
lógica da verossimilhança, mas é o título que inicia a retirada do livro do anonimato. Em
FMP, há uma cláusula estranha que falsamente preza pelo anonimato, tendo o efeito
contrário, quando, logo no início do livro, o narrador afirma que escreve para que sirva de
ensinamento a algum leitor curioso. O tipo especificado de leitor remete ao hábito de
personagens afirmarem escrever para o bem do próximo. A alegação de Mattia diz respeito à
utilidade da obra, se esta for capaz de resistir ao ocaso, não sendo destruída nem perdida e
escapando assim do provável desconhecimento ou esquecimento. Diz Mattia Pascal: “deixo
42
meu manuscrito, com a obrigação, contudo, de que ninguém possa abri-lo senão cinquenta
anos depois de minha terceira, última e definitiva morte” (PIRANDELLO, 1972, p. 10, grifo
do autor). A cláusula tenta nos fazer acreditar que reza por uma não leitura (mesmo que
temporária) do livro.
A cláusula estipulada por don Joaquín Barrera López em FPD contém algo parecido e
faz questão da permanência no anonimato do livro ou da destruição dos textos antes de sua
publicação. O efeito dessa cláusula parece gerar também o oposto. Tanto que nos diz don
Joaquín Barrera López, o destinatário e proprietário dos papéis com as memórias de Pascual
Duarte:
Ordeno que o pacote de papéis [...] rotulado em lápis vermelho dizendo: Pascual
Duarte, seja dado às chamas [....]. Não obstante, e se a Providência dispuser que [...]
o citado pacote se livre durante dezoito meses da pena que lhe desejo, ordeno a
quem o encontrar que o salve da destruição (CELA, 1986, p.12).24
Outro aspecto importante é a inclusão de dedicatórias por Pascual Duarte e Brás Cubas
em seus livros. Pascual Duarte deixa uma dedicatória a sua mais “valiosa” vítima – don Jesús.
A origem nobre desse personagem foi o real motivo da condenação de Pascual à morte. Brás
Cubas dedica seu livro ao verme que roeu suas carnes frias, decompondo o seu corpo e o resto
de aparência física, elemento ainda capaz de identificar o personagem como humano. Em
ambos os casos, os homenageados com as dedicatórias são, em certo aspecto, os responsáveis
pela condição final dos narradores. Ambas são dedicatórias confusas para o leitor, pois
Pascual mata a pessoa a quem dedica o livro, e Brás dedica o seu ao ser desprezível que
consumiu sem piedade o seu corpo.
Todo esse movimento de inversão de significado, capaz de causar estranheza e
curiosidade no leitor, induz o retorno ao título. Mas este só vai ser atraente se o leitor
conseguir relacionar o título com a condição expressa logo nas primeiras páginas.
A segunda sugestão de leitura diz respeito às frases de apresentação do “eu” narrativo.
Essa sugestão está presente na própria narrativa, em seu início, e é transmitida pelo próprio
narrador, quando sua escrita aparece – o que acontece geralmente quando ele demonstra o que
o motivou a materializar seus pensamentos, em seguida apresentando-se ou apresentando o
livro que se dispôs a escrever.
São elas as seguintes frases: “na qual, eu, Brás Cubas, não sei se lhe meti rabugens de
pessimismo”, “a única coisa que sabia era essa: que me chamava Mattia Pascal”, e “Eu
24
A passagem serve também para manter o jogo com a presença do editor ficcional. Note-se que as memórias
saem das mãos de Pascual e acabam nas mãos de don Joaquín, com o título apenas de “Pascual Duarte”.
43
[Pascual Duarte], senhor, não sou mau”. Assim temos para título desse capítulo o “eu”
autorial de Brás Cubas, que sabe que meteu rabugens de pessimismo no livro. Depois temos o
“eu me chamo” de Mattia Pascal, duvidoso por ser uma certeza simples e um outro engano (o
primeiro seria o “falecido” do título), quando o narrador mostrará que sabe várias coisas e
ainda com seus juízos de valor, critica fortemente a sociedade vista na forma de uma prisão. E
por último temos o “eu sou” ou seu inverso (eu não sou) de Pascual Duarte, como tese de
inocência.
Sobre a famosa frase do prólogo de Brás Cubas, quando este define sua obra para o
leitor, além do indício de fracasso camuflado, esse instante de apresentação do livro contém o
momento mesmo do surgimento do seu nome e a consequente apresentação do seu caráter.
Repetindo a citação um pouco mais ampliada, temos: “Trata-se, na verdade, de uma obra
difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de
Maistre, não sei se lhe meti rabugens de pessimismo” (ASSIS, 1960, p. 109). O foco narrativo
centrado no “eu” especificado pela presença do nome lança o leitor na tarefa de decifrar a tese
do uso desse “eu, Brás Cubas”.
Com a declaração do narrador, aliada ao restante do prólogo, nos percalços do
aparecimento do “eu” e do nome próprio, vamos, inicialmente, percebendo interesses de Brás
na admissão de ser o seu livro algo interessante e de realçado valor. Sua fala no prólogo não
tem como escopo, ainda, apresentar-se. Ele se esconde e apresenta em seu lugar o livro. A
atitude narrativa de Brás permite que ele se disfarce, embora, desde já, possamos perceber no
texto a criação de um ponto de incidência da vida do narrador e da existência do livro.
Narrador e obra confundem-se e, no lugar do devaneio do homem-livro, na forma da Summa
Theologica de São Tomás (ASSIS, 1960, p. 120),25
adaptando a metáfora, podemos vê-lo, até
quase todo o percurso literário encerrado em uma espécie de Summa “Galhofeira” ou Summa
“Melancólica”.
Na escolha de destacar no prólogo o livro e o estilo de escrita, falando de estilo no
sentido de conjunto de características textuais, temos o reflexo da identidade do sujeito textual
por ser o meio de reconhecimento imediato – isso se adotarmos uma equação na qual a forma
de agir se iguala à forma de pensar e se expressar. Prefiguração do personagem, este conclama
o leitor em razão de serem suas memórias algo inédito e com merecimento para ser lido.
Primeiro, por ser o livro de um morto, que adotou a forma livre. Segundo, por ser comparável
com os escritos de Moisés, na Bíblia, na porção chamada de “Pentateuco”. Na comparação de
25
A passagem retratada faz parte do capítulo VII, O delírio. Depois de se ver na figura de um barbeiro chinês o
protagonista sentiu-se transformado na Summa Theologica de S. Tomás.
44
ambos, há neste o mérito do sagrado e naquele deveria haver o do consagrado (con-sagrado).
E terceiro, por narrar no livro o próprio delírio, coisa, segundo o narrador, jamais feita antes.
Se Brás usa a frase para mostrar o livro, o leitor, ao inverter os polos de identificação
(livro – autor) para (autor – livro), consegue, não só ver o estilo do livro, mas agora a forma
de vida do autor. A ironia dessa mistura livro-autor está em observar como a frase centrada no
“eu” narrativo vai evidenciar o motivo do fracasso de sua vida, esmiuçado no decorrer da
leitura.
Já Mattia Pascal, em seu livro em vez de se apresentar logo (por ser até então um
desconhecido), ele tenta enrolar o leitor ao máximo, mantendo-o preso no desenvolvimento da
narrativa e, por assim dizer, lendo o livro. Não tem a petulância de comparar-se com grandes
escritores, mas deseja ser lido. Mattia Pascal mergulha na figura do filósofo burguês, cria duas
premissas26
sobre o conhecimento – fórmulas deixadas ao leitor para ter inicialmente uma
ideia errada sobre o narrador –, enche os primeiros capítulos de comentários e mostra o seu
pensamento sobre os aspectos de composição do livro, em relação aos aspectos literários da
época. A primeira premissa – saber apenas que se chamava Mattia Pascal – justifica a falta de
clareza e a embromação do narrador.
Com o elemento escolhido para compor o título desse capítulo, o “chamar-se”,
imagina-se que fará o leitor duvidar dessa informação. Difícil existir alguém que só saiba o
seu nome (a não ser que Mattia tenha sofrido alguma espécie de amnésia, e este, com certeza,
não é o seu caso). Em seguida, ele vai gastar um capítulo inteiro para levar o leitor a aceitar
como valiosa a sua proposta de leitura, de perceber por que ele sabe somente isso, ou de
compreender (o leitor, nesse caso) o modo como se deve ver uma outra pessoa. Se o narrador
mesmo não sabe de muita coisa, logo o leitor deverá saber menos ainda, e é essa a ideia
mestra da prática reflexiva do “falecido”: tomar consciência de quem ele é. A frase de
identificação de Mattia Pascal servirá para o surgimento dos acontecimentos e o desfecho
sempre irônico dos fatos.
Em FPD, logo no capítulo inicial, ele se apresenta da seguinte forma:
Eu, senhor, não sou mau, embora não me faltassem motivos para sê-lo. O mesmo
couro temos todos os mortais ao nascer e no entanto, quando vamos crescendo, o
destino se compraz em variar-nos como se fôssemos de cera e em destinar-nos por
sendas diferentes ao mesmo fim: a morte (CELA, 1986, p. 15).
26
A primeira premissa é: “Uma das poucas coisas e, talvez mesmo, a única que eu sabia ao certo era esta: que
me chamava Mattia Pascal” (PIRANDELLO, 1972, p. 9), e pode representar uma questão existencial ou de
auto-reconhecimento. A segunda frase – “maldito seja Copérnico” (PIRANDELLO, 1972, p. 12) – é uma
identificação da visão do mundo a partir do relativismo humano, tendo como ponto de partida a descoberta
do astrônomo polonês, que desenvolveu a teoria heliocêntrica, o que mudou a impressão do homem de herói,
supremo, grandioso, para o homem como ínfimo componente de um sistema, insignificante.
45
Se atentarmos para o começo da narração, o texto começa justamente com o aparecimento do
“eu” narrativo, da referência respeitosa a don Joaquín (o “senhor”) e a enunciação de uma
negação (“não sou mau”). Ao pensar se Pascual é um assassino consciente ou apenas
impulsivo devemos indagar a respeito do narrador qual a necessidade dessa negação e o
porquê de não começar com uma afirmação. O relacionamento do paratexto introdutório da
narrativa levanta a hipótese de que Pascual Duarte já é um condenado na primeira linha da sua
trajetória escritural. A negação seria então um ato de defesa, embora Pascual Duarte não nos
apresente quem o acusa, a não ser se pensarmos nele mesmo. Após dizer “eu não sou mau”, o
narrador nos deixa duas justificativas complementares – “embora não me faltassem motivos
para sê-lo” e “o destino se compraz em variar-nos como se fôssemos de cera e em destinar-
nos por sendas diferentes ao mesmo fim: a morte” (CELA, 1986, p. 15).
A lógica apresentada no início da narração resume-se à sentença de que ele não
cometeu os assassinatos por vontade própria e, sim, por necessidade. Pascual não teve a opção
de ser bom e já estaria condenado pelo destino desde o nascimento. Na ociosidade da prisão,
Pascual reflete e sentencia: “Há homens aos quais se ordena caminhar pelo caminho das
flores, e homens aos quais se manda jogar-se pelo caminho dos cardos e dos espinhos”
(CELA, 1986, p. 15).
Após a leitura dos primeiros parágrafos, nos conscientizamos de haver um tom de
morbidez a pautar todo o decorrer da escrita. A predestinação à morte apresenta um
pessimismo influente desde o lugar descrito em que nasceu e viveu, presente já no segundo
parágrafo do primeiro capítulo.
Diferente de Mattia e Brás, Pascual vai direto à narrativa, talvez porque não saiba
envolver o leitor pela falta da capacidade de deixar seu texto mais galante. Sobre o povoado
em que vivia ele diz, de imediato, tentando nos deixar perplexos pela comoção do caso,
apelando para a tese da inocência (o que pode nos deixar perplexos,27
além da escolha do
vocabulário, é a forma de construção textual como no exemplo da palavra longura):
“Almendralejo, agachado à beira de uma estrada lisa e longa como os dias, – de uma lisura e
uma longura que o senhor, para seu bem, nem pode imaginar – de um condenado à morte”
(CELA, 1986, p. 15). Mais à frente, o narrador vai começar a deixar escapar a sua falta de
27
Por ser uma análise e por apelar para a interpretação, grande parte do nosso trabalho está no plano
especulativo. Por ser um texto aberto, e aí nos referimos a Eco em Obra aberta (ECO, 1968), o texto poderia
se apoiar na possibilidade de inocência do personagem, mesmo não sendo inocente o narrador. Voltando a
Eco e às previsões, ele fala em textos direcionados para se pensar de determinada forma. Por isso usamos
ideias e frases como “nos deixar perplexos”, pois é a atitude que os leitores, em sua maioria, poderiam
assumir.
46
domínio sobre a linguagem, até expor nela a brutalidade do seu modo costumeiro de agir,
reflexo de um espírito angustiado e agressivo, sendo a brutalidade uma imposição dos
costumes da vida do narrador e uma forma arcaica de se mostrar como homem.
A inconformidade do narrador com sua condição de pobre o faz alegar ser
incompreendido na verdade das coisas. Sua insatisfação é movida pela vontade de viver bem
e livre, talvez com os mesmos direitos de um dom espanhol – o don –, um homem honrado.
Para exemplificar o desnível entre o camponês e o nobre, a zombaria da primeira esposa
ironiza a solicitação de igualdade entre ambos. “Minha mulher, que fazia graça sobre tudo,
dizia que as enguias estavam roliças porque comiam o mesmo que don Jesús, só que um dia
depois” (CELA, 1986, p. 20). O tom irônico está até em entender a dependência e
intermediação de um elemento animal – as enguias – acima dele, pois temos primeiro don
Jesús, depois as enguias, e só depois o pobre semianalfabeto se alimenta, em um efeito quase
parasitário.
As três narrativas apresentam o problema do narrador logo no início. Ou melhor,
resultado de uma inversão estrutural, o leitor conhece já no início qual é o seu final. A
motivação do leitor poderá ser talvez saber como se deram esses acontecimentos estranhos. O
importante então não é o fim, e sim os meios usados e sofridos pelo narrador para compor,28
com toda a problematização textual refletindo os acontecimentos e as angústias vividas pelos
narradores-escritores. Em vista de tudo isso, seria melhor ou mais justo, então, falar em uma
segunda leitura do título, com o leitor consciente do fim, e perceber (mesmo que timidamente)
que o narrador não é tão inocente quanto parece, podendo-se afirmar que nenhum ser da
ficção entra em defesa da honestidade dos narradores. Brás Cubas não explica o processo da
vinda a público de suas memórias e talvez por isso não tenha um prefácio de outra pessoa
para introduzir suas opiniões e relatos (a não ser Machado de Assis, o criador). Quem seria
capaz de escrever um prefácio para um livro de um morto que, não se sabe como, veio ao
mundo? Um outro morto? Qual vivo estaria a favor ou sairia em defesa de Brás Cubas?
Mattia Pascal, crítico da atitude literária de pormenorizar a narração, isolado em uma igreja,
não tem um prefaciador, nem mesmo seu amigo, o padre Elígio Pellegrinotto (incentivador de
Mattia na escrita) é capaz de escrever uma simples nota a seu favor. Ou o padre não quer se
arriscar a desmentir o falecido, ou Mattia mesmo não aceita a intromissão da pretensa verdade
de terceiros, justo por ser ele – o narrador – o detentor da verdade. Apenas em FPD temos a
28
Para Saraiva (2009, p. 59) “o narrador desvia a atenção do objeto proposto – a revelação de uma vida – para
concentrar-se no processo narrativo. [...] Brás Cubas [...] prestigia o nível do discurso em detrimento da
história, fazendo com que o interesse, voltado para a sequência dos episódios, seja truncado, infletindo sobre
a retórica do narrador”.
47
intromissão escrita de terceiros.
Em consideração imediata ao assédio irônico e mal-intencionado, é preciso entender
que o leitor, por não dever confiar totalmente no narrador,29
na tendência de deixar de ser um
leitor fiel, distraído ou só entediado com os fatos do mundo, migra para assumir o papel de
curioso e se transformar no leitor consciente. A expressão “leitor curioso” está presente na
narrativa de FMP, e depois em MPBC. Ao se falar em leitor consciente, recomenda-se que
esse leitor deva duvidar em primeiro lugar não das informações, mas da forma como estas são
transmitidas. Já sabendo do intuito de influenciar por meio de apelos retóricos, ao receber as
informações, o leitor deve posicionar-se, se é capaz, duvidando dos comentários do narrador.
São os comentários que anulam a neutralidade e dá-se a entender, a cada comentário, o jogo
intencional do narrador-escritor. Veremos, nos capítulos desta pesquisa, que ele não escreve só
para passar o tempo e muito menos escreve com o intuito de compreender-se melhor. Nesse
caso, a dúvida resulta de provas contra o narrador, dadas pelo narrador mesmo e pelo editor
ficcional.
A segunda sugestão de leitura é apresentada diante do título, confirmando ou
rejeitando o seu poder. Caso o narrador deveras não tenha a mínima noção de como foi
publicado o livro, ele deixa, mesmo assim, sua dica, sua pista, seu convite para o leitor
descobrir se ele fala a verdade ou não.
O leitor, portanto, deverá armar-se igualmente para saber se o narrador fala ou não a
verdade e, em momentos nos quais podemos pensar que o narrador simplesmente não está
dando a mínima a ele, presenciamos que, ao contrário, a concordância do leitor é o seu maior
desejo. Os finais melancólicos das narrativas de Brás Cubas e Mattia Pascal atestam isso. Em
FPD as cartas do pároco e do militar mostram a degradação do ser humano e seu apego à
vida, querendo clemência, rebaixando-se estrategicamente para pedir o indulto e o retirar do
castigo certo. Se o leitor riu durante o percurso narrativo, o final é um território para
compadecer-se do papel do narrador.
É nesse ponto que o narrador desvenda todo o seu paradoxo. Ele quer dizer, mas não
pode dizer por questões morais e jamais vai conseguir “desnudar-se”30
realmente e
29
Nem duvidar em tudo dele. “Não é que Brás Cubas esteja sempre mentindo. Porque se assim fosse seria fácil
para o leitor, mas a narrativa também não se sustentaria. Não é assim, entretanto. Brás Cubas não mente
sempre, embora às vezes o faça descaradamente [...] ” ( FACIOLI, 2002, p. 94). 30
Na obra de Pirandello existe a presença clara do termo “nu” no decorrer do seu teatro e em sua narrativa.
Estar nu, mostrar-se como se é diante de um espelho, é o tema de Um, nenhum, cem mil, último romance
publicado pelo autor. O conjunto de peças teatrais de Pirandello foi denominado por ele de “máscaras nuas”,
pela razão de Pirandello falar muito em tirar a máscara, desmascarar-se e ficar nu na frente de quem nos vê e
de como esse sentimento é capaz de causar constrangimento para quem atua, no palco ou na vida. E o tema
da escrita e do narrador-escritor serve de exemplificação, em Serafino Gubbio, operador e no próprio O
48
desmascarar-se para o leitor. Por maior disposição que tenha em contar sua vida, o narrador
tem escrúpulos de dizer tudo, principalmente quando as informações possam servir contra ele
mesmo, ou no momento em que o leitor, entendendo a prova, possa julgar a moral dele.
Para todo discurso há uma ordem. Pensando nisso, Michel Foucault consegue
sistematizar a estrutura textual a partir de condições, pensando na importância dos valores
tradicionais na elaboração de qualquer fala. “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer
tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não
pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2007, p. 9). Aplicando essa forma de ver o
sistema de produção discursiva, incluindo o dito e o não-dito, até o interdito, encontramos um
explícito movimento autodefensivo, de preservação da imagem. Os narradores-escritores se
aproveitam disso e, no que consta ao leitor consciente, este acaba por gerar um movimento de
defesa também, ao ler o livro e imaginar possíveis tentativas de enrolação feitas pelo seu
autor.
Mattia Pascal não jura dizer a verdade, mas ele diz, em lugar disso, estar “fora da vida,
logo, sem obrigações nem escrúpulos de qualquer natureza” (PIRANDELLO, 1972, p. 15).
Porém antes ele usa expressões de alegação de veracidade no primeiro capítulo tais como “é
meu dever avisá-lo” (PIRANDELLO, 1972, p. 9) e “posso testemunhá-lo” (PIRANDELLO,
1972, p. 10). A construção inteira da primeira expressão é: “Mas é meu dever avisá-lo de que
não se trata, propriamente, disso”. O uso do advérbio vai contra o narrador na sua falta de
clareza. O dever do narrador de avisar o leitor, em contrapartida e por ironia, atesta a nosso
favor.
A segunda expressão comprova ser o narrador capaz de repassar o acontecimento tal
qual ocorreu, pois ele pode testemunhar e, lógico, ele viu o que aconteceu. Enquanto o leitor
está distanciado do ocorrido, o narrador extrapola sua autoridade, passando facilmente para o
autoritarismo. Por enquanto, o leitor nada pode fazer senão ler e esperar.
Por estarem separados dos vivos e não tendo na teoria que provar mais sua inocência
ou retidão moral, todos deixam evidências de que o que importa para eles, narradores, é
somente mostrar os fatos, esclarecê-los. Em MPBC, no prólogo, o narrador vira-se para o
leitor e diz que a “obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te
não agradar, pago-te com um piparote, e adeus” (ASSIS, 1960, p. 109).
O final da citação serve para o leitor desatento pensar que, de um jeito estranho, Brás
Cubas importa-se com ele e deixa-lhe o poder aparente da decisão de acreditar ou não,
falecido Mattia Pascal, para mostrar a dificuldade do indivíduo em “dizer tudo” e em ser entendido.
49
respeitando até a indiferença do leitor. Em sua escrita, Brás não implora ao leitor, embora
sempre apele para ele. Mattia Pascal nos deixa um “Pois bem, faça-o à vontade”
(PIRANDELLO, 1972, p. 9). Assume não se importar com moralismos e julgamentos, mesmo
com um arrebatamento de seguidores, lamentadores ou pessoas com afinidades de ponto de
vista, e tenta evidenciar isso por se achar “numa condição tão excepcional” (PIRANDELLO,
1972, p. 15). Sua condição é suficiente para o narrador fornecer somente “as notícias que
reputar necessárias”, já sabendo que “algumas delas” não lhe “farão muita honra”
(PIRANDELLO, 1972, p. 14).
Pascual Duarte se aproxima dos seus antecessores, e diferencia-se deles por
demonstrar se importar com o leitor. Com menos intensidade e bem mais cerimônia ao redor
de don Joaquín, a semelhança está em alegar em não se importar mais com a decisão da
opinião do leitor e deixa-o (em teoria) livre para pensar o que quiser. Ainda põe o leitor de
sobreaviso da sua condenação e pena. O narrador dispõe-se a fazer uma confissão pública e
adverte o leitor de que a memória não é o seu forte. Inclina-se “a contar algo do que lembr[a]
de [sua] vida” e “a contar aquela parte que não quis apagar-se em [sua] mente e que a mão
não resistiu a traçar sobre o papel” (CELA, 1986, p. 9). O narrador Pascual Duarte, depois de
confessar ter cometido crimes, pede perdão de Deus e se diz resignado com seu destino:
Confio que o senhor saberá entender o que não lhe digo melhor, porque melhor não
saberia. Estou agora pesaroso por ter errado meu caminho, mas já nem peço perdão
nesta vida. Para quê? Talvez seja melhor que façam comigo o que está disposto, pois
é mais que provável que se não o fizerem eu volte a reincidir no erro. Não quero
pedir o indulto, porque é demasiado o mal que a vida me mostrou e muita minha
fraqueza para resistir ao instinto (CELA, 1986, p.10-11).
No entanto, no final do livro o guarda Cesáreo Martín desmente o narrador. Ele acrescenta
com sua carta que à “vista do patíbulo [Pascual Duarte] desmaiou e, quando voltou a si, tais
berros lançava de que não queria morrer e de que o que faziam com ele não era justo” (CELA,
1986, p.145). O narrador aceita a sua pena nos relatos, antecipando que vai morrer, e no final
demonstra em ação justamente o contrário da resignação de condenado.
Falar de um jeito e agir de outro é prática recorrente em textos tecidos em torno do
problema do modo de configurar a escrita, e de como essa escrita, suscitando a dúvida,
evitaria deixar o leitor em relação de confronto iminente com o narrador e sua narração. A
tarefa agora de aceitar a mensagem do narrador ajusta-se na averiguação dos fatos relevantes
para uma avaliação de sua índole, e do(s) seu(s) respectivo(s) objetivo(s) ao escrever. Em
suma, no levantamento do estilo do narrador.
50
1.1. DO PONTO DE PARTIDA E O SEU CONSTANTE RETORNO: A NECESSIDADE
DE SE ENTENDER O TÍTULO
Em MPBC, a indicação de que existe um tipo de escrita póstuma é explicado na
introdução do livro, no prólogo chamado de “Ao leitor”. Brás Cubas afirma ser o seu livro
“obra de finado” (ASSIS, 1960, p. 109), dando mais realce a sua escrita. No capítulo primeiro
acrescenta sua inóspita condição de “defunto autor” (ASSIS, 1960, p. 111). No decorrer do
romance, pelo tom de ironia e melancolia a atravessá-lo, precisamos sempre pensar nas
memórias de Brás Cubas no sentido imprescindível de ser um livro escrito por um morto, mas
não um morto satisfeito com a vida que teve.
A estranheza do fato em si (morto não escreve) acentua sua originalidade (um livro
que começa no fim, a mistura de uma gama muito grande de informações e textos e, mesmo
assim, manter uma unidade) e o seu completo domínio (um morto, pelo fato de já ter vivido
tudo, não deve ficar mudando de opinião). O personagem recebe, de tão diferente que é, a
alcunha de um “autor particular” (ASSIS, 1960, p. 107), no prólogo de Machado de Assis
para o seu romance. O autor efetivo alega que nós estamos diante de um livro de alguém
(Brás Cubas) livre do moralismo dos vivos. Um livro independente, único, de um personagem
diferente. Porém, o livro vai se apresentar não tão independente assim. A alegada
independência é transitória e aparece somente no início do livro, pois Brás está preso ao
mundo dos mortos por ser morto, e preso ao mundo dos vivos na sede de (tentar) conquistar
(ainda) honras e glória ao seu nome. Brás é vítima da opinião pública. Ele pode ser livre para
dizer o que pensa, mas não o faz em sua totalidade (é bom sempre lembrar a afirmação de
Foucault n‟A ordem do discurso, quando ele fala em não poder falar tudo). Em vez de dizer,
na maior parte do tempo, ele sugere com sutileza o que pensa ser a “verdade”. Usa capítulos
digressivos, tenta distorcer os fatos e ludibriar a opinião alheia. E ainda alerta com cinismo o
leitor que o texto foi feito com “a pena da galhofa”.
Próximo de MPBC, FMP traz no título também a alusão à morte. No entanto, não há
memórias de um defunto autor e, sim, de um autor supostamente falecido. Mattia Pascal não
está morto ainda no tempo da escrita do romance. Na condição de (falso) morto, envereda-se
pelos caminhos da narrativa. É, pois, o título uma fala incoerente, quando não manifesta a
verdade. O título é uma demonstração, por ser o primeiro engano do livro, da grande
desventura do narrador. O livro inteiro é repleto de enganos e desventuras, a narrativa do
passado cheia de desmentidas. Segundo nos parece, esta seria a proposta do livro: o leitor será
enganado diversas vezes, se confiar em tudo no narrador, em um jogo de atração na busca
51
pela verdade.
Mas quem propõe isso pela primeira vez não é Mattia, e sim quem nomeou o livro. É
Pirandello, ou, no que nós propomos, na hipótese do editor ficcional. Ele quer que vejamos a
grande ironia dos fatos, ainda mais quando uma pessoa comum, sem créditos de um santo
(coisa que Mattia não pode ser) e de hábitos medianos, não pode ressuscitar, voltar ao mundo
dos vivos sem mais nem menos. Caso o fizesse, ao exigir seus direitos de marido, tudo se
transformaria num gigantesco emaranhado de problemas insolúveis (aguentar a sogra,
desfazer o relacionamento de Pomino com a esposa – que é a esposa de Mattia, lutar para
registrar os supostos filhos, trabalhar dignamente e pagar todas as dívidas acumuladas com
credores). Daí Mattia ter de aceitar e permanecer com a fama de falecido.
O título dado às memórias de Pascual Duarte é mais controverso ainda. FPD não tem
como centro da narrativa a família, e sim o fracasso de Pascual Duarte. O centro é ele, o
narrador. Na verdade, se o leitor olha para a família como centro da narrativa e para Pascual
Duarte como ponto paralelo de referência, ele pretende descobrir quem é essa família e qual o
papel de influência de Pascual no grupo. Nas informações do livro, encontramos o contrário e
é a família a fonte de influência. Um título mais adequado ao conteúdo do livro, colocando
Pascual no centro da questão poderia ser: Pascual Duarte e sua família31
. Assim dar-se-ia o
foco à figura de Pascual Duarte e a família, inversamente, serviria como ponto de referência
na atuação do protagonista.
1.2. O “EU” ESCRITURAL: ESTRATÉGIAS E INCOERÊNCIAS DO MUNDO
PARTICULAR DA NARRATIVA
Vistas as duas sugestões de leitura, o título, em contrapartida, é um alerta, por focalizar
como o narrador atravessa o problema do fracasso por meio da sua narração. É uma chamada
de atenção para o leitor perceber a parcialidade do narrador e que é possível que ele ao
escrever se condene, entregando os pontos da verdadeira motivação da escrita. Vejamos como
isso ocorre.
MPBC é a obra de um morto fracassado, nada louvado pelos vivos, a não ser porque o
defunto antecipadamente favoreceu do ponto de vista econômico a um ou dois conhecidos,
sendo que os favorecidos só retribuem os favores, como no caso do personagem que compõe
um discurso em homenagem ao falecido, no dia do seu enterro, pelo favorecimento
31
A versão em inglês segue esse padrão e se intitula Pascual Duarte and his family.
52
econômico. Toda a autonomia da autoria galante de Brás é, na verdade, um belo disfarce, que
cai quando o narrador desdenha o poder de opinião do leitor. Brás Cubas é um narrador morto
preso ao mundo dos vivos, mas de qualquer jeito, é um morto e não pode fazer mais nada (a
não ser escrever).
Mattia Pascal não é um falecido de fato, somente o é enquanto cidadão. Sofre a morte
da identidade civil. E esse erro de documentação possibilita ao narrador viver às margens da
sociedade, vagando entre os outros vivos, insepulto e, por isso, mal-resolvido, sem poder
retornar à vida anterior e sem poder chegar ao Paraíso ou ao Hades, que é o mundo dos
mortos. Mattia mesmo não resolve em qual mundo está e acaba por se aproveitar da situação.
Só lhe resta isso em sua condição amórfica. Essa acomodação típica resulta na fuga das
responsabilidades civis, além de o deixar prostrado diante da vida. A ele também não resta
mais nada a fazer, senão escrever.
No caso de Pascual Duarte a proposição para o leitor já dos primeiros capítulos está na
razão de a família de Pascual Duarte ser o próprio problema para ele. O problema começa e
termina com a família. Não expõe sua intolerância, ódio ou insatisfação para com os
opressores por não poder condenar quem é superior a ele. Inconformado com o mundo rural
espanhol, atrasado nas suas particularidades, a alma seca do personagem acaba por favorecer
e perpetuar os valores da injustiça social no livro. Para ele, injusto é nascer pobre. Não é
injusto nascer rico e manter as diferenças de classe.
Em alguns parágrafos anteriores comentou-se sobre o sentido da identidade ao redor
de um “eu” no título do livro. Falou-se também em uma segunda sugestão de leitura. De
alguma forma, a apresentação do “eu” narrativo de cada narrador pode, salvo engano, passar
confiança ao leitor.32
Somado os fatores identidade e sugestão, temos, nas confissões do fim, a
supervalorização dos traços autobiográficos dos narradores-escritores. A justificativa acontece
quando estas são narrativas em que o reconhecimento do “eu” é notório e a predominância
subjetiva permite avaliar um indivíduo escritural, distante e não existente fora do livro. As
características narrativas adotadas pelo aparecimento do “eu” escritural mostra, pelo discurso
sorrateiro ou mesmo escancarado, um sujeito egocêntrico ao extremo.
De acordo com o intuito narrativo de um livro de memórias de posição confessional,
no qual há o egoísmo centrado na sobrevivência do “eu”, temos a intromissão constante do
narrador no uso do comentário em certo ponto perverso, mal-intencionado, malicioso e o fato
de, a todo o momento, o narrador tentar defender-se e jurar ser inocente, demonstrando o
32
Na verdade, apenas convencer o leitor.
53
contrário, mostrando-se como um indivíduo desajustado e ainda com o pensamento apenas de
usar o leitor para legitimar suas atitudes contrárias ao convívio social, dentro de padrões
éticos estabelecidos de suas épocas. Além disso, os narradores arrogam uma autoridade
proveniente do mundo dos mortos, possível pela soma e totalidade da vivência e da
experiência sofrida ao longo da vida. Mas o mundo dos mortos nesse ponto serve como forma
adversa ao mundo dos vivos, contradizente ao processo humano da convivência rodeada de
parâmetros morais, pois quem não conseguiu viver com louvor é justamente quem jura
possuir autoridade para falar de padrões morais e deixar claro o seu ponto de vista
tendencioso sobre experiências e circunstâncias ético-sociais.
O projeto narrativo confessional é fruto imediato de algum impedimento. O fracasso
desponta após algum episódio notório – Brás Cubas alega que sua morte teve por motivo uma
ideia fixa sobre a capacidade de produzir um remédio contra a hipocondria. Mattia Pascal não
pode se casar com Adriana e nem pode retornar e assumir seu antigo casamento. E Pascual
Duarte matou a mãe e don Jesús, atrelando ao seu destino o imoral atentado contra a família e
a ordem estabelecida na sociedade, duas entidades quase sagradas e invioláveis. Matar a mãe
e um nobre ofende e fere a moral social. Não há como o narrador libertar-se, somente lhe resta
a possibilidade de explicar-se perante o leitor.
Através dos casos de fracasso por esses impedimentos de vida, vemos a lógica de o
livro remeter também a outros fracassos influentes e secundários: a perda do casamento com
Virgília, em MPBC, a pobreza e o impedimento de ser um rico, em FMP, e os constantes
acessos de cólera, a mancha na honra de marido e de pai, o rebaixamento econômico, moral e
social, em FPD.
O fracasso, sentimento negativo de privação, vale-se de uma via de valores assumidos
de conveniências aparentes. O papel de amante interessa a Brás Cubas, porém o prejudica na
exposição da sua imagem, caso o relacionamento seja descoberto e as provas da imoralidade
conjugal de Virgínia venham à tona. A falta de sorte de Mattia Pascal em não ter dinheiro
quando casou e depois de não poder casar, quando conquistou boa fortuna, pode parecer opor-
se à lógica de casualidade. Mas o que se observa nele é sempre um ato espontâneo de procurar
justificar os seus erros, tirando sempre o melhor proveito, desde que a situação sirva para a
manutenção de sua insustentável liberdade. Também a visibilidade do engano do leitor ao ler
e acreditar no narrador, ao pensar no criminoso confesso Pascual Duarte, talvez deixe a
certeza do grande problema apresentado na superfície da leitura, o qual deve ser visto como a
pobreza material, lado a lado com a influência do destino. Mas, se fosse apenas a pobreza
material ou a influência do destino, qual seria a função social da morte de sua mãe? E qual o
54
verdadeiro motivo na morte de don Jesús? Inveja, vingança ou luta de classe? Logo, conclui-
se, o erro do narrador está em pensar atribuir o fracasso de alguém a algum fato específico.
Ao pensar na ênfase do fracasso de uma vida – a impossibilidade de viver –, e no
determinante causal desse fracasso, deve-se pensar, após a conclusão da leitura dos livros de
memórias, que os narradores de confissões do fim revelam sempre fracassar várias vezes, pela
razão de não poderem viver dentro de padrões e de seguir regras de bom convívio e
respeitabilidade estabelecidos. Do rico ao pobre, passando pelo pequeno burguês, os
narradores sofrem influência do meio e de suas condições sociais, mas são dotados de poder
de escolha, superando o determinismo lógico e até o pragmatismo dos romances de classe ou
de cunho político-ideológico. Mattia exemplifica esse pensamento sobre os “ismos”, ao
brincar com o leitor, logo no primeiro capítulo, quando fala do fato de conhecer os seus
antepassados “nada louváveis”. Pascual não mata uma vez apenas, sendo o responsável
confesso pelos assassinatos de algumas pessoas. Ele é agente de outros tantos atos de
agressão, mesmo nos momentos nos quais ele é (ou poderia ser) relativamente feliz.
A escolha do título deste capítulo procurou demonstrar a construção do caráter do
narrador desde o surgimento do nome e a forma como ele se apresenta mediado pelo discurso
da “verdade”. De acordo com a proposta apresentada no aparecimento do “eu” narrativo, é
pertinente fazermos ainda a seguinte pergunta: a escrita de narradores-escritores em
confissões do fim é uma tentativa deles de compreenderem a si mesmos? Ou seria uma forma
(velada ou explícita) de se auto-afirmarem em uma tentativa desesperada de superar ou
escapar à morte? Com a primeira hipótese, haveria a possibilidade de mudança de conduta
(mesmo no caso de Brás Cubas), ainda que a mudança de conduta não represente a mudança
da situação. Brás já está morto, embora pudesse abandonar a atitude sarcástica de se
vangloriar de seus feitos, ou deixar de fazer comentários maldosos, cínicos sobre outras
pessoas.
Em FMP, o narrador poderia “ressurgir”, trabalhar e constituir família, e, inclusive,
poderia assumir “fora da lei” o seu suposto filho. Não existe uma tentativa de lutar contra, de
reagir. No caso de Pascual Duarte, mesmo condenado à morte, ao menos poderia morrer com
dignidade, ou tentar se aproximar da sua esposa e da sua irmã. Ao escrever o seu livro de
memórias, Pascual Duarte não acrescenta nada sobre Esperanza, nem nos avisa do envio de
alguma carta a outras pessoas.
Desse modo, os três, cada um a sua maneira, não demonstram ser confiáveis, têm seus
discursos comprometidos, sem força de vontade de superar a situação do fracasso,
acomodando-se o melhor que podem atrás do livro de confissões. O rico herdeiro, o quase
55
bibliotecário e o pobre coitado camponês serão conhecidos mais claramente e se apresentarão
melhor ao falar da família, tema já de outro capítulo.
2. MARCAS DE UM TEXTO: O PROBLEMA DA IMAGEM DO
PERSONAGEM
Cada vida conquista não uma morte qualquer, mas a sua
própria morte, aquela que ao longo do caminho soube
merecer.
Bontempelli
O capítulo anterior tratou de questões inerentes à necessidade da confecção do livro,
no projeto narrativo dos narradores-escritores de confissões do fim. No desenrolar do
capítulo, foram apresentadas três situações básicas, contemplando sempre a marca da
identidade – o nome –, dando-lhe realce, confundindo sua presença com a presença e a
constituição do livro. A confluência subjetivo-livresca-confessional, pela qual se situa o
narrador, é uma inferência capaz de levar o leitor a identificar o indivíduo pela composição da
identidade narrativa e o respectivo e possível desenho do caráter do narrador. Portanto, a
instauração e posterior sustentação da forma física e psicológica são necessidades que se
equivalem, para nós, à obrigatoriedade de enxergar, o tempo todo, quem nos transmite os
fatos, sua escrita e os próprios fatos apresentados. Todo e qualquer leitor tem diante de si a
tarefa de julgar se o narrador realmente é como ele se descreve. Este capítulo trata dos
aspectos do estilo da escrita do narrador-escritor de confissões do fim: as marcas atuativas,33
que definem o indivíduo central da narrativa, sujeito e objeto dela, e a identidade narrativa
mediada pelos comentários e apelos retóricos.
Tomemos agora como ponto de partida um fato paratextual. Genette (1987) chama
de peritexto (péritexte) a categoria espacial que envolve o texto mesmo, e tudo que está
diretamente ligado a ele, como títulos, prefácios e notas. É comum ver em romances ou
outros textos ficcionais a inclusão do peritexto na ficção, para dar mais veracidade ao
narrado. FPD é um exemplo bem nítido disso. Sissa Jacoby, ao analisar o romance, destaca
33
Embora haja na língua portuguesa a palavra “atuante”, a opção pelo neologismo “atuativa” justifica-se por
destacar (pelo menos esse é o nosso objetivo) que, ao relembrar o passado, as marcas delimitadoras da forma
de agir do personagem o tornam presente, no nível de atividade ao tempo da leitura. As marcas o fazem
sujeito ativo, como se ele tivesse acabado de cometer erros ou acertos. Essa expressão busca entender o
sujeito das ações em sua completude, no pensamento de que, mesmo podendo tecer um destino paralelo, ou
sua forma de atuar, ele não o faz por motivos diversos, entre eles, a vontade de reconstruir seu ego pela
narração do seu passado.
57
a presença de quatro narradores, aos quais chama de instâncias narrativas: o transcritor,
Pascual Duarte, o pároco e o militar. O primeiro exerce sobre o texto a autoridade de posse,
introduz o relato e dá voz a outros dois narradores: o padre don Santiago Lurueña e o
guarda civil Cesáreo Martín. Esses dois últimos estão posicionados na obra diferindo de
opinião um do outro. O padre destaca o fato de Pascual ser uma vítima, e o guarda condena
Pascual. O efeito do contraste nos permite realmente pôr em julgamento a figura do
narrador, ainda que sob pontos de vistas sugeridos por outros personagens:
Ainda que perdendo em persuasão, pois nenhum dos três participou da história narrada,
as vozes do transcritor, do padre e do guarda civil, mesmo que em resumidas notas e
cartas, procuram estabelecer um contraponto à auto-imagem apresentada por Pascual
Duarte. (JACOBY, 1994, p. 44).
Toda essa arquitetura textual é a forma que Camilo José Cela usou para chamar a
atenção do leitor e envolvê-lo. Assim, uma carta, um prólogo, uma advertência de outro
personagem presta-se ao serviço de esclarecer algum fato ainda não resolvido ou serve
para introduzir (a polêmica n)o texto de ficções narrativas (GENETTE, 1987, p. 10).
Além da associação de opiniões na arquitetura textual, outro aspecto possível, de
grande importância para a análise do conjunto da obra, são as modificações do texto.
Talvez o exemplo mais claro esteja na primeira edição de MPBC, no capítulo I, no qual
constava em forma de epígrafe uma citação em inglês,34
que, traduzida, significa: “Não é
meu intento criticar nenhum fôlego vivo, mas a mim somente, em quem descubro muitos
senões” (ASSIS, 1960, p. 111). Qualquer leitor, maduro ou não, depois de ler alguns
capítulos, vai descobrir que é hábito comum de Brás Cubas criticar sempre, pouco
elogiando as pessoas envolvidas na narrativa. Caso permanecesse a epígrafe, a afirmação
demonstraria para um leitor atento, pela força imediata do efeito contrário do dito, desde as
primeiras frases, uma definição explícita de como enxergar o narrador, facilitando por
demais a vida desse leitor. A retirada da epígrafe aumentou a zona de liberdade da leitura,
possibilitando um momento mais individualista para avaliação pessoal, no reverso da
constante fluência da atitude do narrador, ele sempre a se apresentar em sua soberania de
homem justificável. Por outro lado, a retirada elevou o nível da nossa responsabilidade nos
momentos de leitura e decodificação das informações no seu conjunto, isso exigindo maior
atenção e envolvimento da nossa parte.
Referindo-se à “manipulação do estado de espírito do leitor”, Booth (1980, p. 216)
34
“I will chide no breather in the / world but myself; against whom / I know most faults”. Shakespeare, As you
like it. act. III, sc. II. As informações são da nota de rodapé da edição aqui utilizada.
58
destaca que “os autores estão, com efeito, a exercer cuidadoso controle sobre o grau de
envolvimento ou distanciamento do leitor em relação aos acontecimentos da história”. Em
referência à afirmação de Booth, comparando-a com a retirada do falso aviso na epígrafe, a
mesma situação levanta uma questão bastante interessante para entendermos uma confissão
do fim, e, quem sabe, os demais livros de narradores em primeira pessoa, confessando
algo.
No dever de enxergar bem os narradores, e imbuídos da vontade de julgá-los,
poderíamos chamá-los de egoístas, ávidos pelo sucesso, incultos, enganadores? Deveríamos
nos aproximar da atitude de críticos que já os julgaram? Ou deveríamos permanecer somente
no significado geral da obra, avaliando apenas o processo social, esquecendo e relegando o
narrador-escritor ao papel de pobre coitado, vítima, ou joguete do destino? Ou devemos
ampliar a lista de adjetivos, epítetos e outras tentativas de identificação dos personagens,
sejam elas de rotulação ou não, como aconteceu com Brás Cubas – que já foi chamado de
“brasileiro rico e desocupado” (SCHWARZ, 2000, p. 63), “manhoso” (SCHWARZ, 2000, p.
24), “fátuo” (MERQUIOR, 1990, p. 219) e “defunto estrambótico” (FACIOLI, 2002, título do
livro) –; com Mattia Pascal – já visto como uma espécie de “Orestes transformado em
Hamlet” (CASTRIS, 1992, p. 61, tradução nossa), “vítima-herói da nova consciência
„copernicana‟” (CASTRIS, 1989, p. 141, tradução nossa), “inapto a tudo [...] filho de papai”
(BARILLI, 2003, p. 187, tradução nossa) –; ou ainda com Pascual Duarte, tido como “um
homem cujo evidente gozo seja o sangue alheio derramado” (VICENTE, 1962, p. 25,
tradução nossa)?
No decorrer da narrativa, compete a nós reconhecer a imagem do caráter do narrador,
pensando nele e nas inúmeras limitações individuais e sociais pelas quais ele passa. As marcas
atuativas, em regra, são as constantes necessárias que o leitor usa na formação da equação
para compreender o narrador.
Para efeito de definição, podemos entender as marcas atuativas por meio dos
hábitos frequentes, transformando-os em traços representativos da forma de agir no
passado do narrador, no tempo da ação e da narração. Essa transformação aponta sensações
que se repetem diversas vezes na obra e, mediante um paradoxo, ao mesmo tempo as
imagens de movimento fixam-se na mente do leitor, dando forma a uma imagem estática
exigida pelo próprio narrador-escritor, para tentar entendê-lo como ser existente, humano.
Antonio Candido ressalta que “o problema da verossimilhança no romance depende desta
possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica
a impressão da mais lídima verdade existencial”, e que “o romance se baseia [...] num certo
59
tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício” (CANDIDO, 1992, p. 55). E essa é a tese
dos autores efetivos sobre os seus personagens. Não é à toa que nos identificamos com os
casos de vida dos narradores, ou nos sensibilizamos com suas particularidades, bem
próximas às nossas.
Os autores efetivos – Machado de Assis, Luigi Pirandello e Camilo José Cela –, após o
sucesso e o incômodo que suas obras causaram, acrescentaram, cada qual ao seu romance,
uma advertência, uma introdução ou um apêndice crítico, com a finalidade de destacar o
julgamento, não de um ser humano, mas sobre o ser humano. Ou seja, se Pascual Duarte é
culpado ou inocente, se Mattia Pascal é um desafortunado, vítima das circunstâncias, se Brás
Cubas é um representante efetivo da velha sociedade brasileira frente à iminente
modernização de padrões políticos e sociais, todos permanecem com a ressalva de figurarem
como homens e, por tal motivo, precisarem ser avaliados como humanos, com limitações,
servindo de exemplos para se evitar que outras pessoas cometam erros semelhantes.
Machado de Assis deixa um breve prólogo sobre o seu romance e uma importante
frase, no fim do segundo parágrafo, sobre como ele vê Brás Cubas: “De Brás Cubas se pode
talvez dizer que viajou à roda da vida” (ASSIS, 1960, p. 107). Fora esse comentário, Machado
de Assis não entra no julgamento moral de seu personagem, provavelmente por preferir deixar
ao leitor uma escolha livre, fato que ganha mais força no estudo do processo de composição e
exclusão da edição primitiva para a edição definitiva,35
como no exemplo da epígrafe retirada.
No mais, Machado de Assis destaca o aspecto pessimista misturado aos traços do
humorismo, alegando originalidade para com seus predecessores. “Há na alma deste livro, por
mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir dos seus
modelos” (ASSIS, 1960, p. 107). O autor Brás Cubas é chamado de “autor particular” pelas
suas “rabugens de pessimismo” e pela autenticidade de dizer as coisas “conforme lhe pareceu
melhor e mais certo” (ASSIS, 1960, p. 107). Assim, teríamos um narrador mais independente
e mais humano.
Luigi Pirandello não fala especificamente do seu personagem, mas cria um meio de
justificá-lo. Em vez de defender ou incitar o leitor a questionar o narrador, na oportunidade da
publicação da segunda edição de FMP surge um estudo feito a partir de casos verídicos sobre
35
A primeira edição aparece em 1880, em folhetim, na Revista Brasileira. Essa edição não possuía prólogo
algum e, diferentemente das demais, foi escrita com uma epígrafe depois suprimida. A segunda edição,
datada de 1881, é a primeira em livro e foi impressa pela Typographia Nacional. Nela já consta a dedicatória.
A terceira edição foi feita e impressa por H. Garnier, Livreiro Editor, em 1896; a quarta, publicada em 1899
também por H. Garnier, foi a última em vida de Machado de Assis e teve o acréscimo do prólogo de
Machado de Assis. Em todas elas existem modificações, supressões ou acréscimos textuais. Ver nota 1 de
Assis (1960, p. 45-54).
60
situações absurdas.36
Discutindo casos retirados de notícias de jornais da época, o autor dava
ênfase a sua tese sobre o humorismo, mostrando como certas notícias poderiam suscitar no
leitor o riso, embora fossem tremendamente tristes para os envolvidos, por tratarem da morte.
Estaria aí a razão de se inserir na segunda edição do livro um apêndice em defesa do autor
Luigi Pirandello e dos seus personagens, entre eles Mattia Pascal, é claro.
Embora não haja um prólogo em defesa do personagem, uma pequena dedicatória
contribui para sabermos sobre como ler o livro e interpretar o protagonista. Em 1908, quatro
anos depois da publicação da primeira edição de FMP, publica-se o ensaio “O humorismo”.
Na folha de rosto do ensaio encontramos, logo abaixo do título, a dedicatória feita “à boa
alma de Mattia Pascal, bibliotecário”37
(PIRANDELLO, 2006, p. 775, tradução nossa). A
opinião desvelada do criador sobre a criatura implica todo um estudo voltado para se fazer
apologia a um tipo de humorismo. Nesse estudo, além da dedicatória, uma explicitação parece
dar mais sentido ao formato risonho da escritura do “falecido”, o qual se consola olhando para
os defeitos dos outros:
Que cara nos deram para representar o papel de vivente? Um nariz feio? Que pena
ter de carregar um feio nariz por toda a vida... Sorte que, com o correr do tempo, já
não mais nos damos conta disso. Os outros se dão conta disso, é verdade, quando
nós chegamos até a crer termos um belo nariz; e então não sabemos mais explicar-
nos por que os outros riem, nos mirando. São tão estúpidos! Consolemo-nos olhando
que orelhas tem aquele e que lábios aqueloutro: e quais nem ao menos se dão conta
disso e têm a coragem de rir de nós. (PIRANDELLO, 1999, p. 171).
Ambos os estudos, “Advertência sobre os escrúpulos da fantasia” e “O humorismo”,
servem para incentivar uma atitude de simpatia e respeito pelo fado de Mattia Pascal e pela
maneira de o personagem encarar a vida.
No prólogo de FPD, Cela faz algumas poucas referências a Pascual Duarte, mais
falando do romance do que do personagem:
Pascual Duarte, por ter passado muito tempo sem mudar de roupa, estava sujo e
quase irreconhecível. Muito limpo, o que se entende por muito limpo, jamais o foi,
isso é verdade, mas tão sujo como andava ultimamente tampouco era seu natural
(CELA, 1986, p. 1).
36
Na época, em 1921, após a encenação de Seis personagens à procura de um autor, Pirandello se vê em meio a
um mundo de críticas e polêmicas, por causa do uso de temas e enredos absurdos como um “falecido-vivo”
ou personagens que realmente estão atrás de alguém para publicar suas lembranças de uma ocasião funesta.
Após o alvoroço da primeira apresentação da peça, Pirandello publica no jornal romano L’Idea Nazionale, de
22 de junho de 1921, um mês e meio depois da estreia do espetáculo, o artigo “Advertências sobre os
escrúpulos da fantasia”. As informações sobre esse estudo são de Mário da Silva e constam na nota de rodapé
da página 281 do romance na versão brasileira de 1972, edição usada para citação neste trabalho. 37
“Alla buon‟anima di Mattia Pascal bibliotecário”. A edição brasileira usada aqui não contém a dedicatória.
Não sabemos se outras edições em português preservaram ou não o elemento paratextual.
61
Se limpeza coincidir com inocência, ou se sujeira, na devida medida metafórica,
significar culpa, pecado ou erros, então teríamos um criminoso sem méritos a serem
justificados. Mas o autor efetivo quase nada diz do que acha de seu personagem. Não
sabemos se Cela fala só da sujeira material de Pascual, tanto quanto ignoramos a razão de o
narrador ser apresentado como imundo. A postura, entre outras possibilidades, parece uma
indicação sobre a censura feita à forma de agir do “criminoso”, sugerindo uma limpeza para a
obra, disfarçando a verdadeira estatura do seu personagem central.
No fim do primeiro parágrafo, Cela se presta a lamentar o seu personagem e a destacá-
lo como um possível inocente, sem o dizer, afinal. “Não me agradaria que a lembrança de
Pascual Duarte – pobre Pascual Duarte, morto no garrote! – morresse como don Romualdo,
devido a seu medo à água” (CELA, 1986, p. 1). Além de provocar uma inquietação por meio
da imagem do narrador, Cela se dá ao trabalho de, pelo menos, amainar a figura de um
condenado à morte, para afastá-lo do ridículo e possibilitar que pensemos em um injustiçado.
A sentença de Cela reflete o fato de um homem que, mesmo com muitos defeitos e erros,
justamente por ser uma pessoa, alguém, no mínimo é digno de viver e de pagar suas culpas de
outras formas.
As hipóteses de julgamento se tornam mais relevantes, se pensarmos na forma
aviltante da morte do narrador, se comparada ao tipo de morte por condenação de uma pessoa
rica ou nobre, quando, nesse caso, o normal seria essa pessoa pelo seu destaque econômico
ser condenada ao fuzilamento ou à forca, maneiras rápidas e bem menos dolorosas de punição
extrema. A morte por garrote38
era reservada aos criminosos baixos, uma forma de prolongar
o sofrimento e, é claro, de humilhá-los ainda mais. Desde o início, Cela propicia (mas não
outorga) a hipótese da morte injusta, de um caso determinista em que a sociedade é a grande
vilã. Mesmo assim, com a hipótese social, Cela não fecha a porta para outras possibilidades,
permitindo a si nada mais declarar sobre sua criatura, a não ser a lamúria já dita em “pobre
Pascual Duarte”.
O autor efetivo volta a falar de Pascual Duarte no último parágrafo do prólogo. Nesse
parágrafo, Cela acentua os traços humanos de seu personagem e o seu destino moral na
literatura: “Concluindo: Pascual Duarte está limpo, isto é o que importa. Agora dispõe-se a
começar a morrer de novo, pouco a pouco” (CELA, 1986, p. 4). Estar limpo pode significar
ter uma imagem final digna. Na nossa sociedade, estar limpo também é estar no nível de ser
38
O garrote era um tipo de assento em que o preso era asfixiado, com muita dor e sofrimento. Assim, o
condenado com certeza morreria decomposto, com expressões de angústia e bem mais lentamente que nos
outros tipos mais “nobres” de execução.
62
visto, de não ser inferior. Começar a morrer de novo, pouco a pouco, resume a missão de nos
fazer pensar nas pessoas e naquilo em que não queremos e não podemos nos tornar.
A falta de limpeza do personagem coincide com o título do prólogo, que é “Pascual
Duarte, a limpo”. Teríamos aí o propósito de falar no narrador e declarar algo inédito, com o
mesmo sentido de “passar a história a limpo”. A surpresa procede no elemento novo da
interseção da história e de sua antítese (limpo-imundo) não estar apenas a falar
especificamente no personagem. O questionamento transfere-se para o outro lado. O
julgamento do narrador pelo leitor esconde outro julgamento, que é o do próprio leitor com
suas práticas moralistas e suas aptidões partidárias. A demonstração do que realmente
representa o narrador dentro dos padrões morais do leitor, se um simples caso de julgamento
moral do indivíduo ou se um caso de julgamento dos padrões humanos em geral, referencia o
conflito de ponto de vista. A falta de um direcionamento sobre o destino moral do narrador,
rumo à condenação ou à redenção, serve para predestinar a obra a uma variação de pontos de
vista. Não é apenas a história de Pascual Duarte que está sendo passada a limpo. São os
valores da obra. E esses valores refletem os valores do leitor. Haveria o problema do foco, o
objetivo de encontrar e dissecar o “eu” do narrador. Por suas marcas atuativas, torna-se
possível julgá-lo. Pode parecer estranha essa afirmação, depois de falar que o julgamento
representa a parcialidade do leitor, a particularidade das suas emoções e escolhas. Contudo, o
julgamento moral é uma construção necessária ao romance em que se destacam narradores-
escritores confessando suas vidas. E, ainda mais, seria apenas o narrador a estar no centro do
jogo? Ou encontraríamos um duplo, múltiplo julgamento? Individualista, coletivista e da
leitura mesmo?39
Até porque a ênfase na variação do foco resulta na certeza de que nenhum
juízo do sujeito do relato será isento de conflito de interesses e terá a plenitude da justiça.
A dificuldade de encontrar uma medida justa aparece ainda na conclusão do último
parágrafo do prólogo. O contraste da sujeira e a frase “isso que importa” mostram um padrão.
Quando falamos em um padrão, nos vêm à mente os traços, o contorno, a lógica da
visibilidade, o retrato. Acima de tudo, a uniformidade de uma maneira de ver o personagem.
Na fala de Brás Cubas, por exemplo, é possível perceber o estar ainda preso, depois de
morto, aos laços terrenos da miséria espiritual. Schwarz comenta a escrita de Brás e o seu
“descompromisso dos defuntos” (SCHWARZ, 2000, p. 60) para com os vivos. Em tese, o
39
Sobre Pascual Duarte, por exemplo, sugerimos a leitura de Zamora Vicente, o qual afirma que “lendo
calmamente e à distância a breve autobiografia de Pascual Duarte, damo-nos conta, acima de tudo, de que os
crimes não são o mais importante e, o que é pior, sentimo-nos envolvidos em uma densa cumplicidade
justificadora dos fatos” (VICENTE, 1962, p. 23, tradução nossa).
63
descompromisso transforma-se em uma liberdade máxima de expressão e outorga-lhe o
direito de desrespeitar o leitor em prol de uma suposta verdade. Essa verdade torna-se um
argumento insustentável, à deriva da adoção de um egocentrismo prático: “Apesar da
autoridade do avalista-narrador, que é nenhuma, esta perspectiva não leva longe”
(SCHWARZ, 2000, p. 60). Até porque uma das razões é defensiva. Tanto, que ela
oculta o principal, a saber, que o Brás Cubas „desafrontado da brevidade do século‟ é
tão mesquinho e perseguido por vaidades sociais quanto a mais lamentável de suas
personagens, o que está claro desde a primeira página, onde ele se resigna mal ao
número diminuto dos presentes a seu enterro. A comédia está justamente nas paixões
terrenas do vivíssimo defunto. (SCHWARZ, 2000, p. 60-61).
Se o narrador comenta com deboche seu enterro é, em parte, graças ao discurso
estapafúrdio do “bom e fiel amigo” e da ênfase pessoal em aproveitar até os requintes
climáticos para efeito de dramaticidade no funeral, ao qual apareceram somente onze pessoas.
Esse bom e fiel amigo recebera antes a vistosa quantia de vinte apólices do defunto.
A acanhada quantidade de participantes no enterro contesta o valor do morto, pois está
em contraste com o querer ser aplaudido e tratado com deferência por, no mínimo, uma
multidão, ideia propagada desde os primeiros capítulos. A atitude narrativa, como pensa
Schwarz (2000), afiança o apego ainda aos valores terrenos, mesmo após a morte e em
oposição ao tal desdém dos finados.
Em outro caso, podemos avaliar os valores assumidos pelo narrador, com a revelação
dos seus pensamentos diante de atitudes passadas e dos comentários rodeados pelo cinismo,
formando um padrão subjetivista altamente egoísta, e sem nenhum humanismo, para com
outras pessoas. O caso que gostaríamos de enfatizar refere-se aos dois encontros com
Eugênia. A “flor da moita” era coxa, pobre e deveria ser rejeitada por quem almejava a fama e
a glória na elite financeira da sociedade da época do protagonista. Na primeira vez em que se
encontram, ambos são jovens. Ela recebe de Brás seu primeiro beijo. Nesse encontro a
característica que o narrador mais repara é a arte de dissimular da moça, quando a mãe dela
entra subitamente e os dois enamorados agem como se nenhum carinho houvesse ocorrido e
eles apenas conversassem. “Que dissimulação graciosa! Que arte infinita e delicada! Que
tartufice profunda! E tudo isso tão natural, vivo, não estudado” (ASSIS, 1960, p. 169). O
narrador nos deixa a imagem da sua admiração pela capacidade da moça de disfarçar e ocultar
tão bem um fato tão espontâneo, sem malícia, porém inconveniente para duas pessoas sem
compromisso oficial em uma época bastante conservadora.
Depois, muitos anos à frente, ele, um burguês assumido, guiando seus pensamentos
pelo interesse, reencontra a pobre Eugênia. Ela está “tão coxa como [Brás] a deixara, e ainda
64
mais triste” (ASSIS, 1960, p. 302). O comentário assinala ainda “uma impressão profunda”
determinada pela imagem da mulher “coxa”, “triste”, e moradora de um cubículo em um
cortiço. Em parte, a impressão acontece porque Eugênia reconhece o autor do seu primeiro
beijo e ergue logo a cabeça. Brás evidencia que ela “fitou-[lhe] com muita dignidade”,
“cortejou-[o] e fechou-se no cubículo” (ASSIS, 1960, p. 302). Na visão do reencontro, as
informações seriam meros detalhes, se não estivessem postas no capítulo seguinte àquele em
que Brás Cubas narra sua “fase brilhante” (título do capítulo CLVII), de doador e beneficiário
de entidades e de pobres bastante carentes. A fase brilhante atestaria um Brás humanista e
digno, caridoso e devotado ao bem do próximo.
Ao fim dos dois capítulos, é Eugênia quem age dignamente, soberana sobre si e de tal
forma idêntica “a uma mulher de um capitalista” (ASSIS, 1960, p. 302), mesmo habitando
uma moradia socialmente desqualificada, sem dignidade para os padrões dos ricos. Além da
surpresa, o ocioso Brás só é capaz de pensar rapidamente em dar esmolas, na forma de um
dever para com sua antiga “namorada”. A surpresa dele está presa ainda ao beijo da juventude
e ao falso hábito de moralista em uma sociedade cristã-escravocrata. Brás sente piedade da
pobre mulher, mas não se compadece por muito tempo. A evidência seguinte completa a
informação do estado de espírito do surpreso senhor de bens a pensar em um relacionamento
sem muita importância ocorrido no passado. Brás fala na falta de informações do destino de
Eugênia, habilitando o leitor a ponderar sobre a inexistência de verdadeira compaixão do rico
para com a pobre mulher. A ausência de devido comentário mostra que ele não se arrepende
do que fez em sua juventude, pois não a procura, muito menos tenta resgatar sua velha
conhecida, deixando-a na obscuridade de sua tristeza e pobreza. Brás ainda está solteiro e ela,
provavelmente, da mesma forma. Mas a admiração de Brás Cubas não nasce em um coração
arrependido e humanista e, sim, no de um homem de posses, sem apego a compromissos.
Uma ilustração semelhante do caráter do narrador é proposta por Merquior (1990), em
seu estudo sobre o gênero e o estilo de Brás Cubas, exibindo o lado interesseiro, raiz do
fracasso e da melancolia do protagonista e mola propulsora da sua escrita. Nele prefigura o
egocentrismo manifesto pelo reflexo de classe, no instante em que é mostrada a sede de glória
permanente: “Brás Cubas é um fátuo, um prisioneiro dos desejos, que aspira egoisticamente
ao gozo, ao poder e à glória” (MERQUIOR, 1990, p. 335).
Se isso for real, então, das três funções recomendadas por Merquior (1996, p. 208)40
para a literatura – edificação moral, divertimento e problematização da vida –, a primeira seria
40
Merquior cita apenas as três funções, sem se ater a elas com profundidade, em seu artigo sobre Machado de
Assis e a prosa impressionista.
65
primordial, se respeitadas as conveniências dos livros modelares, como os romances ingleses
de Defoe ou Richardson, ou, no mesmo caminho ficcional, da obra Peter Schlemihl, de
Chamisso. Embora pensar sobre os escritos de um defunto possa suscitar o sentido de
edificação moral, parece não prevalecer em MPBC essa visão de boa exemplaridade. Brás
Cubas fala mais de si, quase a orgulhar-se sempre dos seus defeitos de rico e falso aristocrata
(dos quais o cinismo é o mais evidente), enquanto descreve outras pessoas desnudas de sua
honra, com suas falhas sendo recriminadas constantemente e sem piedade.
A segunda função seria visível em FMP, no momento em que o narrador chama seu
livro de “distração”, argumentando que “por sorte, o homem distrai-se facilmente”
(PIRANDELLO, 1972, p. 14). A distração é uma pseudomotivação para a escrita, porém o
motivo de divertimento não é real e o célebre estudo de Pirandello sobre o humorismo atesta a
favor da humanização do protagonista Mattia Pascal.
A terceira função licencia o narrador a compor, em um livro de memórias, a equação
da sua vida. Uma equação cuja resposta é uma sequência de negativas para Brás; tentativa de
existencialismo surreal para Mattia; condenação e esforço de redenção para Pascual.
Sobre Brás Cubas, vale ainda mencionar o desejo dele de sonhar com a glória de ter
um filho orador e de fazer o emplasto. Família e trabalho só ocupam algum lugar em sua
mente quando os frutos são o reconhecimento e a fama. O filho não vem e a produção do
remédio é interrompida. Se Brás quer ser um renomado cientista, um farmacêutico de
primeira, como é capaz de esquecer-se de cuidar da própria saúde? Ele parece ser nada
confiável como farmacêutico, mesmo sem saber se o remédio realmente chegou a ser
fabricado. Não fala dos métodos químicos usados para a composição do remédio, nem
transmite a fórmula41
por meio do livro das memórias. O egoísmo permanece após a morte.
As prováveis deficiências de caráter do falecido Mattia Pascal são analisadas, na
maioria das vezes, pela indissolubilidade do binômio casamento-(in)sucesso financeiro.
Considerado um pequeno burguês, o protagonista sofre vários reveses em uma sequência de
escolhas malfeitas.
A primeira delas é o cortejo da camponesa Oliva. Em seguida, para ajudar o seu amigo
Pomino, Mattia acaba se aproximando afetivamente de Romilda. Entre as duas mulheres,
estão os desejos de Batta Malagna de ser pai e senhor das terras, mas ele não pode ter filhos.
Mattia engravida ambas. A confusão de ser e não ser pai ou mãe, entre esses personagens,
nasce do fato de que todos precisam derrotar ou se vingar de pelo menos um dos demais.
41
Salvo engano, se a fórmula for o próprio livro.
66
Mattia humilha duas vezes Batta e este se aproveita dos dois casos para resolver o seu
problema de infertilidade. Batta vinga-se de Mattia duas vezes e o obriga a casar por ter de
assumir a mulher grávida (Romilda) na legalidade (da época) dos filhos no casamento. Em
um plano geral, todos perdem e muito pouco eles ganham. Não há propriamente vencedores e
vencidos. O destino vai sendo feito na adição das ações em conjunto. O casamento movido
pelo desejo econômico e a concretização do sonho de Batta Malagna de ter herdeiros
equivalem à obrigatoriedade do casamento do seu oponente, razão por que o trabalho é
imposto a Mattia.
Olhando o narrador pelo viés do trabalho, seu pensamento medíocre, com traços de
covardia, desenha o necessário do seu caráter, desde a tentativa de retorno ao lar, após a fuga
para uma mesa de cassino em Milão, ainda com o primeiro Mattia Pascal vivo, marido oficial
de Romilda e genro da detestável viúva Pescatore. O capítulo sete tem início com a palavra
“pensava”, a qual indica o conjunto de ideias que permeavam a mente do narrador durante
essa viagem, em breve, interrompida. A palavra introduz o tipo de confusão mental sofrida
pelo recente rico e afortunado e causada por uma torrente de ideias a se misturarem no tempo
de permanência de Mattia em um dos vagões do trem.
Com a posse do dinheiro ganho no jogo de apostas, o primeiro pensamento de Pascal
se volta para destacar um plano definido e a escolha de uma profissão: “Vou resgatar a Stìa e
retirar-me para lá, no campo; serei moleiro” (PIRANDELLO, 1972, p. 85). A escolha da
profissão sem notoriedade é justificada logo em seguida com a frase “todo ofício, no fundo,
tem seu consolo” (PIRANDELLO, 1972, p. 85).
A sequência imediata desse pensamento reverencia o começo do abalo “no fundo” da
instantânea convicção do pretenso sonho de ser fazendeiro. Ele interrompe esse impulso por
instantes, quando relembra o sítio, no levantamento de uma única conjuntura de decadência
deste e na avaliação das reais e possíveis condições existentes naqueles dias da fazenda. O
terceiro raciocínio – “Tenho certeza de que, por enquanto, não se mói um só saco, lá, no
moinho. Mas assim que eu voltar a tê-lo” (PIRANDELLO, 1972, p. 85) – poderia vir em
auxílio ao repentino espírito empreendedor, se o pensamento seguinte não se concluísse com o
negativismo preguiçoso de Mattia: “Senhor Mattia, a tranqueta do eixo! Senhor Mattia,
partiu-se o mancal do cubo! Senhor Mattia, os dentes da segunda roda!” (PIRANDELLO,
1972, p. 85). O passado ocioso o faz relembrar outro agravante: “Como quando mamãe ainda
vivia e Malagna administrava” (PIRANDELLO, 1972, p. 85). Na imprescindibilidade do
serviço de terceiros, a conclusão dos pensamentos anteriores leva-o a temer o trabalho. Os
resultados incertos e o relacionamento com virtuais empregados fraudulentos causam a
67
metamorfose imediata do espírito empreendedor e decidido em um acanhado e duvidoso
sonho de propriedade: “E, enquanto eu estiver tomando conta do moinho, o feitor me roubará
os frutos dos campos; e, se, ao contrário, me puser a cuidar destes, o moleiro me roubará a
moenda” (PIRANDELLO, 1972, p. 85).
Os relances de memória não param e resgatam a lembrança da existência da sogra, da
mulher e do desprezo de ambas pelo personagem. O narrador planeja vingar-se,
surpreendendo a indiferença feminina (decorrente da inexistência constante de recursos por
parte do “homem da casa”, na falta de um trabalho digno e gratificante) com o saque brusco
do bolso do paletó das notas bem contadas, na exata e vultosa quantia de “oitenta e uma mil,
setecentas e vinte e cinco liras e quarenta cêntimos” (PIRANDELLO, 1972, p. 87). A
perfeição da cena imaginada é rompida pelo reconhecimento do outro lado da moeda: com a
mostra da riqueza repentina, os antigos credores não deixariam por menos as cobranças,
implicando o pagamento de velhos débitos e a transferência do bem financeiro recente para
outras mãos. Mattia ganharia da mulher e da sogra e perderia para os banqueiros e demais
credores:
Escondê-las [as notas de dinheiro], não podia. E, aliás, de que me serviriam,
escondidas? [...]. Gozá-las é que aqueles cães esfaimados [os credores] certamente
não me deixariam. [...] No final das contas, ganhara em Monte Carlo para eles.
(PIRANDELLO, 1972, p. 87-88).
A última ideia antes da descoberta da notícia de sua “morte” nas páginas de um jornal
é uma lamentação esbravejante contra si, fazendo referência à interrupção de sua sorte nas
mesas de jogo de um cassino: “Que raiva! Por aqueles dois dias de perda! Senão, estaria
novamente rico... rico!” (PIRANDELLO, 1972, p. 88).
Em evento rememorativo semelhante, em vez de um trem, é na estadia em uma prisão
que acontece todo esse processo, só que para outro narrador. O capítulo doze de FPD é
construído por algumas frases, resgatadas pela memória, dos diálogos do narrador com sua
mãe, com Lola e com Rosário, depois da morte do filho de Pascual Duarte. As quatro
primeiras frases são ditas pela primeira esposa. A primeira delas (“Estou até aqui do teu
corpo!”) indica o descontentamento da mulher com o casamento. O motivo baseia-se na
indicação de um Pascual sempre a reclamar (“De tua carne de homem que não agüenta os
tempos”) e pressupõe a atitude do protagonista diante do trabalho e do convívio com os
outros: “Nem aguenta o sol do estio!”, “Nem os frios de dezembro!” (CELA, 1986, p. 85).
As frases do diálogo com a esposa já são suficientes para atribuir-lhe a posição de
68
fracassado. Elas terão outra função – indiciativa –, pois antecedem o embate com a mãe,
introduzindo o pensamento da conveniência de eliminar aqueles que depreciam sua figura no
dia a dia. A rememoração de um diálogo com a mãe descreve a disputa em termos de ofensa.
À medida que as páginas se sucedem em nossa leitura do romance, vamos percebendo que
Pascual vive o dilema de não saber se expressar bem, situação que o domina até o desfecho do
livro. O conflito entre mãe e filho é uma prova da falta de comunicação, movida pelas intrigas
e pela escassez do domínio da lógica e das palavras, na aceitação do convívio pacífico com
seus familiares, amigos e demais citadinos, recaindo em uma evidente predisposição para o
mal. As frases entre eles mostram o envolvimento em uma discussão recheada de afrontas.
Para não ficar em desvantagem na rede de impropérios, Pascual ameaça a mãe usando um
enigma. Fala da astúcia dos lobos, do gavião e da víbora, de como todos esses animais
escolhem e esperam por suas vítimas. Não satisfeito, concretiza seu enigma: “Pois pior que
todos juntos é o homem!”. A mãe, sem entender ainda, mas já desconfiada, pergunta: “Por que
me dizes isto?”, recebendo a evasiva e perversa resposta final do filho: “Por nada!”, quando o
pensamento dele já demonstra o desejo impetuoso de matar a mãe e a esposa. “Pensei dizer-
lhe: – Porque hei de matá-las!”. O silêncio se estabelece pela covardia ante a oportunidade de
falar: “Mas a voz se me travou na língua” (CELA, 1986, p. 87).
Em seguida, Rosário, a quem chama de “a desgraçada, a desonrada, aquela que
conspurcava o olhar das mulheres decentes” (CELA, 1986, p. 87), é a única que procura fazer
o narrador enxergar o bem e não se entregar ao mal nos seus intentos. A tentativa de elevá-lo
acontece durante uma conversa entre Rosário e Pascual, ambos muito nervosos, ela talvez
prevendo um triste desfecho para a vida do irmão. “Rosário estava chorosa. – Por que dizes
que és um homem maldito? – Não sou eu quem o diz” (CELA, 1986, p. 87). O término
imediato do diálogo serve para ele validar sua tese da predestinação. Se Pascual é visto como
maldito, a razão está no fato de o destino lhe fazer trilhar um caminho ruim.
2.1. DUAS QUESTÕES DE ESTILO: O MODELO E A FISIONOMIA DE CLASSE
Ao levarmos em conta que Brás Cubas, Mattia Pascal e Pascual Duarte escreveram
suas narrativas (sabe-se que isso só é real se pensarmos na organização e no papel ficcional
dos supostos autores), cria-se a ilusão da veracidade. Essa elaboração se dá por meio de
mecanismos literários próprios, desde o peritexto até a forma de se referir ao leitor,
chamando-o para participar do texto naquilo que podemos chamar de jogo.
69
Chamamos apenas de jogo, mas na verdade trata-se de uma rede de jogos. Temos (pelo
menos) a presença do jogo narrativo, de leitura, estilístico. Poderíamos ainda falar de jogo de
manipulação, de convencimento; seria possível, inclusive, separar e diferenciar o jogo
narrativo do jogo escritural. Importa, em todo caso, pensar que em um extremo está o
narrador-escritor; no outro, o leitor (o ficcional, do livro, e o real); e, no meio de ambos, o
autor efetivo, o compositor de todo esse jogo, a pessoa responsável por pensar na estratégia de
atingir o leitor real. Por um lado há, com bastante evidência, a necessidade de participar desse
jogo, jogando-o pelas regras impostas pelo suposto autor, após o medido cálculo a efetivar a
aceitação da sua opinião, segundo critérios outorgados para o cumprimento do desejo. Por
outro lado, aspiramos bem mais profundamente à compreensão das questões do tempo do
autor, mergulhando nossas limitações em variáveis (às vezes contraditórias), como elementos
para decisões, quando não estamos mais livres da tentação de expressarmos nosso ponto de
vista, talvez no desespero de querer entender a mente do autor efetivo.
A macropercepção do jogo, a compreensão textual das várias metas impostas no seu
organismo (zombar do leitor, convencê-lo, tornar o texto agradável, enxergar a malícia do
narrador, provocar uma leitura minuciosa, questionar as mazelas históricas, fugir da realidade,
entendê-la, contextualizar dificuldades de pretensas filosofias, comparar vidas e outras
questões as mais existencialistas possíveis) remete-nos a uma variação não de definição, mas
de foco. Falamos anteriormente de estilo como sinônimo de escritura e modo de exprimir-se
literariamente, além de aludir ao método. Essas formas de falar do estilo enfatizam bem o
autor de um texto.
Outra variação da palavra estilo pode ser encontrada em Schwarz (2000, p. 47),
quando ele analisa o romance MPBC, pois este fala em “padrão narrativo”. Com relação ao
jogo, pensando em um padrão, com características que funcionam como constantes, é
preponderante destacá-lo em sua materialidade. Ou seja, o jogo está contextualizado,
envolvendo paradoxos de um povo e também ideais de classes sociais, sejam elas altruístas ou
mesmo apenas impregnadas de viciosos pensamentos egoístas, autopreservadores, na
defensiva da sobrevivência e do melhor proveito obtido pela escala social. Em confissões do
fim, os instintos humanos que se consagraram pelas manifestações organizacionais
econômicas, desde o surgimento das nações, são notórios. O mais rico defende suas riquezas,
o burguês condena os ricos, ao mesmo tempo em que procura usufruir das vantagens dos mais
privilegiados; os pobres, miseráveis, ou simples trabalhadores campestres com pouco ensino,
lutam tanto pela sobrevivência como pela equivalência de privilégios e, na medida do
possível, querem subtrair para si direitos alheios.
70
É inegável essa presença de um discurso de classe, tanto que um dos mais profundos
estudos sobre o romance de Machado de Assis, a consagrada obra de Schwarz utilizada neste
trabalho, focaliza o problema da volubilidade do narrador, sem deixar de reafirmar que “tudo
que ficou dito [da análise teórica] decorre da identificação da fisionomia de classe do
narrador” (SCHWARZ, 2000, p. 172, grifo do autor). Por considerar imprescindível,
arriscamo-nos a afirmar ser impossível mesmo a análise dos problemas inseridos no romance
sem “perceber [nele] o caráter social de suas infrações [do narrador]” (SCHWARZ, 2000, p.
174).
Mediante a centralização do caráter social nos diversos temas constituintes do
romance – nas múltiplas realidades do jogo, não apenas para interferir no posicionamento do
leitor, pela adulação ou pela provocação, dependendo de como são interpretadas as atitudes do
narrador –, o crítico desenvolve sua tese seguindo a trama construída pela afirmação da
identidade financeira através de posicionamentos intelectuais: “a sua dicção impregnada de
racionalismo clássico francês, naturalmente serve à vaidade social” (SCHWARZ, 2000, p.
176). O desenho de intelectualidade exagerada causa impressionante efeito de
deslumbramento, por conter tantas informações. No entanto, esse quase nocaute histórico-
semântico, esse contínuo jorrar de dados (sendo outros tantos exigidos para a atualização da
mensagem do narrador) escancara a fraqueza do narrador – “O leitor [deve] descobrir que não
está diante de um exemplo de auto-exame e requintada franqueza” (SCHWARZ, 2000, p.
190). O leitor deve também pensar que um dos objetivos do narrador é, ao defender-se,
defender as imposições de sua classe. Esta é sempre a mais favorecida socialmente, nutrindo-
se das mazelas do poder estatal da época e imiscuindo-se dos impropérios do restante da
população, que deveria sustentar a duras penas os luxos da elite financeira brasileira. Logo
vemos, pelo discurso, que quem não está no centro da avaliação narrativa é o narrador. A
inserção da rede de denúncias da sociedade ocupa o lugar cabível a ele, quando se leva em
conta que um dos papéis tradicionais do autor de um livro de memórias é o
autorreconhecimento.42
Ainda falando em jogo, uma de suas variações – o jogo de convencimento pelo qual
passa o leitor – desenvolve-se ora com a verdade, ora com a falsidade, ora com meios-termos.
Esses três elementos fazem parte de uma estratégia intitulada por Wayne Booth de retórica da
42
Existem os termos histoire de vie, recit de vie e “escrituras de si”. Encontramos, pelo menos nos dois primeiros
termos, o intuito de reconhecimento e transformação, dado o poder terapêutico que a escrita autobiográfica
pode possuir.
71
ficção.43
Essa espécie de meio de convencimento faz uso de apelos retóricos, com vistas à
formação (das regras) do jogo ficcional-narrativo. Booth argumenta, no prefácio do seu livro,
a favor da existência de uma “arte da comunicação com os leitores”, explicitando essa arte
como retórica. Logo em seguida, ao nos dizer que existem “recursos retóricos que se
encontram ao alcance do escritor [...] na sua tentativa, consciente ou inconsciente, de impor ao
leitor um mundo fictício” (BOOTH, 1980, p. 12), ele introduz o pensamento do domínio que
cada autor, suspeito ou não, tem do seu texto e do poder do narrador sobre os fatos narrados.
Tal afirmação seria simplista e tautológica, se desconsiderássemos que o autor (efetivo ou
suposto, dentro da ficção) é (ou pode ser) um ser suspeito, justamente por esse domínio. E,
ainda, o domínio dos fatos e o poder sobre o texto não seriam meros itens do jogo, se não
pensássemos nos narradores com as suas várias intromissões planejadas, deixando o texto
cheio de “impurezas da casa da ficção” (BOOTH, 1980, p. 27). Estruturalmente, essas
impurezas servem para dificultar a leitura direta, pois não repassam todas as informações,
tudo o que aconteceu em sua plenitude.
A falta de informações causada pelo domínio autoral, derivando em o leitor não saber
tudo, permite que as evidências em narrações ficcionais, muitas vezes, sejam da existência de
enigmas indecifráveis, ou com ampla matéria de defesas para mais de um ponto de vista,
mostrando a complexidade dos valores e dos muitos tipos de campos de visão. Para
exemplificar, pensemos, por exemplo, na dedicatória do livro de Pascual Duarte. “Em
memória do insigne patrício don Jesús Gonzalez de la Riva, conde de Torremejía, o qual, ao ir
matá-lo o autor deste escrito, chamou-o de Pascualillo e sorria” (CELA, 1986, p. 13).
A intriga nessa parte do texto aparece na curta frase “chamou-o de Pascualillo e
sorria”. O narrador não apresenta uma razão plausível que o fizesse ser visto como vítima
social direta de don Jesús, legitimando o assassinato. O nobre ter sorrido antes de morrer
levantou e levanta teses interessantes, das quais podemos apontar pelo menos duas. A
primeira seria a surpresa do nobre por ser morto por Pascual, um homem medíocre e
rebaixado na hierarquia social da vila. A segunda é defendida pelo espanhol Allonso Zamora
Vicente e pela brasileira Sissa Jacoby. Na opinião deles, o protagonista encontrou o “nobre já
moribundo, por possíveis torturas [políticas] anteriores”, motivadas na ocasião da eclosão da
Guerra Civil Espanhola, e matou-o, “crendo cumprir uma caridade”, dando o “tiro de
misericórdia” (VICENTE, 1962, p. 44, tradução nossa). Haveria, nesse caso, o entendimento
43
Esse é o título do livro. No prefácio, Booth explica, com muita objetividade e rapidez, o que pretende, ao
destacar o uso dos apelos retóricos. Estes, em grande parte, serão estudados em relação aos narradores de
confissões do fim como comentários e invocações ao leitor.
72
da inocência, apoiado na “tese do ato de misericórdia”, pela qual “a morte de don Jesús
revela-se, assim, um ato de humanidade” (JACOBY, 1994, p. 81).
Fora o lado do não dito, no qual se insere o narrador, a dedicatória permitiria pensar
nas hipóteses de absolvição e de condenação. Diante do paradoxo, o leitor tende a ler as
memórias, expondo o protagonista a essas duas possibilidades-chaves.44
No início das narrativas, o indivíduo alega uma porção de coisas. O efeito das marcas
atuativas no estudo do caráter do narrador evidencia a importância de se pensar no esquema
do restante do livro, considerando se houve ou não um planejamento na sua composição e nos
seus objetivos. Em narrações do tipo confissões do fim, o narrador é reconhecido também
pelo estilo de escrita. Basta agora pôr em relevo as informações do padrão adotado pelos três
narradores.
No caso da estratégia do livro, em FPD, após o término do relato, o autor efetivo do
romance acrescenta uma segunda intervenção explicativa. A intervenção é intitulada “Outra
nota do transcritor” e relata a conclusão desse personagem:
A carta de Pascual Duarte a don Joaquín Barrera deve ter sido escrita na época dos
capítulos XII e XIII, os dois únicos em que empregou tinta roxa, idêntica à da carta
ao citado senhor, o que vem demonstrar que Pascual não suspendeu definitivamente,
como dizia, seu relato, senão que preparou a carta com toda premeditação para que
surtisse efeito no devido momento, precaução que mostra nosso personagem nem
tão esquecido ou tonto como pareceria à primeira vista. (CELA, 1986, p. 140).
Com esse acréscimo, a construção do jogo paratextual nos faz pensar em que medida o
acaso e o planejamento narrativo interferem no texto e na prerrogativa do narrador-escritor de
ter segundas intenções. O fato implica a revelação do raciocínio do transcritor, que confronta
e rejeita a afirmação de Pascual de escrever simplesmente ao correr da pena. Caso seja
verdadeira a tese do transcritor, então a noção de veracidade apenas no contar pelo narrar
perde o poder de revestir o texto com o predomínio da objetividade. A não ser que haja o
entendimento de se escrever com objetivos – e esses são particulares – de convencimento.
Teríamos, assim, uma objetividade subjetiva ou uma subjetividade com objetivo(s). Nas
confissões do fim existem indícios do uso de um padrão selecionado, bem medido, e
atravessado pela reflexão e pelo cálculo.
Em uso comum, a necessidade comunicativa de uma confissão escrita requer a escolha
de um padrão legível para a compreensão do leitor (é claro, se essa for a vontade do narrador).
44
Em MPBC e em FMP, os protagonistas não estão presos, à espera do cumprimento de uma sentença de morte
e, por isso, não se enquadrariam no paradoxo da condenação-absolvição por um crime. Em contrapartida,
eles estariam presos a esse paradoxo por participaram do jogo de dizer ou não a verdade, comprovar ou não o
que dizem, enganar ou não seus leitores.
73
Brás Cubas deixa isso claro, quando admite usar o método difuso, as digressões e os modelos
de Sterne e Xavier de Maistre. A estratégia é um ato legítimo para alcançar o leitor. Além
disso, vimos, no primeiro capítulo deste trabalho, que falar tudo o que se pensa é algo
impossível para o narrador, mesmo estando morto, esquecido ou isolado em uma prisão.
Novamente é importante lembrar que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode
falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer
coisa” (FOUCAULT, 2007, p. 9). Naquele momento em que foi citado o enunciado de
Foucault, falávamos em preservação da imagem. Mas a exclusão discursiva pela interdição do
que o narrador pensa e não pode dizer indica outro ponto, no qual se tem por meta pensar a
estratégia da equação narrativa de cada livro. Nessa equação, a justificação permite pensar em
culpa, logo, em condenação, o que nos permite falar em prisão e, por analogia, em cárcere da
identidade e do discurso.
A ideia da prisão soa na consonância dos dizeres de Arcângelo Leone de Castris,
crítico do romance de Luigi Pirandello. Referindo-se ao protagonista, ele atesta que “a vida é
uma prisão absurda de formas provisórias e vãs, e ainda opressivas e alienantes” (CASTRIS,
1992, p. 63, tradução nossa) e que a “liberdade é arbítrio” (CASTRIS, 1992, p. 64, tradução
nossa). Guido Baldi, outro crítico, destaca o fato de o protagonista de FMP “responde[r] à
fisionomia fixada de muitos dos personagens que povoam as novelas pirandellianas,
aprisionados no cárcere opressivo e sufocante da família e de uma condição socioeconômica”
(BALDI, 2006, p. 31, tradução nossa) e ainda fala na luta contra a “mecanicidade da
existência”45
(BALDI, 2006, p. 31, tradução nossa). Privado de liberdade na vida, preso à
família e às condições de cada classe social, a única liberdade (aparente) é a falsa premissa de
tudo poder falar na confissão.
Porém, o constante pensamento da prisão simbólica e o reconhecimento da exigência
da condenação do crime, do erro, requerem que pensemos em julgar alguém somente se
tivermos as provas a favor ou contra essa pessoa. E como ter provas se quem tem o direito de
narrar e de interpretar os fatos é justamente o acusado? Ficamos, assim, à mercê da escrita e
dos deslizes textuais do narrador, deixando vestígios, aqui e acolá, da sua vontade, do seu
instinto e dos seus sentimentos disfarçados. Diante desse impasse, na recorrência direta ao
texto do narrador é que podemos visualizar o discurso prisioneiro.
45
O trecho completo das citações de Baldi é: “Il protagonista del Fu Mattia Pascal risponde alla fisionomia
fissata da molti dei personaggi che popolano le novelle pirandelliane, imprigionati nel cárcere oppressivo e
soffocante della famiglia e di uma condizione socioeconômica misera e frustrante, anelanti ad‟una evasione e
ad una liberazione che sperimentano in varie forme, la fuga in senso físico e spaziale, il rifugio
nell‟immaginazione o nel sogno notturno, il ricorso a gesti gratuiti ed assurdi che rompano la mecanicità
dell‟esistenza.”
74
Tratar de nomear um discurso por prisioneiro, justamente por esse discurso surgir de
uma prisão, de um cárcere, significa contrastar a figura metafórica do cárcere com a noção de
planejamento e de descobrir o que se esconde por trás da vontade de escrita do seu emissor.
Quando o ideal do livro surge e se impõe? Quando ele é imprescindível e o narrador não
consegue fazer outra coisa senão pensar no inesquecível. Temos, então, o tema desta pesquisa,
expresso no subtítulo do nosso trabalho: “a necessidade de existir transforma-se na
necessidade de escrever”. Com tempo de sobra, sem nada mais a fazer, a única alternativa
seria escrever, pôr no papel as angústias dos narradores e sistematizar racionalmente o
fracasso.
O cárcere também representa o lugar onde o narrador teve de enfrentar os seus
fantasmas e rever-se diante do espelho, com e sem a máscara social. Esse ambiente limitador
resulta na conjunção de fatos que, de certa forma, atuam no desenvolvimento da maneira de
configurar-se o agir do personagem. Haveria na escrita um parâmetro para o qual os
narradores olham a cada instante, no momento de materialização das narrativas.
Na de Brás Cubas predomina a fala atravessada pela morte, um discurso proveniente
do túmulo. É a fala do indesejado, já que o morto é mandado para o cemitério para ser, de
certa forma, excluído.
Na narrativa de Mattia Pascal, acima do indesejável, está o inconveniente. Este se
impõe quando ocorre o retorno de um suposto falecido, vivo, naquele momento, apenas na
memória dos concidadãos de Miragno, tendo, as mesmas pessoas, a impressão de que o
personagem já havia morrido. O aparecimento do morto sem sepultura torna risível a sua
condição, compactuando a maneira humorística de narrar com a problemática existência do
narrador. Merece ressalva o imbroglio vivido pelo narrador diante dos limites de
inconveniência. É inconveniente para ele, totalmente consciente de sua realidade, e para as
pessoas próximas (mulher, amigo, irmão, tia e até o inimigo Batta Malagna), mas não é
inconveniente para o leitor aproveitar o que aconteceu com outra pessoa para dar boas risadas.
Mattia é sabedor também disso e prefere utilizar a seu favor a simpatia risível dos leitores,
causada pela conformidade humorística da narração.
No primeiro capítulo da narração, Mattia declara sua “tão escassa estima pelos livros”
(PIRANDELLO, 1972, p. 10). No segundo, ele vem nos dizer da existência de “volumes
curiosos e de agradabilíssima leitura” (PIRANDELLO, 1972, p. 12). Sem saber o transcurso
temporal de um capítulo para o outro, a mudança de opinião revela ser a marca registrada de
Mattia, como demonstrado pelo seu “também não achava muito” (PIRANDELLO, 1972, p.
9). O texto ainda parece seguir a prática significativa da expressão “e, se...”, com o intuito do
75
narrador de não dizer tudo o que sabe, mas de fazer o leitor descobrir os vitupérios por um
caminho cínico mesmo. O parágrafo inteiro em que se encontra a expressão é o seguinte:
“Pois, então. Já se dera mais de um caso de alguém ter filhos mesmo dez anos depois, mesmo
quinze anos depois do casamento. Quinze? Mas... e ele? Ele já era velho; e, se...”
(PIRANDELLO, 1972, p. 34). Seguindo a sugestão, o narrador pôs ao alcance do leitor
indícios para este perceber, na interrupção da fala, o adultério de Oliva e a vingança inusitada
de Mattia sobre o trapaceiro administrador das antigas propriedades da família Pascal.
O narrador, também no primeiro capítulo, adverte o leitor de que conheceu seu pai e
sua mãe e não foi pelo parentesco que se tornou um fracassado. No início do capítulo três, ele
se desmente em relação ao fato de ter conhecido o pai. “Fui um pouco precipitado, no início,
em dizer que conheci meu pai. Não o conheci. Tinha quatro anos e meio, quando ele morreu”
(PIRANDELLO, 1972, p. 17). E não param por aí os desmentidos. Ainda no terceiro capítulo,
o narrador se supera, desmentindo-se no menor espaço de linhas. Primeiro, ele se refere ao
personagem Gerolamo como grande amigo, para, duas linhas abaixo, falar o contrário: “Desde
menino, vinha com o pai à nossa casa e era o meu desespero e o de meu irmão”
(PIRANDELLO, 1972, p. 20). Os aparentes equívocos de Mattia Pascal abrem pressuposto
para a ironia de um grande farsante, capaz de fazer rir o leitor e o conquistar. O riso é o estado
de consumação da simpatia entre leitor e narrador. Mesmo enganado, o leitor entra no jogo da
engenhosidade textual e caminha por entre as páginas, escutando aquelas informações que o
narrador “reputar necessárias” (PIRANDELLO, 1972, p. 14).
Falamos do indesejável e do inconveniente para Brás Cubas e Mattia Pascal,
respectivamente. Para Pascual Duarte, há os vestígios do medo, da desonra, da falta de
humanidade, sobretudo da condenação. Ele está sempre se lembrando de sua pena que virá em
breve, a morte, e interrompe em diversos pontos a narração para relembrar que seu destino
próximo é o fim. Sua fala de possível conformidade com os fatos volta-se para o mundo-além.
Nas cartas adicionais do pároco e do guarda civil, ganha destaque a repetição, em ambas, da
fala do condenado, alguns instantes antes de sua execução: “Faça-se a vontade do Senhor”
(CELA, 1986, p. 143, 145). Mesmo assim, o narrador morre inconformado, dizendo que “não
queria morrer e [...] o que faziam com ele não era justo” (CELA, 1986, p. 145).
O destaque dos termos “indesejável” e “inconveniente”, quando pensamos no papel
dos narradores para a sociedade, ressalta a eclosão de um problema grave, que é a dificuldade
do ser humano de conviver com seres que, por alguma razão adversa, estão em posição de
desajuste social. Nesse panorama, temos a exigência da separação do convívio, a segregação,
a imprescindibilidade do rompimento das ligações sociais, até tocar no contentamento alheio
76
de ver a parte em desequilíbrio à distância, localizando-a na prisão, em estado constante de
isolamento.
E mais, ligando os termos “indesejável” e “inconveniente” a “inconformado”,
podemos caracterizar a separação social do condenado e encontrar para ele o destino do lugar-
prisão. É nesse ambiente e nessa situação que se passa a racionalizar os sentimentos de
frustração e impotência. Para os narradores de confissões do fim, a prisão significa separação
da sociedade, meio de manter-se no afastamento requerido pelos outros, de não poder viver na
zona de normalidade de uma comunidade.
Se em ordem temos três presos – Brás Cubas, Mattia Pascal e Pascual Duarte –, eles
vivem, na mesma proporção, em três lugares-prisões: a sepultura, a igreja-biblioteca e o
cárcere. Porém, apenas o último narrador é quem realmente escreve enquanto está em uma
prisão institucional – a de Badajoz. Por Mattia e Brás, a imagem do cárcere nos é repassada
em sentido figurado. A prisão de Mattia é simbólica. Ele vive (trabalha) em uma igreja
desativada. Não pode voltar para o lar (até porque ele não tem um). Deve viver confinado até
a chegada de sua terceira e definitiva morte. É um morto à espera da morte. E a prisão de
Mattia na falsa igreja-biblioteca acaba por ser, na verdade, a subtração que permite ao
personagem a escapatória da prisão do casamento. Brás, preso no túmulo, também escapa da
prisão (da necessidade) do casamento. Mas, de todas as outras prisões – identidade, cárcere,
sepultura –, de nenhuma delas os narradores podem fugir. Da mesma forma eles não podem
fugir do passado. Mattia Pascal e Pascual Duarte até tentam, e fracassam. E por que não dizer
o mesmo de Brás Cubas, quando ele tenta disfarçar sua imagem nas memórias escritas, nas
últimas linhas do romance. Os três, ao final, aprisionar-se-ão em uma prisão necessária, que é
o livro.
O lugar-prisão serve, então, para o narrador-escritor refletir, rever e pesar os fatos não
esquecidos, adquirir e desenvolver um modo de escrever e realizar uma dupla discussão,
literária e moral, além de estar em contato com outros livros e casos. A biblioteca de Mattia
Pascal e as conversas com o padre Elígio Pellegrinotto exemplificam bem isso. Mas a
interlocução por si só não é suficiente. O isolamento tende a ser o elemento maior para se
chegar à interseção dos princípios morais, individuais e coletivos do livro.
Outros aspectos inerentes ao método de escrita são a assimilação dos modelos
literários, a intertextualidade e o uso de uma tradição, reparando-se na transformação em
estilo individual a favor de cada narrador-escritor. Da mesma forma que há o sobrenome
representando uma filiação, um laço de parentesco, notamos em cada narrador a filiação a um
tipo de escrita. Podemos nomear, grosso modo, de obra difusa a de Brás Cubas, de
77
humorística a de Mattia Pascal, e de tremendista (com traços picarescos, quixotescos, próprios
da novela de cavalaria) as memórias de Pascual Duarte.
Seguindo essa proposição de filiação, temos evidências de que cada narrador compõe
suas memórias segundo paradigmas, em geral, literários. Essa hipótese é interessante na
medida em que sabemos que Brás é rico, culto e tem a seu dispor toda uma biblioteca que lhe
pertence. Como o narrador é um homem de posses, arrogante, quer demonstrar até o direito
sobre o modo de escrever que empregou. Mattia não tem uma biblioteca, mas está “enterrado”
em uma. Tem a seu dispor um interlocutor. Afirma ler alguns livros. Questiona os métodos,
mas não deixa de se aproveitar deles. Pascual Duarte não tem biblioteca, não está em uma
delas, mas, ao dizer que está preso, leva-nos, leitores, a acreditar que o mais coerente é pensar
que ele tenha lido alguns livros indicados e disponíveis na prisão, com a ajuda do pároco. O
narrador mesmo afirma escrever o livro de memórias “sem que tenha de deter-[se] a construí-
lo como um romance” (CELA, 1986, p. 37), em uma indicação prévia de que sabia (ou
reconhecia) o que era um, ou mesmo que já tivesse lido ou escutado o termo literário algumas
vezes.
Brás Cubas é o caso mais manifesto do uso de paradigmas literários, por mencionar,
desde o início, nomes de escritores.46
Brás cita Stendhal e se diz seguidor dos modelos de
Sterne e Xavier de Maistre. É interessante pensarmos que, antes mesmo de explicar o método
e o estilo, Brás Cubas já havia se filiado a uma tradição encabeçada por Sterne, com seu
personagem Tristram Shandy, de Vida e opiniões de Tristram Shandy. Daí, Rouanet (2007, p.
30-33) definir essa forma como shandiana, por enxergar nela uma tradição à qual Brás Cubas
se filia, acrescentando aos nomes de Sterne e Xavier de Maistre os de Diderot e Almeida
Garrett, este citado por Machado de Assis no prefácio da quarta edição.47
Dos três autores apontados por Brás no seu prólogo, apenas os dois últimos o narrador
faz questão de incluir no seu organismo textual, em forma de tradição literária assumida. O
primeiro (Stendhal) é também reconhecido, consagrado. Sendo um autor de qualidade e com
autoridade, haveria o repasse ao leitor da impressão de um livro dialogar em alto nível com
outro (De l’amour) ou com outras obras e autores (Tartufo, de Molière; a Bíblia; a Divina
comédia, de Dante Alighieri; Dom Quixote, de Cervantes; Suetônio; Pascal; Buffon, entre
outros).
46
Passos (1996) estuda essas relações intertextuais de citações e alusões e define assim uma chamada “poética
do legado”. O termo é o nome mesmo do seu livro e da sua tese de doutoramento. 47
Rego (1989) identifica Brás Cubas dentro de uma tradição luciânica, ao ver nas memórias póstumas a
descendência moderna da sátira menipeia, da qual o principal escritor foi Luciano de Samósasta. Se unirmos
a sátira menipeia com a forma shandiana, se pensarmos em uma poética de filiação, teremos bem visível o
ato notório de Brás Cubas escritor.
78
Brás Cubas tem um modelo de escrita culto e exagerado, como atributo de homem
instruído, superior. Ele demonstra referências de filiação de sua obra a uma tradição com a
potencialidade de lhe dar autoridade sobre o leitor, diferenciando o narrador-escritor das
pessoas comuns. E esse ato deliberado de outorga de autoridade desenvolve-se por todo o
texto, nas constantes citações e referências a outros autores e suas obras.
Brás descreve o tipo de estilo adotado em suas memórias, explicando logo o que viria
a ser a rotulação de póstumas. Para ele, além de serem obra de finado, as memórias são
definidas pela “forma livre”, “difusa” e escrita com “a pena da galhofa e a tinta da
melancolia” (ASSIS, 1960, p. 109). Outra característica forte é a presença das “rabugens de
pessimismo”, como ressalta também Machado de Assis no prólogo da terceira edição do
romance. O autor efetivo vai além da sua criatura e denomina essas rabugens de pessimismo
de “sentimento amargo e áspero” (ASSIS, 1960, p. 107). Nos outros dois romances, as
rabugens de pessimismo e a forma difusa e livre podem ser vistas, porém em outro grau e com
outra intensidade. A tinta da melancolia pode ser contemplada, mas a pena da galhofa
raramente poderia entrar, por exemplo, no estilo inculto de Pascual Duarte.
O método, em MPBC, tendo no centro as rabugens de pessimismo, professa a pose de
filosofia quando sua definição tende a se voltar para o individualismo. Em vez do próximo,
está o pessoal. No lugar de definir um humanismo prático, está em voga a outorga do
humanitismo. E desde criança, a padronização pela exploração e o seu entendimento de
benefícios pelo livre proveito adquire um formato: “Outrossim, afeiçoei-me à contemplação
da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-
la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares” (ASSIS, 1960,
p. 129). É essa, então, a forma delineada do seu modo de julgar os fatos, se dignos ou não, se
oportunos ou desaprováveis, sempre “ao sabor das circunstâncias e lugares”.
Mattia Pascal escreve em uma biblioteca, convivendo com um padre leitor assíduo,
com o nome de Elígio Pellegrinotto. Ambos, Mattia e padre Elígio, têm ao seu dispor textos
antigos de literatura italiana, sendo em grande parte escritos religiosos e de libertinagem. Os
dois discutem, nos capítulos dois e três, a forma literária adequada para as memórias. Padre
Elígio cita Boccaccio e Bandello (PIRANDELLO, 1972, p. 27), aproximando-os de Mattia. A
mistura dos textos de temas religiosos e profanos apresenta a célula central para o humorismo
do livro, não sendo este o desrespeito aberto, mas a reflexão sobre a fragilidade moral das
atitudes alheias.
Segundo a definição de Pirandello, “o humorismo consiste no sentimento do contrário,
provocado pela atividade especial da reflexão” (PIRANDELLO, 1999, p. 177). O “sentimento
79
do contrário” seria a percepção do problema em que alguém se encontra, sem ter como deixar
de estar envolvido, e o lamento por não poder sair da situação. Talvez a expressão popular “rir
para não chorar” exprima bem à moda brasileira esse sentimento do contrário.
Outro ponto de filiação também agracia o método de outro escritor italiano. Ao citar
um conceito de Quintiliano, Mattia lança a base da sua maneira de encarar literatura e o adota
na sua forma de escrever: “Lê-se ou não lê-se em Quintiliano, como o senhor me ensinou, que
a História devia ser feita para narrar e não para demonstrar?” (PIRANDELLO, 1972, p. 13). O
método escritural de Mattia Pascal resulta em assumir como lema literário a expressão
“maldito seja Copérnico”48
(PIRANDELLO, 1972, p. 12), como forma de se aproximar ou de
ter a relatividade como predicado de um realismo atípico.49
Entre os estilos de filiação de Brás Cubas e Mattia Pascal existe a diferença de que o
segundo não cita constantemente autores, nem faz indicações diretas do uso da tradição
literária. Há, no entanto, as alusões feitas no ensaio “O humorismo”, provavelmente escrito
com base no romance. Nele se revelam influências de dois grandes livros modelos do
humorismo universal – o espanhol Dom Quixote, de Cervantes, e o italiano Os noivos, de
Manzoni –, além de ser citado o nome de Sterne, entre tantos outros escritores. As figuras de
dom Quixote e de dom Abbondio representam a filiação ao tipo de humorismo que Pirandello
reivindica para o seu livro. A escolha de Pirandello aponta para a aceitação dos personagens,
nos seus papéis, da atmosfera capaz de causar o riso. O ato reflexivo sobre o tipo de vida e
máscara social que os personagens usam favorece o ver-se em um plano definitivo
indesejável. Além desses fatores, da filiação humorística (Boccaccio, Cervantes, Manzoni,
Sterne) e de Mattia ser contra a pormenorização desnecessária, avesso ao pragmatismo dos
“ismos”, ele se aproxima da forma shandiana e difusa de Brás Cubas, quando fala em um
novo estilo fundamentado na providencial distração humana, ao escrever “ao correr da pena”
(PIRANDELLO, 1972, p. 27), e quando formula as regras que servem como parâmetros na
visão geral do livro. O narrador, assim como Brás Cubas, explica o livro ao leitor e ainda diz
como deve ser lido o seu romance. O humor orienta toda a escrita e torna-se quase uma
fórmula contra a melancolia. A narração se assemelha às memórias de Brás Cubas, e nela a
48
Copérnico foi o autor da teoria do heliocentrismo (o Sol no centro do sistema solar, e não a Terra). Essa teoria
tornou-se a base para a Astronomia moderna. Ao usar o nome de Copérnico, Pirandello (1972, p. 12-13;
1999, p. 174), argumenta que – com a superação do conceito bem definido de a Terra ser o centro do sistema
solar – a descoberta humana de sua real significação, sem a visão heroica da mitologia grega e da história de
dominação romana, sem as máscaras sociais, pode causar o mal-estar e o sentimento de impotência. 49
Watt (1990, p. 13-33), na introdução de sua tese de ascensão do romance na Inglaterra, destaca o valor obtido
pelo termo “realismo”, com o tempo. Ele apresenta a palavra com o significado de particularidade e de
valorização da diferença. Aí estaria, desde o século XVII, aberto o caminho que consagraria o relativismo dos
romances de Pirandello.
80
ironia se volta para o lado triste da vida, no sentimento do contrário, em vez do sarcástico
sentimento depreciativo do rico brasileiro do século XIX.
O inculto Pascual Duarte escreve pensando em enviar seus escritos a um sujeito rico e
influente. Enviar um texto a um homem culto – é muito provável que o seja, uma vez que
quem tem condições financeiras pode defender o status de grandeza, assumindo a postura de
autoridade no agir, falar e escrever, de quem teve que estudar para dar ordens – deve ser
compreendido considerando-se os valores históricos. Não sabemos até que ponto o
destinatário dos escritos exerce o poder de influência ou até onde vai o poder de decisão a ele
outorgado em plena sociedade interiorana. Mesmo assim, a cláusula de publicação ou
destruição dos papéis escritos – “cláusula do testamento hológrafo outorgado por don Joaquín
Barrera López, o qual, por morrer sem descendência,50
deixou seus bens às monjas do serviço
doméstico” (CELA, 1986, p. 12, grifo nosso) – serve de testemunho de que ele aparenta ser
não simplesmente um homem culto, mas um senhor de posses, possuidor de muitas riquezas.
Em contrapartida, causaria estranhamento o domínio das regras gramaticais por parte
do narrador, quando o texto de Pascual, por ser escrito por alguém que abandonou a escola
com a idade de “apenas doze anos” (CELA, 1986, p. 27), reclamaria como remetente justo um
homem culto. A incongruência da situação (ter de escrever e não ter o domínio sobre a escrita)
é perpassada pela possível incoerência do envio (mandar logo os escritos para um amigo de
don Jesús!), tudo isso tendo em mente que o narrador se depara com a data do seu fim, já
próximo. Conviver com a mesma marca temporal – o dia de sua pena de morte – o faz
premeditar os termos de sua mensagem, além de pensar em concretizar os seus objetivos de
libertação com reconhecimento público de causa.
Do ponto de vista estilístico-gramatical, o suposto autor encontra a solução para a
escassez dos seus dotes literários nos contatos de prisão, o lugar em que ele escreve. Como
abandonou cedo os estudos, o narrador buscará modelos praticáveis e convencionais. Quando
Pascual Duarte escreve preso em Badajoz, as pessoas com quem mais tem contato e que
possuem domínio ou maior conhecimento da escrita são os padres capelães da prisão. O livro
50
A comparação desse trecho do título da cláusula (“o qual, por morrer sem descendência”) com o trecho da
dedicatória de Pascual Duarte, feita a don Jesús (“o qual, ao ir matá-lo o autor deste escrito”) serviria de
amostra de que Pascual utilizou uma espécie de fórmula convencional para a introdução de uma
personalidade em um texto. Pela mediocridade estilística, pela absurda incapacidade de ser elegante,
dialógico, Pascual não absorve e adapta conceitos retóricos de outros autores. Ele simplesmente copia o
máximo que pode, até onde sua inteligência permite, o que faz do seu texto algo calculado, porém sem
efetivo poder de convencimento, tanto pelas contradições moralísticas como pelos idiotismos (“modismos
deslocados que, seguindo uma sintaxe caprichosa, ou por desconhecida e remota elipse, veio a apresentar
incongruências de construções inexplicáveis”, nota de rodapé em Solís, 1969, p. 255, tradução nossa)
lexicais, até o iminente cruzamento de vulgaridade pessoal e requinte importado.
81
cita o padre Santiago Lurueña. Ao final da obra, a carta desse personagem demonstra
considerar o assassino confesso “um manso cordeiro, encurralado e assustado pela vida”
(CELA, 1986, p. 143). Pelo discurso religioso, a maneira de se relacionar e o tratamento
assistencial dispensado a um condenado sugerem o uso da Bíblia, a pregação dos temas de
salvação e condenação, a anunciação repetitiva dos dogmas da igreja. Se o protagonista
afirma ser um camponês inculto, a melhor maneira de pensarmos como Pascual conseguiu
escrever e criar uma lógica – com elementos comparativos e uso de certa forma consciente de
recursos estilísticos, como diversas figuras de linguagem – talvez seja afirmar que ele sofreu a
influência intelectual dos domínios culturais dos padres capelães. Ou, quem sabe, dos poucos
livros lícitos na prisão, entre eles provavelmente o livro sagrado do Cristianismo.
Para representar o estilo de classe e o estilo individual contemplando a passionalidade
de Pascual, podemos enxergar no seu registro o nervosismo, a confusão, a tensão dos
sentimentos e o excesso de comparações.51
Pascual Duarte usa muito esse recurso,
principalmente no aspecto figurativo com animais. O conectivo “como” é um elemento
estético constante, de forma exagerada até. Na maioria das vezes, as comparações são fracas e
simplistas, embora tentem comprovar um narrador competente no seu narrar. Seus
paralelismos procuram causar efeitos metafóricos, tomando elementos do cotidiano do
narrador como “uma estrada lisa e longa como um dia sem pão” (CELA, 1986, p. 15), ou “a
câmara municipal que era grande e quadrada como uma caixa de tabaco, com uma torre no
meio, e na torre um relógio, branco como uma hóstia” (CELA, 1986, p. 16). Outra forma
comum de comparar é impactar o leitor pela bestialização das pessoas envolvidas nas
comparações: “minha mãe apanhou Mário, colocou-o no regaço e ficou a lamber-lhe a ferida
a noite toda, como uma cadela parida lambendo seus filhotes” (CELA, 1986, p. 42), “eu a
mordi [Lola] até sangrar, até ficar rendida e dócil como uma égua nova” (CELA, 1986, p. 48).
Às vezes, Pascual consegue emitir frases com certo padrão filosófico: “a mulher que não
chora é como a fonte que não mana, que para nada serve, ou como a ave do céu que não
canta” (CELA, 1986, p. 43-44). Em outros momentos, ao contrário, o efeito é retirado de sua
subjetividade, deixando transparecer uma sensação intensa sua, mas nada lírico, filosófico ou
impregnado de valor estético: “Me confessei, e fiquei tão mole e manso como se me tivessem
dado um banho de água quente” (CELA, 1986, p. 59). Seus exemplos, talvez retirados de
diversos livros por não demonstrar um padrão (a não ser o de um homem inculto), parecem
imitar, por exemplo, passagens bíblicas, como em “ – Vê os lobos que vagam pelo monte, o
51
Sobre o estilo de Pascual Duarte, a melhor sugestão de leitura é Solís, Sara Suárez. El léxico de Camilo José
Cela. Madri: Alfaguarra, 1969.
82
gavião que voa até as nuvens, a víbora que espera entre as pedras?” (CELA, 1986, p. 87), em
confronto e aproximação com o capítulo 30 do livro de “Provérbios”. O texto bíblico procura
causar o efeito da dignidade e habilidade dos animais. Pascual inversamente apresenta o lado
sombrio, negativo, perigoso deles. Solís (1969, p. 304) destaca a cobra, a ratazana e o
cachorro como os principais animais usados em comparações. Poder-se-ia, para
complementar, até acrescentar que o lado normativo dos ditos de Pascual aproveita-se de
modelos éticos presentes nas novelas de cavalaria, onde a defesa da honra e da justiça são os
ideais maiores.52
O espelhamento nesses modelos causa efeito contrário, pois trata, em seu
corpus, de questões éticas. Visto por cima, o narrador é um ótimo exemplo de personagem
antiético.
Embora sejam aproveitados os modelos da tradição espanhola, podemos aplicar em
parte a FPD a advertência de Machado de Assis sobre MPBC. O livro “está longe de vir dos
seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho” (ASSIS,
1960, p. 107). O narrador falseia seu relato com a impressão de seguimento de orientação
ética na escrita, embora deforme a composição e o conteúdo de seus antecessores em proveito
próprio.
Na introdução de uma das edições de FPD, Sotelo levanta a hipótese de “a confissão
de Pascual, sabedor de que o seu destino está fatalmente traçado,” causar a necessidade de o
narrador “interpretar sua vida com seu próprio critério autônomo de condenado à morte”
(SOTELO, 2006, p. 66, tradução nossa).53
É esse critério autônomo o problema-chave: como
falar para os outros, como, alguém aparentemente desprovido de tais domínios, transformar
um assunto que envolve a ética e a moral de outras pessoas? Se o livro é uma prisão
requerida, então o julgamento moral torna-se uma premissa e o menosprezar a opinião do
leitor, como fazem Mattia Pascal e Brás Cubas, é uma falsa assertiva. Portanto, para condenar
ou não cada narrador, ao seguir o caminho de desvios dos padrões sociais, e ao avaliar as
variáveis das possibilidades textuais, deparamo-nos com a inclusão de outra circunstância, na
possibilidade de uma autoimagem distorcida.
52
Em um conto intitulado “Memórias del cabrito Smith, chivo inssurrecto”, Camilo José Cela cria um
personagem com os mesmos instintos e quase os mesmos sentimentos de Pascual. A diferença é que o
narrador-escritor agora é um cabrito. Este luta pela liberdade e defende a honra do clã dos cabritos perante os
homens. Pascual, em geral, declara ter matado para defender a sua honra. Ver Cela (1981, p. 141-150). 53
“la confessión de Pascual sabedor de que su destino está fatalmente cerrado, y necesita interpretar su vida con
su próprio criterio autonomo de condenado a muerte”.
83
2.2. O PROBLEMA DA (DISTORÇÃO DA) IMAGEM
No capítulo introdutório desta dissertação, falamos a respeito de os narradores serem
pouco dignos de confiança e do problema da constituição do jogo no qual o leitor é envolvido
em ponderações de diversas hipóteses sobre a sua vitimização. Fazendo a experiência de
conceituar os narradores-escritores como narradores pouco dignos de confiança, sugerimos
avaliá-los na expectativa da virtualidade da expressão “mundo fictício”, da sua similar
“mundo propriamente seu”, ou “mundo criado pelo autor (suposto)”. Estaríamos assim diante
da possibilidade de pensar a narração e a criação, dentro dela, de um mundo ilusório, justo no
ponto de imaginarmos como os narradores-escritores se enxergam no passado. O pensamento
dos narradores de se incluírem em um universo com a obrigatoriedade de favorecimento
descritivo, no qual eles situam-se em quadros delimitados de sua personalidade, revela que os
relatos sobre o seu “eu” são de interpretações das imagens distanciadas, presentes na atitude
de rememorar de um indivíduo incapaz (talvez) de dizer tudo, de confessar toda a verdade de
sua existência problemática.
A ilustração pessoal evidencia os moldes da opinião dos narradores e serve para
constatar a ilusão criada por eles na distorção de suas imagens, ainda mais de acordo com o
propósito de justificação, sem excluir a necessidade de angariar a simpatia do leitor. E isso
ocorre quando pensamos no posicionamento estratégico do livro a retratar o fim deles. Com o
deslumbramento do sujeito pelo seu ego, o narrador só trata de lamentar a vida que era
possível em algum momento; porém, no instante da escrita, já é irrealizável.
Brás Cubas é o primeiro a provar do poder da distorção da imagem, logo nos primeiros
capítulos, quando fala no remédio cujo efeito mudaria o mundo. Mesmo estando na zona da
afirmação autoral, o leitor não chega a presenciar a invenção de tal remédio nem sente os
efeitos milagrosos da substância anti-hipocondríaca, porque ela não existe senão nos dizeres
do narrador. Não há vestígios do processo empregado, dos testes ou dos resultados.
Antes um pouco, encontramos o ponto de partida para a distorção da imagem do
protagonista, no prólogo das suas memórias. Esse ponto está na citação dos nomes já referidos
de Stendhal, Sterne e Xavier de Maistre. Ainda sobre cotejar traços autorais de personalidades
famosas, no primeiro capítulo, o narrador iguala-se a Moisés,54
cujo último livro,
“Deuteronômio”, traz o relato de sua morte, assim como acontece no de Brás Cubas. Para o
54
Para um cristão, e mesmo para um judeu, a Bíblia é um livro sagrado e Moisés é aquele que as tradições
judaicas e cristãs afirmam ser o escolhido divino para entregar os Dez Mandamentos e oficializar a lei para o
chamado povo de Deus. De acordo com esse pensamento, a comparação seria considerada ofensiva, por
desrespeitar a consagração do livro e do personagem religioso.
84
leitor, possivelmente cristão, parecerá afrontosa alguma ligação com esse tipo de escrita, por
envolver o texto religioso de maior importância no programa presunçoso de requerimento de
glórias terrenas, na disposição de sublimar sem nenhum decoro algo incapaz de pertencer a
uma tradição milenar beatificada.
A presença arrogante apenas de figuras de alto destaque em todas as comparações, as
relações alusivas ou alguma espécie de contorno intertextual advêm da falta de humildade do
morto, variando entre igualdade e consideração de superioridade. A afirmação de que o
remédio é um divino emplasto auxilia a bancar o espírito de grandeza, de soberba e de ser, em
primeiro lugar, no mínimo igual, e, depois, provavelmente melhor.
Ao destrinçar os pormenores, a lógica dos fatos narrados está na ordem de Brás
diferenciar o seu prólogo do de De l’amour, de Stendhal, no nível da quantidade de leitores,
destacando sua primazia por ter escrito como morto, algo que o escritor francês não fez. Se o
personagem de Sterne, Tristram Shandy, narrou o próprio nascimento, Brás irá demonstrar o
próprio delírio, além mesmo do psicologismo frio e analítico experimentado durante o
desenrolar do seu enterro, ambos, fatos inéditos, segundo ele. E mais, nenhum livro do
“Pentateuco”, conjunto de livros bíblicos escritos por Moisés, começa pelo fim. O de Brás
sim, na sua audácia de desligar-se das conveniências humanas, superando os autores
supracitados.
Os argumentos de Brás relativos à sua grandeza são expostos na medida em que
manifestam uma possível e bastante provável falsificação do próprio desenho descritivo-
biográfico. Consequência do ego corrompido nos dilemas de uma sociedade fortemente
marcada pelas mesclas de inevitáveis antagonismos, tornando a figura de Brás Cubas bem
melhor do que era ou havia sido. É nesse ponto que o leitor terá de dizer a si mesmo se está
sendo enganado ou mesmo se considera que o narrador cria um “eu” personagem como efígie
imediata de si. “Narrar não é, para Brás Cubas, reproduzir fielmente a vida, mas pôr em ação
regras que concretizam o relato, de modo a dimensionar uma ilusão de vida” (SARAIVA,
2009, p. 42). Caso seja aceita, essa lógica ecoa até nós, trazendo consigo indícios de
ficcionalização do “eu” do defunto-autor, expressa em eventos consecutivos ou simultâneos
de elevação pessoal e rebaixamento de seus leitores.
Podemos tomar, por exemplo, um caso de má vontade do suposto autor e torná-la um
dos índices de excentricidade planejada. A perspectiva narrativa, em outro episódio, projeta a
falta de confiabilidade nos fatos narrados e na seriedade do modo de nos dizer no que
devemos acreditar, resultando ainda mais na nossa insegurança semântica, motivo próprio
para causar a revolta contra esse narrador arrogante. O capítulo CLVII faz parte da engenharia
85
do jogo, contrapondo dizer e não dizer bem aquilo que o narrador propaga ser sua fase
brilhante.55
Brás Cubas demonstra patente falta de clareza narrativa, contrariando o objetivo
comum de uma confissão,56
o de dizer tudo, de contar sua trajetória até a morte, sem omitir
pelo menos os detalhes importantes.
E vede agora a minha modéstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***, exerci ali
cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida. Não obstante, calo-me, não digo
nada, não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as
recompensas que recebi, nada, não digo absolutamente nada. (ASSIS, 1960, p. 301).
O parágrafo inteiro desenvolve-se sob o pretexto da dita modéstia do narrador. Não
temos o complemento das informações necessárias. Não sabemos mais da atividade social do
rico. Tampouco sabemos se o que é dito é verdade, mesmo havendo grande probabilidade de
sê-lo, até porque a atividade social seria, no mínimo, uma forma positiva de divulgação do
nome da pessoa. O que intriga o leitor é o que ele deveria saber e não sabe por causa da
teimosia do narrador em não contar as informações que queremos para efeito de julgamento
do indivíduo. A especulação em torno das razões pelas quais o narrador interrompe a narração
sobre seus feitos humanísticos não nos deixa outro caminho senão focalizar nossas dúvidas
sobre a intenção, velada ou não, de passar-nos para trás e meter-nos em ardis, sem que o
tenhamos ofendido. De novo, ele constrói a imagem de um “eu” mais aperfeiçoado do que
certamente fora em vida.
Mattia Pascal fala do seu “eu” personagem e o redefine em um “eu” fictício. O crítico
de literatura italiana Guido Baldi relata o problema do protagonista em romper a fixidez da
imagem. Para ele, existe nos personagens pirandellianos, “anelantes por uma evasão e uma
liberação”, a tendência de seguir o caminho ficcional do “refúgio na imaginação ou no sonho
noturno” (BALDI, 2006, p. 31, tradução nossa). As reviravoltas do romance destacam duas
mortes e, do outro lado, por razão simples, duas vidas. As mortes antecedem fugas e surgem
da necessidade de Mattia Pascal evadir-se do sofrimento. Ele cria um personagem próprio na
trajetória de sua primeira fuga. É Adriano Meis, cujo nome é a mistura do nome do imperador
romano com o sobrenome do filósofo, cientista e político Camillo de Meis.57
Ambos o
narrador retirou de um debate entre dois italianos fervorosos a discutirem em um trem e os
projetou ao acaso em uma personalidade sem raízes, mas que atende plenamente ao seu
55
“Fase brilhante” é o título do capítulo. 56
Em teoria, a confissão é o ato de falar e confirmar o que está escondido, detalhando uma vida com os fatos,
vindo à tona o que é necessário saber. 57
As informações constam no capítulo 8 (PIRANDELLO, 1972, p. 102-103). Angello Camillo de Meis viveu
entre os anos de 1817 e 1891. Conheceu e conviveu com grande parte da intelectualidade italiana de sua
época, entre os quais o crítico de literatura Francesco de Sanctis e o filósofo e médico Pietro Siciliani.
86
projeto de suplantação do passado desfavorável aos seus empreendimentos. O indivíduo
ficcional, ou a nova identidade assumida, mostrar-se-á de fato insustentável na superfície do
sentimento insuportável de inatividade cívica. Se considerado em seus limites, o personagem
Adriano Meis deixa Mattia Pascal em uma escala de impossibilidades: “Se salva uma
prostituta de uma agressão pelo caminho não pode assumir o mérito do gesto heróico; se ele
se enamora de uma mulher, está impossibilitado de estreitar qualquer ligação com ela”
(BALDI, 2006, p. 34, tradução nossa).58
Não pode sequer ter amigos, porque não pode dizer a
verdade. O resultado é a morte do personagem Adriano Meis.
Outra circunstância acentua o problema da ficcionalização do “eu”. Retornar vivo a
sua cidade natal lhe é vedado. Existe a sepultura com seu nome e alguém foi enterrado lá,
representando Mattia Pascal. Por estar enterrado, sua esposa casa-se novamente, saindo do
estado de aparente viuvez. Mattia percebe que ressuscitar tornou-o inconveniente para os
vivos, e mal-ressurreto, é preferível continuar morto. “Minha mulher é mulher de Pomino”
(PIRANDELLO, 1972, p. 279). Diante de tal estado e sem estar disposto a enfrentar as
correntes contrárias, uma via de escape interrompe o seu mal-estar para amenizá-lo. O
surgimento dessa via aguça a imaginação do personagem e passa pela apropriação de uma
técnica interessante para a sua sobrevivência em paz com os demais personagens.
A consequência – o enterro com lápide e tudo – torna-se muito atraente para o
protagonista falso morto, sem o devido prejuízo de contrariar o aproveitamento proposto no
primeiro parágrafo da sua narração. E tudo à custa de encarar a proposição coletiva, na
impressão da frase mortuária na lápide. Sua inscrição inspira uma série de ponderações, todas
em sequência: “Vítima de adversos fados, Mattia Pascal, bibliotecário, alma generosa,
coração aberto. Aqui voluntariamente repousa. A piedade dos concidadãos pôs esta lápide”
(PIRANDELLO, 1972, p. 279). De fracassado, passa a vítima do destino. Sua morte
teoricamente foi sentida pela piedade da comunidade. Miragno perdeu uma alma generosa. A
pequena comunidade também perdeu um coração aberto, um homem beneficiador dos outros,
talvez e principalmente dos pobres. Embora Mattia não fosse afeito ao trabalho ou sequer apto
a administrar os bens da família, a inscrição ameniza a figura negativa que tinham dele. A
opinião expressa naquelas frases deixa-o, pelo menos, em estado de beneficiário pela história
recente do seu malfadado destino.
Sobre ser alma generosa, coração aberto, lembremos que Mattia deixa provas de que
engravidou Oliva, a esposa do seu inimigo Batta Malagna, impotente sexual, e, em vez de
58
“Se salva una prostituta da un‟aggressione per strada non può assumere il merito del gesto eroico; se si
innamora di una donna si vede impossibilitato a stringere qualunque legame con lei”.
87
ajudar, ele conquista Romilda, mulher que o seu amigo Pomino ama. A conclusão do leitor
pode ser (e acreditamos ser a mais provável) de que o narrador sabe que tudo não passa de
conveniências, não indo além do tal aproveitamento das circunstâncias. Dessa lição ele
também vai tentar tirar o máximo proveito e não se escusará mais da falsa condição de
falecido.
A solução para o problema inquietante envolvendo o narrador toma o rumo da
construção de outra personalidade. Se Mattia Pascal e Adriano Meis estão mortos, existe o
vestígio de uma terceira identificação. A demonstração da terceira vida do narrador vem na
última frase do romance: “Eu sou o falecido Mattia Pascal” (PIRANDELLO, 1972, p. 279).
Ele não é mais simplesmente Mattia Pascal, aquele que se chamava assim no início do livro.
Agora ele é o falecido.59
O terceiro narrador também ficcionaliza sua personalidade. É importante saber que
Camilo José Cela planejou o personagem de forma a seguir parâmetros, referenciados por
outros estudos, de personagens literários a habitar a riqueza do século de ouro espanhol, do
barroco, das novelas de cavalaria, de Lazarilho de Tormes. Isso tem sentido para nós, como
pretendemos comparar de forma rápida, quando temos a evidência da luta pela honra, o que
permite aproximar Pascual Duarte principalmente do personagem homônimo do livro Dom
Quixote, de Cervantes. Wasserman acredita que
Pascual Duarte não fez mais que seguir uma tradição bem delimitada nas artes
espanholas desde vários séculos, tanto na linguagem e nas ações como nos
personagens desenvolvidos pelo autor [...]. O pessimismo extremo, os atos “feios” e
o primeiro parágrafo [...] recordam vivamente ao Quevedo do Buscón ou do Sonho.
(Wasserman, 1990, p. 40, tradução nossa)
A autora ainda acrescenta que “ter como protagonista um homem humilde não é nada
novo, e a ideia da ação e reflexão no mesmo personagem já se encontra em Don Quixote ou
em San Manuel Bueno” (WASSERMAN, 1990, p. 40, tradução nossa). Ela compara
principalmente o estilo da carta de Pascual Duarte ao da escrita por don Alonso Ramplón,
personagem do livro espanhol Historia del Buscón, de Francisco de Quevedo
(WASSERMAN, 1990, p. 24-26), enquanto Charlebois (1998, p. 11) fala de Pascual seguir os
passos do personagem homônimo da obra Lazarilho de Tormes.
Essa tradição de personagens espanhóis toma por base o envolvimento deles nos
59
A imagem narrativa está cercada pela estranheza. Baldi (2006) faz o estudo do romance de Pirandello através
da distração aludida por Mattia. “Por sorte, o homem distrai-se facilmente. [...] Pois bem, graças a essa
providencial distração, bem como a estranheza do meu caso” (PIRANDELLO, 1972, p. 14, grifo nosso).
Assim as duas cordas circulantes dessa confissão são a estranheza e a distração.
88
valores do mundo católico, variando entre a esperteza e a mentira em um ponto, até a honra e
o cultivo dos motivos nobres, pelo bem do próximo, em outro. Essa corrente acaba por ser
adaptada até assumir, já no século XX, o caráter do que se entendeu por tremendismo.
A introdução do termo, de acordo com Cela, é de autoria incerta, porém o poeta
Zubiaurre e o crítico Vázquez-Zamora disputam a paternidade do vocábulo (CELA, 1972, p.
19). A terminologia representa o realismo literário espanhol do pós-guerra. Através do seu
campo semântico, a palavra proporciona a visão da agressividade de cenas e da linguagem.
Na leitura de obras que se inserem nessa escola realista, somos surpreendidos pela brutalidade
construída por narrações que estão sempre a falar de sangue e de violência, além de se
expressarem com termos baixos, xingamentos, expressões irônicas ou não, com conotação
sexual. É comum a crítica espanhola alegar que o tremendismo tenha seu princípio com a
publicação de FPD, embora Cela defenda que essa corrente “não tem pai” e “em literatura
espanhola [o tremendismo] é tão velho como ela mesma” (CELA, 1972, p. 19, tradução
nossa). Cela conceitua o termo partindo do princípio de que “a vida é tremenda” (CELA,
1972, p. 20, tradução nossa). Para ele
uma obra tremendista [...] há de retratar o mundo com uma cruel e descarnada
sinceridade; há de contar sempre toda a verdade; jamais poderá ser desleal ao seu
tempo e a sua geografia; há de ser clara [...], caridosa [...], terna [...], honesta sem
tabus nem jogos de palavras (CELA, 1972, p. 21, tradução nossa).
Pascual Duarte exerce uma relação controversa, dentro da tradição de personagens
espanhóis, por estar apoiado não só na questão do caráter, mas por envolver propriamente as
características do tremendismo em um problema de julgamento do caráter e da escrita. Ele
pode ser visto em ambas as pontas (homem honrado, cavaleiro ou vagabundo esperto, pícaro),
na ação motivada da luta pela justiça de forma correta ou na vivência usando a malandragem
e a mentira. Seu texto está repleto de alusões ao primeiro tipo, porém suas ações nos servem
de inclinações para imaginá-lo já no segundo. É esse o problema aparente da distorção da
imagem do narrador visto por ele mesmo, anunciando-nos um Pascual diferente daquele que
percebemos no momento da leitura.
A comparação de Pascual aos personagens das novelas de cavalaria indica a nobreza
existente apenas enquanto ato de pronúncia, na fala, segundo o narrador tenta nos fazer
acreditar no que diz. Ao colocá-lo perante Lazarilho de Tormes e outros personagens
picarescos, Pascual não é só o embusteiro, o mentiroso. Sua imagem final é a de um covarde,
89
além de egoísta, incapaz de agir em prol dos outros, não conseguindo valorizar outras pessoas
e se preocupar com elas, ultrapassando o seu ego. E, por fim, ao dizer que é possível
compará-lo a dom Quixote, estamos falando de proximidade em razão do espírito passional de
ambos, de os dois tentarem defender a honra acima de tudo, de serem agressivos quando não
deveriam ser, embora a agressividade de dom Quixote seja burlesca. A diferença imediata
entre os dois está na alegação da nobreza do desvairado dom Quixote e no egoísmo de
Pascual, capaz de ultrapassar os limites sociais e morais do seu tempo para viver e ver-se
superior aos outros. Em ambos os casos, as figuras do falso nobre dom Quixote e do falso
nobre de espírito Pascual Duarte são ridículas pelo absurdo inerente na forma de agir dos dois.
Envoltos pelos disparates do seu tempo, os parâmetros da moralidade católica da
sociedade espanhola aliam-se logo à razão pronunciada de ser o livro de memórias uma
confissão escrita, com o objetivo expresso de purgar os pecados. A deliberação condicional,
exigida na pronúncia racional do sentido de confissão nos termos católicos e literários, deixa-
nos entrever na leitura do romance que a imagem a ser defendida é a de um homem em busca
da espiritualidade futura, uma tese, portanto, de arrependimento de cunho religioso,
acreditando no resgate da alma. Ainda, e em seguida, temos o conhecimento de que, como
Pascual intenta escrever para um homem culto (o don espanhol), passa pela obrigação de
adotar um padrão o mais legível possível para ser aceito. Inicialmente, Pascual precisa ser o
que não é: um escritor, alguém que tenha o domínio sobre a escrita.
Pela suposta imitação do formato proverbial da Bíblia, os moldes da escrita nos fazem
pensar que Pascual quer que acreditemos estar escrevendo para confessar-se e purgar seus
erros, purificando sua alma nos dias finais da vida, ultrapassando o seu “eu” e chegando à
tentativa de prover o próximo de conhecimento, para aprender o que ele não pôde a tempo de
viver em paz com os outros. O estilo bíblico dos livros de sabedoria e o enxerto de
comparações à moda dos livros de Salomão misturam-se com a pobreza da mente de um
homem bruto, acrescentando a ele retratos de um percurso de vida cheio de cenas de
agressões físicas e morais, repassando às frases mesmas o sentimento de inconformidade em
juízos contra a família (principalmente) e outros compatriotas. Pascual, ao falar de si, deixa
uma série de observações, expondo seu espírito com egoísmo, agressividade e outros atributos
estranhos a uma alma arrependida, o que contradiz uma confissão no sentido de
arrependimento com vistas à purificação no plano espiritual cristão.
As atitudes passionais do Pascual Duarte narrador refletem uma lógica de ação, a de
confronto verbal passando logo ao confronto físico. Essa parece ser a prática de convivência
do Pascual Duarte personagem. Sua imagem no passado é transmitida a todo instante,
90
apontando para a justificativa de ser homem. Enquanto Brás Cubas alega ser homem por ser
cínico, aproveitador, Pascual Duarte carrega na sua justificativa uma forte impressão de
virilidade. Toda ação adversa causada por outra pessoa, por menor ofensa que seja, deve, pois,
ser retratada com sangue e dor.
Robert Kirsner destaca a frequência da palavra “sangue” em vários capítulos de FPD.
Segundo sua análise do romance, “tanto na vida como na morte, no amor como no ódio, as
características chegam vivas ao redor da aparência da palavra sangue” (KIRSNER, 1963, p.
22, grifo do autor, tradução nossa). Quem analisar os momentos mais intensos do romance, os
três momentos de maior gozo do personagem (fora o nascimento dos filhos), encontra na
descrição da primeira relação sexual de Pascual com Lola, na morte de Estirao e no
assassinato da mãe do protagonista a recorrência da mesma palavra: “Eu a mordi [Lola] até
sangrar, até ficar rendida e dócil” (CELA, 1986, p. 48); “[Estirao] Começou a lançar sangue
pela boca” (CELA, 1986, p. 114); “Foi quando pude cravar [em sua mãe] a lâmina na
garganta. [...] O sangue corria sem freios e me bateu no rosto. Estava quente como um ventre”
(CELA, 1986, p. 138, grifo nosso).
Em termos gerais, a imagem total do personagem é uma construção baseada na
interpretação que o narrador faz de si mesmo, com o propósito de pedir indulto. Pela
aparência da justiça, seria mais que natural que ele pudesse defender a sua honra e a da sua
família. Pascual estaria a nos dizer que é um homem nobre, na importância dos seus
sentimentos, mesmo que não o seja no plano material.
A seção antecedente das memórias de Pascual Duarte, com o título “Carta anunciando
o envio do original”, funciona já para demonstrar as diferenças de classe entre o narrador e
um privilegiado social, que ainda tem o título de don, a ser entendido como nobre de berço ou
de natureza. O título está a atestar os privilégios de classe. O papel de don vai ser requerido
para se provar a um deles (don Joaquín) que um pobre camponês agiu errado, fiado no destino
e nos impulsos de um ser de intelecto arcaico, sem refinamento. A dedicatória a don Jesús
apresenta a diferenciação social. Nela, temos o problema de pensar o que ela significa para o
seu enunciador, visto nesse trecho haver o detalhe de o narrador ser nomeado no diminutivo,
pelo apelido de Pascualillo. O fato aponta para a enunciação do nobre assassinado e para a
forma de aceitação da expressão. Temos, no mínimo, duas maneiras de interpretá-lo. Talvez o
diminutivo do nome tenha sido enunciado com intuito carinhoso, depreciativo ou irônico. E
recebido e aceito da mesma forma, com intuito carinhoso, depreciativo ou irônico. Assim,
Pascual poderia estar apontando para as diferenças sociais. Ser diminuído no nome pode ser o
indício de revolta ou não do personagem.
91
Como só temos a frase e nenhum comentário sobre ela, no capítulo primeiro, o terceiro
parágrafo vai ser gasto quase todo para falar da riqueza da casa de don Jesús: “havia uma
[casa] de dois andares, a de don Jesús, que dava gosto vê-la com sua ante-sala toda cheia de
azulejos e vasos” (CELA, 1986, p. 16). Com isso, e com o caso de o narrador nada mais falar
sobre sua principal vítima, apenas podemos imaginar que estamos entre duas possibilidades
bastante viáveis, acima de tudo, pessoais. Pascual tanto pode ser vítima como pode ser
assassino. Na verdade, uma situação não exclui a outra.
Se Pascual começou o romance comparando a pequenez do seu nome com a
superioridade econômica e aristocrática de don Jesús, é na relação com os personagens
decaídos moralmente que ele apresentará ser digno e defensor da honra. Kirsner cita em nota
de rodapé o prólogo de Marañon para embasar sua afirmação, em transparente discordância
com o primeiro prefaciador do romance FPD. São palavras de Marañon (1951 apud
KIRSNER, 1963, p. 22, tradução nossa): “[Pascual] Duarte é melhor pessoa que suas vítimas
e que seus arrebatamentos criminosos representam uma sorte de abstrata e bárbara, porém,
inegável justiça”. São palavras de Kirsner (1963, p. 22, tradução nossa): “Talvez o ato mais
ofensivo da novela é o fazer o criminoso uma pessoa bem melhor que suas vítimas”.
Por preferir em primeiro plano a análise do conjunto textual, muito mais que avaliar a
conduta do personagem, mesmo assim, optamos por arriscar o apoio à opinião de Kirsner.
Predisposto à barbárie por seu temperamento sanguíneo e truculento de homem latino,
Pascual comete uma série de atentados contra outros seres, sem perdoar parentes, conhecidos,
desconhecidos e até animais domésticos. Ele abusa da desculpa de defender-se por não aceitar
ser ofendido. No fim do capítulo três, o narrador reproduz o diálogo de Estirao e Rosa. Estirao
a espanca e a provoca, referindo-se a Pascual, inferiorizando-o, no intuito de humilhá-la ainda
mais e mostrando como ele não teria poder de defendê-
não é homem nem coisa alguma?” (CELA, 1986, p. 36). Para Pascual, conhecendo o diálogo
entre sua irmã e o amante, pior do que não ser homem é ser rebaixado ainda mais, sem poder
chegar a ser considerado sequer um animal. A fala provocativa atinge o orgulho já ferido do
narrador, deixando a ele a obrigação de ter de se livrar de um inimigo público. Mas não é só
Estirao que fala com a intenção de rebaixar e ferir os sentimentos do protagonista. Lola, antes
de casar-se, faz semelhante provocação, comparando Pascual a um deficiente, que não pode
agir como um homem (principalmente no âmbito sexual, em uma atitude capaz de ferir ainda
mais a honra do ofendido): “ – És como teu irmão [Mário, o deficiente físico e mental]!”
(CELA, 1986, p. 48). Só depois de ser dominada e se relacionar sexualmente com Pascual é
que ela mudará o discurso. Ao atingir o objetivo da provocação, Lola diz sem remorso algum:
92
“ – Não és como teu irmão...! És um homem...!” (CELA, 1986, p. 49).
Ler os dois exemplos isolados do restante do livro já é suficiente para apontar o
principal lado do caráter do narrador. A descrição da primeira relação sexual de Pascual com
Lola demonstra como o narrador é facilmente envolvido pelo instinto. Esse procedimento
deve ser visto em consonância com a seguinte ponderação: “A importância de conservar a
dignidade masculina é essencial na atitude de homens da categoria de Pascual”, diz Ilie (1963,
p. 50, tradução nossa), um dos analistas mais importante da obra de Cela. O crítico literário
faz essa consideração a partir da proposta de uma tese de primitivismo do personagem,
seguindo o princípio de identificação da categoria em que se inclui o narrador. Segundo ele,
isso ocorre porque a sua personalidade está imersa em um primitivismo mental, diferente e
abaixo do homem comum. As características desse primitivismo são respostas fisiológicas
imediatas, no lugar de estímulos corporais para a ação do indivíduo mediada pela reflexão,
pelo raciocínio pautado na lógica que preza, entre outras qualidades, a preservação da
alteridade.
O egocentrismo é prática inegável na mentalidade desse tipo de pessoa que só
consegue enxergar o imediato. Mentalidade tanto mais acentuada quanto mais forem vistas
em destaque as limitações humanas impostas, cujas causas encontram-se na escassez
financeira, na aridez do lugar, na falta de contato sadio com outras pessoas, familiares ou
amigos.
Para embasar sua tese do primitivismo do personagem, Ilie cita que o sentimento de
“carinho de Pascual é um produto, não uma afeição espontânea” (ILIE, 1963, p. 41, tradução
nossa), que “os sentidos [dele] são irracionais, [...] opostos às faculdades intelectuais” (ILIE,
1963, p. 44, tradução nossa) e que “a resposta mais básica dada por Pascual aos
acontecimentos, particularmente quando estes são difíceis, é a fisiológica, na qual não aparece
esforço de pensamento nem sequer emoção. Ela é automática e irresponsável” (ILIE, 1963, p.
48, tradução nossa).
A brutalidade sensorial analisada por Ilie já por si seria um forte indício contra a
humanidade do narrador, transformando-o em um ser humano um pouco superior aos animais,
sendo mesmo assim bestializado, em um processo cujo destaque é o fato de ser a sua
“sensibilidade mais dominante [no relato] a olfativa” (ILIE, 1963, p. 44, tradução nossa),
como mostra a seguinte declaração do narrador: “É curioso, mas, quando moço, se me
privavam daquele cheiro [de animal morto em decomposição, jogado em uma vala] eu era
tomado por angústias de morte” (CELA, 1986, p. 19). Decorre disso uma estranheza estética,
propícia ainda mais à inferiorização do personagem: “as pessoas com um refinado sentido de
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olfato se encontram restringidas ao prazer que a série de odores agradáveis ou aromas lhe
proporciona” (ILIE, 1963, p. 45, tradução nossa) como perfumes ou cheiros aceitáveis,
enquanto “a diferença que situa a Pascual em um plano inferior na escala da sensibilidade”
indica a presença do gosto primitivo, “atento a odores nada delicados com específicas
associações animais ou corporais, sejam estas orgânicas ou funcionais” (ILIE, 1963, p. 46,
tradução nossa). Ilie completa: “A relativa escassez de referências mais „agradáveis‟ pode
atribuir-se a uma falta de refinamento na percepção sensorial” (ILIE, 1963, p. 46, tradução
nossa).
Um último detalhe mostrará ainda mais o caráter ficcional desenvolvido acima das
características de camponês simples e limitado. Don Santiago Lurueña e Cesáreo Martín
atestam ouvir antes do fuzilamento a expressão “faça-se a vontade de Deus!”, chegando a
deixar maravilhado o pároco, além de demonstrar muita valentia, talvez honra, na visão do
guarda civil. O prosseguimento da cena mostra o contrário. O personagem Pascual Duarte
desmaia quando se vê na iminência de ser morto, grita que não quer morrer, beija o crucifixo
e termina “seus dias cuspindo e escoiceando, sem cuidado nenhum para com os circunstantes
e da maneira mais ruim e mais baixa que alguém pode terminar; demonstrando a todos seu
medo da morte” (CELA, 1986, p. 145-146).
Após falar na ficcionalização do personagem feita por ele mesmo, temos em mente
que ele é o sujeito e o objeto dos relatos memorialísticos, sendo o personagem no passado um
duplo do narrador que, presente nos próprios relatos, obriga o leitor a pensar na existência da
sua “imagem oficial”. Se há uma imagem oficial construída pelo suposto autor, existe então
um discurso oficial, considerado como verdade pelos narradores-escritores, desembocando
cada estilo próprio na capacidade de caracterizar-se como personagem e narrador, ambos
sendo categorias a representarem seres escriturais distanciados. Teríamos, de um lado, o
discurso oficial, a imagem, o estilo e, do outro, o leitor tentando identificar e correlacionar
texto com nome, vida com texto, e coerência narrativa com coerência da vida, digamos,
interrompida, claramente desperdiçada.
3. ÁLBUM DE RETRATO: AS RELAÇÕES DE FAMÍLIA, O FRACASSO
E O LEGADO
– Oh! – fazia então, balançando a cabeça com um sorriso.
– Sorte tua, meu amigo. É bom ser defunto?
Pirandello
As marcas atuativas ocorrem principalmente na intimidade da família do narrador.
Mesmo que elas acabem por concretizar-se na recorrência à caracterização da enunciação do
“eu sou”, “me chamo” ou simplesmente o uso do “eu”, na representação do sujeito, a
individualidade sofre a influência da aproximação do meio. O fracasso não deriva, por via
exclusiva, das escolhas pessoais, como poderíamos pensar ao analisar o primeiro capítulo de
Mattia Pascal, nem é a pura e simples concretização das potências do destino, como alega
também no primeiro capítulo Pascual Duarte. Nesse meio-termo, outra instância prisional é
comum aos três narradores-escritores. A prisão está presente desde o lar, e o nome familiar é
uma espécie de cárcere. O lar é o lugar em que surge e ocorre o erro, em que o crime (desvio)
se materializa. As redes familiar e comunitária propiciam o ato do erro, porém não são elas as
entidades que finalizam o ato. Das duas, é a família o maior polo de intromissão nos passos
do narrador no passado.
De outra forma, nos três romances, a presença do tema família exerce papel
fundamental, pela capacidade de despir e tornar os sentimentos íntimos dos narradores mais
nítidos, quando estes esbarram na dificuldade de falar dos seus entes sem atingir quem os lê.
Querendo ou não, é de aceitação comum que a família tem algo de sagrado, que não se pode
falar mal dela nem tentar transferir toda a provável culpa para uma educação falha, na medida
em que, mesmo que seja o caso, esteja envolvida a possibilidade da escolha, o livre arbítrio.
O narrador-escritor é o espelho das atitudes e decisões da família. Por essa razão, para
não cair apenas no determinismo e na predestinação da pessoa ao fracasso, é preciso avaliar
na escrita do narrador-escritor as suas escolhas, se ele optou, de plena consciência, por
assumir ou não aquela herança. Mediante a atitude da escolha, devemos nos perguntar se
pessoas com características semelhantes a Pascual Duarte serão sempre assassinas, ou se
pessoas bem-nascidas, ricas, de famílias chamadas nobres, não predestinadas ao trabalho e ao
casamento, manterão o ócio de Brás Cubas. A família pode – ou não – ser vista como o
elemento castrador, a ponto de moldar vidas, transformar indivíduos e destiná-los a serem
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imutáveis, escondendo-os atrás de eternas e intransponíveis máscaras sociais. O que parece
evidente nos três romances, em referência ao narrador perante o lar, é a atitude de transferir
para a família, célula social de formação e desenvolvimento, algumas responsabilidades suas
na hora de realizar determinadas escolhas, satisfazendo o interesse pessoal.
O ambiente familiar é o cenário da descrição do nascimento, da infância, do
crescimento e desenvolvimento do indivíduo, dos sonhos de juventude fracassados, até a
tentativa malograda do casamento. Não é à toa que os narradores se dedicam a pormenorizar
determinados detalhes dessas fases, mostrando ora suas traquinagens, ora a permissividade
dos pais. A visão da família como grupo traz o pressuposto de o indivíduo viver entre regras
de convívio e hierarquia. As regras de convívio são impedimentos ao narrador para agir
livremente. Os narradores vivem com dificuldades no seio familiar e, no momento em que as
dificuldades são encobertas, com a complacência paterna, consagra-se o caminho mais curto
para o fracasso.
No caso dos problemas familiares ou das relações em família, a existência do elo
sanguíneo remete o narrador a duas localidades semânticas necessárias em referência ao nome
composto. Há a origem (a família e o problema do sobrenome) e há a vivência na fase adulta,
com a constituição de uma nova célula familiar mediante o casamento. Em confissões do fim,
ambas estão rodeadas e infladas na descrição da intimidade do protagonista pelo sentimento
do fracasso.
Da mesma maneira, consideradas as duas circunstâncias de relação familiar (a anterior,
valorizando o patrimônio, e a posterior, assumida ou requerida no matrimônio), notamos que
o narrador adota uma forma de apontar na direção da primeira o erro que culminou no
fracasso. Assumindo o erro por ter de angariar a opinião dos leitores, ele nos deixa a
proposição de que esse fracasso antecede a formação do seu caráter, predestinando-o ao
desvio do caminho de virtudes. A tentativa de justificar o erro pela família está manifesta nos
comentários, desde a falência da força de mediação educadora dos pais.
A informação sobre a família aparece pela primeira vez no título. Este apresenta
alguma consideração adicional referente ao indivíduo, identificado por nome e sobrenome.
Nos três títulos, o sobrenome é o último termo e parece ser a marca da herança carregada pelo
narrador para delimitá-lo, diferenciando-o de outros seres e aproximando-o de um grupo. O
sobrenome assume, assim, duas verdades contraditórias, sendo, a um só tempo, capaz de
servir como elo de aproximação e semelhança e de ser um ponto de diferenciação e definição
exclusiva. A primeira condição está ligada à família, e a segunda, ao meio externo ao
ambiente familiar. Temos de imediato os Cubas, os Pascal e os Duarte. A lógica indica que
96
Brás é justamente um “Cubas”.60
Essa expressão nominal liga o personagem a uma casa. O
seu reconhecimento leva em si tal desígnio. Ou seja, entre outras pessoas chamadas de Brás,
apenas uma, com sobrenome Cubas, é pertencente a essa família abastada: o autor das
memórias póstumas.
O narrador tem nome e identidade dupla, formada de valores anteriores assumidos,
somados, ainda, às escolhas requeridas pelo tipo de vida. Logo, a função da identidade não se
refere somente ao predomínio do nome individual ou do sobrenome. E o mesmo ocorre com
os demais narradores-escritores de confissões do fim, quando estes têm ou não seus nomes
estampados na capa do romance.61
Os personagens têm problemas iniciais de relacionamento e também intensas relações
de parentesco. Para narrar, agora eles precisam descrever uma seleção de acontecimentos com
o auxílio do comentário. E estas serão para eles suas duas armas de defesa, na tese de fruto do
lar: a descrição e o comentário.
A liberdade excessiva na infância, as relações com a mãe (de afetividade ou ódio) e o
pai (no ato de assumir diretamente a herança) aproximam os narradores e centralizam todo o
seu desenvolvimento. Ao começar a descrever o caso familiar, Brás Cubas assume a relação
de abstenção do mea culpa, na tentativa de mostrar a responsabilidade dos pais e outros
parentes na criação e constituição do seu caráter, desde criança. No capítulo XI, “O menino é
pai do homem”, a abertura é singular: “Cresci; e nisso é que a família não interveio; cresci
naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos” (ASSIS, 1960, p. 128). A hipótese do
crescimento livre, sem parâmetros reguladores satisfatórios para o desenvolvimento de uma
identidade menos egoísta, tenta demonstrar a parcela máxima de culpa alheia. Logo, é a
família a entidade responsabilizada, porque é ela a responsável legal e moral pela educação
dos filhos.
Em MPBC, por ser o livro também uma defesa dos direitos de classe e uma
autobajulação,62
o narrador nos informa que, em sua infância, era ele um “dos mais
malignos”, “arguto”, “indiscreto”, “traquinas e voluntarioso” (ASSIS, 1960, p. 129). O
protagonista, na posse dos adjetivos nada recomendáveis para uma criança, não para por aí e
60
Título do capítulo XLIV. Nesse capítulo a expressão é usada quatro vezes, sendo pronunciada, em pelo menos
duas delas, pelo personagem-pai do narrador. 61
Consideramos também confissões do fim os livros Dom Casmurro, de Machado de Assis, São Bernardo, de
Graciliano Ramos, e O túnel, de Ernesto Sábato, embora não haja, nos títulos dessas obras, a presença dos
nomes no título do livro. 62
O capítulo X, por exemplo, no qual narra os seus primeiros anos de vida, Brás inaugura-o falando que no dia
20 de outubro, data do seu nascimento, na “árvore dos Cubas brotou uma graciosa flor”; depois, foi ele
recebido por “Pascoela, insigne parteira”, seu batizado “foi uma das mais galhardas festas do ano seguinte”
(ASSIS, 1960, p. 127) e começou a andar “antes do tempo” (ASSIS, 1960, p. 128).
97
vai bem mais além, chegando a desenvolver e aperfeiçoar ainda a qualidade da “contemplação
da injustiça humana” (ASSIS, 1960, p. 129). Afirma-nos isso sem nenhum arrependimento e,
“ao sabor das circunstâncias e lugares” (ASSIS, 1960, p. 129) é que Brás vai viver como
reflexo do menino indiscreto e voluntarioso que foi. A respeito disso, Saraiva fala que “as
origens do protagonista e sua infância definem o homem que ele viria a ser, pois o „menino é
pai do homem‟” e ainda que “Brás Cubas adulto não desmente o „menino diabo‟, continuando
a ser pela vida afora „opiniático e algo contemptor dos homens‟” (SARAIVA, 2009, p. 46).
A liberdade excessiva será marca atuante na ação do protagonista, ao abusar do
desrespeito aos limites de convívio. Seu pai é um grande responsável por isso, mas não é o
único. Em geral, essa responsabilidade, a da educação, recai sobre os ombros da mãe e dela se
cobra muito, quando se vive em uma sociedade com a tradição de o homem ser o mantenedor
da família, e a mulher, a educadora por natureza.
A figura da mãe é preponderante na ação dos três personagens aqui analisados. Brás
Cubas e Mattia Pascal veem nela um ente querido, carinhoso e falho, por ser permissivo.
Brás Cubas refere-se à sua mãe como “fraca, de pouco cérebro e muito coração” (ASSIS,
1960, p. 130). Mattia Pascal adora sua mãe por ela ser “uma santa mulher”, de “índole
retraída” e, acima de tudo, “muito pacata” (PIRANDELLO, 1972, p. 18). Até porque ela
permitiu suas vontades e em nada procurou influenciar na formação ou no desenvolvimento
do seu caráter. Ao contrário dos dois, Pascual Duarte detesta a mãe desde a infância e
identifica-a com termos como espancadora, bruta, suja, xingadora, mal-humorada, insatisfeita
com a vida e alcoólatra:
[...] era também áspera e violenta, tinha um humor infernal e uma linguagem na
boca que Deus nos livre, pois blasfemava as piores coisas a toda hora [...]. Estava
sempre de luto e era pouco amiga da água [...]. O vinho, em compensação, já não lhe
desagradava tanto. (CELA, 1986, p. 24).
Nos três casos, serve de lição não apenas a atitude das mães de (não) educar os filhos,
mas também a forma como os narradores são vistos nas relações com os familiares. Estes, em
suas descrições, acusam os narradores de serem egocêntricos ao extremo. Brás Cubas pouco
fala da relação com a mãe (embora veja nela um ente querido) e vai apresentá-la apenas no
capítulo XI. Mattia exalta a figura materna e a eleva ao status de santa, principalmente porque
ela tolera suas vontades e pouco faz para adverti-lo. Pascual, já desde cedo, deixa entrever o
ódio pela mãe, razão que o faz acreditar ser melhor se livrar dela. Assim, na maneira de falar a
respeito de suas mães, cada narrador entrega-se, revela a mais íntima relação de parentesco,
pelo uso da linguagem em sua forma mais íntima possível. Aí teríamos novamente o
98
aparecimento do discurso encarcerado e das marcas atuativas.
No romance em que esse tipo de discurso é mais nítido, Pascual Duarte fala da família
com violência e desprezo. Ele está preso ao ódio e à insatisfação, além de outros sentimentos
negativos. Voltemos antes à primeira frase do seu relato – “Eu, senhor, não sou mau” – e ao
seu respectivo complemento – “embora não me faltassem motivos para sê-lo” (CELA, 1986,
p. 15). No mesmo capítulo, o narrador, pela primeira vez, diz algo sobre a família: “Em um
dos aposentos dormíamos eu e minha mulher, e no outro meus pais até que Deus, ou quem
sabe o diabo, quis levá-los” (CELA, 1986, p. 18, grifo nosso). O rancor e a ironia em relação
à família vão ao encontro da primeira frase do relato e deixam ao leitor duas possibilidades
básicas. Ou o narrador está se firmando no propósito de que a família está incluída na segunda
frase (“embora não me faltassem motivos para sê-lo”) – e aí o leitor vai ter de descobrir o que
se passou entre a família e ele, se um problema de criação, perseguição ou outro tipo de
atitude – ou o narrador desmente sua afirmação inicial (“Eu, senhor, não sou mau”) logo de
saída e se perde, condenando a si mesmo, sem perceber.
Continuando com Pascual Duarte, no capítulo dois, passamos a saber que o pai se
chamava Esteban, era um português alto e gordo como uma montanha. O narrador descreve o
bigode dele e acrescenta: “Eu lhe tinha um grande respeito e não pouco medo” (CELA, 1986,
p. 23). Fala mais: “era áspero e brusco e não tolerava que o contradissessem em nada”
(CELA, 1986, p. 23). Não para por aí e deixa o leitor saber que, quando “se enfurecia, coisa
que acontecia com mais freqüência do que o necessário, dava grande surra em mim e em
minha mãe” (CELA, 1986, p. 23). Conclui o primeiro parágrafo do segundo capítulo com sua
filosofia imediatista de homem inculto: “Nossas carnes são tão delicadas em idade tão tenra”
(CELA, 1986, p. 23), deixando claro que ele era inocente na infância e a culpa pela sua
transformação era dos seus pais. É possível afirmar que, em momento algum, o narrador
demonstra “grande respeito pelo pai” e, sim, medo. O tempo todo, o que se mostra é o pavor
de uma criança de sofrer as agressões físicas.
Ao voltarmos à figura materna, percebemos que a mãe de Pascual não é nomeada, e
não se sabe o motivo dessa falta de nomeação. Conforme vimos, sobre a mãe ele nos informa
que era áspera e violenta, xingava muito, tinha uma aparência de luto permanente, nunca
alegre. Até aqui tudo bem, pareceria apenas uma descrição simples. No entanto, a ironia aflora
em Pascual e, nesse momento, ele faz o leitor saber ser sua mãe “pouco amiga da água”,
emendando um comentário acerca do vinho, que “não lhe desagradava tanto”. Pascual declara
o gosto da mãe pelo vinho, depois de haver dito que o seu pai já a chamara de bêbada. Ele
aproveita para confirmar, de maneira sutil, o retrato da mãe, tendo por bordas a qualificação
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depreciativa de ser pouco amiga da água e muito amiga do vinho.
Na descrição do pai e da mãe, nada de positivo aparece e ambos não se diferenciam
muito entre si. Isso, se tivermos em mente a frase inicial de Pascual. Mas outro tópico do
relacionamento dos pais e do filho chama bastante atenção, quando o narrador toca no assunto
“escola”. Se em uma primeira vista a mãe sofria constantes surras, o leitor pode pensar na
mulher agredida e no direito dela à defesa. Pascual logo desmente a figura de agredida e de
coitada da mãe, delineada pela forma agressiva e quase disfarçada da escrita dele, narrador,
conforme vimos antes, com a expressão “pouco amiga da água”. Agora, pela primeira vez,
alguém vai ser defendido na obra. “Minha mãe não sabia ler nem escrever; meu pai sim”
(CELA, 1986, p. 25).
A consequência, no entanto, vai ser a inversão imediata da defesa, passando da mãe
para o pai em favor dos estudos do filho: “meu pai dizia que a luta pela vida era muito dura e
que devia ir me preparando para enfrentá-la com as únicas armas com que podíamos dominá-
la, as armas da inteligência” (CELA, 1986, p. 26). A mãe, ao contrário, entendia que se
Pascual estudasse se tornaria superior a ela, e não aceitava que isso acontecesse na família:
“Minha mãe não queria que eu fosse à escola” (CELA, 1986, p. 27). O resultado foi a pouca
permanência do menino e, logo em seguida, a sua saída do meio educacional. “Já sabia ler e
escrever, e somar e diminuir, e na realidade já tinha o suficiente para conduzir-me. Quando
deixei a escola tinha doze anos” (CELA, 1986, p. 27).
Diante desse panorama, o pai, prevendo as dificuldades da vida, formaliza seu
pensamento sobre a necessidade de usar “as armas da inteligência” e parece lamentar-se por
não ter estudado mais. Ele aconselha o filho a manter uma preocupação com os estudos e uma
dedicação a eles. O narrador alega ter “o suficiente para conduzir” seus passos na caminhada
da vida. Os estudos eram a arma para se viver melhor, quem sabe, mais equilibradamente,
sem levar tudo como motivo de ofensa. A ofensa e a brutalidade originária da vingança seria
uma justificação para a defesa da honra do indivíduo e da família. Eram os costumes da terra,
tanto que tudo se resolvia, na cabeça de Pascual e do povo de Almendralejo, à base de
navalhadas. “Os amigos [no episódio da luta, em um bar do vilarejo, entre Pascual e Zacarias,
um zombador e piadista imoral] se puseram de um lado, que nunca foi coisa de homens
meter-se a evitar as punhaladas” (CELA, 1986, p. 68). Mais tarde, em seus relatos, depois da
fuga para Madri, o narrador mostrar-se-á admirado do comportamento diferente dos espanhóis
da capital. Dois homens em uma caminhada se encontram e começam a dizer inconveniências
um sobre o outro. Depois, cada um vai embora e ali não acontece nada. A surpresa de Pascual
leva-o a fazer a seguinte ponderação: “Assim dá gosto! Se os homens do campo tivéssemos a
100
tolerância dos homens das cidades, os presídios estariam desabitados como ilhas” (CELA,
1986, p. 100).
Além da mãe alcoólatra e adúltera, o elemento feminino mais desonroso para o
narrador é a sua irmã, Rosário. Esta surge no capítulo três e é quem permite o contato direto
de Pascual com Estirao, seu grande inimigo. Desde o nascimento, Rosário traz problemas para
a família e o narrador quase não sente orgulho da irmã, ou enxerga nela beleza ou virtude.
Além do mais, com a aparição dela, no processo de escrita, o narrador confessa não se
lembrar bem de alguns eventos. Em compensação, para sua desgraça, as poucas lembranças
que tem demonstram uma visão pessimista e um lado sombrio do narrador: “só me lembro da
má impressão que me deu minha irmãzinha quando a vi pegajosa e vermelha” (CELA, 1986,
p. 29). A sujeira física envolve a pequenina e permanece com ela, mesmo após um banho: “A
senhora Engrácia [...] lavou-a bem lavada com água perfumada; envolveu-a de novo nos
panos que estavam menos sujos” (CELA, 1986, p. 29). Essa falta de higiene (os panos menos
sujos) deixa entrever a condição financeira da família. A criança nasce já destinada a se
envolver em algo impuro. Depois, cresce doente até certa idade, quando se demonstra “mais
viva que um lagarto” (CELA, 1986, p. 31). Nesse momento, a sujeira física dá lugar a outra, a
moral: “Se o bem fosse seu instinto natural, teria podido fazer grandes coisas, mas como Deus
bem sabe [...] não quis que nenhum de nós nos distinguíssemos pelas boas inclinações”
(CELA, 1986, p. 31). Nesse ponto, Deus é visto e avaliado pela sua injustiça, mas o narrador
receia falar abertamente isso, por temer o leitor e seus preceitos morais.
Mesmo transferindo a responsabilidade para a figura divina, o narrador ressalta que
Rosário “servia para tudo e para nada de bom: roubava com a mesma graça e donaire de uma
cigana velha, [entregara-se] à bebida ainda bem jovem, servia de alcoviteira para os
namoricos da velha [mãe]” (CELA, 1986, p. 31). Em outro momento, a filosofia de Pascual
mescla sabedoria popular e falso moralismo, servindo para atacar a moral de Rosário: “Como
bem diz o refrão, erva daninha geada não mata” (CELA, 1986, p. 32). Acrescenta e disfarça
sua opinião em construções capazes de suscitar a dúvida – “sem que queira dizer com isto que
Rosário fosse má” (CELA, 1986, p. 32) – para, em seguida, suscitar a certeza no coração do
leitor: “se bem que tampouco poria a mão no fogo para sustentar que fosse boa” (CELA,
1986, p. 32).
O legado dos Duarte seria a falta de virtudes. Cada membro da família carregaria em si
um alto vício e faria algo notório apenas por ser ilícito ou indecoroso. Com o pai
contrabandista, a mãe entregue às bebidas e adúltera, a irmã roubando a própria família e se
prostituindo, Pascual não se torna diferente e assume o papel de assassino. O único membro
101
da família que não comete erros é o deficiente físico e mental, Mário, que, por outro lado,
levando em conta o preconceito físico, também não aparece na visão dos concidadãos de
Almendralejo como uma criatura digna.
Diante de um panorama desfavorável, se pensássemos em Pascual querer ser um
homem honrado dentro das limitações impostas pela sociedade de então,63
quais seriam as
condições para isso? Pelo seu raciocínio, sabemos que o narrador descende de pessoas pobres,
ignorantes e cheias de vícios. Por causa de sua origem, ele acusa Deus de não deixar
alternativa para a mudança de vida. E ainda vive em um povoado à beira de uma estrada, um
lugarejo sem beleza e sem destaque, onde só se poderia viver uma vida medíocre, a não ser
um nobre, alguém de posses. Almendralejo era “um povoado quente e ensolarado, bastante
rico em oliveiras e porcos, com as casas pintadas tão brancas que ainda me dói a vista ao
lembrá-las” (CELA, 1986, p. 15). O retrato expressa a impossibilidade de viver feliz em um
lugar insuportável, mesmo tendo “uma praça cheia de lajes, com uma linda fonte de três
jorros, no meio” (CELA, 1986, p. 16). Quando elogia, só o faz para em seguida desqualificar:
“Quando saí do povoado, já fazia vários anos que a água não corria das três bocas” (CELA,
1986, p. 16). Tendo o título de don, a riqueza seria o necessário para ter honra.
Então, se, e somente se, Deus destinou todos os Duarte para um caminho diferente das
boas inclinações, se ele – Pascual Duarte – não soube encontrar uma solução para isso,
assume o que acredita ser o seu destino e não luta contra ele, não demonstrando bondade em
momento algum e sendo capaz apenas de acusar, ironizar, ridicularizar. Se Pascual é um
assassino confesso de mais de uma vítima, se foi capaz de matar a própria mãe para ver-se
livre, se tem tantas provas contra si, difícil acreditar que ele não seja mau.
Mattia Pascal não usa a ironia ferina para apontar a degradação moral; em seu lugar,
utiliza o argumento físico. Ele descreve cada personagem, deformando-os. A vantagem ou
função da descrição deformatória parece ser a apresentação da índole do personagem, de
maneira a encaixar esse personagem na sua autodefesa. Seria, por assim dizer, o efeito da
sombra, expresso em “O humorismo”.64
63
Acerca da honra, se compararmos a atitude de Pascual com a posição do cavaleiro nas novelas de cavalaria,
teremos as normas de avaliação dos desvios de conduta e da falta de honra por escolha, não por destino. “Por
necessidade procede que o cavaleiro tenha bons costumes e boa formação” (LLULL, 1949, p. 75). É
justamente o que Pascual não tem. Em decorrência, “a cavalaria é um ofício honrado, bastante necessário
para o bom andamento do mundo; e o cavaleiro, por esta razão e por todas aquelas razões e muitas mais, deve
ser honrado pela população” (LLULL, 1949, p. 90, tradução nossa). A função da cavalaria, “para o bom
andamento do mundo”, requer que o cavaleiro aja em favor dos outros, e não de si apenas. Aí estaria a
condição de homem honrado, propagada desde a Idade Média nos liames culturais do povo. 64
“o humorista cuida do corpo e da sombra, e talvez mais da sombra que do corpo; nota todos os gracejos desta
sombra, como ela ora se alonga ora se encolhe, quase a fazer o arremedo do corpo, que no entanto não a
calcula e nem se preocupa com ela” (PIRANDELLO, 1999, p. 177).
102
O narrador Mattia Pascal começa a falar da família desmentindo-se. No primeiro
capítulo, ele diz ser possível “demonstrar que não só conhec[eu seu] pai e [sua] mãe, mas
ainda, todos os antepassados” e suas ações, “nem todas, realmente, louváveis”
(PIRANDELLO, 1972, p. 9). Depois, no terceiro capítulo, a primeira frase desmente em parte
a afirmação do narrador: “Fui um pouco precipitado, no início, em dizer que conheci meu pai.
Não o conheci. Tinha quatro anos e meio, quando ele morreu” (PIRANDELLO, 1972, p. 17).
Mattia tem do pai uma ideia econômica de consumo e posses. Seu pai era um
comerciante que “deixou [...] na abastança a mulher e os dois filhos: Mattia [...] e Roberto,
dois anos mais velho” (PIRANDELLO, 1972, p. 17). Não descreve fisicamente o pai, e
moralmente alude a um comentário de terceiros: “alguns velhotes da nossa aldeia ainda
gostam de fazer crer que a riqueza de meu pai [...] possuía origens, digamos assim,
misteriosas. Pretendem que a conseguiu jogando cartas, em Marselha” (PIRANDELLO, 1972,
p. 17). Acrescenta que “sagaz e aventuroso, [seu] pai nunca teve, para seus negócios, sede
permanente [...] porque não o tentassem empresas demasiado grandes e arriscadas, ia
investindo os lucros, à medida que os realizava, em terras e casas, aqui, na própria aldeia”. E
termina falando do pai como alguém responsável e amante do lar “onde talvez contasse,
dentro em breve, repousar no conforto das riquezas fadigosamente adquiridas, contente e
sossegado, entre a mulher e os filhos” (PIRANDELLO, 1972, p. 18). No meio da descrição
mercantil, Mattia usa o plural para tomar posse de um passado econômico estável, de onde faz
a ponte para descrever a mãe. As frases “Possuíamos terras e casas” (PIRANDELLO, 1972, p.
17) e “sua morte [do pai] foi a nossa ruína” (PIRANDELLO, 1972, p. 18) faz o leitor se
achegar a uma realidade decadente para o narrador. A partir da morte do pai, Mattia vai sofrer
economicamente até retornar ao seu estado do início do livro.
Sobre a mãe, o leitor descobre que ela era “incapaz de administrar a herança” e “teve
de confiá-la a um indivíduo” (PIRANDELLO, 1972, p. 18). Também o leitor encontrará na
narração as definições de “santa mulher”, de “índole retraída e muito pacata”
(PIRANDELLO, 1972, p. 18). Quanto ao aspecto moral, era um ser dedicado ao lar. Mas do
momento em que Mattia começa a descrever fisicamente a mãe até a descrição de outros
personagens, ele usa uma linguagem capaz de sempre demonstrar a deformidade como
característica dela: “[A mãe] Falava em tom fanhoso e ria, também, com o nariz”
(PIRANDELLO, 1972, p. 18).
Após descrever a mãe, é a irmã do seu pai a vítima, a tia Scolastica, uma “solteirona
rabugenta, com dois olhos de fuinha, morena e altiva” (PIRANDELLO, 1972, p. 19). Sobre o
irmão quase nada diz, a não ser que era bonito. Ele mesmo, Mattia Pascal, é chamado pela tia
103
de “focinho de cachorro”. A explicação para ele é o uso dos óculos e a “cara plácida e
provocante” (PIRANDELLO, 1972, p. 25). Pascal confessa usar os óculos por causa de um
olho vesgo. E ainda relata conquistar aos dezoito anos “uma grande barba arruivada e crespa,
em prejuízo do nariz, bastante pequeno” (PIRANDELLO, 1972, p. 25).
Além de descrever a família, ao falar de Batta Malagna, o administrador corrupto,
mostra como Mattia sempre se apega fácil ao hábito de pintar com excessos as deformidades
das pessoas, causando o efeito do riso.
Ora, como podia Malagna, com uma cara e um corpo desses, ser tão ladrão, não sei!
Também os ladrões precisam de uma certa apresentação, que ele não me parecia ter.
Caminhava devagar, com aquela pança pendente, sempre com as mãos atrás das
costas; e que esforço fazia, para emitir a voz mole, lamentosa! [...] Talvez, digo eu,
roubasse para, de algum modo, distrair-se, coitado. (PIRANDELLO, 1972, p. 29-
30).
Mattia procura aguçar o leitor com provocações duvidosas. Gosta de emitir
comentários sobre a feiúra alheia e o fracasso sexual. Ri da sua sogra e ainda causa um dos
momentos mais cômicos nesse momento. Ela, a viúva Pescatore, nervosa, começa a se despir,
fora de si, e Pascal procura deliciar o leitor, rebaixando-a em razão de seu corpo feio, dando
destaque para as pernas: “– As pernas! as pernas! – berrava para a viúva Pescatore no chão. –
Não me mostre as pernas, pelo amor de Deus!” (PIRANDELLO, 1972, p. 53).
Brás Cubas não usa a agressividade de Pascual nem ressalta o lado físico das pessoas,
puxando para o cômico. Brás descreve na base da conveniência e pouco acrescenta sobre os
seus familiares, falando mais em Virgília, Quincas Borba, Eugênia, Eulália, Marcela e dona
Plácida do que nos seus parentes. Fala da sobrinha Venância, o “lírio do vale, que é a flor das
damas do seu tempo” (ASSIS, 1960, p. 115). Dos tios, João, o militar, “era um homem de
língua solta, vida galante, conversa picaresca” (ASSIS, 1960, p. 130) e que não respeitava
ninguém, nem a batina do irmão. O tio cônego, Ildefonso, “tinha muita austeridade e pureza;
tais dotes, contudo, não realçavam um espírito superior, apenas compensavam um espírito
medíocre” (ASSIS, 1960, p. 131). Havia uma tia materna, dona Emerenciana, “a pessoa que
mais autoridade tinha sobre” Brás Cubas. Ela “diferençava-se grandemente dos outros; mas
viveu pouco tempo em [sua] companhia, uns dois anos” (ASSIS, 1960, p. 131). Da irmã
Sabina e do cunhado Cotrim pouco fala, dando destaque ao lado interesseiro de ambos.
Sobre o pai, Brás nos faz saber que “era homem de imaginação”, “um bom caráter”,
um “varão digno e leal como poucos” (ASSIS, 1960, p. 114). E ainda usa uma ressalva para
complementar o nosso conhecimento do seu modo de narrar. “Releva notar que ele não
recorreu à inventiva senão depois de experimentar a falsificação” (ASSIS, 1960, p. 114).
104
Colocando lado a lado, os dois trechos dizem, ao mesmo tempo, que a figura paterna é digna,
leal, inventiva e falsificadora, adjetivos contraditórios entre si. Uma pessoa digna não pode
ser vista na forma de uma pessoa falsificadora. Nem um homem leal deve ser entendido por
um inventor de fatos. Seu pai sonha sempre com a grandeza do filho. Morre sem ver realizado
sonho algum, pronunciando um repetitivo lamento, “– Um Cubas!” (ASSIS, 1960, p. 180),
depois de ver-se logrado em sua vontade de ver o filho contraindo matrimônio e se tornando
deputado.
Com a morte, o pai deixa uma herança vistosa para Brás Cubas. E é esse o
acontecimento que focalizaremos melhor neste capítulo. Brás procura ressaltar o lado
inventivo do pai e não fala em momento algum do trabalho do seu progenitor. A herança é um
direito assumido e passado de pai para filho. Mas não é só o dinheiro que Brás herda de seu
pai.
3.1. O LEGADO65
A herança – ou o legado, como preferimos chamar – é muito mais que a aceitação do
patrimônio material. Ela é a escolha de carregar uma série de características comuns à família,
em grande parte advindas do contato direto dos filhos com os pais, assim como o sobrenome.
Para definirmos o legado, não basta pensar somente no problema do sobrenome. O
nome da família é característica central para a transmissão desse legado, mas não é a única,
pois a perpetuação do sobrenome é interrompida com a morte do narrador. Para resolver esse
dilema, ao deixar o seu legado, a solução encontrada é o herdeiro não ser mais aquele que
carrega o sobrenome pelos laços sanguíneos. A inexistência da sua própria prole faz o
narrador pensar em outro herdeiro, por adoção, que se insere no processo por meio da leitura
das memórias de Brás Cubas. Na falta do matrimônio e com base na singularidade de ideia de
como uma família deixa o legado para os filhos, a pessoa beneficiada pelo elemento
hereditário passa a ser o leitor, mesmo que não o seja financeiramente. Essa mudança de
sujeito e de critério, do fruto do sangue para alguém interessado em gastar seu tempo lendo e
considerando posicionamentos ideológicos do narrador, acarreta em passarmos da função de
comparsa e de juiz para o papel de seguidor, discípulo, justamente por estarmos em um nível
de inferioridade em relação aos narradores-escritores.
Mesmo que o leitor não seja um Cubas, ele pode ser chamado figurativamente de filho
65
A ideia de o legado transmitido ser o próprio livro foi sugerida por Passos (1996, p. 144-145). Retirada do final
de MPBC, a expressão “legado de nossa miséria” serve para que pensemos no narrador que põe em pauta os
valores culturais de nossa herança de cidadão brasileiro e de sujeito ocidentalizado.
105
de Brás, pois está recebendo a herança expressa nos dizeres do narrador. Temos, em
consequência, para o processo transmissivo, duas instâncias. As duas pontas da herança (a
financeira e a ideológica) de valores do legado66
do autor-livro são: a família, o ato
genealógico como instância anterior, antecipadora da forma de agir do narrador; e o leitor, no
rompimento do contrato familiar e no simultâneo aparecimento de um novo contrato com
bases narrativo-livrescas, já como instância posterior.
Os três narradores analisados se assemelham aos seus pais e repetem atitudes paternas.
Rico por herança, Brás Cubas vive e age, na maioria das vezes, da forma que lhe parece mais
conveniente. Pode-se dizer que o legado de Brás está relacionado ao ver-se bem superior e
mais digno do que realmente é.67
Essa atitude origina-se no pai, responsável por inventar a
grandeza do nome Cubas. “Releva notar que ele [o pai] não recorreu à inventiva senão depois
de experimentar a falsificação” (ASSIS, 1960, p. 114). Brás recebe um nome, na concepção
paterna, honrado, mas somente pela inventividade e falsificação.68
Ao transmitir a nós, leitores, o seu legado, que é o de nossa miséria, ele também nos
repassa seu nome como portador do querer sempre existir um pouco mais. Sua carta de
autoridade parece ser a experiência sofrida no delírio, quando manteve contato com Pandora.
Os polos, nesse processo, acabam invertidos, com a honra assinalando não a glória pessoal,
mas a miséria moral vivida por ele.
Mattia Pascal encara o legado como uma questão de reconhecimento, no “eu”
escritural, do seu “eu” existencial. Seu livro tem como destino a transmissão do estranho caso
de vida para leitores curiosos, a fim de desvendar alguns mistérios que envolvem a vida
humana. Pelo lado do narrador, ele aproveita para expressar que temos na sua escrita a
procura do sentido, resultando na tentativa de viver. A vida assume ares de lógica do absurdo,
contrastando com o mundo possível e verossímil na lógica simplista da maioria das pessoas.69
O absurdo começa quando Mattia inicia (e termina também) o livro falando do seu
nome, de como se chamava. Diz não saber quase nada, e atesta conhecer seus antepassados.
66
Interessante pensar que o legado que Brás Cubas recebeu de seu pai é de riquezas, à base de propriedades e
dinheiro, e o legado que ele transmite ao seu leitor não é o do dinheiro e, sim, o da “miséria”, como ele
mesmo afirma. É o legado da condição humana, da qual nenhum homem pode escapar. 67
Brás Cubas, no final do livro de memórias, fala no “legado de nossa miséria”. Porém, com o objetivo de o
livro ser publicado, o seu legado se contrasta com a miséria, a qual é demonstrada pelo seu inverso, o
orgulho. 68
Vimos como Brás Cubas constrói uma imagem de si superior ao que ele apresenta no texto. Pai e filho atuam
com a falsificação das imagens familiar e individual. 69
O posfácio de FMP tem por título “Advertência sobre os escrúpulos da fantasia”, e trata especificamente sobre
o verdadeiro e o verossímil da arte. Pirandello (1972, p. 281-289) fala que a vida não precisa demonstrar
verossimilhança, enquanto a arte é obrigada pelos críticos, que não conseguem se livrar dessa ideia de
representação dos absurdos da vida.
106
Desmente-se e afirma não ter conhecido seu pai. Reconhece no final quem realmente é – o
falecido. Mattia, quase que em um espelho, mostra como o legado provém de conhecer (ou
não) o pai e reconhecer-se quem é (saber que se chama tal e tal).
O legado do livro é de teor humanístico e existencial. O narrador repassa a ideia de
autoconhecimento e direito, ao afirmar-se no intuito de existir, de ser. Em todo caso, o
provérbio socrático “conhece-te a ti mesmo” está em vias de ser reformulado para “conheces
a tua família” e emendado com “e recebe a tua herança moral”. Comparando pai e filho,
Mattia assume o legado das riquezas ganhas em jogos de aposta e rejeita o lado empreendedor
de investir aqui e ali para o conforto da família.
Pascual Duarte, com a descrição e a narração dos fatos familiares, tenta convencer o
leitor da sua inocência, decorrente da falta de uma educação consistente e com padrões
adequados a uma criança. A família teria sido responsável, em meio à ausência de afetividade,
pela má criação. Embora fale em destino – “o destino se compraz em variar-nos como se
fôssemos de cera e em destinar-nos por sendas diferentes ao mesmo fim: a morte” (CELA,
1986, p. 15) –, é a família a entidade responsabilizada.
Para Pascual Duarte, de sua “infância não são exatamente boas as lembrança que
guarda” (CELA, 1986, p. 23). Seus pais “brigavam mais do que era conveniente” (CELA,
1986, p. 23) e sempre “se comportavam mal”. Acrescenta que “à sua pouca [de seus pais]
educação se unia sua escassez de virtudes e sua falta de concordância com o que Deus lhes
dava – defeitos todos estes que para [sua] desgraça [acabara] herdando” (CELA, 1986, p. 25).
O legado que Pascual teria herdado serve como justificativa para seu propósito de convencer
don Joaquín Barrera López de que ele, o narrador, não é um homem mau. E se o é, ele é fruto
do acaso, do destino, da situação familiar, tendo por pai um contrabandista patético, uma mãe
alcoólatra e amante de alguns homens da comunidade e uma irmã sem moral, amigada vez
por outra com outros homens de má índole.
Ao correr da leitura, se o leitor guardou bem as informações sobre Esteban, o pai do
personagem, veremos que Pascual age segundo o modelo paterno. Se o narrador reclama do
pai porque este se enfurecia com mais frequência do que o necessário, se já havia vivido isso,
ao testemunhar a experiência paterna, tudo poderia ter sido evitado, caso ele não assumisse o
legado familiar, isto é, tal maneira de agir. Mas, ainda sem saber se o narrador é bom ou mau,
o leitor presenciará a primeira informação sobre a mãe – ela recebia grandes surras do marido.
O leitor pode pensar na defesa da mulher ou na revolta do filho, em pensamentos, em relação
à mãe como sendo um ente mais fraco e submisso. No romance, é preciso esperar um pouco
mais para confirmar as opiniões apreendidas.
107
Há outro complemento da herança assumida por Pascual da influência paterna. O pai,
Esteban, estava envolvido com atos ilícitos, com contrabando. “Prenderam-no como
contrabandista” (CELA, 1986, p. 24). O primeiro contato com o ambiente prisional é por
causa do pai, embora Pascual jure não se lembrar de nada. De qualquer forma, no livro, é a
primeira vez de um Duarte na cadeia. Pai e filho passam pela mesma situação. Os casos de
condenação são distintos, mas o destino é o mesmo. Pascual não é preso por contrabando, mas
acaba indo para a cadeia, como o pai. Em compensação, o filho supera, em muito, o pai nas
estadias prisionais. No mínimo, três. Uma pela morte de Paco, outra pela morte da mãe e a
última, e definitiva, pela morte de don Jesús.
Há, ainda, a se destacar que, enquanto seu pai morre, sua mãe, que havia traído o
esposo, dá à luz um filho deficiente, Mário. O pai, mordido por um cachorro com raiva, treme
muito e, convulsivo, vem a falecer. Nessa esfera do relato, em vez do lamento, a ironia
assume a enunciação da interpretação da lembrança. Pascual confirma seu modo de ver os
outros e fala sobre o pai: “a morte de meu pai, [...] se não houvesse sido tão trágica seria de rir
se pensada a frio” (CELA, 1986, p. 38). Se assumíssemos o ponto de vista do narrador,
veríamos o quanto a morte paterna marca-se pelo ridículo, embora trágica. Em proporção,
esse laço da herança é assumido por Pascual nos acontecimentos da sua morte. Mesmo sendo
uma morte trágica, haveria o predomínio do ridículo, além, é claro, do caso da traição da
primeira esposa.
A herança deixada por Pascual Duarte é uma herança às avessas. Seu legado se
confirmaria se pensássemos naquilo que podemos fazer para poder respirar, viver em paz, ser
livre e feliz.
Nas primeiras partes do livro, Pascual Duarte narrador e o personagem-transcritor
dizem que a vida do protagonista é um modelo de condutas. A partir dessa afirmação e
avaliando o alcance do fracasso existencial, o motivo de Pascual Duarte ser um fracassado
tem sua forma de geração na violência física e verbal que vem de todos os lados do seu meio
de convívio. A violência verbal serve para alimentar a mínima temperança do personagem
central. A luta pela honra no pensamento do seu mundo, cheio de limitações, do machismo
prático do trabalhador braçal, prevalece em um povoado de habitantes sem (ou quase sem)
educação e riquezas. Conforme professa Lola, “o sangue parece ser o adubo” (CELA, 1986, p.
108) que nutre toda a existência conturbada de Pascual Duarte. Não é por menos que podemos
dizer que ele é fruto de uma geração do campo, perdida nos ditames que culminaram na
Guerra Civil Espanhola.
O autor efetivo, Camilo José Cela, clarificará, em parte, essa questão, ao usar o termo
108
tremendismo e ao compor a dedicatória de outro livro seu, San Camilo, 1936, voltando-se
para as questões da violência do seu povo nos anos antecedentes e nos anos da ditadura
franquista. A dedicatória desse livro é feita “aos jovens da sucessão de 1937, todos perdedores
de algo: da vida, da liberdade, da ilusão, da esperança, da decência” (CELA, 1982, p. 9,
tradução nossa).70
Tudo que foi citado na dedicatória de San Camilo, 1936, Pascual perdeu na
fase infantil, na juventude e perde novamente na fase adulta. Em todas as estações da vida,
notamos o autor suposto a permanecer no ataque a alguém, sendo sucessivos os dirigidos à
sua mãe. O legado às avessas resplandece na voz do transcritor que, desde então, dá um
conselho claro aos leitores dessas memórias: “ – Está vendo o que ele faz? Pois é o contrário
do que deveria fazer” (CELA, 1986, p. 8).
Seguir o conselho de um transcritor, um editor ficcional, não representaria, no entanto,
o legado de Pascual. Esse é propriamente um legado de violência, de sofrimento à base de
muitas ofensas e desventuras. Mesmo com tanta negatividade, o autor suposto deixa-nos a
indagação sobre se é válido agir como ele agiu.
A questão familiar torna-se o recebimento e a aceitação da herança e todo o legado só
se transforma em elemento particular quando, após ser transmitido, é assumido. Brás, Mattia e
Pascual recebem cada um e usam a seu modo o legado consubstanciado na presença do
sobrenome. Cada herança é aceita e modificada nos termos de dependência dos seus
respectivos novos donos. Como para os três protagonistas não há descendência legítima, o
legado se perderia, se não houvesse surgido a necessidade de compor um livro. A solução para
o problema da transmissão da herança interrompida é encontrada e esta nos é entregue, ao
contrário da falsa afirmação da última frase do livro das memórias de Brás Cubas: “não
transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (ASSIS, 1960, p. 304). O livro é o
melhor exemplo do legado de nossa miséria, um legado moral e não financeiro.
O legado presente no livro afirma-se consoante com a alegação de a obra de Mattia
Pascal servir como ensinamento a algum leitor curioso e compactua, assim, com os (talvez)
falsos sentimentos de humanismo e renúncia de Pascual Duarte, ao afirmar sua intenção de
que seu livro possa servir de ensinamento e modelo. Este narrador chega ao ponto de ter o
ímpeto de destruir seus escritos (e aí não ousamos afirmar até onde vai o seu cinismo ou a
verdade) e não o faz por considerar estar “privando desta forma algumas pessoas de aprender
o que eu [Pascual Duarte] não soube antes que fosse já demasiado tarde” (CELA, 1986, p. 9).
Depois dessas ponderações acerca da família de origem dos narradores, vejamos,
70
“A los mozos del reemplazo del 37, todos perdedores de algo: de la vida, de la libertad, de la ilusión, de la
esperanza, de la decencia”.
109
então, com brevidade, algo sobre a segunda instância familiar, o matrimônio.
É princípio básico que a formação do novo lar preserva o nome duplo (nome
individual e sobrenome), dando-lhe continuidade. No entanto, um fato comum perpassa o
problema familiar, na visão de uma posteridade jamais existente. Seguindo os padrões da
maioria dos romances em que um narrador-escritor masculino fala de toda a sua vida, para os
três personagens o patriarcalismo é um valor primordial nos seus planos. A escrita desses três
narradores, sob esse ponto de vista masculino, revisita o ideal de enxergar e depositar no filho
todo o orgulho paterno, em uma sociedade orientada por padrões tradicionais, com o homem
no papel principal familiar. É o nome do pai, do personagem masculino (Brás Cubas, Mattia
Pascal, Pascual Duarte), que está em jogo na posteridade, a se concretizar nos filhos, futuros
homens.
Os três narradores pensam em filhos. Primeiro, Pascual quase tem um, mas essa quase
paternidade termina em um aborto. Depois tem um menino por filho, embora a relação de pai
seja temporária. O menino é apelidado pelo pai, com carinho, de Pascualillo,71
e morre onze
meses depois de nascer. Brás Cubas não tem a sorte de concretizar o sonho de ser pai, sabe da
gravidez de Virgília, vê à distância e em pensamento o filho já bacharel, depois discursando
na câmara dos deputados (ASSIS, 1960, p. 239), mas tudo não passa de um sonho. E Mattia
tem um filho que, à exceção dos outros dois narradores, permanece vivo. É um menino
“saudável e bonito” (PIRANDELLO, 1972, p. 278) como a mãe. Mas o menino, que seria o
orgulho de Mattia Pascal, é filho legal de Batta Malagna, pelo casamento deste com Oliva, a
quem por direito se transfere o poder de se orgulhar publicamente como pai. Mattia não pode
considerar sua essa criança, por não ter contraído o matrimônio. E, não fazendo parte do
matrimônio, a criança não faz parte do patrimônio nem pode prolongar a herança. Mesmo
assim, Mattia usa a expressão “meu filho”, também usada por Brás no capítulo XC. O desejo
de ser pai, por causa do patriarcalismo, torna-se o meio para cada narrador realizar a
transmissão da herança ou legado. A herança é, nesse caso, mais que um meio econômico;
passam a ser valorizados, como a verdadeira herança, os filhos. Estes, como legado,
representariam todo o orgulho masculino, levariam o nome do pai adiante.
Cabe notar outro aspecto da segunda instância da significação da família: a
71
O apelido no diminutivo de Pascual, “Pascualillo”, surge no livro pela primeira vez na dedicatória, como a
forma pela qual o assassinado don Jesús nomeia o narrador. Ao se referir ao filho, o diminutivo assume o
papel sentimental de carinho, de demonstração de afeto, de amor. As duas hipóteses mais prováveis segundo
as quais o nobre chama Pascual assim, falam, de um lado, em desprezo, diminuição da figura da pessoa, e, de
outro, em aproximação, respeito afetivo, consideração por ela. Pensar esse problema do apelido seria uma
forma de tentarmos resolver o enigma sobre qual motivação levou Pascual a cometer seu último crime e se
ele é ou não uma pessoa má. Para aprofundar a discussão, confrontar Jacoby (1994) e Kirsner (1963).
110
composição do lar, através da escolha de uma esposa, acontece em harmonia com a vontade
do narrador (exceto com a indecisão inicial de Mattia Pascal). Diferente da primeira situação,
quando ocorre justamente o contrário, ele não tem a alternativa de escolher estar na família,
pois ele nasce sem poder decidir72
se faz parte ou não desse grupo, enquanto que, na
perspectiva masculina do casamento, esse indivíduo, ao assumir o papel de “cabeça do lar”,
torna-se (ao tomar essa decisão) o responsável por mantê-lo.
Nos três livros, os três narradores-escritores não conseguem exercer a função de pai e
o projeto familiar acaba na frustração. O caso de Pascual Duarte, que engravida e se casa com
a mulher escolhida, Lola, envolve a decadência maior da figura de pai por exigir o filho na
defesa da honra de homem. Isso significa que no mundo machista do narrador a virilidade
masculina se exprime por meio do respeito alheio e da existência dos filhos. A morte não só
envolve o desrespeito à honra masculina do pai, mas ainda afronta mais seu orgulho porque
Estirao consegue dar a Lola um filho, e Pascual não.
O segundo casamento representaria o renascimento para uma nova vida, o
esquecimento do passado. O que ocorre é que Pascual está preso à falta de honra e, mesmo na
perspectiva do segundo casamento, e com a possibilidade de ser pai efetivo, ele não suporta
estar diante da mãe, símbolo desse passado familiar inglório. Em vista do caso de Pascual
Duarte, chegamos a afirmar que, em nenhum dos três casos, prevalece para os narradores o
desenvolvimento dos filhos e muito menos do casamento, no sentido de um matrimônio feliz,
normal e bem vivido. A frustração envolve os demais sentimentos, até chegar a se revelar
publicamente nas páginas de livros de memórias.
3.2. O TIPO DE LEITOR
Há, no enredo e na existência de narradores-escritores fictícios, no jogo elaborado
pelos autores efetivos, a exigência da inserção de um leitor específico como participante da
narração. Este é feito personagem e modelo para os questionamentos do leitor real, garantindo
a expectativa73
da recepção da interpretação da vida do narrador, permitindo que aquele que
72
Caso fosse permitido escolher o primeiro grupo familiar, com certeza, Pascual Duarte escolheria uma família
rica, talvez mesmo a de don Jésus González de la Riva. 73
No livro Literatura confessional (REMÉDIOS, 1997, p. 9), no capítulo de abertura (“Literatura confessional:
espaço autobiográfico”), deparamo-nos com a seguinte pergunta: “quais as razões que movem o leitor [a
debruçar-se sobre esse tipo de literatura]: a curiosidade, a identificação com os problemas postos pelo autor, a
procura de uma consolação, a admiração por um herói, por um artista, por uma pessoa qualquer?”. Para a
autora, a “literatura confessional é aquela que mais se aproxima do leitor, porque fala de um eu, de uma
pessoa viva que ali se encontra e que diante do leitor desnuda sua vida” (REMÉDIOS, 1997, p. 9, grifo do
111
narra projete sobre si uma imagem “oficial”.
O álbum de retrato74
é uma fixação das imagens na mente do narrador. As imagens
servem como meio de prova contra ele, por serem abundantes. Se o leitor deseja condenar o
narrador-personagem, é no exame da escrita do narrador que encontrará o meio de dar o seu
veredito. As provas emergem da descrição dos outros, segundo um padrão viciado, em que
são rotuladas e recriminadas algumas pessoas próximas. E é justamente o leitor o primeiro a
sofrer na mão do narrador, receber a rotulação, a sanção da imagem, de acordo com a
classificação do tipo de qualificação exigida para a leitura.
Em MPBC, o narrador nomeia seu leitor e reclama-o, incitando-o a participar do livro.
O narrador invoca o seu leitor e chama-o de “fino”. A expressão aparece no fim do prólogo
“Ao leitor”: “A obra em si mesma é tudo; se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te
não agradar, pago-te com um piparote” (ASSIS, 1960, p. 109, grifo nosso). A forma ousada de
chamar de fino o leitor e de logo em seguida prometer-lhe em pagamento um piparote fica
suspensa no ar, indicando ironia ou assédio. Na nossa opinião, os dois casos. Ironia por ser
uma provocação ao leitor, um desafio à leitura, e assédio por tratar (embora com ironia) de
elevar a figura desse leitor (mesmo que para rebaixá-la logo a seguir). Ambas remetem à
leitura do livro.
Levando em consideração ainda a definição inicial do modelo de leitor de Brás Cubas,
o narrador pensa realmente nele como fino, desde que este represente um leitor culto, de
conhecimento enciclopédico, capaz de atualizar sempre o texto e os seus dados. Caso isso não
ocorra, a cooperação textual não procede e a provocação feita ao leitor resulta vã, perdendo
todo o sentido, quando não pode ser compreendida. Ambos – leitor e narrador – devem ser,
em teoria e em pose, cultos. Haveria um jogo de aparências. Sobre esse fato, vale ressaltar as
opiniões de Schwarz em referência à citação constante e à necessidade do leitor de ter a noção
sobre o que diz o defunto autor: “A prosa culta [de Brás] – que é pose ela também – empresta
um verniz de respeitabilidade a pulos, manobras e transformações do narrador, [...] ao mesmo
tempo que aprofunda o seu tipo social” (SCHWARZ, 2000, p. 22, grifo nosso). E ainda:
Note-se que as páginas iniciais trazem o nome de mais de trinta homens ilustres,
personagens literárias, monumentos célebres, datas capitais. Estão mencionados
autor). Fora as ressalvas da ficcionalidade, em uma época em que reality shows, como o Big Brother e outros,
fazem imenso sucesso, a curiosidade do leitor pode representar uma fuga e identificação, ou mesmo o ato
(talvez o mais defendido aqui) de julgar os outros, tendo, assim, uma momentânea e suposta superioridade,
quando quem está na condição de réu é o narrador. 74
A metáfora que intitula o presente capítulo compõe a proposta de olharmos para as imagens-retratos que o
narrador nos apresenta. Assim como nas fotografias de um álbum, haveria o problema do olhar de quem
focou os personagens (os familiares). O narrador foi quem concebeu a forma de retratar pessoas; daí,
julgando as imagens, podemos julgá-lo.
112
tempos bíblicos, homéricos e romanos, Idade Média, Renascimento e Reforma,
século clássico francês, Guerra Civil Inglesa e as unificações italiana e alemã.
(SCHWARZ, 2000, p. 31).
O narrador (apesar de cínico) exige, além da obediência, o esforço e o reconhecimento
intelectual em grande quantia do seu leitor. Depois de chamá-lo de fino, veremos um narrador
envolvendo o seu leitor em um processo de renomeação constante.
A segunda referência feita ao leitor encontra-se no fim do primeiro capítulo: “É
possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso.
Julgue-o por si mesmo” (ASSIS, 1960, p. 113). No capítulo seguinte, também no seu fim,
aparece novamente a mesma palavra – “Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao
emplastro” (ASSIS, 1960, p. 114). Até agora notamos uma liberdade do leitor para escolher,
uma invocação para que ele decida.
As três aparições da palavra “leitor” estão associadas a algum dualismo (estar ou não
satisfeito, crer ou não, apoiar o ponto de vista do militar ou do cônego) e, em tese, parece que
o narrador satisfaz-se apenas em contar seu caso de vida. Rouanet analisa essa relação da
seguinte maneira: “O narrador dá a impressão de respeitar o julgamento do leitor”, “a
reciprocidade [do poder de decisão do narrador e do leitor] é falsa [...]. De fato, não há
equivalência, porque, se a liberdade do narrador é original, a do leitor é outorgada”. E, por
fim, conclui ele: “a liberdade, quando existe, é ilusória” (ROUANET, 2007, p. 54).
Visto como livre, o leitor deixa de ser apenas fino, para ser tratado com bem mais
proximidade pelo narrador, quase em uma relação de compadres. Um exemplo é o capítulo IV,
quando ele recebe um conselho – “Deus te livre, leitor, de uma ideia fixa” (ASSIS, 1960, p.
115). Sem falar que a cordialidade do conselho é um ato falho, uma vez que o narrador passa
a experiência de o livro ser para ele uma ideia fixa e, por trás da cordialidade e liberdade, está
seu intento de agregar um seguidor, de fazê-lo aceitar seu ponto de vista, sendo também isso
uma ideia fixa.
A relação de cordialidade encaminha-se para uma relação de intimidade. E é tal a
intimidade que parece renovar os votos de liberdade de opinião, perante fatos bem íntimos e
ponderados, sobre o passado do narrador: “Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos
anos antes, e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova [...] Quem diria? De
dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois”
(ASSIS, 1960, p. 117-118).
Ao pensarmos no leitor, é importante entender que, ao imaginá-lo, o narrador é capaz
de fazer uma previsão das atitudes dele. As frases “Vamos lá; retifique o seu nariz, e tornemos
113
ao emplasto” (ASSIS, 1960, p. 116) e “Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à
casa” (ASSIS, 1960, p. 125) exemplificam bem isso. Depois, o narrador precisa ter sua
opinião aceita. Retomar o texto e não torcer o nariz é uma atitude esperada para o sucesso dos
objetivos do narrador. Além do mais, é preciso aceitar os caprichos de Brás e admitir sofrer o
impacto da sua atitude “sencerimoniosa”.75
Caso contrário, se o leitor levar para o campo da
honra e tomar tudo como ofensa, o resultado será a recusa do livro. A não ser que o leitor, não
entendendo muita coisa, pergunte-se qual seria a razão das contínuas ofensas, dando uma
nova chance ao narrador. A esse respeito, vale citar o pensamento de Kayser acerca da atitude
do leitor diante do romance: “O leitor, participando desta ficção [...] fica assim, desde o início,
com a curiosidade de saber o que este narrador lhe vai dizer do seu estranho ponto de vista”
(KAYSER, 1985, p. 223).
A relação de cordialidade e assédio não dura muito tempo, começando a ser
substituída pelo egocentrismo do autor. O foco de interesse, que inicialmente parecia recair
sobre o leitor, desloca-se para o defunto autor: “E vejam agora com que destreza, com que
arte faço eu a maior transição deste livro” (ASSIS, 1960, p. 126). Pulando e selecionando
fatos, o narrador tenta justificar seu método ainda no assédio ao seu leitor, comparando-se a
ele. No capítulo XXII, o contorno da forma do narrador de conquistar o seu leitor está
justamente nessa comparação, quando, apoiados em Rouanet, vimos recentemente que a
liberdade do leitor é ilusória e frágil: “e nós não somos um público in-folio, mas in-12, pouco
texto, larga margem, tipo elegante...” (ASSIS, 1960, p. 153, grifo do autor). O destaque da
expressão “tipo elegante” na comparação envolve o narrador e todo o seu discurso. Assim
sendo, os apelos retóricos, os comentários e as situações narradas deixam o leitor sempre em
alerta na representação do seu mundo.
A transição identifica logo uma ruptura dos valores apresentados. Antes o livro era
exaltado, pois “a obra em si mesma é tudo” (ASSIS, 1960, p. 107). No senão do livro, título
do capítulo LXXI, o “livro é enfadonho” e, se a obra é tudo, “o maior defeito deste livro [é o]
leitor” (ASSIS, 1960, p. 214). As simpatias de opinião ainda estão em jogo e, no mesmo
capítulo, é feita a defesa do livro de memórias, diferenciando-se o tempo da leitura, com
“pressa de envelhecer”, do tempo “devagar” (ASSIS, 1960, p. 214) da narração. O leitor deve,
neste ponto, sustentar sua paciência, para não abandonar a leitura.
Em seguida, a presunção assume logo ares de hostilidade e repreensão. O leitor é
chamado de obtuso, no capítulo XLIX (ASSIS, 1960, p. 186), e depois, no capítulo CXVI, de
75
Termo cunhado por Mattoso Câmara Jr. para referir-se à atitude do narrador. Seu texto fala nas “apóstrofes
sencerimoniosas ao leitor” (CÂMARA JR., 1979, p. 64).
114
ignaro (ASSIS, 1960, p. 263).76
As incitações continuam. “Eis aí um mistério; deixemos ao
leitor o tempo de decifrar este mistério” (ASSIS, 1960, p. 233). A intenção inicial de “explicar
sumariamente o caso” (ASSIS, 1960, p. 109) não permanece mais em sua totalidade. Vários
detalhes são negaceados. Os fatos que envolvem os mistérios nem sempre são desvendados e
a justificativa para isso é somente um “valha-me Deus! é preciso explicar tudo” (ASSIS,
1960, p. 285).
A transição do foco do leitor para o narrador conclui-se no capítulo denominado “Fase
brilhante”. Nele, o narrador faz a última invocação ao leitor e mostra-se abertamente, quase a
concluir o livro: “E vede [leitor] agora a minha modéstia; filiei-me na Ordem Terceira de ***,
exerci ali alguns cargos, foi essa a fase mais brilhante da minha vida” (ASSIS, 1960, p. 301).
A continuação do texto indicia um narrador capaz de negar abertamente informações ao leitor.
Esse desprezo evidencia o capricho do narrador em poder imaginar que o leitor irá até o fim.
“Não obstante, calo-me, não digo nada, não conto os meus serviços, o que fiz aos pobres e aos
enfermos, nem as recompensas que recebi, nada, não digo absolutamente nada” (ASSIS,
1960, p. 301). Durante todo o relato, o texto apresentou várias negativas de informações e
esclarecimentos, mas é próximo da sua conclusão que o narrador fará isso mais abertamente.
O capítulo final segue processo semelhante no uso do “não”, chegando a ser intitulado
capítulo “De negativas”. As referências e invocações cessam e a palavra leitor sequer é
mencionada nos três últimos capítulos. O fino leitor desaparece e a expressão “qualquer
pessoa” toma seu lugar: “Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que
houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida” (ASSIS, 1960, p.
304). O rebaixamento expressivo se dá quando o objetivo do narrador é alcançado. O livro foi
lido e Brás Cubas não precisa mais continuar sua rede de provocações.
Para os outros dois narradores-escritores, o leitor é nomeado e invocado, embora com
menor frequência do que em MPBC. O jogo de provocações é irrelevante perto do primeiro
narrador, em razão do respeito, em FPD, e da acomodação de Mattia Pascal. Temos, de um
lado, a escolha de um leitor qualquer, que deva ser curioso, e, do outro, um leitor específico.
Em FMP, o narrador disposto a escrever sua história, trabalha em uma babel, meio
igreja, meio biblioteca. Existem lá diversos manuscritos e outros livros abandonados.
Raramente há um leitor no povoado. “É evidente que o Monsenhor devia conhecer pouco a
índole e os hábitos de seus concidadãos” (PIRANDELLO, 1972, p. 10), porque eles não são
76
De acordo com Ferreira (2004), uma das definições para obtuso é “rude, bronco, estúpido” (p. 1424); e para
ignaro é “falto de instrução, ignorante, bronco, rude” (p. 1068). Por aí já se vê o gênio forte e inconstante,
arbitrário, manifestamente, provocando atração para o leitor entender os intempestivos mistérios da alma do
narrador.
115
adeptos de leituras nem têm, em sua maioria, “o amor pelos estudos” (PIRANDELLO, 1972,
p. 10). O narrador afirma que ele mesmo tinha pouca estima pelos livros. Trabalhar e conviver
com um leitor e não ter mais nada que se possa fazer são incentivos para Mattia entregar-se ao
desejo de confessar suas falsas mortes e seus problemas. Assim, as memórias são compostas
no tempo “perto de seis meses” (PIRANDELLO, 1972, p. 279) na ociosidade da espera pela
“terceira, última e definitiva morte” (PIRANDELLO, 1972, p. 10). E a narração das memórias
contou ainda com a “ideia ou, antes, o conselho de escrever” do “amigo Padre Elígio
Pellegrinotto” (PIRANDELLO, 1972, p. 11), a quem coube a guarda dos livros do
Monsenhor. A obra segue o pensamento de narrar os casos estranhos de Mattia a fim de se
tirar o máximo de proveito dos conselhos ali obtidos e expressar a utilidade das
“particularidades, alegres, ou tristes que sejam, graças às quais [conclusão do padre Elígio
Pellegrinottto] nós somos nós” e fora delas “não é possível viver” (PIRANDELLO, 1972, p.
279). Ao aceitar o conselho do amigo para escrever esse tipo de livro “útil”, a expectativa só
pode ser de que seu destino seja “algum leitor curioso” (PIRANDELLO, 1972, p. 10). Este é
visto como alguém que aparecerá tardiamente. Tanto que o narrador cria uma cláusula cômica
“de que ninguém possa abri-lo senão cinquenta anos depois da terceira, última e definitiva
morte [dele]” (PIRANDELLO, 1972, p. 10).
Com a situação já conhecida de Pascual Duarte ser um condenado à morte por
assassinato, temos duas hipóteses básicas para a motivação da escrita. Uma dita, e a outra não
dita. A primeira apoia-se na leitura da “Carta anunciando o envio do original”, título do
paratexto, no qual Pascual afirma que não poderia privar “algumas pessoas de aprender o que
[ele] não soube antes que fosse já demasiado tarde” (CELA, 1986, p. 9). Depois, ele fala que
não quer o perdão e que talvez “seja melhor que façam com [ele] o que está disposto, pois é
mais que provável que se não o fizerem [ele] volte a reincidir no erro” (CELA, 1986, p. 10-
11). E continua até chegar ao ponto de esclarecer que não deseja pedir o indulto, “porque é
demasiado o mal que a vida [lhe] mostrou e muita [sua] fraqueza para resistir ao instinto”
(CELA, 1986, p. 11). A conclusão apela para o aspecto religioso: “Faça-se o que está escrito
no livro dos Céus” (CELA, 1986, p. 11). A segunda hipótese está na referência ao destinatário
da carta – Senhor don Joaquín Barrera López. Ela seria uma tentativa de se salvar da morte
por garrote, principalmente se levantados indícios do porquê da escolha de tal receptor.
Pascual Duarte apresenta-se ao leitor e aparece para ele em três circunstâncias.
Primeiro, ao enviar o original dos seus escritos a don Joaquín. A segunda vez em que aparece
é em uma epígrafe, dedicada a don Jesús Gonzáles de la Riva, uma de suas vítimas. Sua
terceira forma de mostrar-se ao leitor é a apresentação propriamente dita, feita no primeiro
116
capítulo. Essa terceira apresentação inicia-se com a negação de uma previsível acusação.
Ao enviar o original, Pascual Duarte mostra-se humilde diante de don Joaquín. Há a
visível distinção social entre o emissor e o receptor da escrita. Pascual assume a figura de
subordinado e dirige-se ao amigo de don Jesús. No desenrolar do romance, don Jesús será
descrito como o principal homem de posses de Almendralejo. O mais provável, nessa
hipótese, é que o título e a relação de amizade que mantinham don Joaquín e don Jesús
indiquem que ambos fossem nobres e proprietários de terras, homens de destaque. O leitor vai
descobrir, mais ou menos três páginas à frente, que o camponês matara don Jesús.
A estratégia narrativa de Pascual de agir com humildade parece duvidosa pelos
indícios expostos a seguir. Primeiro, ele parece insurgir-se contra um nobre e depois refere-se
a outro – “Prezado senhor [don Joaquín Barrera López]. O senhor há de me desculpar por
enviar-lhe este longo relato” (CELA, 1986, p. 9). A impressão inicial seria de que realmente
Pascual Duarte se arrepende, ao escrever suas memórias. Mas poderia ser também uma tática
do narrador para pedir clemência, mesmo não estando arrependido. De forma mais objetiva,
ele, Pascual Duarte, teme a morte, embora tente não demonstrar isso e, ao contrário, simule
estar resignado ao seu destino. Segundo, Pascual diz ao nobre que ele “é o único do qual [ele]
lembr[a] o endereço” (CELA, 1986, p. 9). Mas Pascual poderia ter deixado os manuscritos
originais do texto a cargo do pároco da prisão ou de um jornalista, ou mesmo de um militar,
ou de um conhecido seu. Qual seria, então, o objetivo de endereçar ao nobre esse relato em
um livro de memórias? Não poderia ser comover alguém capaz de agir na esfera de
influências políticas da época? O envio da carta com a narrativa, o endereço, talvez seja uma
tentativa de induzir o primeiro leitor dos relatos de Pascual. Terceiro e quarto, Pascual Duarte
apresenta o motivo e a consequência de escrever um longo relato sobre os seus infortúnios –
“quero enviá-lo ao senhor para livrar-me de sua companhia [do relato dos seus assassinatos],
que me queima só ao pensar que tenha podido escrevê-lo” (CELA, 1986, p. 9). Novamente a
tática da escrita e da sugestão para a leitura parece ser a de que Pascual Duarte se arrependeu
das mortes que causou e, por isso, o leitor deverá ler todo o relato considerando o
arrependimento. Quinto, Pascual ressalta pela primeira vez no texto, e vai repeti-la ao longo
de todo o relato, a vontade de Deus e a ação do destino: “e para evitar que o jogue fora em um
momento de tristeza, os quais Deus quer dar-me muito nesses dias, privando desta forma
algumas pessoas de aprender o que eu não soube antes que fosse já demasiado tarde” (CELA,
1986, p. 9). Ao escolher destinar o livro aos cuidados de don Joaquín, Pascual estaria, na
segunda hipótese, escolhendo um nobre, alguém com poder de julgamento, uma pessoa cuja
opinião tem valor.
117
Depois de percorrida grande parte do caminho para compreendermos uma confissão
do fim, a razão deste capítulo foi entender como o narrador age no meio textual,
especificamente na descrição do grupo familiar, como ele se porta discursivamente, estando
diante do leitor, invocando-o com apelos retóricos e definindo-o também antes de falar dos
outros. O leitor não é mais aquele que lê, mas é, antes de tudo, uma exigência interpretativa,
um ente em forma de perspectiva, a quem o narrador procura confidenciar fatos e, com
métodos peculiares, educar, criando ou moldando nele o seu confidente legitimador. Nessa
transmissão narrativa, o leitor é convocado a se tornar parceiro dos dizeres escriturais do autor
suposto. E, logo em seguida, a participar daquilo que se convencionou chamar de transmissão
do legado, entendendo esse ato comunicativo como elemento justificador para o pensamento
de Brás, Mattia e Pascual, em virtude dos acontecimentos em vida, sob a sombra da morte.
4. O DISCURSO PÓSTUMO: CONDIÇÃO DA ESCRITA, EXIGÊNCIA DA MORTE
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Manuel Bandeira
A morte mantém forte influência na atitude escritural dos indivíduos em desajuste com
a sociedade. Na história da humanidade, o medo do fim conflagrou o ato de rememorar e o
mesmo, uma série constituída de metas (tardar a morte, encontrar a salvação, garantir um
lugar em uma esfera além da vida, despedir-se, tentar entender o que aconteceu para algo dar
errado, descobrir o lugar de desvio de conduta, recompensar erros). Esse conjunto de metas
envolve preceitos de sobrevivência, seja ela espiritual, seja ela na memória em meio à
tradição do culto aos mortos, seja ela para prolongar por pouco tempo que seja a vida. Como
cremos ser possível percebê-la por qualquer pessoa, em nossa análise, a morte é elemento
essencial a atravessar toda a estrutura de confissões do fim. Quando propomos analisar três
romances sob a perspectiva da necessidade da escrita, pensamos em avaliar em que medida
seus respectivos narradores-escritores usufruíram livremente da tática de fingimento, no uso
da mentira e da manipulação dos fatos. Depois, em outra questão, pensamos em se os mesmos
narradores não conseguem enfrentar o problema do fracasso por não terem o devido
distanciamento, necessário para se autoavaliarem. Pois bem, apoiados nos mesmos desejos de
analisar os protagonistas, ao levar em consideração a medida do fingimento consciente junto à
medida da falta de reconhecimento de um diagnóstico preciso sobre si mesmo, nesse último
capítulo vamos tratar da parte da análise dos três romances sob a tensão causada pela força de
influência da morte, capaz de projetar moldes literários, sendo ela, em certa medida, o ponto
de obrigatoriedade para os três narradores-escritores escreverem. Propomos agora novamente
decifrar a expressão “confissão do fim” pelos dois termos que a formam.
O conceito de confessar pode ser tomado, comumente, por “reconhecer, tornar
público, revelar algo muito bem guardado”. Em literatura a palavra identifica uma variação de
um gênero textual, representando um tipo de narrativa autobiográfica em que o autor
proclama (jura) com sinceridade os erros que em vida cometeu. No latim clássico significa
“declaração, reconhecimento”. Susan Bernstein, no seu livro Confessional subjects, ao
teorizar confissão, nos orienta a avaliar o ato sob a teoria de dois grandes pensadores da
realidade do homem no século passado: Foucault e Freud. Para o primeiro, “confissão
significa polícia[mento]”, “garante o controle ideológico”, e “é [portanto] uma forma de
119
subjugação” (BERNSTEIN, 1997, p. 15, tradução nossa). Ressaltando outros aspectos, Freud
entende confissão como “ato da cura na fala”, algo que “supera a repressão psicológica” e, por
fim, a “divulgação direta da psicanálise das memórias traumáticas, muitas das vezes da
transgressão sexual, [tanto que] significa a liberação psíquica [do sujeito]” (BERNSTEIN,
1997, p. 15, tradução nossa). Seguindo os passos diretivos de Bernstein, ela nos deixa a
alternativa de pensar em Foucault apreciando um lado negativo do termo, em favor do
equilíbrio da comunidade; e algo positivo, com Freud, destacando o lado terapêutico do ato de
confessar, permitindo a quem confessa se libertar do mal da consciência reprimida.
Há, entretanto, algo comum para os dois filósofos. Ambos entendem confissão como
“um evento dialógico que ocorre entre confessor e confesso, analista e [o emissor do discurso]
analisado. Neste intercâmbio, ambos os teóricos assinalam o enorme poder [oriundo] da
posição do confessor” (BERNSTEIN, 1997, p. 15-16, tradução nossa). Lembremos, por
exemplo, do poder do confessor no caso de Pascual Duarte. O destinatário do texto de suas
memórias, don Joaquín, visto no capítulo anterior como cidadão provavelmente influente,
como provável indivíduo competente para interceder pela vida do infortunado narrador. Os
dois, Foucault e Freud, também concordam ao falar do poder da força sexual inserido na
confissão. Como não somos expert nos dois estudiosos, não nos arriscaremos a tratar desse
aspecto na escrita dos narradores-escritores (é tentador pensar nisso, por exemplo, em FPD,
quando para o narrador a sexualidade parece representar a realização, tanto quanto
manifestação de um status de “homem”).
O outro termo, fim, nós o entendemos geralmente por término de algo, limite,
desenlace. Algo chega ao fim quando acaba, deixa de existir, deteriora-se, perde sua
mobilidade, desaparece. Na perspectiva das religiões reencarnacionistas77
(espírita, católica,
evangélicas), ao fim sucede um recomeço, com a nova realidade em um outro corpo. Essas
doutrinas e suas variações designam o fim como sendo uma mudança de corpo, na assunção
de uma ordem formal ainda não conhecida pela pessoa.
Falamos sobre confissões do fim no decorrer deste trabalho, cuidando de alguns
aspectos, como o motivo, o desenvolvimento da escrita, o foco, a caracterização no uso do
comentário e na descrição exagerada. Fixamos nosso olhar a maior parte do tempo nos
77
As doutrinas católicas e evangélicas baseiam-se na reencarnação após o dia do julgamento final da
humanidade, como aparece em “Apocalipse”, livro final da Bíblia. Os espíritas acreditam na reencarnação
após a morte, sem esperar, contudo, pelo grande dia do julgamento final. Grande parta da questão levantada
na interpretação feita no nosso trabalho requer pensar em os narradores reencarnarem. Por ser o livro o novo
corpo, em vez de reencarnarem, eles “rematerializam-se”, corporificam-se de novo no objeto. Brás Cubas
usa esse argumento em duas passagens já citadas ou pelo menos sugere-o nas mesmas. Uma delas está no
delírio e na outra ele indica que “não somos [os seus leitores] um público in-folio, mas in-12, pouco texto,
larga margem, tipo elegante” (ASSIS, 1969, p. 153, grifos do autor).
120
capítulos iniciais dos romances. Defendemos que o livro de memórias do narrador-escritor,
artifício da ficcionalidade, é um projeto de justificação. Cada linha, parágrafo, capítulo dos
romances, encaminha-se para fechar com êxito o questionamento dos valores comunitários,
quase como uma tese de defesa pessoal e não mais que isso, já que na exposição dos fatos
cada narrador fez questão de ressaltar com grande alarde a importância de sua narrativa.
Ao alcançar os capítulos finais, a síntese de todo o projeto narrativo aparece para
retomar tudo que foi propagado por todo o texto narrativo. Deparamo-nos no final do relato,
pela retórica, com alguma declaração conclusiva, na procura de um eventual sucesso
expositivo para alcançar do leitor uma confirmação, por meio do convencimento, na
concordância com a tese do seu narrador, quando ele defende seus erros sem o seu esperado
arrependimento. Ao argumentar ser homem e igual aos demais, o narrador intenta obter o
condescendente reconhecimento de que é portador de limitações, passível de falhas e,
portanto, não deve ser julgado, mas apenas relembrado e aceito.
Por ser um relato dos erros cometidos no curso da vida, no momento de lermos
inicialmente cada confissão, torna-se importante cultivarmos a praxe de dar crédito à plena ou
momentânea sinceridade da pessoa que nos narra algo, mesmo que já saibamos pelo estilo do
autor efetivo o tipo de narrador preferido por ele. É provável que a maioria dos leitores já
saiba que a credibilidade no máximo é virtual. Mas não devemos fugir ao ímpeto de aceitar o
contrato inicial de veracidade, até porque o narrador tem precisão dele para quebrá-lo logo em
seguida. Essa atitude visa ligar os meios artísticos que o autor efetivo julga melhor para
causar a nossa reflexão sobre as condições literárias e humanas inseridas nas confissões do
fim.
Outros dois conceitos servem de apoio para o previsto contrato de relacionamento por
meio do texto. O caso temporal é um deles.78
O segundo diz respeito à pratica comum de
repassar experiência de vida através do texto escrito a alguém. Normalmente alguém escreve
memórias no final de sua vida e esse argumento acentua o uso da sinceridade. Pela lógica,
preferimos acreditar que, por já ser velho, o autor não tem que esconder muita coisa ou ele,
por algum outro motivo, tomou coragem para dizer o que não conseguia por ser jovem e
depender publicamente de sua imagem.
78
Em Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser, o próprio Iser abre a discussão sobre recepção
literária firmado no propósito de pensar “como compreender a literatura em sua relação com a ambiência
cultural em que foi produzida e em que nós mesmos nos encontramos” (ROCHA, 1999, p. 19). O leitor do
teórico tem diante de si dois problemas para onde olhar. Nos preceitos de Iser e em relação aos romances aqui
analisados, gostaríamos apenas de destacar a necessidade de sugerir um ponto onde possamos fixar nosso
campo de visão, no caso, os primeiros leitores e nos modelos de leitores propostos nos três romances. Essa
questão já foi vista no capítulo anterior deste trabalho, quando tratamos do tipo de leitor, e no primeiro
capítulo, na hipótese ficcional do editor ou do transcritor.
121
No entanto, no tocante à sinceridade, vimos que nem sempre é assim o que acontece.
Várias vezes somos deixados na dúvida de propósito (o suposto autor algumas vezes colabora
para isso e o planejamento do autor efetivo o proporciona em quase todo o livro) e nos
perdemos nas contradições das narrações, que abrem um leque imenso de opções para o nosso
posicionamento. Temos diversos caminhos, algumas provas e uma proposta manhosa, às
vezes, suave e agradável, outras, bem mais provocantes. Se o fim da trajetória humana é o
desenlace da obra literária, a confissão não poderia ultrapassar esse limite e estacaria nos
momentos antecedentes da morbidez definitiva. O desrespeito a essa fronteira novamente nos
leva a pensar em, se quem narra ou quem publica, tem por trás de tudo algum objetivo de real
valor para romper com a sua malfadada voz o silêncio imposto pelo cessar das atividades
reconhecidas no terreno profícuo da corporeidade.
As vozes implorantes do além se perderiam com facilidade se não estivessem
devidamente documentadas. Como construções ficcionais, o formato de livro é uma aquisição
material cara às confissões do fim. Nele há o entrecruzamento de diversos discursos. Essa
miscelânea de tópicos conceituais e de falas formaliza a intencionalidade do personagem de
contar algo parcialmente. Depois de destacar aqui, no segundo capítulo, o discurso
prisioneiro, poderíamos retornar ao primeiro capítulo a fim de reconhecer nele a aplicação da
terminologia de discurso narcisista, expressão um tanto quanto competente para o enfoque do
surgimento da motivação do livro, concebido como um relato implicativo, em que o fim
limita todos os eventos e incentiva a produção específica da escrita. A visibilidade do ego
centralizador de toda narração é notória e, em momento algum, o foco parece se transferir do
“eu” para o “outro”, a não ser na medida em que o outro satisfaz a disposição de espírito do
“eu” autoral do narrador-escritor. Existe, ainda, um terceiro discurso componente do livro, no
qual se destaca, com bastante ênfase, a morte. Sem encontrar um termo melhor, aproveitando
a sugestão de Machado de Assis e Brás Cubas, optamos, para nomear esse discurso, pela
nomenclatura sugestiva de discurso póstumo.
Embora o discurso póstumo seja efetuado em circunstâncias, é claro, de morte
(proximidade ou concretização), na conceituação deste trabalho merece ressalva o fato de não
ser suficiente para sua compreensão entendê-lo unicamente como o resultado de igualar o fim
à morte. Daí termos de, conforme a aglutinação dos narradores-escritores e os seus textos sob
a denominação de confissões do fim, agora a necessidade de definir o que o fim representa e
por que ele diferencia dos outros livros o tipo de confissão dos três narradores, aproximando-
os entre si.
Pelo caminho de raciocínio mais curto, vale aproximar a definição característica
122
dessas confissões – o fim – da presença, nos três livros, da significação da morte. Já
referenciamos o encontro da figura ingrata para seus narradores desde o primeiro elemento de
contato: o título. Em MPBC e FMP, temos, pela primeira vez, a presença dessa variante de
discurso. Estendendo essa conceituação imediatista até FPD, encontramos, no espírito das
memórias, autores falecidos e livros póstumos. Nos três romances, a conotação de
memorialismo é ainda mais acentuada porque, no ato de elaborar o passado, encontramos a
atitude de repensar, reviver, rememorar a vida inteira de personagens que se identificam em
livros específicos para se autonomearem perante casos de experiências desumanizadoras,
desagradáveis para o ser humano, além de justificar, negar, rejeitar, condenar o mundo em sua
realidade de ambiente possibilitador de todas essas experiências.
Avançando no propósito deste estudo, a partir de agora, faz-se necessário expandir o
conceito do fim para além da morte, considerando-o em dois sentidos: o fim encontrado na
morte e o fim entendido por estado permanente, status contínuo, mesmo que antes da morte
física. No mais fúnebre dos três livros, MPBC, logo após o título, deparamos-nos com uma
das marcas predominantes do estilo do narrador, o qual surge do seu aprendizado após
observar, apreender e refletir sobre a culminância da morte. A abrangência dela serve como
uma espécie de instância mestra por permitir a ele, pela observação, definir a parte mais
importante dos traços estruturais do seu texto. Na página de abertura, a famosa dedicatória do
defunto autor a um verme resvala na singularidade da escolha. Em geral, uma dedicatória é
dirigida a alguém ou a algo importante para a vida de quem escreveu o livro. O destaque
desse acréscimo paratextual estranhamente é dado a esse “verme [específico] que primeiro
roeu as [suas] frias carnes” (ASSIS, 1960, p. 105), impactando a leitura, surpreendendo o
leitor. O desprendimento irônico presente antes da narração é já um alerta para a verdade mais
simples das limitações do ser humano, condizente com a infelicidade em saber que não
podemos fazer tudo o que desejamos, pois nos limitamos desde o nascimento pela
insuficiência corporal, até atingir a falência absoluta.
Na leitura desse pequeno e tão significativo pré-texto, o mesmo funciona como
pretexto estético de uma maneira de escrever. Nós, leitores, entrevemos o cinismo. Porém, a
“saudosa lembrança” do verme sugere ainda o estilo como fruto da decomposição,
característica evidente em toda a narrativa e que será o modo de analisar os outros e compor o
livro. Essa dedicatória autoriza-nos a pensar que Brás Cubas compõe (a mensagem)
decompondo (o caráter das pessoas). Fora o lado provável, é na observância do conjunto
formador do romance que podemos encontrar solo para desvendar a perspectiva contingente
de um morto bastante insatisfeito.
123
A transferência parcial de foco, quando aumentamos a visualização sobre a matriz das
costuras de discursos em um discurso, no caso o autor efetivo, o realizador pragmático desse
empreendimento, pela arquitetura textual traçada por ele para o romance, na comparação de
suas edições ainda vivo, ou seja, na busca por descobrir se houve ou não mudanças
importantes na estrutura do texto, podemos entender melhor o romance se nos questionarmos
que valores expressivos ele adquiriu até a edição definitiva.
O paralelismo do efeito das impressões textuais nessas mudanças transfere a
notoriedade do autor para a sua criatura, pois assim passamos a julgar mais a moral do
narrador do que a do seu criador. E isso começa a se evidenciar no arranjo visual da ordem
das partes do paratexto. Fora a exclusão da epígrafe, outra mudança muito interessante ocorre
em observar o posicionamento da dedicatória. Conforme esclarece a nota de rodapé da edição
crítica de 1960, do Instituto Nacional do Livro, em que as edições são identificadas por letras
maiúsculas, a edição “A [de 1880] não traz a dedicatória. B [edição de 1881] traz a
dedicatória depois de „Ao leitor‟, podendo ser por malbarato da ordem de impressão ao ser
encadernado o exemplar da colação” (ASSIS, 1960, p. 105). Segundo essa informação, na
edição definitiva, após a capa, a primeira seção paratextual que encontramos é a dedicatória,
antes mesmo do prólogo de Machado de Assis.
Em FPD, não há essa ordem e o prefácio “Pascual Duarte, a limpo” vem antes da
dedicatória a don Jesús. Em outros livros nos quais se identificam figuras de personagens-
escritores, é normal haver notas, introduções ou outros textos antecipando a ficcionalidade da
suposta autoria para dar mais verossimilhança à escrita.
Retomando a referência a Brás Cubas, a dedicatória, por ser um elemento textual
posterior,79
é uma indicação planejada do pessimismo do narrador, a guiar-nos pelas margens
da melancolia encontrada na morte e nos seus mistérios. A dedicatória dá mais autenticidade
ao padrão do morto, pela mesma razão de serem póstumas as suas memórias, em consonânia
com a alegação de Brás Cubas ser um defunto autor e não um autor defunto. O informe
diferenciador acaba quase por transformar-se numa reivindicação o ter de se identificar
imediatamente como um falecido, na imitação clara dos padrões literários de usar prefácios ou
prólogos, adotados por grande parte dos homens que consagraram seus livros, mas tiveram
antes que explicar o seu padrão visionário para a época em que viveram, a ponto de terem que
apresentar antes suas credenciais de escritor.
Pensando um pouco mais na inclusão da dedicatória no resto do texto do protagonista,
79
Na forma de classificação de Genette (1987), porque ela foi escrita e incorporada depois da primeira edição.
124
supomos antes de ler propriamente a confissão que exista a repetitiva exposição do tema na
narração. Antecipar o conteúdo da mensagem por essa curta preliminar do seguimento
escritural, com suas bases retiradas na ocorrência inevitável da morte, revela que esse modelo
de discurso atravessa a narrativa do início ao fim e está presente, com alta frequência, nos
títulos em MPBC e em FMP, nas dedicatórias de Brás Cubas e Pascual Duarte, no último e no
primeiro capítulo do relato dos três narradores; nos prólogos de Machado de Assis, do
personagem Brás Cubas, de Camilo José Cela; bem como no ensaio em forma de posfácio de
Luigi Pirandello. E, possivelmente, está presente até na possibilidade de significação dos
nomes das principais vítimas e do seu algoz em FPD. Em MPBC, FMP, e em FPD, antes do
primeiro capítulo, já somos informados que os três narradores já estão no “undiscovered
country de Hamlet” (ASSIS, 1960, p. 112). O início do livro é uma antecipação do final, na
mesma proporção em que o fim é um retorno ao seu início.
A marca da decomposição causada pela morte aparece em FMP também, escondida
atrás do riso, do humor. Quando se relata a notícia da primeira morte fictícia do narrador,
impressa em um jornal, este deixa aflorar sua indignação, valendo-se do inconformismo para
questionar o mundo de então. Nesse ponto, os traços da decomposição ultrapassam o
humorismo e torna tudo muito sério. Pascal reporta que, em Miragno, “foi encontrado, na
levada de uma azenha, um cadáver em estado de adiantada putrefação...” (PIRANDELLO,
1972, p. 89). Embora envelhecendo, seu estado espiritual aponta para esse laço de
desintegração física. No seu caso, o processo atinge diretamente não o corpo, mas a
identidade e a moral. Justamente nesse ponto de “adiantada putrefação” é que surge a repulsa
e nasce o problema de se depender da opinião alheia. Mattia Pascal já deixara de ser desejado
faz tempo e sua mulher e sua sogra, querendo aproveitar a chance, foram capazes de, para se
verem livres dele, afirmarem ser seu o corpo encontrado. E não era só para elas que o
personagem assumiu essa aparência. Seu irmão aproveitou o engano para se livrar de dívidas
e Batta Malagna também tirou proveito do suposto reconhecimento do corpo, favorecendo
seus interesses financeiros e familiares.
Embora seja difícil afirmar quais pessoas realmente lamentaram aquela morte, parece
ter sido unânime a sua aceitação. O corpo encontrado “foi reconhecido como o do nosso
bibliotecário Mattia Pascal, desaparecido há vários dias. Causa do suicídio: dificuldades
financeiras” (PIRANDELLO, 1972, p. 89) dizia a notícia estampada em página do Il
foglietto.80
Mesmo sendo a notícia parte verdadeira e parte falsa, Mattia Pascal rejeita ser esse
80
Nome do jornal de Miragno, cidade de Mattia Pascal.
125
o motivo de sua morte, mas, tendo em vista a morte da sua mãe e de sua filha, passa a repetir
parte de um discurso consumado, favorável para delinear a efetuação da sua falsa morte: “ –
EU? ... „Desaparecido... Reconhecido... Mattia Pascal...‟” (PIRANDELLO, 1972, p. 89).
Na repetição da fala alheia, ele acolhe aquela opinião, não porque seja uma verdade
plena. A razão de consentir em tal concepção está na possibilidade de ela transparecer e
funcionar como uma verdade, permitindo ao narrador fugir e não ser mais importunado.
Mesmo sendo uma forma errônea de concretizar o seu desejo de liberdade, suprimindo seu
passado, ainda assim ela depende das circunstâncias. Como toda atitude social, a morte não é
um evento simplesmente individual: ela só se concretiza se os outros indivíduos a
reconhecerem. Tanto que a fala do narrador, eco da fala de uma outra pessoa, o jornalista,
apresenta, em sua pronúncia, duas faces do problema da morte para ele – o reconhecimento e
o desaparecimento. Ele só pode ser um morto se o seu corpo for reconhecido e desaparecer
para quem o conhece. A resposta para (tentar) finalizar esse problema é sua fuga pela segunda
vez, desviando seu caminho de volta ao lar para vários lugares até chegar a Roma, adiando
por algum tempo seu retorno a Miragno.
Para ratificar a vantajosa notícia da morte, o narrador não desmente o jornal, nem
contradiz a esposa, dando o direito a ela, pelo silêncio dele, de se separar do corpo do marido
e de depositá-lo em uma sepultura. Só que, após encarnar esse papel, de desaparecer da visão
dos seus concidadãos e de ser reconhecido como finado pela família e pelos meios públicos, a
ordem dos termos de sua nomeação na capa do livro, o adjetivo “falecido”, antecipando o
nome do protagonista, remete-nos ao problema dos narradores no início do enredo. Quando se
deparam com a perspectiva do desaparecimento, o medo de migrarem da existência para o
nada faz de cada narrador um escritor que tenta, na medida do possível, se fazer reconhecido.
Os narradores-escritores são obrigados por esse destino a apelarem para fórmulas literárias em
que predominam o exagero de alguma maneira. As extravagâncias literárias de Brás Cubas
não são meros símbolos de opulência. Elas atuam na razão de o leitor precisar ser conquistado
– incomodado mesmo, se necessário – para não se desgrudar do texto. Mattia age da mesma
forma. Quando quer desvencilhar-se do humorismo, só consegue fazê-lo porque o mesmo
atributo artístico já fez rir muito o leitor e este pensa que logo voltará a rir em companhia de
tão agradável leitura. Permanece, para o leitor, antes de alcançar a última página, ainda a
expectativa de desfrutar das graças do texto. E até o inculto Pascual Duarte tem seus meios de
persuasão. O uso de reflexões a representar uma filosofia de homem do campo, um
acumulado de ideias de teor moralístico, com base em pensamentos do dia-a-dia, às vezes faz
o leitor concordar com ele, com suas sentenças secas, porém verdadeiras.
126
Ainda sobre a aceitação dos termos que mudariam a vida do narrador, mesmo após o
desaparecimento e o reconhecimento, essa mesma fala resvala para uma terceira vertente do
problema. Não dura muito o sossego de Mattia, agora Adriano Meis, com a morte e a vida
fictícia apontando para a insustentabilidade dessa mentira de um ser que vive pelo engano.
Após ter-se transformado em Adriano Meis e encontrado refúgio na casa de Anselmo Paleari,
no contato com a filha deste, o episódio da pia com água benta81
faz o narrador encarar o
problema muito mal resolvido da fuga. Ele relembra que “desde menino” “descurara [de]
todos os deveres religiosos e não entrara mais em nenhuma igreja”. A visão do fato permite a
ele repensar seu destino ilusório. “Subitamente, vi-me numa condição bastante especiosa.
Para todos os que me conheciam, eu me libertara – bem ou mal – do pensamento mais
incômodo e angustiante que se pode ter, vivendo: o da morte” (PIRANDELLO, 1972, p. 134).
A percepção da irrealidade dessa ilusória imagem, na migração de identidade, leva-o a
perceber “de repente, que ainda tinha mesmo, de morrer: esse, o mal [da humanidade]”
(PIRANDELLO, 1972, p. 135).
O reposicionamento de significação no jogo entre a verdade e o engano pode nos fazer
olhar para a morte, se estamos pensando no sumiço dos rastros do antigo homem vivo, agora
morto. E para evitar tal desgosto, o de desaparecer, o discurso póstumo acontece para evitar
algo futuro para o ato de narrar, o aparecimento de uma espécie de discurso fúnebre: aquele
que indicaria o fim das lembranças, o esquecimento total, que por assim dizer, geraria a maior
de todas as mortes: aquela que não haveria nem sequer a possibilidade de se viver na mente
de algum curioso, de um pesquisador, de um parente ou amigo. O nome repousaria entre
tantos outros apenas no ato da pronúncia, sem ter nele qualquer lembrança do seu dono.
A ideia da morte aflige Mattia Pascal e os outros dois narradores. Mas a morte física,
encarada como o mal da vida, entrevê essa outra desilusão, a do esquecimento. E aí, sim,
temos o entendimento de ser a morte o desaparecimento do corpo físico e também das
lembranças, restando como conhecimento possível apenas o nome, no exato papel de uma
palavra passível de se decorar, mesmo sem saber o seu significado. Todos os humanos
comuns igualam-se quando se aproximam do “mesmo fim: a morte” (CELA, 1986, p. 15).
Temos nesse meio humano uma multidão de nomes e identidades. Um mar de pessoas que,
por praticidade, não desejamos saber quem foram. Até a morte funciona nesse caso por
81
No décimo capítulo, “Pia de água benta e cinzeiro”, no quarto no qual se hospeda na casa de Anselmo Paleari,
havia uma pia com água benta que o narrador usa como cinzeiro, por que essa pia veio a cair e partiu-se,
acabando não servindo para mais nada, além de um cinzeiro.
127
selecionar as pessoas de quem procuramos descobrir o seu passado.82
Por mais que se possa vislumbrar a imposição do fim comum, para Pascual Duarte a
morte é ainda mais agressiva porque ele sabe que em breve sofrerá o seu suplício. Mattia
Pascal não sabe ao certo, mas, como para os outros ele já está morto, não pode nem ter o
conforto do lamento de sua esposa e de seu suposto filho no momento da partida definitiva. Já
com o defunto Brás Cubas, o tédio da morte, a falta do casamento, da consagração advinda da
invenção do remédio e o fracasso nas carreiras política e literária fazem-no meditar que, em
breve, ele poderá desaparecer da memória dos demais indivíduos, por não ter tido méritos em
boas ações ou em quaisquer empreitadas e, assim, inexistir para sempre. Os três morrem, mas
não querem desaparecer. Assim como os faraós, eles lutam para permanecer entre os vivos.
A morte, além de ser um evento social, um rito de despedida, na visão de Brás Cubas
é um acontecimento “triste, mas curto”,83
algo passageiro na lembrança e, pela dinâmica da
vida, pouco perdura na esfera emocional, em razão de haver coisas bem mais interessante do
que relembrar com pesar um morto. E quem demonstra isso é o próprio narrador, ao
rememorar suas atitudes após a morte da sua mãe e do seu pai. O capítulo sobre a morte e o
enterro do pai vem depois e é bem menor do que o da mãe. Em ambos, nos capítulos
seguintes aos dos relatos dos velórios, há pelo menos uma referência temporal justa, no intuito
de se avaliar a rapidez de nos adaptarmos à ausência causada pela separação fúnebre. No
capítulo XXV, no “sétimo dia” depois do falecimento da mãe, ele procura refúgio, devido a
sua tristeza, “numa velha casa” (ASSIS, 1960, p. 156) de propriedade da família e aí conhece,
em pouco tempo, a filha do Vilaça e de dona Eusébia, consolando-se nos braços e nos beijos e
carinhos da moça coxa. No outro extremo, no capítulo XLVI, “oito dias depois da morte de
[seu] pai” (ASSIS, 1960, p. 181), o narrador, sua irmã e o cunhado vão debater sobre a forma
correta de dividir a herança. O narrador briga com ela e o marido, isola-se da sociedade, mas
em breve ele vê Virgília retornar, acontece o reencontro com ela, reatando e fortalecendo
ainda mais os laços sentimentais entre ambos. Outra vez o narrador encontra consolo no afago
de uma mulher e logo esquece os mortos. Nem mesmo as mortes mais dolorosas para o
narrador custaram muito tempo para serem superadas.
82
Antigamente, um hábito comum era a construção, nos cemitérios, de criptas cheias de detalhes, estátuas,
desenhos em mármore, frases impactantes, citações de textos religiosos ou literários, jurídicos. Tudo isso
chamava a atenção dos visitantes. Hoje, os cemitérios-jardins, com sua placidez e uniformidade, vêm
ocupando o imaginário da maioria das pessoas, revertendo o medo, o sofrimento em algo em que predomina
a calma, a pacificidade do rito de passagem e despedida. 83
Título do capítulo 23, em que é narrado o enterro da mãe do personagem. É nesse capítulo que a morte
alcança, na vida do personagem, um grande impacto por atingir um ente tão querido. Provavelmente é o
momento em que o processo da morte lhe “pareceu [mais] obscuro, incongruente, insano” (ASSIS, 1960, p.
155).
128
Diferentemente de Brás Cubas, a medida de sofrimento dos outros dois narradores
varia, embora Mattia Pascal e Pascual Duarte sofram mais as perdas quando estas são de
filhos. Dos três, quem sente mais o sofrimento de perda aparenta ser Mattia Pascal. Sua fuga
tem um quê de ensinamento na proposta de se entender a pronúncia da frase “me chamava
Mattia Pascal”. Já fomos informados que o narrador foge por “motivos financeiros”.
Imaginamos que a morte, na verdade, deriva das perdas simultâneas da filha e da mãe.
Poderíamos alegar que a união dos dois motivos força o narrador a se “matar”. O certo,
segundo nos parece, é que com os falecimentos das duas, avó e filha, ele acaba por perder sua
identidade. E isso se explica se imaginarmos na mãe a presença do passado e na filha, a
hipótese do futuro. No momento em que morrem, ele perde passado e futuro. Só lhe resta
viver o presente. Contudo, essa fase deve ser pensada logo na presença da figura da sogra
insatisfeita. O presente pode ter sua representação nela. Viver o presente, para o narrador, será
viver em agonia a cada momento. Se não se tem outra espécie de presente na vida, o melhor a
fazer é abandoná-la, morrendo.
O forte egoísmo que cerca a vida e a narração de Brás Cubas e de Mattia Pascal
estende-se a Pascual Duarte. Este não vive aproveitando-se dos fatos para sobreviver e nem
fala sequer em trabalho. Estamos cientes que é um homem do campo, morador de um vilarejo
e sabemos, ainda, do seu baixo poder aquisitivo. Ele é pai de família (por um breve período) e
precisa custear os gastos da casa. Precisa comer, precisa até do dinheiro para beber e coisas
assim. Por outro lado, ele não relata qualquer ligação com criminosos ou trabalhos ilícitos (o
único caso é o do pai, contrabandista e preso alguns anos atrás). Não menciona a exploração
de mulheres (fora sua irmã, por Estirao). Daí deduzirmos ser a sua ocupação remunerada
procedente do trabalho braçal.
Mesmo não tirando melhor proveito da vida, em algumas passagens ele se satisfaz
com as oportunidades que o destino lhe oferece. É possível mesmo que na situação de
insurgência dos conflitos armados em seu vilarejo, ele aproveite para se vingar do nobre don
Jesús, a quem invejava. Mas, fora essa questão em que temos vários caminhos hipotéticos a
seguir, ele narra certo acontecimento, sobre outra pessoa, sem deixar nenhuma espécie de
dúvida. A morte do seu irmão Mário fornece o argumento para o narrador criticar ainda mais e
sem nenhuma piedade, sua mãe, diferenciando-a da atitude esperada das outras mães. Ela
“tampouco chorou a morte de seu filho; secas deveriam ser as entranhas de uma mulher com
coração tão duro que não lhe sobrassem sequer algumas lágrimas para assinalar a desgraça de
uma criança” (CELA, 1986, p. 43). Ele, pelo contrário, confessa que chorou com sua irmã a
perda do infeliz menino.
129
Um pouco mais a frente, em contrapartida ao sentimento de tristeza pela despedida do
pequeno parente, nesse mesmo capítulo, ele encontra Lola, sua noiva à época. Durante o
enterro de Mário, escuta don Rafael, amante da mãe, pronunciar repetidas vezes “Os anjinhos
vão para o céu” (CELA, 1986, p. 45) e revolta-se, em pensamento, contra o falso sentimento
do nobre. Don Rafael, comumente, espancava o indefeso Mário. Naquele momento, Pascual
não o agride porque estava mais interessado em olhar “as pernas à mostra [de Lola, ao
ajoelhar-se], brancas e apertadas como morcilhas, acima das meias pretas” (CELA, 1986, p.
47). Notamos que a narração guiava-nos até então para pensar que o narrador era um pobre
coitado que não podia lutar contra todas as injustiças do mundo (no caso de Mário, contra don
Rafael), mesmo não as aceitando. A expectativa gerada pelo efeito do sentimento de nobreza é
quebrada e desvia-se para declarar a perversão de alguém capaz de desejar a noiva nua, em
lugar de lamentar a criança morta.
Para não ficar sozinho no rebaixamento moral, ele, à sua maneira, vai desqualificar a
integridade da futura mulher, por demonstrar que ela estava se insinuando, deixando visível
alguns atributos físicos seus. A conclusão de semelhante ousadia terminará no selvagem ato
sexual no meio do campo, no mesmo dia do enterro do irmão. Antes de dominá-la no campo,
ele surpreende ainda mais o leitor e não apenas sugere, mas declara abertamente que “naquele
momento [ele se alegrou] pela morte do [seu] irmão” (CELA, 1986, p. 47).
Ainda em FPD, no desenrolar do romance, somos informados da morte do pai e do
irmão do narrador, de seu filho, do aborto de Lola, da morte dela, sem contar as vítimas do
narrador. Por Mário, mesmo por pouco tempo, são derramadas algumas lágrimas. Pelos pais
não há indícios de nenhum remorso. Lola, da mesma forma. Apenas as crianças, os seus
filhos, é que causam grande desgosto e comoção. Pascual lamenta-os muito, demarcando bem
o retorno à questão do destino dele. No meio da sua narração, no capítulo 10, o pouco de
felicidade pelo nascimento de Pascuallilo logo se converte em profunda amargura. A criança
morre em seguida. Pascual não consegue mais equilibrar-se e fará uma peregrinação, saindo
do inferno do lar depois da morte da criança, passando pelo purgatório em Madri, retorna ao
inferno do lar, vai para o purgatório da cadeia, contempla de perto o paraíso na saída da
prisão, cai no inferno do lar, depois, em definitivo, no inferno da prisão.
Talvez o mais conhecido aproveitador dos três narradores seja Brás Cubas. Não
demora muito para nos lembrarmos das muitas inconveniências éticas de um homem nunca
trabalhar, gastar sem remorsos o dinheiro deixado pela família, não casar e manter relações
sexuais com a esposa de outro homem – Lobo Neves. Por haver nascido e crescido rico, Brás
“conheceu todas as facilidades, todos os prazeres [da vida]. E porque teve tudo, mas não se
130
deixou empolgar por coisa alguma, cedo conheceu o tédio” (PEREIRA, 1988, p. 196). Em
várias passagens do romance há recorrência ao sentido dessa palavra. Mesmo assim, em
momento algum o narrador pensa em morrer, ou abre mão de sua fortuna ou, ainda, se
aventura por lugares desconhecidos. O tédio é marca constante, embora o desejo de viver
supere esse sentimento.
A prática de Mattia e dos dois outros narradores do livre proveito é um forte vetor que
cerca o alter ego de cada um. Mostra, às vezes, que eles não estão preocupados senão consigo
mesmos. Brás Cubas, por exemplo, torna-se tão cínico, que em suas ponderações a teoria do
humanitismo transforma-se em mero pretexto para defender suas ações. Entende até que “se
não fosse dona Plácida, talvez os [...] amores com Virgília tivessem sido interrompidos, ou
imediatamente quebrados, em plena efervescência; tal foi, portanto, a utilidade da vida de
dona Plácida” (ASSIS, 1960, p. 291). Na sua identificação da teoria do humanitismo, o mais
desvalido só nasceu para servir ao gozo de quem usufrui a mais valia. Até aí tudo bem. No
entanto, ele comete o disparate de afirmar isso em referência a Virgília, quando a regra é o
mais forte dominar e usufruir, e esse mais forte era Lobo Neves, o esposo dela, um político,
na devida medida, bem sucedido. Brás, dos dois o mais fraco socialmente, é quem consegue
gozar dos amores dela. “E, bem pesadas as coisas, não era outra a razão da existência de
Virgília: não podia ser” (ASSIS, 1960, p. 202). A razão da existência de sua amante rica só
poderia ser satisfazer o egocentrismo do narrador, é o que ele pensa sem se preocupar se está
errado ou não.
Depois de reconquistar Virgília, após consolidar a relação de adultério, os “amores”
(os prazeres) vividos por ambos não comprovam o sentimento de amor entre eles. Haveria o
desejo movido pela atração, mas sem ter a necessidade de querer o outro para si pelos
parâmetros da integridade. Identificamos a anulação do desejo de casar-se. Brás Cubas rejeita
o cumprimento dos princípios do matrimônio em nossa sociedade. Tanto é verdade, que um
fato, em especial, atesta contra o narrador. Lobo Neves morre antes de Brás Cubas. Com a
viuvez de sua amante, nada o impedia mais de procurá-la para casar-se. Mas não: sua vontade
afetiva em relação a ela arrefece até desaparecer. Ambos tornam-se apenas conhecidos de
outrora. O caso com Virgília termina seguindo a mesma direção de sua importância viver no
passado do narrador, como no caso de Eugênia, com a diferença de ser essa última deficiente
e pobre.
A prática do livre proveito é muito comum a narradores egocêntricos. Devemos pensar
se o livre proveito também se transfere para o discurso. Quando isso ocorre, podemos
perceber que o narrador mostra-se o mais falho e o mais tendencioso possível. No caso de
131
Mattia, isso parece uma evidência necessária. Por ter tido o privilégio de ver-se “morto e
enterrado” (PIRANDELLO, 1972, p. 279), depois de receber a notícia de sua falsa morte nos
vagões de um trem, Mattia utiliza-se da prática também no discurso para fazer-se de vítima.
Conforme tomamos conhecimento, o argumento de tirar proveito da morte justifica seu plano
de gozar uma nova vida e este cresce na mesma medida em que vamos encontrando na leitura
das páginas do romance o ápice do ódio guardado pela sogra. O caso do reconhecimento do
corpo seria culpa dela. “Reconheceu-me [a viúva Pescatore] imediatamente! Nunca alguma
coisa lhe viera tão a calhar, ora!” (PIRANDELLO, 1972, p. 90). A viúva, assim como Mattia,
parece aproveitar-se das circunstâncias. A diferença está em Mattia autorizar sua atitude como
justa e condenar a da sogra, obra de uma perversa. “„É ele, é ele! Meu genro! Ah, pobre
Mattia! Ah, pobre filho meu!‟ E, talvez, terá, também, desatado em pranto; terá, também,
ajoelhado junto ao cadáver daquele coitadinho” (PIRANDELLO, 1972, p. 90, grifo do autor).
O narrador informa-nos o quadro de sua mente sem se importar de ser julgado. Para
ele, o que está em jogo é o mal (ou o bem) cometido pela velha. Aproveitando essa mesma
imagem, na totalidade do quadro, temos, de um lado, o defunto e, do outro, os parentes e mais
as pessoas próximas. A aplicação desse princípio mostra o rito de despedida do corpo. Ele nos
leva a pensar no fato comum da presença dessas pessoas – pelo menos dos parentes. Caso
ninguém vá se despedir, do morto, então ele não passa de um indigente e, logo, não faz falta
alguma à sociedade. Agora, pensemos na hipótese de o narrador não ter quem o chore. Sem
filhos, quem invocaria a sua presença? O não cumprimento do matrimônio, a carência da
prole, envolve o narrador na conscientização do perigo do desaparecimento definitivo.
A falta de familiares para lamentar suas mortes revela-se outra dificuldade para os três
narradores, despontando, em seguida, a tentativa de suprir essa ausência com o leitor. Mesmo
que Brás Cubas fale no desdém dos finados e que afirme que no outro mundo “não há
plateia”, ele admite que “o olhar da opinião” (ASSIS, 1960, p. 156) se estenda para lá, a
examinar e a julgar os mortos. Na aritmética da necessidade da opinião alheia, a plateia de
Brás não pode ser do mundo dos mortos. Pelo contrário, tem de ser dos vivos. São eles, os
vivos, os responsáveis pela manutenção da memória. Scarpelli (2001) trata esse problema,
comparando o destino do personagem ao de Sherazade, personagem d‟As mil e uma noites.
Brás Cubas foge do tédio sem fim da morte encontrando na narrativa uma alternativa contra o
mundo dos mortos: “narra-se para não morrer” (SCARPELLI, 2001, p. 35). “Brás Cubas [...]
volta à vida através de suas próprias „memórias póstumas‟ [e] lança a seus leitores futuros [...]
seu legado estético: fora da arte, a vida não tem visibilidade” (SCARPELLI, 2001, p. 35).
Essa espécie de solução atinge bem o núcleo do conflito vivido antes do memorialismo
132
narcisista, deixando entrever que o fim não é apenas a morte. O fim é a ausência da
possibilidade de mudança. Sem poder mudar, o retorno ao passado só se torna um meio de
superar o seu mal-estar temporariamente, na perspectiva de se imaginar inocente perante um
outro indivíduo – inocente, nesse caso, não é o justo, mas o justificado.
Os narradores de confissões do fim, em suas narrativas, apegam-se com facilidade à
aceitação do paradigma de que “narro [escrevo], logo existo”. Essa adaptação do axioma de
Descartes é extremamente contundente para os narradores se afirmarem desde o princípio.
Além do mais, as primeiras e as últimas frases dos relatos realinham os polos valorativos do
enredo, invertendo-os. Seria interessante avaliar, portanto, o fim das confissões dos narradores
em confronto direto com o início das memórias. Estabelece-se, assim, a possibilidade de
expor os intentos do narrador em face das previsões do leitor e ver se aquele mudou ou não o
trajeto, se confirmou ou negou seus propósitos no projeto textual a que se dedicou.
Brás Cubas começa sua narração empenhado em explicar a composição do seu livro,
sendo que isso já fora feito, em parte, no prólogo do livro. No primeiro capítulo, o narrador
resvala logo para o problema do estilo, do poder e da escolha. “Algum tempo hesitei se devia
abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim” (ASSIS, 1960, p. 111). A prolixidade inicial
do narrador faz com que as primeiras linhas do primeiro capítulo sofram uma perda na
objetividade narrativa e não fuja à regra de expor a arrogância de elevar o nível e a
importância do seu livro. Por ser o mais fúnebre dos narradores – tanto que define suas
memórias como póstumas –, ele insiste na qualidade e na superioridade do livro e até deixa
entrever seu orgulho no subsequente realçar da sua pessoa e dos seus dotes literários pela
estranheza e absurdo do fato. Dando tanta honra a si, ele rebaixa o seu leitor, depois dos
argumentos da sua expressividade estética impressa no prólogo, tendo até de explicar a
escolha ousada de quebrar a linearidade do texto, até então tradicional, para começar pelo fim.
Essa característica de começar pelo fim o seu texto estende-se aos outros dois
narradores, porque o fim é o ponto de encontro imediato de todo o fracasso não superado. O
fim, na verdade, é o enfrentamento de toda a vida e, por isso, dos fantasmas dos seus
narradores-escritores. Em referência a eles, num discurso póstumo, o fim é também o ponto
material de partida de todo questionamento do mundo. Desde o princípio, lança-se, por
inteiro, sobre o fim o foco, quebrando a expectativa do leitor de saber o que acontecerá com o
centro das atenções, que é o egocêntrico narrador-escritor.
De volta a Brás Cubas, ele invoca a autoridade da morte, pensando no processo em
que ela serve de guia ao seu intento literário, como se pode ver em sua postura inicial de
escritor, “para quem a campa foi outro berço” (ASSIS, 1960, p. 111). Por ter origem e fim na
133
morte, o discurso póstumo, outra consideração disfarça a presença negativa do que o ser
humano em geral abomina. Ao revelar a preocupação em tornar o texto agradável e aceitável,
ele reflete, assim, acerca da função de um escritor real, de ter um estilo sóbrio, culto e, acima
de tudo, inovador: “o escrito ficaria assim mais galante e mais novo” (ASSIS, 1960, p.111),
deixando repercutir na mente de quem lê benefícios literários para a reflexão sobre o
insuperável “problema da vida e da morte” (ASSIS, 1960, p. 155). Falando assim, podemos
pensar no narrador preocupado em manter uma tênue linha entre a vida e a morte, a fim de
inventariar seus limites.
O intuito narrativo originário do defunto autor implica logo a caracterização, em todo
o texto, do seu desdém, o seu descompromisso moral, suas inovações a evocarem uma nova
tradição shandiana ou luciânica, sem contar as demais características, destinando-as a
demarcar o dito discurso póstumo. O uso do termo – discurso póstumo – refletido no “eu”
narrativo, consegue enfatizar bem o exagero, no prólogo e no início dos primeiros capítulos,
da exaltação da sua figura. O suposto autor vangloria-se com muita facilidade. Ele mesmo
confessa ter por desejo o “amor da glória” (ASSIS, 1960, p. 113). O natural então é que tudo
na obra aponte para o morto Brás Cubas. Em decorrência disso, resta a confusão ao avaliar
qual é a intenção do defunto-autor: destacar sua vida ou destacar sua morte? Essa dicotomia
assumida permitiria o leitor perguntar-se qual a função de começar pelo fim. Se a intenção
dele é realmente contar sua vida, o confronto que se cria é para com os efeitos da morte e não
poderá se esquecer nunca dessa condição do narrador. Não obstante, se o “uso vulgar [em um
texto de teor autobiográfico] é começar pelo nascimento” (ASSIS, 1960, p. 111), Brás deixa
escapar que alcançou uma fase em que ele contraria a vida, ou os seus valores. Essa
contrariedade esclarece-se no reconhecimento do fato de que, enquanto esteve vivo, não
conseguiu ser alguém famoso, embora sempre o desejasse, até para manter a conquista de
permanecer na lembrança e do reconhecimento do seu nome.
O sentimento de contrariedade da vida persegue o narrador até a conclusão do livro.
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” (ASSIS, 1960,
p. 304). O tom narrativo assume, em seu final, o pressuposto de que não há razão para viver.
Tudo é pura ilusão, não existe nada nobre na vida. O que está à espera de quem vai entrar na
vida é o tédio, o sofrimento e outros sentimentos negativos.
Brás Cubas constrói o fechamento do seu livro após ter narrado a decadência e o
falecimento de algumas pessoas. No capítulo CXXV, encontramos apenas a seguinte inscrição
talhada no túmulo: “Aqui jaz dona Eulália Damasceno de Brito, morta aos dezenoves anos de
idade. Orai por ela!” (ASSIS, 1960, p. 274). A construção de um capítulo inteiro somente com
134
a redação mortuária do epitáfio a respeito da perda da provocante Eulália põe em evidência o
recado da morte: ela prevalece sobre velhos e jovens. Mesmo sem dizer, temos a impressão de
que, se possível, o narrador optaria por trocar o fim do texto (“Orai por ela”), pela frase
“lamentai a perda de uma mulher tão atraente e tão jovem”.
Alguns capítulos à frente, a narrativa de morte será a de Lobo Neves. No capítulo CL,
o título “Rotação e translação” representa os dois lados de um mesmo fracasso. Ambos, Brás
Cubas e Lobo Neves não alcançam o sucesso pleno. O jornal de Brás Cubas vai à falência,
enquanto a nomeação de ministro de Lobo Neves não sai. E, pior, o último, a quem o narrador
atribui vitórias na política, falha e falece, quando estava tão perto de concretizar o desejo de
ser ministro. “Morria com o pé na escada ministerial” (ASSIS, 1960, p. 296).
Os próximos na lista fatídica de Brás Cubas serão os personagens Marcela e Quincas
Borba. Ela morre na decadência física (ela que era tão bonita) e ele, na decadência mental (ele
que foi o criador da teoria do benefício, relator do princípio de humanitas).
A sequência das mortes contribui para o narrador mostrar que sua morte não foi tão
grave assim e sua derrota não foi a pior de todas. Todos os personagens falham naquilo em
que mais se destacaram. A mulher, na beleza; os homens, na filosofia e na política. Brás, por
não se destacar em nada, sai do espetáculo da vida discretamente. Aproveitou o máximo que
pôde. Gastou e viveu o luxo permitido por sua condição. Fugiu de todas as responsabilidades.
Insatisfeito, do outro lado, decide-se pela permanência do lado de cá – no livro.
Se no começo era evidente a arrogância do narrador, o final representa o seu inverso.
Sem ironias, a sinceridade parece permear as últimas frases, muito mais que em qualquer
outra parte do texto. O tom irônico, de zombaria, perde-se porque a morte invade todos os
espaços. O narrador deixa de falar sobre seus últimos dias para desviar o nosso olhar para o
fim de outros personagens. Lobo Neves, Quincas Borba, Eulália, Marcela, dona Plácida.
Todos morrem, servindo suas mortes para demonstrar o resultado do teorema da miséria
humana. Para que, então, ter filhos, se pensarmos no destino deles de fracassar? Para
conquistar algo na política e morrer antes mesmo de alguém que não conquistou quase nada?
Ou ser traído pela esposa e tornar-se alvo da chacota pública, até não saber qual é a verdade
dos fatos? Ou ser uma pessoa bonita, atraente e morrer, cedo ou tarde, na deformidade de uma
doença, ou ainda, por fim, viver, sofrer, servir apenas para a alegria das outras pessoas, sem
nunca desfrutar de verdade das alegrias da vida?
Brás Cubas, já no velório de Lobo Neves, entende a incomensurável derrota para a
morte. Resta a ele tentar ludibriá-la com a publicação de suas memórias. É este o seu legado
que, por acaso, é o legado de nossa miséria. Só o é por ser o retrato do fracasso humano em
135
todos os níveis, para todos os sexos e idades. Todos são vítimas da voracidade de Pandora.
Encontramos na obra exemplos para cada caso de idade, classe social dos personagens
retratados, menos os escravos. De qualquer forma, a seriedade do final contraria o humor. A
sinceridade é o oposto da farsa de um livro que não se preocupa com o seu leitor. A humildade
brota da junção apreciativa da sinceridade e da seriedade. O estilo espalhafatoso de citações e
alusões acaba e resta-nos apenas a opinião livre de rodeios do escritor-defunto.
Antes de passar para o falso falecido Mattia Pascal, estamos diante de mais uma
semelhança entre ambos. Há uma mudança de atitude do “defunto-autor” Brás Cubas e o
mesmo acontece com o “falecido”. Pela razão de seus supostos autores terem de conquistar
primeiro a atenção do leitor, ambos fazem uso retórico da dúvida na introdução de seus
relatos, terminando com a opção de reforçar uma certeza que foi exposta durante todo o livro.
Brás Cubas fez o devido uso da dúvida na apresentação do seu poder como narrador. Em sua
decisão pesou a irreverência em assumir o desprezo e a zombaria que atinge o leitor, a ponto
de desobedecer ao processo comum de começar pelo começo. Depois, afirmou a sua com toda
a certeza, falsa, atitude de nobreza de não ter tido filhos para sofrerem no mundo.
Em FMP, o elemento da dúvida dissolve-se no problema da identidade. O narrador
começa o discurso do seu triste caso, afirmando: “Uma das poucas coisas e, talvez mesmo, a
única que eu sabia ao certo era esta: que me chamava Mattia Pascal. E dela me aproveitava”
(PIRANDELLO, 1970, p. 9). Depois, o romance conclui-se com uma fala: “ – Ora, meu
caro... Eu sou o falecido Mattia Pascal” (PIRANDELLO, 1970, p. 279). Entre o início e o fim,
haveria uma mudança na definição do narrador, feita por ele mesmo na sua forma de
identificar-se.
O elemento central na temática do romance – saber quem ele é para si mesmo e para
os outros, pensar naquilo em que ele se tornou – apenas muda de aspecto. Do “eu me chamo”
inicial ele se transforma no “eu sou” final. Sem contar que, tal como Brás Cubas, se no
começo o ponto de partida era a dúvida, agora, no final, o ponto de destaque é a certeza. No
seu caso, a certeza de quem ele realmente é no mundo simbólico da vida. Só assim ele
entende ser possível a autodefinição. Na verdade, apenas a aceitação da máscara que ele
assume resulta no poder de se identificar. No mais, “Mattia Pascal, transformado em
„falecido‟ e excluindo de si a possibilidade de viver da persona, transforma-se em
personagem” (LUPERINI, 2008, p. 65, tradução nossa) e aí adquire a chance de viver na
realidade dos outros, no cotidiano da alteridade. Esse convívio é o único meio de sobreviver,
sem cair na total negação com o absurdo. Ou Mattia Pascal vive esse absurdo da negação e
interpreta a figura do falecido, ou ele não existe. Na segunda opção, a incoerência seria bem
136
maior do que se ele vivesse a primeira alternativa.
Fazendo o trajeto do início ao fim do narrador no livro, todo o problema da existência,
envolto agora na vida de morto, acaba por alcançar o nível do reconhecimento da identidade.
A capacidade de nomear-se esbarra na impotência de encarar-se e dizer quem ele é. É isso o
que o narrador propõe nas primeiras linhas do romance. A essa certeza serão somadas as
constantes possibilidades de mudança a impedirem-no de encontrar um desenho de sua
personalidade. A única forma de chegar a uma definição será viver na morte, porque a morte
exonera-o de qualquer mudança (a não ser a decomposição física). A opinião de Luperini a
respeito da transmigração da persona para o papel de personagem sugere a deficiência da
descrição moralística e física. Se esses itens descritivos são insuficientes, a solução tem de ser
buscada na descrição humorística, sendo esta uma resposta metafórica perante o mundo
desumanizador da realidade.
Paralelamente à transformação do estado para identificar-se, duas consequências
surgem do efeito imediato do discurso póstumo, em FMP. Ele vive uma mentira (ele está
morto) e é ele mesmo que oficializa essa mentira (ele agora é um morto), elevando-a ao
patamar de verdade. Ambas funcionam como indicativos aceitos da fuga do mundo decadente.
Falar a verdade resulta em um modo de interpretar. A percepção particular expressa nas
reviravoltas da verdade protegeria o narrador, ao viver no discurso. E aí chegamos a uma
aproximação dele com o nosso terceiro narrador.
A primeira e a última frase da narrativa das memórias, tanto de Mattia Pascal quanto
de Pascual Duarte, permitem que os olhemos pelo viés do inconformismo decorrente da luta
da sobrevivência. A permanência da tese de vítima social nos dois, diferencia-os de Brás
Cubas, que apregoa ser bom (pelo menos por ter tido um ato nobre, embora hipócrita), não
tendo filhos. Mesmo com o fingido ato de humanismo, em momento algum na conclusão do
livro ele declara que precisa resolver seu problema insolúvel para ser livre e usufruir dessa
liberdade.
Em FMP e em FPD, as primeiras e últimas frases criam esse embate entre o viver de
acordo com os preceitos morais da sociedade burguesa e viver livremente. O “eu sou” do
primeiro enfatiza o direito à existência. Mas o dilema existencial não é suficiente. A
autenticidade não permanece apenas na maneira de afirmar-se perante os outros. Ela se
amplifica na maneira de afirmar o seu direito de viver como deseja. Daí envolver-se em uma
mesma equação o ser e o (tentar) viver do personagem.
O relato confessional de Pascual Duarte começa com a frase “Eu, senhor, não sou
mau” (CELA, 1986, p. 15). O último parágrafo inteiro resume-se a uma única frase. E esta é
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dita depois de, nos parágrafos anteriores, o narrador descrever a sensação de alívio na fuga
após matar sua mãe: “Podia respirar...” (CELA, 1986, p. 138).
Em seu devido destaque, começo e fim narrativos aparentam fazer parte do plano do
narrador em se mostrar inocente. Esse propósito coaduna com o fato de Pascual remeter seus
escritos ao nobre don Joaquín. Perante esse panorama, o isolamento das frases nos lança o
desafio de pensar na negativa inicial e em sua motivação. Há uma acusação implícita (Pascual
é culpado) e algumas conclusões genéricas (se Pascual é culpado, logo deve ser condenado; se
condenado, ele o é por que razão? Se é por várias razões ou crimes, então Pascual é mau e
assim por diante).
Como a leitura dessas memórias representou a sua defesa, a frase final testifica o
alívio e demonstra, nele, o encontro momentâneo com a liberdade que Pascual deseja. Vê-se,
nessa situação, que é apenas no final que Pascual consegue respirar, sentir-se aliviado. Todo o
decorrer dos passos revividos do narrador está envolto pelo sentimento da angústia. Na
comparação das duas frases, Pascual não apenas narra a sua vida, o seu caso, mas apregoa o
direito de ser livre. Em sua tese de defesa, ele parte da acusação implícita e assume no final o
desejo expresso no sentimento de liberdade e pára por aí, interrompendo sua narrativa sem
chegar a tocar na morte do nobre, por razões, talvez, do planejamento escritural.
A interrupção sem motivo aparente das memórias de Pascual Duarte indicia algumas
possibilidades imediatas. De todas, vale destacar o fato de chegar o dia da morte de Pascual e
ele não poder continuar. Ou talvez ele interrompa a narrativa no propósito de não chegar à
morte de don Jesús porque já se sabia em sua época sua motivação ou porque ele mesmo
entende que não pode justificar o injustificável. Essa interrupção força o leitor a fazer um
panorâmico levantamento de dados. Por que o relato termina em sua mãe e não na figura de
don Jesús? Por que ele, antes do início, antecipa o relato com a informação sobre don Jesús e
não com alguma menção sobre sua mãe?
A resposta desenha-se na hipótese da tentativa da destruição dos traços temporais. A
morte da mãe resulta em ato semelhante ao encontrado em FMP. Ela é o elo com o passado.
Pascual tende a querer eliminar essa época. Por sua vez, a morte de don Jesús prende-se ao
presente e aponta para o futuro. Ela é a condição do tempo vindouro. Superar o nobre iguala-
se, no raciocínio do camponês, ao direito de viver, porém ele jamais pode admitir isso. Se ele
confessa, toda a tática defensiva (que consiste em se aproximar da vontade de abandonar o
passado, destruir o presente e construir seu futuro, sem falar abertamente sobre seus motivos
ocultos nos intentos contra pessoas “boas”, que no caso são ricas), seria desperdiçada. Para
ele, seu grande problema tem suas bases na pobreza.
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Diferente dos outros dois narradores por virem de lares abastados, o nome Pascual é,
ainda em uma primeira leitura, um nome comum e o sobrenome Duarte não tem realce por si
próprio e está, por isso, impossibilitado de chamar a atenção. O sobrenome também é um
nome familiar comum. A soma dos dois mais o caso de vida do narrador é o que o fará
reconhecido. No tocante ao nome, mesmo que comum, a construção de sentido ocorre pela
confluência da imagística religiosa. No entanto, como nada no livro é inocente ou casual, a
relação de significância deverá ser e será ampliada na razão do nome.
Recorrendo a Ítalo Calvino, um romancista que também buscou teorizar a prática
autoral na ficção, em um estudo bastante sucinto e prático, Mondo scritto, mondo non scritto
(2002), com um título muito sugestivo, “Nomes e personagens”, ele esclarece que, para os
nomes dos personagens, existem (pelo menos) dois grandes grupos: um é o grupo dos nomes
simples, “quase números para distinguir um personagem do outro” (CALVINO, 2002, p. 8,
tradução nossa). O outro é o grupo dos personagens que tem um “poder evocativo”, “uma
espécie de definição fonética dos respectivos personagens” (CALVINO, 2002, p. 8, tradução
nossa). O escritor italiano opta pelo segundo grupo, ao considerar que, “ligado a ele, [o nome
do personagem] adquire todo um significado especial” (CALVINO, 2002, p. 9, tradução
nossa), em vez de originar-se o significado principal da trama diretamente dele, explicitando
por demais a opinião do autor efetivo, podendo, seguindo apenas essa tendência, ver nele a
verdade esclarecida, quando levadas em conta apenas suas circunstâncias semânticas
originais, e não as que podem assumir no decorrer do romance.
Com o aspecto de querer contrariar em um primeiro momento a tendência de esconder
no nome um direcionamento temático, ao pensamento de Calvino pode somar-se a essa
relação de significação, no caso dos romances, um segundo momento, no qual encontramos o
sentido da evocação direta da imagem que o nome insinua.
Em FPD, a morte encontra-se nos nomes, desde a pretensa dedicação das memórias.
Como já sabemos, Pascual mata don Jesús e não se sabe o motivo, tendo apenas no
levantamento de provas a oportunidade de formulação de hipóteses.
Pensando nisso, haveria, escondida nos nomes, uma tese de significação contra o
narrador. Pascual deriva de Páscoa. Segundo a tradição judaica, era o momento de oferecer
em sacrifício um animal, na maioria das vezes, uma ovelha, para remissão dos pecados, tendo,
por outro lado, a função de reafirmar o pacto com Deus, na instituição do governo teocrático
do povo de Israel nos tempos do Antigo Testamento. “Ao evocar o sacrifício da ovelha que
este nome representa, Pascual era a ovelha negra apropriada para incitar a consciência pública
sobre as perversidades na Espanha” (CHARLEBOIS, 1998, p. 11, tradução nossa). Visto à
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beira do cumprimento da sua pena de morte, este seria o seu holocausto. Pascual não fala
dessa forma, mas podemos encontrar nele a figura da ovelha, consoante a citação de
Charlebois. Mesmo não percebendo (e essa é uma grande possibilidade) Pascual paga pelos
seus erros com sangue, e o derramamento de sangue da ovelha é condição básica para a
efetivação do intento simbólico remissivo, de acordo com as exigências das leis judaicas de
outrora. Pela lógica simbólica, caso haja essa aproximação, Pascual precisa pagar pelos seus
graves erros. Ele tem de sacrificar algo. O problema é que o único meio sacrifical encontrado
(não por ele, é claro, embora ele admita ser justo, pelo menos, no início do livro) é ele
próprio.
Outro aspecto de aproximação com a Páscoa judaica está no efeito rememorativo que
esta causa naqueles que, por tradição, foram libertos de um destino de dor e sofrimento. Há,
na morte do narrador, a aplicação desse efeito. Charlebois (1998) relaciona o lado simbólico
do nome à provocação histórica que culminaria na morte de mais de meio milhão de pessoas,
confrontando a parcela esquecida da população, trazendo à luz da história os renegados
sociais. Reconhecido em larga escala, o caso de Pascual Duarte, em vez de proclamar um
pacto de justiça, revela no ato convencional um suposto sentimento público de (in)justiça.
Ademais, a Páscoa não é um evento apenas do mundo hebraico. Segundo a tradição
cristã, Jesus morre durante a realização desse evento para redimir, pela ressurreição, o ser
humano em geral do status de pecador, de ser mau. No romance, don Jesús é morto por
Pascual, invertendo a finalidade sacrifical da história bíblica. Em vez de salvar, a morte do
Jesús nobre condena. Ao observar outro aspecto religioso, relacionado à Eucaristia, o
pronunciamento da frase “Em memória do insigne...” vem ao encontro do raciocínio aqui
tecido, uma vez que os cristãos, na comunhão da Santa Ceia, tomam o pão e o vinho,
símbolos metonímicos, e pronunciam a frase “em memória de Cristo”. Novamente a relação
de inversão ocorre, e a memória do Jesús nobre revalida a condenação. A afirmação de
casualidade no lugar de causalidade ganharia muita força, se a dedicatória não fosse
simplesmente feita a don Jesús. Aqui, cabe-nos fazer a seguinte pergunta: por que o foco da
dedicatória foi don Jesús e não don Joaquín?
A persistência na tese da significação dos nomes justifica-se e intensifica mais o valor
do texto, sobretudo quando pensamos no hábito – comum nas culturas de influência espanhola
– de as pessoas darem a seus filhos nomes de personagens sagrados na religião católica. São
muito importantes nessa relação, e servem de agravante, os nomes de origem religiosa de
mais dois dos cinco integrantes da família de Pascual Duarte, além do dele próprio. Fora
Mário, o irmão deficiente, o pai se chamava Esteban; a irmã, Rosário. Da mãe desconhecemos
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por completo o nome. Da mesma forma, ignoramos a razão de esse nome ser omitido no
relato, visto ser ela a segunda vítima mais importante da narrativa. De tanto Pascual falar mal
da mãe, das suas atitudes, do seu baixo nível de respeitabilidade, podemos presumir o ódio
como impedimento da pronúncia do nome dela.
Além dessa dificuldade imposta ao leitor, a de não saber o nome de um participante
influente na história de Pascual, merece destaque também outra atitude do personagem: na
luta para se mostrar como vítima, ele deixa de incluir nas memórias informações de valor
imprescindível. Além de não dizer o nome da mãe, também não fornece muitos detalhes do
dia do assassinato de don Jesús. Sendo o livro o relato de uma vida inteira, não parece ser
mero esquecimento o fato de o nome da mãe não ser mencionado, assim como não poderia ser
um simples descuido deixar de incluir na narração o dia da morte – da qual Pascual participa
– do mais influente proprietário da região.
Se por um lado Pascual aparenta não querer que o leitor saiba o nome de sua mãe,
Cela (1986) nos proporciona, por outro, uma situação bastante significativa no texto. O nome
da segunda esposa de Pascual, embora sem referência religiosa, alcança a órbita das relações
de significação do romance, logo nos momentos decisivos de planejamento de como eliminar
a figura materna. Por representar algo positivo, o sentimento impresso no nome da mulher
contrasta com os passos do narrador na direção de não mais poder fugir do destino e da
vontade de eliminar a mãe. Após sair da cadeia, Pascual, por solicitação da irmã, casa-se com
Esperanza. Esse nome deveria sinalizar uma reviravolta no destino do desconsolado narrador,
no momento em que ele busca afeto materno e uma nova vida. Quando Pascual deveria
acreditar em tempos melhores, termina por achar mais conveniente agir para encurtar o seu
sofrimento, neutralizando o que ele achava um empecilho para sua forma de compreender a
felicidade (sem ninguém para impedi-lo ou confrontá-lo). Pascual não tem esperança de que
uma nova vida vá chegar por si própria, algum dia. Ele espera, pelo contrário, ao fazer o mal,
determinar em seu favor a construção de um tempo mais digno.
Ainda sobre essa questão, o dualismo contrastante no jogo dos nomes integra a rede de
significações em outro ambiente, fora da instância familiar. Orientado pela influência da lei e
da igreja no mundo espanhol de então, o âmbito social do final da vida do protagonista
presencia a participação de dois personagens, peças-chaves para o desvendamento dos
acontecimentos derradeiros. O padre capelão Santiago Lurueña, responsável pela confissão e
pela extrema unção, é um dos responsáveis por elucidar os últimos dias da vítima-assassina
Pascual Duarte. O outro, o guarda civil, chama-se Cesáreo Martín e exerce a mesma função
narrativa. Se um relembra os santos e um dos discípulos de Cristo, o outro relembra César, o
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grande imperador de Roma. A religião remete à lei divina, e esta chega como apelação para a
redenção do pecador. A presença de Roma antiga no nome de Cesáreo sugere a lei jurídica, o
código romano e, a partir deste, o caminho é a condenação do culpado. Entre os dois limites
– religioso e jurídico – temos a emissão de dois pareceres. Um justifica, o outro condena.
Na realidade dos outros dois romances, a tese da significação do nome tem proporção
diversa e não exerce tanto valor, a ponto de influenciar com bastante intensidade o discurso
póstumo. Os nomes Brás Cubas e Mattia Pascal têm um sentido especial para o entendimento
da obra, mas não acentuam, em sua expressividade, diretamente o discurso póstumo.
De Brás Cubas, qualquer pessoa pode pensar na sua origem, no quanto o seu nome se
parece com as letras iniciais de Brasil.84
E aí, pela lógica simples, encontraríamos a indicação
do modelo ideal de um brasileiro da época. Schwarz afirma que a “descoberta” alusiva (Brás-
Brasil) é de Gledson, embora o crítico (Gledson) praticamente não “escreveu sobre Brás
Cubas” (SCHWARZ, 2000, p. 75, grifo do autor). No desejo de comprovar a assertiva,
Schwarz é quem procura detalhar essa leitura proposta, alertando antes que ela pode
transformar “o romance em alegoria política” (SCHWARZ, 2000, p. 74) e que “o risco de
arbitrariedade nesse tipo de decifração naturalmente é grande” (SCHWARZ, 2000, p. 76). Ele
ainda comenta que “a charada histórica é uma presença importante na obra machadiana” e que
“é imprescindível levá-la em conta, sob a pena de desconhecer a razão de grande número de
pormenores” (SCHWARZ, 2000, p. 76).
Se for verdade, além do nome, o sobrenome do personagem é ainda mais significativo,
a ponto de amplificar a rede de ponderações sobre a figura do narrador. O sobrenome Cubas
deriva de um objeto comum, de uso serviçal, afeito às mãos escravas. “Como este apelido de
Cubas lhe cheirasse excessivamente a tanoaria”, era melhor recriar os fatos e propagar que “o
dito apelido fora dado a um cavaleiro, herói nas jornadas da África, em prêmio da façanha que
praticou, arrebatando trezentas cubas aos mouros” (ASSIS, 1960, p. 114). Assim, o “apelido”
representativo de algo com baixo valor se alça para um nível não só rico mas até heroico. O
nome familiar para o lar abonado espelha o desejo aristocrático de se destacar no meio dos
outros pela superioridade do novo valor de significação, agora positivo.
A tal “façanha” de arrebatar trezentas cubas remete à apropriação das riquezas alheias,
uma prática comum na época, com o perfil escravocrata ainda em voga no Brasil do Segundo
Reinado. Enriquecer com o trabalho dos outros era preciso; trabalhar, nem sempre. Cotrim, o
cunhado do protagonista, aproveita o tráfico de escravos para enriquecer. Brás não se
84
Scarpelli (2001, p. 57-59) também faz essa menção e ainda associa MPBC a uma tradição carnavalesca, tendo
como maior representante Cervantes e o seu Dom Quixote.
142
preocupa nem em crescer pelos próprios meios ou em aumentar a riqueza pela apropriação de
bens, pois, mesmo isso, ainda acarretaria esforço – e esforço não é bem o desejado pelos três
narradores.
A versão paterna da história das trezentas cubas acaba por ser uma forma de
apropriação por meio de um discurso “oficial”. Seu conteúdo legitima e projeta o direito de
viver a posse do fruto do trabalho de outras pessoas. O sobrenome Cubas resulta, assim, da
falsidade da conquista de um “cavaleiro” e “herói”. O desprendimento heroico do suposto
parente distante cristaliza-se no motivo particular do pai do protagonista, de criar meios de
gozar uma vida de privilégios, sugerindo grandezas e fidalguia desde o nome. A presença do
sobrenome aponta para esse aspecto, coparticipante também no discurso póstumo: no túmulo,
carrega-se a conquista de uma imagem definitiva e, para tanto, luta-se para se ter um retrato o
mais coerente possível. Caso bem mais próximo da ideologia do narrador em FMP, por
exemplo.
Mattia significa louco. Seu caso, logo no primeiro capítulo, mais parece um devaneio.
Quem morre duas, três vezes, em uma primeira leitura não pode ser uma pessoa normal, ou
seu discurso não é tão são assim. No começo do livro, Mattia é mais louco que outra coisa, e
as suas falas derivam do mistério dessa loucura de viver-morrer, ao mesmo tempo, fora da
realidade, por exemplo, de um livro feito por pessoas de orientação espírita. Mesmo assim,
seguindo a teologia espírita e comparando-a ao plano de elaboração do livro, esse retorno do
espírito não se confirmaria, porque seria necessária a materialização no corpo de outra pessoa,
em uma reencarnação temporária.
A prática de inverter os polos iniciais da narração no fim do romance acontece aqui
também, e temos a surpresa de encontrar, na alegação da última frase, parecendo loucura para
quem não leu todo o relato, a sua sensatez. Mattia adquire, pela exposição de um contexto
aparente de demência, um espaço valorativo na nossa mente, em razão da profundidade da
discussão sobre os valores existenciais. Sua loucura-sensatez conquista a vida na leitura. É até
difícil acreditar, pela excentricidade do caso de vida e dos comentários expostos na obra, que
ele será rapidamente esquecido pelo leitor. Da mesma forma, o injuriado Brás Cubas. E
também Pascual Duarte.
Por haver a vontade de possuir um retrato oficial conquistado com a morte, diante da
falsa realidade de morto de Mattia Pascal, sua imagem é construída, em parte, principalmente,
pelo sentido metafórico, na representação proposta pelo personagem de prestar homenagem a
si mesmo. Mattia visita sua sepultura, onde jaz um “pobre desconhecido que se matou na
Stía”, para, “de vez em quando”, levar “ao túmulo a coroa de flores” e ver-se “morto e
143
enterrado” (PIRANDELLO, 1972, p. 279). A consequência da estranheza da falsa
homenagem a si mesmo implica para ele a posição de auto-observador assumida no passado.
O ato memorialístico imprime no ego o fim aceito, mesmo que impróprio. A atitude in
memorian poderia representar o fim como “a morte e acabou”, mas apresenta ainda outro
aspecto. É outro o lugar em que a morte simbólica realmente se concretiza – o livro.
O respeito à morte, mediante o reconhecimento da despedida do corpo, é altamente
simbólico, exigindo em nossa sociedade uma série de preceitos, os quais constituem a base
ritualística do velório. A morte, seguida do rito de separação e do desaparecimento do corpo,
acarreta para os vivos algumas imposições, e a primeira delas é o posicionamento do corpo
fora do meio cotidiano das outras pessoas. Esse afastamento requer o desaparecimento físico
do corpo para a sociedade. O morto é alguém que não podemos mais ver, salvo no anseio da
memória. Isso quer dizer que se considerarmos o discurso dos três narradores-escritores um
indicativo da morte, é fato os narradores estarem nessa condição de afastamento específico.
Daí procurarmos agora, para entendê-los, o lugar final no túmulo real ou imaginário.
O cemitério, além de ser um local próprio para as homenagens, a exposição de
sentimentos reflexivos e o isolamento do mundo do trabalho, possibilita o pensar naqueles
que já partiram. A delimitação desse espaço faz-se um meio de evitar que a decomposição
corporal afete o dia a dia da sociedade. É fato que isso influenciou em grande parte a
localização dos cemitérios fora da cidade, às vezes em locais até bem mais afastados, longe da
visão das pessoas, quando estas caminham pelas ruas. O mal-estar causado pelo corpo
decomposto torna-o indesejado. Ao transferirmos esse fato para o discurso, é natural que a
fala dos narradores nessa posição fira a moral dos vivos. Se voltarmos a pensar na dedicatória
de Brás Cubas, perceberemos a decomposição física servindo como modelo de avaliação do
leitor.
O cemitério era (pelo menos no Brasil) um lugar destinado a servir de depósito de
corpos de indigentes, pobres e escravos. Havia outros lugares no espaço da cidade no qual se
costumava enterrar as pessoas de famílias ricas ou os membros de ordens religiosas. De modo
similar ao cemitério de indigentes, as igrejas cumpriam o mesmo papel de manter escondido o
corpo; porém, cabia-lhes, ao permitir ou não o sepultamento em seu interior, a pretensa honra
de dizer quem era nobre (quem está sepulto nas igrejas) e quem não era (sepulto em
cemitérios). Assim como o cemitério passou a ser chamado de “campo santo”, pela tradição,
as igrejas católicas também o são, quando em seu espaço existe forte ligação com os mortos,
tanto que em sua liturgia prepondera a morte como um dos temas religiosos de maior
destaque.
144
Os dois primeiros narradores têm em comum estarem em “campo santo”, meio
insepultos, além de não serem, ambos, pessoas de boa índole, louváveis. Brás Cubas é um dos
narradores indesejados, crítico fervoroso até do interesseiro orador de seu velório. Morre “às
duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869”, na “bela chácara de
Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos”, “era solteiro, possuía cerca de trezentos contos” e
foi acompanhado “ao cemitério por onze amigos” (ASSIS, 1960, p. 111). A sequência
expressa pela exatidão meticulosa, na ocasião da morte, reitera o potencial de um mesquinho
homem rico.
É provável que Brás Cubas depois de morto não haja abandonado o Catumbi, pela
razão de ali estar o primeiro cemitério a céu aberto do Brasil para pessoas ricas. A definição
“bela chácara”, dada à residência dele, destaca o ego do narrador. Revela, na proporção
devida, que ele não está mais preocupado em narrar do que em ostentar seu papel de rico.
Deixa entrever que o “descuido” em não falar do cemitério, mas em apresentar logo a
importância da sua pessoa, advém do seu apego aos valores terrenos e do seu desejo de glória,
da exaltação sua pelos vivos, tornando, é claro, desnecessário fazer tal alusão sobre o lugar da
sepultura, a sua moradia definitiva. O fino leitor, como representação, deve dispor da
informação de o nome do cemitério ser provavelmente Catumbi ou relacioná-lo.
Desde os primórdios da cristianização acredita-se na ideia da ressurreição dos mortos
no dia do juízo final e na preservação material da identidade. Sendo assim, a remissão dos
salvos permite a referência ao cemitério como campo santo, por manter em estado latente o
corpo das pessoas para esse tão importante dia. Na teoria cristã, toda igreja é santa, uma vez
que guarda nela a presença divina. A igreja de Santa Maria Liberal deve ser um campo santo
por essa razão, exercendo a função de lugar destinado ao descanso de parte dos cristãos
professos. O falso morto, o morto-vivo Mattia informa-nos da dessacralização da igreja,
rebaixada de seu posto religioso – espiritualmente “nobre”, de realização de atividades
eclesiásticas, como missas e aconselhamentos com os padres no ato da confissão – para ser
destinada a depósito de livros apenas, provenientes da doação feita pelo Monsenhor
Boccamazza, em uma localidade sem leitores. O rebaixamento da igreja a biblioteca, e da
biblioteca a depósito de livros, identifica-a como “igrejinha [...] fora de mão [...] dessagrada”
(PIRANDELLO, 1972, p. 10).
Se antigamente às igrejas coube o privilégio de permitir o enterro de pessoas nobres
em seu átrio, o narrador, enclausurado lá, assim o faz pela viabilidade de manter-se de alguma
forma ainda presente na realidade cotidiana da época. Trabalhando e descansando naquele
ambiente, fora dele, Mattia sofreria o mal da insustentabilidade de se relacionar normalmente
145
com outras pessoas sem a proteção e os benefícios do devido isolamento. Da sua posição
metafórica, presumimos que a significação ainda decorre da proximidade com a morte: se em
séculos passados igrejas funcionavam como cemitérios para pessoas especiais, agora, no
presente caso, a estadia de Mattia Pascal é garantida não por mérito pessoal, seja ele de
nobreza, santidade ou intelecto. Em nível bem abaixo, sua permanência é permitida e
condicionada pela desativação da capela para reuniões de cultos e atividades afins. A
dessacralização corrobora a presença do personagem. Só lhe é permitido estar em uma igreja
depois da condição de morto, quando o lugar deixa de ser um privilégio para a elite e torna-se
a única possibilidade de se resolver um problema prioritário para a comunidade de Miragno –
um morto não pode permanecer fora de um local próprio, sem sepultura. O antigo campo
santo passa a abrigar então um simples “vadio bem epistolado” (PIRANDELLO, 1972, p. 10).
Já não seria, portanto, sacrilégio algum uma igreja daquele nível ser habitada por um finado
homem nada arrependido de seus pecados.
Em síntese, comparados os dois primeiros narradores, temos uma sepultura concreta
para o primeiro e, para o segundo, apenas metafórica. No terceiro caso, temos a junção das
duas modalidades de sepultura, porém em sentido inverso do de campo santo. Pascual Duarte
já está morto antes mesmo de morrer. Ele assim está por ter desaparecido do círculo dos
outros. A cova, por processo de exclusão do corpo em decomposição, é imitada
antecipadamente pela cela pública de condenados à morte. Quando alguém é enterrado, ele
desaparece do nível aproximativo da visão. O preso Pascual some do convívio alheio e não
pode mais retornar, ele mesmo admitindo isso: “Estou agora pesaroso por ter errado meu
caminho, mas já nem peço perdão nesta vida. Para quê? Talvez seja melhor que façam comigo
o que está disposto, pois é mais que provável que se não o fizerem eu volte a reincidir no
erro” (CELA, 1986, p. 10).
Enfim, é bom repetirmos mais uma vez que confissões do fim são narrativas geradas
no fracasso. Não obstante, o livro tem um lado positivo, por permitir o encontro de diversos
tipos de pensamentos. Tanto que temos nesses romances a inserção do problema do olhar, que
é, para Bosi (2007), ao falar no olhar machadiano, uma espécie de engenharia literária, um
mecanismo originário de competência do autor efetivo. Como o autor efetivo textualiza em
um plano determinado diversos tópicos discursivos, cada um em sua peculiaridade, Iser
(1999) aproveita dessa complexidade para tratar do ponto de vista em movimento, uma
estratégia de proteção, agora, por parte do leitor. Se para Bosi o “Olhar tem a vantagem de ser
móvel, o que não é o caso, por exemplo, de ponto de vista” (BOSI, 2007, p. 10, grifo do
autor), para Iser “o leitor se move constantemente no texto, presenciando-o somente em fases
146
[exercendo o modo de apreensão em] sínteses [sendo que] a atividade sintética continua em
cada fase em que se move o ponto de vista do leitor” (ISER, 1999, p. 13). Tanto Iser (1999)
como Bosi (2007) alertam para a dificuldade de começarmos a ler já definindo uma posição
específica, arbitrária por sua específica composição. No universo de enigmas, a mobilidade do
leitor, percebidos todos os meandros narrativos, prescreve a dificuldade de adotarmos, em
razão de sua fixidez, um ponto de vista, porque, talvez, haja a possibilidade de ser esse ponto
de vista um pensamento viciado ou errôneo, parcialmente ou não. No entanto, faz parte do
jogo ver que o problema do olhar é também um requisito internalizado, uma parte atuante no
cálculo da sua elaboração.
E, aqui, terminamos falando do autor efetivo. É ele o responsável pela construção do
enigma e não é ele quem nos dá a resposta. Até deixa pistas, aponta os caminhos possíveis.
Mas o autor efetivo ultrapassa essas indicações e cria a dúvida ou as falsas verdades, as quais
são mesmo tendenciosas, com o leitor, talvez, inconsciente de sua incapacidade de enxergar
sequer outras alternativas.
Os três narradores-escritores, é verdade, mostram, cada qual à sua maneira, o fracasso
como resultante da incondicional finitude. Ela, por ser um dado da existência, é um mal
temido que a maioria das pessoas tenta de todas as formas adiar.
Pelo poder da ficcionalidade, o livro de memórias vira uma alternativa para vencer o
inimigo comum (Brás representa-o na figura de Pandora): a morte. É interessante olhar para o
ideal do livro, bem como para o seu narrador-escritor. Em termos literários, ele precisou
escrever e agora e sempre precisa ser lido. Ele está em uma sepultura e luta, com as palavras,
para permanecer no imaginário do leitor. Todo o seu esforço pode ser em vão, se ele viver
apenas dentro do livro, outra espécie de sepultura. Uma biblioteca é, em si, um cemitério de
milhares de livros-sepulturas esquecidos.
A humanização, talvez uma teoria do humanismo presente em cada romance, seja
mesmo o grande intento dos autores efetivos de, audaciosamente, romperem as fronteiras da
realidade histórica de suas épocas, a fim de valorizar o princípio básico do desejo e
necessidade da realização integral das pessoas (pelo menos satisfatória) diante de um mundo
devastador de individualidades. As confissões do fim são relatos subjetivos, retratos, acima de
tudo, do desejo de viver. São formadas por conjunções que representam assim diversos temas,
todos envoltos na necessidade desesperada de escrever. Imagens de nós, seres humanos, os
narradores-escritores seguem fielmente seu calvário em cada leitura nossa: reconhecemos
neles algo que está em nós, como bem mostra Bontempelli, ao falar dos personagens
pirandellianos: “Na realidade, todas aquelas pessoas [personagens] não estão totalmente
147
prontas para a morte, penam porque não se sentem bastante vivas” (BONTEMPELLI, 2004,
p. 818, tradução nossa).
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