Transcript

1

CHRISTIANA ARRUDA LEE DA ROCHA

O LIVRO COMO OBRA-DE-ARTE: CRITRIOS TERICOS PARA CONSERVAO DE OBRAS RARAS

2

CHRISTIANA ARRUDA LEE DA ROCHA

O LIVRO COMO OBRA-DE-ARTE: CRITRIOS TERICOS PARA CONSERVAO DE OBRAS RARAS

Monografia apresentada Universidade Estcio de S como trabalho final do curso de PsGraduao em Gesto e Conservao de Bens Culturais, selecionado pelo Programa Nacional de Apoio Pesquisa da Fundao Biblioteca Nacional para receber bolsa de produtividade em pesquisa.

Rio de Janeiro / Brasil 2008

3

Para minha Me, Phrygia, que me ensinou a pensar; meu Pai, Jorge, que me ensinou a fazer; e minha filha, Julia, para quem eu penso e fao tudo na vida.

4

AGRADECIMENTOS

Quando decidi retornar ao ambiente universitrio para o curso de Ps-Graduao, 17 anos aps minha formatura, percebi como estudar importante, no s para o conhecimento mas tambm para a alma. aprender coisas novas, como quando somos crianas e tudo uma descoberta que pode mudar nossa vida. Terminado meu curso, comecei uma pesquisa que parecia promissora mas foi, porm, interrompida por alguns percalos e decepes. Isso tambm faz parte do aprendizado. Quase abandonei este trabalho. Contudo, o ano em que freqentei as aulas foi de imenso valor para mim; assim, decidi termin-lo, em reconhecimento ajuda que recebi de diversas pessoas algumas das quais no cheguei a conhecer pessoalmente e, acima de tudo, ao meu esforo de superao. Em primeiro lugar, quero agradecer a Phrygia Arruda filsofa, psicloga, comunicadora, terica do patrimnio carioca e, o que no poderia ser melhor, minha me pelas dicas, livros, textos, idias, conhecimento e, principalmente, pelo exemplo. Agradeo a Liamara Leite, que sempre acreditou no meu trabalho; s idias iniciais de Marcello Rosauro; a Cristina da Costa Viana, minha primeira professora de encadernao; ao apoio de Ana Virgnia Pinheiro e sua esclarecedora entrevista; s oportunidades dadas por Daisy Ketzer; ao inestimvel incentivo de Alessandra Gibelli; a Jos Aguilera, que me indicou caminhos novos; s explicaes de Raquel Lima; a Jurandir Santos, que trabalhou em dobro para que eu pudesse terminar a minha pesquisa; especial recepo de Ernesto Berger (in memoriam), que, sem me conhecer, ofereceu uma aula de encadernao inesquecvel; a Rizio Bruno Sant'Ana, pelo papo no jardim do Museu da Repblica, no Rio de Janeiro; s entrevistas de Marisa Garcia de Souza, Norma Cassares, Orlando Okanishi e Thays Pessoto; reviso precisa de Tereza da Rocha; s dicas de portugus de Carlos Alberto Guimares; a Clara Passi, que traduziu partes do texto para o ingls; e em especial a Kuka, minha orientadora, que, com seus conselhos, me ajudou a dar um rumo diferente a esta monografia. queles que, de diversas partes do mundo, responderam prontamente a meus e-mails, muito obrigada: Gary Frost e Joyce Miller, fundadores da Iowa Book Works, nos Estados Unidos; Maria Lusa Cabral, adjunta de Direo da IFLA, em Portugal; ao pessoal da revista The New Bookbinder, em Londres; e aos ensinamentos da conservadora chilena Paula Len. Meu carinho especial a Karla Prado, pelo apoio, a amizade e as correes iniciais do texto. A Julia Lee, minha filha, que, apesar da pouca idade, me esperava chegar da aula todos os sbados, sem cobrana alguma. E, finalmente, a Fred Bailoni, meu marido, pelo apoio, compreenso, pacincia, dedicao, amor. Enfim, tudo. A todos agradeo cada colaborao, por menor que tenha sido. Este trabalho no seria possvel sem vocs.

5

A gente passa, os livros ficam. Jos Mindlin

6

SUMRIO

LISTA DE IMAGENS ......................................................................................................... 8

INTRODUO ................................................................................................................... 9

AS MUDANAS NA SOCIEDADE EUROPIA .............................................................. 12 A era medieval .................................................................................................................... 12 O Renascimento .................................................................................................................. 14 A transio para o Barroco .................................................................................................. 15 O perodo dos exageros ....................................................................................................... 17 O incio das revolues burguesas ....................................................................................... 17 A Revoluo Francesa ........................................................................................................ 19 O Neoclassicismo ............................................................................................................... 20 O Romantismo .................................................................................................................... 21

AS TEORIAS DA RESTAURAO ................................................................................. 23 A definio de Patrimnio Histrico ................................................................................... 23 Viollet-Le-Duc ................................................................................................................... 24 John Ruskin ........................................................................................................................ 26 Camilo Boito ...................................................................................................................... 27 Alos Riegl ......................................................................................................................... 29 Cesare Brandi ..................................................................................................................... 30

A HISTRIA DO LIVRO E DA ENCADERNAO ........................................................ 32

ESQUEMA DAS PARTES DO LIVRO ............................................................................. 41

A LIVRO COMO OBRA RARA ........................................................................................ 42 Obra rara na Biblioteca Nacional ........................................................................................ 45

7

CRITRIOS PARA CONSERVAO DE OBRAS RARAS ............................................. 46 Obra rara como objeto de arte ............................................................................................. 46 O livro de artista ................................................................................................................. 47 Conservar ou restaurar? ...................................................................................................... 48 Imaterialidade e materialidade ............................................................................................ 50 O esprito e o corpo do livro ................................................................................................ 51 Limites da restaurao ........................................................................................................ 53 Teoria e prtica ................................................................................................................... 55

CONCLUSO .................................................................................................................... 59

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 60

ANEXO I - IMAGENS ....................................................................................................... 63

8

LISTA DE IMAGENS

Figura 1 Pintura rupestre da gruta de Altamira, Espanha Figura 2 Inscrio safatica sobre basalto do sculo IV, Am, Jordnia Figura 3 Pequena placa sumeriana da Provncia de Telo, Mesopotmia, datada de 2360 a.C., que se encontra no Museu do Louvre Figura 4 Faxmile de livros de rolo japoneses Figura 5 Livros em folio japoneses Figura 6 Imagem de monge copista escrevendo em folha de pergaminho Figura 7 Modelo etope similar aos primeiros modelos com capa de madeira Figura 8 Livro com capa de madeira e laca Figura 9 Brevirio italiano de 1396 Figura 10 Livro italiano com correntes de 1360 Figura 11 Exemplo de livro bolsa do sculo XIV Figura 12 Encadernao italiana de 1471 em pergameta e brocado com ferragens Figura 13 Encadernao italiana monstica do sculo XV, com pastas de madeira coberta com couro e cantos e roseta central em metal Figura 14 Exemplar da Bblia de Mogncia da Biblioteca Nacional e detalhe do colofo Figura 15 Encadernao francesa de 1500 coberta com couro de vitela e detalhes em ouro Figura 16 Modelo francs do sculo XVI encadernado com marroquino e decorado com mosaico em ouro, preto e amarelo Figura 17 Encadernao francesa com decorao de mosaico e laca de 1505 Figura 18 Modelo dentele de 1521 Figura 19 Capa de couro italiana de 1555 com impresso a seco e laca Figura 20 Exemplos de cortes decorados do sculo XVI Figura 21 Brevirio alemo do sculo XVI, com capa de madeira coberta com couro alumado Figura 22 Modelo armorizado do sculo XVIII, com armas da Coroa portuguesa e cercadura Em dourado Figura 23 Bblia hebraica do sc XVIII em prata Figura 24 Capa romntica milanesa de 1817 Figura 25 Outo modelo romntico de 1806 Figura 26 Encadernao em papel carto de 1818 Figura 27 Encadernao artstica francesa de 1896, com capa decorada com motivos art nouveau Figura 28 Encadernao com modelo alemo Bradel de 1925 Figura 29 Capa em tela bordada de 1927 Figura 30 Modelo Espinosa Figura 31 Modelo Paper Case

9

INTRODUO

Este trabalho resultado de um ano de pesquisa e tem como objetivo discutir os critrios que servem como modelo para restaurao e conservao de livros antigos, partindo do pressuposto que esses objetos podem ser considerados bens culturais e, como tais, devem ser preservados para futuras geraes como memria das diferentes culturas. Iniciada a pesquisa, foi necessrio buscar referncias bibliogrficas que tratassem de assuntos relativos conservao de livros, em especial livros raros. Foram investigados temas como a histria do livro e da civilizao moderna e tcnicas de restaurao, entre outros. Contudo, no que se refere s teorias de restaurao, pouca nfase era dada conservao de livros. Fala-se sobre a necessidade de preservar edifcios histricos e de sua importncia para a civilizao; da conservao de pinturas, que reproduzem hbitos de determinadas pocas; da grandiosidade das esculturas. A preservao de livros antigos raramente mencionada, mesmo em textos que tratam da histria do livro, da escrita ou da encadernao. As Cartas Patrimoniais so documentos resultantes de reunies internacionais que estabelecem normas e procedimentos relacionados preservao e conservao de bens culturais no mbito global. A primeira delas, a Carta de Atenas, foi assinada em 1933 e tratava basicamente da importncia de preservar os monumentos culturais. Em 1972, foi publicada pelo Ministrio da Instruo Pblica da Itlia a Carta do Restauro, que tratava especificamente da normatizao de intervenes em obras de arte por meio de instrues para salvaguardar e restaurar bens culturais. Apresentava uma srie de anexos que indicavam procedimentos especficos para objetos arqueolgicos e obras arquitetnicas, pictricas e escultricas. Porm nada era dito especificamente sobre a conservao de livros, apesar de algumas resolues genricas poderem ser aplicadas a esses objetos de natureza to peculiar. As teorias de restaurao foram disseminadas ao longo dos anos, pois estavam impressas em livros, e, para que aquelas escritas no sculo XVIII fossem conhecidas por conservadores do sculo XXI, foram necessrias aes que garantissem a integridade desses objetos que so extremamente frgeis. O mesmo ocorreu com livros de histria, literatura, poesia, religio, entre outros. Ento, no deveriam os livros ser considerados patrimnio cultural da civilizao? O termo patrimnio tem uma srie de definies. A mais simples delas est no vocbulo patrimnio do Dicionrio Aurlio (item 4):

10

Bem, ou conjunto de bens culturais ou naturais, de valor reconhecido para determinada localidade, regio, pas, ou para a humanidade, e que, ao se tornar(em) protegido(s), como, p. ex., pelo tombamento, deve(m) ser preservado(s) para o usufruto de todos os cidados. Uma interpretao literal desta definio pode conferir aos livros importncia semelhante que dada a elementos de arquitetura, escultura e pintura. Os livros tiveram vrias formas at chegar estrutura atual. No incio, eram simples tabletas1 de argila, utilizadas pelos povos da Sumria, sucedidas, em diversas civilizaes e pocas, por uma grande variedade de materiais. Seu contedo tambm mudou ao longo dos sculos: a princpio eram ideogramas que representavam contas relativas produo agrcola e dados da organizao social e, mais tarde, com o desenvolvimento da escrita, passaram a contratos e leis, at chegarem a poemas e tratados de filosofia, medicina etc. Essa evoluo no uso de materiais se deu paralelamente histria da humanidade. As sucessivas mudanas de suporte para a escrita esto diretamente ligadas ao desenvolvimento de tcnicas usadas para dar perenidade ao contedo desses materiais. Essa evoluo ocorreu ao mesmo tempo em que surgiram inovaes tecnolgicas, decorrentes do crescimento intelectual do homem. At a Idade Mdia, os livros eram confeccionados e escritos mo, tcnica dominada por uma minoria formada por monges escribas. Seu alto custo de produo lhes conferia um carter elitista, j que grande parte da populao sequer sabia ler e no possua recursos para adquiri-los. Quando Gutenberg desenvolveu a prensa de tipos mveis, na metade do sculo XV, os livros passaram a ser impressos de forma mecnica e em larga escala, o que facilitou seu acesso e, conseqentemente, possibilitou a difuso da cultura. Este fato causou uma revoluo, permitindo que uma parcela maior da populao tivesse contato com a educao. Fernando Bez, em seu livro Histria universal da destruio dos livros, afirma que o livro d consistncia memria humana (BEZ, 2006, p. 24), uma vez que nele podemos encontrar dados prticos e subjetivos sobre a histria da humanidade. No mesmo texto, Bez descreve alguns episdios de devastao de bibliotecas inteiras como a de Alexandria, no sculo II a.C., ou a de Bagd antiga regio da Mesopotmia, bero do livro , decorrente da invaso americana ao Iraque, em 2003. No por coincidncia, muitas dessas destruies tm relao com a ocupao de uma regio por outros povos, que apagam os traos da cultura local. Nesse caso, o livro se transforma em objeto de representao do poder que a informao1 O uso da palavra tableta, para indicar o primeiro suporte de escrita conhecido, seguiu a indicao de Fernando Bez, que se baseou no original tablilla, em espanhol (BEZ, 2006).

11

confere queles que detm seu conhecimento. Destruir livros significa destruir a identidade de uma civilizao e, com isso, impor a do invasor. Juntamente com as artes e a arquitetura, a preservao de livros antigos diz respeito necessidade de se conservar a memria do que culturalmente representativo para um determinado povo e, conseqentemente, para toda a humanidade. Hoje, os contedos dos livros podem ser reproduzidos em mdias eletrnicas e na Internet, mas o objeto com suas caractersticas especficas tambm deve ser preservado, pois transmite informaes igualmente significativas. Bibliotecas existem para salvaguardar livros, cabendo aos bibliotecrios, curadores e conservadores mant-los por meio da utilizao de tcnicas fundamentadas em teorias de restaurao, permitindo que esses objetos estejam acessveis pesquisa. Como, ento, interpretar e aplicar teorias que tratam de coisas to diferentes dos livros a esses objetos que possuem caractersticas extremamente especficas? Com o objetivo de discutir e elucidar esta questo, foi necessria uma pesquisa sobre movimentos sociais e culturais que levaram a civilizao at o mundo moderno e mudaram a relao do homem com a arte. A partir desses aspectos, seguiu-se o estudo das teorias de restaurao a fim de definir os princpios norteadores da conservao contempornea de livros antigos e, conseqentemente, a definio do que obra rara e sua importncia como patrimnio cultural. Um pequeno histrico sobre a origem do livro e a evoluo das encadernaes completa este trabalho.

12

AS MUDANAS NA SOCIEDADE EUROPIA

O sculo XIV foi o ponto de partida para que as noes ligadas restaurao se tornassem uma cincia e objeto de estudo de diversos intelectuais ligados s artes. Esses conceitos comearam a se delinear com o fim da Idade Mdia e o surgimento do Renascimento no final deste sculo, perodo caracterizado pelo interesse das elites nas culturas clssicas, e se firmaram com os ideais nacionalistas da Revoluo Francesa. Nesse perodo, que se estendeu at o final do sculo XVIII, houve significativas mudanas na sociedade, a partir de movimentos revolucionrios que deram incio Idade Moderna. Seguindo uma viso esquemtica da histria europia, podemos dividir esse perodo traando um paralelo com os principais movimentos sociais e artsticos que surgiram na Europa, centro econmico e cultural nessa poca e ponto de partida de onde o pensamento contemporneo se espalhou para o resto do mundo. Vistos em seqncia, mostram claramente a evoluo da humanidade e sua capacidade de transformar o mundo.

A era medieval

Podemos dizer que a Idade Mdia teve incio com a queda do Imprio Romano, no sculo V (476 d.C.), atingindo seu apogeu no sculo XIII, com a consolidao da Europa catlica como centro do mundo. Os pensadores cristos decidiram aprofundar os estudos da f religiosa, responsvel pela unidade do continente, e, a partir do sculo IX, desenvolveram a principal linha filosfica medieval, conhecida como escolstica. A escolstica combinava valores de ordem espiritual e elementos de filosofia, tendo como questo central a harmonizao entre f e razo. Os pensadores da Idade Mdia reconheciam a importncia do conhecimento e a autonomia da razo para obter respostas, mas defendiam uma subordinao f, acreditando que esta tinha capacidade de restaurar a razo humana. Os pensadores mais importantes desse perodo foram Agostinho, no sculo V, e Toms de Aquino, no sculo XIII. A arte medieval tinha, predominantemente, um foco religioso, fundamentado no Cristianismo, e muitas vezes era financiada pela Igreja ou por pessoas ligadas ela. Essa arte era utilizada como meio de propagar os princpios religiosos entre a populao composta basicamente por camponeses iletrados. Enquanto os conceitos artsticos da Grcia antiga eram fun-

13

damentados na perspectiva, a pintura medieval passou a ser bidimensional e estilizada, retratando personagens em menor ou maior tamanho, de acordo com sua importncia na sociedade. Este carter era prprio dos artistas medievais que, ao enfatizar o aspecto simblico da vida, demonstravam maior preocupao em representar mensagens sobre religio por meio de imagens claras e didticas, em vez de usar o realismo. Com a invaso dos povos brbaros, a populao se refugiou no campo e, assim, os nobres mandaram erguer castelos com grandes muralhas de pedra, extremamente frias no inverno. Para manter o calor interno dos castelos, cobriam o cho e as paredes com imensas tapearias, a mais importante manifestao artstica do perodo, que apresentavam motivos que registravam cenas religiosas. Foram construdas diversas igrejas e catedrais em estilo romnico e, mais tarde, gtico, caracterizado pela austeridade e objetividade das construes. As constantes guerras acabaram por destruir documentos e tratados cientficos clssicos, restando apenas verses resumidas e deturpadas traduzidas para o latim. A cultura medieval passou, ento, a concentrar-se nos mosteiros. A Igreja Catlica foi, alm do Imprio, a nica instituio que se manteve slida e sustentou sua fora intelectual por meio da vida monstica. Os clrigos eram grandes estudiosos que dominavam diversas reas do conhecimento, porm estavam mais preocupados com a f e a salvao das almas do que com questionamentos relacionados ao universo metafsico. A Idade Mdia foi o perodo que propiciou o renascimento urbano e comercial, o crescimento econmico e intelectual que seriam desenvolvidos nos sculos seguintes. Foram fundadas as primeiras universidades Paris, Coimbra, Bolonha e Oxford e diversos documentos em lngua rabe e grega foram traduzidos para lngua verncula, 2 tornando o conhecimento do mundo antigo novamente disponvel para os eruditos europeus. Houve progressos na Astronomia, Matemtica e Medicina, e inovaes tecnolgicas, como a inveno da prensa mvel de Gutenberg, em 1448. Na agricultura, a criao de ferramentas propiciou o desenvolvimento do setor. A inveno das caravelas e da bssola e o desenvolvimento de mapas tornaram possvel a expanso comercial europia e, com as grandes expedies martimas, a descoberta de outros continentes.

2

Lngua verncula aquela prpria do lugar onde se est, nacional (FERREIRA, 1999).

14

O Renascimento

No sculo XIII, o comrcio martimo cresceu principalmente entre as cidades mediterrneas e o Oriente. A Itlia, que ainda no existia como nao, foi uma das regies que mais se desenvolveu com essa atividade, favorecendo o enriquecimento de algumas camadas da burguesia e o crescimento de algumas cidades. Surgia um novo modelo de vida urbana, que mudou e intensificou as relaes sociais em seu cotidiano. nesse cenrio que surge, no sculo XIV, o Renascimento, movimento cultural que marcou a transio da Idade Mdia para a Moderna e estava diretamente ligado ao desenvolvimento comercial das cidades italianas, em especial Florena, de onde se difundiu para todos os pases da Europa Ocidental. Caracterizou-se pelo interesse dos acadmicos italianos pelos princpios do Classicismo que considerava a cultura clssica greco-romana o modelo a ser seguido pela sociedade contempornea. Assim como os gregos, o homem renascentista pregava o antropocentrismo, valorizando ideais ligados ao ser humano e admitindo que este podia desenvolver-se intelectualmente em todas as reas do saber. Os renascentistas desprezavam a Idade Mdia, associada barbrie e ignorncia em oposio afirmao racionalista de que tudo poderia ser explicado pela razo. Essa foi a poca do experimentalismo, que permitiu o desenvolvimento da cincia a partir da observao e do estudo da natureza. O belo passou a ser cultuado e os artistas criavam obras apenas pelo prazer que isso poderia proporcionar ao espectador e a ele prprio. Essa nova concepo de vida afetou diversas reas do conhecimento e foi responsvel por uma profunda transformao econmica, poltica, religiosa, cultural e social que caracterizou o fim do Feudalismo e deu incio sociedade burguesa. O homem renascentista passou a ser independente e rompeu com a tica crist medieval que, at ento, no permitia o enriquecimento individual. No plano cultural, o Renascimento valorizou o individualismo refletido na burguesia emergente e nas novas relaes de trabalho que afirmavam a idia de responsabilidade de cada um pela conduo da prpria vida, fazendo opes e manifestando-se sobre diversos assuntos. Esses aspectos no significavam que o homem deveria isolar-se, mas que, mesmo vivendo em sociedade, poderia tomar decises individuais. A arte medieval era caracterizada pela austeridade e climas soturnos e representava o mundo de forma sbria por meio da escurido presente na pintura e na arquitetura. Como expresso maior do sentimento do homem, as artes tambm foram influenciadas pela nova forma de pensar do Renascimento. A era das trevas deu lugar era da luz. A forma de repre-

15

sentar a natureza, onde o espao, a luz e especialmente o homem eram reproduzidos com fidelidade, permitia a incluso de cenrios arquitetnicos e uma maior naturalidade e realismo das imagens. Os ideais da arte renascentista eram fundamentados em princpios matemticos, com rigor esttico e harmonia, mas tambm integrava o cristianismo esttica clssica, considerada pag pelos cristos mais severos, a partir da viso da natureza como criao mxima de Deus e elemento mais prximo da perfeio. Estimulados pelos ideais da mitologia clssica, os artistas passaram a desenvolver um estilo prprio para expressar seu pensamento, introduzindo o individualismo na arte renascentista. O uso de novos suportes, como a tela e o cavalete, permitiu ao artista se deslocar para fora do ateli e, juntamente com o descobrimento de novos materiais, como a tinta a leo, possibilitou maior variao de textura e cor, substituindo gradativamente tcnicas como a tmpera e o afresco. Os grandes representantes dessa gerao de artistas foram Giotto, Botticelli, Rafael, Leonardo da Vinci e Michelangelo. Na arquitetura, o Renascimento caracterizou-se pela ruptura com a arte medieval, e passou a se basear no Classicismo e no Humanismo. Os arquitetos adotaram uma nova atitude em relao sua arte, tornando-se profissionais independentes, com um estilo inspirado na interpretao pessoal da arquitetura clssica e da beleza considerada modelo de perfeio nas artes e na prpria vida. Na literatura, o Renascimento destacava a personalidade individual, utilizando novos estilos literrios, como ensaios e biografias. Alm disso, os escritores passaram a adotar lnguas vernculas, como o francs e o italiano, no lugar do latim, que era comum na literatura medieval. Foi nesse cenrio que O prncipe, de Nicolau Maquiavel, foi publicado. Escrita em italiano, a obra apontou novos questionamentos sobre o lugar do homem no mundo e suas relaes sociais.

A transio para o Barroco

No sculo XVI, o Renascimento j havia se transformado em um movimento europeu, precursor do capitalismo ocidental, por meio do racionalismo econmico e da valorizao do homem e sua histria, tendo iniciado sua decadncia quando ocorreram as primeiras manifestaes do Maneirismo, ou Anti-Renascimento, e a Contra-reforma crist. O termo vem da expresso italiana a maniera de ( maneira de), referncia s marcas individuais que os artistas imprimiam em suas obras. As belas-artes no mais obedeciam s

16

propores estabelecidas pelos tratados clssicos, mas nelas era possvel reconhecer o estilo de cada artista. A arte maneirista apresentava efeitos como alongamento desproporcional das figuras humanas e ponto de vista inusitado, influncia da liberdade estilstica conquistada nos anos anteriores. Enquanto o Renascimento foi um movimento italiano que se espalhou para os demais pases europeus, o Barroco teve suas origem na Pennsula Ibrica e estava intimamente ligado s mudanas da Igreja Catlica. Por volta de 1580, a Espanha invadiu o territrio portugus e se tornou o centro poltico e cultural da regio. Numa reao Reforma protestante, que pretendia moralizar a corrompida Igreja Catlica, os reis cristos consideravam a reforma eclesistica crucial para a restaurao do Estado e da Igreja. Foi um perodo marcado pela recuperao do esprito religioso e teocntrico, caracterstico da Idade Mdia. Porm, depois do Renascimento, com avanos cientficos como os estudos de anatomia, o homem passou a ter conscincia do seu lugar no mundo e deixou de acreditar que tudo era obra de Deus, sendo o perodo marcado pela dualidade entre o divino e o humano. Por outro lado, o Barroco representava uma vontade de libertao de regras, tratados e preconceitos intelectuais e formais que sustentaram essas mudanas. O termo Barroco oriundo da lngua portuguesa e significa prola de superfcie irregular, aluso ao fato de a arte barroca ter sido marcada pelo conflito entre o espiritual e o terreno. Os artistas tentaram representar esse sentimento em suas obras pregando o predomnio da razo sobre os sentimentos, fazendo uso de temticas de cunho religioso ou mitolgico que exaltavam o direito divino dos reis apoiados pela Igreja. Todas as belas-artes arquitetura, escultura e pintura estavam a servio da expresso barroca, com figuras sobrecarregadas, exageradamente ornadas e exuberantes, com grande liberdade de expresso. Outra caracterstica marcante foi o efeito de iluso: as pinturas de tetos e paredes das igrejas e palcios retratavam cenas extremamente realistas, que passavam a sensao de movimento ao explorar o jogo de luz e sombra. Os arquitetos utilizavam elementos retos e curvos para criar essa sensao de movimento, com uma srie de espaos exageradamente decorados com composies assimtricas, monumentais e, freqentemente, retorcidas que divergiam do equilbrio geomtrico da arte renascentista. A nobreza era freqentemente exaltada, assim como temas burgueses, principalmente nos Estados protestantes, e a grande produo de imagens religiosas servia de instrumento de divulgao do catolicismo. J a escultura barroca utilizava elementos de decorao, que serviam de complemento arquitetura, representados por imagens que pareciam vivas, cheias de expresses realistas, e utilizavam uma grande variedade de materiais para provocar essa sensao. As imagens eqestres e as esttuas de san-

17

tos so exemplos tpicos desse estilo. Os grandes artistas dessa poca foram Caravaggio, Rembrandt, Rubens, El Greco, Velzquez, Francesco Barromini e, no Brasil, Aleijadinho. A exploso da literatura foi marcada pelo antropocentrismo em contraponto ao teocentrismo que vigorava at ento. Os textos teatrais eram carregados de manifestaes religiosas, muito apreciados pelo povo. Diversas obras publicadas apresentavam temas polticos contrrios explorao do povo e corrupo do Estado e da Igreja.

O perodo dos exageros

Durante o reinado de Lus XV, por volta de 1700, quando o Barroco comeou a se libertar da influncia religiosa, surgiu na Frana o movimento artstico conhecido como Rococ, termo formado pelas palavras francesas rocaille (rocha) e coquille (concha). Caracterizava-se por associar diferentes tcnicas ornamentais e pelo abuso de elementos decorativos. Era uma arte repleta de curvas delicadas e fluidas, com figuras isoladas que equilibravam a decorao, enfatizando o conjunto no qual arquitetura, escultura e pintura se complementavam de forma harmnica. Os amplos espaos dos ambientes e as cores suaves davam um carter ldico s imagens utilizadas para representar os costumes de uma sociedade que buscava a felicidade e os prazeres mundanos, representando a futilidade da corte francesa que ignorava o fato de que a populao estava morrendo de fome ou por doenas causadas pela falta de saneamento nas cidades. Essencialmente decorativo, porm menos exuberante que o Barroco, o Rococ espalhou-se pela Europa adquirindo caractersticas prprias em cada regio, principalmente na ustria e Alemanha. Na Frana, onde surgiu, deixou de existir aps a metade do sculo XVIII, j que representava tudo o que era contra os ideais revolucionrios.

O incio das revolues burguesas

Os sculos XVII e XVIII foram marcados pelo progresso decorrente dos movimentos revolucionrios na Europa principalmente na Frana e na Inglaterra e por conquistas no campo das cincias e da filosofia que constituram uma verdadeira revoluo cultural chamada Iluminismo. Os pensadores iluministas defendiam o domnio da razo sobre a viso teocntrica da Idade Mdia, com o propsito de iluminar as trevas da sociedade medieval, como

18

havia sido feito no Renascimento. Acreditavam que o pensamento racional deveria substituir as crenas religiosas na soluo de questes at ento justificadas pela f. Partindo do lema Liberdade, igualdade e fraternidade, esse movimento foi mais intenso na Frana, onde serviu de base intelectual para a Revoluo Francesa no final do sculo XVIII. Os filsofos iluministas acreditavam ser o homem naturalmente bom porm corrompido pela vida nas cidades. Defendiam a formao de uma sociedade justa onde os cidados teriam direitos iguais e, por esta razo, lutavam contra as prticas mercantilistas, o absolutismo do rei e a dominao religiosa. No Antigo Regime, a sociedade era dividida em clero, nobreza, burguesia e trabalhadores da cidade e do campo. A burguesia havia progredido com a poltica mercantilista e se associara monarquia a fim de obter privilgios e desenvolver seu sistema econmico baseado em atividades comerciais e na propriedade privada. A burguesia tinha o poder financeiro, mas a monarquia ainda detinha o poder absoluto, podendo interferir na economia. Com o fim da monarquia, os burgueses conseguiram liberdade comercial para ampliar seus negcios, uma vez que foram extintos os privilgios do clero e da nobreza, assim como as prticas mercantilistas que impediam a expanso comercial da classe burguesa. O principal pensador desse movimento foi o ingls John Locke (1632-1704), que acreditava que o homem adquiria conhecimento com o passar do tempo. Outro exemplo significativo desse perodo foi a organizao da mais importante enciclopdia da Europa, chamada Dictionnaire Raisonn des Sciences, des Arts et des Mtiers, pelo filsofo e escritor Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond dAlembert (1717-1783), tambm filsofo e matemtico. Conhecida como o Livro dos livros, se propunha a reunir todo o conhecimento humano at ento, permitindo a difuso da cincia e tecnologia que se desenvolvia nessa poca. A Inglaterra tambm passava por uma srie de transformaes. At meados do sculo XVIII, a sociedade inglesa era baseada num sistema de produo artesanal, com a utilizao de poucas ferramentas. Os artesos trabalhavam em oficinas, sozinhos ou em grupos, e cuidavam de todo o processo produtivo da matria-prima comercializao. Com as mudanas tecnolgicas decorrentes do desenvolvimento cientfico, as mquinas comearam a substituir o trabalho manual e surgiram novas relaes de trabalho em que os artesos passaram a operrios que trabalhavam para um patro e no tinham mais controle sobre o produto final. Esse perodo foi chamado de Revoluo Industrial e marcou o fim da economia baseada em uma sociedade agrcola e artesanal, tornando o capitalismo industrial o sistema econmico vigente. Tinha como base o liberalismo econmico e a acumulao de capital e permitiu o desenvolvimento do comrcio entre as naes.

19

A Revoluo Francesa

A burguesia francesa j ocupava papel de destaque na economia de seu pas, mas no na poltica. Inspirada pelas idias iluministas, iniciou em 1789 um movimento revolucionrio de princpios liberais, democrticos e nacionalistas sem paralelo na histria. A Revoluo Francesa foi um episdio de caractersticas particulares que acabaria por tirar a aristocracia e a monarquia absolutista do poder, transformando o modelo sciopoltico vigente na Frana e, conseqentemente, em grande parte do mundo. Foi a mais importante revoluo burguesa e, juntamente com a Independncia dos Estados Unidos e a Revoluo Industrial iniciada na Gr-Bretanha, marcou a transio do mundo antigo para a idade contempornea, com sociedades capitalistas baseadas na economia de mercado. A monarquia francesa do sculo XVIII passava por uma grave crise poltica, reflexo do descontentamento do povo que vivia na misria diante dos privilgios e gastos excessivos da corte, que se mantinha no poder com o apoio do clero e da nobreza. Alm disso, atravessava-se uma grande crise econmica em conseqncia das inmeras guerras. No havia liberdade religiosa nem intelectual; os impostos eram cobrados de forma arbitrria; a administrao ineficiente; o Estado era deficitrio e apresentava-se em constante desorganizao fiscal. No campo, muitos trabalhadores eram livres, apesar de viverem massacrados pelo sistema feudal e assolados por impostos. Os camponeses sem terra eram forados a trabalhar nas propriedades dos grandes senhores, para pagar pelo uso das instalaes. Toda a estrutura agrria era obsoleta e no atendia s novas exigncias da populao que, com o progresso industrial e mercantil, se expandia e exigia o aumento da produo agrcola. A monarquia representava um obstculo ascenso da burguesia, classe mais rica e instruda da sociedade, que no se resignava com uma posio secundria na vida poltica. As idias provenientes do pensamento iluminista permitiam que a burguesia, principal interessada na revoluo, ambicionasse uma mudana na estrutura social que lhe permitisse maior participao na gesto do Estado, j que a m administrao das finanas pblicas afetava diretamente seus interesses. O comrcio e a indstria comearam a se desenvolver, refletindo as mudanas oriundas da Revoluo Industrial inglesa, apesar de a maior parte da produo industrial ainda depender do artesanato. Surgiram as primeiras fbricas e a classe operria cresceu, passando a reivindicar maiores salrios e melhores condies de trabalho. Porm, ainda no era capaz de se organizar para iniciar um movimento revolucionrio. Atrado pelas promessas de liberdade e igualdade, o povo apoiou a burguesia e aderiu causa revolucionria.

20

Sentindo-se ameaada, a nobreza esboou uma reao, mas a crise econmica se agravou e a soluo imediata foi suprimir privilgios e decretar igualdade fiscal. A Assemblia foi convocada pela primeira vez desde 1614 e contava ento com representantes das classes menos abastadas. O rei perdeu o poder sobre a administrao do Estado, constituindo-se assim o primeiro ato revolucionrio da nova Assemblia Constituinte. Os camponeses famintos tambm comearam a se rebelar, recusando-se a pagar impostos aos senhores da terra, o que levou a Assemblia a suprimir os direitos feudais. Dessa forma, foram dados os primeiros passos para a criao de uma Constituio, concluda em 1791, que institua, entre outras medidas, a Declarao Universal dos Direitos do Homem, a inviolabilidade da propriedade, a soberania do povo e a separao definitiva dos poderes. A burguesia se estabeleceu como maioria na Assemblia Legislativa e Administrava o Estado de acordo com seus interesses, restringindo o poder da realeza e a influncia das massas populares sobre o governo. Na verdade, a queda do antigo regime trouxe pouca vantagem para o operariado, que constantemente entrava em greve, o que ameaava os demais governos da Europa que passaram a apoiar a contra-revoluo. A burguesia, temendo as idias avanadas e radicais da populao, comeou a se agrupar em um "partido de conservao social", ao mesmo tempo em que a realeza perdia todos os seus direitos e riquezas. O rei Lus XVI, juntamente com sua esposa, Maria Antonieta, tentaram fugir do pas, mas foram descobertos e presos. Esse incidente foi de grande importncia, pois em 1792 consolidou o fim da monarquia e instituiu a Repblica, esta, sim, um marco absolutamente revolucionrio na histria da humanidade. A nova Constituio garantia o domnio da burguesia e ampliava seus direitos polticos e econmicos. O general francs Napoleo Bonaparte foi colocado no poder por essa classe dominante, com a misso de controlar a instabilidade social e implantar um novo governo burgus.

O Neoclassicismo

As mudanas radicais na poltica no final do sculo XVIII estavam ligadas ascenso da burguesia que, fortalecida aps as revolues Industrial e Francesa, assumia de vez a direo da sociedade europia. Nesse cenrio, surgiu na Itlia o Neoclassicismo ou novo clssico , movimento artstico e intelectual que resgatou os princpios clssicos da Renascena em oposio ao Barroco e ao Rococ.

21

Esse movimento era um reflexo dos ideais subjetivos, liberais, ateus e democrticos que resultaram da ascenso da burguesia, que tomou o lugar do clero e da nobreza como mecenas das artes, criando um segundo renascimento da Antiguidade. As constantes mudanas sociais dificultavam o surgimento de um novo estilo artstico e assim, arquitetos, pintores e escultores recorreram ao equilbrio da arte clssica para criar suas obras. A arquitetura foi influenciada pela descoberta das runas das cidades italianas de Pompia e Herculano e os novos edifcios, com formas clssicas e esttica racionalista, eram grandiosos e inspirados em templos gregos. Largas avenidas mudaram a paisagem das cidades a fim de comportar os novos edifcios pblicos, academias e universidades. A escultura neoclssica foi marcada pelo rigor e a pintura foi pouco explorada. Tinha como inspirao a escultura clssica grega e a pintura renascentista, exaltando elementos mitolgicos por meio de figuras rgidas e simples, desenhadas em posies fixas.

O Romantismo

O pensamento industrial provocou a diviso do trabalho e a especializao da mo-deobra; a burguesia europia, que ento participava do poder, lutava por uma sociedade mais harmnica, em que os direitos individuais fossem respeitados. Artistas e intelectuais desejavam se libertar das convenes acadmicas em favor da livre expresso individual, em oposio massificao imposta pela nova sociedade industrial. Esse sentimento foi expresso pelo Romantismo, movimento que valorizava a idealizao do mundo e cuja criao artstica era centrada no lirismo, no subjetivismo e nos ideais nacionalistas. Ao olhar para dentro, os intelectuais passaram a valorizar seus feitos e perceberam a necessidade de preservar o que era importante para si e para a cultura de seu povo. A palavra romantismo designa uma maneira de interpretar a realidade caracterizada por atitudes emotivas diante dos acontecimentos. Surgido na Alemanha, buscava o nacionalismo, que viria a consolidar os Estados europeus, por meio da representao de uma forma de ver o mundo oposta ao racionalismo do perodo neoclssico. Considerado inicialmente um estado de esprito, o Romantismo mais tarde se transformou em um movimento centrado no indivduo, no drama humano, em amores trgicos e ideais utpicos, denotando uma tendncia idealista, ou potica, que carecia de objetividade. Nas artes, foram poucas as inovaes estilsticas, prevalecendo o neoclssico e eventualmente o gtico, gerando o estilo neogtico. Os temas estavam centrados na busca de um

22

ideal sublime da realidade por meio da representao de fatos da histria nacional contempornea, revelando um dinamismo equivalente s emoes humanas. As pinturas apresentavam uma srie de emoes angustiadas em virtude do jogo de luz-e-sombra que acentuava os temas dramticos, fazendo uso de metforas, como na obra de Eugne Delacroix (1798-1863), A Liberdade guiando o povo, de 1830, onde o autor representou a Liberdade por meio da imagem de uma mulher carregando a bandeira da Frana em um campo de batalha. Essa figura apresenta um tom bem mais claro e iluminado do que o restante da pintura, de forma a valorizar o esprito revolucionrio.

23

AS TEORIAS DA RESTAURAO

O sculo XIX separou o mundo antigo do moderno. A industrializao de produtos e a nova ordem social determinaram uma ruptura com o passado, estabelecendo uma identidade individual e, conseqentemente, nacional. Surgiram idias liberais, inovaes tecnolgicas e o homem tomou conscincia do seu papel no prprio destino. A arte passou a ser considerada expresso do pensamento do homem e surgiu a necessidade de valorizar os monumentos e ambientes histricos resultantes dessa manifestao. Se a arte era o reflexo mais profundo das emoes humanas, ela deveria ser preservada como testemunho desse sentimento. Influenciados pelas mudanas sociais, e tambm pelos processos que levaram a essa nova maneira de pensar, muitos intelectuais ligados s belas-artes sistematizam suas idias e assim surgiram as primeiras teorias de preservao.

A definio de Patrimnio Histrico

A noo de patrimnio extensa: vai da idia de propriedade, de herana e de posse de bens pessoais ou no , at o que contemporaneamente definido como estilo de vida. Seu significado surgiu a partir do iderio nacionalista da Revoluo Francesa, que transformou populaes desprestigiadas em naes soberanas. O ideal renascentista de individualismo pode ser considerado o primeiro passo para o desenvolvimento da noo de bem cultural como representao das caractersticas inerentes a uma sociedade. Esse significado estendeu-se noo de bem comum para todas as pessoas e, conseqentemente, noo de identidade nacional. Como as naes se consolidam a partir de sua memria, existe a necessidade de se proteger a histria de um povo, estabelecendo o que hoje chamado de Patrimnio Cultural. Desde os antigos imprios, medidas administrativas j eram adotadas para proteger edificaes importantes para algumas sociedades. Mas foi a partir do sculo XIX que um pensamento mais estruturado comeou a ser formado e, no incio do sculo XX, posturas e legislaes mais abrangentes e concretas foram postas em prtica. Dentro desse novo conceito, podemos fazer uma distino entre patrimnio material e imaterial, ou intangvel: o primeiro diz respeito natureza fsica de edifcios, esculturas, quadros, mveis, acervos museolgicos, documentos, livros e outros objetos; o segundo mais

24

subjetivo, referindo-se a manifestaes culturais desses objetos como representao prpria dos costumes de uma regio ou conhecimentos considerados privilgio de alguns. Nestor Garcia Clanclini (1994, p. 95-96) afirma que: O patrimnio histrico-cultural de uma nao no abrange apenas edificaes e monumentos, ou sua tradio sociocultural, mas tambm seus bens culturais, tangveis e intangveis, como o conhecimento que produz, a documentao que registra esse conhecimento e suas formas de divulgao. As noes ligadas preservao do patrimnio histrico tiveram incio no sculo XIX, a partir do pensamento burgus de propriedade estabelecido com a Revoluo Francesa. Houve uma sistematizao de atividades de restaurao de monumentos destrudos pelas guerras, considerando que o patrimnio cultural podia resgatar um passado histrico a ser preservado. O desenvolvimento cientfico resultante das revolues do sculo XVIII criou toda uma nova gerao de intelectuais que, entre outros temas, passaram a pensar na preservao do patrimnio cultural. Eugne Viollet-le-Duc foi o primeiro a elaborar conceitos de conservao e restauro, seguido por outros tericos que apresentaram importantes idias para o processo de preservao e restaurao dos monumentos. Essas teorias serviram de diretrizes para a conservao, manuteno e restauro do Patrimnio Histrico mundial. Hoje, preservar a memria tornou-se uma obsesso que atinge todas as categorias do saber humano. H cada vez mais interesse pelos discursos relativos preservao do patrimnio seja arquitetnico e urbanstico ou ambiental, cultural, material ou imaterial.

Viollet-Le-Duc

Eugne Emannuel Viollet-le-Duc (1814-1879) foi arquiteto e um dos primeiros tericos da preservao do patrimnio histrico. Ao pensar o conceito moderno de restaurao, estabeleceu princpios para intervenes em monumentos histricos e uma metodologia para esse trabalho, ressaltando a importncia da investigao cientfica. Viveu na Frana psIluminismo, influenciado pelos ideais das revolues Industrial e Francesa, poca em que a restaurao comeou a se firmar como cincia. De origem burguesa, estudou arquitetura na Escola de Belas-Artes de Paris, mas interrompeu os estudos um ano depois, em 1831, para viajar pela Europa a fim de estudar os diver-

25

sos estilos de arte. Desenvolveu grande interesse pela arquitetura medieval e aprofundou seus conhecimentos de arquitetura clssica quando esteve na Itlia. Em 1840, mesmo sem experincia, Le-Duc foi indicado arquiteto da Comisso dos Monumentos Histricos da Frana, para dirigir obras de restauro de edifcios histricos. Em 1844, foi o vencedor do concurso para restaurao da Catedral de Notre-Dame, em Paris. Graas a seus projetos bem sucedidos, Viollet-le-Duc foi reconhecido por sua atuao no campo da restaurao, demonstrando grande conhecimento em arquitetura e construo, especialmente a gtica, sua preferida. Como terico, dedicou-se ao estudo do papel do arquiteto e suas condies de trabalho, elaborando documentos que descreviam detalhadamente tcnicas de arquitetura medieval e restauro, apostando em novas tecnologias de construo e na importncia da era industrial, sempre procura de um estilo arquitetnico apropriado ao sculo XIX. Acreditava que uma profunda anlise da estrutura original do edifcio era essencial para que um projeto respeitasse suas particularidades e assim concebia um modelo ideal de interveno. Fundamentalmente, seus projetos procuravam consertar os problemas existentes na construo, mesmo que isso significasse no respeitar as ptinas, ou marcas do tempo, e, em alguns casos, reconstituiu edifcios inteiros com um resultado completamente diferente do original. Em sua obra Dictionnaire Raisonn de lArchitecture Franaise du XIe au XVIe Sicle (1854-1868 apud VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 29), definiu o significado do verbete restaurao, que at ento no existia: (...) A palavra e o assunto so modernos. Restaurar um edifcio no mant-lo, repar-lo ou refaz-lo, restabelec-lo em um estado completo que pode no ter existido nunca em um dado momento. Para Le-Duc, o restauro deveria respeitar as particularidades dos edifcios, porm, ele prprio intervinha com base em modelos que considerava perfeitos e adequados e, em muitos casos, propunha solues que, em vez de respeitar a originalidade, seguiam um estilo que ele prprio determinava. At ento, os edifcios no eram restaurados do modo como feito hoje. Muitas vezes, eram abandonados at se tornarem runas, quando um novo era construdo, segundo interpretaes do original, porm sofrendo intervenes no estilo da poca. No comeo do sculo XIX, a Inglaterra e a Alemanha j utilizavam tcnicas de restauro e esses princpios chegaram rapidamente Frana. A Comisso dos Monumentos Histricos passou a seguir a metodologia que estabelecia critrios de interveno a partir de documentos que descreviam detalhadamente o monumento, sendo necessrio que o arquiteto responsvel tivesse amplo conhecimento de tcnicas e estilos. Para alguns, a restaurao era apenas uma uma moda (VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 30), j que defendiam a valorizao das obras medievais vista pelos estudiosos como o ca-

26

minho para a identidade nacional. Para Le-Duc, isso significava julgar um fato de considervel alcance um pouco superficialmente (VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 33). Seu interesse pela tecnologia fazia com que estivesse sempre frente de seu tempo. Defendia o uso da fotografia, recm-descoberta, como instrumento fundamental de trabalho, a fim de (...) fornecer relatrios irrefutveis e documentos que podem ser consultados sem cessar, mesmo quando as restauraes mascaram os traos deixados pela runa (VIOLLETLE-DUC, 2000, p. 68). Le-Duc levantou questes importantes para a restaurao como a documentao, a substituio de materiais e a recuperao estrutural de edifcios que deveriam retornar ao estado novo, sem sofrer alteraes em suas propores, por meio da substituio dos materiais por outros de maior qualidade: Nas restauraes, h uma condio dominante que se deve ter sempre em mente. a de substituir toda parte retirada somente por materiais melhores e por meios mais eficazes e perfeitos. (VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 54). Afirmava que o restaurador deveria ser um construtor hbil e experiente que conhecesse todos os procedimentos de construo, mas acreditava que o uso do edifcio era a melhor forma de conserv-lo. De certa forma, suas teorias foram visionrias, embora restritas diante das possibilidades da poca. Apesar da lgica e coeso de suas idias, o carter sentencioso de suas teorias e seus projetos foi muito questionado. Porm, aps sua morte, essas teorias foram revistas, comprovando a contribuio de seu trabalho para o restauro contemporneo.

John Ruskin

Contemporneo de Viollet-le-Duc, o ingls John Ruskin (1819-1900) era escritor, socilogo, crtico de arte e amante do desenho e da msica. Foi um estudioso da percepo e admirador da Idade Mdia. Seu pensamento estava relacionado subjetividade em oposio razo e ele acreditava que as doutrinas que surgiram nos anos anteriores deveriam ser submetidas observao e experimentao. Para demonstrar suas teorias, Ruskin fez uma srie de experimentos. Em um deles, analisou as pinturas de Joseph Turner (1775-1851), eliminou as linhas de contorno das figuras e manteve apenas as cores de fundo a fim de comprovar que os elementos se misturavam causando no espectador uma sensao de unidade e uma abstrao com significados individuais. Essas idias influenciaram o esprito da vanguarda do sculo XX, renovando a arte decorativa e influenciando movimentos como o Art Nouveau e, mais tarde, o Modernismo.

27

Era um purista e grande crtico da sociedade britnica e da massificao proveniente da industrializao dos produtos. Afirmava que neles no havia arte, uma vez que no havia envolvimento dos operrios com o processo produtivo, o que transformava os produtos em objetos impessoais sem significado. Seguindo essa mesma filosofia, Ruskin era absolutamente contra a restaurao de obras de arte, prtica que acreditava ser a real destruio dos monumentos. Era capaz de aceitar pequenas obras de consolidao para apoiar a parte degradada, mas, quando esse recurso perdia sua eficcia, conformava-se com a morte natural do monumento. Defendia a conservao como a melhor forma de preservar as edificaes, em oposio s restauraes que estavam sendo executadas na Frana por Viollet Le-Duc. A runa era o que importava, pois considerava ser o registro de uma cultura plena de significado histrico e por isso ligada percepo dos monumentos como documentos e no apenas como objetos materiais. Perceber, para ele, era ver uma verdade. Ruskin acreditava que a preservao das marcas do tempo nos monumentos era algo a ser valorizado como testemunho de vrias geraes, por gerar o sentimento de pertencimento que uma sociedade possui em relao a sua cultura. Essa viso romntica contribuiu para a salvaguarda de diversos monumentos histricos e centros urbanos, podendo ser considerada a primeira referncia aos conceitos de patrimnio material e imaterial.

Camillo Boito

O antagonismo entre o pensamento de Viollet-le-Duc e John Ruskin mostra claramente que a teoria da restaurao evoluiu a partir de opinies divergentes e extremamente radicais. Coube ao arquiteto e crtico de arte italiano Camillo Boito (1836-1914) a tarefa de interpretar essas teorias e ajust-las realidade social e intelectual do final do sculo XIX. Ele foi um dos mais significativos pensadores do restauro de bens culturais, legando uma importante colaborao cultura moderna da Itlia. Estudou arquitetura na Escola de Belas-Artes de Veneza e, como professor, procurou introduzir o estudo da arquitetura medieval, que considerava ser a mais autntica expresso artstica do pas e da qual era grande admirador. Foi grande responsvel pelo redescobrimento desse estilo arquitetnico valorizado pela pureza das linhas, que Boito acreditava ser inspirador para a nova arquitetura italiana. Escreveu diversos textos sobre o assunto e reconhecia o valor das teorias de Viollet-leDuc para a difuso dos conhecimentos de arquitetura. Foi o primeiro terico a fazer distino

28

entre restaurao e conservao, formulando princpios gerais para intervenes nas diversas artes, considerando as particularidades de cada tcnica. A Europa vivia uma exploso cultural e pases como a Frana e a Itlia buscavam uma identidade nacional a partir da valorizao da arquitetura e preservao de monumentos histricos. Boito, tambm influenciado pelo Romantismo, utilizou em seus trabalhos o conceito de beleza para defender o estilo lmpido e rigoroso na construo de edifcios, longe do excesso das obras oitocentistas que representavam outro estilo de vida. Seguindo o mesmo pensamento, Boito desenvolveu a atividade de restaurador em projetos de igrejas e palcios. Buscava uma unidade formal por meio da anlise da arquitetura do perodo, sempre amparado em uma detalhada documentao sobre o edifcio a restaurar. Considerava o restauro arquitetnico o mais complexo. Na escultura, defendia a no-complementao de lacunas; na pintura, afirmava que a interveno deveria ser mnima. Acreditava que todas as intervenes deveriam ser executadas de acordo com as caractersticas de cada obra, sem acrescentar ou suprimir elementos, mesmo fragmentos de intervenes anteriores. Boito admitia contradies em suas teorias, j que o restauro era um assunto novo, mas elas podem ser consideradas intermedirias entre o pensamento ps-revolues e a maneira moderna de compreender a restaurao de bens culturais. Em alguns aspectos, suas idias aproximavam-se das de Ruskin, principalmente em relao valorizao das runas pelo reconhecimento de sua beleza e a aceitao da presena de marcas histricas em uma obra. As runas deveriam ser mantidas como tal pela conservao do edifcio e no por meio de uma interveno profunda em que lacunas seriam acrescidas de novos elementos levando ao aspecto original, como defendia Viollet-le-Duc. Basicamente, sua forma de pensar a interveno sobre o legado do passado resultante de um equilbrio entre as proposies de LeDuc e as de Ruskin, ambas bastante radicais. (...) as obras de todos os sculos passados, as quais nos chegaram mutiladas, alteradas ou arruinadas, a nica coisa sbia que, salvo raros casos, nos resta a fazer esta: deix-las em paz, ou, quando oportuno, libert-las das mais ou menos velhas ou mais ou menos ms restauraes. (BOITO, [1884], 2003, p. 37) O medo de uma restaurao, por menor que fosse, fez com que Boito classificasse os profissionais da restaurao como perigosos, pregando o uso da conservao no lugar da restaurao que, quando absolutamente necessria, deveria ser mnima. O objetivo das intervenes no era deixar o edifcio novo nem transform-lo em algo diferente do original, mas mant-lo em seu estado atual e conserv-lo para as futuras geraes.

29

Boito acabou com a dicotomia existente na cincia da restaurao causada pelas diferentes teorias de Ruskin e Viollet-le-Duc, consolidando os princpios do restauro e contribuindo para a reflexo contempornea sobre o tema. Seu discurso representou uma evoluo nas teorias da restaurao que influenciou a normatizao dos procedimentos de restauro arquitetnico, resultando na assinatura da Carta de Atenas na Conferncia Internacional de Atenas de 1931. A Carta estabeleceu regras para a interveno em monumentos histricos e tambm se baseou na Teoria do Restauro Cientfico de Gustavo Giovannoni (1873-1947), que considerava o restauro arquitetnico uma interveno de consolidao, com o objetivo de recompor as partes faltantes e valorizar os traos remanescentes a fim de evitar a substituio.

Alos Riegl

Alos Riegl (1858-1905) foi um historiador da arte austraco pertencente Escola Vienense de Histria da Arte que, em 1902, foi nomeado responsvel pela conservao dos monumentos histricos da ustria. No ano seguinte, escreveu O culto moderno dos monumentos, obra que conferiu um novo significado ao conceito de monumento histrico, transformando a cincia da conservao em uma disciplina especfica que levantava questes relativas tutela e conservao de bens culturais e criou bases para que se estabelecessem polticas de preservao. Para Riegl, existiam dois tipos de monumento: os no-intencionais e os intencionais. Os no-intencionais seriam aqueles que foram construdos com fins especficos que acabavam por representar o senso comum de um povo. J os intencionais eram aqueles que tinham a finalidade de exaltar alguma caracterstica de uma dada sociedade, pois eram obras criadas pelo homem com o objetivo de expressar e conservar uma forma de pensar o mundo em determinada poca. Riegl afirmava que, em seu sentido original, o monumento mantm a memria coletiva de um povo: No sua destinao original que confere a essas obras a significao de monumentos; somos ns, sujeitos modernos, que a atribumos. (RIEGL, 2006, p. 43). Com o Renascimento, as obras da Antiguidade clssica foram valorizadas por seu carter artstico e histrico, e no apenas por representar a grandiosidade dos antigos. Para Riegl, os monumentos no possuem valor para a arte, e sim para a histria da arte. Tal valor surge do contraste do novo com o antigo, atribudo de acordo com um valor sentimental prprio do modo de percepo comum de um povo e no mais restrito aristocracia e aos intelec-

30

tuais. A partir desse pensamento, surge o conceito de cultura de massas, que passa a ser o modelo social predominante no sculo XX. A obra de Riegl consiste, em ltima instncia, em esclarecer o valor atribudo aos monumentos e definir meios para sua preservao.

Cesare Brandi

Cesare Brandi (1906-1988) um dos principais nomes do restauro moderno. Em 1966 escreveu a Teoria da restaurao, obra baseada nas diretrizes da Carta de Atenas, muitas vezes classificada como um texto terico e pouco prtico. Os tericos do sculo XIX e incio do XX se empenharam em classificar o que deve ou no deve ser restaurado com o objetivo de evitar que as intervenes pudessem causar mais danos do que o prprio tempo. Pensavam o restauro como uma cincia exata, com regras e mtodos cientificamente determinados, prevalecendo o carter histrico das obras. Aps a Segunda Guerra Mundial, diversos monumentos foram destrudos. Nesse contexto, Brandi teve grande destaque, participando do restauro de inmeras obras de arte; diante da falta de sistematizao de procedimentos, comeou a pensar no que seria sua Teoria da restaurao, com o objetivo de delimitar regras que embasassem a prtica do restaurador. Diante de tamanha destruio, o carter artstico no pde mais ser colocado em segundo plano, j que a fruio da obra-de-arte est relacionada observao de sua imagem figurativa somada ao carter histrico. este aspecto que diferencia a obra-de-arte de outros produtos da ao humana. Brandi afirmava que restaura-se somente a matria da obra-dearte (BRANDI, 2004, p. 31), j que o restaurador s atuar nesse nvel e uma obra se manifesta por meio da matria que, por sua vez, o que degrada. Conhecendo o objeto j em estado deteriorado, no possvel ter certeza de como havia sido quando novo, sendo necessria uma interveno baseada no estado em que se encontra quando restaurado e no no que se pensa ter sido seu estado original, o que levaria o espectador a incorrer em um erro de interpretao. Brandi chamou isso de falso histrico. Para Brandi, (...) a restaurao deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra-de-arte, desde que isso seja possvel, sem cometer um falso artstico ou um falso histrico, e sem cancelar nenhum trao da passagem da obra-de-arte no tempo (BRANDI, 2004, p. 33). Segundo suas teorias, as intervenes deveriam se guiar por uma crtica de valor em relao ao significado histrico do objeto, limitada pelo estado fsico em que se encontra a

31

obra-de-arte e sustentada por um vasto conhecimento tcnico, estilstico, filosfico e histrico, no podendo depender do gosto particular do restaurador. Ele estabeleceu ainda que as intervenes deveriam tornar os acrscimos facilmente reconhecveis, mesmo para um leigo, e que fossem reversveis, permitindo sua retirada em caso de uma eventual interveno futura. A principal marca da obra de Brandi o rigor crtico-cultural que situa o ato de restauro como responsvel pelas futuras interpretaes estilsticas e histricas da obra-de-arte. Se for executada sem critrios, a restaurao pode causar danos obra que iro perpetuar-se por vrias geraes. A partir dessas teorias, a preservao do patrimnio cultural, em suas diversas formas e aspectos, consolidou seu espao na sociedade contempornea, contribuindo para a democratizao no acesso e na fruio da cultura.

32

HISTRIA DO LIVRO E DA ENCADERNAO

O livro um objeto composto por pginas costuradas ou coladas por um dos lados e protegido por uma capa rgida ou flexvel, cujo contedo composto de texto manuscrito ou impresso, com ou sem imagens, formando um ou mais volumes que podem ou no fazer parte de uma coleo. Sob seu aspecto fsico, falar da histria do livro tambm falar da evoluo da escrita e das tcnicas de encadernao. O livro, como conhecemos hoje, o resultado de uma evoluo intelectual e tecnolgica que surgiu a partir da necessidade do homem de preservar informaes sobre sua vida cotidiana a fim de se comunicar com geraes futuras. Ao longo dos sculos seu contedo e forma foram modificados para garantir essa preservao. Foram utilizados diversos suportes para a escrita: ossos, pedras, tabletas de argila, tbuas de madeira, cera ou marfim e lminas de metal. A partir da era crist, o uso de materiais como tecidos, couro, ferro, bronze, papiro,3 pergaminho, papel de trapo4 e de madeira seguiu o desenvolvimento dos produtos manufaturados. Hoje, a alta tecnologia permite o desenvolvimento de CD-ROMS e e-books ou livros eletrnicos. Inicialmente expressa por meio de pinturas em cavernas, ideogramas e, mais tarde, alfabetos, a comunicao escrita remonta a mais de 4.000 anos. Os primeiros livros de que se tem notcia foram as tabletas de argila utilizadas pelos sumrios na Mesopotmia, regio considerada por muitos o bero da civilizao. Pequenas bases de argila cozida eram usadas como suporte para a escrita cuneiforme, assim denominada por se utilizarem objetos em forma de cunha para escrever. No incio, a escrita era uma srie de imagens que evoluram para smbolos e, mais tarde, para as letras. Os caracteres chineses foram os primeiros a serem criados, seguidos pelos hierglifos egpcios; por volta do ano 500 a.C., os gregos separaram vogais e consoantes, criando o alfabeto, mais tarde consolidado pelos romanos. Porm, bem antes disso, por volta de 3.500 a.C., os egpcios e hebreus utilizavam rolos, chamados de volumem pelos romanos, como suporte para a escrita.5 Eram formados por pedaos de papiro emendados, presos pelas extremidades e enrolados em uma vara de madeira ou osso com um rtulo feito em tiras em papiro que indicavam o ttulo da obra.3 4 5 Material produzido a partir da planta que crescia s margens do Rio Nilo. O caule era cortado em tiras que, depois de imersas no rio, eram sobrepostas cruzadas e prensadas, resultando num material fino prprio para a escrita. Papel feito a partir de tecidos velhos. Esses rolos so utilizados ainda hoje pelos judeus na confeco das Escrituras Sagradas.

33

Os rolos eram desenrolados conforme iam sendo lidos e o texto era escrito em colunas perpendiculares, podendo conter vrias obras, sendo ento chamado de tomo. Alguns desses volumes eram enrolados e introduzidos em um tubo e recebiam o nome de manuale, caracterizando o que podemos considerar a primeira forma de encadernao. Esses cilindros eram mais fceis de transportar e podiam ser guardados em caixas feitas de couro, cedro ou marfim. Os gregos utilizavam panos ou peles para proteg-los. Aos poucos, o tamanho desses rolos diminuiu at chegar a um formato retangular e plano, onde o papiro era dobrado em forma de sanfona e protegido por dois pedaos de madeira presos por uma extremidade. Chamados de cdice ou cdex,6 os volumes eram mais prticos e manuseveis que os rolos. Surgiram na Grcia como forma de codificar as leis e foram aperfeioados pelos romanos nos primeiros anos da Era Crist. Alguns textos gregos e romanos eram escritos em tbuas de madeira presas por um cordo em um dos lados, formando dpticos, trpticos e polpticos onde duas, trs ou mais tbuas eram unidas. Assim comeou o desenvolvimento do livro como objeto e, conseqentemente, o incio da arte de encadernar com o objetivo de conservar o livro por um perodo maior. Iniciada por volta do sculo I, essa prtica surgiu quando o cdice grego passou a substituir os rolos e os livros sanfonados. Eram manuscritos compostos de folhas dobradas ao meio reunidas em cadernos7 e costurados na lombada8 com nervos,9 permitindo que as folhas fossem escritas em ambos os lados. Originalmente, os cortes10 do livro no eram aparados durante a confeco do volume, o que ocorria posteriormente quando o texto era escrito. Por ser muito frgil e pouco resistente a dobras, o papiro comeou a ser substitudo por materiais mais firmes e duradouros como o pergaminho, utilizado pelos persas para registrar textos de grande importncia. O nome faz referncia cidade de Prgamo, na sia Menor (160 a.C.), onde a tcnica de tratamento do couro em geral, de cabra, carneiro, cordeiro ou ovelha , foi desenvolvida para tornar a pele uma superfcie lisa, sem plos e muito resistente escrita que era feita com penas e canios. Era um material caro, mas por volta do sculo V passou a ser utilizado com freqncia em toda a Europa. Como era propenso a ondular, os cadernos passaram a ser guardados entre duas chapas de madeira grossa que com o tempo eram presas com as pontas das tiras que formavam os6 7 8 9

Palavra em latim que significa livro ou bloco de madeira. Vem do termo italiano quaderni. Conjunto de folhas dobradas, encaixadas e costuradas na dobra. Um livro formado por diversos cadernos unidos entre si. Parte lateral do livro onde se encontra a costura dos cadernos que prende o grupo de folhas e que compe a capa do livro com as pastas; lombo, dorso.

Tira flexvel de couro, ou material com certa espessura, presa na lateral dos cadernos, formando um desnvel. 10 As trs laterais do bloco de texto denominadas superior (cabea), lateral (frente) e inferior (p).

34

nervos dos cadernos. Mais tarde, a madeira passou a ser coberta por um pedao de couro nico que unia as duas capas, ou pastas, pela lateral dos nervos, constituindo assim a lombada. O pergaminho formava cadernos de 4, 8 12 ou 16 pginas, chamados de folios, que unidos faziam o bloco de texto. Essas encadernaes possuam cabeceado11 mas no apresentavam folhas de guarda,12 o que s passou a ocorrer por volta do sculo XII. Encadernaes desse tipo eram geralmente utilizadas em obras eclesisticas e, como produto da era crist, substituram aos poucos o rolo, associado ao paganismo. Os livros eram confeccionados em monastrios, onde surgiu o ofcio da encadernao. Os monges copistas eram responsveis pela confeco dos textos manuscritos, em local de acesso restrito chamado scriptorium, onde havia uma diviso de tarefas: o armarius era responsvel pelos materias; os escribas transcreviam os textos; o rubricador inseria notas e ttulos; o iluminador ilustrava e fazia letras capitais. As encadernaes monsticas eram feitas, em geral, em pergaminho e apresentavam capas decoradas com desenhos geomtricos, lombadas lisas e planas, costura sem cadaros ou nervos e cabeceado feito mo. Com o crescimento do poder da Igreja, transformaram-se em verdadeiras obras de arte, com a utilizao de materiais nobres como pergaminho e veludo, ornadas com marfim, cobre e prata, incrustaes de pedras preciosas ou ouro macio, pinturas coloridas em esmalte e costuras com nervos. Como os livros eram guardados na horizontal, as capas apresentavam suportes em metal ou pedra, evitando o contato do volume com a superfcie e protegendo-o da umidade. O ttulo do livro ainda era escrito em etiquetas presas sobre a capa e utilizavam-se fechos nas bordas, tambm com o objetivo de evitar a ondulao do pergaminho e o acmulo de poeira, mantendo o livro bem fechado. As letras capitais e iluminuras13 eram na maioria das vezes nas cores azul, vermelho, dourado e verde, enquanto os textos eram em preto e, em algumas ocasies, vermelho ou azul. As encadernaes mais elaboradas eram geralmente usadas em evangelhos a fim de valorizar a palavra de Deus, o que se manteve at a Idade Mdia. Os monges foram responsveis pela preservao de textos como a Bblia e outros registros histricos. No sculo VI, os manuscritos, mesmo os mais comuns, passaram a ter encadernaes com couro estampado ou decorado com figuras fantsticas e simblicas, de influncia bizanti11 Detalhe de acabamento e reforo da lombada na cabea e no p do livro. Pode ser de alinhavo ou de tecido. 12 Folhas que forram a capa por dentro, coladas na parte interna das pastas (contraguarda) e que se estendem primeira folha do livro (volante) no incio e no final do livro. No contm texto, sendo de papel liso, marmorizado ou decorado. 13 Arte de ilustrar e a ornamentar manuscritos e incunbulos por meio da pintura de flores, folhagens, cenas bblicas e capitulares letra inicial em cores vivas, ouro e prata.

35

na, quase sempre apresentando 4 evangelhos nos 4 cantos e uma ilustrao no centro da crucificao de Cristo. Na poca carolngia, 14 marcada pelo renascimento da cultura ocidental, os livros apresentavam capas suntuosas. Foi o apogeu das encadernaes esmaltadas, misturadas com revestimentos metlicos, estilo influenciado pelos bizantinos que utilizavam figuras coloridas de santos e cenas sagradas, fazendo uma fuso entre minerais e cores vibrantes. No sculo X, a Espanha foi invadida pelos mouros e a tcnica de fabricao de papel, comum no mundo rabe, chegou ao Ocidente. Inventado na China no incio da era crist, era considerado um material de baixa qualidade e foi utilizado na confeco do miolo 15 de livros sem importncia. O pergaminho continuou a ser empregado em obras nobres e religiosas. As folhas de papel eram feitas manualmente, a partir de trapos de linho e algodo macerados, utilizando-se uma tela de fios de cobre como frma. Esse processo marcava o papel com pequenos fios horizontais e verticais, que formavam a malha da tela, e da nasceu a idia de criar desenhos com a marca do fabricante nas telas. Esses desenhos so denominados filigrana ou marca-d'agua. Por volta do sculo XII, o ofcio de encadernar deixou de ser exclusividade dos monastrios. Com a criao das universidades, surgem as primeiras oficinas onde os encadernadores se ocupam de uma nova demanda de livros menores, mais simples e leves. Aparecem as primeiras capas em papel-carto, e estas passaram a ser costuradas ao miolo, tornando o livro mais frgil. Surge a necessidade de reforar as extremidades com tecido de algodo ou seda. No sculo XIII, o couro era umedecido e decorado com relevo seco, tcnica absorvida da cultura oriental e adotada principalmente nos mosteiros, onde rosetas e caboches16 eram gravados com uma barra de ferro quente prensado sobre o couro. Esses ferros ficaram conhecidos como ferros monsticos, pois apresentavam uma variedade de desenhos inspirados em temas religiosos. Mais tarde, o bronze substitui o ferro na confeco de barras mais leves que permitiam a impresso manual com a utilizao de moldes menores. Esse modelo de encadernao tornou-se freqente na Itlia, mas cada regio da Europa seguia uma tendncia. Os espanhis, por exemplo, tinham influncia moura, utilizando decoraes com cordas retorcidas e combinaes geomtricas. Surgiram os primeiros livros de horas, que se tornaram bastante comuns nessa poca. So livros de leituras e oraes cotidianas, em diversos formatos, ricamente ornamentados com iluminuras e encadernao luxuosa.

14 Referente dinastia de Carlos Magno (742-814), rei dos francos e imperador do Sacro Imprio Romano do Ocidente. 15 Parte interna do livro, formada por folhas dobradas ao meio e costuradas. 16 Pedra preciosa ou no, talhada, comumente arredondada, polida, mas no facetada.

36

Apareceram os primeiros livros tabulares. Criados sculos antes na China, esses livros tinham em sua maioria temtica religiosa e suas matrizes eram feitas em blocos de madeira gravados o que permitia sua reproduo em srie com textos pequenos e muitas ilustraes destinadas populao pouco alfabetizada. Mas a grande inveno que mudaria a histria ocorreu por volta de 1448. Johannes Gutenberg (?1468), mestre grfico alemo e ex-ourives, nascido em Mainz (Mogncia), na Alemanha, desenvolveu a impresso com tipos ou caracteres mveis a partir da adaptao de uma prensa de produo de vinhos, que consistia em um suporte fixo e uma parte superior mvel presa por um parafuso grande. O texto era escrito com os tipos em metal dispostos em uma frma que, apoiada sobre a prensa, recebia uma camada de tinta e por cima a folha de papel ou pergaminho. A parte superior pressionava o papel contra os tipos, imprimindo o texto. A impresso tipogrfica feita nesses moldes sobreviveu at o sculo XIX. Catlico fervoroso, seu grande projeto pessoal foi a impresso da Bblia de Mogncia, um dos incunbulos17 mais importantes da Histria por se tratar da primeira obra impressa com tipos mveis a apresentar colofo, ou seja, registro de data, lugar de impresso e nome do impressor na ltima pgina. Eram impressos de forma a parecerem manuscritos, apresentando iluminuras feitas mo, com alto valor no mercado. Com a impresso mecnica, a produo de livros aumentou substancialmente, elevando a encadernao categoria de obra-de-arte. Cresce o nmero de atelis especializados que trabalham por encomenda de mecenas, biblifilos e colecionadores e os encadernadores passam a assinar suas obras. Simultaneamente, houve um aumento na produo de livro de menor importncia que eram impressos em papel, no justificando o uso de encadernaes to requintadas. As capas eram cobertas com peles menos nobres, como de lobo, raposa e gamo e cabrito, aplicadas sobre um suporte de madeira de cedro, com ferragens em metal comum. At essa poca, as encadernaes eram slidas, feitas para durar muito, porm pouco maleveis, sendo algumas to pesadas que praticamente no podiam ser transportadas. Assim surgiram os livros de bolso, muito consultados e dotados de uma encadernao leve em pergaminho ou pele fina, com uma correia que prendia na cintura. O livro-bolsa, comum entre as mulheres, era quase sempre um livro de oraes de pequeno formato, com ala do mesmo material que a encadernao, permitindo que fosse carregado como bolsa. A Itlia se tornou o pas onde o ofcio de encadernar mais evoluiu, aproveitando o surgimento de novas tcnicas como as rodas de dourao e o uso cada vez mais constante do papelo no lugar das tbuas de madeira, conferindo mais leveza s capas. A tcnica da doura17 Livros impressos com a tcnica de tipos mveis, ou seja, em meados do sculo XV at o ano de 1500.

37

o, trazida do Oriente, foi muito utilizada nas encadernaes renascentistas, sendo Aldo Manuzio o mais importante encadernador do perodo, com obras sbrias, com vinhetas ornamentais exclusivas, estampadas em dourado sobre o couro, permitindo a execuo de flores simtricos e variadas combinaes geomtricas. Foi o primeiro artista a pensar o livro como objeto de arte, criando o que hoje seria o design grfico. Na Renascena, com o desenvolvimento da tipografia, mudaram as encadernaes na Itlia, enquanto a Alemanha e a Frana mantinham as concepes e os costumes medievais. As capas possuam decorao com arabescos geomtricos e flores e as lombadas quase sempre apresentavam nervos. Muitos livros eram vendidos na brochura sem encadernao ou com capa flexvel para que pudessem ter encadernaes personalizadas. Os novos volumes podiam ser obras religiosas, profanas, textos antigos e contemporneos. As encadernaes ficaram mais refinadas e os materiais utilizados eram de boa qualidade, com as capas forradas com tecidos nobres, como seda e veludo, bordados em fio de ouro, enriquecidos com molduras de metal. O marroquim, couro tingido de alta qualidade utilizado at hoje, era muito difundido entre encadernadores venezianos, criando o estilo mudejar dos mouros , caracterizado por linhas geomtricas entrelaadas. Tambm em Veneza surgiu a tcnica de dourao, introduzida na Itlia pelos rabes. Nas igrejas, muitos livros eram presos por correntes aos plpitos de leitura das igrejas a fim de impedir roubos. A Frana, a Inglaterra e a Alemanha tambm se tornariam grandes centros da encadernao artstica, com novos estilos decorativos de execuo complexa. Os franceses utilizavam tcnicas de mosaico, com recortes de couro de cores variadas embutidos ou superpostos. Muitas mulheres que colecionavam livros ajudaram a dar popularidade ao estilo rococ e dentelle (rendado), caracterizado por uma espcie de renda nas bordas da capa. At o sculo XVI, as encadernaes eram mudas, ou seja, no possuam registro textual que identificasse a obra, o que s acontece no sculo XVII, quando comeam a aparecer pequenos textos na capa e na lombada dos livros. O desenvolvimento intelectual e cientfico do final do sculo XVII proporcionou o crescimento de estudos publicados, incrementando o setor editorial. Novas tecnologias ajudaram a difundir as publicaes mudando os estilos das encadernaes de obras comuns, que se tornaram mais simples e menores. As capas eram forradas com materiais de qualidade inferior, como a vaqueta, couro de baixa qualidade, e as decoraes eram mais simples, compostas de pequenos filetes e alguns flores nos cantos. O papel era cada vez mais utilizado no miolo de livro.

38

tambm nessa poca que surgem as encadernaes flexveis em pergaminho, muito populares durante a renascena italiana. Era uma estrutura flexvel e bastante resistente que foi o modelo favorito para livros populares de poesia, literatura contempornea e textos clssicos. Hoje muito utilizada na conservao de livros. Foi nessa poca tambm que o uso do papel marmorizado comeou a ser difundido. Acredita-se que esse papel surgiu na China, no sculo VIII, e difundiu-se pela Prsia e Turquia at chegar Europa, no sculo XV. uma tcnica de pintura que consiste em sobrepor uma folha de papel sobre uma superfcie lquida com tintas tambm em estado lquido, formando diferentes padronagens que imitam o mrmore, ocorrendo uma transferncia do desenho para o papel. Era utilizada em encadernaes com cantos e lombada em couro e em folhas de guarda. Os cortes do livro tambm eram ornamentados com esse tipo de pintura. Alm da marmorizao, os cortes possuam decoraes como desenhos em relevo ou a simples aplicao de ouro. Em alguns casos raros, apresentavam for edge, ou seja, pinturas complexas que s aparecem quando o bloco de texto folheado, sendo imperceptveis com o livro fechado. Nessa poca cresceu o nmero de biblifilos que valorizavam no s o contedo dos livros mas tambm a arte da encadernao. A qualidade das impresses era cada vez maior, com grande desenvolvimento na rea tipogrfica a partir da criao de diversos novos tipos de letras. Em conseqncia das revolues burguesas do final do sculo XVIII, o fim da monarquia diminuiu o nmero de aristocratas que encomendavam encadernaes luxuosas aos artistas e o crescimento na produo industrial dos livros gerou uma maior demanda de papel e uma procura por matrias-primas mais baratas. At meados do sculo XVIII, os trapos de linho e algodo eram a matria-prima para a fabricao de papel, mas se tornaram escassos com o crescimento da demanda e em razo de um surto de peste na Europa, quando muitos tecidos e roupas foram queimados. Algumas fibras vegetais como a palha foram testadas, at que em 1765 o padre e botnico austraco Jacob Schffer, estudando a atividade das vespas, concluiu ser possvel fabricar papel a partir da madeira. Ele observou que, ao construir seu ninho, a vespa mastiga lascas de madeira separando na boca as fibras de celulose, chamadas lignina, e por fim esta pasta regurgitada para formar o vespeiro. No final do sculo XVIII, com a Revoluo Francesa, o acesso da populao cultura aumentou e, conseqentemente, o acesso aos livros, que se tornaram objetos de consumo, criando-se a necessidade de maior agilidade em sua produo. A confeco do papel de madeira era artesanal, bem como a do papel de trapos.

39

Em 1798, o francs Nicholas-Louis Robert inventou a primeira mquina de fabricao de papel, porm a qualidade do material era inferior. Em 1801, os irmos Robert e John Gamble patentearam a mquina na Inglaterra com e aperfeioaram o modelo anterior, produzindo papel de alta qualidade. Essa mecanizao na confeco do papel aumentou a fabricao de livros que passaram a ser produzidos em srie, multiplicando consideravelmente o nmero de exemplares que eram idnticos entre si. As encadernaes passaram a ser mais geis para acompanhar a produo dos livros. As lombadas eram produzidas sem nervos e decoradas com nervuras que imitavam os nervos (falsos nervos). Na Alemanha as encadernaes vistosas viraram moda entre os burgueses para compensar a sua baixa qualidade. As capas e o dorso apresentavam ouro e cores berrantes e ficaram conhecidas como tranches dores. Nos dias de hoje apresentam um estado de conservao inferior s slidas encadernaes dos sculos anteriores. Alexis Pierre Bradel criou a encadernao de Bradel, ou capa-fora, prpria para a produo industrial de livros, onde a capa era confeccionada separadamente e depois encaixada ao miolo. Com a industrializao do sculo XIX, as encadernaes ficaram mais simples. Surgiu o estilo Biedermeier, ou Restaurao, que apresentava lombada chata, sem nervos, ou com nervos falsos, e pouca decorao. Obras clssicas e enciclopdias foram encadernadas em forma de brochura18 com capas em tecido ou papel, ornadas com elementos dourados e fixadas com grampos. Na Alemanha, ao mesmo tempo em que as encadernaes correntes perdiam qualidade, as clssicas eram resgatadas pelas encadernaes de luxo, encomendadas pela burguesia a fim de ostentar sua riqueza. Esse movimento propiciou o aparecimento das encadernaes artsticas os chamados livros de artista , que eram personalizadas e apresentavam interpretaes prprias dos estilos antigos, faziam uso de materiais incomuns e eram influenciadas pelas artes plsticas. tambm nesse perodo que surgem na Europa as primeiras escolas profissionalizantes de encadernao e publicaes sobre o tema. Apesar da industrializao, o ofcio da encadernao se manteve como expresso de arte e de valorizao dos livros. Os lbuns de fotografias foram outra forma de representao da encadernao de luxo que surgiu da evoluo dos suportes de revelao de fotografias. No Brasil, as primeiras obras de encadernao de que se tem notcia datam do sculo XVI, mas eram encadernaes simples destinadas catequese dos jesutas. Tinham influncia de Portugal, que seguia o estilo artstico francs e italiano. Com a vinda de D. Joo VI para o18 Livro ou folheto com costura industrial, revestido com capa de papelo ou cartolina colada na lombada. At o incio do sculo XIX, muitos livros eram vendidos apenas na brochura e sua encadernao era providenciada pelo comprador.

40

pas, o acervo da Biblioteca Real foi trazido para c juntamente com uma tipografia, dando origem Imprensa Rgia, que produzia os livros no Brasil. A produo grfica se desenvolveu a partir do Segundo Reinado e no sculo XIX j existiam alguns encadernadores, principalmente no Rio de Janeiro, estabelecidos em sua maioria no centro da cidade.

41

ESQUEMA DAS ARTES DO LIVRO

1 Corte superior (cabea) 2 Chanfro 3 Coifa 4 Cabeceado 5 Nervos 6 Entre nervos 7 Lombada ou dorso 8 Encaixe 9 Cobertura de meia encadernao 10 Cantos 11 Corte inferior (p) 12 Capa ou pasta anterior 13 Capa ou pasta posterior 14 Seixa 15 Folha de guarda 16 Corte frontal ou goteira

42

O LIVRO COMO OBRA RARA

No momento em que uma pessoa d total ateno a alguma coisa, mesmo uma folha de grama, isso se torna um misterioso, impressionante, indescritvel e magnfico mundo em si. (Henry Miller)

O livro um documento disseminador de informaes, tanto de carter cientfico e intelectual como artstico e cultural, perecvel enquanto suporte (CARTERI, 2005). Como tal, precisa ser preservado sob seu aspecto fsico e enquanto meio de comunicao, podendo ser considerado patrimnio relevante para a cultura e objeto representativo da evoluo intelectual do homem. Porm, quando falamos em conservao, os exemplares passveis de especial ateno so aqueles considerados raros. Raro, na definio do dicionrio da lngua portuguesa Aurlio, significa aquilo de que h pouco; que no abunda; que pouco freqente; incomum, invulgar, extraordinrio. Segundo as autoras do Dicionrio do livro, livro raro seria (...) assim designado por ser detentor de alguma particularidade especial (contedo, papel, ilustraes), ou por j serem conhecidos poucos exemplares (1988 apud FARIA et al., 2001, p. 209). Existe um consenso internacional de que toda obra publicada antes de 1500 ou seja, produzida de forma artesanal livro raro. Entretanto, o fator essencial para determinar a raridade de um livro a importncia atribuda a ele por quem detm sua guarda, o que significa critrios bastante subjetivos, ligados ao interesse que desperta em seu proprietrio. H uma grande diferena na avaliao do que obra rara entre colecionadores e livreiros e gestores de bibliotecas pblicas ou privadas. Para os primeiros, a importncia determinada pela dificuldade de se obter um livro e seu estado de conservao. Quanto mais antigo e ntegro o exemplar, maior ser sua procura, o que aumenta seu valor de mercado. Livros que no sofreram intervenes de restauro tambm valem mais. Aqui o livro tratado como objeto de arte e no como objeto que transmite informaes. Esta a caracterstica mais importante para os bibliotecrios: para eles, a raridade de uma obra est diretamente ligada ao seu valor histrico e cultural, representativo da cultura de um povo e de determinada poca. Um livro pode custar pouco no mercado, sendo, porm, incomensurvel seu valor enquanto objeto de pesquisa. Dentro de uma instituio, principalmente pblica, a definio de qual livro pode ser considerado obra rara tambm define polticas de guarda, de conservao e o tipo de interven-

43

o que pode ser executada para permitir sua manuseabilidade, garantindo assim o acesso do pblico. Aqui existem trs pessoas que definem os critrios de raridade: o dono ou presidente da instituio, que determina a poltica de preservao; o curador, responsvel pela coleo e pelos critrios de conservao; e por ltimo o leitor, que interage diretamente com a obra. As caractersticas de cada exemplar tambm devem ser levadas em considerao. Alguns exemplares possuem particularidades que valorizam a obra tanto em termos de critrio mercadolgico quanto bibliogrfico. Segundo Rizio Bruno SantAna, curador de obras raras da Biblioteca Mario de Andrade, em So Paulo, (...) Marcas de propriedade (ex-libris, 19 carimbos, anotaes e autgrafos do autor e/ou do possuidor da obra) ou outras indicaes que individualizem o exemplar, quando realizadas por pessoas de renome, podem at aumentar o valor de uma obra, mesmo se a cpia estiver em mau estado de conservao. (SANT'ANA, 2001) Se considerarmos uma coleo, tais detalhes podem aparecer apenas em alguns livros. Ento, neste caso, deveramos inclusive dizer que se trata de exemplares raros e no obras raras, j que o conceito raro no se aplica a toda a edio (ou ao contedo textual da obra), mas sim apenas a uma determinada cpia individual (SANT'ANA, 2001). Ana Virgnia Pinheiro,