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ISBN 85-7367-104-1

Categoria: Comentário

Este livro foi publicado em inglês com o título James, por Hendrickson Publishers

© 1983, 1989 por Peter H. Davids© 1997 por Editora Vida

Traduzido pelo Rev. Oswaldo Ramos

Todos os direitos reservados na língua portuguesa porEditora Vida, Rua Júlio de Castilho, 280 – São Paulo, SP

CEP 03059-000 – Telefax (011) 292-8677

As citações bíblicas são da tradução de João Ferreira de Almeida,Edição Contemporânea, da Editora Vida, salvo quando outra fontefor indicada.

Capa: John Cote

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A Armim Riemenschneider,Reitor (Schulleiter) do Bibelschule Wiedenest

Bergneustadt, Alemanha,em gratidão pela amizade e pelo exemplo.

Ninguém que eu conheça viveu melhor, perante mim,as virtudes da carta de Tiago, sobretudo a oração,a generosidade, a santidade e o controle da língua.

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Conteúdo 

Prefácio do Editor ..............................................................................................7

Agradecimentos .................................................................................................9

Abreviaturas .....................................................................................................11

Introdução ........................................................................................................15

1. Sabedoria para as Provações da Vida (Tiago 1:1-27) ...........................412. Preconceito e Pobreza (Tiago 2:1-26) ...................................................793. Sabedoria para Usar a Língua (Tiago 3:1-18) .....................................1074. O Cristão e o Mundo (Tiago 4:1-12) ...................................................1295. Oração por Perseverança e pela Cura (Tiago 4:13 – 5:20) ..................145 

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Prefácio do Editor

Embora não apareça nas listas comuns de bestsellers, a Bíblia continua a sermais vendida que qualquer outro livro. E, apesar do crescente secularismo ociden-tal, não há sinais de que o interesse pela mensagem da Palavra de Deus estejaesfriando. Muito pelo contrário, um número cada vez maior de pessoas está exa-minando suas páginas em busca de luz e orientação, em meio à crescente comple-xidade da vida moderna.

Esse interesse sempre renovado pelas Escrituras, encontrado tanto dentrocomo fora da Igreja, é fato notável entre os povos da Ásia e da África, bem comoda Europa e das Américas. Na verdade, à medida que nos afastamos de países

tradicionalmente cristãos, parece aumentar o interesse pela Bíblia. Pessoas ligadasàs igrejas tradicionais católicas e protestantes manifestam, pela Palavra, o mesmoanseio presente em igrejas e comunidades evangélicas mais recentes.

Por isso, ao oferecer esta nova série de comentários, desejamos estimular efortalecer esse movimento mundial de estudo da Bíblia pelos leigos. Conquantoesperamos que pastores e mestres considerem esses volumes muito úteis à com-preensão e à comunicação da Palavra de Deus, não os editamos primordialmentepara esses profissionais. Nosso objetivo é fornecer, a todos os leitores das Escritu-ras, guias confiáveis que os ajudem a melhor compreender os livros da Bíblia,guias que representem o que há de melhor nas pesquisas contemporâneas, apre-sentados de maneira que não exijam preparo teológico formal para ser entendidos.

É convicção do editor, bem como dos autores, que a Bíblia pertence ao povo,e não meramente aos acadêmicos. A mensagem da Bíblia é tão importante que demodo algum pode ficar acorrentada a artigos especializados, presa a ensaios emonografias herméticos, redigidos apenas para os especialistas em teologia. Em-

bora a pesquisa rigorosa, esmerada, tenha seu lugar no serviço de Cristo, todosquantos participam do ministério do ensino, na igreja, são responsáveis por tornaracessíveis à grande comunidade cristã os resultados dessa pesquisa. Por isso, osespecialistas que se unem para apresentar esta série de comentários o fazem tendoem mente esses objetivos superiores.

Em português, há diversas traduções e edições contemporâneas do Livro sa-grado. Na maioria são excelentes e devem ter a preferência do leitor no que con-cerne à compreensão e a beleza literária do texto.

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A Bíblia de Jerusalém, baseada na obra e eruditos católicos franceses, vivi-damente traduzida para o português, talvez seja a mais literária das traduçõesrecentes. A Bíblia na Linguagem de Hoje (BLH), da Sociedade Bíblica do Brasil,é a tradução mais acessível às pessoas pouco familiarizadas com a tradição cristã.

Há, ainda, em português, a Almeida Revista e Atualizada e a Edição Revisada deAlmeida, além de outras.

Todas essas versões são, à sua própria maneira, muito boas, devendo ser con-sultadas com proveito pelo estudante sério das Escrituras. É possível que a maio-ria dos estudantes deseje possuir diversas versões para consulta, objetivando es-pecialmente a clareza de compreensão — embora se deva salientar que de modoalgum qualquer delas esteja isenta de falhas humanas, não devendo ser considera-

da a última palavra sobre qualquer questão. De outra forma, não haveria a menornecessidade de uma série de comentários como esta!Esta série de livros, por ser tradução da língua inglesa, faz referências à NEB,

que constitui verdadeiro monumento à pesquisa moderna protestante, e a outrasversões em inglês, entre elas a RSV, a NAB e a conceituada NVI. (Esta já se achaparcialmente disponível em português. O Antigo Testamento ainda está sendoelaborado e deve em breve vir a lume.)

Como texto bíblico básico desta série decidimos usar a ECA, por ser essa edi-

ção a que está-se tornando padrão, de modo especial nos seminários e institutosbíblicos. Por representar, no momento, o que há de melhor na literatura evangéli-ca em língua portuguesa, ela está aos poucos se tornando a mais utilizada porpastores e outros estudiosos das Escrituras.

Cada volume desta série contém um capítulo introdutório que expõe em mi-núcias o intuito geral do livro, os temas mais importantes e outras informaçõesúteis. Depois, cada seção do livro é elucidada como um todo e acompanhada de

notas sobre aqueles pontos do texto que necessitam de maior esclarecimento ou deexplanação mais minuciosa.Oferecemos esta nova série aos leitores com uma oração: que ela se tome ins-

trumento de renovação autêntica e de crescimento entre a comunidade cristã nomundo inteiro, bem como meio de enaltecer a fé das pessoas que viveram nostempos bíblicos e das que procuram viver, em nossos dias, segundo a Bíblia.

 Editora Vida

Prefácio do Editor 

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Agradecimentos

Primeiramente, desejo agradecer ao professor W. Ward Gasque o convite queme fez para que redigisse este comentário sob sua organização, e também à Wm.B. Eerdmans Publishing Company, o fato de não fazer objeções a que eu produ-zisse uma versão popular de meu comentário do texto grego de Tiago que estaeditora publicou (The Epistle of James, New International Greek TestamentCommentary Series, 1982). Isso me proporcionou a oportunidade de explicar oque eu já havia dito naquele comentário, agora de maneira prática e concreta, paraas pessoas que não lêem grego. As notas, nesta obra, em certo sentido são sínteses

das notas daquela, mas às vezes vão muito além, porque menciono outros traba-lhos de grande utilidade pastoral. Com muita freqüência, os textos de ambas asobras coincidem (afinal, quem os redigiu foi o mesmo acadêmico, empregando namaior parte as mesmas notas, as mesmas fontes de referência e o mesmo livro doNovo Testamento); entretanto, a presente obra é diferente, visto que o autor tevepor alvo constantemente um novo propósito e um novo perfil de leitor. Ficarãodesapontados os leitores que não souberem identificar os propósitos daquele meu

primeiro livro, que são diferentes dos deste. Espero que um e outro sejam apreci-ados pelo que apresentam, e de acordo com o propósito específico de cada um.Como ocorre com toda obra, este livro é um projeto comunitário. Eu o dedi-

quei a Armim Riemenschneider, que era o deão (Studienleiter) da BibelschuleWiedenest, na época em que ali ensinei (1974-76), e agora é seu reitor (Schullei-ter). Foi ali que escrevi meus primeiros artigos publicados para  New Testament 

Studies (Estudos no Novo Testamento), e The Illustrated Bible Dictionary (Dicio-nário Ilustrado da Bíblia). O mais importante é que foi ali que aprendi a amar,

num nível profundamente emocional, a tradição alemã anabatista/pietista, segun-do a qual é tão importante que se viva o evangelho. E a esta forma do movimentodos irmãos de Plymouth que subjaz na mentalidade de aliança evangélica de Wie-denest, que dou alegremente todo meu apoio. Aprendi muito, não mediante livros,mas por haver visto esse espírito do evangelho ser vivido diante de mim. Tentoexpressar, neste livro, um pouco daquilo que aprendi.

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Agradeço à Harper & Row o fato de haver de início agregado este comentárioà série Good News Commentary (Comentário Boas Novas), que publicou, comoagradeço o ter preparado o texto original. Essa editora auxiliou-me bastante adesenvolver uma redação com linguagem abrangente. Sou mais agradecido ainda

à Hendrickson Publishers, por terem adaptado e mudado este comentário, usandoa New International Version (Nova Versão Internacional), preparando-o cuidado-samente e dando-me a oportunidade de revisá-lo, e apresentá-lo à faixa mais am-pla de leitores, para a qual foi projetado.

Agradeço, ainda, à Trinity Episcopal School for Ministry (Seminário Episco-pal da Trindade), por haver-me concedido uma licença sabática durante o ano1982-83, o que me possibilitou ter tempo para escrever; agradeço também à New

College for Advanced Christian Studies (Nova Faculdade para Estudos CristãosSuperiores), de Berkeley, que me proporcionou um lugar onde morar e escrever.A maior parte desta obra foi redigida na biblioteca dessa faculdade. Pauline O-dom, assistente do tesoureiro, laboriosamente datilografou meu manuscrito; elamerece todo o crédito quanto à legibilidade. Meus agradecimentos por esta ediçãorevista cabem também às aulas que ministrei na Regent College (Faculdade deRegent), em Vancouver, onde recebi ajuda na pesquisa contínua de materiais refe-rentes a Tiago; de modo especial, à Austin Avenue Chapel (Capela da avenida

Austin), de Coquitlam, na Colúmbia Britânica, que me contratou, sabendo muitobem que grande parte de meu tempo seria dedicado a escrever. Poucas igrejasdemonstram tão grande tolerância e tão profundo discernimento.

Outros agradecimentos, eu os apresento ao dr. Ronald Youngblood, editor do Journal of the Evangelical Theological Society (Periódico da Sociedade Teológi-ca Evangélica), pela permissão concedida de utilizar uma versão originariamenteali publicada de meu artigo “Theological Perspectives on the Epistle of James”

(Perspectivas Teológicas sobre a Epístola de Tiago), no vol. 23, de 1980, págs.97-104; esse artigo originou a seção de ênfases temáticas, na Introdução. A minhaesposa e minha família devo agradecimentos, por haverem suportado paciente-mente o período de gestação deste livro, não uma vez apenas, mas duas. Minhaesperança é que esta obra ajude a muitos leitores fiel e sinceramente devotados aCristo. Este é o objetivo de Tiago, e meu também.

 Agradecimentos

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Abreviaturas

AB Anchor Bible

AnBib Analecta Biblica (Antologia Bíblica)APOT  Apocrypha and Pseudepigrapha of the

Old Testament (Apócrifos e Pseudepígrafosdo Antigo Testamento), organizado porR. H. Charles (Oxford: Claredon Press, 1913)

ATR  Anglican Theological Review (RevistaTeológica Anglicana)

b. Talmude Babilônico

Bib  BiblicaBJRL  Bulletin of the John Rylands Library (Boletim da

Biblioteca de John Ryland)CBQ Catholic Biblical Quarterly (Revista

Trimestral Católica)ConB Coniectanea Biblica (Coletânea Bíblica)Rolos do

Mar Morto1 QS The Rule of the Community (Regra da Comunidade)1 QEI The Thanksgiving Hymns (Hinos de Gratidão)1 QM The War of the Sons of Light with the Sons of 

Darkness (A Guerra dos Filhos da Luz contra osfilhos das Trevas)

CD Cairo Damascus Document (DocumentoCairo-Damasco)

11 Q Psa Rolo de Salmos da gruta 11EvQ The  Evangelical Quarterly (Revista

Trimestral Evangélica)Ex The  Expositor (O Expositor)ExpTim The Expository Times (Tempo do Expositor)GNB Good News Bible (Bíblia Boas Novas)Hermas O Pastor de Hermas (Pais Apostólicos)HNTC Harper’s New Testament Commentary (Comentário

de Harper do Novo Testamento) 

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HTR  Harvard Theological Review

(Revista Teológica de Harvard)HUCA  Hebrew Union College Annual (Anuário

da Faculdade Hebraica da União)

ICC International Critical Commentary (Comentário Crítico Interna-cional)

IEJ  Israel Exploration Journal (Periódico de Pesquisas em Israel)Int  Interpretation (Interpretação)JAAR  Journal of the  American Academy of Religion (Periódico da Aca-

demia Americana de Religião)JBL  Journal of Biblical Literature

(Periódico de Literatura Bíblica)JQR  Jewish Quarterly Review

(Revista Trimestral Judaica)JSS  Journal of Semitic Studies

(Periódico de Estudos Semíticos)JTS  Journal of Theological Studies

(Periódico de Estudos Teológicos)m. Mishna

MNTC Moffatt New Testament Commentary (Comentáriode Moffatt sobre o Novo Testamento)

NDITNT C. Brown, ed. Novo dicionário internacional de teologia do Novo

Testamento, trad. Gordon Chown, São Paulo,Vida Nova, 1983 [NIDNTT em inglês]

NIGTC New International Greek Testament Commentary(Novo Comentário Internacional do Testamento Grego)

NovT  Novum TestamentumNovTSup Supplements to Novum Testamentum (Suplementos para o NovoTestamento)

NTS  New Testament Studies (Estudos sobre oNovo Testamento)

R. Rabbi (Rabinos)RevExp  Review and Expositor (Revista e Expositor)RSV Revised Standard Version (Versão Padrão Revista

da Bíblia)SB Studia Biblica (Estudos Bíblicos)

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SBT Studies in Biblical Theology (Estudos sobreTeologia Bíblica)

SE Studia Evangelica (Estudos evangélicos)SJT Scottish Journal of Theology (Periódico

Escocês de Teologia)SP Studia Patristica (Estudos Patrísticos)ST Studia Theologica (Estudos Teológicos)StBth Studia Biblica et Theologica (Estudos Bíblicos e Teológicos)SWJT Southwestern Journal of Theology (Periódico

de Teologia do Sudoeste)t. Tosefta

TDNT Theological Dictionary of the New Testament, org.G. Kittel e G. Frederick (Grand Rapids:Eerdmans, 1964-76)

Th. Themelios (Temélio)TNTC Tyndale New Testament Commentary (Comentário Tyndale

sobre o Novo Testamento)TU Texte und Untersuchungen

Tyn B. Tyndale Bulletin (Boletim Tyndale)

VE Vox Evangelica (Voz Evangélica)VTSup Supplementos do Vetus Testamentum

(Antigo Testamento)ZAW  Zeitschrift für alttestamentliche Wissenschaft 

ZNW  Zeitschrift für neutestamentliche Wissenschaft 

Os comentários sobre Tiago são citados pelo nome do autor ou pelo nome da

carta, Tiago (James), como, por exemplo, S. S. Laws, James.

As citações bíblicas em português foram tiradas da Versão Contemporânea deJoão Ferreira de Almeida (ECA, Vida), ou o próprio autor as traduziu, a menosque haja alguma observação sobre outra versão usada.

As citações dos pais apostólicos foram extraídas de J. Sparks, The apostolic

 fathers (Os pais apostólicos), Nashville, Thomas Nelson, 1978.

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 Introdução

A carta de Tiago constitui uma das partes mais emocionantes do Novo Tes-tamento. Representa um impacto bastante forte e uma atitude voltada à realidadeque pegam o leitor desavisado e o deixam perplexo, enquanto, simultaneamente,oferecem-lhe orientação muito prática para a vida. Não obstante, esse tem sido umlivro negligenciado visto que, depois que Lutero o chamou de “epístola de palha”,a que faltaria o trigo do evangelho (Lutero entendia que Paulo era o trigo), osprotestantes em geral têm lutado com a carta de Tiago. Por conseguinte, essa obratem sido deixada de lado; só nas últimas duas décadas é que um número significa-tivo de comentários e estudos sobre Tiago começou a surgir. Todavia, agora po-

demos verificar que o “patinho feio” na verdade é um cisne, o menino adotado edesprezado é o herdeiro de fato, pois em nenhum outro escrito se ouve com maiorclareza a voz de Cristo falando à igreja. À medida que este comentário for pro-gredindo, o leitor verificará que Tiago é um exemplo de como os crentes primiti-vos usavam e aplicavam as palavras de Jesus em sua vida diária.

 AutoriaA primeira questão a ser examinada, em qualquer estudo de algum livro do

Novo Testamento, é a que diz respeito à autoria. A assertiva bastante clara daepístola é: “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (1:1). As Escriturasreferem-se a vários Tiagos ou Jacós,∗ mas a maioria deles pode ser descartada deimediato. Alguns estudiosos têm afirmado que a obra declara ter sido escrita porJacó, filho de Isaque, e que ela apresenta de forma alegórica os nomes de suasesposas

∗  Iakobos é no NT a forma helenizada do hebraico Iakob. O primeiro passou a serconhecido por Iago na língua portuguesa. O segundo por Jacó. Com a introduçãodo elemento Santo ao nome do apóstolo, verificou-se posteriormente uma

contração em Sant’Iago, o que acabou por originar San (São) Tiago. O inglês usauma forma adaptada: James. O francês: Jaimes (N. do E.).

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e filhos. Há uma literatura desse tipo (e.g., Testaments of the Twelve Patriarchs [Os Testamentos dos Doze Patriarcas]), redigida mais ou menos na época em queo Novo Testamento foi escrito; todavia, se Tiago é alegoria, de maneira alguma separece com aqueles “Testamentos”. Sobretudo, Tiago é profundamente cristão,

longe de poder ser considerado obra judaica. Portanto, esse “Tiago” pode ser eli-minado.

A seguir, há o Tiago filho de Zebedeu e irmão de João. Esse fazia parte docírculo íntimo dos apóstolos, sempre ao lado de Jesus, a quem conhecia suficien-temente bem para mencionar seus ensinos de modo bastante livre. Visto que esteTiago havia sido pescador, fica difícil apurar que grau de instrução obtivera; cer-tamente sabia falar o grego, a língua original em que a epístola foi escrita. Entre-

tanto, não é provável que tenha sobrevivido o suficiente para poder escrever essacarta, visto que entre 41 e 44 d.C., apenas oito a dez anos depois da ressurreiçãode Cristo e antes que os escritos neotestamentários fossem produzidos ou quePaulo iniciasse suas viagens missionárias, Herodes Agripa I “mandou matar àespada Tiago, irmão de João” (Atos 12:1, 2). Sua carreira curta e sua morte repen-tina eliminam toda a possibilidade de esse Tiago ser candidato a autor da carta.

O outro Tiago, entre os doze apóstolos de Jesus, é Tiago, o filho de Alfeu(Mateus 10:3), que com toda a probabilidade é o mesmo Tiago, o menor (Marcos

15:40). Sabe-se tão pouco a respeito dessa pessoa que ninguém pode afirmar comcerteza que esse Tiago não poderia ter escrito a carta, mas a hipótese de ele tersido o autor não tem fundamento algum. Teria uma pessoa relativamente “desco-nhecida” redigido o intróito tão simples da carta? Não teria o autor sentido a ne-cessidade de identificar-se com maior clareza, de modo especial diante do tre-mendo peso de autoridade de que ele se reveste? O leitor deve rejeitar esse “Tia-go” também.

Martinho Lutero achava que um Tiago um tanto desconhecido escrevera essacarta, no final do primeiro século. Se alguém crê que a carta teria sido escrita tãotarde, essa hipótese lhe é atraente, visto que o nome Tiago, ou Jacó, era bastantecomum entre judeus e judeus cristãos. Mas os problemas chegam aí também. Porque esse Tiago não se identificou de modo completo? Estaria tentando personifi-car outro Tiago mais antigo, mais bem conhecido? Por que julga ter tanta

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autoridade? A conclusão a que chegamos deve ser esta: houve uma tentativa daparte de Lutero para atribuir a autoria a uma pessoa destituída de autoridade apos-tólica.

Finalmente, havendo rejeitado todos os demais candidatos, a peneira fina

retém um Tiago, o que era irmão de Jesus: Tiago, chamado o Justo. Esse irmãomais moço de Jesus deve ter conhecido seu irmão mais velho e também o seuensino. Entretanto, não creu nele, enquanto o Senhor viveu (João 7:2-5), sendoque esse Tiago (provavelmente com a ajuda de Maria), tentou levar Jesus paracasa “para seu próprio bem” (Marcos 3:20, 21, 31-35). Após a ressurreição, Tiagoaparece subitamente com os demais irmãos de Jesus, entre os discípulos, no cená-culo, orando antes da recepção do Espírito (Atos 1:14). É Paulo quem nos dá a

razão dessa mudança radical: Jesus apareceu a Tiago, após a ressurreição, antes deaparecer ao grande grupo apostólico e, à semelhança do encontro do Senhor comPaulo, esse encontro resultou na conversão de Tiago (1 Coríntios 15:7).

A carreira de Tiago inicia-se na igreja após sua conversão. Quando os dozepuseram-se a viajar, após o apedrejamento de Estêvão, foi Tiago quem permane-ceu em Jerusalém. Provavelmente ele seja o Tiago mencionado em Gálatas 2:9,que aprova a missão de Paulo (a esse Tiago, Paulo chama de apóstolo em Gálatas1:19). Tiago aparece enviando delegados eclesiásticos em Gálatas 2:12, presidin-

do o concílio apostólico em Atos 15 (e, visto que ele fala por último, isso indica-ria que é hierarquicamente superior a Pedro), e recebe e aconselha a Paulo, quelhe traz uma coleta, em Atos 21. Fica bem claro que Tiago é o líder inconteste daigreja em Jerusalém, sendo discutível ter sido ele o líder cristão mais influente deseu tempo. Ele permaneceu nessa posição até logo depois da prisão de Paulo (57d.C.).

Em 62 d.C., três anos após haver enviado Paulo a Roma, o procurador Festo

morreu no cargo que ocupava. Durante o período entre a nomeação do procuradorAlbino e sua chegada, o sumo sacerdote Anás, o menor, aproveitou a oportunida-de para prender Tiago e outros discípulos, sob a acusação de quebra da lei. Tiagofoi condenado e apedrejado. Embora outro membro da família sagrada, Simeão,fosse depois escolhido para suceder a Tiago, nenhum outro líder se lhe igualou emestatura espiritual. A própria igreja judeu-cristã de Jerusalém chegou ao fim, poisos crentes fugiram para Pela, por medo dos exércitos

 Introdução

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de Roma que avançavam, em 66 d.C. Nunca mais a igreja pôde prosseguir suamissão entre os judeus.

Esse Tiago, personagem poderosa e bem conhecida da igreja primitiva, cer-tamente é a pessoa indicada para escrever o primeiro versículo da carta, o de aber-

tura. Só ele teria autoridade para redigir uma carta desse teor. Só ele seria reco-nhecido mediante a mera menção de seu nome (ainda mais quando Judas diz:“Judas... irmão de Tiago”, em Judas 1). Os versículos iniciais da carta evidente-mente objetivaram colocar nela a autoridade do autor. A pergunta que se tem fei-to, entretanto, é se Tiago verdadeiramente foi o autor dessa carta, ou se ela apenaslhe tem sido atribuída, da mesma forma que a obra apócrifa 1 Enoque (tratado

 judaico do primeiro século) fora atribuído a Enoque e Salmos de Salomão (con-

 junto de poemas escritos por um fariseu no século que antecedeu ao nascimentode Jesus) fora atribuída a Salomão.Vários argumentos contra a autoria de Tiago, o irmão de Jesus, têm sido apre-

sentados. Em primeiro lugar, o texto grego é bom demais. Embora esse fato difi-cilmente apareça numa tradução para o português, o grego de Tiago fica entre osdois ou três melhores estilos de grego do Novo Testamento todo, estando cheio derimas, aliterações e outros recursos de beleza literária. Todos os estudiosos admi-tem que o filho de um carpinteiro galileu poderia, talvez, expressar-se um pouco

em grego, mas muitos perguntam: Será que o grego dele alcançaria tal padrão deexcelência, especialmente se considerarmos que Tiago, o Justo, na maior parte desua vida permaneceu em Jerusalém, o centro do judaísmo que falava o aramaico?Os que acreditam que Tiago não poderia ter escrito sua carta num grego tão beloargumentam que um autor posterior a escreveu, usando o nome de Tiago.

Em segundo lugar, há algumas frases filosóficas (e.g., “inflama o curso danatureza” em 3:6) e outras indicações (e.g., todas as citações reproduzem o Anti-

go Testamento em grego; nenhuma delas é caracteristicamente da língua hebraica)de que o autor estava bastante familiarizado com o mundo grego. Tiago, o Justo,poderia ter falado o grego, mas teria conhecido as idéias filosóficas gregas, à se-melhança do autor dessa carta, e teria pleno conhecimento de Siraque e da Sabe-doria de Salomão (literatura sapiencial judaica de dois séculos antes de Cristo)?Teria deixado de citar as Escrituras (Antigo Testamento)

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em hebraico? Além do mais, a carta contém muito pouco do legalismo e do ritua-lismo judaicos que muitos atribuiriam a Tiago, o Justo. Não seria tudo isso provade que a obra é de outro autor, cujo judaísmo na melhor das hipóteses igualaria oda diáspora grega, ou talvez refletiria o judaísmo de um autor gentílico, temente a

Deus?Em terceiro lugar, a carta de Tiago é muito parecida com o Pastor de Hermas,

obra cristã produzida no fim do primeiro século, em Roma. Também mostra simi-laridades com 1 Pedro (embora não tenha havido empréstimos, apenas o uso co-mum de uma tradição cristã), que por sua vez é freqüentemente datada no fim doprimeiro século. Não significaria isso que Tiago também pertence a essa época?Afinal, parece que sua igreja, embora já estabelecida, está enfrentando problemas

de aculturação (e.g., a aceitação dos ricos), mas não sofre com problemas típicosde uma comunidade nova, em expansão, dedicada à evangelização. Vários estudi-osos propõem, por isso, um ambiente como o de Roma no fim do primeiro século,o que eliminaria de vez a autoria de Tiago, o Justo.

Por fim, há a relação entre Tiago e Paulo. Uma comparação entre Tiago 2:24e Romanos 3:20, 28 e 4:16 leva-nos a entender que Tiago contradiz Paulo de mo-do direto. Tiago menciona Abraão como seu principal exemplo e cita Gênesis15:6 (em 2:23), como o faz Paulo. Isso significa que Tiago deve ter escrito depois

de Paulo haver cunhado seus lemas, ou mesmo depois de Romanos ter sido escri-ta. Parece que Tiago não entende os lemas de Paulo, ou quem sabe ele os teriaouvido de segunda mão, da parte de alguém que havia lido Romanos, mas usavamal esta carta. Agora, Tiago, o Justo, estava no concílio, em Jerusalém (Atos 15),onde todas essas questões foram discutidas pessoalmente, face a face. É certo queTiago teria entendido Paulo, e não teria confiado em dados de segunda mão. To-davia, a carta possui as evidências de ter sido redigida após a controvérsia haver

esfriado, pelo fim do primeiro século, muito depois de Tiago haver descido à se-pultura.Tais argumentos são poderosos e têm convencido a muitas pessoas, mas ainda

estão longe de representar a verdadeira história. Na questão de Tiago em relação aPaulo, o comentário de 2:14-26 demonstra que ambos usam os mesmos termos demodo diferente. Paulo atribui seus próprios significados às palavras, enquantoTiago emprega as mesmas

 Introdução

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palavras com seu sentido antigo, judaico (razão pela qual esse comentário comfreqüência menciona escritos judaicos extracanônicos). É bem possível que Tiagotenha entendido mal a Paulo, mas, se isso ocorreu, é provável que teria ocorridomais cedo e não mais tarde. Por ocasião da primeira viagem missionária de Paulo,

alguém como João Marcos poderia ter levado a Jerusalém uma versão truncada doensino de Paulo. Se Tiago 2:14-26 é a resposta a Paulo, antes de este apóstoloexplicar sua posição real, é possível que Tiago tenha sugerido a Paulo o exemplode Abraão — se é que o apóstolo não houvesse chegado a esse exemplo por simesmo, independentemente. (Em Gálatas 4:21-31, Paulo provavelmente está to-mando de seus próprios inimigos um tipo de alegoria que ele atirará contra elesmesmos; o apóstolo poderia fazer o mesmo às pessoas que interpretavam mal os

argumentos de Tiago). Pelo menos, considerando-se as diferenças entre Paulo eTiago, este deve ter redigido sua carta antes (não depois) de Romanos ter sidoescrita, quando a posição doutrinária de Paulo já  era conhecida com a máximaclareza, pois o Paulo real teria concordado com o que Tiago quis dizer, ainda queo expressasse de modo diferente.

Quando comparamos Tiago com o Pastor de Hermas (um escritor cristão doprimeiro século, habitante de Roma), vê-se com clareza que foi Hermas quemtomou emprestado de Tiago. Na época em que Hermas foi escrito, algumas cópias

da carta de Tiago haviam chegado a Roma; a carta de Tiago foi, então, usada porHermas, a quem faltava a base cultural judaica e, por isso, Hermas suavizou suacondenação dos ricos e interpretou mal várias frases (como, por exemplo, o ensi-no de Tiago a respeito da oração). Dificilmente isso constituiria evidência de queTiago teria sido escrita ao mesmo tempo que Hermas. De maneira semelhante, orelacionamento com 1 Pedro depende de quanto tempo durou a tradição que am-bos utilizaram (durou pelo menos até 1 Clemente, uma carta escrita pelo líder da

igreja romana, dirigida a Corinto, datada de mais ou menos 96 d.C.), de quando 1Pedro foi escrita e de quando (quão cedo) se iniciara a primitiva tradição cristã.A falta de “judaísmo” na carta de Tiago é apenas aparente. As frases que res-

soam como filosofia podem ter-se originado de alguma obra filosófica, mas nãosão usadas de modo filosófico, visto que se transformaram em expressões comunsda cultura. As citações do Antigo Testamento poderiam ou não ter vindo da Bíbliagrega; nesses cinco

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textos, as versões em grego e em hebraico são idênticas. Além disso, Siraque eSabedoria de Salomão (ambos Apócrifos, i.e., obras judaicas não aceitas pelosprotestantes como Escrituras Sagradas) eram muito lidos, em geral, por toda aPalestina, pelo que a cultura “grega” de Tiago teria sido adquirida em domicílio

mesmo, em Jerusalém. A verdade é que é possível retratar-se um ambiente bom,perfeitamente adequado, na Palestina, para Tiago. A maior parte do “grecismo” dacarta fica apenas na aparência.

Tiago, o Justo, contrariamente à opinião popular, não era um legalista. Háapenas duas pequenas informações que confirmariam essa opinião. Na primeira(Gálatas 2:12), “antes que alguns [crentes] tivessem chegado, da parte de Tiago”,inicia-se a controvérsia judaizante. Esse texto não mostra se Tiago concordava

com as idéias dessas pessoas ou não; apenas afirma que Tiago os enviara e, porisso, achavam que tinham autoridade suficiente para causar distúrbios, ainda queo propósito para o qual os enviara fosse bem diferente. A segunda informaçãoparte de uma tradição de Hegesipo (historiador cristão primitivo de que nos falaEusébio), o qual retrata Tiago como legalista rigoroso. Todavia, tal tradição não écrível, visto que, dentre outras improbabilidades, há aquela segundo a qual Tiagoentrara no lugar santíssimo do templo. É  mais provável que Hegesipo apenashouvesse declarado histórico o que de fato era uma descrição teológica de Tiago,

o Justo.1 Essa base em que se assenta seu caráter teológico é fraca, de modo es-pecial quando sabemos que Gálatas 1:19 e 2:9 apresentam Tiago aceitando Pauloe aprovando a missão do apóstolo; e, em Atos 15 e 21, temos Tiago atuando comomediador, alguém que mantém a igreja unida, ao criar conciliações entre Paulo eos legalistas. É esse quadro de Atos que se harmoniza com a carta de Tiago.

E assim é que o estudioso das Escrituras volta-se para a qualidade da lingua-gem grega, como o argumento mais forte contra a autoria de Tiago, o Justo. Isso

traz à tona outro aspecto dessa carta. Ela parece desconjuntada, mas o mesmotema é martelado em palavras diferentes, por toda a carta. Na verdade, há umpadrão descoberto por F.O. Francis, que explica tais diferenças, e que se enquadracomo padrão comum nas cartas literárias.2 Como se pode explicar um padrãogeral que mostra alguma incoerência vocabular entre as partes (e.g., 1:13-15 e4:1-3 ou 1:2-4; 1:12; e 5:7-11)? Também há o fato de que, mesmo havendo

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uma boa linguagem grega, existem expressões estranhas que denotam um padrãosemítico de pensamento (e.g., 2:1, ou “cumpridores da palavra” — NIV traz “fa-zei o que ela manda” em 1:22). Isso parece estranho porque, se o autor pôde em-pregar um grego de alta qualidade nessa epístola, era de esperar que fosse capaz

de evitar semitismos; e uma pessoa cujo pensamento fosse tão semítico prova-velmente não conseguiria redigir uma carta com esse estilo grego.

A solução desse dilema jaz num exame mais cuidadoso da carta. Trata-seclaramente de um discurso oral, à semelhança da diatribe grega, da homilia nasinagoga ou do sermão. Há vários discursos ligados entre si (2:1-13; 2:14-26; 3:1-12; etc.) e também vários ditados esparsos (e.g., 3:18; 4:17). Visto que tais dita-dos em geral dizem respeito à ética, às vezes são chamados de parênese, ou ins-

trução de caráter ético. Tais fragmentos foram agrupados numa estrutura geral, demodo que permanecem juntos, sem, todavia, perder de vez seu caráter original deensinos separados. Aqui está a solução do enigma. Tiago, o Justo, provavelmenteé a principal fonte dos ditados e sermões, mas ele os pregou em aramaico, ou numgrego relativamente cheio de semitismos. Mais tarde, talvez porque os visitantesque se dirigiam a Jerusalém os solicitavam, ou talvez porque o martírio de Tiagoestimulasse os pedidos, os sermões de Tiago foram reunidos e publicados sob aforma de livro, abordando os temas prediletos, e passaram a circular como carta

geral. Quem o preparou para publicação melhorou o grego, mas agiu de modoconservador, para não encobrir a voz de Tiago. Essa explicação parece preenchertodas as lacunas. A carta é de Tiago, mas assim como Paulo usou secretários quelhe redigiam as cartas, os quais tinham bastante liberdade de expressão, e Lucasmelhorou o grego dos sermões de Jesus (se comparado com Marcos ou Mateus),assim também Tiago teve um revisor — um companheiro de confiança, ou umlíder da igreja, após a morte do autor — que lhe preservou o ensino para as gera-

ções futuras.

 FormaA forma ou estrutura da carta de Tiago, conforme a descobriu F.O. Francis,3 

que posteriormente eu próprio modifiquei e desenvolvi, é de uma carta literária(carta cujo propósito era ser publicada, em vez de ser enviada pelo correio comendereço certo), possuindo duas introduções. Sempre se reconheceu que 1 João1:2 repete e alonga 1:1.

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De modo semelhante, Tiago 1:2-11 tem três seções que se repetem e se alongamem 1:12-25. Os mesmos três tópicos reaparecem em ordem diferente em 2:1-26,3:1-4:12 e 4:13-5:6. Há uma conclusão (5:7-11)  e um desfecho (5:12-20). Essedesfecho encerra três tópicos normalmente discutidos numa carta grega: exorta-

ções (5:12), preocupações com a saúde (5:13-18), razões de a carta ter sido escrita(5:19-20). O resultado é a seguinte estrutura (uso títulos tirados da NIV, quandoexistem, por comodidade, embora, em alguns casos, os tenha subdividido ou limi-tado o escopo):

I. Saudação 1:1II. Declaração de abertura (Provações e Tentações) 1:2-27

1. Primeira parte

1:2-8a. Provações 1:2-4b. Fé e Sabedoria 1:5-8c. Pobreza e Riqueza 1:9-11

2.  Segunda Parte1:12-18a. Provações 1:12-15b. Vida e Língua 1:16-18c. Ouvir e Cumprir 1:19-27

(os vv. 26-27 são de transição e de ligação; os vv. 19-21ligam-se a 16-18, bem como a 22-27).

III. Pobreza e Riqueza 2:1-261.  É Proibido Favoritismo 2:1-132.  Fé e Obras 2:14-26

IV. Sabedoria e Língua 3:1-4:121. O Domínio sobre a Língua 3:1-122. Os Dois Tipos de Sabedoria 3:13-18

3. A Submissão a Deus 4:1-104. Advertência contra o Julgar um Irmão em Cristo 4:11-12

V. Provações, Fé e Riqueza 4:13-5:61. A Incerteza dos Planos Humanos 4:13-172. Advertência aos Ricos Opressores 5:1-6

VI. Paciência e Oração — Desfecho 5:7-201. Conclusão: Paciência nos Sofrimentos 5:7-11 

2. Exortações 5:12

3. A Oração da Fé 5:13-184. Propósito 5:19-20

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 DataEm face do que foi dito antes acerca da autoria e da forma da carta, sua data

pode ser apurada a seguir. É evidente que os que não crêem que Tiago, o Justo,tenha sido o autor dessa carta, datam-na relativamente tarde, cerca de 70-130 d.C.,

e com mais freqüência entre 80-100 d.C. Todavia, argumentamos anteriormenteque Tiago, o Justo, foi a fonte dos sermões contidos na carta, o que significa que omaterial pertence à época da vida de Tiago, a saber, antes de 62 d.C. Além disso,Tiago 2:14-26 com toda a probabilidade teria sido composto como uma unidadeantes de Tiago ter tido a oportunidade de conversar com Paulo sobre as doutrinascaracterísticas do apóstolo. Isso faz que a data desta parte da carta recue para an-tes de 49 d.C., pelo menos. Todavia, essa data é satisfatória para qualquer parte da

carta, visto que a igreja por essa época tinha mais de quinze anos de existência,isto é, ela teria idade suficiente para apresentar quaisquer dos problemas descritospor Tiago. Na verdade, a década de quarenta foi uma época de escassez econômi-ca em Jerusalém, circunstância que se encaixa na insegurança financeira e navulnerabilidade que a igreja de Tiago está experimentando. Assim, é provável quegrande parte do material da carta se tenha originado em meados da década dequarenta, tendo circulado oralmente, ou em tradução grega tosca, durante umadécada mais ou menos, antes de chegar à sua forma final.

A segunda etapa do trabalho, a versão final para publicação, é mais difícil dedatar. Seria com toda a probabilidade anterior a 66 d.C., visto que a fuga da igrejapara Pela teria posto um fim na continuidade de contatos com Jerusalém, e Tiago,o Justo, precisava coligir as tradições. É difícil saber quantos anos antes isso ocor-reu. É muito provável que a morte de Tiago tenha motivado fortemente a redaçãoda carta, visto que, tendo silenciado aquela voz poderosa, é certo que teria surgidoo desejo, no seio da igreja entristecida, de preservar seus ensinos para o verdadei-

ro Israel — “às doze tribos da Dispersão” — a todo o povo de Deus espalhadopelo mundo. Isso explicaria também outros dois fatos: (1) o de Hermas ter obtidouma cópia em Roma, por volta de 96 d.C., visto ter decorrido bastante tempo en-tre 66 e 96 d.C., para que uma cópia chegasse aos judeus cristãos de Roma, e (2) ofato de Tiago não ser mencionado senão por Orígenes, cerca de 256 d.C., porqueuma obra judaico-cristã que não fosse útil numa

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controvérsia doutrinária logo estaria um tanto esquecida pela igreja de Jerusalémem exílio e, a seguir, em luta pela sua existência distintiva, visto que a missão

 judaica entrou em colapso com a queda de Jerusalém em 70 d.C.

 Antecedentes HistóricosA discussão a respeito da data induziu a precedentes históricos que agora

precisam ser traçados em suas minúcias. A igreja de Tiago existiu em Jerusalémdurante cerca de 15 anos, após a ressurreição de Cristo. Na verdade, tratava-se deuma série de lares transformados em igrejas, ou sinagogas cristãs, cada uma dasquais não teria mais do que sessenta membros; a maioria delas em bem menor,com vinte ou trinta membros. Estes se reuniam para adoração, havendo com cer-

teza alguma forma modificada de liturgia da sinagoga e, logo depois, a celebraçãoda santa ceia do Senhor. Gostavam também de celebrar as festas judaicas e oscultos do templo, como o livro de Atos nos mostra. Cada lar-igreja era dirigidopor um ou mais presbíteros. Estes formavam um grupo presidido por Tiago e ti-nham a responsabilidade de governar a igreja. Também havia os diáconos (comoem Atos 6), cuja função era coletar contribuições para caridade e distribuí-lasentre os membros mais pobres da igreja. 

Havia muitos membros pobres, visto que a igreja, como um todo, era pobre.

Razões havia para isso. Primeiramente, muitos membros da igreja eram de fora deJerusalém e não podiam exercer seu ofício na cidade (e.g., Pedro e André erampescadores). Alguns deles eram peregrinos que se converteram nas épocas defestivais, os quais decidiram não voltar para casa, pois em suas cidades de origemnão havia igrejas que pudessem nutri-los espiritualmente. Em segundo lugar, ha-via inúmeros turistas, por assim dizer, que desejavam conhecer mais a respeito docristianismo em sua cidade de origem. Esses precisavam de alimento, de moradia

e até de vestuário, sendo a hospitalidade um dever importante da igreja (veja oDidaquê quanto à forma em que esse ministério operaria no final daquele século).Em terceiro lugar, o cristianismo sempre tendeu a ter forte apelo junto aos

pobres e oprimidos: prostitutas, ladrões, coletores de impostos e pessoas seme-lhantes, todos eram atraídos pela promessa de perdão; os ricos e os poderosos, porsua vez, viam nos crentes um grupo de pessoas com quem preferiam não se asso-ciar. Os pobres ouviam uma

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mensagem de fé, de esperança e de justiça (Jesus vai voltar); é a eles que Tiago  

chama de “ricos na fé” (2:5). Em quarto lugar, muitos anciãos iam a Jerusalém sópara morrer. Ao ouvirem falar da ressurreição de Jesus e se converterem, ficavamsob os cuidados da igreja. Não seria de surpreender que em certos casos os filhos

que, até então, antes de converter-se vinham sustentando seus pais envelhecidos,agora usam a conversão como boa desculpa para interromper o sustento material.Ficamos imaginando também o que aconteceu depois que “grande parte dos sa-cerdotes obedecia à fé” (Atos 6:7). Em quinto lugar, Jerusalém passou por gran-des dificuldades econômicas. A cidade estava situada em área economicamentemarginal, vítima de manobras políticas, defendida mais por razões bélicas do queeconômicas. Na década de quarenta, houve uma série de fomes que levou os aris-

tocratas ricos de fora da Palestina a mandar alimentos aos judeus famintos deJerusalém. A igreja sofria junto com o resto do povo, mas é provável que tenharecebido só pequena parte da ajuda ao povo em geral.

Finalmente, houve a perseguição. As perseguições em Jerusalém raramenteeram violentas, mas os cristãos constituíam uma “seita” desprezada. Isso tornou-se realidade marcante mais tarde, quando os crentes se recusaram a participar demovimentos patrióticos que visavam à libertação da Palestina. A perseguiçãopoderia sobrevir disfarçada de formas sutis: o trabalhador conhecido por ser cris-

tão poderia ser o último a ser contratado para trabalhar e o primeiro a ser despedi-do numa crise econômica. Se um cristão fosse roubado ou enganado em seu salá-rio ou em outros direitos, por um patrão judeu, o simples fato de esse empregadoser cristão o transformaria em vítima de preconceito, e ele sairia prejudicado nu-ma decisão de tribunal. Nada disso ajudava a igreja a enriquecer.

Os tempos eram tumultuados. Herodes Agripa I, que havia sido um bom rei,morreu de repente em 44 d.C., após um reinado de apenas 4 anos. Uma série de

procuradores veniais o sucedeu. Só Festo, de curta atuação, foi governo decente.Aqueles homens estavam abertos à corrupção e a todo tipo de suborno, e despre-zavam os judeus. Sob a chefia deles, os zelotes se levantaram criando a “Frente deLibertação da Palestina”, começando a atacar romanos e simpatizantes de roma-nos: o banditismo, a coerção e o rapto em troca de dinheiro de resgate tornaram-sea norma. O procônsul romano freqüentemente soltava os

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terroristas (zelotes) se recebessem suborno, dinheiro que em geral era roubado dossimpatizantes dos romanos.

A situação do templo não era melhor. As famílias dos sumos sacerdotes luta-vam para prosseguir no controle desse cargo; o sumo sacerdote era substituído a

cada dois anos. Muitos dos judeus achavam que aquela gente toda, para início deconversa, não tinha legitimidade sacerdotal, pois não era descendente de Zadoque(1 Samuel 2:27-36; 2 Samuel 15:24-29; 1 Reis 2:26-27; 4:2 — o último sumosacerdote dessa linhagem havia sido morto em 170 a.C.). As famílias clericais demenor prestígio eram oprimidas pelas famílias sacerdotais mais importantes, quetambém as discriminavam; os grupos sacerdotais mais poderosos eram conheci-dos pela luxúria, pela opressão contra os pobres e pela maledicência e intriga. De

modo algum eram líderes espirituais, conquanto fossem poderosos economica-mente.Havia nessa região cinco grupos econômicos. No fundo, em último lugar,

ficavam os escravos, os quais não eram numerosos na Palestina (em contrastecom o resto do Império), visto que, por causa da lei judaica, era mais barato con-tratar trabalhadores do que ter escravos. Se esses se convertessem, deveriam serlibertados no ano sabático. A seguir, vinham dois grupos de camponeses. O grupomais pobre era o que não tinha terras e trabalhava por um salário diário; em não

havendo trabalho, tais pessoas passavam fome. O grupo menos pobre era constitu-ído de fazendeiros e artesões. Os fazendeiros eram donos de suas terras, se tives-sem esse privilégio, mas muitos haviam sido forçados a vender suas fazendas, emépocas difíceis, aos mais poderosos, e agora trabalhavam como colonos ou meei-ros, repartindo as colheitas das terras que uma vez pertenceram às suas famílias.O grupo seguinte, na escala social, eram os comerciantes, que, como um todo,tinham maiores possibilidades de ascensão social. Alguns já  eram ricos; outros

tinham o suficiente. Visto que Jerusalém não era um centro comercial, esses ne-gociantes em geral precisavam viajar a fim de conseguir realizar negócios, a me-nos que participassem do comércio relacionado ao templo. Muitos deles, entretan-to, conseguiam morar em Jerusalém pelo menos parte do tempo. No topo da esca-la social estavam os grandes latifundiários, inclusive as famílias sacerdotais. Pos-suíam grandes fazendas cultivadas por peões e administradores, de modo quepodiam ficar em Jerusalém usufruindo suas rendas e governando a nação.

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A igreja de Tiago vivia no meio desse mundo que entrava em colapso. Embo-ra a igreja, como um todo, estava crescendo e espalhando-se pelo mundo, os cren-tes sentiam-se oprimidos. Em seu sofrimento, tinham a tendência a imitar o mun-do e tentavam obter poder dentro da igreja. Havia também certo enfado com res-

peito à igreja e certa impaciência quanto à demora no retomo de Cristo. A lutapelo poder combinava-se com esse enfado e produzia facções internas, bisbilhoti-ces e queixumes. Estando a igreja em estado de insegurança econômica, os cren-tes tendiam a procurar captar as boas graças dos poucos membros ricos da igreja,sobreviver à custa da caridade alheia e, de modo geral, “procurar os primeiroslugares”. Tiago detecta um mundanismo generalizado, a despeito da boa freqüên-cia aos cultos. Essa é a situação que desafia Tiago, e que ele procura corrigir com

uma carta severa, designada com o propósito de sacudir a igreja de sua letargia.

 Ênfases Temáticas 4 Até mesmo começar a escrever sobre os temas teológicos da carta de Tiago

exige alguma audácia, pois foi o especialista alemão em Novo Testamento, Mar-tin Dibelius, quem negou essa possibilidade (1921).5 A carta de Tiago contémensino ético; é uma miscelânea de várias fontes, destituída de coerência internaentre seus vários temas. Felizmente, as pesquisas sobre Tiago caminharam muito,

para além da obra de Dibelius, tendo-se iniciado com os especialistas de sua pró-pria terra, a Alemanha. Noutras palavras, o estudo de Tiago saiu do período dacrítica da forma, que estuda uma obra aos pedaços, partindo para a crítica da reda-ção, que estuda tais fragmentos como unidades integrais revisadas;6 já pertence aopassado o conceito de colar de contas, atribuído à carta, e sua unidade teológicaessencial pode ser explorada. Além disso, pelo menos um autor descobriu umaforma literária, que é a da carta literária primária, ou secundária, dotada de intro-

dução dupla, em cujo conceito se encaixa esta carta como um todo.

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Essa formageral fornece a base que nos permite extrair os temas teológicos da carta de Tiago. 

Então, se for legítimo encararmos a carta de Tiago como uma unidade revisa-da, descobriremos que ela constitui primordialmente, uma teologia da provação, aexpressão de uma teologia judaica do sofrimento, ligada a uma longa história,anterior à versão cristã de Tiago. Naturalmente

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é impossível fornecer uma discussão completa do desenvolvimento desse conceitoteológico; será suficiente que tracemos um simples esquema, mostrando os pontosprincipais, deixando as minúcias para o texto do comentário.

Dentro do contexto de uma teologia do sofrimento, a principal preocupação

de Tiago diz respeito à saúde da comunidade. O interesse da obra não é apenas aprovação, mas o sofrimento dentro do contexto comunitário. Isso significa que éerrado ler a carta por um prisma individualista; isso levaria o leitor a perder oprincipal interesse do autor. Tiago trata do comportamento dos indivíduos, porqueseu comportamento produz violento impacto sobre a vida da comunidade. O leitordeverá observar que os vários pecados e comportamentos de que trata Tiago estãorelacionados à solidariedade da comunidade cristã, e não apenas à vida interna do

indivíduo fiel ou ao relacionamento do crente fiel com o mundo não-cristão. Co-mo tal, a ética de Tiago possui grande similaridade com a ética da comunidadedos rolos do mar Morto.

O ponto de partida dessa teologia é o sofrimento. Assim é que Tiago começapondo ênfase especial nas tribulações. O próprio conceito possui dois lados. Pri-meiro, a tribulação é um teste que no contexto de Tiago sobrevém ao cristão pelosofrimento.8 Trata-se de algo que deve ser suportado, algo que ensinará a ter pa-ciência e conduzirá à virtude perfeita. Esta é, em essência, a mensagem de Tiago

1:2-4. Em segundo lugar, uma tribulação é um desafio à fé do crente. Como ocor-ria a Israel no deserto, a tentação em face do sofrimento consiste em perder a fé edesafiar a Deus. Se a pessoa fracassa no teste, lança a culpa sobre Deus, porqueum Deus soberano não mandaria um teste tão difícil. Essa é essencialmente amensagem de 1:12-15.

A carta de Tiago é convocação para uma alegria sobrenatural em face de umasituação de prova. Tal alegria, derivada da crença na volta de Cristo e na conces-

são de galardões, fica aparente em ambas as partes da abertura da carta, 1:2 e1:12. Há uma bênção em passar pela situação de prova, visto que o teste por simesmo é sinal de que a pessoa foi escolhida para estar ao lado de Deus, comoafirmou R. Jonathan (antigo rabi, citado no Talmude e em outra literatura judaica)mais tarde:

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O obreiro não examina os vasos defeituosos... Que é que ele examina, então?Apenas os vasos sadios... De modo semelhante, o Santíssimo, bendito seja seunome, põe sob teste os justos, como afirma a Escritura: “O Senhor prova os

 justos”.9 

A prova pode conduzir a um galardão (i.e., “galardão” ou “coroa da vida” [Tiago1:12], presumivelmente das mãos de Cristo, como no Apocalipse 2:10), no dia do

 julgamento. Assim, há muita razão para regozijar-nos por antecipação, na expec-tativa da recompensa, se o crente permanecer firme.

Naturalmente, o problema em Tiago é que alguns crentes não ficaram firmes.A que poderíamos atribuir esse não suportar do teste? A reação do pecador é atri-

buir a culpa a Deus, mas Tiago elimina essa hipótese com esta frase: “Deus nãopode ser tentado pelo mal,” que se traduziria melhor assim: “Deus não deve serprovado por pessoas perversas” (1:13), visto que este seria o mesmo fracasso queIsrael sofreu no deserto. Nada disso: Tiago salienta, em prosseguimento à tendên-cia do judaísmo posterior, afirmando que Deus não envia o teste (embora a inten-ção de Tiago não seja emitir um enunciado a respeito da soberania de Deus); emvez disso, o sofrimento torna-se um teste da fé dos seres humanos, por causa dosimpulsos internos maus, isto é, “a própria concupiscência” (1:14).

Por esta altura, Tiago combinou duas correntes da teologia do judaísmo poste-rior. Os impulsos maus, ou  yêser maus (este é o nome hebraico), eram bem co-nhecidos no judaísmo posterior, assim como o problema do sofrimento. Os sereshumanos possuem dentro de si mesmos um apetite indiferenciado, um desejo queos puxa tanto para a prática do bem, quanto para a do mal. Quando esse impulsoos impele para o casamento, para a edificação de uma casa, para a procriação defilhos, é bom. Todavia, visto ser um desejo indiferenciado, pode impelir a pessoa

com a mesma força para o adultério, roubo e assassinato. Esta denúncia do maudesejo não só permite que Tiago jogue sem cerimônia toda a culpa pelo fracassonos ombros do indivíduo (1:13-15), como permite-lhe também apontar para omesmo impulso como a razão da falta de harmonia na comunidade (4:1-8). Nessaúltima passagem, podemos verificar que o impulso mau está fundamentalmenteassociado a este mundo, pelo que, quando alguém é motivado

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por tal impulso, essa pessoa está fadada a ligar-se ao mundo e, desse modo, ficaránuma posição de inimizade contra Deus. Aqui encontramos o pecador numa situ-ação bem parecida com a de Paulo em Romanos 7: o apóstolo aceita mentalmenteuma teologia apropriada, e a necessidade de servir a Deus, mas encontra-se amar-

rado de tal modo a esta vida, que o sofrimento traz comprometimento, e a quebrada virtude cristã.

Entretanto, ao salientar o impulso maligno e, conseqüentemente, o indivíduo,Tiago de maneira alguma deseja negar o contexto dualístico, escatológico, dentrodo qual trabalha. O observador verifica, em primeiro lugar, que, quando Tiagopensa em Cristo, não o faz com referência a uma teologia da cruz, como o fariaPaulo, mas com referência a Cristo como o Senhor exaltado no céu, que deve

regressar em breve. Assim, as três maneiras por que Tiago pensa em Cristo são:(1) Senhor (seis vezes), (2) juiz (5:9), e (3) rei (se “lei real” de 2:8 se refere a Je-sus). A ênfase é colocada sobre a volta do Cristo exaltado, que “está próxima”, oSenhor “está à porta” (5:7-11). É à luz da vinda desta Pessoa em julgamento apo-calíptico (quando Deus invade a história, no fim do mundo), que os crentes devemperseverar, porque, como no caso de Jó, a perseverança paciente será recompen-sada, e isso acontecerá razoavelmente logo. Tiago apresenta um ensino simples arespeito de Cristo, mais parecido com aquele que encontramos nos primeiros ser-

mões de Atos do que com as idéias mais complexas de Paulo. Tiago tem, também,uma forte escatologia apocalíptica (ensino acerca do relacionamento de Deus como mundo, com ênfase em seu julgamento no fim dos tempos) à semelhança da queencontramos em Marcos 13, ou no Apocalipse.

Em segundo lugar, nota-se que Tiago enxerga outra faceta do problema dosofrimento, além daquela do impulso perverso. No judaísmo rabínico, e nos rolosdo mar Morto, não é incomum falar do impulso maligno, ou do espírito dentro do

indivíduo num segundo e, no segundo seguinte, de Satanás lá fora, que induz oindivíduo a desencaminhar-se. Tiago enquadra-se no mesmo campo de dualismolimitado (ou, quanto a isso, nos evangelhos sinóticos, i.e., os primeiros três evan-gelhos). Em Tiago 3:13-18, a causa das querelas comunitárias é atribuída a certa“sabedoria” (o próprio Tiago a define de modo negativo, “não é a sabedoria quevem do alto”, mas é certo que os

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mestres que estão dividindo a comunidade a julgam verdadeira sabedoria), descri-ta como terrena e natural (i.e., não tem o Espírito), e demoníaca. Este último ter-mo, em particular, levaria alguém a suspeitar de que o autor, se pressionado, afir-maria que a origem do pecado estaria em alguma outra coisa que não o impulso

maligno dentro de cada indivíduo. Em 4:7 Tiago esclarece esse fato, visto que, aodirigir-se aos que estão sendo reprovados no teste, que estão sendo arrastadospelos prazeres ou desejos da carne, ele clama: “Sujeitai-vos, pois, a Deus. Resistiao diabo, e ele fugirá de vós!”. Portanto, para Tiago, há um tentador do lado dedentro e outro do lado de fora. A situação de teste não veio da parte de Deus, masdo maligno. Entretanto, a culpa do fracasso na prova não pode ser atirada sobre odiabo, visto que é o impulso mau dentro da pessoa que a induz a fracassar sob a

tensão do teste.Tendo observado o problema do sofrimento na comunidade, a pessoa devenotar algo mais, a saber, o contexto teológico específico do sofrimento, que é apiedade pelos pobres. Tornara-se claro na época da comunidade judaica pós-exílica que nem sempre a piedade é recompensada com riquezas e sucesso. Sob aperseguição do rei do Império Selêucida, em Antioquia, Antíoco Epifânio (170-164 a.C.), e sob os governadores judaicos hasmoneanos (reis-sacerdotes descen-dentes do sacerdote Matias, que governou cerca de 167-163 a.C.), pareceu a todos

que seria muito provável a piedade ser recompensada com a pobreza e o sofri-mento neste mundo. Entretanto, Deus, no Antigo Testamento, é chamado liberta-dor dos pobres e oprimidos. Este fato é verdadeiro e as pessoas nele criam comtanta convicção, que invocavam o nome de Deus, apresentando-lhe suas súplicas,baseadas em que realmente eram pobres e oprimidas (e.g., Salmos 86:1). E assimfoi que, no judaísmo posterior, muitos dos grupos piedosos chegaram a entenderque sua pobreza era, de fato, um sinal de terem sido eleitos por Deus — constituí-

am a comunidade dos pobres. Em alguns poucos casos, a conclusão contráriatambém encontrava adeptos: Os ricos estavam destinados ao inferno (1 Enoque94-105, 108).

Essa teologia encontra-se tanto no Novo Testamento, quanto no judaísmo, demodo notável no sermão do monte, e em particular na versão de Lucas (Lucas 6).É aqui que a tradição dos ditados (às vezes chamada de Q10) preserva as palavrasde bênção de Jesus sobre os

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pobres (não tendo a expressão “os pobres de espírito”, de Mateus, a intenção designificar menos do que pobreza literal), tradição que, em Lucas, amaldiçoa osricos. Por todos os evangelhos há numerosas referências aos pobres e ao perigodas riquezas, que devem ser entendidas à luz dessa tradição. Tiago apóia-se fir-

memente nesse ensino.Para Tiago, a comunidade eleita constitui-se dos pobres. “Não escolheu Deus

aos que são pobres aos olhos do mundo para serem ricos na fé, e herdeiros doreino que prometeu aos que o amam?” (Tiago 2:5). Um pouco antes, diz ele:“Glorie-se o irmão de condição humilde na sua alta posição” (1:9). Além do mais,fica bem claro que a comunidade contém muitas pessoas que não são ricas, que osmembros da igreja ricos constituem minoria, mas são potencialmente poderosos, e

que pelo menos certa parte da comunidade cristã é formada de trabalhadores hu-mildes. Estes dados enquadram-se com o que se conhece através de outras fontes,a respeito da igreja primitiva em geral e da igreja palestina em particular.

Em grave contraste, Tiago pouco diz a respeito dos ricos. O próprio termorico denota alguém de fora da comunidade, e a caminho do julgamento. Assim éque dos ricos, em 1:10-11, diz Tiago que hão de murchar e perecer à semelhançada erva. Em 5:1-6 Tiago amaldiçoa abertamente os ricos, como opressores dospobres e merecedores do julgamento de Deus, que logo lhes sobrevirá. Em 2:6-7

os ricos são acusados de utilizar os tribunais a fim de oprimir os pobres, e de blas-femar o nome de Cristo. Em passagens em que é discutível que sejam crentesrelativamente ricos que estejam em mira, Tiago emprega um circunlóquio, em vezda palavra ricos, e nada lhes oferece senão crítica mordaz (2:1-4; 4:13-17).

Em face destes dados a respeito da piedade para com os pobres, pode-se, en-tão, enxergar as dimensões do interesse de Tiago com maior clareza. Primeira-mente a igreja, à semelhança da comunidade dos rolos do mar Morto, é que de

modo primordial é a comunidade dos pobres. Isso seria válido tanto literalmentecomo em termos de seu próprio autoconceito. A igreja sofre em conseqüência deseu relativo empobrecimento. Em segundo lugar, as condições financeiras relati-vamente pobres resultam em parte da perseguição tenaz por parte dos ricos. Ficabem claro que a comunidade de Tiago não está sofrendo aquele tipo de persegui-ção legal que conduzia ao martírio e mais tarde ocorrerá

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no Império Romano, mas parece que de fato sofre certos tipos de discriminaçãoda parte de um grupo a que Tiago dá a alcunha de “os ricos”. Parte desse sofri-mento pode originar-se do fato de os cristãos serem pobres. Afinal, como se de-monstra pela rebelião dos judeus no ano 70 d.C. (como também por vários distúr-

bios entre os pobres, em Roma), havia muitas queixas por parte dos pobres contraos ricos. Todavia, se os cristãos constituíssem minoria relativamente desprezada,poder-se-ia esperar que sentissem com maior intensidade o peso da opressão (osricos podiam contar com os tribunais a seu favor, e contra o grupo dos crentespobres), e que atribuiriam a perseguição a motivos religiosos.

A situação coloca a igreja num contexto em que se toma atraente, como dizTiago, assumir certo tipo de compromisso com o mundo, que esfacela a solidarie-

dade da comunidade. Em primeiro lugar, o observador vê a igreja cedendo e ten-tando agradar aos ricos. Isso, afirma Tiago, é deslealdade fundamental contra a leide Cristo. Em segundo lugar, há uma tendência para evitar as exigências da cari-dade; mas, adverte-os Tiago, isso revela uma fé essencialmente defeituosa, e ofracasso na provação, ao contrário de Abraão. Em terceiro lugar, surge a tentaçãode procurar as riquezas; tudo isso forma a base das advertências de Tiago, dirigi-das ao grupo de mercadores (melhor diríamos: de vendedores ambulantes) exis-tente na igreja (4:13-17).

Uma segunda reação contra a pressão externa poderia estar ligada ou não demodo direto à situação, mas Tiago pelo menos a relaciona à mesma causa básica.A comunidade sob pressão tende a esfacelar-se em facções em luta entre si, cadauma tentando obter o controle, sobrepor seus ensinos e tirar vantagens de suaposição. Parece que esse é o problema de que tratam os capítulos 3 e 4. É desne-cessário dizer que tais reações em face da pressão estressante de modo algumforam desconhecidas em outras eras.

Em face de uma comunidade que inclui os pobres, que se vê passando porprovações e verificando a existência de fraquezas internas, em vez da persistênciapaciente dos profetas (i.e., a comunidade não estava disposta a esperar e permitirque o Senhor, em seu retomo, resolvesse as questões com justiça). O observadorse pergunta imediatamente qual é o papel da fé e da graça em tal situação. É aquique a carta de Tiago apresenta sua maior dificuldade, em particular porque o pen-samento que percorre a carta toda nem sempre é percebido em seu contexto maisamplo.

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Em primeiro lugar, parece que Tiago apresenta duas definições de fé. Umadelas é encontrada principalmente nos capítulos 1, 2 e 5 (1:3, 6; 2:1, 5; 5:15), epoderia ser traduzida por “compromisso de fidelidade” ou “confiança”. O concei-to oposto seria o de “hipocrisia” ou “duplo ânimo” (1:8; 4:8), quando a mente está

dividida, na qual o impulso mau é dominante, de modo que a pessoa não confiaem Deus apenas, para receber ajuda, mas busca-a no mundo também. Aqui, a fé écaracterística daquele que está perseverando na provação; trata-se de definição defé muito próxima da de Paulo. A outra definição de fé encontra-se apenas em2:14-26. Nessa passagem, fé é apenas “crença intelectual” (assim também 2:19); écerto que essa definição não contém o elemento de compromisso de fidelidade econfiança, isto é, o caráter pessoal, tão evidente nos conceitos de Paulo e de João.

Em segundo lugar, para Tiago, o verdadeiro comprometimento de fidelidaderesulta em obediência. Isso se toma claro desde que a pessoa examine 2:8ss, emque a lei, se interpretada por meio de Cristo, é tranqüilamente aceita como padrãode conduta cristã, da mesma forma que Mateus dispõe. Quer a pessoa examine1:19-27, em que o recebimento da palavra resulta em cumpri-la, quer a pessoaexamine 2:14-26, em que o verdadeiro crente possui fé e obras, o verdadeirocomprometimento de fidelidade resulta em obediência. Assim, a fé de tato consti-tui um recurso, nessa situação, se se tratar do primeiro tipo de fé, um comprome-

timento fiel a Deus, uma separação total do mundo, visto que tal fé permitirá aocrente agir segundo a palavra, a lei, obedecendo a ela em obras de justiça. O outrotipo de fé é inútil.

Em terceiro lugar, Tiago não demonstra ter tido contato direto com o pensa-mento paulino. É precisamente na passagem de 2:14-26 que esse fato se tornamais evidente. As definições de Tiago para cada um dos três termos cruciais, “fé”,“obras” e “imputado para justiça”, bem como o uso que ele faz do exemplo de

Abraão (exemplo já enraizado no ensino da ética cristã, não sendo algo da posseexclusiva de Paulo), diferem das definições de Paulo. Se Tiago estivesse reagindode fato contra Paulo, seria um Paulo tão distorcido e mal interpretado que dificil-mente se poderia chamar Paulo.

Fé, então, é um compromisso de fidelidade a Deus, como seu primeiro signi-ficado. Tal compromisso vai muito além das palavras da lei, e até mesmo daspalavras interpretativas de Cristo. Tal compromisso induz

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à oração, e a oração produz a sabedoria de Deus. É importante que notemos, aqui,dois fatos a respeito da sabedoria. Por um lado, é algo de que precisamos numasituação de provação (1:5), visto que nos conduz à perfeição moral. Por outrolado, trata-se de um dom vindo lá de cima (3:13ss e provavelmente 1:17 também),

o qual concede uma série de virtudes preservadoras da comunidade, quando moti-va uma pessoa. Qual é, então, o significado desse dom de Deus? Ficou claro quenão é a típica identificação judaica — a sabedoria é a Tora, ou a lei — visto que alei sem sombra de dúvida está separada da sabedoria, em Tiago. Tampouco seriaadequado falar de uma “Cristologia da sabedoria”, visto não haver evidência deque nesta carta Tiago fale de Cristo como a sabedoria. Todavia, fica bem claroque a função da sabedoria, em Tiago, segue paralelamente à função do Espírito,

como ocorre em grande parte do Novo Testamento. Portanto, temos em Tiagouma extensão da identificação do Espírito com a sabedoria. Tal conceito já eraconhecido anteriormente, no judaísmo, e em alguns setores incluía a expectativade que a sabedoria seria um dom de Deus a ser entregue aos eleitos na era vindou-ra. Na verdade, em Tiago a sabedoria é um dom de Deus para os eleitos. É umpoder dentro do crente que produz as virtudes necessárias à vida comunitária(3:13-18; o catálogo de vícios e de virtudes é semelhante ao de Gálatas 5, em quePaulo menciona a função do Espírito, e dos rolos do mar Morto 1 QS 4), e capaci-

ta o crente a suportar a provação. Ao fazê-lo, o crente contra-ataca o desejo mau,que pode ser a outra sabedoria: “Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas éterrena”. A outra sabedoria funciona de modo semelhante ao do espírito, em Ro-manos 8, ou o impulso bom do pensamento rabínico posterior.

A sabedoria enquadra-se, então, num contexto de oração. A oração, em 1:5-8,certamente é pré-requisito para a sabedoria, da mesma forma que em Lucas10:21-24 e em 11:9-13 a oração é pré-requisito para o Espírito. Em Tiago 4:1-3 a

queixa não é que as pessoas não estão orando, mas que a oração está direcionadade modo errado; o foco de interesse é o mundo e as necessidades mundanas doscrentes — que não estão pedindo a bênção certa, a saber, a sabedoria divina. Osmotivos desses crentes já estão sendo controlados pelo mau impulso. No contextofinal, 5:13-18, a oração funciona de modo semelhante ao da confissão, em 1 João,e produz a cura que em 1 Coríntios 12

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é atribuída ao Espírito. A conexão neste caso pode ser que a comunidade é quemverdadeiramente possui a sabedoria divina, de modo que os presbíteros (talvez osverdadeiros mestres sábios do capítulo 3) são os que ficaram cheios do poderdivino. Pelo menos é o mesmo tipo de oração (a oração da fé, isto é, a confiança),

que cura os doentes e promove a sabedoria no crente. Pode bem ser que para Tia-go a sabedoria divina (i.e., o Espírito) seja uma possessão da comunidade, comotambém o é do indivíduo.

Com isto nada mais se faz senão traçar um esboço da teologia de Tiago, namais breve das descrições. Muito mais poder-se-ia escrever, e na verdade tem sidoescrito. Todavia, esse breve esboço nos revela um autor interessado numa comu-nidade que suporta grande sofrimento. Ele vê sua comunidade formada de eleitos

pobres que estão sendo provados pelo diabo. De fora da comunidade, estão sendooprimidos pelos ricos; dentro da comunidade, enfrentam dissensões; e cada um,dentro de si mesmo, luta contra o impulso mau. Os crentes podem (e devem) su-portar tudo, e regozijar-se. Todavia, para isso, precisam confiar em Deus semreservas, recusar-se a pôr alguma esperança no mundo e na segurança mundana,praticar a palavra que ouviram, perseverar em sua identidade, a de pobres, agindocom a máxima caridade e, acima de tudo, procurar a sabedoria divina, que oscapacita a viver segundo a exigência total de Deus. Ao fazer isso, perseverarão até

que o Senhor, que já está à porta, finalmente chegue.

Tiago e JesusFica muito claro, para qualquer leitor superficial de Tiago, que seus ensinos

estão muito próximos dos de Jesus. De modo particular, Tiago aproxima-se muitodos ensinos de Jesus registrados no Sermão da Montanha (Mateus 5—7), ou noSermão do Lugar Plano (Lucas 6). Esse fato é sublinhado pelo seguinte: em toda a

literatura posterior, judaica e cristã, com uma única exceção (1 Enoque), só Tiagoe Jesus se pronunciam contra os ricos.O problema que tal realidade suscita é que Tiago jamais menciona uma pala-

vra de Jesus de modo direto. Tiago nunca diz: “Jesus disse isto”, ou “o Senhordisse aquilo”. Será que um irmão de Jesus não citaria o Senhor de modo direto?Será que uma pessoa saturada das idéias de Jesus não o mencionaria pelo menosuma vez? A resposta

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é que Tiago cita Jesus pelo menos uma vez, sem, todavia, mencionar a fonte(5:12). Isso faz que o leitor acalente a possibilidade de os demais versículos deTiago (e.g., 3:18; 4:18) serem palavras de Jesus que os evangelhos não registra-ram.

Por trás desse fenômeno jaz uma característica da igreja primitiva. Antes deos evangelhos serem escritos, havia, com toda a probabilidade, alguns registrosdos ensinos de Jesus (Lucas refere-se a certas fontes em Lucas 1:1-4), mas a tra-dição básica era oral. Visto que Jesus era o cabeça e o Senhor da igreja, seus ensi-nos constituíam os alicerces, os mandamentos da vida. Os primitivos cristãosmemorizavam seus ensinos da mesma forma que muitos judeus memorizavam osde seus mestres. Há maiores evidências disso no evangelho de Mateus, em que os

ensinos de Jesus se dividem em cinco livros (capítulos 5-7, 10, 13, 18, 24-25),cada um dos quais apresenta um tema único. O objetivo foi facilitar a memoriza-ção (considerando que a maioria dos cristãos não sabia ler, nem podia comprarlivros); Mateus usou seqüências numéricas e palavras com a função de elos, a fimde auxiliar a memória. Mais tarde, depois de terem surgido os evangelhos, o ensi-no doutrinário foi comprimido em manuais do tipo Didaquê, para instrução dosnovos convertidos.

O resultado desse processo foi que a maioria das pessoas da igreja havia a-

prendido muito do ensino de Jesus, sabendo-o de cor. A carta de Tiago foi escritacom o propósito de tirar vantagem desse fato. Onde Tiago cita Jesus de mododireto, sem mencioná-lo, Tiago entende que os crentes já estarão sabendo quemfez aquele pronunciamento na origem. Pode até ser provável que a maior partedos provérbios e ditados de Tiago tenha vindo de Jesus. Todavia, mais importan-tes são suas alusões a Jesus (cerca de 35 menções na carta, isto é, uma a cada trêsversículos (e.g., 2:5 e Mateus 5:3, 5; 11:5, 2:6 e Lucas 18:3; 2:8 e Mateus 22:39-

40). O leitor cristão da igreja primitiva reconheceria imediatamente que Tiagoestava recordando as palavras de Jesus. As palavras do Senhor, bem como as doAntigo Testamento, são a fonte de autoridade de Tiago. Do Antigo TestamentoTiago apanha principalmente as histórias; de Jesus, ele colhe o ensino. Essa com-binação significa que a mensagem de Tiago só pode ser rejeitada se a pessoa rejei-tar a Jesus também.

Tiago é, pois, um manual da comunidade cristã primitiva. Esse manual

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mostra como o líder de uma comunidade bebia da fonte primordial da comunida-de, objetivando tratar de questões contemporâneas. Assim é que Tiago serve demodelo para a igreja sobre como utilizar os ensinos de Jesus. Para Tiago, os ensi-nos de Jesus não são apenas uma coletânea de opiniões interessantes, mas inapli-

cáveis à vida moderna, ou utilizáveis apenas no milênio. Para Tiago, Jesus é Se-nhor, e o ensino de Jesus é o mandamento da vida. O discipulado cristão não é umelemento opcional, extra, mas a verdadeira essência da vida cristã. Resta-nos, tão-somente, aplicar o ensino de Tiago às situações específicas, e dele tirar conclusõesapropriadas, isto é,  que nós preguemos os ensinos de Jesus como compêndio,expresso de modo direto ou indireto. Tiago é o modelo de como esse ministériofoi conduzido nas primeiras décadas da igreja, um exemplo cheio de autoridade

para a igreja moderna observar e copiar.

 Notas1. F. F. Bruce, New Testament History (História do Novo Testamento), Nova

lorque, Doubleday, 1972, p. 370.2. F. O. Francis, “The Form and Function of the Opening and Closing Para-

graphs of James and 1 John” (A Forma e Função dos Parágrafos de Abertura e deConclusão de Tiago e 1 João), ZNW 61 (1970), p.110-26.

3. Ibid.4. Essa seção é versão revisada de “Perspectivas Teológicas da Epístola de

Tiago”,  Journal of the Evangelical Theological Society (Periódico da SociedadeEvangélica Teológica) 23 (1980), p. 93-104, reproduzido aqui com permissão doeditor.

5. M. Dibelius, James (Tiago).6. A crítica da forma, que se iniciou de certa forma com Martin Dibelius, foca-

liza a separação das unidades que compõem o texto, as quais eram transmitidasverbalmente (e.g., provérbios, ditados, histórias e sermões). A crítica da redação,que se iniciou na década de cinqüenta, focaliza o modo em que o editor final daobra juntou as várias tradições, de maneira que ficassem unidas num todo, comuma teologia única. Ambas as formas de crítica de início foram desenvolvidaspara os evangelhos, nos quais os evangelistas trabalharam com as palavras profe-ridas por Jesus. Só mais tarde, tais métodos seriam aplicados às cartas.

7. F.O. Francis. “The Opening and Closing Paragraphs of James and 1 John”.

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8. O sofrimento no Novo Testamento é algo que a pessoa suporta porque écristã. Tanto no uso do vocabulário grego, quanto nas atitudes, o Novo Testamen-to o diferencia da doença, que todas as pessoas experimentam, tanto os cristãoscomo os não-cristãos. Tiago demonstra essa diferença com clareza em 5:7-18. Em

5:7-11, o sofrimento deve ser suportado; em 5:14-18, devemos orar pelos doentes,para que sejam curados. Veja ainda P. H. Davids, “Suffering and Illness in the

 New Testament ” (Sofrimento e Doenças no Novo Testamento), em Understan-

ding Power Evangelism (Como Entender a Evangelização de Poder) (a ser publi-cado; o título é provisório), orgs. Douglas Pennoyer e C. Peter Wagner (Ventura,Califórnia: Regal Books, 1989).

9. Gênesis Rabba 55:2. 

10. Q é um símbolo utilizado pelos especialistas em Novo Testamento paraaquelas tradições que Mateus e Lucas apresentam em comum, mas não são encon-tradas em Marcos. Acreditam alguns que Q era um documento escrito; outros, quese tratava de uma tradição oral.

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1. Sabedoria para as Provações da Vida (Tiago 1:1-27)

1:1 / A carta de Tiago inicia-se com uma saudação simples e direta. O autoridentifica-se de modo simples, como Tiago, servo de Deus. Houve apenas umTiago, tão largamente conhecido na igreja primitiva que não precisaria de outraforma de identificação. Trata-se de Tiago, o Justo, irmão de Jesus, líder da igrejaem Jerusalém. Supõe-se que os leitores da carta saibam reconhecer seu autor poresse nome.

Entretanto, apesar de toda a proeminência e importância da posição ocupadana igreja (tão importante que a carta de Judas começa assim: “Judas, servo deJesus Cristo, e irmão de Tiago”), o título que ele deu a si próprio é muito modes-

to. Ele é apenas um servo. É possível que Tiago esteja pensando em si mesmocomo alguém do porte de Moisés, escolhido por Deus e colocado a seu serviço(Deuteronômio 34:5; Josué 1:2; Números 12:7); todavia, é mais provável que essetítulo reflita a humildade de seu autor. A declaração mais sublime que Tiago podefazer a seu próprio respeito não é sua liderança na igreja, nem seu relacionamentocom Jesus, mas o fato de que ele, à semelhança de todo e qualquer crente em Cris-to, é um servo de Deus e de Cristo. Ele chama Jesus o Senhor Jesus Cristo, poispensa nele como seu Senhor exaltado no céu, de onde voltará em glória, a fim deacertar com justiça as coisas no mundo. É esse retrato de Jesus que predomina portoda a carta.

Tiago envia suas saudações às doze tribos da Dispersão. Por um lado, vê aigreja como um corpo unido ou nação distinta no mundo. Os crentes formam opovo de Deus, como os romanos são o povo de César e os egípcios, o de Faraó.Os crentes são os escolhidos de Deus aqui na terra. Entretanto, não são um grupopoderoso, visto que estão dispersos, isto é, estão na Dispersão. Não são um grupo

fisicamente unido; não possuem um país a que possam chamar seu. Em vez disso,estão espalhados pelas nações; pertencem a determinada nação, mas jamais seidentificam com o povo entre o qual vivem; na verdade, vivem como estrangeirosno país em que nasceram. Sua dignidade não está no poderio, nem no número,mas no fato de pertencerem a Deus.

Tiago inicia a carta propriamente dita apresentando seus três tópicos

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principais — provas, sabedoria e riquezas: (1) a perspectiva própria dá à pessoaalegria a despeito da situação difícil, embora a pessoa, a fim de perseverar em talsituação, venha a precisar da sabedoria divina. (2) A pessoa que ora pedindo sa-bedoria precisa orar partindo de uma posição de comprometimento de fidelidade.

Sem essa dedicação fiel, ela nada recebe. (3) Uma das principais provas da vida,um dos mais importantes testes de fidelidade é a riqueza e a forma que a pessoa autiliza. Não há necessidade de temer os ricos — o fim deles está à vista.

1:2 / Tiago chama seus leitores de irmãos, o que significa que ele os conside-ra membros da igreja em boa posição espiritual. Há um caloroso afeto na abertura,que prossegue por toda a carta, a despeito da crítica aos irmãos. Tiago está unido

a seus leitores, e lhes partilha as fraquezas, como demonstra de modo enfático em3:1-2.Os leitores deverão ter por motivo de grande gozo o fato de passarem por

provações. As provações a que Tiago se refere são as situações difíceis de teste ede aprimoramento da vida, as circunstâncias duras em que a fé é provada comdores, como no caso da perseguição, uma decisão moral difícil, ou uma experiên-cia trágica. Tiago não disfarça a realidade do sofrimento — as lágrimas, a dor, osuor. Em vez disso, Tiago aponta para uma perspectiva transformada por tais pro-

vações. Se a pessoa enxergar a situação difícil não meramente da perspectiva doproblema imediato, mas também da perspectiva do resultado que Deus está pro-duzindo, ela pode sentir profunda alegria. Não se trata de uma felicidade superfi-cial, mas uma antecipação dos galardões futuros, do fim dos tempos (alegria esca-tológica). Tal gozo não só é possível, mas é também necessário (pelo que Tiagonos ordena a experimentá-lo), visto que sem ele a pessoa pode tomar-se tão atola-da em seus problemas atuais que chega a abandonar a fé e a desistir de vez da

luta. Só mediante a perspectiva de Deus, considerando-se a si próprio muito feliz,pelo fato de antecipar os galardões futuros de Deus, pode o crente manter a fé,apesar das graves pressões da vida.

1:3 / Uma das razões por que o crente pode considerar-se feliz em plena ad-versidade é que o sofrimento produz bons resultados agora mesmo. Com José ocrente pode dizer: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra

(Tiago 1:2-27)

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mim, porém Deus o tomou em bem, para fazer como se vê neste dia” (Gênesis50:20). O processo de provar a fé é como o de temperar o aço: o calor, em vez dedestruir o aço, torna-o mais forte. O livro apócrifo Siraque (2:5) emprega outraimagem: “O ouro se prova no fogo, e os homens aceitáveis a Deus na fornalha da

aflição”. O processo é difícil, mas os resultados, excelentes.Tiago presume os bons resultados quando escreve: a prova da vossa fé de-

senvolve a perseverança. A provação relaciona-se ao fato de o crente ter fé, dehaver nele “ouro puro”. Não deveria o crente encarar a provação com medo, masolhar para além da provação, para os resultados, que serão a perseverança. Nãose trata de uma virtude desprezível. Primeiramente, é uma virtude que só o sofri-mento e a provação produzem. Em segundo lugar, produz um caráter estável, uma

firme e bem fundamentada disposição de fé: é uma virtude heróica. A pessoa quedetém essa qualidade consegue manter sua posição, sejam quais forem as circuns-tâncias, e nele se pode confiar. Certamente a igreja precisa de líderes dessa têmpe-ra. Em terceiro lugar, essa qualidade relaciona o crente a outros crentes que fica-ram famosos na tradição judaica por terem-na possuído: Abraão, que passou pelofogo da provação dez vezes (Jubileu 17:18; 19:8), José, que passou de provação aprovação, antes de tornar-se governador do Egito (Testamento de José 2:7; 10:1),ou Jó, que suportou com paciência uma série de sofrimentos quase incríveis, sen-

do no fim galardoado (Tiago 5:11; Testamento de Jó).Sem dúvida alguma essa virtude é muito importante, mas também é certo que

os meios para sua aquisição não são nada populares. Todavia, o crente foi chama-do para encarar a realidade: não importa quão difícil ou desagradável seja a pro-vação, é por meio dela que Deus está aperfeiçoando o crente.

1:4 / A perseverança, entretanto, não é virtude passiva, ou que a pessoa ob-

tém mediante esforço próprio, com ranger de dentes, mas é traço do caráter que sedesenvolve, se firma e se molda ao redor da fidelidade centralizada em Cristo.Não surge da noite para o dia, pois é um processo. Nesse processo, a perseverançadeve terminar a sua obra, ou “exercer efeito completo”, visto que é a formaçãoda personalidade toda que está em jogo. A pessoa deve ter muito cuidado para nãoincidir num curto-circuito: Não tire o metal do fogo cedo

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demais, não frustre mediante aborto o desenvolvimento da criança, não abandonea escola — para usarmos três metáforas comumente utilizadas para descrever ocurto-circuito. Tiago não vê um único objetivo nesse processo, como o desenvol-vimento do amor como a virtude máxima (Romanos 13:8; 2 Pedro 1:6) ou o fruto

do Espírito (Gálatas 5:6; Romanos 6:22) — embora o autor da carta certamente oteria aprovado —, pois o alvo é global e de maior alcance. Forma-se a pessoa, nãoapenas em parte, não só moralmente, mas no todo, como um ser integral, e issosignifica que os crentes se tomaram maduros e completos, não tendo falta decoisa alguma. 

Ao referir-se a uma pessoa como perfeita, Tiago não tem em mente a perfei-ção isenta de pecado, mas com toda a certeza refere-se a um conceito parecido

com o de Mateus 5:48: “Sede vós, pois, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai queestá nos céus”. Trata-se de um conceito de compromisso fiel ao mandamento, emtoda a sua profundidade, com toda radicalidade, uma dedicação fiel de modo queo que for menos do que total obediência já é pecado; o crente peca, mas buscaarrependimento; essa dedicação, em vez de reduzir a palavra a um padrão cultural“pagão”, mundano, procura ser amoldada e formada pela palavra. Em outras pala-vras, Tiago está-se referindo ao caráter cristão maduro. Os crentes são maduros no sentido de que são bem desenvolvidos; são completos no sentido de que todas

as virtudes e percepções estão em ordem, não tendo falta de coisa alguma porserem espelhos de Cristo. É isso que a adversidade produzirá no cristão se ele opermitir. Todavia, o processo não é passivo; o crente precisa permitir que issoaconteça. Há um imperativo na frase (uma tradução melhor seria: “permita que aperseverança termine sua obra”). É possível fazer ocorrer um curto-circuito noprocesso e, assim, frustrar o desenvolvimento do caráter; o crente sofreria em vão.

1:5 / Tiago volta-se, agora, para o segundo tópico. Parece tratar-se de umtema totalmente novo, o da sabedoria e da oração. Na verdade, é um tema impor-tantíssimo da carta, mas nem por isso deixa de estar bem relacionado com o temaanterior. Se uma pessoa ouvisse um clamor no sentido de ser perfeita, certamentetal pessoa bradaria: “Socorro! Que é que eu posso fazer? (à semelhança de Paulo:“Para estas coisas quem é idôneo?”, 2 Coríntios 2:16; 3:5-6). É necessário ajudadivina,

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e esta, em Tiago, sobrevém sob a forma de sabedoria (cf. 3:13ss). Na verdade,nada deveria faltar aos crentes, mas, para alcançar tal posição, precisam da sabe-doria divina.

Tiago compartilha essa percepção. Se algum de vós tem falta de sabedoria,

peça-a a Deus. Tiago pode fazer isso com confiança total em que Deus a todosdá liberalmente. Aqui, Tiago apela à tradição a respeito de Jesus (os ensinos deJesus ainda não escritos que, mais tarde, formariam os evangelhos), pois o Senhorprometera que Deus concederia a seus filhos o que lhe pedissem (Mateus 7:7-11;Marcos 11:24; Lucas 11:9-13; João 15:7). Que dádiva melhor poderiam pedir doque a sabedoria de que necessitassem a fim de resistir às provações que estavamenfrentando? Deus... dá porque ele é doador; Deus dá liberalmente, o que signi-

fica que dá sem reservas mentais, dá com simplicidade, com um coração singelo.Não está procurando um lucro escondido da parte dos crentes; o Senhor não abri-ga motivos desprezíveis, tampouco sentimentos mesquinhos. Na verdade, não sóo Senhor dá generosamente, mas não censura. Isso significa que Deus não sequeixa do dom concedido, nem de seu custo. Não é “um tolo”, que “tem muitosolhos, em vez de um. Dá pouco e repreende muito, abre a boca como um arauto;hoje empresta e amanhã toma de volta” (Siraque 20:14-15). Não, Deus dá verda-deiras dádivas; nenhuma queixa, nenhuma crítica (Como? Você precisa de ajuda

outra vez?), nenhum motivo escuso, nenhuma relutância. O Deus dos cristãos é 

caracterizado pelo hábito de dar livre e generosamente, até o ponto da prodigali-dade.

E que dádivas concede o Senhor! Dá sabedoria, que nesta carta é equivalenteao Espírito Santo, dádiva que os leitores de Tiago, sendo ex-judeus, reconheceri-am como um dos dons da era vindoura (como o fizeram as pessoas dos rolos domar Morto). A sabedoria vem ao crente mediante Cristo (1 Coríntios 1:24; 2:4-6).

Certamente, é disso que precisamos a fim de resistir às provações e chegar à per-feição.

1:6  / Nem todos recebem, todavia, a sabedoria que pedem. “Onde está essepoder espiritual?”, alguém poderia perguntar. “Se Deus é tão generoso, onde estáa sabedoria de que eu preciso a fim de discernir a situação, resistir à provação echegar à perfeição?” É certo que tais perguntas eram formuladas, porque Tiago dáa resposta: Peça-a, porém, com fé , não duvidando.

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Em primeiro lugar, o crente deve pedir com fé, isto é, num contexto de confi-ança. Fé, aqui, não é mero conhecimento intelectual (fé em 2:19 é simples conhe-cimento intelectual). Tiago não acha que basta a pessoa dar assentimento intelec-tual a uma doutrina para receber a bênção (e.g., Deus dará aos crentes o que eles

lhe pedirem; portanto, o Senhor lhes dará sabedoria, se lhe pedirem). Não pareceque Tiago está exigindo que se proceda a uma pesquisa a fim de apurar o grau deverdade de determinada questão (e.g., que aquela promessa realmente foi feita porJesus, ou que, em cada grupo de 100 pessoas que oraram, todas receberam o quepediram, enquanto apenas 50  pessoas, de um grupo semelhante de pessoas quenão oraram pedindo algo, obtiveram resultado satisfatório); parece que Tiago estáexigindo fidelidade no compromisso. Portanto, tampouco ele está referindo-se à fé

como um sentimento emocional (i.e., se as pessoas puderem continuar sentindoque Deus vai verdadeiramente conceder-lhes sabedoria, elas a receberão). É certoque essa é a forma por que Tiago tem sido interpretado pelos comentaristas poste-riores, tanto os da religião popular, moderna, como os dos tempos antigos. Contu-do, Tiago não está tentando incentivar os crentes a enfiar suas dúvidas nas pro-fundezas do coração, enquanto fazem ressoar um sentimento emocional de certe-za: Tiago incentiva-os a ser fiéis. Fé para Tiago é fidelidade absoluta a Deus, semambigüidade, uma confiança total em Deus porque Deus é Deus. Portanto, a fé

permanece descansando em Deus, a despeito da dúvida, e resiste à provação. A féexprime-se no “se não”, dos amigos de Daniel (Daniel 3:15). Trata-se de confian-ça fervorosa em Deus, ou de resistência ao lado de Deus, a despeito das circuns-tâncias externas.

Devido a este fato, o oposto da fé (não duvidando) é a dúvida. A pessoa queduvida não está duvidando que Deus fará algo específico, mas está duvidando emgeral. “Será que Deus realmente age hoje?”, ou, numa expressão mais profunda.

“Será que posso confiar que Deus fará o que é o melhor para mim, ou devo procu-rar meus interesses por mim mesmo?”. É possível que Tiago esteja aplicando aquiuma tradição proveniente de Jesus, semelhante à de Mateus 21:21: “Em verdadevos digo que, se tiverdes fé e não duvidardes... fareis o que foi feito à figueira”.

O que duvida é semelhante à onda do mar. O quadro é vívido: quem duvidaé “alguém que vive num conflito interno entre confiar

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em Deus e desconfiar de Deus”. (F. Mussner,  Der Jakobusbrief  [Freiburg:Herder, 1967], p. 70.) Durante um culto, a pessoa é inspirada pela música, pelaspalavras de louvor ou pela exortação do sermão, e confia plenamente em Deus. Láfora, essa pessoa enfrenta os furacões da adversidade e, em vez de confiar a des-

peito de seus sentimentos, desiste de lutar e só crê naquilo em que seus própriosrecursos e seu próprio raciocínio podem conseguir-lhe. À semelhança da água domar, que é atirada de um lado para outro, o crente instável avança e retrocede, nãochegando a lugar algum.

1:7-8 /  Não pense tal homem, diz Tiago (para distinguir com clareza esseindivíduo de outras pessoas de fé estável), que receberá do Senhor alguma coi-

sa. É óbvio que Tiago não pode ter toda a certeza de que tal homem, ou mesmo oblasfemo mais perverso, nada receberá do Senhor. Deus é gracioso e bondoso, ecom freqüência dá mais do que prometeu, e sempre concede mais do que as pes-soas merecem. Sol e chuva caem sobre bons e maus igualmente. Todavia, umapessoa assim, que hesita entre Deus e o mundo não deve esperar alguma coisa daparte do Senhor. Tal pessoa não tem o direito de esperar alguma coisa, e menosainda sabedoria, visto que ela não está seguindo os princípios adequados. Todasas promessas do evangelho presumem que haja fidelidade da parte do crente para

com Deus, e confiança no Senhor (e.g., a fórmula “em meu nome”, João 14:14).Sem esta confiança, há uma questão mais fundamental a ser resolvida, diferentedo item solicitado em oração: tal questão básica é a da confiança. Enquanto apessoa não tiver solucionado essa questão, não está em posição de começar a orar.

Afirma Tiago que tal indivíduo é homem vacilante, a saber, inconstante emtodos os seus caminhos. O judeu pré-cristão Siraque já havia afirmado: “Meufilho, não desobedeças ao temor do Senhor, e dele não te aproximes com um co-

ração vacilante” (1:28) e “ai dos corações cheios de medo, e mãos enfraquecidas,ai do pecador que anda em dois caminhos... ai de vós que perdestes vossa resis-tência” (2:12-14). Tiago tem essa mesma preocupação por essa pessoa de mentedobre. Se a mente de uma pessoa estiver dividida, e não sabe, realmente, em quemdeve confiar, ninguém pode confiar em tal pessoa. Trata-se de alguém que nãoapenas não tomou sua decisão ainda, mas é também inconstante. Entretanto, talpessoa pode “confiar” em Deus

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e ser membro de uma igreja cristã, mesmo tendo o coração cheio de dúvida, dei-xando emocionalmente em aberto suas opções e fontes de apoio contraditórias.No seu íntimo há uma instabilidade básica que, no fim, se tornará evidente em seucomportamento. Não se pode confiar em tal pessoa, visto que se assemelha ao

corvo da fábula de Esopo, que tentava andar em dois caminhos ao mesmo tempo.A convocação implícita é à fidelidade. “Ponha todos os ovos num único cesto”, eque esse cesto seja Deus. Sem fidelidade a oração é vã. Tiago 4:1-10 deixa esseconceito claríssimo.

1:9 / Um dos sinais da confiança em Deus é a capacidade de ver além dascircunstâncias atuais. Aqui Tiago volta a um tema discutido no versículo 2, que

ele agora concretiza ao dizer: Glorie-se o irmão de condição humilde... Devetratar-se de um irmão, visto que só o cristão tem recursos para enxergar além dasatuais circunstâncias. O crente é um membro da comunidade pertencente à eravindoura, mas também é membro da comunidade dos pobres, na era presente. Otermo condição humilde indica não apenas uma pessoa a quem faltam bens mate-riais e, por isso, leva uma existência da mão-à-boca, lutando a fim de conseguir omínimo necessário para continuar vivendo (e às vezes incapaz de conseguir essemínimo), mas refere-se também ao socialmente desprezado. Esse crente é uma

pessoa cuja sorte na vida deixou-o humilhado.O crente deve gloriar-se na sua alta posição. Tal exortação visa a fazer o

crente exultar ou gloriar-se (sentir orgulho) em sua situação. Que contraste comsua situação social visível! Em que tal pessoa poderia gloriar-se? A resposta é:“na sua alta posição”. Isso não significa que Deus levantará o crente no futuro,mas que já o levantou. Aqui está um pobre crente que sabe que é herdeiro do uni-verso (Mateus 5:3, 5; Tiago 2:5). Eis o regozijo de Maria, que viu Deus encher de

bens os famintos e elevar os humildes na pessoa dela mesma (Lucas 1:52-53). Talpessoa percebe que as circunstâncias externas humildes não constituem a essênciada situação. Esse indivíduo não é meramente uma pessoa rica, tampouco um dospoderosos da Palestina, mas um filho de Deus, herdeiro do Senhor, que receberáum reino de amplitude mundial. O crente tem muito de que orgulhar-se — ougloriar-se — mas só se toma visível aos que têm fé e confiança.

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1:10  / O rico, no entanto, dificilmente ocupa essa posição gloriosa. É certoque os ricos estão numa situação em que se podem gloriar. Afinal, não sofremprivação material alguma, a fome não os acossa, seus filhos são bem alimentadose sadios, são poderosos na cidade, recebem respeito de todos os que os rodeiam

(cf. Salmo 73). Não deveriam os ricos regozijar-se em sua prosperidade, como seela fora uma dádiva de Deus? Não, diz Tiago; em vez disso, glorie-se o rico nasua insignificância.

Dois comentários podem esclarecer esse raciocínio. Primeiro, o rico. Não sejao leitor levado a supor que pode inserir a palavra “cristão” (a qual não aparece notexto grego) para qualificar “o rico”. Em Tiago, “rico” é sempre aquele de fora dacomunidade cristã, incrédulo. Na verdade, os ricos são os opressores da comuni-

dade (2:6; 5:1-6).Em segundo lugar, a convocação às pessoas para que “se gloriem” é irônicaem dois sentidos. Por um lado, quando os ricos se convertem, compartilham seusbens, identificando-se com a “escória” pobre que antes desprezavam e persegui-am. Tomam-se um com o grupo que a si mesmo se chama pobre, mas é exaltadopor Deus, embora desprezado pela sociedade. Aqui há, realmente, algo em quepodemos gloriar-nos; todavia, é exatamente no fato de perder o “status” de rico, eem ser “rebaixado” ao nível humilde da igreja, que o rico pode gloriar-se. Por

outro lado, visto que Tiago não espera que os ricos em sua maioria se convertam,mas que caiam no julgamento de Deus, há grande ironia em exortá-los a que segloriem, visto que aquilo de que tanto se orgulham hoje, na verdade, é sua maiorhumilhação. Como 5:1-6 esclarece, são as evidências que os condenarão; as evi-dências lhes devorarão as carnes no Dia do Julgamento. São como crianças que seregozijam nas traquinagens, não sabendo que o pai está chegando e que aquiloque agora constitui motivo de gozo, as evidências de suas desobediências, serão

sua maior humilhação dentro de alguns segundos São ricos — ricos loucos (Lucas12:13-21).O fato é que o rico... passará como a flor da erva. Impressiona-nos a rique-

za, e o rico nos parece muito importante agora, mas, se pudéssemos vê-lo da pers-pectiva de Deus, entenderíamos que a aparência de grandeza é semelhante a umabolha de sabão. Eis que a morte se aproxima e a riqueza desaparecerá; o rico des-nudado descerá destituído de seus bens às profundezas do inferno (como vemosem

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Jó 15:30 e Provérbios 2:8, no Antigo Testamento; nos Apócrifos, Siraque 14:11-19; 2 Baruque 82:3-9; e no Novo Testamento, Mateus 6:19-21). Reitera-se a pers-pectiva adequada, bastante crítica. Somente mediante a perspectiva de Deus a daera vindoura podemos reconhecer essa verdade e a amarga ironia nela comida.

1:11 / O quadro que Tiago usa a fim de imprimir essa idéia na mente de seusleitores é o de um fenômeno dramático, observado na Palestina. As anêmonas e asciclamens florescem maravilhosamente pela manhã, mas, à medida que o sol vaisubindo e o dia se torna mais quente, elas vão pendendo, murcham e acabam mor-rendo. No final da tarde as flores que havia pouco estavam em pleno viço agoranão mais existem, e não renascerão. É provável que esse quadro tenha sido tirado

de Isaías 40:6-8 (também é empregado em 1 Pedro 1:24), mas o sentido é singu-larmente de Tiago. O rico é a flor cuja aparência é tão impressionante. Contudo,da perspectiva dos céus, a situação desse rico é precária na verdade. Logo sobre-virá algum problema, alguma doença, e onde estará depois o rico? Em face damorte, as riquezas são absolutamente insignificantes (cf. Jó 15:30; Provérbios 2:8;Salmos 73; Mateus 6:19-21). O rico murchará também enquanto vai andandoem seus caminhos. A memória que dos ricos restará não será eterna, cheia deglória, como imaginavam que fosse, mas dissolver-se-á no pó, à semelhança de

qualquer mortal, e logo seus monumentos e a própria lembrança deles se desfarão,desaparecendo no esquecimento. Isso era tudo que o rico teve, visto que, diferen-temente do pobre, que havia sido “levantado” e, dessa maneira, veio a gozar deum lugar eterno junto a Deus, o rico recebeu toda sua consolação aqui na terra,pelo que mergulhou para sempre nas trevas e no esquecimento, cortado bem nomeio de seus caminhos.

Nesse momento Tiago inicia a segunda parte da sua declaração de abertura.

Embora verse sobre os mesmos temas, não é repetitivo, pois cada tema é amplia-do. Trata-se aí das causas interiores do fracasso nas provações e não dos benefí-cios gerais advindos da provação. Debate-se a boa dádiva de Deus em relação aoproblema do diálogo e não em relação à oração e à sabedoria. Agora focaliza-se aprática da fé (que significa repartir com generosidade), e não o debate da situaçãoreal do rico e do pobre. Todos esses temas acabarão por fundir-se nos debates demaior monta da conclusão.

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1:12  / Tiago inicia com uma bem-aventurança: Bem-aventurado o homem.À semelhança de Jesus em Mateus 5:3-12, pronuncia uma bem-aventurança sobredeterminado grupo de pessoas (coisa que nos surpreende): todo aquele que su-porta a provação. Não é meramente a pessoa que é provada e considerada feliz,

ou abençoada, mas a pessoa que suporta a provação e permanece fiel. Em 1:2-4diz Tiago que a provação produz perseverança; agora ele afirma que a perseve-rança produz a verdadeira bem-aventurança ou bênção. Entretanto, Tiago não émasoquista e, tampouco estóico, e não está ensinando que as provações são en-graçadas, ou que devemos sentir alegria na dor. Ao contrário, salienta que as pro-vações servem a um propósito, a prova experimental da realidade da fé, e que issodeveria prover à pessoa uma perspectiva de alegria profunda. Por causa das rea-

ções perante as provações, sabemos se uma pessoa é verdadeiramente fiel, e de-pois de ter passado na prova receberá a recompensa. A pessoa que passa pelaprova é como a prata que passa pelo cadinho: depois da prova pode receber amarca de pureza. Deus marca a pessoa “aprovada”; sua fé é comprovadamentesadia.

Tal pessoa receberá um galardão ou (como o expressa o termo grego) “a co-roa da vida”. Essa ilustração refere-se ao julgamento final como se fora uma deci-são de juiz, após uma corrida esportiva (cf. 2 Timóteo 4:8). O vencedor da corrida

aproxima-se e recebe um laurel, uma coroa sobre a cabeça. Essa coroa é a própriavida (cf. Apocalipse 2:10), a qual é concedida não a uma única pessoa, mas atodas quantas terminam a carreira (suportam a provação), visto que o Senhorprometeu aos que o amam tal recompensa eterna. O preço da salvação é único: oamor fiel e incessante ao Senhor. Tendo em mente tal perspectiva, os crentes po-dem considerar-se verdadeiramente felizes, afortunados, a despeito das circuns-tâncias externas, visto que já estão experimentando a recompensa.

1:13 / Há outra reação possível diante da provação: a pessoa pode entrar emcolapso e fracassar. É natural que o indivíduo prestes a “desistir” não queira as-sumir nenhuma responsabilidade pelo seu fracasso, visto que tal desistência étotalmente incoerente com a auto-imagem de um “bom cristão”, pelo que a pessoaracionaliza assim: “A prova foi difícil demais; a culpa é de Deus, por enviar-meuma prova dificílima”.

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Tiago nos adverte contra esse tipo de reação: Ninguém, ao ser tentado, diga:Sou tentado por Deus. Essa conclusão exerceria forte impressão sobre os leitoresde Tiago uma congregação monoteísta. Porventura não é Deus soberano? Tiagorecusa-se a responder a essa pergunta, visto que tal discussão obscureceria a ver-

dadeira questão. Tal pessoa não quer uma compreensão maior, mas procura umadesculpa. Essa desculpa esfarrapada de que a tentação proveio de Deus não estáno cerne da análise teológica, mas constitui um cabide em que se pendura a culpa;é, antes, uma acusação.

Tiago refuta essa acusação por dois motivos. Primeiro, “as pessoas más nãodeveriam colocar a Deus sob teste” (a frase assim traduzida: Deus não pode sertentado pelo mal resulta de má compreensão do texto grego). Israel havia prati-

cado isso muitas vezes (pelo menos dez vezes: Números 14:22); todas as vezesque o povo enfrentava o sofrimento, jogava a culpa sobre Deus, duvidando de suavontade e de sua capacidade para ajudar seu povo. Todavia, assim respondia oAntigo Testamento: “Não tentarás o Senhor teu Deus, como o tentaste em Massá”(Deuteronômio 6:16). Os cristãos não devem cometer o mesmo erro que Israelcometera, ao testar o Senhor.

Em segundo lugar, Deus... a ninguém tenta. Deus não deseja o mal ninguém;ele não é causador do mal; ele não tenta a ninguém no sentido que não procura

prender ninguém numa armadilha. Tiago não dá prosseguimento à sua explicação,nem esclarece a questão da teodicéia, já que disse o que lhe bastava para seuspropósitos: você pode confiar em Deus. A causa do fracasso de alguém não seencontra em Deus.

1:14 / Alguém poderia esperar que Tiago continuasse seu raciocínio e lanças-se a culpa sobre o diabo, mas ele não faz isso, embora acredite que Satanás de-

sempenha um papel em nosso fracasso (veja Tiago 4:7). Em vez disso, assim es-creve Tiago: mas cada um é tentado, quando atraído e engodado pela suaprópria concupiscência. A essência real da tentação não está no exterior, isto é,“foi o diabo que me obrigou a fazer isso”, mas no interior. “Eu pequei... por mi-nha própria culpa, por minha exclusiva culpa”, seria nossa única “desculpa”. Se-

 jam quais forem as forças malignas que estabelecerem as circunstâncias externas,é a reação interna que as transforma em provação.

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Tiago concorda plenamente com Paulo. Usando ilustrações de caça e pesca,segundo os termos do original grego (tentado e atraído e engodado), Tiago mos-tra a natureza sedutora da “isca”, aparentemente tão inofensiva, e demonstra osresultados desastrosos, revelando o sedutor no íntimo, a própria concupiscência.

O termo que Paulo emprega para descrever isso é “pecado” ou “carne”, isto é, anatureza humana decaída. “Sou carnal, vendido como escravo ao pecado.” “Eumesmo com o entendimento sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado”(Romanos 7:14, 25). Os desejos do ser humano são bons pela criação, porqueconduzem a pessoa a usufruir a criação, a comer, a procriar, etc., mas tais desejosse corromperam, de modo que agora induzem à concupiscência, ao roubo e à for-nicação. A situação externa de modo algum poderia influir nas pessoas, a menos

que uma tendência interna, a de sua própria natureza, não estivesse seduzindo: “váem frente, vamos, você merece; vai ser muito bom”.

1:15  / O desejo da pessoa que cede aos atrativos é retratado aqui como umaprostituta ou adúltera, e não como armadilha ou anzol. A concupiscência usoucom muita malícia suas artimanhas, acabou engravidando e agora carrega no ven-tre um feto ilegítimo, o fruto de suas maquinações. Entretanto, “ninguém precisaficar sabendo”, murmura a concupiscência a seu amante, ao companheiro ilegíti-

mo. A defecção íntima da vida de fé e de confiança jamais precisaria ser vistapelos outros. Todavia, o útero do coração não consegue reter o feto indefinida-mente; a criatura concebida precisa vir à luz, e seu nome é pecado. Tiago conse-guiu visualizar a doutrina que Jesus proclamou em Marcos 7:20-23: “do interiordo coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as prostitui-ções... a blasfêmia, a soberba, e a loucura”.

Essa cadeia formada de provação — concupiscência — pecado não termina

ali; possui mais um elo, que se chama morte. Paulo conhecia essa verdade (Ro-manos 6:23), como também João a conhecia (1 João 1:16-17; 3:14), mas é Tiagoque a descreve de modo mais vívido. A criatura adulterina não vai embora; emvez de partir, essa criatura bastarda atinge a maioridade e gera um filhote, um sermonstruoso, patogênico, indesejável — a morte. Aqui está o resultado de fracas-sar na prova. A pessoa está a meio caminho entre a concupiscência e

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o pecado, passa pela maturidade do pecado e chega à morte. A cadeia de elosmencionada por Paulo em Romanos 7:7-12 se reproduz aqui. Tiago não permite oengano íntimo. A morte é o fim da carreira do pecado. Há uma única forma deescapar, a qual o autor da carta nos descreve como sendo cadeia contrastante, nos

versículos que se seguem (1:16-18).

1:16 / Não vos enganeis, meus amados irmãos. Não vos enganeis a respeitodo quê? Seria o parágrafo anterior encerrado por este versículo, e teria relaçãocom alguma crença segundo a qual a pessoa poderia lançar a culpa sobre Deus, ouabrigar a concupiscência, ou o pecado, sem que sobreviessem as más conseqüên-cias? Ou será que esse versículo se refere ao engano sobre de onde vêm as prova-

ções (1:13)? Ou será que esse versículo é cabeçalho do parágrafo seguinte, refe-rindo-se à falha em perceber que Deus nos dá o bem e nos traz salvação? Estrutu-ralmente, a terceira opção é a preferível, porquanto o termo que designa os desti-natários da carta, meus amados irmãos normalmente introduz um novo parágra-fo. Todavia, aqui funciona como versículo-dobradiça: ser enganado quanto a umdaqueles itens é o mesmo que ser enganado em todos, visto que o parágrafo se-guinte é apenas a negação do parágrafo anterior. Se alguém lançar a culpa emDeus quanto a uma provação, essa pessoa está imergindo no pecado e negando a

bondade de Deus. Tiago acredita que seus leitores são crentes verdadeiros (ir-mãos), mas teme que se desviem da fé, o que fica implícito na exortação não vosenganeis; ele tem medo de que esses crentes possam cair no erro da dúvida quan-to à bondade de Deus, o que poderia ser fatal à fé.

1:17 / Em contraste com o ponto de vista de Deus como emissário de prova-ções e tentações, está a perspectiva de que Deus nos dá boas coisas: Toda boa

dádiva e todo dom perfeito é lá do alto. Trata-se de frase poética, e pode sercitação de algum provérbio bem conhecido, alterado por Tiago a fim de enfatizara expressão lá do alto. Dizer que Deus dá essas boas dádivas naturalmente signi-fica negar que dá coisas más, uma vez que são incompatíveis.

No entanto, Tiago pretende passar uma verdade mais profunda que “Deus ébom”. Jó afirmou que Deus dá liberalmente a todos que lhe pedirem (1:5). O bemmaior a ser pedido, dentro daquele contexto,

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é a sabedoria, que voltará a ser mencionada em 3:15, dessa vez empregando amesma expressão que ocorre aqui (do alto). Assim é que a melhor dádiva de to-das, a que Tiago reiteradamente faz referência, é a sabedoria, que ajuda o crentena provação. Portanto, aqui está a mensagem mais importante: não é Deus quem

envia a provação; ele envia o maravilhoso dom da sabedoria que nos capacita aresistir durante a provação. Deus nos dá o antídoto, não o veneno.

Além do mais, o caráter de Deus não está sujeito a mudanças. Ele é o Pai dasluzes. Trata-se de uma referência à criação, e indica a extensão da bondade deDeus (enquanto o versículo seguinte refere-se à nova criação). Os luminares deGênesis 1:18, a saber, o sol e a lua, foram colocados ali para o bem da humanida-de. Todavia, esse fato por sua vez sugere um contraste. O sol e a luz são notórios

pela mudança, mas Tiago refere-se a Deus dizendo que nele não há mudançanem sombra de variação. O texto, embora a linguagem de Tiago seja um tantoobscura, trata-se de uma declaração de natureza astronômica, em referência à faltade constância dos “luminares” celestes. Deus, todavia, em contraposição a essasluminárias celestes, não tem eclipse, não se ergue para logo sumir no horizonte,não tem fases e nenhuma obscuridade devida a nuvens. O caráter de Deus é abso-lutamente constante, digno de confiança, em quem se pode depositar toda a fé. 

1:18 / Como prova da boa vontade de Deus — como se a criação não fossesuficiente — assim diz Tiago: Segundo a sua vontade, ele nos gerou pela pala-vra da verdade, para que fôssemos como que primícias das suas criaturas.Em primeiro lugar, o que Deus fez, ele o fez por sua decisão. A ação de Deus nãofoi acidental, nem resposta a uma necessidade. Ele fez tudo segundo sua vontade,sua decisão, pelo que sua ação demonstra a essência de seu caráter.

Em segundo lugar, ele nos gerou. Por um lado, esta ação é criadora.

O Pai das luzes também é o Pai da Humanidade, e foi seu desejo que toda a vidahumana existisse. Por outro lado, Deus não só providenciou a criação, mas a novacriação também: foi ele quem trouxe o novo nascimento ou a redenção a todos oscrentes (João 3:3-8; Romanos 12:2; Efésios 1:5; Tito 3:5; 1 Pedro 1:3, 23; 1 João3:9). Essa declaração produz um contraste espantoso: a concupiscência conduz

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ao nascimento, mas traz consigo o pecado e a morte; Deus conduz ao nascimentoe traz consigo redenção e vida.

Em terceiro lugar, Deus realiza esse novo ato criador pela palavra da verda-de. À primeira vista, alguém poderia pensar que esta expressão seja uma referên-

cia à palavra criativa de Deus (Gênesis 1), ou à veracidade de tudo quanto o Se-nhor diz (e.g., Salmo 119:43), mas é certo que nesta passagem essa expressãosignifica algo mais. Que palavra na era do Novo Testamento é mais “palavra daverdade” do que o evangelho? Esta expressão é semi-técnica e designa a procla-mação da ação de Deus em Cristo (2 Coríntios 6:7; Efésios 1:18; Colossenses 1:5;2 Timóteo 2:15; 1 Pedro 1:25). Deus, de propósito, pôs em ação sua segunda cria-ção, ou sua nova criação, ao enviar ao mundo a palavra do evangelho.

O resultado desse ato criador também é beneficente, para que fôssemos co-mo que primícias das suas criaturas. “Nós somos uma colheita,” diz Tiago,“somos os primeiros frutos maduros da nova criação de Deus, uma promessa dagrande colheita que virá.” À semelhança de Paulo, Tiago acredita que Deus vairedimir toda a criação, não apenas a humanidade (Romanos 8:18-25). O presenterenascimento de crentes promete mais bênçãos vindouras. Todavia, os primeirossão os melhores, pois constituem a porção santificada de modo especial. E assim éque Tiago sublinha a boa dádiva e intenção de Deus nas vidas dos crentes.

1:19 / Tiago deliberadamente faz um paralelo com o estilo de 1:16, ao adver-tir: Sabei isto, meus amados irmãos. Tiago 1:16-18 discute a sabedoria comouma dádiva da vida que veio de Deus (cf. 1:5-8); vem agora o tópico relacionado— a pessoa sábia controla a língua (cf. 3:1-18), visto que a ética relacionada àspalavras constituía tópico de suma importância tanto na literatura judaica como nomundo em que Tiago vivia. Prossegue Tiago com um provérbio: Todo homem

seja pronto para ouvir, tardio para falar e tardio para se irar. Não importaquão chocante esse ditado possa parecer ao homem da era moderna, caracterizadapelo lema: “expresse seus sentimentos”, esse provérbio era considerado sabedoriaplenamente aceitável nos tempos bíblicos: “O que guarda a sua boca preserva asua alma, mas o que muito abre os seus lábios tem perturbação” (Provérbios13:3). “Tens

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visto um homem precipitado nas suas palavras? Maior esperança há para o tolo doque para ele” (Provérbios 29:20). “Não te apresses no teu espírito a irar-te, pois aira abriga-se no seio dos tolos” (Eclesiastes 7:9). A pessoa verdadeiramente sábiae piedosa nas Escrituras não é a que sempre tem algo a dizer, mas é a pessoa que

ouve os outros, que considera tudo em espírito de oração e só então fala em ter-mos moderados.

Tiago considera esse provérbio não só como uma verdade pessoal para cadacrente, mas também parte de seu interesse pela harmonia comunitária. Em 3:1 eleassinala os conflitos entre os mestres que em 3:13-18 podem conduzir ao espíritopartidário e ao ciúme. Tais mestres eram bem conhecidos na igreja primitiva,encorajados pelos que estavam embebedados pelo vinho pesado do Espírito recen-

temente derramado, e preocupados com seu dom ou ministério, e não com o bem-estar da igreja. Tiago aconselha que haja prudência e que se ouça bastante, em vezdo falatório intempestivo e da denúncia aguda.

1:20  / Mas o que você acha da indignação justa? A ira do homem não operaa justiça de Deus. Tiago não declara suas razões por que fez essa afirmação, masvários motivos aparecem no Novo Testamento. Primeiramente, os sentimentos deira, uma vez liberados e expressos, são por natureza imoderados e incontroláveis,

o que levou até os escritores pagãos helenísticos a condenar a ira. Em segundolugar, a ira é incompatível com os ensinos de Jesus, de modo particular seu ensinoquanto a amarmos nossos inimigos (Mateus 5:38-48) e sua condenação do ódioentre irmãos (Mateus 5:21-26). Em terceiro lugar, a ira humana usurpa a funçãoexclusiva de Deus como juiz e vingador. Em 5:7-9 Tiago diz que o crente deveesperar pela vingança de Deus e não pode vingar-se por sua própria conta. Ensinosemelhante encontramos em Hebreus 10:30-39, Romanos 12:19 e reiteradamente

em 1 Pedro. A reação adequada ao sofrimento é a humildade e a perseverança,visto que Deus é o único Juiz verdadeiro. É por tudo isso que a ira humana nãoopera a justiça de Deus, ou no sentido de que não trará a justiça que Deus vaiestabelecer no último dia (que é a idéia que Tiago poderia ter em mente aqui; cf.5:7-11), ou no sentido de não atingir os atuais padrões elevados da justiça deDeus. Basta que reflitamos um pouco no assassinato impulsivo que Moisés

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cometeu, ao matar o feitor egípcio (Êxodo 2:11-16) para descobrirmos uma belailustração desse princípio.

1:21 / Pelo que, despojando-vos de toda impureza e de todo vestígio do

mal... Essa é uma frase negativa; a ênfase desse versículo recai claramente emalgo positivo (recebei com mansidão a palavra), mas essa parte negativa é umprelúdio necessário. Se a pessoa não reconhecer o pecado pelo que ele é, se nãocessar de justificá-lo, se não rejeitá-lo com decisão, o progresso espiritual seráimpossível. Assim é que, ao dizer despojando-vos, Tiago emprega o termo apro-priado à conversão, assemelhando essa à troca de vestes imundas. A expressãotoda impureza pode significar qualquer imundícia moral, especialmente a lascí-

via. Mas o autor focaliza a ira, ou falar mal do próximo, ao mencionar um mal tãoprevalecente, que está implícito em todo vestígio do mal. É preciso erradicar docoração sem reservas não só a ira, que se manifesta externamente, mas toda amalícia também.

Erradicada a malícia, o crente está apto a receber com mansidão a palavraem vós implantada. Esses crentes já receberam a “palavra” do evangelho, poissão membros da comunidade cristã. Todavia, a palavra já plantada em seus cora-ções deve ser posta em prática, confirmando sua aceitação, para que ela salve tais

pessoas. Não é suficiente que a pessoa esteja convencida a respeito de Jesus; apessoa deve entregar-se a Cristo, aceitar seu ensino, e essa fidelidade é o estilo denova vida que Tiago está propondo.

Ao prometer dedicar tal fidelidade ao Senhor, os crentes demonstram quereceberam com mansidão a palavra, pois submetem-se a Deus. Tiago escreveuem grego “com humildade”, indicando a submissão devida a Deus, em contrapo-sição ao auto-engrandecimento, demonstrado pelo palavrório imprudente e pela

ira. A mansidão é um gomo do fruto do Espírito (Gálatas 5:23; Tiago 3:13), e amarca de todos quantos recebem o reino (Mateus 5:5). Nesse contexto, a mansi-dão é uma convocação a que o crente se humilhe diante de Deus e acate a ordemde deixar a vingança em suas mãos, que não rejeite o ensino do evangelho e nãose vingue por conta própria. Essa humilde aceitação dos ensinos de Jesus produzum efeito salvífico.

1:22 / O tópico de aceitar a palavra, ou de a ela obedecer, leva

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Tiago a mudar de assunto; ele deixa o tema da prudência na língua para tratar daação caritativa. Sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enga-nando-vos a vós mesmos — essa exortação diz respeito ao cidadão que se auto-congratula pelo elevado conhecimento que tem das Escrituras e pelo domínio das

tradições apostólicas concernentes a Jesus. Não é que tal pessoa tenha falhado,deixando de aprender o ensino apostólico. Esse irmão pode ser erudito nas Escri-turas, um “escriba” especializado nas palavras de Jesus. Todavia, representa osque são somente ouvintes. Pouco importa a tremenda extensão do conhecimentoescriturístico do crente e quão espantosa sua memória: se isso é tudo que há, nãopassa de auto-engano.

Sede cumpridores da palavra — este é o ponto crucial. O que vale é o que o

crente faz, não o que ele sabe. O verdadeiro conhecimento serve de prelúdio àação; no fim, o que conta é a obediência à palavra.

1:23-24 / Tendo declarado sua tese no versículo anterior, Tiago agora ilustra aposição dos somente ouvintes com uma metáfora tirada da vida diária. Eles sãocomo a pessoa que pela manhã examina seu rosto ao espelho. Cuidou da barba, ocabelo está bem penteado, ou a maquiagem foi bem aplicada. Nesse momento,contemplar-se a si próprio no espelho é ocupação que lhe toma tempo. Contudo,

terminadas as abluções e os cuidados matinais, cessa toda atenção à aparênciafísica; a pessoa esquece-se de imediato de como era. Com freqüência a pessoatrabalha o dia inteiro na base de uma auto-imagem que nem sempre condiz com arealidade. Se no caso do conhecimento das Escrituras ocorrer o mesmo, a erudi-ção escriturística, ou a teologia da pessoa tem exatamente o mesmo valor para suavida, que o valor daquele exame facial matutino.

1:25 /  Aquele, porém, que atenta bem para a lei perfeita... e nela perseve-ra... será bem-aventurado no que realizar. Tiago estabelece um contraste du-plo. Primeiramente, o crente bem-aventurado age em função daquilo que conhece,em vez de fazer como se fora um ouvinte esquecido. Tal esquecimento não sedeve à perda de memória, mas à falha em não pôr em prática o ensino numa situa-ção cotidiana. Tiago repete a questão, dizendo que, quando o crente pratica o quesabe, é abençoado no que realizar. É a ação que recebe ênfase.

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Em segundo lugar, a pessoa abençoada nela persevera,  isto é, continua a agirdessa maneira. Esse tema da continuidade, da insistência, da perseverança tam-bém ocorre em Tiago 1:2-4; 1:12; e 5:7-11. Não é a pessoa que observa momen-taneamente a ordem de Cristo, e a ela obedece por um pouco, que será abençoada,

mas o crente que se caracteriza pela obediência irrestrita aos mandamentos deCristo: para esse crente eles representam seu modo de viver. Esse é  o crente quede fato será bem-aventurado no que realizar. 

O praticante da palavra de Cristo atenta bem para a lei perfeita, a da liber-dade. Com isto, Tiago não se refere à regra estóica da razão, tampouco à lei ju-daica, mas às Escrituras judaicas devidamente interpretadas e complementadaspelos ensinos de Jesus. Noutras palavras, a lei perfeita são os ensinos e as tradi-

ções de Jesus conforme corporificadas no sermão do monte (e.g., Mateus 5:17).Paulo e Tiago concordam nesse ponto crucial: os ensinos de Jesus são obrigató-rios para o cristão, não existindo outro caminho para a bênção e para a salvação.Liberdade não é libertinagem, mas capacidade para viver e cumprir “a lei deCristo” (Gálatas 6:2; cf. Gálatas 5:13; 1 Coríntios 9:21; 7:10, 25 — nestes doisúltimos versículos, o ensino de Cristo encerra a questão para Paulo). Esta lei élibertadora no sentido de que a pessoa que se submete a Cristo liberta-se da escra-vidão do pecado e da morte, inclusive de todo o legalismo (ninguém merece a

salvação). Assim, Tiago está ensinando que o crente que vive essa liberdade é oque será abençoado por Deus, e não o indivíduo que simplesmente aprende algosobre essa liberdade.

1:26  / Tiago encerrou sua declaração preliminar, de abertura. Falta resumirtudo de modo que haja uma transição suave para a próxima seção. Os versículos26-27 constituem o resumo transicional.

Se alguém cuida ser religioso... Noutras  palavras, será que determinadocrente se julga um bom cristão, muito piedoso? A ênfase está no desempenhoreligioso, e provavelmente inclui atos de culto como a oração, o jejum e o dízimo.Tiago não condena tais atividades, mas acrescenta o seguinte: e não refreia a sualíngua, antes engana o seu coração, a sua religião é vã. Noutras palavras, aspráticas religiosas são ótimas, mas, se não vierem acompanhadas de um modo deviver ético, nada valem, são menos do que inúteis, porque se

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transformam em auto-enganos. O interesse específico de Tiago é o controle dalíngua, que é sua maneira de referir-se ao controle do palavrório irado, das explo-sões de raiva, da crítica ferina e das queixas (cf. 1:19; 3:1,13; 4:11-12; e 5:9). Ocriticismo, o julgamento e o queixume impiedosos revelam corações ainda não

submetidos ao mandamento de Cristo. Trata-se de pessoas cujas práticas religio-sas exteriores, conquanto cristãs, são tão salvíficas quanto a idolatria (i.e., nulas),recebendo ainda a alcunha de práticas vãs nas Escrituras (Atos 14:15; 1 Coríntios3:20; 1 Pedro 1:18). Tiago, à semelhança de Jesus (Marcos 12:28-34; João 13:34)e os profetas (Oséias 6:6; Isaías 1:1-10; Jeremias 7:21-28), desmascaram sempiedade esse auto-engano, de modo tal que seus leitores podem reconhecer suaverdadeira condição antes que seja tarde demais.

1:27 / Em contraste com o crente piedoso, cuja língua é todavia afiada, a reli-gião que nosso Deus e Pai considera pura e imaculada não é primordialmenteritualística, feita de hábitos piedosos, mas a que procura visitar os órfãos e asviúvas nas suas aflições e guardar-se incontaminado do mundo. A primeiracaracterística, a da caridade e do interesse ativo pelos indefesos e fracos, comfreqüência é mencionada no Antigo Testamento (Deuteronômio 14:29; 24:17-22),bem como no Novo (Atos 6:1-6; 1 Timóteo 5:3-16). Os órfãos e as viúvas, ao

lado dos estrangeiros e dos levitas, constituíam os pobres dentre o antigo Israel. Averdadeira piedade, portanto, vai ajudar os fracos e os pobres, porque Deus é 

quem sustenta os oprimidos e indefesos (Deuteronômio 10:16-17).A segunda característica centraliza-se no mundo, designação comum em Pau-

lo e em João para a cultura, os costumes e as instituições humanas (1 Coríntios 1-3; 5:19; Efésios 2:2; João 12:31; 15:18-17; 16; 1 João 2:15-17). A verdadeirapiedade não é conformação à cultura humana, mas a transformação à imagem de

Cristo (Romanos 12:1-2). Para Tiago, isso significa especificamente a rejeiçãodos motivos da concorrência, da ambição pessoal e do acúmulo de riquezas, pai-xões que jazem na raiz da falta de caridade e da multiplicação de conflitos nacomunidade (e.g., 4:1-4). Ao declarar que essa, e nada mais, é a verdadeira religi-ão aos olhos de Deus, declara Tiago que a conversão é coisa vã se não conduzir auma vida transformada.

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 Notas Adicionais # 11:1 / As doze tribos de Israel, a saber, o povo escolhido de Deus no Antigo

Testamento. Para Tiago, a igreja é como que a continuação daquele povo de Deus.A igreja inclui o remanescente do antigo Israel e assimila os convertidos dentre os

gentios também. Portanto, a igreja é “o Israel de Deus” (Gálatas 6:16), o povo deDeus na era atual do Espírito Santo (cf. Romanos 4:13-25; Gálatas 5:21-31).

Dispersão é termo técnico que significa diáspora, ou seja, Israel espalhadopelo mundo. Após o exílio dos judeus da Palestina, em 586 a.C., a maior partenão regressou. Em vez disso, espalhou-se pelas cidades da Ásia e Europa; para oOcidente, na direção de Roma e Espanha; para o sul, no Egito, e para leste, naBabilônia e Pérsia. Para os judeus residentes na Palestina, aqueles outros espalha-

dos eram a diáspora, povo da Dispersão, ou judeus exilados, expulsos da terra àqual pertenciam. Tiago emprega este termo para os cristãos também, visto queestes estão na terra em que vivem, mas “no exílio” também. De maneira muitosemelhante, Pedro refere-se aos cristãos como “estrangeiros”, “forasteiros” ou“peregrinos” (1 Pedro 1:1, 17; 2:11).

1:2 /  tende por motivo de grande gozo tem uma palavra-chave no grego,que é charan, “alegria”, que forma um trocadilho com a palavra chairein, “sauda-ções”, do v. 1. Tiago usa trocadilhos desse tipo a fim de ligar certos elementos de

sua carta, a despeito de sua tendência para justapor os tópicos.A estrutura dos vv. 2-4 é a de um ditado encadeado, que também se encontra

em Romanos 5:3-5 e 1 Pedro 1:6-7. De modo particular em 1 Pedro há trechossemelhantes. Esse ditado parece ter sido largamente utilizado, mas de modo umtanto frouxo, na igreja primitiva, o que significa que o autor se sentiu livre paraadaptá-lo segundo seu próprio critério. A base dessa estrutura provavelmente éalguma declaração de Jesus semelhante à de Mateus 5:11-12: “Bem-aventurados

sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o malcontra vós por minha causa. Regozijai-vos e alegrai-vos, porque grande é o vossogalardão nos céus”. Para uma leitura complementar, veja D. Daube, The New

Testament and Rabbinic Judaism (O Novo Testamento e o Judaísmo Rabínico), p.113, 117-19.

A idéia das provações não é novidade para os leitores dessa carta, visto quetem raízes profundas no judaísmo. A referência mais antiga é a de Gênesis 22:1,incidente a que Tiago faz referência em 2:21, com respeito a Deus provando a fé

de Abraão. De Deus também se diz que provou os israelitas no deserto, mas, dife-rentemente de Abraão,

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o povo fracassou na prova (Números 14:20-24). Quando penetramos no períodointertestamentário, encontramos a famosa referência de Siraque 2:1-6:

Meu filho, quando te achegares para servir ao Senhor, prepara tua alma-

para a tentação. Coloca teu coração no caminho justo e persevera comfirmeza, não temendo a época da calamidade... Aceita o que te sobrevier,seja o que for, e tem paciência na doença e na pobreza. Pois o ouro prova-se no fogo, e os homens aceitáveis perante Deus na fornalha da aflição.

(Cf. Jubileu 8:25, ou Rolos do Mar Morto 1 QS 10, 17; 1 QS 5:15-17; 1 QM 6:15-17:3). Assim é que a igreja primitiva tinha uma longa tradição na qual ir buscar a

fé que, assim se esperava, tinha de ser provada. Veja H. Seesemann, “Peira”,TDNT, vol. 6, p. 23-26, quanto a dados suplementares.1:3  / A expressão a prova da vossa fé é uma única palavra no grego:

dokimion.  Refere-se apropriadamente nessa passagem aos meios de provação,embora em 1 Pedro 1:7 indique os resultados da provação, i.e., a fé genuína. Osmeios — pouco importa se forem muito desagradáveis — produzem um resultadoexcelente. Não são apenas negativos, do tipo que destrói a fé fingida, de imitação,mas positivos também, se vistos pelo prisma adequado.

O termo perseverança, no grego hypomone é quase um termo técnico noNovo Testamento. Paulo emprega-o dezesseis vezes (2 Coríntios 6:4; 12:12; 1Tessalonicenses 1:3), e é palavra muito importante no Apocalipse (1:9; 2:2;13:10; 14:12). Fica óbvio, a partir disso e do fato de ser usada em referência aAbraão, Jó, etc., mencionados em obras intertestamentárias, que essa virtude éimportante numa comunidade que sofre perseguições. Os judeus pós-exílicos e demodo particular os do pós-perseguição de Antíoco Epifânio (167-164 a.C.), preo-

cupavam-se com a necessidade de perseverar firmes na fé, a despeito da oposição,da inferioridade material e até das perseguições. Buscavam exemplos no AntigoTestamento, que estudavam com muita atenção. De modo semelhante, a igrejaviu-se vulnerável, como minoria desprezada e perseguida dentro do judaísmo e,mais tarde, dentro do Império Romano. Um cristianismo fogo-de-palha ou ambí-guo não serve. Salvar-se-ão os que “perseverarem até o fim”, não os apóstatas edesertores (Marcos 13:13; Mateus 10:22; 24:13). Assim é que a perseverançaconstitui virtude cardeal da vida cristã, jamais uma questiúncula. Perseverar signi-

fica o crente imitar a Cristo em sua perseverança e assegurar a si mesmo a bênçãofutura.

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1:4 / deve terminar a sua obra significa literalmente “ter seu perfeito [oucompleto] trabalho”. Essa fraseologia sugere a muitos comentaristas que Tiago teria em mente uma virtude específica. Em vez de uma virtude simples, todavia,“você é esse trabalho perfeito” (M. Dibelius, James, p. 74).

A idéia de perfeição não constitui originalidade em Tiago. Noé é a pessoaperfeita como arquétipo: “Noé... era... homem justo e íntegro em suas gerações, eandava com Deus” (Gênesis 6:9). Ele guardava a lei de Deus, ou era homem “deintegridade estável, não contaminado por motivos divergentes, nem por conflitosentre pensamentos e ações” (P.J. DuPlessis, Telios: The Idea of Perfection in the

 New Testament, p. 94-9). Assim é que o povo dos rolos do mar Morto poderiapensar de si próprio como perfeito dada a sua dedicação interna e externa a Deus

(1 QS 2:1-2; 14:7; 1 QS 1:36) e ainda suspirar por uma perfeição mais elevada (1QS 4:20-22). Para Paulo, os cristãos já eram perfeitos ou maduros (1 Coríntios2:6), entretanto, tornar-se crente perfeito ou maduro é um processo que prossegue,havendo um objetivo futuro (Efésios 4:13; cf. Colossenses 4:12; Filipenses 3:15). Para Mateus, como nos rolos do mar Morto, a perfeição consiste em imitar Deus(imitatio dei, Mateus 5:48); todavia, tanto em Mateus como em Paulo, esse con-ceito foi reinterpretado sob o aspecto de um exemplo mais próximo, mais dispo-nível, o Deus encarnado, Jesus Cristo. Portanto, perfeição é imitar Cristo (imitatio

Christi, Mateus 19:21; cf. Filipenses 2:5ss.). A perfeição, nesse caso, é uma ten-são. É possível e ao mesmo tempo impossível, simultaneamente presente e futura.Veja também W. D. Davies, The Setting of the Sermon on the Mount (Ambienta-ção do Sermão do Monte), p. 212-13; e R. Schippers, “Goal” (Alvo), NIDNTT,vol. 2, p. 59-66. O fator importante a ser considerado é a natureza escatológica daperfeição, a tensão entre o “agora” e o “ainda não”, bem como o fato de que emsua forma realizável a perfeição se centraliza em imitar Deus e Cristo e, assim,

precisa da revelação divina e da obediência humana. 1:5 / Em português aparecem as palavras “tendo falta de” (v. 4) e “tem faltade” (v. 5), numa espécie de trocadilho que também aparece no grego. Essa ligaçãode idéias mediante um jogo de palavras é o método predileto de Tiago, pelo qualele as compõe numa unidade.

A idéia de sabedoria em Tiago não é mera introspecção intelectual, nem a leide Deus (como em Siraque 4:17; Sabedoria 7:15; 8:21), mas uma dádiva da era doreino futuro, o qual agora pode ser encontrado nos que lhe pertencem (como em 2

Baruque 44:14; 2 Esdras 8:52; 1 Enoque 5:8; 98:1-9; 100:6). Como demonstramesses paralelos judaicos

(Tiago 1:1-27)

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(e outros dos rolos do mar Morto: 1 QS 11; CD 2; 6:3; 11 Q Salmo 154),  os leito-res judeus reconheceriam a tensão. A sabedoria só será possuída de modo total noreino vindouro, mas o remanescente fiel (“os sábios” de Daniel 11-12) já experi-mentam aqui, nesta era, o sabor desse reino da era futura. É isso que conduz as

pessoas à perfeição, um relacionamento entre a sabedoria e a perfeição que Paulotambém reconhecia (1 Coríntios 2:4-6). Veja J. A. Kirk, “The Meaning of Wis-dom in James” (O Significado de Sabedoria em Tiago).

Deus é um excelente Doador (Provérbios 3:23; cf. Didaquê 4:7; HermasMandate2). O termo traduzido por generosidade, haplos, aparece no Novo Testa-mento somente aqui. Relaciona-se com o termo haplotes, que significa sincerida-de. Epicteto mostra o significado de haplos quando escreve: “Pare de permitir-se

ser arrastado para cá e para lá... mas seja deste ou daquele jeito sempre simples,de todo o seu entendimento” (Discourses [Discursos] II, 2, 13). Esse mesmo sen-so de simplicidade e sinceridade deve permear as doações humanas de acordocom Jesus, visto que num contexto de contribuição assim diz o Senhor: “A lâm-pada do corpo são os olhos. Se os teus olhos forem bons [haplotes], todo o teucorpo terá luz” (Mateus 6:22), que é uma expressão idiomática que significa darcom sinceridade, assim como “olhos maus” significa mesquinhez. Quanto a essetermo, veja também B. Gartner, “Simplicity” (Simplicidade), NIDNTT, vol. 3, p.

571-72.1:6 / Fé” tem mais de um sentido em Tiago. Aqui e em 1:3, 2:5 e 5:15, signi-

fica fidelidade, confiança; em 2:14-26 significa assentimento intelectual; e em 2:1significa todo o corpo de verdades a respeito de Jesus em que devemos crer. Oprimeiro significado, ou modo de empregar a palavra é muito semelhante ao dePaulo; os demais sentidos diferem do sentido que o apóstolo lhes atribui. Veja O.Michel “Faith” (Fé), NIDNTT, vol. 1, p. 587-606.

A pessoa que duvida demonstra ser diferente de Deus. Deus dá com sinceri-dade, com uma mente não-dividida. O que duvida ora, mas sua mente está dividi-da. Não tem certeza de que Deus vai responder. A ilustração da onda do mar erabastante popular na literatura grega e judaica, e.g., Siraque 33:1-3:

Nenhum mal sobrevém ao homem que teme ao Senhor, mas na provaçãoo Senhor o livrará vezes sem conta. O homem sábio não odeia a lei, mas o hi-pócrita assemelha-se a um barco na tempestade. O homem sábio confia na lei.

(Tiago 1:1-27)

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1:7-8 / A principal palavra nestes versículos é dipsychos, traduzida por vaci-lante. É termo que primeiramente se encontra em Tiago, que talvez o tenha cu-nhado. Entretanto, tem profundas raízes judaicas. A pessoa deve procurar a Deusde todo o coração (Deuteronômio 6:5; 18:3), de modo que duvidar ou demonstrar

vacilação é um mal em si mesmo, uma marca de hipocrisia (Salmo 12:1-2; 1 Crô-nicas 2:33). A tradição judaica estava constantemente convocando as pessoas parauma decisão bem definida: é impossível cultuar Deus e Baal, ou Deus e o Egito;há de ser um ou outro. O contraste agudo prossegue em Siraque (e.g., 33:7-15) ena literatura posterior. O Testamento de Levi 13:1 ensina: “Teme ao Senhor teuDeus de todo o teu coração, e anda em simplicidade, conforme a lei do Senhor”.Observa-se como a simplicidade (haplotes de Tiago 1:5) é importante. O Testa-mento de Benjamin 6:5 acrescenta: “A mente piedosa não tem duas línguas, uma

que abençoa e outra que amaldiçoa... uma da hipocrisia e outra da verdade... ;porém tem uma única disposição, incorrupta e pura, concernente a todos os sereshumanos”. O povo de Qumran estava semelhantemente preocupado, pois alguémque houvesse feito um voto exterior de seguir o caminho de Deus (talvez comsinceridade nessa época), poderia apostatar e voltar à sua natureza má em detri-mento de toda a comunidade:

Nenhum homem andará na teimosia de seu coração, de modo que se desviesegundo seu coração, seus olhos e sua má inclinação, mas circuncidará nacomunidade o prepúcio da má inclinação, e da dureza de cerviz, para que sepossa lançar um alicerce da verdade para Israel, para a comunidade do concí-lio eterno (1 QS 5:4-5). 

As pessoas que apostataram certamente foram condenadas:

Quanto a eles, dissimulam,planejam esquemas diabólicos.

Procuram-te com um coração dobree não são confirmados na tua verdade.

Uma raiz contendo fruto envenenado e amargoestá nos seus desígnios:

Caminham na teimosia de coraçãoe te procuram entre os ídolos,

e colocam diante de si mesmosa pedra de tropeço de seu pecado.

(1 QH 4:13-14)

(Tiago 1:1-27)

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Paulo tem um interesse semelhante, conquanto expresso em linguagem menoscolorida, em Romanos 6-8. As pessoas poderiam votar fidelidade a Cristo e aseguir “andar na carne”. Paulo reage a essa idéia com horror. De modo algumpoder-se-ia permitir tal instabilidade. A devoção a Deus de coração singelo está

na ordem do dia.A preocupação de Tiago a respeito do coração dobre e da instabilidade foi a-

panhada mais tarde por Hermas ( Mandateq) quanto a dipsychos e Mandate 2.3 e5.2.7 quanto a instabilidade, que Hermas considera ter origem demoníaca. Her-mas interessa-se apenas pela oração eficaz.

1:9 / Tiago não emprega o termo comum para pobres,  ptochos, mas tapeinos que, noutros contextos significa humilde, ou socialmente inferior, ou não-importante (2 Coríntios 7:6; 10:1). Nesse contexto, significa claramente pobre de

bens materiais, por causa do contraste com os ricos. Tapeinos aparece inúmerasvezes na Septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento), traduzindo seispalavras diferentes do hebraico, com o sentido de oprimidos ou pobres. É palavraespecialmente apropriada por causa de seu sentido duplo, tendo conotação depobre e humilde, para traduzir ‘ani, termo hebraico muito freqüente que significapobres humildes (talvez também em Mateus 5:3). É interessante que essa palavraaparece em Provérbios 3:34, visto que Tiago mais tarde citará esse versículo(4:6); que talvez já estivesse em sua mente. Veja também Juízes 6:15; Salmo

9:39; 33:18; Amós 8:6; Isaías 11:4, e W. Grundmann, “Tapeinos”, em TDNT,vol. 8, p. 1-26.

A expressão glorie-se é tradução do verbo grego kauchaomai, que, além deseu uso aqui e em 4:6, é sempre usado no Novo Testamento por Paulo (trinta ecinco vezes). Normalmente, esse verbo significa sentir orgulho ou jactar-se demodo negativo, sendo, pois, dificilmente um apelo ao crente (Gálatas 6:13; Ro-manos 2:23; 1 Coríntios 1:29; 2 Coríntios 5:12; Efésios 2:9). No entanto, no Anti-go Testamento a pessoa podia gloriar-se (jactar-se) em Deus (Salmo 32:11;

149:5). Esse sentido positivo é apanhado por Paulo quando o apóstolo fala degloriar-se em Deus ou em Cristo (Romanos 5:11; 1 Coríntios 1:31; Filipenses3:3). É esse sentido positivo que Tiago tem em mente, visto que estar alguémalegre ou jactar-se na sua exaltação é o mesmo que gloriar-se, não a respeito dasfaçanhas que tenha realizado, mas em face das obras maravilhosas que Deus lhefez Assim é que se trata de uma forma piedosa de jactância, um gloriar-se emDeus. É interessante, por isso, constatar que Paulo emprega esse termo em Roma-nos 5:3, passagem paralela à de Tiago 1:2 e 1 Pedro 1:6. Isso demonstra que na

mente de Paulo o sentido positivo dessa jactância aproxima-se da alegria escato-lógica expressa por Tiago e Pedro, em seus

(Tiago 1:1-27)

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respectivos termos. A idéia dessa alegria aparece três vezes nesse capítulo deTiago (1:2; 1:9; 1:12).

1:10  / Tiago apresenta dois modos de lidar com os ricos. Primeiramente serefere a eles empregando o termo plousios. Nesses três exemplos, são incrédulos,

adversários do evangelho (1:10; 2:6; 5:1ss). Em segundo lugar, se refere a elesempregando circunlóquios que os descrevem sem jamais chamá-los de ricos (2:2;4:13). Nesses casos, trata-se de membros mais ricos da comunidade cristã. Emcontraste, o termo “pobre” ( ptochos) às vezes é termo, em Tiago, designativo daprópria comunidade, segundo o costume judaico, ao referir-se ao remanescente deIsrael (e.g., Salmos de Salomão).

A idéia de que o rico será rebaixado e o pobre exaltado é tema conhecido de

reversão de fortunas. Nós o encontramos no Antigo Testamento (1 Samuel 2:7) ecom muita freqüência nos salmos (e.g., Salmo 37; 73), bem como no “Magnifi-cat” de Lucas (Lucas 1:53). Tema semelhante ocorre em 1 Enoque. Mais impor-tante: As bem-aventuranças de Lucas expressam-no com maior clareza (Lucas6:20-26):

20 Levantando ele os olhos para os discípulos, disse:Bem-aventurados vós, os pobres, pois vosso é o reino de Deus.

21 Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, poissereis fartos.Bem-aventurados vós, que agora chorais, poishaveis de rir.

22 Bem-aventurados sereis quando os homens vosodiarem, e quando vos expulsarem, vos injuriareme rejeitarem o vosso nome como indigno, por causa do Filho do homem.

23 Folgai nesse dia, exultai, porque grande évosso galardão no céu. Pois assim fizeram osseus pais aos profetas.

24 Mas ai de vós, os ricos! pois já tendes avossa consolação.

25  Ai de vós, os que estais fartos! pois tereisfome. Ai de vós, os que agora rides! pois voslamentareis e chorareis.

26  Ai de vós, quando todos os homens de vósdisserem bem, pois assim faziam seus pais aos falsos profetas.

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Os ricos nada têm em que regozijar-se. À semelhança do homem rico da parábola(Lucas 16:19-31), estão todos a caminho do inferno. Tiago está aplicando aquiesse ensino e exortando sua congregação a agir segundo essa doutrina.

1:11 / Eis um quadro bastante popularizado. É possível encontrá-lo em Tes-

tamento de Jó 33, e em Plínio, História Natural 21, 1. Ocorre em Salmos 103:15-16, que, ao lado de Isaías 40:6, seria talvez o que Tiago tem em mente, e em Ma-teus 6:30 e Lucas 12:28 (embora com aplicações diferentes). Ainda que se adaptede modo especial à Palestina, outros povos de climas quentes também achariamessa expressão cheia de sentido.

Alguns eruditos acham que seu ardente calor (kausoni é indicação do siroco,o quente vento do deserto, como em Jó 27:21; Jeremias 18:17; e Oséias 12:1. De

fato, é possível que haja referência a esse vento em Salmos 103:16. Todavia, istoé improvável (embora tentador, visto que esse é um vento distintamente palesti-no), porque o siroco nada tem que ver com o sol que sai. O vento sopra constan-temente, dia e noite, durante todo o período. Por isso, a descrição de Tiago é vistamelhor como uma referência proverbial da atividade abrasadora dos climas tórri-dos e secos.

O rico será destruído, porque murchará. O verbo maranthesetai significa lite-ralmente “murchar”, sendo aplicado às plantas que fenecem e, de modo metafóri-

co, às pessoas que falecem. Alguém poderia ser levado a pensar, por isso, que setrata de simples referência à transitoriedade dos ricos. Eles morrerão, e suas obrasdesaparecerão. Todavia, é provável que Tiago esteja pensando num nível maisprofundo, como o faz Jesus em Lucas 12:16-21. A pessoa não só enfrenta o soldas provações desta vida, mas também o ardente calor do julgamento de Deus(como 5:1-6 o demonstra).

Esse fenecimento não é mero viço que a planta perde ao murchar, mas a pró-

pria morte, uma realidade eterna que deveria infundir terror nos corações de todosquantos são tentados a levar esse modo de vida iníquo.1:12 / O termo bem-aventurado (makarios) também é empregado nas bem-

aventuranças e nos Salmos (e.g., Salmo 1). Seu oposto é a interjeição “ai”.A idéia por trás do verbo suporta  (hypomeno) é de grande importância no

Novo Testamento (Mateus 10:22; 24:13; Marcos 13:13; Romanos 12:12;1 Coríntios 13:7; 2 Timóteo 2:12; etc., empregam esse verbo; Lucas 21:19; Ro-manos 2:7; 8:25: 2 Coríntios 6:4; Tessalonicenses 1:3; Apocalipse 3:10, e vinte e

seis outras passagens empregam o substantivo dele derivado,

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hypomone). Uma questão crucial era que os crentes fossem ensinados a suportarprovações, pois de outra forma a igreja teria sido varrida em face da primeiracarga da perseguição. Era virtude valorizada em certos círculos judaicos (e.g.,Testamento de Jó e Testamento de José).

Paulo emprega a idéia de suportar a provação cinco vezes (cf. também2 Timóteo 2:15). O adjetivo dokimos indica aprovação humana ou divina,sendo o que Paulo desejava para si mesmo no dia do julgamento. Paulo,à semelhança de Tiago, nunca presumiu possuir essa aprovação final antesde haver chegado lá (e.g., Filipenses 3:12-16).

A idéia de receber a coroa da vida no dia do julgamento final expressa-se emlinguagem idêntica em Apocalipse 2:10 e, em linguagem semelhante (“a coroa deglória”), em 1 Pedro 5:4.

A promessa aos que o amam (cf. Tiago 2:5) em nenhum outro passo dasEscrituras está explicitamente enunciada, embora seu sentido genérico seja bas-tante freqüente (Êxodo 20:5-6; 1 Coríntios 2:9; Efésios 6:24). Argumentam al-guns que esse versículo cita um enunciado de Jesus não registrado, o que é possí-vel, mas improvável.

1:13 / Quando Tiago assevera e desmascara a mentira de Sou tentado porDeus, enfatizando que ele a ninguém tenta, está seguindo o judaísmo. Conquan-to certas porções mais primitivas do Antigo Testamento declarem sem sombra de

dúvida que “Deus prova” (e.g., Abraão em Gênesis 22:1 e Davi em 2 Samuel24:1), depois do exílio o judaísmo passou a considerar essa idéia um tanto levia-na. Assim é que em 1 Crônicas 21:1 o diabo, e não Deus, é quem tenta Davi; emJó, a prova é planejada e implementada por Satanás, embora Deus lhe dê permis-são; e em Jubileu 17-19 é o diabo (Mastema) quem propicia e executa a provaçãode Abraão. Para Tiago, Deus é soberano, mas são outras forças que causam o mal.

Uma das razões por que Tiago trata dessa questão pode derivar das expres-sões gregas da oração dominical: “Não nos deixes cair em tentação, mas livra-nos

do mal”. No grego o pedido ressoa como se Deus pudesse ser o agente da tenta-ção, e como se o crente precisasse pedir livramento. Entretanto, a forma aramaicadessa oração (e as aplicações em Lucas 22:40) claramente demonstra que a inten-ção do Senhor foi esta: “Faze que não entremos em tentação (ou na prova)”, o quecombina bem com “e livra-nos do maligno”. Deus é quem impede o diabo detentar o crente, e quem estabelece limites às tentações e às provações.

Deus não pode ser tentado pelo mal é retradução de “Deus é apeirastos”. Oproblema é que apeirastos é palavra rara, que ocorre primeiramente em Tiago e

praticamente em parte alguma da literatura grega. A tradução preferida neste co-mentário: “Deus não deve ser posto à prova por homens

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iníquos” baseia-se no emprego dessa palavra pelos pais da igreja, pela forma dapalavra e o ensino do Antigo Testamento, que proíbe colocar Deus sob teste. Vejatambém P. H. Davids, “The Meaning of Apeirastos”, NTS 24 (1978), p. 386-91.Quanto à tradição sobre provas e tentações, em geral, veja B. Gerhardsson, “The

Testing of God’s Son” (A Provação do Filho de Deus).1:14 / A menção de concupiscência como fonte da tentação baseia-se numa

forte tradição judaica concernente aos impulsos maus da humanidade (o mal  yê-

ser ). O  yêser é simplesmente um desejo indeferenciado que força por conseguirtudo que vê. Não é o ego, o eu da pessoa (identifica-se mais com o id de Freud),todavia, se não for controlado pela lei ou Torá (no judaísmo), ou por outra forçamaior, acabará controlando o ego. Assim é que Paulo vê a si mesmo controlado

pelo pecado, pela carne, ou pela lei do pecado, a despeito de o apóstolo reconhe-cer sua natureza maléfica, e de ele aprovar a lei. Para Paulo, a Torá não era sufici-ente porque simplesmente indica à pessoa em que grau está escravizada (Roma-nos 7). A resposta de Paulo é que o Espírito constitui o poder libertador que livraa pessoa da concupiscência/pecado (Romanos 8). Tiago fornece uma respostasemelhante em sua exortação em prol da sabedoria (1:17; 3:13-18, etc.). O ele-mento importantíssimo para Tiago, nessa passagem, como o era para os judeus, éa responsabilidade pessoal. A pessoa precisa admitir sua culpa; que nela reside o

pecado, e não num elemento externo. Assim é que a igreja anglicana confessa,segundo a tradição cristã: Somos “miseráveis pecadores... em nós não há saúdeespiritual”. Quanto a uma discussão mais profunda da tradição do yêser, consulteF.C. Porter. “The Yeser Hara: A Study in the Jewish Doctrine of Sin” (O “YêserHara”: Um Estudo da Doutrina Judaica do Pecado); e G. F. Moore, Judaism in the

First Centuries of the Christian Era (O Judaísmo nos Primeiros Séculos da EraCristã), vol. 1, p. 479-93.

1:15 / O retrato da concupiscência como uma mulher sedutora é tirado deProvérbios. Em Provérbios 1-9 a sabedoria aparece como a mulher bondosa esanta que conduz as pessoas à vida, e a Deus. Nos capítulos 5 e 7 aparece outramulher, a qual seduz e desvia os que estão sendo chamados pela sabedoria. Elapromete cumprir-lhes os desejos, mas o resultado final é a morte. O emprego doquadro da flecha e do laço em Provérbios 7:22-23 é muito apropriado no contextode Tiago. De modo semelhante, a imagem do adultério é bastante apropriada,visto que o impulso mau com freqüência se liga ao adultério na literatura judaica.

Cf. S. Schechter, Some Aspects of Rabbinic Theology (Alguns Aspectos da Teo-logia Rabínica), p. 250.

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Alguns autores vêem nesse versículo uma referência às concepções judaicassobre o ataque de Satanás a Eva, ou à alma, particularmente na linguagem de teorsexual (quanto à sedução de Satanás sobre Eva, veja 4 Macabeus 18:7-8; Apoca-lipse de Moisés 19:3; Testamento de Ruben 2; e Testamento de Benjamin 7). Tal

referência é improvável, porque o agressor aqui é do gênero feminino (concupis-cência), no primeiro caso, em que há fecundação e parto e, no segundo, não semenciona nenhuma personagem maternal. Tiago, que deseja enfatizar a responsa-bilidade pessoal, dificilmente deixaria aberta a possibilidade de alguém jogar aculpa de seus pecados sobre Satanás e sobre Eva.

Quanto ao relacionamento do pecado com o coração, veja E. Arnold,  Inner 

 Land (Território Íntimo), Rifton, N.Y.: Plough Publishers, 1976, esp. cap. 3, “OCoração”.

O relacionamento entre o pecado e a morte é bastante claro nas Escrituras:Gênesis 2:17; Ezequiel 18:4; Romanos 5:12 (incluindo as referências de Jesus àGeena e às trevas exteriores, as do Apocalipse à “segunda morte”, e 1 João 5:16-17). Que Tiago vê esta doutrina como referindo-se a algo mais, além da mortefísica (conseqüência do pecado em 1 Coríntios 11:30; 5:5; e 1 Timóteo 1:20), ficabem claro em Tiago 5:19-20.

1:16 / A idéia de engano ( planao) ocorre com freqüência nas Escrituras, nãocomo referência simples ao julgamento, mas ao desvio sério da verdade, que ataca

o cerne da própria fé: Romanos 1:27; 1 Coríntios 6:9; Gálatas 6:7; 1 João 1:8; 4:6;2 Pedro 2:18; 3:17; e é freqüente no Apocalipse. Cf. H. Braun, “Planao”, TDNT,vol. 6, p. 242-51.

1:17 / O texto original de que Tiago se utilizou para tirar toda boa dádiva etodo dom perfeito pode ter sido o seguinte: “Todo dom é bom e toda dádiva éperfeita”, que traduzimos grosso modo: “A cavalo dado não se olham os dentes”.Tiago alterou um pouco o texto, acrescentando lá do alto, ou “do céu”, mas issomuda o sentido. Agora é Deus, e não as pessoas, que é a fonte de todos os dons

perfeitos. Não está declarado o que é que Deus dá, mas se nossa análise da formaestiver correta (Introdução, “Forma”), trata-se de um paralelismo de 1:5-8 e, dessemodo, relaciona-se à sabedoria, a melhor de todas as dádivas (como em Lucas11:13), a qual é necessária a fim de combater os impulsos maus de 1:2-4 e 1:12-15. O termo acrescentado é usado com freqüência a fim de indicar a origem divi-na do Espírito de Deus, ou da fé (em contraste com a origem terrena ou demonía-ca): João 3; Pastor de Hermas Mandate 9:11; 11:5.

A expressão Pai das luzes é literal. Por um lado é um circunlóquio. Tiago,

como bom judeu, evita usar o nome de Deus sempre que pode (como a expressãorabínica: “O Santíssimo, bendito seja seu nome” em vez de

(Tiago 1:1-27)

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“Deus”). Por outro lado, embora isto reflita a crença de Tiago em que Deus criouas estrelas (Gênesis 1:14-18; Salmo 135:7; Jeremias 4:23; 21:35), pode tambémrefletir a crença em que Deus está relacionado com as estrelas de modo mais pro-fundo do que parece, que os planetas e as estrelas são seres animados, ou espíri-

tos, ou por estes são governados (Jó 38:7; 1 Enoque 18:12-16; 1 QS 3:20; etc.).Trata-se de imagem nitidamente do judaísmo, e não do helenismo, no qual não seutilizavam “luzes” a fim de referir-se a corpos celestes. Consulte também G. F.Moore, Judaism in the First Centuries of the Christian Era (O Judaísmo nos Pri-meiros Séculos da Era Cristã), vol. 1, p. 403; e H. Conzelmann, “Phos”, TDNT,vol. 9, p. 319-27.

A dificuldade a respeito de não há mudança nem sombra de variação é, emparte, um problema textual. Fica óbvio ao estudarmos o texto grego que os primi-

tivos copistas tiveram alguma dificuldade para entender com exatidão que fenô-meno Tiago tinha em mente: constelações que mudam de lugar, um eclipse ou ocair da noite. Era sabido que os corpos celestes mudam (Siraque 17:31; 27:11;Sabedoria 7:29; 1 Enoque 41:72), e que Deus nunca muda (Jó 25:5). Na verdade,tudo isso era tão bem conhecido que com certeza seria errado pedir a Tiago quepusesse maior precisão no texto, sobre que fenômenos teria ele em mente. Mudamos céus, e sofrem alterações (obscurecidos pelos movimentos dos astros). Esse é ofato que contrasta violentamente com seu Criador.

1:18  /  Este versículo recende a fragrância da linguagem da criação. Por e-xemplo, o particípio (em grego) segundo a sua vontade encerra posição enfáticaigual à das obras de Filo, ao referir-se aos desejos criativos de Deus. Tal fato temlevado alguns eruditos a argumentar que só a criação original da humanidade éque Tiago tem em mente, mas a linguagem que Tiago emprega a seguir eliminaesta tese. Sim, trata-se de criação divina, mas de uma nova criação (cf. 2 Coríntios5:17).

Que Deus tenha decidido segundo a sua vontade gerar-nos pela palavra da

verdade parece problemático para algumas pessoas, visto que a expressão refere-se estritamente a um verbo que só se aplica ao ato de uma mulher dar à luz. Entre-tanto, duas pequeninas informações resolvem o problema: (1) As Escrituras em-pregam às vezes linguagem figurada aplicando a Deus imagem feminina (Núme-ros 11:12; Deuteronômio 32:8; 32:18a na Septuaginta; Salmo 7:14; 90:2; Isaías66:13), e (2) Tiago precisava de um fato paralelo, a contrapartida de concupiscên-cia em 1:15.

A linguagem sobre regeneração (que se aproxima muito da tradição joanina,e.g., João 3-13; 1 João 3:9-10) e a linguagem sobre a nova criação (que se apro-xima muito da de Paulo, e.g., 2 Coríntios 5:17, Romanos 8:18-25) vêm juntasnesta passagem. A imagem é bastante fluida.

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Em para que fôssemos como que primícias das suas criaturas lemos umnovo tipo de imagem, a da colheita. No Antigo Testamento, as primícias, ou pri-meiros frutos, podem designar ou a ordem temporal do evento (Cristo foi o pri-meiro a ressuscitar, 1 Coríntios 15:20; Estéfanas, o primeiro a salvar-se, 1 Corín-

tios 16:15; os cristãos são os primeiros redimidos, 2 Tessalonicenses 2:13) ou aqualidade do grupo (Apocalipse 14:4). Aqui a referência à criação enfatiza a prio-ridade temporal: o renascimento dos cristãos inicia a redenção de toda a criação.Veja também G. Delling, “ Haparche”, TDNT, vol. 1, p. 484-86.

1:19 / O provérbio provém de um contexto judaico, como indica a linguagem(Todo homem é pas anthropos, um semitismo), sua sabedoria, porém, não seencontra largamente difundida só em fontes judaicas (Provérbios 15:1; Siraque

1:22; 4:29; 6:33; Salmos de Salomão 16:10; m. Aboth 2:10), mas também emfontes pagãs (Dio Crisóstomo 32 [“Não te apresses em irar-te, mas tenha calma”];Diógenes Laércio 8:23; Sêneca Ira). De tato, o interesse e a preocupação pelocontrole da língua é tão prevalecente, incluindo o controle da ira, que W. R. Bakerescreveu uma tese de doutoramento sobre este tema, bem como outros relaciona-dos à ética da palavra, em relação a Tiago (Personal Speech-Ethics: A Study of 

the Epistle of James against its Background [Ética Pessoal da Fala: Um Estudo naEpístola de Tiago em Função de Seu Fundo Cultural] Universidade de Aberdeen,

1986). Uma das maiores diferenças entre Tiago e outros autores do Novo Testa-mento) e os judeus inclusive autores do Antigo Testamento) e os escritores pa-gãos, sobre esse tópico, é que Tiago e o Novo Testamento não recomendam osilêncio, talvez pela urgência na divulgação do Evangelho.

Quanto à ira, ao barulho e às dissensões partidárias no Novo Testamento,temos alguns exemplos em 1 Coríntios 14; 1 Tessalonicenses 5:9-22; e 1 Timóteo1:3ss. Veja também os partidos de 1 Coríntios 1-3. Deixa de ser necessário pre-

sumir agitação política, ou zelotismo, como Bo Reicke afirma ter existido (James,p. 21), para encontrar uma ambientação que justifique o emprego deste provérbiona comunidade de Tiago.

1:20 / A Ira, usualmente no sentido de expressão de hostilidade. era rejeitadapelos gregos, como demonstra H. Kleinknecht (“Orge”, TDNT, vol. 5, p. 384).Mais tarde os escritores judaicos a rejeitaram por ser incompatível com a sabedo-ria (Siraque 27:30; Sabedoria 10:3; cf. Jó 36:13; 18; Provérbios 12:16; 27:3; 4;29:8; 30:33). Na literatura cristã, não apenas o sermão do monte rejeita a ira, u-

sando o mesmo termo de Tiago (Mateus 5:22), mas a ira é incluída também naslistas de vícios

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(Efésios 4:31; Colossenses 3:8). A oração é incompatível com a ira (1 Timóteo2:8). Efésios 4:26 (citando Salmo 4:4) indica que Paulo não queria que o crentereprimisse a ira, mas admitisse essa emoção e a sublimasse (e.g., mediante a con-frontação e reconciliação, o perdão, ou a oração): “Não se ponha o sol sobre a

vossa ira”. A repressão da ira só aumenta as probabilidades de uma explosão.Veja também H. C. Hahn, “ Anger ” (Ira), NIDNTT, vol. 1, p. 105-13.

1:21 /  despojando-vos é particípio, no grego, claramente subordinado aoverbo principal, recebei, embora o preceda no tempo. É palavra utilizada comfreqüência na literatura cristã para descrever uma mudança de vida, e.g., Efésios4:22: 1 Pedro 2:1; 1 Clemente 13:1

A expressão impureza é mais empregada fora do Novo Testamento do que

dentro (e.g., em Epiteto ou Filo). Veja também J. I. Packer, “ Dirt, Filth, Refuse”(Sujeira, Imundície, Refugo), NIDNTT, vol. 1, p. 479.A expressão todo vestígio do mal pode significar “grande quantidade

de perversidade”, “grande quantidade de malícia” ou muito possivelmente “todotraço ou vestígio de malícia”. A chave para esta última tradução é que a raiz de

 perisseu comumente é empregada no Antigo Testamento a fim de traduzir a raizhebraica ytr, que significa ou abundância ou vestígio, traço.

Foi Deus quem operou a palavra em vós implantada. Têm alguns argumenta-

do que isto significa “inato” ou “de nascença”, como com freqüência aparece naliteratura helenística. Entretanto, não apenas o ensino cristão primitivo (Barnabé1:2; 9:9), mas também a tradição bíblica considera a palavra de Deus, ou o evan-gelho, algo que Deus implantou no coração da pessoa, por ocasião de sua conver-são (Deuteronômio 30:1; Mateus 3:4-15; 18-23; 1 Coríntios 3:6; 1 Tessalonicen-ses 1:6; 2:13). Este é o sentido que se adapta melhor, aqui. Como ocorre na pará-bola do semeador, a palavra pode ser plantada, mas, a menos que seja obedecida

logo, a plantinha é sufocada, com resultados fatais.A frase em vós (cf. GNB “em vossos corações”) é interpretação correta dolocal bíblico normalmente mencionado para o implante, mas em algumas tradu-ções há uma frase seguinte que diz: “salvai vossas almas”. A salvação a que Tiagose refere aqui é o livramento do julgamento apocalíptico de Deus, no último dia.“Almas” foi corretamente traduzido em NIV, que traz apenas “vocês” (“vós” naECA), visto que psyche significa a pessoa total (cf. Deuteronômio 6:5; Jó 33:28;Marcos 8:35; João 10:11; Atos 2:41).

Quanto à virtude da mansidão, veja também F. Hauck e S. Schulz, “Praus”,TDNT, vol. 6, p. 645-51.

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1:22 / O pano de fundo deste versículo é a idéia do Antigo Testamento de pra-ticar a lei (Deuteronômio 28:53; 29:28; cf. 1 Macabeus 2:16; Siraque 19:20). Oensino de Jesus era a nova lei para a comunidade cristã (Romanos8:2; 1 Coríntios 9:21; Gálatas 6:2). O ditado em si pode ser duplicata de fontes

 judaicas: “O mais importante não é a exposição da lei, mas seu cumprimento” (m. Aboth 1:17), ou “Deveis não apenas ler a lei de Moisés, mas principalmente prati-car o que ela vos ordena” (Josefo,  Antigüidades 20.44). Jesus disse algo seme-lhante em Mateus 7:21-27 (Lucas 6:46-49), induzindo Orígenes (Homilia sobreGênesis 2:16) a crer que este versículo seria um pronunciamento não registrado deJesus.

O termo para enganando-vos a vós mesmos ocorre em Colossenses 2:4 e ou-tras passagens paralelas, em que significa desviar uma pessoa da fé. Assim é que

os ouvintes só se enganam a si mesmos a respeito de sua salvação.O termo para ouvinte, em ouvinte da palavra não se refere a um ouvinte ca-

sual, mas é palavra grega clássica que significa ouvinte sério, ou aluno (e.g., Pla-tão, República 536c; Aristóteles, Política 1274).

1:23-24 / A metáfora do espelho é empregada noutra passagem das Escriturase na literatura intertestamentária (1 Coríntios 13:12; Siraque 12:11; Sabedoria7:26), bem como noutras literaturas gregas; porém, tais empregos não têm rela-cionamento com Tiago. Espelhos de cobre ou de bronze eram utensílios domésti-cos comuns demais para deixar de ser usados como ilustração literária.

Argumentam alguns comentaristas que os termos para contempla no espelho e contemplar a si mesmo significa “olhar para” em oposição a um exame maiscuidadoso da lei no v. 25 (e.g., J. Adamson,  James [Tiago], p. 82). Todavia, istonão só não se enquadra na questão proposta por Tiago, como representa uma as-sertiva falsa a respeito do termo grego (cf. Mateus 7:23; Lucas 12:27; Lucas20:3). Veja também S. S. Laws,  James (Tiago), p. 86; e J. Goetzmann, “ Reason”(Razão), NIDNTT, vol. 3, p. 126.

1:25 / O termo bem-aventurado (makarios) chama-nos a atenção parao emprego anterior dessa palavra em 1:12. Como em Mateus 5:3-9 (etendo um fundo cultural no Salmo 1:1; Isaías 56:2; etc.) não se tratade bem-aventurança temporal, mas aprovação futura, ou alegria, quandoo reino de Deus estiver completamente estabelecido (cf. 5:7-11).

lei perfeita, a da liberdade tem sido objeto de discussão freqüente. Os estói-cos utilizam esse termo (e.g., Epiteto 4.1.158), e esse uso é discutido por J. Blunk,“Freedom” (Liberdade), NIDNTT, vol. 1, p. 715-16, e H. Schlier, “ Eleutheros”, TDNT, vol. 2, p. 493-96, Filo tentou aplicar essa

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idéia à lei mosaica, como se fora a verdadeira razão (e.g., Vita Moesis 2.48). Poroutro lado, não há evidência dessa idéia estóica em Tiago, além dessa similarida-de verbal, havendo abundante evidência de que os judeus de todas as camadasviam sua lei como perfeita e libertadora (Salmo 119; 19:7-11; 40:6-8; Romanos

7:12; m.  Aboth 3:5; 6:2). W.D. Davies, The Setting of the Sermon on the Mount 

(A Ambientação do Sermão do Monte), demonstrou que os judeus esperavam queo Messias lhes reinterpretasse a lei. Esta expectativa judaica foi precisamente oque os primitivos cristãos viram Jesus realizando, ao conceder uma lei nova eperfeita para o reino da era vindoura (cf. Barnabé 2:6 e Hermas, Visão 1.3).

1:26 / O termo religião, junto com religioso, não são usados comumente nasEscrituras; o adjetivo ocorre na bíblia grega apenas aqui, e o substantivo apenas

no v. 27; Atos 26:5; e Colossenses 2:18, no Novo Testamento. O termo se refereao desempenho religioso, com conotações positivas e às vezes negativas.A palavra vã no grego ocorre outra vez em 2:14-26, em que Tiago declara que

a fé que não produz resultados é incapaz de salvar.1:27 / Os termos pura e imaculada, ou “pura e sem mancha”, também se en-

contram no Didaquê 1:5 e Hermas, Mandate 2.7; Similitude 5.7.1. É provável quese trate de expressão idiomática que significa “pureza absoluta”.

A referência a Deus como Pai não é inusitada em Tiago (1:17, 3:9), mas aqui

ele talvez esteja enfatizando Deus como o Pai universal, o Pai dos órfãos e maridodas viúvas. Tal alusão faria a exigência de a caridade fluir da própria natureza deDeus.

O mundo é mencionado aqui num sentido distintamente cristão, como salien-ta H. Sasse, “Kosmos”, TDNT, vol. 3, p. 889-95. As únicas passagens judaicasque rejeitam a cultura humana desta mesma maneira passam pela suspeita de in-fluência cristã (e.g., 1 Enoque 48:7; 108:8). Para os crentes, o mundo pode “con-

taminá-los”, ou manchá-los. Por isso, era imperativo ao crente permanecer incon-taminado. Este havia sido um termo cultual com o significado de pureza e aceita-ção para o culto de seita (i.e., culto no templo; cf. 1 Pedro 1:19), mas agora assu-miu novo sentido moral (como em 1 Timóteo 6:14; 2 Pedro 3:14).

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 2. Preconceito e Pobreza (Tiago 2:1-26)

No capítulo 2, Tiago expande os temas do mundanismo e do cuidado dasviúvas. O mundanismo sobressai não apenas como ambição pessoal, mas tambémna exagerada consideração que a igreja demonstra a alguém que detém poder ealta posição mundana, em vez de avaliar a pessoa na base de sua posição espiritu-al em Cristo. Esta questão, por sua vez, conduz à declaração da necessidade degenerosidade e a uma advertência contra uma ortodoxia complacente que fica 

aquém na obediência devida ao evangelho (2:14-26).

2:1  / Meus irmãos define o reconhecimento dos leitores da carta como mem-

bros da igreja, não façais acepção de pessoas. A despeito de o Senhor Deus nãoter parcialidade (Deuteronômio 10:17; Gálatas 2:6), os seres humanos que a eleservem, sob sua autoridade, e que se supõe terem copiado seu caráter, precisamser continuamente advertidos contra a parcialidade (e.g., Deuteronômio 1:17;Levítico 19:15; Salmo 82:2; Provérbios 6:35; 18:5). Basta um olhar rápido àspessoas eleitas para cargos na igreja, e um breve exame de quem dirige as comis-sões e conflitos denominacionais, para sabermos de imediato que, não obstante aopinião bastante negativa de Jesus a respeito da riqueza (e.g., Marcos 10), a re-provação de Tiago ainda tem relevância hoje. A igreja não deveria mostrar parcia-lidade, nenhum interesse com respeito à beleza externa, à riqueza material e aopoder ou à influência da pessoa.

Isto é o que a bíblia exige de nós como crentes em nosso Senhor JesusCristo, Senhor da glória. A única base da igreja é a fé num Senhor único. A fé ea fidelidade no compromisso ao Senhor é o que salva tanto ricos como pobres,igualmente, e todos votam lealdade a um Senhor cuja vida e ensino desprezaram,

na verdade, quaisquer posições mundanas. E, acima de tudo, este é um Senhorque vive, que foi exaltado em glória, que vai voltar a fim de manifestar seu podere glória e julgar o mundo. Demonstrar parcialidade é violar o caráter do Senhor, éinsultá-lo, e certamente é grave pecado.

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2:2-4  / Havendo declarado seu tema, Tiago fornece-nos um exemplo baseadoem acontecimentos realistas (ainda que hipotéticos) da igreja. Se na vossa reuni-ão entrar algum homem com anel de ouro no dedo, e com trajes de luxo : taispalavras descrevem uma pessoa que entra vestida de trajes luxuosos (lit., “brilhan-

tes”). O anel de ouro no dedo indica sua riqueza. Pode-se até sentir a deferênciaincômoda com que o trata o grupo presente. A seguir, entra também algum po-bre andrajoso. Só possui as roupas do corpo, pelo que estão sujas e esfarrapadas.Acostumado à rejeição, o coitado espreita à porta, sentindo que as pessoas reuni-das o evitam, o que ele já esperava; o péssimo estado de seu vestuário declara-olixo humano, sem valor nenhum sob o prisma mundano.

A igreja reage à situação econômica do rico: Assenta-te aqui em lugar de

honra. O rico acomoda-se na cadeira mais confortável, sob os sorrisos compla-centes de todos os presentes. O pobre, por sua vez, é recebido com frieza: Fica aí em pé, ou assenta-te abaixo do estrado dos meus pés. A sala está repleta; queesse pobretão reverencie aos que lhe são superiores, permanecendo de pé, oumesmo sentando-se a seus pés. A maior parte dos presentes, naturalmente, fingeque não notou sua presença.

O que torna tal tratamento ainda pior é que as duas partes assim retratadas es-tão numa reunião judicial; a igreja reuniu-se em tribunal para julgar certa pendên-

cia legal entre os dois homens. As minúcias das roupas diferentes, das posiçõessociais diferentes e dos locais diferentes em que se acomodam encontram parale-los na prática jurídica judaica. Em 1 Coríntios 6:1-11 mencionam-se tais assem-bléias, que teriam autoridade legal, visto que por essa altura a igreja era vista co-mo uma seita judaica, e as sinagogas tinham autoridade em seus tribunais (beth-

din) para impor multas ou punições físicas. É certo que em outras situações (e.g.,no culto público) a postura física das pessoas nas reuniões da igreja era uniforme

(todos sentados ou de pé), sendo prescritas com maior cuidado as funções de cadapessoa. Todavia, esses dois crentes enfrentam uma disputa judicial, e fica bemclaro perante a igreja desde o começo: não se pode ofender o rico.

Tiago condena esse comportamento por duas razões: primeira, fazeis distin-ção entre vós mesmos. Em Cristo haviam sido todos unificados — eram um emCristo. Nele não há grego nem judeu, nem escravo

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nem livre, nem homem nem mulher, mas todos são um, uma única pessoa emCristo (Gálatas 3:28). Entretanto, aquela igreja estava desprezando esse fato, porconveniência carnal, fazendo distinção com base nas riquezas e nas posições soci-ais mundanas, renegando o efeito prático da obra de Cristo.

Em segundo lugar, os homens daquela congregação tornaram-se juízesmovidos de maus pensamentos. Há uma infinidade de passagens do Antigo Tes-tamento que nos advertem contra o preconceito no tribunal, como, por exemplo:“Não farás injustiça no juízo; não favorecerás ao pobre, nem serás complacentecom o poderoso, mas com justiça julgarás o teu próximo” (Levítico 19:15). Se,como afirma o Antigo Testamento, Deus é juiz imparcial, e se os judeus afirma-vam julgar de acordo com os padrões de Deus, como se atrevem a agir de modo

injusto, favorecendo preconceituosamente o rico porque lhe cobiçam a riqueza e opoder?Ao examinarmos o exemplo específico que Tiago nos apresenta, entretanto,

não devemos desprezar a aplicação mais abrangente. Tiago ficaria mais feliz se opobre fosse tratado com desprezo num culto público? Ficaria o pobre menos pre-

 judicado se o tratamento preferencial dado ao rico significasse que este fora guin-dado a posição de liderança na igreja?

Ou será que a discriminação se tomaria menos ostensiva se o conselho da

igreja ouvisse com a máxima atenção “a prima dona”, mas empurrasse para o ladoas reivindicações do pobre? Conquanto estejamos diante de um exemplo específi-co, ele funciona como condenação geral do comportamento discriminatório.

2:5 / Tiago inicia seu ataque lógico contra essa prática (2:5-7) com um apelo:Ouvi, meus amados irmãos, e chama-lhes a atenção para o fato de estar referin-do-se a algo de que já têm conhecimento: Não escolheu Deus aos que são po-

bres? Tiago emprega a terminologia familiar da eleição, com que Israel estavaacostumado (Deuteronômio 4:37; 7:7), como também a igreja (Efésios 1:4; 1 Pe-dro 2:9), mas aplica-a de modo específico aos pobres. A maior parte dos membrosda igreja primitiva era constituída de pobres (“não são muitos os sábios segundo acarne, nem muitos os poderosos, nem muitos os nobres que são chamados” [1Coríntios 1:26]); a igreja de Jerusalém era bastante pobre

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(2 Coríntios 8:9). Mas Tiago está dizendo mais do que isso. Deus elegeu de modoespecial aos que são pobres aos olhos do mundo (pois só são pobres segundo ospadrões de valor do mundo) para serem ricos na fé e herdeiros do reino queprometeu aos que o amam. Por um lado, isso torna o pobre quase igual àquele

que suporta a provação. em 1:2, visto que ambos recebem aquilo que Deus pro-meteu aos que o amam. Por outro lado, Tiago está aplicando o ensinamento deJesus, visto que foi o Senhor quem disse que havia vindo de modo particular “pa-ra evangelizar aos pobres” (Lucas 4:18) e depois: “Bem-aventurados vós, os po-bres, pois vosso é o reino de Deus” (Lucas 6:20). Jesus selecionara os pobres co-mo os especialmente contemplados com o seu reino; Tiago apanha essa idéia eacrescenta: aos que o amam, a fim de limitar a promessa aos pobres que reagem

em amor diante da mensagem do evangelho. Se há favoritos aos olhos de Deus,esses são os pobres, visto que Deus os vê de modo bem diferente do mundo. Omundo os enxerga como pobretões desprezíveis, sem importância, mas para Deuseles são ricos na fé e herdeiros do reino — o contrario da perspectiva mundana.

2:6-7  /  A igreja não tem a perspectiva de  Deus: vós desonrastes o pobre. Deus condena o mesmo crime no Antigo Testamento (e.g., Provérbios 14:21; cf.Siraque 10:22). A igreja que envergonha o pobre de certo modo (e.g., 1 Coríntios

11:22) abandonou a vontade de Deus e deixou de agir em prol de Deus.Entretanto, a igreja decidiu mostrar preferência pela classe rica, que a oprime.

Primeiro, são os ricos que vos oprimem. A idéia de que os  ricos e poderososexploram os pobres tem raízes profundas no Antigo Testamento (Jeremias 7:6;22:3; Ezequiel 18:7; Amós 4:1; 8:4; Malaquias 3:5). Quando o pobre precisava deum empréstimo, o rico lho concedia com juros elevados (a despeito de a extorsãode juros, i.e., obter lucros mediante a desgraça do necessitado, ser prática conde-

nada, e.g., Êxodo 22:25-26). Em surgindo uma disputa, o rico contratava o melhoradvogado; ambos se associavam, de modo que o pobre se tornava mais pobre, e orico, mais rico.

Em segundo lugar, os ricos vos arrastam aos tribunais. Quando o pobre nãopodia restituir um empréstimo ao rico, este o arrastava ao tribunal para que fossedecretada a falência do pobre. O rico podia

(Tiago 2:1-26)

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levar acusações caluniosas contra os que reclamassem, e talvez acusassem oscristãos de perturbarem a tranqüilidade e a ordem da comunidade. Estas seriam asmaneiras pelas quais os cristãos sofriam perseguições, que se resumiam na opres-são de todos os pobres pelos ricos; às vezes, contudo, os cristãos eram discrimi-

nados porque sua religião os tornava muito vulneráveis — que juiz se sentiria malem tratar com maior dureza os seguidores de um galileu desprezível?

Em terceiro lugar, os ricos são os que blasfemam o bom nome daquele aquem pertenceis. Agora Tiago acrescenta uma acusação de natureza religiosa. Onome de Jesus havia sido outorgado aos cristãos, ou (de modo mais literal) em seunome haviam sido batizados. Agora os cristãos “pertencem” a Cristo. Seu Senhoré Cristo. Todavia, os ricos falam mal desse nome, quando escarnecem de Jesus ou

quando insultam seus seguidores. Não está esclarecido se faziam isso no tribunal,como parte do processo opressivo, ou se estavam insultando a Cristo nas sinago-gas e nas praças. Nem uma nem outra ação era justa.

Entretanto, a igreja também tomara a decisão de insultar os pobres (a quemDeus honra), e desse modo, decidiu favorecer os ricos, identificando-se com aclasse opressora. Com freqüência acontece que o grupo oprimido assume as ca-racterísticas de seus opressores; quando isso acontece à igreja, o fato não é apenaspatético e irônico, mas constitui uma inversão moral, visto que as pessoas que

tomaram sobre si o nome de Cristo agem, agora, à semelhança das que blasfemamdo nome de Cristo.

2:8-9  / Tiago prossegue em sua argumentação bíblica: se cumprirdes a leireal (i.e., a lei do reino) ... fazeis bem. Reino, neste contexto (cf. 2:5), é o reinode Deus. Embora a glória total desse reino ainda pertença ao futuro, o cristão já entrou nele e permanece sob sua autoridade. A lei desse reino é o Antigo Testa-

mento, como Jesus o interpretou e ensinou, conforme Mateus 5 e 6. Afirmar quealguém “faz bem” ao obedecer à lei de Jesus é minimizar essa lei: o próprio Jesusapresenta seus ensinos como questão de vida ou morte (Mateus 7:13-27).

A lei é encontrada na Escritura, porque Jesus em geral interpretava o Anti-go Testamento, em vez de ensinar sem referir-se à revelação anterior. O manda-mento específico citado por Tiago: Amarás

(Tiago 2:1-26)

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o teu próximo como a ti mesmo é um dos prediletos de Jesus (ele mencionaLevítico 19:18 seis vezes nos evangelhos sinóticos) e da igreja (Romanos 13:19;Gálatas 5:14). Era um mandamento geralmente visto como resumo da lei, mas arazão por que Tiago o menciona pode estar em Provérbios 14:21: “O que despreza

ao seu vizinho peca, mas o que se compadece dos humildes (pobres) é bem-aventurado”. De acordo com as Escrituras, o próximo é a pessoa a quem devemosamar. No entanto, esses cristãos demonstram parcialidade, ao fazer acepção depessoas; discriminam o pobre e com isso quebram a lei, visto que tudo está inter-relacionado, como o declara o livro apócrifo Testamento de Issacar (5:2): “Amaao Senhor e ao teu próximo e tem compaixão do pobre e do necessitado”.

Portanto, aqueles crentes são acusados por Tiago: cometeis pecado. Não

praticaram ações a que chamaríamos infelizes ou contristadoras, coisas que nãodeveriam ter feito; simplesmente cometeram pecado. Tiago não fica constrangidoem usar uma expressão forte, aguda, que sublinha a situação da igreja, sabendoque apenas “rodear” o problema não conduz ninguém ao arrependimento. Aquelescrentes estão sendo argüidos pela lei como transgressores: nesta frase você temum retrato do julgamento final de Deus. O réu, no tribunal, não vai enxergar Tia-go, mas a Personificação da própria lei, o Senhor, que se levantará e o apontarácom dedo acusador, dizendo: “Eis um transgressor”. Trata-se de acusação grave,

pois os judeus cristãos sabiam que transgredir a lei conscientemente equivalia aatrair sobre si o julgamento de Deus.

2:10 / A razão que alicerça esta conclusão é um truísmo: qualquer queguardar toda a lei, mas tropeçar em um só ponto, torna-se culpado de todos.Esta afirmação não significa que as más conseqüências são sempre as mesmas,não importando que mandamento a pessoa quebra (e.g., roubar um lápis é tão mau

quanto assassinar uma pessoa), mas significa que, quando alguém quebra ummandamento, demonstra uma atitude básica contra o Outorgador da lei que carac-teriza tal pessoa como transgressor. Deuteronômio 27:26 diz a mesma coisa daseguinte maneira: “Maldito aquele que não confirmar as palavras desta lei, para ascumprir”. A transgressão pode ser mais ou menos grave, mas o transgressor per-manece sob uma maldição, não importando que mandamento tenha quebrado. Oargumento de Tiago é

(Tiago 2:1-26)

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será sem misericórdia para aquele que não usou de misericórdia. Deus é mi-sericordioso, como deveria saber todo leitor do Antigo Testamento. Êxodo 34:5-6declara que, quando Deus revelou a Moisés sua natureza e pronunciou seu nome,descreveu-se a si mesmo como “Deus misericordioso”, “compassivo e misericor-

dioso... lento para a cólera, e abundante em amor” (cf. Deuteronômio 4:31; Sal-mos 103:8-14, que liga este conceito ao de julgamento “a favor dos oprimidos”).Se este é o padrão pessoal da justiça de Deus, segue-se que seus verdadeiros fi-lhos devem imitá-lo. “Ele te declarou, ó homem, o que é bom. E o que é que oSenhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, ames a misericórdia, e andeshumildemente com o teu Deus?” (Miquéias 6:8; cf. Oséias 4:1; 6:6; 12:6; Provér-bios 14:21; Daniel 4:27). Se não demonstrarmos misericórdia, sairemos da aliança

de Deus, e ao mesmo tempo pediremos a Deus que nos julgue segundo nossopadrão de severidade.Este ensinamento tornou-se mais explícito ainda nos períodos intertestamen-

tário e rabínico. Assim declara Siraque: “[A pessoa] não tem misericórdia de ou-tro ser humano, seu semelhante, no entanto, ora pelos seus próprios pecados?”(Siraque 28:4; cf. 27:30-28:7; Tobias 4:9-11; Testamento de Zebulom 8:8), e “ORabino Barabbi disse: ‘Ao que é misericordioso, o céu é misericordioso, mas,para o que não é misericordioso, o céu também não é misericordioso’ ” (b. Shab-

bath, 151b).Jesus ensinou: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão

misericórdia” (Mateus 5:7). Esse conceito é enfatizado em seu ensino sobre operdão (Mateus 6:14-15), sua resposta aos fariseus (Mateus 12:7, citando Oséias6:6), sua parábola sobre o perdão (Mateus 18:21-35) e sua parábola sobre as ove-lhas e os bodes (Mateus 25:31-46). Portanto, o testemunho sólido dos evangelhosé que Jesus seguiu o ensinamento judaico padrão e ensinou que Deus haveria de

demonstrar misericórdia apenas a quem obedecesse a ele e o imitasse.O uso que Tiago faz deste ditado mostra que ele havia aprendido minuciosa-mente a tradição de Cristo, pois veio a tornar-se seu argumento principal. Aindaque os argumentos lógicos e bíblicos não consigam convencer o leitor de que a

 justiça e o amor exigem que os pobres sejam tratados com dignidade, o cristãodeverá todavia honrar aos humildes por misericórdia, e pelo temor do julgamentode Deus.

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Jesus (Mateus 7:15-27) e Paulo (Romanos 1:5; 2:6-8; 6:17-18; Gálatas 6:4-6).Tiago segue a esteira das Escrituras: a fé sem obras (discipulado) jamais salva.

2:15 / Tiago esclarece seu ponto de vista mencionando um exemplo: Se o

irmão ou a irmã estiverem nus, e tiverem falta de mantimento cotidiano. Tia-go não seleciona uma situação complicada. Não é o caso de alguém fora da co-munidade cristã (por isso não pode surgir pergunta do tipo: “você acha que nóspodemos alimentar o mundo inteiro?” tampouco é o caso de necessidade numaigreja distante (como no caso da coleta de Paulo para Jerusalém). Este é o caso dealguém da comunidade local dos crentes (o irmão ou a irmã) cuja necessidade épatente, porque estão nus, precisam de roupas. Ou estão precisando de vestuários

sociais para uso em público, ou da túnica que os aquece de noite, servindo decoberta, ou suas roupas estão esfarrapadas, já não aquecem mais. E, além disso,não dispõem do alimento diário. Tal exemplo, embora hipotético (Se), é aomesmo tempo exigente e realístico, visto que, numa sociedade marginal como ado Novo Testamento, não era incomum as pessoas terem falta de elementos bási-cos para a sobrevivência. Aliás, nos anos 40 e 50, a fome e a miséria castigaram aJudéia com severidade.

2:16 / E algum de vós lhe disser. Fica indicada aqui a reação de um membroda igreja: os membros empobrecidos da igreja dirigiram-se a outro membro, rico,o qual está despachando seus irmãos, sem atendimento.

Suas palavras são piedosas: Ide em paz era fórmula padrão de despedida naigreja judaica; aquentai-vos e fartai-vos indica que as necessidades materiaisdaqueles irmãos foram reconhecidas — essa expressão provavelmente foi tiradade uma oração. Todavia, se você nada fizer, se não lhes derdes as coisas neces-

sárias para o corpo, que proveito há nisso? Tiago presume que o cristão pode-ria fazer algo mais, além de orar; esse cristão (ou cristã) possui duas túnicas ecomida mais do que suficiente para aquele dia. A simples obediência ao evange-lho no que concerne a compartilhar  poderia suprir as necessidades daqueles po-brezinhos, mas partir para o recurso fácil da oração intercessória aliviou-lhe aconsciência e disfarçou o fato de sua despensa,

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geladeira e “freezer” terem permanecido fechados. Orações assim são inúteis.

2:17 / Assim também a fé. O exemplo trazido por Tiago foi um caso especí-fico de linguagem ortodoxa e crença intelectual, sem a obediência ao evangelho.

Este conceito vale também para a fé intelectual genérica; se esta constitui tãosomente uma convicção piedosa (em si mesma), deixando de despontar em obe-diência aos mandamentos de Cristo (se não tiver obras), é totalmente inútil (émorta). Para Paulo, a única fé que interessa, a “que importa é a fé que opera peloamor” (Gálatas 5:6), em vez dos rituais e hábitos religiosos. Para Tiago, a fé queconduz à  ação é a que salva. A ação (a obediência a Cristo) de modo algum é“equipamento opcional”, nem nível opcional mais elevado de santificação, assim

como a respiração não constitui “equipamento opcional”, para o corpo (cf. 1:26;2:14; 2:20; e 2:26).

2:18  / Tendo ilustrado sua tese com um exemplo, Tiago continua sua argu-mentação, empregando o estilo vivo do diálogo imaginativo, tão popular entre ospregadores de nossos dias, como naquela ocasião.

Mas dirá alguém significa que assim como Paulo antecipou objeções em 1Coríntios 15:35 ou Romanos 9:19, assim Tiago as antecipa aqui. Eis uma objeção:

Tu tens fé; eu tenho obras. Noutras palavras, a pessoa afirma que a fé é um dom,e as obras, outro dom. Não escreveu Paulo sobre a variedade de dons, todos pro-venientes do mesmo Espírito? (1 Coríntios 12:4-10) A fé é um dom, e a caridadeé um dom (Romanos 12:8). Haveria alguma razão para alguém suspeitar de que afé e a ação viriam juntas, à mesma pessoa, assim como o dom de curar mais o delínguas, ou o de profecia mais o do evangelismo — aos pares?

Tiago contra-argumenta com uma exigência comum nesse tipo de discussão:

Mostra-me [ou “prova para mim que tens fé”] a tua fé sem as tuas obras. Umatradução melhor seria: “Comprove sua fé desacompanhada de ação”. Esta é umaexigência impossível de cumprir. À semelhança de um cavalo que não se vê, nãose cheira, não se toca, não se cavalga, que come capim invisível e nunca deixamarcas dos cascos no chão, uma fé assim é impossível de demonstrar e provar. Éfé suspeita. A fé, nós a contemplamos no modo de a pessoa viver.

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É como Paulo declarou em 1 Coríntios 13:2: “Ainda que eu tivesse toda a fé... enão tivesse amor, nada disso me aproveitaria”.

Por outro lado, eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Assim co-mo a afirmação de fé sem que haja vida resultante dessa fé é suspeita, invertendo-

se o preceito, a ação cristã exige que se verifique qual é a motivação que a inspira.Ninguém vive como Jesus viveu , sem que tenha fé em Jesus. O sermão que é pre-gado por uma vida de ação não precisa procurar agarrar as pessoas pela gola, afim de captar-lhes a atenção; em vez disso, as pessoas que ouvem o sermão silen-cioso da ação exigem uma explicação sobre a fé que motivou tal sermão.

2:19 / Tiago ainda não se descartou do espectro da ortodoxia morta, pelo que

volta à sua assertiva referente à fé propriamente dita, aceitando-a pelo seu valoraparente. Crês tu que Deus é um só? Fazes bem! Eis um ensino verdadeiramen-te básico do judaísmo e do cristianismo, constituindo a primeira parte da Shema.Esta confissão de fé era recitada duas vezes por dia por todos os judeus farisaicos:“Ouve, ó Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teuDeus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de toda a tua força” (Deutero-nômio 6:4-5; a forma integral da Shema incluía Deuteronômio 6:4-9; 11:13-21;Números 15:37-41). Os cristãos também consideram esta confissão de fé um pon-

to de partida, porque Jesus a declarou o maior de todos os mandamentos (Marcos12:28-34). Paulo afirmou que “há um só Deus” (Romanos 3:30). Hermas escreve-ria posteriormente que o mais básico dos princípios do cristianismo é “Em primei-ro lugar, creia que Deus é uno” ( Mandate1). Eis, pois, a realidade: os cristãoscrêem em muitos princípios, o primeiro dos quais é esse.

Todavia, o elogio de Tiago em parte é irônico: Os demônios também o crê-em, e estremecem. Era conhecida não apenas no judaísmo, mas no cristianismo

também, a ortodoxia da crença dos demônios, que freqüentemente faziam confis-sões de Cristo mais sólidas que os próprios apóstolos (Marcos 1:24; 5:7; Atos16:17; 19:15). O problema dos demônios é que sua reação ao nome de Deus (oSenhor os fazia lembrar-se de sua doutrina ortodoxa) era “estremecer”, pelo fatode estarem em rebelião contra Deus. Todo seu conhecimento ortodoxo simples-mente os faz tremer, visto que a “fé” dos demônios não os induz à ação obediente.De modo semelhante, todos os que apenas

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alcançam uma confissão de fé ortodoxa, sem a respectiva ação cristã, não estãonuma posição melhor do que a de Satanás, pois não votaram fidelidade numa vidade obediência.

2:20 / Tiago encerrou sua discussão teológica, mas ainda vai acrescentar al-gumas ilustrações escriturísticas concretas. Todavia, antes de citar tais passagens,Tiago clama (como se fazia comumente segundo o estilo homilético da época): óhomem insensato! Essa maneira de dirigir-se a alguém parece forte demais —não se pode dizer que é educada — e, como o termo insensato indica, não se tratade erro intelectual, mas moral. Entretanto, uma linguagem assim, forte, era normalnaquela época. Basta que examinemos Jesus (Mateus 23:17; Lucas 24:25) ou

Paulo (1 Coríntios 15:36; Gálatas 3:1) para que fiquemos sabendo bem que osmestres judaicos e todos os tipos de mestres gregos usavam linguagem similar.O conteúdo do apelo é quase igualmente forte: Mas queres saber... que a fé

sem as obras é inútil? Estas palavras sugerem que é a ignorância voluntária daprópria pessoa que está exigindo provas adicionais, a mesma ignorância que im-possibilita a aceitação dessas provas. A mente pesquisadora aceita as evidênciasde pronto, mas o ignorante voluntário não se satisfaz nunca, as evidências jamaislhe são suficientes. Entretanto, Tiago enuncia uma suposição caridosa e prossegue

em sua dissertação.

2:21 / A primeira personagem que Tiago analisa é nosso pai Abraão. Umgentio cristão poderia ter escrito esta expressão, ao considerar a igreja como oNovo Israel (Romanos 4; Gálatas 3:7, 29), mas é mais provável que seja umareferência inconsciente feita por um judeu cristão. Entretanto, em certo sentido,Abraão é o pai de todos os fiéis, isto é, de todos os cristãos.

Abraão foi considerado justo ( justificado). Com esta tradução, ECA diferen-cia de modo correto a terminologia de Tiago da de Paulo. Tiago emprega essetermo em seu sentido padrão, “declarado justo por Deus” ou “considerado retopor Deus”, enquanto Paulo o emprega de modo singular (“tornar [um pecador]

 justo”). O sentido atribuído por Tiago a esse termo flui de uma passagem do An-tigo Testamento em que se apóia sua conclusão, Gênesis 22:12, na qual Deus dizo seguinte:

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“Agora sei que temes a Deus”, sendo a expressão “agora sei” uma declaração de justificação. (Esta diferença de sentido, naturalmente, é outra indicação de queTiago não tivera contato com a obra de Paulo.)

A declaração baseou-se na ação: Abraão foi justificado quando ofereceu

sobre o altar o seu filho Isaque. A fé que Abraão demonstrava era real, genuína,porque governava a vida do patriarca. A expressão hebraica equivalente a quandoofereceu está no plural, visto que, quando o autor da carta aponta para o ofereci-mento de Isaque em sacrifício, feito por Abraão, faz referência à tradição judaicasegundo a qual esta foi a ação mestra de todas as ações de Abraão. “Não foi A-braão considerado fiel quando provado, tendo-lhe sido imputado isso como justi-ça?” (1 Macabeus 2:52). As provas sob referência são dez, que culminaram com o

sacrifício de Isaque, sendo todas obras de caridade: “Abraão despertou a caridadeque dormia. Abriu uma hospedaria e recolheu ali os peregrinos” (Midrash onPsalms [ Midras sobre os Salmos], sobre o Salmo 110:1). A base da caridade le-gendária de Abraão está em Gênesis 18, segundo a interpretação da tradição. As-sim é que Gênesis 15:6 era entendido como declaração antecipada, à luz da açãosubseqüente, reveladora da verdadeira fé. Tal declaração de retidão é feita de duasmaneiras: primeiro, há o fato de Deus inexplicavelmente fazer abortar o sacrifício,conforme o ilustra esta história judaica da época posterior:

A seguir os anjos prorromperam em choro alto e exclamaram: “As estradasestão desoladas, o viajante interrompeu a caminhada, ele [Deus] quebrou a a-liança. Onde está o interesse amoroso de Abraão, aquele que hospedou emsua casa os peregrinos, deu-lhes de comer e de beber, e partiu com eles, a fimde pô-los de volta na jornada?...o facão usado para matar está em sua gargan-ta”. [A seguir Deus, em resposta, reconhece a retidão de Abraão ao ordenar-

lhe que pare.]

Segundo: Há a declaração “agora sei”, de Gênesis 22:12; a fé que caracterizavaAbraão era viva, externava-se em ação, o que resultou em Deus chamá-lo justo.

2:22 / Prossegue Tiago: Vês. É certo que o ponto central da passagem citada éclaro: a fé cooperou com as suas obras. Mas, de onde veio sua fé? A respostaestá nas tradições judaicas acerca do patriarca. Essas

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tradições asseveram que Abraão, que vivia numa cultura idólatra, havia contem-plado a natureza e isto o conduziu ao único Deus. Abraão rejeitara a idolatria,queimara a casa que abrigava os ídolos e comprometeu-se em fidelidade a obede-cer ao único Deus (a história é narrada no livro apócrifo de Jubileu 11-12). E as-

sim é que Abraão foi quem originou o credo segundo o qual “Deus é um só” (Ti-ago 2:19).

Em face deste currículo histórico, torna-se claro que um judeu cristão com-preenderia a forma pela qual fé e obras operam juntas. Diferentemente de Tera,segundo as lendas, que apóia a fé exibida por Abraão mas pede ao filho que fiquequieto e guarde sua fé para si mesmo, em seu coração, por temor do povo, Abraãoage de modo coerente com sua fé. Abraão exibe uma fé que se transforma em

ação; e sua fé lhe governa as ações.Além disso, pelas obras a fé foi aperfeiçoada. Tiago não está expondo aidéia de que a fé foi aperfeiçoada no sentido de ter sido menos do que fé antes; dizele que a fé amadureceu ao manifestar-se em ação (cf. 1:4; 15). Há mutualidadeaqui: a fé informa e motiva a ação; a ação amadurece a fé. Tiago não aprova uma,em detrimento de outra, mas, ao contrário, insiste em que ambas são inseparáveis.

2:23 / Tiago tira duas conclusões. Primeira: E se cumpriu a Escritura, que

diz: Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado para justiça. Embora Paulotambém cite esta passagem (Romanos 4:3; Gálatas 3:6), ele a interpreta de mododiferente da de Tiago. Para Paulo, a questão é que Abraão creu em Deus e foideclarado justo antes de ser circuncidado e, assim, antes de guardar a lei cerimo-nial. Tiago (à semelhança de 1 Macabeus 2:52) vê as duas partes da oração comodeclarações separadas. A primeira é: Abraão creu em Deus, ou “teve fé emDeus”. Isso era verdade: toda a tradição judaica testemunhou sua fé num único

Deus. A segunda é: e isso lhe foi imputado para justiça, ou melhor: “Deus odeclarou justo”. Também isso era verdade. Abraão expressou sua fé em todas ascircunstâncias, quer quando recebeu forasteiros (caridade), quer quando recusourecompensa da parte do rei de Sodoma, quer quando ofereceu o filho, Isaque.Assim é que ambas as partes da oração são verdadeiras; as Escrituras em Gênesisenfatizam acerca de Abraão o mesmo aspecto que Tiago está expondo.

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A segunda conclusão é e foi chamado amigo de Deus.  Diferentemente daprimeira conclusão, esta não é uma citação direta das Escrituras, mas uma pará-frase tosca do texto de Isaías 41:8 ou de 2 Crônicas 20:7. Seu significado é que os

 judeus ligavam o título “amigo de Deus” à fidelidade e à obediência de Abraão,

sob prova. Assim é que a obra apócrifa judaica chamada Jubileu, depois de relataro término das dez provas por que passou Abraão, conclui: “ele foi achado fiel, eregistrou-se nos livros celestiais que ele era amigo de Deus” (19:9). Em harmoniacom esta idéia, Tiago enfatiza que o fato de Deus referir-se a Abraão como amigotambém demonstra que o patriarca tinha algo mais que mera fé intelectual; sua féexpressava-se em obediência fiel e ativa.

2:24 / Resume, então, Tiago: Vedes então que o homem é justificado pelasobras, e não somente pela fé. Este resumo, dirigido a “meus irmãos” de 2:14, enão à pessoa que levanta objeções, em 2:18, suscita um problema. Parece queTiago está contradizendo o apóstolo Paulo, que escreve em Romanos 3:28: “Ohomem é justificado pela fé, sem as obras da lei” (cf. Romanos 3:20; 4:16). Esteproblema pode ser resolvido mediante interpretação cuidadosa.

Primeiramente, pelas obras significa para Tiago obras de amor e caridade(como em 1:27), enquanto Paulo está sempre interessado em “observar a lei”,

querendo dizer com isso de modo específico a lei cerimonial, como, por exemplo,a circuncisão, os preceitos alimentares e os sacrifícios. Paulo esperava que oscristãos realizassem obras de amor e caridade (e.g., Efésios 2:10; Gálatas 6:9-10)e cria, também, que os que deixassem de cumprir as exigências nesta área nãoestavam entre os “salvos” (e.g., Gálatas 5:19-21; 1 Coríntios 6:9-10; Romanos1:28-32).

Em segundo lugar, o homem é justificado é tradução pobre (o que não ocorre

em 2:21, acima), porque enfia na linguagem de Tiago o sentido paulino do termo(o perdão que os pecadores arrependidos recebem no julgamento de Deus, quandocolocam sua confiança em Cristo). Tiago ainda está empregando o sentido maisantigo desse termo e mais padronizado: “a pessoa é declarada justa por Deus” ou“é considerada justa por Deus” e isto “com base no que a pessoa faz” (e não combase nas idéias que a pessoa acata).

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Em terceiro lugar, e não somente pela fé significa para Tiago: “pela fé inte-lectual em que há um só Deus” ou “que Jesus é Senhor”, enquanto para Paulosignifica compromisso de fidelidade pessoal a Cristo, que inevitavelmente levaráo crente à obediência, porque se convenceu de que Cristo é o Senhor. Para Paulo,

a preocupação é provar que a pessoa não  se “salva” pelas cerimônias religiosas(“observância da lei” ou “obras da lei”). Paulo jamais pensaria na possibilidade deseparar a fé das obras, como fez Tiago, senão para condenar tal separação (e.g.,Romanos 6-8). Portanto, embora Paulo empregue a palavra “somente” referindo-se a cerimônias religiosas (Romanos 4:16), Tiago a usa ao lado de “fé” a fim demostrar sua separação total, ilegítima, da ação. 

O ponto crítico de Tiago é que Deus não vai aprovar alguém só porque tal

pessoa é ortodoxa, ou consegue passar numa prova de teologia sistemática. Deuspode declarar alguém justo apenas no caso de a pessoa ter uma fé dinâmica, quese traduz em ação, produzindo o resultado natural do compromisso de fidelidade,a obediência. Paulo não discordaria dessa doutrina salientada assim por Tiago.

2:25 / Prossegue Tiago, apresentando agora uma segunda ilustração:a meretriz Raabe, cujas palavras e ações em Josué 2:1-21 fascinaram os  judeusbem como os primitivos cristãos (Hebreus 11:31). Mais uma vez confirmaremos

que a tradução também justificada (considerada justificada) é correta. Mais umavez encontramos uma combinação de fé e obras, fé e ação. Raabe tinha fé, porqueem Josué 2:9-10 ela professa uma fé  proveniente de sua reflexão no que Deushavia feito em prol de Israel. Todavia, só a fé não seria suficiente para salvá-la;ela precisou agir ao conceder alojamento aos espias (acolheu os espias) e ao en-caminhá-los (os fez partir por outro caminho) para a liberdade, o que represen-tou arriscar a própria vida. Hebreus 11:31 enfatiza de modo semelhante a ação

motivada pela fé: “Pela fé Raabe, a meretriz, tendo acolhido em paz os espias, nãopereceu com os incrédulos”. A fé sozinha não a teria poupado, mas, quando a fé alevou à ação, os espias a declararam justa. Raabe tornou-se uma das pessoas dapromessa, uma ancestral de Davi (e de Jesus), visto que a fé que ela demonstroudesabrochou em ação de fidelidade ao Senhor, e não em mera reflexão intelectual.

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2:26  / Com a palavra assim, Tiago solda juntos o tema de 2:14 e o de 2:17, afim de produzir um versículo conclusivo: Assim como o corpo sem o espíritoestá morto, assim também a fé sem as obras é morta. Um corpo destituído deespírito (ou respiração) é um cadáver. Os judeus sabiam que, quando uma pessoa

“exalava o último suspiro” ou “entregava o espírito” (as palavras para respiração,suspiro, hálito e espírito são idênticas tanto no grego como no hebraico), tal pes-soa estava morta (João 19:30; Lucas 23:46; Eclesiastes 3:21; 8:8; 9:5). Todo ca-dáver precisa ser sepultado. De modo semelhante, a fé que não passa de crençaintelectual está morta. Não pode salvar; torna-se um perigo, porque pode iludir apessoa quanto ao seu verdadeiro estado espiritual. A fé só tem valor quando setransforma num compromisso integral de fidelidade ao Senhor, ao ligar-se à ação.

 Notas Adicionais #22:1 / O termo que significa “acepção de pessoas” (prosopolempsia) foi cu-

nhado pela tradição ética cristã, com base em declarações do Antigo Testamentoacerca de Deus, sendo aplicado de modo especial ao julgamento que Deus infligi-rá (Atos 10:34; Romanos 2:11; Efésios 6:9; Colossenses 3:25; 1 Pedro 1:17). Vejaainda E. Lohse, Prosopolempsia, TDNT, vol. 6, p. 779-80.

nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória no grego é estranho. S.S.

Laws, James (Tiago), p. 95-97: e J.B. Mayor, James (Tiago), p. 80-82, sustentamum emprego titular em paralelo com João 14:6, “nosso Senhor Jesus Cristo, aGlória”. Algumas traduções antigas indicam que a fé é que é gloriosa, i.e., “a fégloriosa de nosso Senhor Jesus Cristo”. A tradução preferida deste comentário,considerando a analogia de Efésios 6:24 e Tiago 1:25, é a de NIV: “nosso glorio-so Senhor Jesus Cristo” (veja ainda M. Dibelius,  James (Tiago), p. 128; J.H.Ropes,  James (Tiago), p. 187. Se esta for a interpretação correta, Cristo é visto

então como a expressão da própria glória de Deus, que rodeou a presença do Se-nhor no Antigo Testamento, de modo particular quando agiu para salvar Israel.No Novo Testamento esta referência se aplica de modo especial à salvação queDeus irá enviar a seu povo, i.e., seu livramento escatológico (Mateus 16:27;24:30; João 1:14; 17:5; Romanos 8:17; 1 Coríntios 2:8; Tito 2:13; 1 Pedro 4: 3).Ao empregar esse termo, Tiago remove o foco que seus leitores colocaram em suasituação atual e os faz  lembrar-se de que o mundo é transitório. Veja ainda S.Aalen, “Glory, Honor ” (Glória, Honra), NIDNTT, vol. 2, p. 44-48.

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Quanto a Jesus e ao que a Bíblia ensina a respeito de riquezas, veja ainda R.Sider, Cry Justice (Clama a Justiça) Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press,1980, p. 124-46.

2:2 / entrar algum homem [rico]. No exemplo aqui dado esse homem não é

chamado “rico”, no texto grego. Ele é mencionado como alguém que tem um anelde ouro no dedo, trajes de luxo, de onde se infere corretamente que se trata deum homem rico. Tiago nunca usa a palavra grega para rico ( plousios) ao escrevera respeito de crentes ricos (cf. 4:13-17), mas emprega-a ao referir-se aos pagãos(1:10-11; 2:6; 5:1-6). Por definição, os ricos estão fora do reino (cf. Lucas 6:24).A outra personagem, todavia, é chamada explicitamente de pobre ( ptochos), poiseste é o termo que sempre descreve a comunidade cristã (cf. 2:5).

A pessoa entra na vossa reunião. Tiago emprega synagoge em vez de o ter-

mo comum para igreja, ekklesia, (5:14). Synagoge às vezes se refere a reuniõescristãs, até o tempo de Inácio e Hermas (Mandate 11:9, 13-14), como W. Schrage,“Synagoge” , TDNT, vol. 7, p. 840-41, demonstra, mas é uso incomum, que Tiagoescolheu não para referir-se a um culto regular, mas a uma assembléia especial. É palavra que significa reunião.

Lemos em fontes judaicas a respeito da importância de usar roupagem e pos-tura semelhantes em assembléia que funcionará como tribunal (e.g.,  Deut. Rabba

5:6 sobre Deuteronômio 16:19; b. Shebuot  30a; t.  Sanhedrin 6:2;  Aboth de R.

 Nathan 1:10; Sipra Kedoshim 4:4 sobre Levítico 19:15). Quanto a informaçõesadicionais veja R. B. Ward, “Partiality in the Assembly” (Parcialidade na Assem-bléia).

2:4 / Não fazeis distinção... em algumas traduções aparece na forma negati-va, não na interrogativa. O texto grego traz essa pergunta; contudo, a forma dessapergunta deixa bem claro que Tiago não está expressando dúvida, mas fazendouma acusação de forma interrogativa.

vos tornais juízes movidos de maus pensamentos pode ser traduzido “juízesmotivados pelo mal”, à semelhança do “juiz injusto” de Lucas 18:6. Cf. a conde-nação judaica de tal procedimento: e.g., Provérbios 18:5; Salmos 18:5 Salmos deSalomão 2:18; b. Berakoth 6a.

2:5 / A eleição de Israel é discutida em profundidade por L. Coenen, “ Elect ”(Eleitos), NIDNTT, vol. 1, p. 539-42.

A preocupação de Deus pelos pobres não só toma a maior parte da tradição doAntigo Testamento (e.g., Deuteronômio 15; Provérbios 19:17; Salmos 35:10),mas também grande parte da literatura do período intertestamentário: e.g., 1 Eno-que 108:7-15; Salmos de Salomão 5; Gênesis Rabba 71:1. Veja ainda E. Bammel,“Ptochos”, TDNT, vol. 6, p. 895-98;

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R. Sider,  Rich Christians in an Age of Hunger  (Cristãos Ricos numa Erade Fome), Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 1977, p. 59/86; R. Foster, The

Freedom of Simplicity (A Liberdade da Simplicidade), San Francisco: Harper &Row, 1981, p. 15-51.

A promessa do reino de Deus aos pobres encontra-se por todo o Novo Testa-mento, e.g., Mateus 5:3, onde “pobres de espírito” deve ser interpretado como ospobres que têm o espírito adequado de dependência de Deus; não se pode expan-dir seu significado, de modo que abranja pessoas que não têm necessidades reaisnesta vida. Esse reino é analisado com mais minúcias em Mateus 25:34; 1 Corín-tios 6:9-10; Gálatas 5:21. Em todos esses casos, o reino é equivalente à salvação.Veja-se ainda G.E. Ladd,  A Theology of the New Testament (Teologia do NovoTestamento), Grand Rapids: Eerdmans, 1974, p. 57-69.

2:6 / Ao atirar suas acusações contra os ricos, Tiago mais uma vez empregaperguntas retóricas redigidas de modo tal que a resposta esperada é afirmativa,que ECA reestrutura adequadamente na forma de pergunta que em si mesma já éresposta.

Observe que há uma mudança de número, neste versículo. Eles desonraram opobre (singular). Esta pessoa pobre pertence à comunidade dos crentes, é umcrente. Mas os ricos (plural) formam uma classe, um grupo de fora da igreja. Nes-ta altura, o autor muda para a palavra “os ricos” ( plousios, cf. 2:2), visto não estarreferindo-se a um indivíduo rico da igreja, mas a uma classe opressora a quem aigreja, como um grupo, está imitando.

Quando o Antigo Testamento fala de “opressão” e.g., Ezequiel 22:7, 29; He-breus 1:4; Zacarias 7:10, raramente chama o opressor de “rico”, preferindo em-pregar o termo “o violento”. Entretanto, é claro que os opressores invariavelmentesão ricos e poderosos. Assim, não é de surpreender que vejamos uma mudança no

 judaísmo posterior e no Novo Testamento, identificando-se os opressores pelotermo “o rico”. Veja ainda E. Bammel, “Ptochos”, TDNT, vol. 6, p. 888.

A idéia de “arrastar’ alguém perante os juízes não é o termo normal para“mandar prender” uma pessoa. Antes, indica perseguição ou injustiça, como emAtos 16:19; 21:20.

2:8 / Alguns entendem que lei real é referência ao reino de Iavé. Outros, e.g.,Dibelius, James (Tiago), p. 143, entendem que se trata de uma lei com autoridadesoberana, e citam Marcos 14:2 como paralelismo. Outros ainda julgam que o epí-teto real refere-se a sua classificação entre outras leis (cf. Mateus 12:31). Prova-velmente, refere-se a uma lei do reino de que Jesus é o rei, primeiramente porqueaparece em 2:5 o sentido

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de reino; em segundo lugar, porque Tiago emprega o termo “lei” (que normal-mente se refere a um corpo de leis), e não “mandamento” (que se refere a umaúnica lei); em terceiro lugar, porque esta qualificação de real sublinha a seriedadeda ação desses ricos. Veja ainda V.P. Furnish, The Love Command in  the New

Testament (A Lei do Amor no Novo Testamento), Nashville: Abingdon, 1972, p.179-80.

2:9 / Quanto à conexão entre amor e cuidado dos pobres, veja também G.F.Moore, Judaism of  the First Centuries of the Christian Era (O Judaísmo nos Pri-meiros Séculos da Era Cristã), Cambridge, Mass.: Harvard University Press,1927, vol. 2, p. 84-88.

O termo pecado é encontrado com freqüência em Tiago, e.g., 4:17; 5:16, 17,20. Seu objetivo (5:20) é desviar os pecadores de seu erro. Jesus também falou

sobre o pecado cometido (Mateus 7:23).A idéia de tais homens serem transgressores, ou violadores da lei encontra-

se em Romanos 2:25, 27; Gálatas 2:8 e também no Talmude, e.g., b. Shabbath

11a. Veja ainda S. Schechter, Some Aspects of Rabbinic Theology (Alguns Aspec-tos da Teologia Rabínica).

2:10 / A idéia da unidade da lei encontra-se em escritos judaicos como4 Macabeus 5:20 e Testamento de Aser 2:5, bem como em documentos rabínicos.Ocorre também noutras passagens do Novo Testamento, e.g., Mateus 5:18-19,com ênfase no menor dos mandamentos, ou em Gálatas 5:3, em que Paulo insisteem que ninguém pode considerar a lei pedaço por pedaço.

2:11 / A ordem inversa dos mandamentos do decálogo aparece em algunsdocumentos em hebraico e grego do Antigo Testamento, bem como em Lucas18:20 e Romanos 13:9, de modo que ninguém poderia afirmar que Tiago delibe-radamente os colocou nessa ordem. No entanto, Jeremias 7:6; 22:3; Amós 8:4;Siraque 34:26; Testamento de Gade 4:6-7 e 1 João 3:15 fazem associação entreassassinato e descaso dos pobres. Assim é que havia fortes tradições judaicas ecristãs que Tiago podia usar. Tiago está tão próximo de 1 João em seus conceitos,que esta passagem paralela pode ser muito significativa.

2:12 / Tiago fala com freqüência em julgamento; e.g., 1:19; 3:1-2;4:11-16, e 5:12 falam do julgamento sobre nossas palavras, e 1:27; 4:1-10;5:1-6 falam de julgamento sobre nossas ações. Jesus também deixou-nos solenesadvertências em Mateus 12:36; 25:31-45.

J.B. Adamson, James (Tiago), p. 118-19, contrasta a lei da liberdade de 2:12com a lei das ordenanças em 2:10-11, vendo aí uma dicotomia entre a lei e a gra-ça, em consonância com sua teologia reformada. Todavia, nenhuma evidênciaexiste no texto de que tal coisa estivesse na mente

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de Tiago. O autor sente-se bem à vontade ao usufruir da graça dentro de uma es-trutura de regras éticas.

2:13 / Julgamento sem misericórdia não é injustiça, mas justiça estrita semperdão. Veja ainda E.E. Urbach, The Sages.

A misericórdia triunfa sobre o juízo no sentido de que “se jacta em compara-ção triunfante sobre o juízo”, como salienta R. Bultmann (“Katakauchaomai”TDNT, vol. 3, p. 653-54). Comparada ao caráter estrito do juízo, a misericórdia émais poderosa.

Misericórdia com significado de caridade já era evidente nas passagens doAntigo Testamento mencionadas atrás. Por exemplo, o contexto mais amplo deZacarias 7:9 explicitamente menciona o cuidado dos pobres como o foco da mise-ricórdia. No Novo Testamento, o termo grego para misericórdia, eleos,  ou para

misericordioso, eleemones (Mateus 5:7), relaciona-se intimamente a dar esmolas,ou caridade, eleemosyne (Mateus 6:2). A misericórdia no Novo Testamento nãotem caráter de reação contra algo, isto é, meramente dar a alguém o que merece,mas ação antecipada, a saber, satisfazer as necessidades de alguém, quer essapessoa tenha alguma reivindicação, quer não, contra o benfeitor (Lucas 10:37, obom samaritano). Além do mais, a misericórdia é um atributo preeminentementedivino. É, pois, uma característica assumida pelas pessoas que estão sendo trans-formadas à semelhança de Deus, em Cristo.

2:14  / que proveito há é expressão que se encontra também em 1 Coríntios15:32. A segunda pergunta retórica (Pode essa fé salvá-lo?) inicia-se com a partí-cula grega negativa me, que introduz perguntas cujas respostas (espera-se) serãonegativas.

Salvá-lo refere-se à salvação no julgamento final, o que se depreende quandose considera o julgamento de que já falamos em 2:13; veja ainda algumas referên-cias a tal salvação em 1:21; 4:12; 5:20 e o sentido geral “salvar” no Novo Testa-mento. Veja-se ainda W. Foerster, “Sozo”, TDNT, vol. 7, p. 990-98.

Quanto à denúncia da piedade dissociada das obras, veja, e.g., Amós 5:21-24;Miquéias 4:1-4, e J. Miranda,  Marx and the Bible (Marx e a Bíblia), p. 111-60.Paulo concorda de modo integral: as “obras” contra as quais Paulo se insurge sãoas “da lei”, as ações ritualísticas da lei, como a circuncisão, usadas com o objetivode obter a salvação. Ao referir-se a certos males (e.g., Gálatas 5:19-21), Paulopode afirmar que os que praticam certos pecados, “os que cometem tais coisas nãoherdarão o reino de Deus”. Por outro lado, o apóstolo salienta que o propósitototal da salvação são as boas obras (Efésios 2:10). Os judeus mantinham posiçãosemelhante sobre fé e obras. Veja m. Aboth 1:2 ou S. Schechter, Some

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 Aspects of Rabbinic Theology (Alguns Aspectos da Teologia Rabínica, p. 214, ouG. F. Moore, Judaism in the First Centuries of the Christian Era (O Judaísmo nosPrimeiros Séculos da Era Cristã), Cambridge, Mass.: Harvard University Press,1927, vol. 2, p. 168-69.

2:15 /  nus é tradução literal do grego. No entanto, significa a ausência datúnica externa (Jó 22:6; 24:7; 31:9; Isaías 20:5; 58:7; Mateus 25:36; João 21:7; 2Coríntios 11:27). O rabino Akiba e sua esposa tinham uma única túnica para usode ambos, de modo que um ficava em casa, enquanto o outro a usava para fazer ascompras ou ir à escola rabínica. À noite, enterravam-se em palhas, a fim de aque-cer-se.

falta de mantimento cotidiano no grego não é a mesma expressão de Mateus6:11, embora tenha o mesmo significado. Tiago usou uma expressão mais comum

do grego clássico.2:16 / Ide em paz é saudação de despedida comum, em hebraico, uma espé-

cie de bênção proferida sobre a pessoa (Juízes 18:6; 1 Samuel 1:17; 20:42; Mar-cos 5:34; Atos 16:36). A invocação da paz (no hebraico, shalom, que tambémsignifica saúde ou  integridade de corpo e espírito) era levada tão a sério, que 2João 10-11 proíbe os cristãos de saudar assim aos falsos mestres.

as coisas necessárias para o corpo refere-se ao alimento e ao vestuário semos quais a pessoa não pode sobreviver. Qualquer judeu ou judeu cristão teria en-tendido o imperativo da caridade num caso assim, como o afirmou R. Hiyya: “A-quele que desvia seus olhos e suas mãos da obrigação de dar esmolas é como oidólatra” (b. Kettubim 68a, de C.G. Montefiore e H. Loewe,  A  Rabbinic Antho-

logy (Antologia Rabínica), New York: Schocken Books, 1974, p. 413; veja aindap. 412-39. A parábola de Jesus sobre o rico e Lázaro (Lucas 16:19-31) ensina quea pessoa que deixar de atender às necessidades óbvias do pobre, conquanto possuarecursos, está condenada.

2:17 / em si mesma é termo que se liga de modo especial à analogia do “cor-po sem o espírito” de 2:26, que teria inspirado Tiago.

2:18 / Embora seja bem claro o sentido geral da passagem, a linguagem é tãodifícil que alguns estudiosos presumem que uma parte do versículo se perdeu.Duas outras opiniões têm mérito. Uma delas afirma que Tiago reitera sua posiçãoanteriormente explicitada em 2:17: “Tu [afirmas que] tens fé; eu [tu o admites]tenho obras. Mostra-me a tua ‘fé’ sem as tuas obras [não poderás fazê-lo, é claro],e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras” (veja ainda J.B. Mayor,  James

(Tiago), p. 124-25, 135-37. Nesse caso, a expressão de Tiago funde-se à que apa-rece no versículo 20, ou 21. Isto é possível, gramaticalmente, mas a pedra de tro-peço é

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fato de que noutras passagens da literatura grega a expressão mas dirá alguém,quando introdutória, sempre precede um pensamento hostil ou de oposição (vejatambém Lucas 4:23; Romanos 11:9; 4 Macabeus 2:24; Barnabé 9:6; Josefo,Guerras 8.363). A segunda opinião, que é seguida por NIV, ECA e por este co-

mentário, sustenta que esta frase é uma objeção, que, embora “tu” e “eu” apare-çam no texto grego, representam apenas os pronomes indefinidos: “um... outro”.Então, “tu” e “eu” não se referem a ninguém em particular, mas indicam doisindivíduos diferentes. (M. Dibelius,  James [Tiago], p. 156, cita exemplo seme-lhante em Teles.) Conquanto esta explicação seja esquisita, do ponto de vistagramatical está em consonância com a frase introdutória e não recorre a emenda.Veja ainda J.H. Ropes, James (Tiago), p. 208-14; C.L. Mitton, James (Tiago), p.108-9; S.S. Laws, James (Tiago), p. 123-24.

2:19 / Visto que Tiago escreve crês tu que Deus, em vez de “crês tu emDeus”, fica indicado que ele atribui à pessoa uma crença intelectual, em vez decompromisso pessoal de fidelidade ao Senhor. Veja ainda R. Bultmann,“Pisteuo”, TDNT, vol. 6, p. 210-12.

A forma do Shema neste versículo é traduzida em NIV assim: “há um Deus”,seguindo um jogo de manuscritos gregos, enquanto ECA traz “Deus é um só”,que se encontra em outros manuscritos. É provável que Tiago tenha escrito origi-nalmente “Deus é um só”. Embora o Shema tenha sido o ponto inicial dos cristãosnum mundo pagão (e.g., 1 Tessalonicenses 1:9), tal credo não constituiu o objeti-vo final da fé. Tampouco era o objetivo final para os judeus, visto que induzia àguarda da lei como expressão de fé. Tiago cita o Shema talvez em conexão comsua citação de Abraão, em 2:21, visto que se acreditava no judaísmo que este pa-triarca descobrira e ensinara esta verdade, que Deus é um só, a despeito de seuambiente pagão, e o fato de ter sido perseguido. Veja ainda R.N. Longenecker,Paul, Apostle of Liberty (Paulo, o Apóstolo da Liberdade), Grand Rapids: BakerBook House, 1976, p. 79-83.

Também se sabia, fora do cristianismo, que os demônios estremecem.  Porexemplo, na obra apócrifa 1 Enoque, quando Enoque vê os anjos decaídos, eledeclara: “Então eu lhes falei, estando todos reunidos, e ficaram cheios de medo; opavor e o tremor tomaram conta deles” (1 Enoque 13:3; cf. 69:1, 14). Uma dasrazões por que havia tremor é que o nome de Deus era invocado nos exorcismos.Veja ainda A. Deissmann,  Light from the Ancient East (Luz do Oriente Antigo),Grand Rapids: Baker Book House, 927, 1978, especialmente p. 260; e J. Jeremias,“Paul and James” (Paulo e Tiago), ExpTim 66, 1955, p. 370.

2:20 / O termo para ó homem insensato (empregado de modo diferente

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em 4:5) é expressão grega equivalente a raca de Mateus 5:22 (“tolo”, ECA; RSV;“sujeito imprestável,” GNB). Na Septuaginta, usa-se kenos em Juízes 9:4; 11:3,significando erro moral, em vez de raciocínio falho. Linguagem dura semelhantea essa ocorre nos escritos do estóico Epicteto e do cristão Hermas: “Ela clamou

com grande voz, dizendo: ‘ó homem insensato! Não vês que a torre ainda estásendo construída?” (Vision 3.8.9). Veja ainda A. Oepke, “Kenos”, TDNT, vol. 3,p. 659.

O termo inútil na expressão a fé sem as obras é inútil não é o mesmo em-pregado em 2:17, 26, nem em 1:26. Trata-se de termo que significa “estéril”, “im-produtivo”, “imprestável” (Mateus 12:36; 20:3, 6; 1 Timóteo 5:13; Tito 1:13; 2Pedro 1:8), que forma (em grego) um trocadilho com a palavra obras.

2:21 / nosso pai Abraão de vez em quando era expressão usada pelos genti-os; 1 Clemente 31:2 pergunta: “Por que nosso pai Abraão foi abençoado? Não foipor que ele agiu com justiça e confiança, mediante a fé?”, mas os judeus a ele sereferiam muito mais freqüentemente daquela maneira, e.g., Isaías 51:2; 4 Maca-beus 16:20; Mateus 3:9; João 8:39; m. Aboth 5:2).

As provações de Abraão são mencionadas em grande parte da literatura judai-ca posterior, e.g., Aboth de R. Nathan 32; m. Aboth 5:3; Jubileu 17:17; 19:8; Pirke

 R. Eliezer 26-31, como é mencionada sua grande caridade: Testamento de Abra-

ão, resenha A, 1.17; Targum Salmos-Jônatas sobre Gênesis 21:33;  Aboth de R.

 Nathan 7. Pode-se encontrar uma tradução para o inglês da obra citada por último,bem como da passagem tirada de Midras sobre os Salmos, mencionada no texto,em C. G. Montefiore e H. Loewe, A Rabbinic Anthology (Antologia Rabínica), p.415 e 564, respectivamente. Veja ainda L. Ginzberg, Legends of the Jews (Lendassobre os Judeus), vol. 1, p. 281. Outras passagens adicionais são citadas em R.B.Ward, “The Works of Abraham: James 2:14-26” (Obras de Abraão: Tiago 2:14-

26), p. 286-90; e P.H. Davids , “Tradition and Interpretation in the Epistle of Ja-mes” (Tradição e Interpretação na Carta de Tiago), p. 113-16.

Quanto ao conceito de declarar-se alguém justo, ao final de uma provação,veja ainda B. Gerhardsson, The Testing of God’s Son (A Provação do Filho deDeus), esp. p. 27.

2:22 / Gênesis 15:6 (cf. Tiago 2:23) fala de fé, mas isso não explicaa ênfase especial que Tiago lhe aplica. Além do mais, embora a versãoJubileu seja mencionada, há versões múltiplas da lenda abraâmica. Na Midras

Gênesis Rabba 98:3, por exemplo, a Shema teria sua origem em Abraão. Josefotem sua própria versão em Antigüidades 1.154-157 (1.7.1.

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na divisão de Whiston): “[Abraão] foi o primeiro a ousar publicar esta noção daexistência de um só Deus, o Criador do universo”. Filo também se refere à lenda(Legum Allegoriae 3.228; De Virtue 216). Assim, todos os judeus do período doNovo Testamento achavam que Abraão foi o primeiro a descobrir a fé monoteísta.

2:23 / A forma da argumentação é uma exegese judaica típica, ou Midras:discute-se um primeiro texto (a história de Abraão), e depois outros textos secun-dários são acrescentados. E se cumpriu a Escritura não tem o sentido de cumpri-mento de profecia, ou previsão, mas significa que a escritura concorda com anarrativa escriturística. Veja ainda R.N. Longenecker,  Biblical Exegesis in the

 Apostolic Period (Exegese Bíblica no Período Apostólico), p. 32-38.Os judeus com freqüência se referiam a Gênesis 15:6, que diz: Abraão creu

em Deus.  Não só 1 Macabeus 2:52 usa-o, mas também Jubileu 15:6; Filo ( De

 Abrahamo 262; Quod Deus sit Immutabilis 4); e várias passagens em Midras ra-bínicas primitivas. O uso que Tiago faz segue essa tradição moderada; não, porexemplo, a de Targum Salmos-Jônatas (sobre Gênesis 15:6), onde a fé de Abraãoem si mesma é considerada obra.

Isso lhe foi imputado para justiça está na voz passiva, no grego do AntigoTestamento (“isto lhe foi imputado por justiça”), mas na ativa no hebraico (“elelhe imputou [como ?]  justiça”). Parece que Tiago aceita este sentido ativo e, as-sim, vê a fé de Abraão como parte da frase, e “ele o considerou justo” como sendoa outra parte. Essa idéia de “imputar” ou “considerar” era interpretada nos dias deTiago como “ser inscrito no livro celestial da vida”. Veja ainda H.W. Heidland,“ Logizomai”, TDNT, vol. 4, p. 284-92.

Fica claro que Abraão foi considerado amigo de Deus, e que isso se relacio-nou a suas obras, em Jubileu 30:20; Esdras 3:14; e 1 Clemente 10:1 (que partilhaa tradição de Tiago), bem como a passagem citada. Veja ainda J.  Jeremias, “ A-

braham” (Abraão), TDNT, vol. 1, p. 8-9.2:24  /  Vedes representa mudança da segunda pessoa do singular (“tu”) (de

2:18, 19, 20, 22) para a segunda pessoa do plural.O imaginado conflito entre Tiago e Paulo é  questão da maior importância.

J.T. Sanders,  Ethics of the New Testament  (Ética no Novo Testamento), págs.115-28, atira Tiago contra Paulo de modo que tenta forçar o leitor a rejeitar um ououtro. Lutero, para quem o problema era sobremodo grave, fez opção por Paulo, equase rejeitou Tiago, solicitando sua eliminação do cânon. Lutero estava certonisto: se Tiago conhecesse e entendesse a doutrina de Paulo, de modo que estives-se usando suas palavras com os mesmos sentidos, Tiago estaria contradizendoPaulo. Mas Lutero não

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entendeu que estava impondo o sentido paulino de trás para diante no texto deTiago. Tiago emprega as palavras de modo totalmente diferente do de Paulo. SeTiago houvesse um dia ouvido os ensinamentos de Paulo (provavelmente nãoteria podido ouvi-los antes de 49 d.C.); estes só lhe teriam chegado sob a forma de

lemas de segunda ou terceira mão e com um sentido que o próprio Paulo teriarejeitado de imediato.

Os três termos cruciais já discutidos ilustram esta questão. O primeiro é ogrego ergon que em Tiago significa pelas obras (caridade, bondade, virtude),enquanto em Paulo, esse termo vem sempre ligado à palavra “lei” (nomos) e sem-pre significa atos ritualísticos, exceto em Gálatas 5:19 e 6:4, em que é empregadode modo positivo. O segundo é dikaioo, traduzido  corretamente em Paulo por“justificar-se perante Deus”, enquanto Tiago o emprega como é empregado 44

vezes na Septuaginta, com o sentido de “ser declarado justo por Deus”. Sempreque o novo sentido dado por Paulo ao termo é introjetado no texto de Tiago, oresultado é a confusão. Finalmente, há a palavra fé, ( pistis), que o próprio Tiagoemprega com três sentidos diferentes: verdadeiro compromisso de fidelidade(2:5), cristianismo (2:1) e crença intelectual (2:14-26). Tiago só tem problemascom este último tipo de “fé”, mas se for fé desvinculada das obras (somente pelafé). Normalmente, Paulo emprega esse termo em um dos dois primeiros sentidos,que incluem as obras sobre as quais Tiago é tão intransigente.Então, o ensino de Tiago é o de Mateus 7:15-21: a soma total das assertivas orto-doxas da pessoa não substituirá a obediência como prova de compromisso fiel aoSenhor, no dia do julgamento final. Paulo cria nessa mesma doutrina (1 Coríntios3:2; 2 Coríntios 9:8; Gálatas 5:6; 6:4; Efésios 4:17ss; Colossenses 3:5ss), masTiago está mais próximo de seu Mestre, Jesus Cristo, na linguagem e na ambien-tação.

Veja ainda J. Jeremias, “Paul and James” (Paulo e Tiago), ExpTim 66 (1955-1956); J.A. Ziesler, The Meaning of Righteousness in Paul (O Sentido de Justiçaem Paulo), Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1972, p. 9-14; E. L. Allen, “Con-

troversy in the New Testament ” (Controvérsia no Novo Testamento), NTS 1,1954-1955, p. 143-49; e de modo especial H.C. Hahn, “Work ” (Obras), NIDNTT,vol. 3, p. 1147-52; H. Seebass e C. Brown, “ Righteousness” (Justiça), NIDNTT,vol. 3, p. 352-77); O. Michel, “Faith” (Fé), NIDNTT, vol. 1, p. 393-607.

2:25 / Raabe foi considerada por Jesus o arquétipo do prosélito do judaísmo,sendo muito abundantes as tradições a respeito dela. Na literatura cristã, não so-mente em Hebreus 11:31 (que enfatiza sua ação), é Raabe apreciada, mas também1 Clemente 12:1, 8, que é parte de uma seção mais ampla, a saber, 1 Clemente 9-12. Nesta seção, após uma menção

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breve de Enoque e de Noé, Abraão é tratado de modo completo como alguém quefoi “chamado de amigo, demonstrou ser fiel pelo fato de haver obedecido às pala-vras de Deus”. Mencionam-se de modo especial a fé e a hospitalidade de Abra-ão”. A seguir vem Ló, mencionado pela sua “hospitalidade e piedade”. E prosse-

gue Clemente: “Por causa de sua fé e hospitalidade, Raabe, a prostituta, salvou-se”. Assim é que, na igreja primitiva Raabe ficou na companhia de Abraão, talvezporque ambos saíram de seu ambiente pagão a fim de servir a Deus. Não é pormera coincidência que Tiago menciona a ambos nessa ordem. Além disso, ambossão citados como exemplos de fé e de caridade, visto que no Oriente a hospitali-dade era uma forma deveras importante de caridade (e.g., Hebreus 13:2). Vejaainda H. Chadwick. “ Justification by Faith and Hospitality” (Justificação pela Fé

e Hospitalidade, SP 4, 1961, p. 281).2:26 / Em Gênesis 2:7, o primeiro ser humano é formado de espírito, ou fôle-go, e corpo. A união de ambos produz um ser vivente, quer na criação, quer noútero (Eclesiastes 11:5). Quando a pessoa morre, o espírito, ou o fôlego, voltapara Deus, e o corpo retorna ao pó (Eclesiastes 12:7). Espírito e fôlego são amesma palavra no hebraico e no grego (ruah e pneuma, respectivamente), de mo-do que dar o último suspiro com freqüência é sinônimo de entregar o espírito(e.g., Gênesis 49:33; cf. João 19:30; Lucas 23:46; e Marcos 15:37, quanto a três

descrições da mesma morte). A morte nunca é bem-vinda para o judeu, nem parao cristão. Seus vizinhos gregos regozijavam-se na libertação da alma mortal daprisão do corpo. O cristão, em contrapartida, não desejava estar nu (sem um cor-po), mas revestido de um corpo ressurreto (2 Coríntios 5:1-10; cf. 1 Coríntios 15);a redenção do corpo era a esperança real (Romanos 8:23). Tiago segue a práticacristã normal: vê num cadáver algo inútil e mau.

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3.  Sabedoria para Usar a Língua (Tiago 3:1-18)

À semelhança das igrejas de Paulo, a de Tiago era uma igreja do Espírito.Embora nela houvesse cargos formais, como o de presbítero (5:14), não havia umprocesso de ordenação, nem escolaridade exigida para que o oficial tivesse licençapara ensinar e pregar. Por conseguinte, era relativamente fácil que pessoas dota-das de alguma habilidade, mas de motivação mundana, se oferecessem para servircomo mestres. (Nossos processos modernos de seminário mais ordenação fazemque a licença para ensinar e pregar exija mais tempo, mas não impedem a motiva-ção errada. Ao contrário, fazem que tal pessoa se tome um elemento mais perma-nente no seio da igreja). Tais mestres destituídos de vocação criticavam os demais

e formavam “panelinhas” na igreja; outros membros de igreja imitavam-nos, fa-lando mal deles. A reação de Tiago é convocar a igreja para que controle a língua,expondo as marcas do Espírito de Deus, e finalmente denunciando a motivaçãohumana de muitos crentes, na igreja.

3:1 / Meus irmãos indica o início de uma seção. Não sejais muitos de vósmestres: os mestres eram importantes na igreja (Romanos 12:7; 1 Coríntios12:28; Efésios 4:11-13), mas a igreja também estava sendo prejudicada por falsosmestres (e.g., 1 Timóteo 1:7; Tito 1:11; 2 Pedro 2:1). Era fácil falsificar o dom doensino, bastando que o falsário fosse bastante eloqüente. Mas era bem certo que,quando uma pessoa se apresentava “voluntariamente” para ensinar, em vez de serimpelida pelo Espírito, seus motivos mundanos com a toda a certeza se manifes-tavam em ciúme, contenda ou heresia. Tiago valoriza o ministério, mas percebeque sua atração e poder sociais tornam-no perigoso, e que a pessoa deve ser relu-tante em investir nele a vida.

O perigo do ministério é, primeiramente, pessoal: receberemos um juízomais severo. Se cada palavra vã entrará em julgamento, quanto mais as palavrasdos que trabalham com palavras? (Mateus 12:36) Se os mestres judaicos deverãoser julgados com severidade, quanto mais os mestres cristãos? (Mateus 23:1-33;Marcos 12:40; Lucas 20:47) Um exame das condenações do falso magistério tan-to nos evangelhos

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como em 1 e 2 Pedro, e em Judas, demonstram que, semelhantemente ao que dizrespeito aos presbíteros (1 Timóteo 3; Tito 1), o modo de viver do mestre é maisimportante do que suas palavras. Os mestres eram primordialmente modelos e, emsegundo plano, instrutores intelectuais. Ao reivindicar a posição de mestres, colo-

cavam sua vida e suas palavras sob a égide de Deus, que os responsabilizaria pelodesvio do rebanho, quer mediante a palavra, quer mediante o exemplo.

3:2  / O perigo aumenta muito pelo fato de que todos tropeçamos em muitascoisas.  Tiago menciona um provérbio que significa que  os cristãos não apenaspecam com freqüência, mas também pecam de muitas maneiras diferentes. Estaverdade é reconhecida por toda a Escritura: 2 Crônicas 6:36; Jó 4:17-19; Salmos

19:3; Provérbios 20:9; Eclesiastes 7:20; Romanos 8:46; 1 João 1:8. Dizendo sealguém não tropeça em palavra, Tiago focaliza um pecado especial que o preo-cupa: a língua solta. A necessidade de controlar a língua era bem conhecida no

 judaísmo e no cristianismo (Provérbios 10:19; 21:23; Eclesiastes 5:1; Siraque19:16; 20:1-7). Tiago salienta aqui, como o fez em 1:26, a importância de contro-lar a língua, pois afirma a respeito de quem for capaz de domá-la: esse homem éperfeito, e capaz de refrear todo o corpo. Isto significa que tal pessoa é madura,tem caráter cristão completo (1:4) e, assim, capacitada a enfrentar todas as prova-

ções e tentações, e a controlar todos os impulsos maus (1:12-15). É como disseBen Zoma: “Quem é poderoso? Aquele que subjuga suas paixões”. Ou como per-guntou Alexandre da Macedônia aos anciãos do sul: “Quem é o herói? Responde-ram-lhe: Aquele que controla suas paixões más [ yêser   hâ-râ]” (m.  Aboth 4:1).Tiago caminha um passo à frente dos rabinos. O controle dos maus impulsos ébom (e Paul concorda com Tiago, 1 Coríntios 9:24-27), mas os impulsos maisdifíceis de controlar são os da língua. Mantenha pura a fala, e o resto ser fácil; eis

a marca do cristão maduro.

3:3-4 / Tiago ilustra sua tese, “controle sua língua e você será capaz de con-trolar todo o seu ser”, mediante uma série de analogias. Primeiro ele pensa emcavalos, que são maiores e mais velozes do que os seres humanos. No entanto,quando pomos freios na boca dos cavalos nós os controlamos: não só a cabeça,mas o animal inteiro é forçado

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a ir para onde o cavaleiro desejar. Uma segunda analogia é tirada dos navios. Osnavios constituíam uma das maiores estruturas que os primitivos cristãos conhe-ceram. Se até um barquinho de pesca impressionava, quanto mais um navio mer-cante em pleno oceano? Mais impressionantes, todavia, eram as forças que o

compelem, os ventos capazes de vergar árvores e espalhar as nuvens. Entretanto,a despeito de todo seu tamanho e peso, um leme pequenino, do formato de umalíngua (pequenino pelo menos quando comparado ao tamanho do navio, ou aopoder do vento), movimentado pelo piloto, podia mudar a direção do navio. Sãodois exemplos impressionantes, ou analogias do adágio: “controle a língua e vocêcontrolará tudo”.

De certo modo, Tiago mudou um pouco sua argumentação, enquanto elabora-

va suas ilustrações. Ele havia começado dizendo: “Se você puder controlar a lín-gua, você será um gigante espiritual capaz de controlar o resto do corpo”. Asilustrações de Tiago são agudas: “Se você controlar a língua, você controla o restodo corpo”. Todavia, esta mudança permite a Tiago mover-se no sentido de cons-cientizar-se de que a língua com freqüência incita a pessoa a agir: primeiramente,você expressa com palavras uma idéia proibida e, a seguir, você lhe dá expressãofísica; primeiro, você se mete numa conversa lasciva ou numa discussão acaloradae, a seguir, comete adultério ou assassinato. É para esse poder da língua que Tiago

se volta agora, mas ambas as idéias, a dificuldade em controlarmos a fala e seufantástico poder, estão ativas em sua mente.

3:5 / Assim também a língua é um pequeno membro, e se gaba de gran-des coisas: na verdade a língua é pequenina, mas quanta reivindicação pode elafazer como responsável por grandes eventos para o mal, ou para o bem! Commuita freqüência os resultados foram malignos, mas a língua gabou-se com o

máximo orgulho; o próprio emprego do verbo “gabar-se” leva à memória doleitor as freqüentes condenações de Paulo a quaisquer vanglórias, e que só deverí-amos gloriar-nos em Cristo (Romanos 1:30; 3:27; 11:18; 2 Coríntios 10:13-16;Efésios 2:9). A língua é como um pequeno fogo que pode incendiar um grandebosque; pode tratar-se de um bosque palestino ressecado ao sol de uma longaseca, ou de uma encosta montanhosa do sul do nosso país. Alguém acende umafogueira, sem cuidados, ou atira um

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fósforo aceso; a ação é irreversível, porque o fogo primeiro estala, depois ruge, elogo estará devorando alqueires e mais alqueires de madeira, rápido como o ven-to.

3:6 / a língua também é fogo: É assim que Tiago começa a traçar quadrosquase psicodélicos do mal produzido pela língua. À semelhança do fogo, a línguaé destrutiva. Basta que nos lembremos da oratória de um Adolf Hitler para quefique sublinhada esta verdade. A língua não é só destrutiva, ela é um mundo deiniqüidade; ou, como afirma uma tradução alternativa, “um mundo de injustiça”.O mundo de injustiça está ocupando seu lugar entre os nossos membros. Elacontamina todo o corpo. O mundo é algo que o cristão em geral considera “lá

fora”. Tiago aponta para sua própria boca e diz: “O mundo está aqui dentro”. Alíngua descontrolada é a encarnação e a sede dos impulsos maus do corpo. A lín-gua não se limita em seus efeitos à sua própria área, visto que espalha a iniqüida-de, ou contamina todo o corpo. A pessoa inteira é atingida pelo fragor de sua lín-gua. Entretanto, cada palavra vã será julgada (Mateus 12:36).

Além do mais, a língua inflama o curso da natureza, e é por sua vez infla-mada pelo  inferno. O problema a respeito das palavras é que as conseqüênciasnão param por aí. Os efeitos são seriíssimos. “Paus e pedras podem quebrar meus

ossos, mas as palavras não me machucam” é um conceito sem base bíblica. Aschamas da língua incendeiam as paixões aumentam o furor, inflamam a lascívia.Logo, as palavras, quer sejam um diálogo íntimo, não ouvido aqui fora, pois nãohouve fala, quer sejam pronunciadas, transformam-se em ação. As emoções, oraciocínio, o corpo todo se envolve incontrolavelmente. E qual foi a origem desseincêndio destruidor? O próprio inferno! É ali que está a prisão de Satanás e seusdemônios. Aquela discussão teria sido inspirada pelo Espírito de Deus? Não. Foi

inspirada pelo diabo. As chamas do fogo, do preconceito, do ciúme, da inveja e da calúnia projetam-se do lago de fogo.

3:7-8 / Tendo pronunciado uns conceitos pesados a respeito da língua, Tiagose empenha agora em comprovar sua tese com minúcias. Seu principal quesito éque a língua, isto é, a palavra humana, é desesperadamente perversa. Tiago iniciacom uma analogia da natureza: Toda 

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espécie de feras, de aves, de répteis e de animais do mar se doma, e tem sidodomada pelo gênero humano. O argumento de Tiago não é científico. Não lheinteressaria saber que ninguém havia ainda conseguido domar o rinoceronte, e queem seus dias ainda não haviam chegado notícias sobre tubarões assassinos; tam-

pouco está Tiago interessado em saber se determinado animal foi totalmente do-mesticado. Basta-lhe saber que felinos e grandes macacos ficam sob total controlehumano. Isto é verdade, quer se trate do prisioneiro que domestica um camundon-go ou um rato, em sua cela, quer se trate do dono de um elefante que transportaum príncipe indiano, ou o encantador de serpentes na praça, ou o passarinheirocujas aves lhe obedecem o comando. Tudo isto já era conhecido no passado (temsido domada), mas não pertence a certa idade de ouro, meio esquecida — trata-se

de experiência do presente também (se doma). Além de tudo, o conceito aplica-seàs quatro principais categorias de vida animal: feras (i.e., mamíferos), aves, derépteis (inclusive anfíbios) e animais do mar.

Entretanto, que contraste quando avaliamos a língua! a língua, nenhum ho-mem a pode domar. O problema de controlar a língua entrava numa espécie deditado popular das culturas hebraica e grega. Tiago não precisava provar a verda-de dessa máxima. Não tinham seus ouvintes dezenas e dezenas de coisas que gos-tariam de “desdizer” ou muitas palavras que haviam pronunciado erroneamente?

Não haviam aprendido dezenas de provérbios que talvez pudessem ajudá-los? “Háalguns cujas palavras são como pontas de espadas, mas a língua dos sábios é saú-de” (Provérbios 12:18). “O que guarda a sua boca preserva a sua alma, mas o quemuito abre os seus lábios tem perturbação” (Provérbios 13:3). Certamente as pa-lavras de Tiago não precisam ser comprovadas perante pessoas honestas.

Em vez de deixar-se domesticar, a língua é mal incontido. E como Hermasdiria, mais tarde: “A difamação é um mal; é demônio que não sossega, nunca tem

paz, mas habita na dissensão” (Mandate 2.3). Em contraste, Deus é perfeitamenteuniforme no pensamento, estável e tem paz, “pois Deus não é Deus de confusão,senão de paz” (1 Coríntios 14:33). Entretanto, nossa fala constantemente se carac-teriza pela instabilidade; a pessoa crê que controla sua língua, mas num certomomento de descuido, deixa escapar uma palavra ferina ou difamatória.

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Algumas características dos demônios são a incapacidade de autocontrolar-se, aausência de descanso, a instabilidade — as mesmas da língua, como Tiago logodemonstrará (3:16).

Além de tudo, a língua está cheia de peçonha mortal. Com isso concorda o

salmista: “Aguçam a língua como a serpente; o veneno das víboras está debaixodos seus lábios” (Salmos 140:3). Essa comparação com as serpentes era bastantedifundida na literatura judaica, talvez porque a língua se parece um pouco comuma serpente, talvez porque as víboras matem com a boca e talvez porque, noÉden, foi a serpente que enganou nossos primeiros pais com palavras melífluas.Não há evidência de que Tiago esteja na dependência de alguma passagem bíblicaparticular; ele está apenas afirmando que as palavras jamais são inofensivas; são

perigosas e mortíferas como veneno, se não forem controladas. Esta é a respostade Tiago à tendência moderna de considerar as palavras destituídas de importân-cia e muito baratas.

3:9 / Tendo declarado a perversidade da língua e a dificuldade em controlá-la,Tiago nos dá a seguir alguns exemplos concretos sobre sua natureza incontrolável.Em primeiro lugar, com ela bendizemos ao Senhor e Pai. Todos os leitores hãode concordar com Tiago. Dar graças a Deus, agradecer-lhe a bondade, fazia parte

do culto litúrgico de todo judeu e cristão: entoavam salmos (a que chamavamsalmos de louvor) como Salmos 31:21 ou 103:1, 2; (levantavam orações matuti-nas e vespertinas em que davam graças a Deus pela proteção durante a noite epelas bênçãos do dia (as orações de Atos 2:42); e havia os devocionais antes decada refeição: “Bendito sejas tu, ó Senhor Deus de nossos pais, que nos dás dofruto da terra...”.

Infelizmente, a língua também é usada para amaldiçoar: com ela amaldiçoa-

mos os homens. Há abundantes passagens bíblicas com maldições, embora aBíblia imponha limites à maldição e não nos deixe tranqüilos no que lhe diz res-peito: Gênesis 9:25; 49:7; Juízes 9:20; Provérbios 11:26. As maldições eram co-muns porque, à semelhança das bênçãos, não só davam vazão às emoções comotambém influíam de verdade sobre as pessoas e as coisas a que se destinavam.Embora Paulo proíba a maldição feita a esmo (Romanos 12:14), na prática o após-tolo pronunciava palavras duras, à guisa de maldições (1 Coríntios 5:1; 16:22;Gálatas 1:8). A cana de Judas é, praticamente, uma longa

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maldição contra os hereges. Entretanto, estas maldições de caráter mais formalsobre pessoas que praticam certos tipos de mal dificilmente seriam maldiçõesoriundas do ódio, do ciúme, da rivalidade, jamais são usadas como arma a fim deseparar ou rejeitar grupos, dentro da igreja, quando há lutas partidárias, e menos

ainda constituem maldições irrefletidas de alguém que se viu prejudicado pesso-almente.

Tiago aponta a incoerência da maldição a esmo, ao acrescentar feitos à seme-lhança de Deus. Embora um pronunciamento de Jesus que proíbe que se amaldi-çoe pudesse ter sido a base emocional mais profunda (e.g., Lucas 6:28), Tiagoprefere utilizar este argumento teológico a fim de salientar a incoerência da mal-dição. O Antigo Testamento refere-se às pessoas humanas como feitas à seme-

lhança de Deus (Gênesis 1:26), e utiliza esse fato para comprovar a seriedade doato de destruir essa semelhança (Gênesis 9:6). Até mesmo o mais depravado serhumano retém a semelhança de Deus, a qual se entendia, segundo o pensamentobíblico, representava a pessoa toda. Bendizer a Deus, ou a ele agradecer e, a se-guir, voltar-lhe as costas e maldizer sua imagem e semelhança é o mesmo queengrandecer um rei, em sua presença, e a seguir esmagar a cabeça de sua estátua,à saída do palácio real. Na melhor das hipóteses, é uma incoerência de comporta-mento; na raiz desse mal está o ódio veemente, incontrolável, sem nenhum vestí-

gio de arrependimento, dentro dessa pessoa, que não se atreve a atirá-lo contraDeus, mas desabafa-o sobre as pessoas. Entretanto, Tiago reconhece, cheio desimpatia, a natureza instável das pessoas e identifica-se com elas, ao usar o verbona primeira pessoa do plural (nós), não porque ele aceite essa realidade comoapropriada, mas porque procura conduzir as pessoas ao arrependimento e mostrar-lhe um caminho melhor (3:13-18).

3:10 / O problema óbvio aqui é a inconstância da palavra falada: Da mesmaboca procedem bênção e maldição. Meus irmãos, não convém que isto sejaassim. O problema não é tanto o de bênção, ou de maldição em si — a pessoapoderia, por exemplo, amaldiçoar o pecado muito adequadamente: “Que todos ospensamentos odiosos que querem invadir minha mente sejam enterrados nas pro-fundezas do inferno!”. O problema é que tanto a maldição quanto a bênção diri-gem-se ao mesmo objeto: Deus, e a pessoa feita à imagem de Deus.

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Isso demonstra duplicidade de pensamento e, portanto, pecado. É especificamenteessa duplicidade de linguagem (a pessoa “fala com língua bifurcada”, segundo ovelho ditado), que a tradição bíblica rejeita (e.g., Salmos 62:4). Esta rejeição foiefetuada mais tarde, no judaísmo, (o livro apócrifo de Siraque 5:19 fala do “peca-

dor de língua dobre”) e no cristianismo (e.g., Didaquê 2:4, “Não tenhas mentedobre nem tenhas duplicidade de língua, visto que a língua dúplice é armadilhamortífera”). Portanto, Tiago dá prosseguimento ao mesmo tema que mencionaraem 1:8 e 4:8 — duplicidade, inconstância e instabilidade são sinais do impulsomau, e não devem ser tolerados. O cristão é chamado para desarraigar todas essastendências e chegar à singeleza e à sinceridade de coração.

3:11-12  / Tiago conclui sua argumentação com mais algumas analogias danatureza: Pode uma fonte de água salgada dar água doce? Aqui está uma ver-dade infelizmente comum por todo o Mediterrâneo, quer no vale do Lico (Apoca-lipse 3:15-16 refere-se ao suprimento de água da região), quer em Mara, no Sinai(Êxodo 15:23-25), quer no vale do Jordão, onde a água cai em cascatas do altodas rochas, dando uma aparência de boas-vindas ao viajante, até que este descubratratar-se de águas amargas. Por que os seres humanos tentam fazer o que a nature-za não faz? A analogia entre o produto de uma fonte aquática e o da boca humana

é bem apropriada.Em segundo lugar, meus irmãos, acaso pode uma figueira produzir azei-

tonas, ou uma videira figos? Mais uma vez a analogia é bem apropriada. Ne-nhuma árvore produz duas espécies de fruto. Cada árvore produz segundo suanatureza. É contrário à natureza o ser humano tentar fazer o que a natureza nãofaz. Entretanto, pode ser que Tiago esteja querendo dizer algo mais, visto queJesus utilizou ilustração semelhante (Mateus 7:16-20; Lucas 6:43-45; Mateus

12:33-35), mas esta analogia relaciona-se a frutos bons e frutos maus, e ao julga-mento de uma planta segundo o fruto que produz. Estaria Tiago sugerindo que ofruto mau (a maldição) revela a natureza da pessoa?

A terceira analogia confirma essa suspeita: Tampouco pode uma fonte deágua salgada dar água doce. Tiago mudou sua analogia. Agora, a fonte é deci-didamente má, de água salgada, mas tenta produzir água doce. Isso é impossível.O mal dentro da pessoa produz uma

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“inspiração” freqüentemente bem escondida, mas as “maldições” (crítica maldosa,calúnia, comentários negativos), misturadas com palavras piedosas, demonstram averdadeira fonte de inspiração. O mestre ou os cristãos vindicam o Espírito deDeus, ou a sabedoria de Deus; mas há verdade nisso? Não há verdade quando a

linguagem da pessoa revela que esta é uma fonte de água salgada que finge serdoce.

Havendo sustentado o perigo inerente à língua e a necessidade de pureza nofalar, Tiago move-se agora para a retaguarda das palavras, e vai tratar das motiva-ções por trás dessas palavras. Esta seção procura olhar para dois lados. Em certosentido, olha para trás, para os mestres de 3:1 e para os problemas reais que subli-nham a palavra impura, de modo geral. Noutro sentido, trata-se de ponte entre a

discussão teórica de 3:1-13 e a denúncia dos problemas da comunidade, de 4:1-12. Assim como houve dois nascimentos, e duas inspirações em 1:12-18, há duas“sabedorias” e dois Espíritos, aqui.

3:13 / Tiago já fez a apologia da fala singela, sincera; agora, faz um apelo. Quem entre vós é sábio e entendido? Em certo nível, esta é uma pergunta quesimplesmente quer saber se alguém se enquadra na descrição, mas num nível maisprofundo lembramo-nos de que 1 Coríntios 1-3 descreve uma igreja em que um

ensino rival vindicava possuir sabedoria superior, e é possível que isso tambémestivesse acontecendo na comunidade de Tiago. Pelo menos Tiago sabia que osmestres de 3:1 afirmavam ser compreensivos, pois de que outra maneira poderiamensinar? É a tais pessoas, e também às que aspiram compreensão, que Tiago sedirige.

De que maneira podem tais pessoas “mostrar” sua sabedoria? Mostre... Seriamediante a inteligente refutação daquele que discorda de sua posição? De modo

algum; em vez disso, que mostre pelo seu bom procedimento... Jesus havia ditoque distinguiríamos os verdadeiros mestres dos falsos pelo seu modo de viver(Mateus 7:15-23). Tiago está aplicando o ensino de seu Mestre. O procedimentoera absolutamente crucial para a igreja primitiva. Os presbíteros eram acima detudo exemplos (1 Pedro 5:3; 1 Timóteo 4:12; 2 Timóteo 3:10-11), e, num segundoplano, mestres. Suas qualificações enfatizam suas vidas exemplares, e, se há men-ção da habilidade para ensinar, esta é apenas uma dentre outras muitas (1 Timóteo3; Tito 1). O modo de viver

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constituía também um testemunho importante (1 Pedro 2:12; 3:2, 16) visto que, senão houvesse sucesso na evangelização de um incrédulo, pelo menos eliminava asdesculpas das bocas dos incrédulos no dia do julgamento final. Tiago declara quenão é a ortodoxia da pessoa (pregação correta), mas sua ortopraxia (vida correta)

que representa a marca da verdadeira sabedoria. O crente deve recusar o mestreque não vive à semelhança de Jesus; você deve descartar a profissão de fé que nãoconduz à santidade.

Tiago enfatiza duas marcas deste modo de viver. A primeira chama-se boasobras. As obras — nosso procedimento — falam mais alto do que nossas pala-vras (Mateus 5:16). As obras que determinada pessoa realiza demonstram onde talpessoa investiu verdadeiramente seu coração (e.g., Mateus 6:19-21, 24). Tiago 

elogia práticas tais como a caridade, o cuidado às viúvas, como marcas de sabedo-ria.A segunda marca relaciona-se ao desempenho dessas obras em mansidão de

sabedoria. De modo diferente dos hipócritas de Mateus 6:1-5, os verdadeiramen-te sábios sabem como agir com mansidão (humildade): não estão edificando suaspróprias reputações. À semelhança de Moisés (Números 12:3) e de Jesus (Mateus11:29; 21:5; 2 Coríntios 10:1), não estão interessados em defender-se. Evitamconflitos, e de modo especial evitam fazer propaganda de si mesmos. A humilda-

de (ou mansidão) é a marca do verdadeiro sábio.

3:14  / Por outro lado, se o coração do crente é marcado, não pelo comporta-mento santo, pela mansidão humilde e pelas boas obras, mas revela amarga inve-

 ja e sentimento faccioso, o quadro é outro, bem diferente. Todas estas palavrasdescrevem as condições de vosso coração e refletem o ponto de vista de Deus. Apessoa não deve permitir que essas características lhes penetrem na consciência

de forma disfarçada. A inveja mencionada por Tiago é “um zelo severíssimo”, ou“rivalidade”; o mesmo termo pode ter um significado positivo, o “zelo que trans-parece noutras passagens escriturísticas (e.g., 1 Reis 19:10), e é certo que a pessoacom essa característica persuadiu-se de que esse é seu caso. Na verdade, trata-sede rigidez resultante de orgulho pessoal. Amarga inveja é diferente do amor e dozelo firme de alguém que tem plenitude de Deus; “amargo” é um adjetivo quedescreve bem a vítima da inveja: seria um “zelo” tingido pela amargura. Não im-porta

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Testamento, com outras traduções, para caracterizar a pessoa que não tem o Espí-rito de Deus (Judas 19), ou que “não compreende as coisas do Espírito de Deus”(1 Coríntios 2:14). Esta “sabedoria”, então, não faz parte de sua natureza redimi-da, mas caracteriza a pessoa para quem o verdadeiro caminho do Espírito é estra-

nho. Os caminhos do mundo — o poder, o comando (cf. Marcos 10:45), a estraté-gia, as prerrogativas — são os que tais pessoas entendem, não a mansidão humil-de, o amor, a auto-entrega. Em terceiro lugar, é diabólica. Há uma fonte de inspi-ração para essa “sabedoria”, mas não é divina. As pessoas afirmam que aqueleespírito de competição é inspirado. “É inspirado, é mesmo”, redargúi Tiago, “éinspirado pelo próprio diabo!”. Neste ponto, Tiago atingiu o xis da questão.

3:16  /  Como que para arrematar sua argumentação. Tiago prossegue: Poisonde há inveja e sentimento faccioso, aí há confusão e toda obra má .  Estaacusação não decorre de mera argumentação baseada na “teoria do dominó”, masé a conseqüência lógica dos dois primeiros vícios. A rivalidade e o espírito parti-dário destroem a coesão da comunidade cristã, que se edifica na unidade e noamor. Destruída a “cola”, todo tipo de desordem e rebelião penetra a comunidade.Mais do que isso, a auto-afirmação e a independência próprias da inveja do “zelo”doentio, destroem a capacidade de a comunidade disciplinar-se de acordo com a

tradição apostólica (Mateus 18:15-20; Gálatas 5:25; 6:5). Destruídos os “freios”da reprovação mútua, e havendo necessidade de “aceitar as coisas” por medo docriticismo que levaria outrem a formar seu próprio partido (“panelinha”), fica fácilver como toda obra má vai infiltrando-se. Para Tiago, a solidariedade comunitá-ria é importantíssima como era para Paulo (2 Coríntios 12:20; Filipenses 2:4),visto que, sem ela, ocorre a desintegração moral e comunitária.

3:17 / Contrastando de modo completo com a “sabedoria” demoníaca, temos a sabedoria que vem do alto. Para salientá-la, Tiago relaciona um catálogo devirtudes que podem ser comparadas, tanto em forma quanto em conteúdo, com ocatálogo de Paulo quanto ao amor e ao Espírito (1 Coríntios 13; Gálatas 5:22ss).Esta sabedoria é primeiramente pura, o que significa que a pessoa está sincera etotalmente comprometida de seguir com fidelidade as diretrizes morais

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de Deus; não existem motivos pérfidos ou injustos por trás de sua santidade.Dessa pureza se diz que conduz a outras virtudes: é pacífica (como em He-

breus 12:11; Provérbios 3:17), que se refere não à paz íntima, porém à paz comu-nitária; moderada (Filipenses 4:5; 1 Timóteo 3:3; Tito 3:2), que denota um espí-

rito conciliador, inimigo de contendas; e tratável, que indica um espírito abertoao aprendizado, maleável, uma pessoa que com toda a alegria se submete à corre-ção de um erro ou ao aprendizado de uma nova verdade.

A sabedoria é prática, porque se apresenta cheia de misericórdia (expressãogrega da qual se derivou a palavra esmola) e de bons frutos, que são os atos decaridade que Tiago já  discutiu (1:26-27; 2:18-26). Portanto, a sabedoria não éprimordialmente um conceito intelectual, mas uma habilidade prática para discer-

nir a vontade de Deus e agir em conformidade.Finalmente, a sabedoria é sem parcialidade, e sem hipocrisia, i.e., imparciale sincera, livre de preconceitos. Não ficou bem claro se esta libertação de precon-ceitos refere-se à ausência do espírito de partidarismo (imparcialidade para rece-ber outros irmãos na fé), ou se significa “ter uma visão singela”, “firmeza de cará-ter” (o oposto de 1:6-8). Talvez se refira a esta última opção, visto que vem pertode “sem hipocrisia” (que é tradução literal do termo grego; NIV preferiu “since-ra”). Juntos, esses termos indicam pessoas cujos motivos interiores são sinceros,

sem hipocrisia, e cujos atos externos são coerentes. As pessoas jamais precisarãoduvidar “de onde vieram”, porque tais pessoas não têm espírito partidário e agemda mesma forma sempre perante todas as pessoas.

3:18 / Tiago resume sua explanação com um provérbio: o fruto da justiçasemeia-se em paz para os que promovem a paz. A colheita da bondade ou da

 justiça é bem conhecida na literatura bíblica (e.g., Isaías 32:16-18; Amós 6:12).

Em outras palavras, boas obras serão produzidas pelos atos dos pacificadores.Algumas pessoas tentam ser  justas de maneira tal que produzem divisões na co-munidade. Em vez disso, o provérbio assinala a bondade como o fruto natural davida de um pacificador, sendo esse o ponto crucial de Tiago: a pacificação, e não  uma violenta “luta pela verdade”, é o que conduz à justiça.

(Tiago 3:1-18)

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A expressão reiterada “semeia-se em paz” apenas sublinha o fato de que a pacifi-cação é atividade que produz verdadeira paz externa. O próprio Tiago é retratadocomo pacificador em Atos 15 e 21, mas seu ensinamento não deriva de uma pre-ferência pessoal, mas de Jesus mesmo, que havia dito: “Bem-aventurados os paci-

ficadores” (Mateus 5:9). Conflitos e desavenças não produzem justiça; o caminhopara a justiça chama-se paz. Na verdade, a verdadeira paz na comunidade é resul-tado da prática da justiça a todas as pessoas.

 Notas Adicionais #33:1 /  O  cargo de mestre desenvolveu-se no judaísmo. No período do Novo

Testamento, antes de a ordenação rabínica formal começar a vigorar (depois de 70

d.C., as pessoas recebiam a honra de ostentar o título de “rabi” (Mateus 8:19; João1:38), “escriba” (Mateus 2:4), “mestre” (Lucas 2:46) ou “mestre da lei” (Lucas5:17). As primitivas comunidades cristãs também precisavam de instrução tantono Antigo Testamento quanto no modo de viver cristão, considerando que novosconvertidos continuavam chegando à igreja. Houve épocas em que este cargo foiconsiderado próprio dos escribas (Mateus 13:52), mas usualmente o termo em-pregado era “mestre”. Eram bastante valorizados, ao lado dos profetas; enquantoum falava sob inspiração direta de Deus, o outro explicava e aplicava as Escritu-

ras e a tradição cristã que se avolumava, ambos sendo portadores da mensagem deDeus (Atos 13:1 e Didaquê 13:2 os incluem entre os profetas, como o faz Pauloem 1 Coríntios 12:28). Esse cargo tão poderoso atraía elementos desqualificados,não só nos tempos do Novo Testamento (1 Timóteo 6:3; 1 Pedro 2:1; 1 João 3),mas também mais tarde, na igreja primitiva: “Mas eles louvam-se a si mesmospela compreensão que dizem ter [e que na verdade não têm] e desejam ser mestresem base não-oficial embora sejam tolos. Por isso, por causa dessa presunção, pela

auto-exaltação, muitos se têm arruinado, visto que a autodeterminação e o excessode confiança são um demônio” (Hermas, Similitudes 9:22.2-3).O ensino a respeito do julgamento mais severo que aguarda os mestres era

tradicional na igreja, pois Tiago pode afirmar sabendo que receberemos... (comoem Romanos 5:3; 6:9; Efésios 6:8). Paulo se considerava mestre, como tambémTiago; ambos encaravam o julgamento futuro com toda a seriedade, sob cuja luzse autodisciplinavam (1 Coríntios 9:27)

Veja ainda J. Jeremias, Jerusalem in the Times of Jesus (Jerusalém nos Tem-

pos de Jesus), p. 241-45; S.S. Lewis, James (Tiago), p. 140-43;

(Tiago 3:1-18)

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K. Wegenast, “Teacher ” (Mestre), NIDNTT, vol. 3, p. 766-68.3:2 / Tiago emprega uma palavra incomum para tropeça,  que se encontra

apenas 4 vezes no Novo Testamento; veja também Tiago 2:10; Romanos 11:11; 2Pedro 1:10. A palavra grega significa literalmente “tropeçar” ou  “errar”, mas,

quando empregada em sentido figurado, em questões morais, como aqui, significa“desviar-se” ou “pecar” e até mesmo “arruinar-se” ou “perder-se”.

A passagem toda está ligada por palavras destinadas a chamar a atenção. tro-peça faz ligação do provérbio ao resto do versículo. refrear literalmente é “pôrfreios em”, ligando-se com “freios” do v. 3; em português, como no grego, sãopalavras de mesma raiz.

todo o corpo: o corpo era visto como a sede de todas as paixões, de todos osmaus impulsos.

3:3-4 / Visto que estas ilustrações não se encaixam com exatidão, acham al-guns que têm algum sentido alegórico (B. Reicke,  James (Tiago), p. 37, ou queTiago tomou de empréstimo de outra literatura (M. Dibelius,  James (Tiago), p.185-90). É bem provável que Tiago esteja citando uns provérbios populares, por-que com toda a certeza havia abundância de ditados sobre cavalos e navios em suaépoca. Porém, inculcar um sentido alegórico um tanto forçado, ou uma fonte lite-rária, sem que haja um paralelismo literário exato, é  forçar demais a evidência.Pode ser que a mente de Tiago apenas se projetou mais à frente, empregando es-sas ilustrações como uma ponte de ligação com novos pensamentos que logo des-pontarão. O fato é que as ilustrações sobre cavalos e navios eram comuníssimasentre o povo, de modo que Tiago não precisaria tomá-las de empréstimo de ne-nhuma fonte escrita. 

3:5 / A segunda metade deste versículo provavelmente é um provérbio usadocomo transição para novo tópico que Tiago deseja desenvolver — a língua, isto é,o mal que ela pode conter.

3:6 / Assemelhar a língua ao fogo tem precedente no Antigo Testamento:Salmos 10:7; 39:1-3; 83:14; 120:2-4; Provérbios 16:27; 26:21; Isaías 30:27. Sira-que, comentando uma longa passagem a respeito da calúnia, diz o seguinte: “[Alíngua] não governará os piedosos, e estes não serão queimados em suas chamas”(28:22; cf. Salmos de Salomão 12:2-3).

A estrutura deste versículo é difícil porque a gramática é obscura; contudo,seu sentido geral é claro. O mundo é símbolo da cultura e das organizações douniverso que se formam sem Deus e, por isso, constituem a antítese do reino deDeus; Tiago sempre usa “mundo” com este sentido (1:27; 2:5; 4:4), e a expressão“de iniqüidade” enfatiza esse sentido. Tiago fica bem perto de 1 João neste pen-samento, conquanto os estilos sejam

(Tiago 3:1-18)

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diferentes. Veja ainda J. Guhrt, “ Earth” (Terra), NIDNTT, vol. 1, p. 524-26; ouH. Sasse, “Kosmos”, TDNT, vol. 3, p. 868-96.

O mundo ocupa seu lugar entre os nossos membros pode ser uma referênciaaos impulsos maléficos (Hebraico, yêser hâ-râ), primeiramente citados em Tiago

1:13, que os judeus diziam viver nos membros do ser humano. Nesse caso, Tiagoestaria retratando “o mundo” vivendo na língua, embora dificilmente isto fosseuma assertiva da antropologia do autor. Sua linguagem em parte é metafórica,significando em grande parte o mesmo que Jesus quis dizer ao afirmar que a cor-rupção não está do lado de fora, mas dentro da pessoa, pois o mal provém do co-ração (Marcos 7:14-23). É dos fuxicos comunitários, do preconceito e da rejeiçãodo apelo a dar-se que Tiago está tratando. Ele retrata esses males como se estives-

sem residindo na língua, mas, à semelhança de Jesus, a corrupção interna destróinão apenas a língua, mas todo o corpo. Encontramos em  Judas 23 um quadrosemelhante (cf. Sabedoria 15:4).

A frase o curso da natureza [da pessoa] tem ocasionado muita discussão,visto ser semelhante a expressões de Orfeu, e outros autores gregos, significandoreencarnação. Entretanto, essa frase tornou-se tão disseminada na literatura gregaposterior, com tanta variação de sentido, que podemos concluir que, na época deTiago, ela já havia perdido suas conexões com os ensinamentos de Orfeu e assu-

mido, na Palestina, o sentido que GNB lhe dá. NIV traz “o curso todo da vida [dapessoa]”. Veja ainda J.B. Adamson, James (Tiago), p. 160-64.

É interessante a referência ao inferno. O inferno ou “geena”, aparentementeestava na mente de Tiago e de outros como um lugar em que os demônios e Sata-nás já estavam aprisionados (em oposição ao aprisionamento futuro, mencionadoem Apocalipse 19-20). Este é, claramente, o sentido dessas palavras na obra ju-daica “Apocalipse de Abraão” 14:31. Entretanto, a imagem que lemos nesta pas-

sagem não é apenas a de seres aprisionados, mas de seres capazes de inspirar a-contecimentos agora mesmo, como os de Apocalipse 9:1-11; 20:7-8. Parece que aprisão seria utilizada como imagem forte para determinar os seres que ali vivem,ou viverão, de modo especial tendo em vista da imagem de fogo que lhe está as-sociada. Veja ainda J. Jeremias. “Geenna”, TDNT, vol. 1, p. 657-58.

3:7 / O outro lugar (e único) em que aparece a palavra doma, no Novo Tes-tamento, é em Marcos 5:4, em que os demônios deixam o ser humano indomável.

As quatro categorias de animais são as quatro divisões comuns do mundo 

animal, na literatura bíblica, classificação feita segundo a observação

(Tiago 3:1-18)

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dos grupos, e não de acordo com a taxonomia atual. Veja Gênesis 1:26; 9:2; Deu-teronômio 4:17-18; Atos 10:12; 11:6.

3:8 / As Escrituras contêm grande abundância de ensino a respeito da língua(e.g., Provérbios 10:20; 15:2, 4; 21:3; 31:26), havendo também muita literatura

intertestamentária sobre o mesmo tópico (e.g., Siraque 14:1; 19:6; 25:8). O termo incontido é o mesmo que aparece em 1:8 (“vacilante”), sendo fre-

qüente no Novo Testamento na forma de substantivo, com o sentido de “intran-qüilidade”, “instabilidade”, “tumulto”. Uma das características de Deus é a paz,que é o antônimo normal desse termo. Deus não é instável (Lucas 21:9; 2 Corín-tios 6:5; 12:20). Esse contraste aparecerá com toda a clareza nos versículos que seseguem, e em 3:13-18. Veja ainda H. Beck e C. Brown, “Peace” (Paz), NIDNTT,vol. 2, p. 780.

Quanto à figura de linguagem da peçonha, na literatura judaica, veja Jó 5:15;Salmos 58:4, 5;  Siraque 28:17-23. Hermas (Similitude 9.26.7) diz o seguinte:“Assim como as bestas feras destroem e matam o homem com sua peçonha, assimas palavras de tais homens destroem e matam o ser humano”. Veja ainda O. Mi-chel, “los”, TDNT, vol. 3, p. 334-35.

3:9 / O agradecimento e a bênção freqüentemente se dirigiam a Deus (Mateus11:25), de modo que se pode referir a Deus simplesmente como “Deus Bendito”(Marcos 14:61; Romanos 9:5); os rabis normalmente se referiam a Deus como “oSantíssimo, bendito seja o seu nome”. No Novo Testamento, as pessoas oravam ena oração bendiziam o nome de Deus ou lhe davam graças (Lucas 1:68; 2 Corín-tios 1:3; Efésios 1:3; 1 Pedro 1:3), e como exemplo temos as dezoito bem-aventuranças judaicas usadas no final de cada reunião na sinagoga. De fato, Deusé o principal alvo da bênção e louvor no Novo Testamento, embora às vezes aspessoas é que são abençoadas (e.g., Mateus 16:17). Na ceia do Senhor, o nome deDeus foi bendito; recebeu graças pelo alimento especial, o pão e o vinho. Fosse aceia celebrada diariamente, ou uma vez por semana, não era o alimento que eraabençoado, mas, como fez Jesus ao inaugurar a ceia, o nome de Deus é que erabendito, o Senhor é quem recebia graças pelo pão e pelo vinho. No Didaquê 9:2,3: “Nós te agradecemos, Pai, o...” pão, o vinho; fica demonstrado assim que estaera a prática da igreja primitiva. Veja ainda H.G. Link, “ Blessing” (Bênção),NIDNTT, vol. 1, p. 206-15.

O título Senhor e Pai não tem paralelismo exato na literatura judaica(1 Crônicas 29:10 e Isaías 63:16 são os que mais se lhe aproximam). Provavel-mente se trata de uma expressão corrente na igreja, combinandoSenhor (Kyrios) da sinagoga com o pronome de tratamento favorito de Jesus aofalar com seu Pai em oração.

(Tiago 3:1-18)

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Sabe-se que no Antigo Testamento utilizavam-se maldições (cf. também Pro-vérbios 24:24; Eclesiastes 7:21; Siraque 4:5). Na literatura rabínica os judeustambém desaprovavam a maldição pelas mesmas razões de Tiago— as pessoas foram criadas à imagem e à semelhança de Deus. A obra Segredos

de Enoque declara o seguinte: “O Senhor com suas mãos criou o homem à suasemelhança, como a sua face, o Senhor fez os pequeninos e os grandes. Quemdesrespeitar a face de quem governa... desrespeita a face do Senhor, e quem des-pejar ira sobre alguma pessoa... a grande ira do Senhor o cortará” (44:1-3). Entre-tanto, a rejeição por parte dos judeus da maldição não se aplica às dezoito maldi-ções formais, litúrgicas, anexas às dezoito bênçãos. Parece que no Novo Testa-mento eram aceitáveis as maldições formais lançadas contra qualquer pessoa quehouvesse praticado x ou y. Paulo nunca amaldiçoa seus adversários, nem mesmo

os judaizantes; tampouco os acusa de estar fazendo o que ele amaldiçoa. As mal-dições de Paulo eram mais formais, do tipo “se a carapuça lhe servir, enfie-a nacabeça”; e nunca foram pessoais, fruto da ira paulina, nem esporádicas.

3:10 / A rejeição da duplicidade é um conceito importante para Tiago, como odemonstra a nota sobre 1:8. É certo que Tiago leu Siraque 28:12: “Se você sopraruma faísca, ela vai brilhar mais; se você cuspir nela, vai apagar-se; uma e outrasaíram de sua boca”. O conceito fica inserido num contexto mais amplo de Sira-que 27:30-28:26. Em 28:13 a pessoa de língua dobre (“o enganador”, RSV) éamaldiçoado sem rodeios. O Testamento de Benjamin 6:5 diz o seguinte: “A men-te boa não possui duas línguas, a da bênção e a da maldição... mas tem uma dis-posição, incorrupta e pura, com respeito a todos os seres humanos”. Em essência,quer a pessoa examine as obras judaicas, quer examine as cristãs, do período pri-mitivo, o mero aparecimento de uma atitude de duplicidade (que não é de modoalgum apenas a honesta confissão de que a pessoa “ainda não tomou uma deci-são”) é indício de disposição pecaminosa.

J.B. Mayor,  James (Tiago), p. 123, crê que a lógica desta passagem é queninguém deveria amaldiçoar outro ser humano. Isto é verdade, embora Tiago comtoda a probabilidade não tiraria essa conclusão. Não é incomum que um ensino doNovo Testamento tenha implicações que ultrapassem a prática do Novo Testa-mento, como, por exemplo, o caso da escravidão. Em 2 Pedro 2:10-11 e em Judas8-10 este princípio se estende ao ponto de rejeitar-se a idéia de amaldiçoar ospoderes malignos, inclusive Satanás.

3:11-12  / Qualquer área geologicamente ativa possui fontes de água doce efontes de água amarga. No vale do Lico, Hierápolis tinha fontes termais de águamineral: Colossos tinha águas doces; Laodicéia tinha de

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adaptar-se à água morna encanada de longa distância. No vale do Jordão o viajan-te precisava distinguir de longe quais das várias Fontes eram doces, e depois ca-minhava muitos quilômetros na direção delas. Veja ainda E.F.F. Bishop, Apostles

of Palestine (Apóstolos da Palestina), p. 187; ou D. Y. Hadidian, “Palestine Pic-

tures in the Epistle of James” (Quadros da Palestina na Epístola de Tiago), p. 228.A versão do rei Tiago (KJV) diz: “De modo que nenhuma fonte pode produzir

água salgada e água doce”; esta redação segue um texto grego inferior que har-monizava 3:12 com 3:11. NIV e ECA seguem um texto melhor e assim mostramo pensamento mutante de Tiago, fazendo uma boa transição para a seção seguinte.

3:13 / Essas palavras sábio e entendido (ou seus sinônimos) são usadas comfreqüência no Antigo Testamento (Deuteronômio 1:13, 15; 4:6; Daniel 5:12);

indicam um povo que vive segundo a visão de Deus.O modo de viver é importante por todo o Novo Testamento, e.g., Hebreus13:7; Gálatas 1:13. Paulo está constantemente advertindo que o modo de vivermarca os regenerados, separando-os de quem não se regenerou (e.g., Gálatas 5). De maneira semelhante, os judeus também insistiam em que o modo de viver éimportante: “[R. Eleazar ben Azariah] costumava dizer: Toda a pessoa cuja sabe-doria é maior do que suas obras, a que a assemelharemos? A uma árvore cujosgalhos são muitos e cujas raízes são poucas: sopra o vento e desarraiga a árvore e

expõe suas raízes” (m. Aboth 3:22).Para os gregos, a humildade no sentido de mansidão era considerada vício,

ou defeito. Os cristãos a consideravam uma virtude cardeal (Gálatas 5:23; 6:1;Efésios 2:4; 2 Timóteo 2:25; Tito 3:2; 1 Pedro 3:15). Assim é que Tiago, sendocristão, opõe-se à sua cultura que prega a auto-asserção. Veja ainda S.S. Lewis,

 James (Tiago), p. 160-61.3:14 / Há muitas passagens em que a palavra grega  zelos,  (inveja, zelo) é

traduzida de modo positivo (João 2:17; Romanos 10:2; 2 Coríntios 7:7; 11:2; Fili-penses 3:6). Contudo, essa virtude com toda a facilidade se transforma em invejae rivalidade, que a mesma palavra condena como defeito, ou vício (Atos 5:17;13:45; Romanos 10:2; 13:13; 1 Coríntios 3:3). Tiago parece indicar que no mo-mento em que a pessoa sentir um traço de amargura, chegou o momento de elaexaminar suas verdadeiras motivações. Veja ainda A. Stumpff, “ Zelos” (Inveja),TDNT, vol. 2, p.887-88.

O problema do espírito partidário era bem conhecido na igreja primitiva. Seus

primeiros indícios aparecem em Atos 6; a seguir surgem os judaizantes gálatas, osgrupos de Corinto (1 Coríntios 1) e outras facções

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desconhecidas (Filipenses 1:17; 2:3). Trata-se de uma falta grave no Novo Testa-mento, porque, se o grupo estava baseado na verdade, e tendia a separar-se daprincipal corrente do judaísmo, muitos tendiam a perder de vista o fato de que aVerdade era uma Pessoa que os unificava. Em vez de enfatizar essa unificação na

Verdade, os grupos se voltavam para suas pequeninas verdades, que acabavamdistorcidas, e as pessoas se persuadiam de que a separação era necessária. Vejaainda F. Büchsel, “ Eritheia”, TDNT, vol. 2, p. 660-61.

Tiago 3:13-18 é uma lista modificada de vícios e virtudes, dos quais há mui-tos no Novo Testamento. Didaquê 1-6 e Barnabé 18-21 apresentam listas seme-lhantes, na literatura cristã posterior. Todos os autores, à semelhança de Tiago,afirmam que o pecado se origina no coração, em vez de em forças externas. Veja

ainda B.S. Easton, “ New Testament Ethical Lists” (Listas Éticas do Novo Testa-mento).3:15 / Paulo nos fala de uma “sabedoria deste mundo” (1 Coríntios

1:20; 2:6) ou “sabedoria carnal” (2 Coríntios 1:12), mas Tiago não se refere a ela,visto que Sabedoria é sua expressão para Espírito Santo. Já havia sido criado umelo entre a sabedoria e o céu no ensino judaico (e.g., Siraque 1:1-4; 24:1-12; Sa-bedoria 7:24-27; 9:4, 6, 9-18), à semelhança do elo entre a sabedoria e o Espírito(Sabedoria 7:7, 22-23 fala do “espírito de sabedoria” e de um “espírito inteligente

e santo na sabedoria”). Tiago utiliza as marcas identificadoras de modo mais con-creto. Veja ainda J.A. Kirk, “The Meaning of Wisdom in James” (O significado deSabedoria em Tiago).

O termo terrena normalmente indica pelo menos inferioridade (João 3:12;Filipenses 3:19; 2 Coríntios 5:1), mas trata-se do mais fraco dos termos, que seclassificam em ordem crescente. Hermas, meditando na carta de Tiago, fortaleceuessa idéia: “Portanto, vede” disse ele, “que a fé vem de cima, do Senhor, e tem

grande poder; todavia, a duplicidade de mente é um espírito terreno provenientedo diabo, destituído de poder” ( Mandate 9.11) O termo diabólica já foi sugerido no versículo anterior onde Tiago diz: “nem

mintais contra a verdade” (3:14), pois isso é o que caracteriza o diabo (João 3:46).Visto que Tiago mais tarde vai convocar os crentes a que “resistam” ao diabo(4:7), e, em face das conexões entre as provações e o diabo (e.g., Mateus 6:13), deque Hermas também testemunha (Similitude 9:12; 9.23.5), é improvável que Tia-go esteja afirmando simplesmente que aqueles ímpios estavam praticando coisas

semelhantes às do diabo, mas na verdade obravam inspirados por Satanás.3:16 / A primeira carta de João também se interessa profundamente

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pelo comportamento sectário (1 João 2:19). As Escrituras reconhecem a necessi-dade de separação do mundo, mas rejeitam a divisões entre verdadeiros cristãos.

Não é de surpreender que os demônios se envolvam em toda obra má (cf.João 3:20; 5:29, onde se emprega o mesmo termo). Entretanto, a confusão é  a

principal marca da atividade demoníaca. Deus é  o autor da paz e da ordem (1Coríntios 14:33). O reino demoníaco caracteriza-se pelo desassossego e pela rebe-lião (cf. Lucas 21:9 e os comentários de Tiago 1:8; 3:8). Veja ainda A. Oepke,“ Akatastasia”, TDNT, vol. 3, p. 446-47.

3:17 / Hermas,  Mandate 9.8, apresenta um catálogo com uma estruturasemelhante a esta, de Tiago, e também enfatiza a paz.

Os termos tratável e sem parcialidade são encontrados na literatura bíblica

somente nesta passagem.O termo sem hipocrisia (sinceros) apresenta-se em numerosas passagensbíblicas: Romanos 12:9; 2 Coríntios 6:6; 1 Timóteo 1:5; 2 Timóteo 1:5; 1 Pedro1:22.

3:18  / fruto da justiça é tradução literal do grego. Veja também Provérbios11:30; 2 Coríntios 9:10; Filipenses 1:11; Hebreus 12:11. As Escrituras e a literatu-ra a elas relacionada também conhecem “o fruto da sabedoria” (Siraque 1:16) e o“fruto do Espírito” (Gálatas 5:20). Bondade e retidão são justiça, em que cada um

recebe o que lhe é devido.Alguns autores, e.g., S.S. Laws,  James (Tiago), p. 165-66, fazem conexão

entre sabedoria e o fruto da justiça e, assim, afirmam que os pacificadores possu-em sabedoria, visto que a paz é o sinal da presença da sabedoria. Laws mencionaProvérbios 11:30 e 3:18 como provas. Esta interpretação é possível, não sendo,todavia, a mais natural. Veja ainda F. Hauck, “Karpos”, TDNT, vol. 3, p. 615; H.Beck e C. Brown “Peace” (Paz), NIDNTT, vol. 2, p. 776-83.

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4.  O Cristão e o Mundo (Tiago 4:1-12)

Visto estar ciente de problemas no seio da comunidade, Tiago faz uma transi-ção abrupta: põe de lado os pacificadores, os líderes sábios da comunidade, eenfrenta a situação dos conflitos na igreja.

4:1 / De onde vêm as guerras e contendas entre vós? Eis uma boa pergunta,visto que, se a sabedoria de Deus se encontra entre os pacificadores, as guerrilhascomunitárias não procedem dos amantes da paz. O resultado de uma comunidadeobedecer aos padrões cristãos pode gerar conflitos com o mundo pagão ou com asinagoga, como resultado inevitável da fidelidade a Cristo. Mas as querelas dentro

da igreja (i.e., entre vós) são guerra civil e não defesa nacional.A pergunta de Tiago é retórica, pois ele já conhece a resposta: Não vêm dis-

to, dos prazeres...? À semelhança de 1:13-15, Tiago não porá a culpa em forçasexternas: a fonte são seus próprios impulsos maus, ou, como Paulo diria, o “velhohomem”, a velha natureza carnal. Tais contendas podem ser “apenas humanas”,mas refletem a humanidade decaída; enquanto as pessoas não reconhecerem seupecado e dele não se arrependerem, não há esperança de paz na igreja.

O verdadeiro campo de batalha é interno: Os prazeres que nos vossos mem-bros guerreiam. Os maus impulsos na pessoa não fazem parte de seu corpo (estepode servir a Deus tão facilmente como pode servir ao diabo), apenas estão nocorpo e lutam pelo seu controle. Teoricamente, mediante o Espírito “da sabedoriaque vem do alto”, as pessoas deveriam estar capacitadas a conquistar seus mausimpulsos, mas, tendo em vista o fato de que sua fidelidade dividiu-se entre Deus eo mundo (Tiago 4:4. 8), tais pessoas não obtêm a vitória, mas vivem em constanteluta; a parte sob o controle de Deus luta contra a parte sob o controle do mundo. A

linguagem é forte; a batalha é uma experiência profunda.

4:2 / Descrevem-se também vividamente os resultados do fracasso dessescrentes. Conquanto a tradução de ECA seja fiel interpretação do texto grego, emuito clara, uma tradução ainda melhor seria a seguinte:

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Você quer coisas que não tem capacidade de ter;Você “assassina” e é invejoso, mas não consegue satisfazer seus desejos;Você briga e guerreia, mas não tem o que deseja, porque não pede a Deus;Você pede, mas não recebe, porque sua motivação é errada.

Tiago discute com maiores minúcias o que ele afirmara em 4:1. A raiz doconflito é o desejo: você almeja algo. É esta exatamente a questão em 1:14. Sejaqual for o objetivo, o desejo é a origem do pecado e do conflito. Posteriormente,Tiago salienta as conseqüências do desejo frustrado (não podeis obter o quedesejais). Em vez de reexaminar seus desejos, a pessoa por eles aprisionada lançamão da calúnia e do abuso verbal contra os que foram atendidos em seus pedidos

(num sentido metafórico, o invejoso “assassina” o próximo). É evidente que ainveja acompanha esse desenvolvimento (como em 3:14), dando uma aparênciade amizade, na superfície, mascarando todavia uma luta pelo poder. A rivalidadepessoal induz a lutas partidárias: combateis e guerreais. As palavras de 3:16tornaram-se realidade na vida da comunidade: ei-la tomada pela desordem. Noentanto, apesar de tanta intriga, não se obteve o resultado colimado: nada tendes (i.e., nada que desejais).

Tentaram satisfazer seus desejos de modo errado, mas a tradição cristã tem

um caminho melhor — o de pedir a Deus. Foi Jesus quem nos disse: “Pedi, e re-cebereis”. Os iníquos estão tramando, não estão pedindo. O resultado será a frus-tração.

4:3 / Entretanto, tais crentes poderiam responder que na verdade oram, masparece que a oração não produz efeitos. A resposta de Tiago ao protesto implícitoestá na última linha do paralelismo. Pedis e não recebeis porque pedis mal; há

um motivo ponderável para a oração não funcionar: pedis mal, isto é, a motivaçãoé errada. Nenhuma oração é respondida automaticamente. Os evangelhos contêmmuitas promessas quanto à oração (Mateus 7:7-11; 17:20; Marcos 11:23-24; Lu-cas 18:1-10; João 14:13); todavia, cada promessa traz em si uma pressuposiçãocentral, a saber, que o coração de quem ora está em sintonia com o coração deDeus. É isso que significa orar “em nome de Jesus”, ou ter fé, ou pedir algumacoisa ao pai. Essa é a razão por que a oração dominical inicia-se com três pedidosque enfatizam a vontade

(Tiago 4:1-12)

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de Deus. Se a oração nada mais fosse do que uma fórmula mágica (diga as pala-vras corretas, creia com suficiente firmeza e confesse seus pecados; seu pedidoserá atendido), os cristãos estariam envolvidos num tipo de magia. Poderiam ma-nipular Deus ou a ele impor suas vontades, pois Deus seria obrigado a responder.

Em contraposição, a oração do Novo Testamento cresce de um relacionamentocom um pai cuja vontade é suprema. Tiago aponta-nos, então, que esses crentesnão podem receber porque não estão sintonizados com Deus; eis a razão: pedis...para o gastardes em vossos prazeres. A implicação não é que Deus nunca nosconcede coisas que nos dêem prazer. Nosso Deus é o Deus misericordioso quenos dá não apenas pão e água, mas também carne e vinho (Filipenses 4:12; Jesusnão era famoso por jejuar!). A questão crucial é que aqueles crentes eram motiva-

dos por desejos egoístas, e pediam apenas com o objetivo de satisfazer o seu ego.Não se trata de um filho cheio de confiança, que pede uma refeição, mas um filhocobiçoso, que pede tudo que lhe apetece mais, ou a criança mimada que exige ascoisas a seu modo. Aqueles crentes pediam a Deus que lhes abençoasse as tramói-as; porém, Deus não participará delas.

4:4 / Depois de analisar-lhes o apelo, Tiago acrescenta uma acusação: adúlte-ros e adúlteras. Esse pessoal foi comparado ao povo de Deus do Antigo Testa-

mento. A igreja é a noiva de Cristo, assim como Israel era a noiva de Deus (2Coríntios 11:2; Efésios 5:22-24; Apocalipse 19, 21). Quando Israel se voltavapara a idolatria, não abandonava o culto a Deus, mas tentava fazer um “sincretis-mo”, ou combinação de ambos: Deus no templo e a rainha do céu em casa; Deusno templo, e Baal no pátio. E por isso Israel é reiteradamente comparado a umaesposa infiel, adúltera, que deseja manter a segurança e a respeitabilidade de seular e do marido, mas também deseja usufruir o amante (Isaías 1:21; Jeremias 3;

Oséias 1-3). Tiago aplica essa imagem à igreja, acusando-a de servir a certo tipode “ídolo” e simultaneamente a Deus.É  fácil identificar o “ídolo”: é  o mundo. Não sabeis que a amizade do

mundo é inimizade com Deus? Portanto qualquer que quiser ser amigo do mun-do constitui-se inimigo de Deus. As pessoas deviam ter reconhecido esse fato,porque aquela pergunta, não sabeis, indica que

(Tiago 4:1-12)

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este ensino não é novidade. Como em 1 João 2:15-17, mundo significa cultura,costumes e estruturas humanísticas, organizados sem a atuação de Deus. O opostode mundo é reino, entre os quais a igreja funciona como ponte aqui na terra, emque Deus é a origem e o centro de toda vida. Esses cristãos adoram a Cristo com

muita fidelidade, mas também procuram os benefícios da influência, da segurançafinanceira e de um padrão de vida melhor, o que significa que não conseguemviver “de um modo literal demais”, segundo o ideal da igreja de servidão e gene-rosidade. Vagarosamente os princípios “práticos” do mundo (poder, hierarquia,autoridade) vão sendo levados para dentro da igreja, conforme testemunham asdissensões e os conflitos.

Tiago diagnostica sem pestanejar que essa forma de infidelidade chama-se

apostasia — a mesma doença do Antigo Testamento. De acordo com Jesus, onovo ídolo chama-se Mamom, ou riquezas (Mateus 6:14; Lucas 16:13); Tiago ochama “mundo”. Como afirma Jesus, não podem existir “dois senhores”. Queremser amigos do mundo (o que pode dar a entender que nem mesmo o mundo dese-

 ja a meia lealdade que oferecem); são, portanto, inimigos de Deus. Nenhum mari-do se contentará com menos do que um relacionamento exclusivo por parte daesposa; Deus não aceitará menos do que total fidelidade.

4:5 / Além de condená-los por seu comportamento. Tiago acrescenta umaadvertência: ou pensais que em vão diz a Escritura que... Aquela gente tem lidoo Antigo Testamento, e só a supressão voluntária de sua mensagem pode justificarsuas ações.

As escrituras em questão provavelmente são uma obra apócrifa; a  primeiratradução alternativa de ECA com certeza é a forma correta: o Espírito que ele fezhabitar em nós tem intenso ciúme. Deus é como um marido ciumento (Êxodo

20:5; 34:14; Deuteronômio 4:24) que não vai tolerar adultério de sua “noiva”. Oalvo do ciúme de Deus é o Espírito que ele soprou no seu povo (Gênesis 6:17; 7:15; Salmos 104:29-30; Ezequiel 37), a quem chamou para que o adorasse e a eleobedecesse. Quando, entretanto, seu povo corrompe seu espírito para servir aomundo, o ciúme de Deus se inflama. Ai da pessoa que ignora a ameaça divina,como se as Escrituras fossem apenas papel e tinta!

(Tiago 4:1-12)

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4:6 / Afirma Tiago que Deus está irado contra esses crentes; na verdade, Deusse constituiu inimigo deles. No entanto, Tiago infunde esperança no povo, em vezde terror: antes, ele nos dá uma graça maior. Tiago está consciente do julga-mento de Deus sobre os que se recusam a arrepender-se (5:1-6), mas está também

consciente de como Deus está disposto a perdoar. O desejo de Deus de perdoar éum preceito sobre o qual o livro todo de Tiago se baseia (5:19-20). Há razão parao tremor, mas o tremor será apenas um prelúdio à alegria, se o povo se voltar paraDeus, pedindo sua graça.

A prova desta verdade também se encontra nas Escrituras: portanto, diz aEscritura: Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes. Este versí-culo (Provérbios 3:34) é um dos textos prediletos da tradição cristã ética, e pro-

porciona ao povo a possibilidade de uma escolha: pode humilhar-se e receber umagraça de Deus, ou pode prosseguir na auto-suficiência humana e sofrer a ira deDeus. A atitude de Deus não será determinada pelos pecados do passado, maspelo atual estado do coração de seu povo. O Deus de Tiago é o Deus benevolentedas Escrituras.

4:7  /  Visto que Deus é misericordioso, o passo seguinte é arrepender-se, oqual Tiago apresenta numa série de dez mandamentos. Sujeitai-vos, pois, a Deus 

é o ponto principal. Se haviam tentado manipular a Deus mediante suas orações,se haviam desprezado os mandamentos de Deus conforme exarados nos ensinosde Jesus, isso era sinal de que não se tinham submetido (sujeitado) a Deus. Essaatitude precisaria mudar. Não há graça barata, nenhum perdão de pecados se opecador pretende continuar pecando. Contudo, em havendo sujeição a Deus, agraça está disponível.

O primeiro passo é parar de agradar ao diabo: Resisti ao diabo, e ele fugirá

de vós. Tiago demonstra que, embora o impulso para pecar é algo interno, ceder aesse impulso é entregar-se ao diabo. Os evangelhos são claros neste ponto (e.g.,Mateus 4:1-11; Marcos 8:28-34; Lucas 22:31; João 13:2, 27). Todavia, o diabonão exerce poder sobre o cristão, exceto o poder da sedução. Quando resistimosao diabo, este se comporta como o fez diante de Jesus, no deserto — foge. Amesma experiência será também a do crente, se aprender a dizer não.

(Tiago 4:1-12)

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4:8  / Arrependimento total significa purificação. Há promessa e ao mesmotempo exigência na convocação chegai-vos a Deus, e ele se chegará a vós. É promessa recíproca de Deus: torne-se para ele o que ele se tornará para você (Ma-laquias 3:7), volte-se para Deus, que Deus se voltará para você (Zacarias 1:3).

Deus é um Pai amoroso que aguarda a oportunidade de responder a seu filho emperdão, mas há uma exigência: que o filho se arrependa e se aproxime, chegai-vos. Este termo normalmente indica um ato de culto. Mas toda a adoração naquelaigreja deixa de ser uma aproximação, para alguns, pois sua desarmonia comunitá-ria, enraizada na preocupação com o sucesso mundano, impossibilita tal aproxi-mação, por ser inaceitável. “Aproximem-se de mim”, clama o Senhor. “Adorem-me em espírito e em verdade! Cultuem-me em obediência!” (cf. 1:27).

Prosseguindo a metáfora, clama Tiago: Lavai as mãos, pecadores. O cultono Antigo Testamento exigia mãos cerimonialmente puras (e.g., Êxodo 30:19-21).Esses crentes não estão preparados no momento para o culto, porque estão empecado. O termo pecadores é forte, pois Tiago não aceita desculpas. As açõesdessas pessoas são pecaminosas — de fato são pecado indesculpável. E só muda-rão seu comportamento (“lavarão as mãos”) depois de aceitarem esse fato.

Tiago deixa o comportamento de lado e trata agora do problema interior, aoexigir: vós de duplo ânimo, purificai os corações. Outra vez temos um termo do

cerimonial tirado do Antigo Testamento (cf. Êxodo 19:10), mas a imundícia agoranão está no exterior (e.g., pelo fato de o judeu ter tocado num cadáver), mas nointerior. A natureza da purificação que se faz necessária transparece no termoduplo, o mesmo encontrado em 1:8. Não se aplica a uma pessoa que consciente-mente oculta seus motivos reais, mas a uma pessoa cuja motivação encontra-sedividida. Por um lado, a pessoa deseja seguir a Cristo e ser um bom cristão; poroutro lado, não está disposta a desistir do mundo (cf. Romanos 6:8; 2 Coríntios

5:11-17). As pessoas assim apresentam desculpas pelo fato de seguir os padrõesdo mundo a respeito de influência e modos de ganhar dinheiro (cf. 4:13-17). Con-tudo, Tiago já declarou que Deus não quer repartir tais crentes com o mundo;Deus os deseja para si, com exclusividade total (4:4). Pelo que é preciso que essescrentes se purifiquem por dentro, eliminem os motivos mundanos e busquem aCristo e seu reino, e a mais ninguém.

(Tiago 4:1-12)

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4:9 / O arrependimento adequado mostra sinais característicos. No íntimo, es-ses crentes vão perceber seu estado: senti as vossas misérias; haverá no coraçãodeles um sentimento de dor que se exprimirá nestas palavras: “ai! que é que eufiz?”. Essa tristeza se expressa externamente: lamentai e chorai — marcas de

todos os verdadeiros reavivamentos. O evangelismo moderno tende a produzir umcurto-circuito neste processo, ao prometer  paz antes de o pecador ter percebidotoda a gravidade de sua péssima condição espiritual. Tiago evita essa armadilhacom muito cuidado, convocando esses crentes a que sintam a gravidade de suatranqüila aceitação do pecado.

A lamentação é tão natural que qualquer outra reação seria inadequada:converta-se o vosso riso em pranto, e a vossa alegria em tristeza. Esta ordem

pode ter-se originado nas palavras de Jesus: “Bem-aventurados os que choram,porque eles serão consolados” (Mateus 5:4). Ou, “ai de vós, os que agora rides!pois vos lamentareis e chorareis” (Lucas 6:25). Sem verdadeiro arrependimentoagora, o futuro é sombrio, mas com arrependimento, não haverá choro mais tarde;na verdade, o arrependimento é a única reação racional. Como poderiam os peca-dores entender a gravidade do desagrado de Deus, conforme Tiago o descreve,sem deixar que a alegria falsa lhes desaparecesse do rosto, enquanto o alimentoesfria na mesa, e em jejum e lágrimas se prostrem perante Deus?

4:10 / Finalmente, surge a esperança; quando os pecadores se humilham dian-te de Deus (humilhai-vos perante o Senhor), entristecidos de verdade por causado pecado, a aceitação da parte de Deus é garantida: ele vos exaltará (cf. 4:6). Oquadro em mira é o de alguém prostrado diante de um potentado oriental, a quemroga misericórdia. O monarca inclina-se em seu trono e ergue o rosto daquele quepede, tirando-o do pó do chão. A pessoa levanta-se com alegria, cheia de gratidão,

sabendo que foi perdoada. Esta metáfora ocorre no Antigo Testamento para ilus-trar a ação divina na restauração do destino dos pobres: “Ele põe os humildes numlugar alto, e os que choram são levados para a segurança” (Jó 5:11). Tampoucorejeitará Deus a esses cristãos, se se arrependerem de seus pecados e os abandona-rem.

Tiago encerra esta seção sobre a língua, a sabedoria e os impulsos maus comuma exortação final que se centraliza na natureza do arrependimento que há pou-co ele exigiu.

(Tiago 4:1-12)

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4:11 / irmãos é palavra que indica alívio esperado, ao iniciar novo parágrafo,depois de tão estrondosa denúncia na última seção (4:1-10). No entanto. Tiagoemite novo mandamento de imediato: não faleis mal uns dos outros, ficandodefinido que “falar mal” é “julgar a seu  irmão”. Tiago percebeu que havia

crentes falando mal (negativamente) uns dos outros: “Você já sabe que é que fu-lano (ou fulana) fez?” Pouco importa se as acusações são verdadeiras ou falsas,visto que independentemente de serem verdade ou mentira, divulgá-las a pessoasque não estão envolvidas na situação vai destruir a harmonia da comunidade.

“O amor cobre uma multidão de pecados” (1 Pedro 4:8). O amor não divulgapecados, pelo que os crentes não devem falar negativamente a respeito de seusirmãos.

Tiago justifica seu mandamento sem mencionar Jesus: “Não julgueis” (Ma-teus 7:1-5), mas utiliza um argumento que poderia enfatizar a grande gravidade daofensa, com maior clareza: o crítico das pessoas fala mal da lei e julga a lei. Deque modo o crítico fala mal da lei? A lei em Levítico 19:18 estabelece que deve-mos amar ao próximo como a nós mesmos. O próprio Jesus disse que este é osegundo maior dos mandamentos (Marcos 12:31), cujo significado o Senhor fezderivar da regra áurea (Mateus 7:12). Criticar outra não é amá-la, tampouco é omodo pelo qual desejamos ser tratados. Portanto, criticar alguém implicitamente é

criticar a própria lei: “Não se aplica este caso”. Se isto fosse verdade, o crítico nãomais está simplesmente “guardando” a lei como um observador da lei, mas fez-se juiz. Desprezar a  lei concernente aos comentários negativos parece algo ino-cente, mas por baixo desse desprezo está o espírito de orgulho segundo o qual emcertos casos pode-se “corrigir” as leis de Deus.

4:12 / Tiago sublinha sua tese ao afirmar ousadamente: Há um só legislador

e juiz. Ensinou-nos Jesus que só Deus tem autoridade para julgar (João 5:22-23,30), e todo judeu sabia que foi Deus quem outorgou a lei. Acrescenta Tiago: a-quele que pode salvar e destruir, isto é, “porque nem do oriente, nem do ociden-te, nem do deserto vem a exaltação. Mas Deus é o juiz; a um abate, e a outro exal-ta” (Salmos 75:6-7). Portanto, as duas características seguem juntas. Deus outor-gou a lei; Deus faz cumprir sua lei. Sendo soberano único, tem autoridade sobre avida e a morte.

(Tiago 4:1-12)

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Tu, porém, quem és, que julgas ao próximo? Se foi Deus quem outorgou alei, e se só Deus é juiz, como ousa alguém estabelecer-se como juiz, mediante sualíngua ferina? O criticismo usurpa a autoridade de Deus, como diz Paulo: “Quemés tu que julgas o servo alheio? Para seu próprio Senhor ele está em pé ou cai.

Mas estará firme, pois poderoso é Deus para o firmar” (Romanos 14:4). Portanto,por detrás do espírito crítico está o orgulho. O crítico orgulhoso, em vez de hu-mildemente olhar para sua própria necessidade da graça, usurpa o papel que sócabe a Deus e instala-se como juiz das outras pessoas, como se seu julgamentofora idêntico ao julgamento vindo de Deus, e tivesse grande valor.

 Notas Adicionais #4

4:1 / Acreditam alguns estudiosos que guerras e contendas eram atividadesrevolucionárias judaicas contra Roma (B. Reicke, James (Tiago), p. 45-46. Embo-ra as palavras literais sejam “guerras” e “batalhas”, eram usadas freqüentementecomo metáfora para conflitos, e.g., 1 Clemente 3:2; 2 Timóteo 2:23; Tito 3:9.

prazeres é termo diferente da “concupiscência” de 1:14, mas o sentido é omesmo. Ocorre também em Lucas 8:14; 2 Pedro 2:13 e Tito 3:3. A terminologiadiferente com mesmo sentido é evidência de que a carta originalmente eram ser-mões  independentes, ligados depois numa unidade editorial. Veja ainda O. Sta-

hlin, “ Hedone”, TDNT, vol. 2, p. 909-26.nos vossos membros é  tradução literal; NIV traz “dentro de vós”. Embora

alguns estudiosos acreditem (e.g., J.H. Ropes, James (Tiago), p. 253) que se tratade membros da igreja, o emprego de “membros” noutra passagem em Tiago (3:5,6), o fluxo da argumentação, os paralelismos do pensamento judaico, tudo apontapara os membros do corpo de uma pessoa. O judaísmo acreditava que os mausimpulsos viviam nos 248 membros do corpo humano (a tradição posterior está em

 Aboth de  R. Nathan 16, havendo uma referência anterior em 1 QS 4). Assim, odesejo mau deve ser combatido dentro da pessoa. Em 1  Pedro 2:11 as paixõesguerreiam contra a alma, enquanto no Testamento de Daniel 5  estas guerreiamcontra Deus. Aqui, parece que a alma está vacilante, havendo uma guerra entre os impulsos maus e a sabedoria (i.e., o Espírito, na terminologia paulina e joanina).

4:2  / O texto original não tinha pontuação, de modo que fica difícil recuperara estrutura exata. A maioria dos estudiosos americanos e ingleses entende que otexto grego original foi bem traduzido por NIV (e ECA),

(Tiago 4:1-12)

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entendendo que são como duas linhas paralelas. Veja ainda S.S. Laws,  James

(Tiago), p. 169; J.H. Ropes,  James (Tiago), p. 254-55. Entretanto, os problemasdo grego diminuem se o texto for traduzido conforme demonstramos neste co-mentário, i.e., quatro linhas em paralelismo de duas partes, dispostos num padrão

de quiasmo (a saber, a b b a, dois dísticos de paralelos). As duas últimas linhassão aumentadas para conduzir ao tópico seguinte, sobre oração e mundanismo.Veja ainda J.B. Adamson, James (Tiago), p. 167-168.

O termo “matais” é incomum, pelo que alguns estudiosos entendem que “ma-tais” é corruptela de uma palavra que significa “inveja” ( phoneuete em vez de

 phthoneite), baseados noutras passagens em que isto aconteceu (e.g., um manus-crito de 1 Pedro 2:1), mais o fato que inveja e ciúme enquadram-se bem entre si(e.g., 1 Macabeus 1:16: Gálatas 5:21; 1 Clemente 3:2; 4:7). Veja ainda J. B. A-

damson, James (Tiago), p. 167-68. Todavia, muitas passagens usam “matar” co-mo metáfora dos pecados da língua: “O golpe do chicote levanta a besta, mas ogolpe da língua esmaga os ossos. Muitos caíram ao fio da espada, não tantos,porém, como os que caíram pelos golpes da língua” (Siraque 28:17-18; cf. 28:21).De modo semelhante os cristãos primitivos faziam conexão entre ira, inveja eassassinato (Didaquê 3:2; 1 Clemente 3:4-6:3). Por isso, não é necessário que sepresuma ter havido corrupção textual.

O termo cobiçais é forma verbal de um substantivo usado em 1:14. Trata-sede mais uma prova de que ambas as passagens falam dos mesmos maus desejos,ou maus impulsos.

4:3 / A palavra-chave é prazeres, visto ser a mesma palavra encontrada em4:1 (“prazeres”). NIV traduz “desejos” num versículo e “prazeres” no outro, masem ambos os casos é a mesma palavra grega que significa “desejo de prazeres”,que em 1:14 traduziu-se por “concupiscência”. Isto não apenas encerra bem aseção de 4:1-3, mas também revela que a oração daquela gente não era um atoresponsivo positivo diante de Deus, não era inspirada pelo Espírito Santo, masuma tentativa de manipular Deus, por inspiração de maus impulsos.

Há problema em harmonizar bem os versículos que aparentemente prometemrespostas incondicionais às orações (Mateus 7:7-11; 18:19-20), com os versículosque ensinam que se deve esperar (I.ucas 11:5-13; 18:1-8), ou com os que impõemcondições especiais (Mateus 17:20; 1 João 5:14, 16). Algumas dificuldades po-dem ser resolvidas mediante uma exegese melhor, (e.g., Mateus 18:19-20 tem umcontexto específico que com  freqüência é desprezado), mas  o problema não seresolve. M. Dibelius, James (Tiago), p.219, vê nos versículos condicionais umaresposta às esperanças 

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esfaceladas de um período anterior; mas de modo algum a situação é tão simplesassim, visto que ambos os tipos são encontrados na mesma literatura (e.g., Tiagotraz 1:5-8; 4:3; e 5:14-16). Na verdade, tais passagens servem a funções diferen-tes: as que apresentam versículos incondicionais convocam o crente para exercer

a fé, a confiança e a expectativa. Os versículos condicionais lembram ao crentenegligente que as promessas divinas não são fórmulas mágicas, mas foram dadasaos que amam a Deus e guardam seus mandamentos. A tradição cristã posteriorteve tendência para legalizar tais condições e transformá-las em fórmulas, e.g.,Hermas Vision (Visão), 3.10.6 e Mandate 9.4. 

Veja ainda: A. Murray, With Christ in the School of Prayer  (Com Cristo naEscola da Oração), Old Tappan, N.J.: Fleming H. Revell Co., 1953, esp. p. 66-70;G. Clark, I Will Lift Up Mine Eyes (Levantarei Meus Olhos), Nova York: Harper

& Row, 1935, esp. a primeira metade; R. Foster, Celebration of Discipline (Cele-bração da Disciplina) rev. ed. San Francisco: Harper & Row, 1978, 1988, p. 15-61.

4:4 / Adúlteros e adúlteras no original grego é “adúlteras”. Esta forma femi-nina perturbou os comentaristas até perceberem que ela faz paralelismo a umatradição do Antigo Testamento (e.g., Isaías 50:1; Jeremias 13:27; Ezequiel 16:38;23:45; Oséias 9:11). A forma plural é empregada porque a igreja como um todo évista como um remanescente fiel. São alguns indivíduos que apostatam da verda-de representada pela igreja. Veja ainda Jesus (Mateus 12:39; 16:4; Marcos 8:38) eW. Eichrodt, Theology of the Old Testament  (Teologia do Antigo Testamento)Filadélfia: Westminster, 1961, vol. 1, p. 67-68, 250-58.

Paulo emprega a palavra “mundo” como entidade que se opõe a Deus em 1Coríntios 1-3; Efésios 2:2; Colossenses 2:8, mas essa idéia caracteriza melhorJoão (e.g., João 13—17). Idéias semelhantes encontravam-se em algumas seçõesdo judaísmo que tinham mentalidade de remanescente, e.g., Jubileu 30:19-20; 1Enoque 48:7; 108:8. Jesus salienta em Marcos 10:42-45 que o mundo opera se-gundo um sistema de valores totalmente diferente do sistema do reino; portanto,não podem misturar-se. Veja ainda J. Wallis, The Call to Conversion (A Chamadapara a Conversão), San Francisco: Harper & Row, 1981; J.H. Yoder, The Politics

of Jesus (O Governo de Jesus), págs. 11-63, 115-62.4:5 / Jesus declarou também que toda a Escritura seria cumprida (Mateus

5:17-19).É impossível saber a fonte dessa Escritura. S.S. Laws,  James (Tiago), p.

177-179, argumenta que é alusão a Salmos 41:2 ou 83:3; todavia, nem a forma dapergunta, nem a proximidade das alusões apóiam sua tradução.

(Tiago 4:1-12)

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Outros estudiosos têm sugerido que houve uma citação livre, só pelo sentido, doAntigo Testamento, ou usou-se uma passagem dele, que desconhecemos. Entre-tanto, a fórmula diz a Escritura sempre introduz uma citação direta, sempre queusada no Novo Testamento. Não se encontrou nenhuma passagem, em versão

alguma, que seja idêntica a esta citação. Isto talvez signifique que se perdeu umlivro, que teria sido a provável fonte, o que é menos incomum do que a citação deJudas, de 1 Enoque (Judas 14 = 1 Enoque 1:9).

O grego da citação é ambíguo. As duas traduções mais prováveis são:O espírito que ele fez habitar em nós cuida intensamente dos ciúmes (texto deNIV, cf. GNB: “O espírito que Deus colocou em nós está cheio de ferozes [ou ‘volta-se para invejosos’] desejos”), ou “Deus ciumentamente almeja o espírito

que ele criou para viver em nós” (primeira alternativa de NIV; a segunda alterna-tiva de NIV, “o Espírito que ele fez habitar em nós almeja ciumentamente”, émenos provável do que as outras duas, considerando que abriga os problemasdessas duas, e nenhuma das suas excelências).

A primeira alternativa não se enquadra bem no contexto imediato, o da inimi-zade de Deus, porém faz sentido se Tiago estiver referindo-se a 4:1-3 e aos mausimpulsos. A segunda emprega um termo difícil para inveja (ou ciúme), mas, comoTiago já usou esse termo de modo negativo em 4:2 (e em 3:13-18), é possível que

ele tenha feito mudança deliberada de vocabulário. Duas linhas de raciocínio a-pontam para a segunda tradução. Primeira linha: há precedentes judaicos, pois oFragment of Targum (Fragmento de Targum) sobre Gênesis 2:2 diz o seguinte:“No sétimo dia a  Menra [palavra] de Iavé almejou ardentemente a obra que ter-minara”. Outras tradições judaicas também se referem à necessidade de a pessoamanter puro seu espírito: “Bem-aventurado o homem que não polui o EspíritoSanto de Deus, que nele foi colocado e soprado, e bem-aventurado aquele que o

devolve a seu Criador tão puro como quando no dia em que lhe fora confiado”(Testamento Hebraico de Naftali 10:9). Segunda linha: muitos autores cristãosinterpretavam Tiago dessa maneira, pois o  Mandate de Hermas 3.1-2 ordena averdade, “de tal maneira que espírito que Deus fez habitar nesta carne seja enten-dido por todos os homens como verdadeiro” (cf. Mandate 5.2-5; 10.2.6; 10.3.2).Veja ainda S.S Laws, “ Does Scripture Speak in Vain?” (Fala em Vão a Escritu-ra?), cuja opinião é contrária: ou O.J.F. Seitz, “Two Spirits in Man: An Essay in

 Biblical Exegesis” (Dois Espíritos no Homem: Ensaio em Exegese Bíblica).

4:6 / A passagem de Provérbios 3:34 também é utilizada em 1 Pedro comoargumento para submissão mútua e humildade, num contexto de

(Tiago 4:1-12)

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resistência contra o diabo (5:5). Essa passagem também é usada em 1 Clementenuma discussão sobre a santidade, e contra a calúnia e o mexerico. Há necessida-de de “unir aqueles a quem Deus concedeu graça”, e assim, “vamos revestir-nosde harmonia em humildade e auto-controle” (1 Clemente 30:2-3). O texto de

Clemente é tão parecido com o de Tiago, que, ou Clemente leu Tiago, ou ouviu omesmo ensino oral de Jesus, usado por Tiago.

4:7 / A idéia de sujeitar-se, sujeitai-vos, é muito importante nas Escrituras.Primeiramente, há a idéia de submissão à criação de Jesus (com base em Salmos8:7): 1 Coríntios 15:27-28; Efésios 1:22; Hebreus 2:8. A seguir, há a submissãomútua dos crentes entre si, Efésios 5:21,  que especifica os jovens sujeitos aosanciãos (1 Pedro 5:5), as esposas aos maridos (Efésios 5:22), os cristãos às autori-

dades governamentais (Romanos 13:1). Acima de tudo fica a obediência de todosos crentes a Deus (e.g., Hebreus 12:9) ou a Cristo (Efésios 5:24), que representa aobediência absoluta.

Resisti ao diabo está em 1 Pedro 5:8-9 e em Efésios 6:13. É ordem comumnos Testamentos dos Doze Patriarcas (e.g., Simeão 3:3; Daniel 5:1; Aser 3:3).Acrescenta o autor cristão Hermas: “‘[O diabo] não pode’, disse ele, ‘dominar osservos de Deus que nele esperam de todo o coração. O diabo pode lutar, mas nãopode prender. Portanto, se você resistir a ele, ele fugirá derrotado, e em desgra-

ça’” (Mandate 5.2). A forma de resistir ao diabo são, pois (nos Testamentos), asboas obras, ou o compromisso de fidelidade total a Deus (Hermas). Veja ainda H.Berkhof, Christ and the Powers (Cristo e os Poderes), Scottdale, Penn.: HeraldPress, 1962 ou C. Williams,  Descent of the Dove (A Descida da Pomba), GrandRapids: Wm. B. Eerdmans, 1939.

4:8  / O ato litúrgico chegai-vos a Deus é encontrado no Velho Testamento(e.g., Êxodo 9:22; 24:2; Deuteronômio 16:16; Salmo 122, 145), em que o adora-

dor na verdade se aproximava da teofania (como aconteceu a Moisés diante dasarça ardente), ou se aproximava do templo (habitação de Deus), e esse ato pre-sumia ter havido purificação cerimonial prévia (cf. 2 Crônicas 26: 16-20, com orei Uzias). Em Hebreus (4:16; 7:19) o termo é empregado de modo metafórico emreferência à ousadia do cristão ao orar e ao buscar perdão, baseado na obra purifi-cadora que Cristo já executou por nós.

As purificações litúrgicas eram muito comuns no Antigo Testamento (cf. R.Meyer e F. Hauck, “Katharos”, TDNT, vol. 3, p. 421-25), mas até mesmo nesses

casos o ritual litúrgico tornava-se um símbolo metafórico da pureza moral: “La-vai-vos, e purificai-vos. Tirai a maldade dos

(Tiago 4:1-12)

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vossos atos de diante dos meus olhos! Cessai de fazer o mal, e aprendei a fazer obem” (Isaías 1:16-17).

Essa combinação entre mãos e corações também se encontra no AntigoTestamento: Salmos 24:4; 73:13.

Purificai — a purificação era usada tanto no Antigo como no Novo Testa-mento como preparativo litúrgico para alguém que haveria de prestar culto aoSenhor (Números 8:21; Josué 3:5; Crônicas 15:2; João 11:55; Atos 21:24, 26).Mas Jesus nos fala sobre os “puros de coração” como “bem-aventurados” (Mateus5:8), com o sentido de pureza moral, e não cerimonial; cf. 1 Pedro 1:22 e 1 João3:3.

pecadores são os desobedientes a Deus (Salmos 1:1-5; 51:15).4:9  /  Conquanto a expressão senti as vossas misérias não se encontre em

nenhuma outra passagem do Novo Testamento, um termo que se lhe relacionaocorre em Romanos 3:16; 7:24; Apocalipse 3:17. A obra de Hermas, Similitudes

1.3, emprega “homem tolo e de mente dobre e miserável”, fazendo uma combina-ção entre duplo ânimo e miserável (vossas misérias).

Lamentai e chorai são verbos usados com freqüência no Antigo Testamento:Salmos 69:10-11; Isaías 32; 1; Jeremias 4:3; Amós 5:16; Malaquias 3:14. Aquitemos lamentações antecipadas em face do juízo vindouro (cf. Amós 8:10).

Riso e alegria associam-se aos tolos (Provérbios 10:23; Siraque 21:20), sen-do as marcas de uma vida profana, a que falta a tensão provocada pelo mundo.Veja ainda K.H. Rengstorf, “Gelao”, TDNT, vol. 1, p. 658-61.

O.J.F. Seitz , “The Relationship of the Shepherd of Hermas to the Epistle of 

 James“ (A Relação entre o Pastor de Hermas e a Carta de Tiago), argumenta queTiago, 1 Clemente 23:2-4, 2 Clemente 11:2-3, e Hermas, Similitudes 1.3 e Visions

(Visões) 3.7.1, todos usam a mesma obra apócrifa desaparecida. Esta é uma espe-culação interessante, mas Seitz não prova que isso de fato ocorreu.

Quanto à lamentação e ao choro como sinais de arrependimento, veja a litera-tura sobre reavivamentos, e.g., Jessie Penn-Lewis, The Awakening in Wales (Rea-vivamento em Gales), Fort Washington, Penn.: Christian Literature Crusade,1962, sobre o reavivamento galês; ou R. Lovelace, The Dynamics of Spiritual Life

(Dinâmica da Vida Espiritual), Downers Grove Ill.: lnterVarsity Press, 1979, quedá um tratamento mais sistemático aos reavivamentos.

4:10  / Quanto a exaltará veja ainda Jó 5:1; 22:29; Salmos 49:4; Provérbios3:34; 2925; Ezequiel 17:24; 21:31. Contudo, as idéias de Tiago provavelmenteprovieram das palavras de Jesus: Mateus 23: 12; Lucas 4:11; 18: 14.

4:11 / O mandamento não faleis mal pode ser considerado tanto em

(Tiago 4:1-12)

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relação à calúnia como em relação à crítica. No Antigo Testamento em grego àsvezes esse termo significa “falar falsamente de uma pessoa” (Levítico 19:16;Salmos 101:5; Provérbios 20:13; Miquéias 3:7), mas também significa críticadestituída de amor, ou julgamento negativo, os quais poderão ser verdadeiros, ou

falsos (Números 12:8; 21:7; Salmos 77:19). No período intertestamentário, o Tes-tamento de Issacar 3:4 faz conexão entre esse termo “censura”, “ser fuxiqueiro” e“inveja”. Paulo de igual maneira rejeita a crítica maldosa: Romanos 1:30 chama-apagã, enquanto 2 Coríntios 12:20 relaciona-a à murmuração, ao mexerico ou fuxi-co, como o faz 1 Pedro 1:12; 3:16. Mais tarde, 1 Clemente 30:3 e 35:5 rejeita acrítica maldosa, ligando-a ao mexerico e contrastando-a com “revestindo-nos deharmonia em humildade”. Hermas tem muito que dizer a respeito da calúnia( Mandate 8.3; Similitude 9.23.2-3); por exemplo, as pessoas de mente dobre e os

caluniadores jamais “gozam de paz entre si, mas estão continuamente em litígio”(Similitude 8.7.2). “A difamação é um mal; é um demônio sem descanso, quenunca tem paz, mas que habita na dissensão.” Seu oposto é a simplicidade ( Man-

date 2.1-3). Veja ainda S.S. Laws,  James (Tiago), p. 186-87; W. Mundle, “ Revi-

le” (Xingar), NIDNTT, vol. 3, p. 345-46.O mandamento para que não julguemos encontra-se reiteradamente no Novo

Testamento: Mateus 7:1-5; Lucas 6:37-42; Romanos 2:1; 14:4; 1 Coríntios 4:5;5:12. O julgamento condenável não inclui o uso adequado do processo disciplina-dor da comunidade (Mateus 18:15-20; 1 Coríntios 5:1-5), nem o uso apropriadoda crítica construtiva amorosa, em particular, por parte dos presbíteros e de outroscrentes (e.g., Gálatas 6:1ss). Veja ainda M. Jeschke,  Discip1ining the Brother  (Disciplinando o Irmão), Scottdale, Penn.: Herald Press, 1979, excelente tratadosobre o assunto.

4:12 / No Antigo Testamento grego, há referências a Deus como quem ou-torga a lei, ou legislador (Salmos 9:21, na Septuaginta [= Salmos 9:20, no he-braico]. “Nomeia-te [a ti mesmo] ó Senhor, legislador sobre eles, que as naçõessaibam que são meros seres humanos”). O Novo Testamento também se refere aDeus como doador da lei: (Hebreus 7:11) “sob ele o povo recebeu a lei” [da partede Deus]; 8:6 [“quanto é mediador de superior aliança, que está firmada em me-lhores promessas”] — em ambos os casos a tradução de NIV tem linguagem me-lhor). Menciona-se com freqüência a autoridade de Deus para julgar: Gênesis18:25; 1 Samuel 2:6; 1 Reis 5:7; Isaías 33:22; Mateus 10:28; Hebreus 5:7. A obrade Hermas,  Mandate 12.6.3, refere-se a Deus como “aquele que detém todo opoder, tanto para salvar como para destruir”. Portanto, Tiago menciona uma tradi-ção tão arraigada e tão grande, que não tem necessidade de comprová-la.

(Tiago 4:1-12)

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5. Oração pela Perseverança e pela Cura (Tiago 4:13 - 5:20)

Por todo o seu livro, Tiago trata das causas reais da desarmonia dentro da co-

munidade. Na seção anterior, Tiago tratou das reclamações, das críticas e dasraízes mundanas dessa comunidade (3:1—4:12). Agora, Tiago volta-se para outrotema, a prova das riquezas. O pobre é de todo dependente e sabe disso. O pobrepode vir a ser consumido pela inveja e pela ambição, mas os crentes têm maiorprobabilidade de recorrer à oração e à humilde dependência de Deus. O rico, po-rém, pode ser seduzido a entregar-se a uma falsa sensação de segurança, e à gran-de confiança no poder do dinheiro, pelo relativo conforto que lhe aufere sua situa-ção na vida. Esse é o problema que Tiago discute agora.

4:13 / E agora, vós mostra que Tiago imprime nova direção a seu pensamen-to. Os que o ouvem são um grupo de negociantes que traçam planos típicos: Hojeou amanhã iremos a tal cidade, lá passaremos um ano, negociaremos e ga-nharemos. Tiago não diz que essas pessoas são ricas, visto que ele reserva essapalavra para os incrédulos (2:6 e 5:1). Essas pessoas são crentes que podem nãoser exatamente ricas, mas pelo menos são da “classe média”.

Os planos que esses homens de negócio estão traçando não são impiedosos.Fazem planos de viagens (talvez dependam de quando o navio ou a caravana vaidar partida). Têm em mente uma cidade-objetivo onde planejam vender ou nego-ciar lucrativamente sua mercadoria (cereais, vinho, azeite ou especiarias, em setratando da Palestina). Ali deverão empreender negócios (negociaremos, o quesignificaria comprar e vender mercadorias). Imaginam que a expedição comercialdurará um ano, no fim do qual seus estoques de produtos estarão exauridos. Cal-culam seus lucros (ganharemos não dá a entender que esperam níveis incomu-

mente elevados de lucros). Parece que não há nada errado nesses planos. No co-mércio, o negociante precisa planejar com bastante antecipação: programação deviagens, projeções de mercado, esquema de datas e previsões de lucratividadeformam o cerne

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do “marketing” — em todas as eras. Qualquer homem de negócios honesto plane- jaria suas atividades mercantis exatamente da mesma maneira — quer pagão, quercristão, quer judeu — e é esse o problema de Tiago com referência a tais planos:nada se declara, de modo algum, a respeito de seus desejos quanto ao futuro, ao

uso que farão do dinheiro, ou quanto à sua maneira de negociar, que se pudesseafirmar ser diferente do resto do mundo. Pode ser que o culto que eles prestam aoSenhor seja exemplar, e que sua moralidade pessoal seja impecável, mas, no queconcerne a negócios, pensam exclusivamente de acordo com os padrões do mun-do.

4:14 / Em contraste com o caráter racional e seguro de seus planos, sobressai

a insegurança desta vida: Ora, não sabeis o que acontecerá amanhã. De fato, avida é eminentemente efêmera: O que é a vossa vida? É um vapor que aparecepor um pouco, e logo se desvanece. Os planos estão traçados; as projeções lan-çadas. Todavia, tudo gira em torno de uma vontade superior à deles, a de Deus,que não foi sequer consultado no planejamento. Naquela noite mesmo uma doen-ça pode derrubar alguém; de súbito, seus planos se evaporam. Os planos deles seresumirão numa pequena viagem até a sepultura fria, no interior de um esquife.Esses homens assemelham-se ao rico louco da parábola de Jesus, o qual ganhara

grandes margens de lucro honesto mediante investimentos agrícolas em sua fa-zenda. Sentindo-se seguro, o ricaço traça planos para uma aposentadoria confor-tável “Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma” (Lucas 12:16-21). Ao pensar unicamente numa esfera mundana, os negociantes crentes da cartade Tiago tinham uma falsa sensação de segurança. Era preciso que encarassem amorte, e percebessem que não tinham nenhum controle desta vida.

4:15 / Em vez de descansar na falsa segurança do modo de pensar mundano,precisam elevar o pensamento a um nível mais alto: Se o Senhor quiser, vivere-mos e faremos isto ou aquilo. Naturalmente, era assim que Paulo vivia: Atos18:21; Romanos 1:10; 1 Coríntios 4:19; 16:7; Filipenses 2:19, 24. Na verdade, sóDeus é quem determina se viveremos ou não. Só Deus determina se seremos ca-pazes de fazer isto ou aquilo. Reconhecer isto é reconhecer a finitude humana e

(Tiago 4:13-5:20)

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a soberania divina. Todavia, esse reconhecimento não elimina o planejamento.Aquelas ações descritas pelos verbos viveremos e faremos devem enquadrar-senum plano traçado segundo a vontade de Deus.

A exortação de Tiago não se limita a acrescentarmos um “se o Senhor quiser”

no final de cada plano. Em vez disso, significa planejar juntamente com Deus.Cada plano é avaliado segundo os padrões e objetivos de Deus; cada plano é colo-cado diante de Deus com oração, dedicando-se o tempo apropriado a ouvir  asidéias de Deus. Neste caso, a expressão “se o Senhor quiser” é uma crença sincerade que Deus de fato quer, e não tão somente uma esperança piedosa de que Deusnão há de interferir. Os planos que traçamos com bastante oração criteriosa, obje-tivando a vontade de Deus, não precisam sofrer de insegurança.

4:16  / Entretanto, aqueles crentes estavam longe de planejar em espírito de

oração, pois dizem: Vós vos jactais das vossas presunções. Ora, toda jactânciatal como esta é maligna. A palavra-chave aqui é jactância, visto que indica umaatitude interna. O orgulho é a vindicação de quem se jacta em vão, de quem vin-dica uma habilidade que na verdade não possui. Trata-se de vindicação de contro-le e de posição na vida mencionada em 1 João 2:16, mas tal vindicação é falsa,porque o mundo em cujo contexto a jactância é proferida está desaparecendo.

Temos aí as vindicações presunçosas e o comportamento cheio de ostentaçãopelos quais os homens procuram impressionar-se uns aos outros e, com freqüên-cia, acabam iludindo-se uns aos outros” (C.E.B. Cranfield, The Epistle to the Ro-

mans [A Carta aos Romanos], Edimburgo, 1975, vol. 1, p. 132). Vós vos jactaisem vossos planos de grandeza oca: “Você devia ver o negócio que estou prestes afechar”, ou talvez umas palavras que ressoam mais modestas: “Pois é, amanhã ireia Roma. Meu agente estabeleceu uma loja finíssima perto do fórum. Já se diz que

é a loja mais sofisticada da região”. E assim prossegue a jactância: menção denomes de pessoas importantes, alusões a lugares e a pessoas de grande poder,vaidosa descrição de negócios que serão realizados, mas tudo isso resumindo-seem jactância vazia. porque só Deus controla nossas vidas. Tiago declina essa ati-tude de modo severo: é maligna, porque rouba de Deus o direito honroso que lhecabe como Senhor soberano, e exalta o mero homem,

(Tiago 4:13-5:20)

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como se este fora Deus. Todo e qualquer plano concebido com toda confiança,mas fora da vontade de Deus, sem o discernimento da oração e da meditação, nãoé tolice apenas — é grave pecado.

4:17 / A fim de resumir seu pensamento, Tiago acrescenta um provérbio con-clusivo que alguns supõem poderia ter sido um ensino de Jesus, por causa do tome do tema: Aquele, pois, que sabe o bem que deve fazer e não o faz, cometepecado. Aparentemente, apenas reprova o pecado da omissão: Quando uma pes-soa sabe o que deveria fazer (e.g., dar algo a um pobre), mas negligencia esse atode caridade, não desperdiçou apenas uma oportunidade de obedecer — tal pessoapecou. No entanto, o contexto levanta esse ensino da arena da verdade genérica e

coloca-o nas vidas desses negociantes. Há claramente algo que eles “sabem” que“devem” fazer e pelo que são responsáveis (Lucas 12:47-48), que é obedecer aDeus e segui-lo nos negócios. Entretanto, seus interesses comerciais com freqüên-cia os induzem a planejar segundo os padrões do mundo, e a acumular bens, àsemelhança do rico louco (Lucas 12:13-21). Nas Escrituras, fazer o bem freqüen-temente é praticar atos de caridade (Tiago 1:21-25 e Gálatas 6:9). Portanto, Tiagopode estar sugerindo que eles planejam segundo o mundo porque são motivadospelo mundo, visto que Deus tem seu próprio modo de investir dinheiro: dá-lo aos

pobres (Mateus 6:19-21). Se levassem a Deus em consideração, não estariam,com certeza, tentando melhorar seu padrão de vida; Deus os conduziria ao alíviodos que sofrem ao seu redor, isto é, a fazer o bem.

Tendo falado a cristãos cujos corações estavam sendo seduzidos pelo mundo,Tiago dirige a atenção, a seguir, aos incrédulos ricos. Tiago os condena sem rebu-ços, com linguagem parecida à do Senhor Jesus (Lucas 6:20-26), a fim de desviaros cristãos da sedução das riquezas, e prepará-los para suportar o teste do sofri-

mento nas mãos dos ricos.

5:1 / Agora, vós, ricos. Ao chamar estas pessoas de ricos, Tiago as classificacom os incrédulos (não-cristãos) que cita em 2:6 e 1:9. Tais pessoas, diferente-mente das citadas em 4:14, estão do lado de fora do redil, pelo que não há pala-vras confortadoras para elas. Poderá haver perdão se se desviarem de seus mauscaminhos, se se arrependerem e se unirem à comunidade dos cristãos, mas Tiagonão expressa

(Tiago 4:13-5:20)

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esperança de que isto venha a acontecer. Sua intenção é encorajar a comunidadecristã, e não objetiva converter os ricos.

A convocação é a seguinte: chorai, e pranteai, por causa das misérias quesobre vós hão de vir. Da mesma forma que os cristãos pobres devem regozijar-se

nas provações (1:2, 12), assim também esta alegria antecipada tem paralelo natristeza antecipada para os ricos. No meio de sua riqueza e luxo deverão lamentar-se, chorando em profunda tristeza como em resposta à morte e ao infortúnio (e.g.,Isaías 15:1-6). Tiago percebe muito bem que no momento os ricos não estão so-frendo, pelo que aponta as misérias que sobre vós hão de vir. Têm muito paracomer, desfrutam de razoável segurança econômica, boa situação social e poder.Porém, à semelhança de Isaías (Isaías 13:6), Tiago vê com olhos divinos, e enxer-

ga a nuvem do furacão escuro, prenunciador do dia do Senhor, que os derrubará.

5:2-3  / A advertência inicial leva-os a uma descrição vívida de sua miséria,vista através de olhos proféticos. As vossas riquezas estão apodrecidas retratade modo geral o estado dessas pessoas: toda a segurança que sentem, todos osalicerces em que basearam seus sonhos e esperanças apodreceram de vez, segun-do a perspectiva eterna de Tiago. Tal asserção torna-se mais específica quandodois tipos muito comuns de riquezas são mencionados. Primeiramente, as vossas

vestes estão comidas de traças. Têm os guarda-roupas cheios de vestuários quepoderiam ter sido usados pelos pobres, mas antes ainda de parecerem gastos douso, as traças dão cabo dessas roupas. Hoje, uma pessoa poderia facilmente dizer:“Não há remédio, suas roupas estão completamente fora da moda”. Em segundolugar, o vosso ouro e a vossa prata se enferrujaram. Essa gente guardou suafortuna, que não ajuda nem aos donos nem aos pobres, pois o dinheiro foi guarda-do para o “dia da necessidade”. A “ferrugem” é prova de que se trata de riqueza

inútil. Hoje, quando alguém guarda seu dinheiro no banco, alguém lhe dirá: “seudinheiro está sendo corroído pela inflação”. Portanto, o ensino de Tiago é seme-lhante ao de Jesus: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem des-troem e onde os ladrões arrombam e roubam. Mas ajuntai tesouros no céu, ondenem a traça nem a ferrugem destroem e onde os ladrões não arrombam nem rou-bam. Pois onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração” (Ma-teus 6: 19-21).

(Tiago 4:13-5:20)

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Esse tesouro acumulado produz uma conseqüência: a sua ferrugem dará tes-temunho contra vós, e devorará a vossa carne como fogo. É uma imagem ante-cipada do julgamento final, como se as moedas oxidadas e as vestes corroídas detraça estivessem sendo exibidas perante o tribunal. Tais evidências condenam os

usurários, pois, houvesse Deus sido servido, as mercadorias emprateleiradas teri-am sido usadas: as roupas para vestir os nus e os alimentos para alimentar os fa-mintos. A semelhança do rico da parábola (Lucas 16:19-31), esses serão atiradosno inferno, onde o fogo “nunca se apaga” (Marcos 9:43). Tiago pinta esse quadrocomo se a própria ferrugem que lhes devorou a prata e o ouro agora lhes estivessecorroendo a alma, como um fogo, representando, talvez, o tormento da culpa di-ante do tesouro desperdiçado que os condena eternamente.

Em certo sentido, o dia do julgamento já chegou: Entesourastes nos últimosdias. Tiago está convencido de que, quando Jesus vier, o tempo estará totalmentemodificado, visto que ele disse o seguinte: “o reino de Deus está próximo” (e.g.,Marcos 1:15), o que indicava que a velha era já havia passado, e inaugurava-se anova, a dos últimos dias. Quando o Espírito desceu, no Pentecostes, Pedro viu alium sinal dos últimos dias: “Nos últimos dias, diz Deus, do meu Espírito derrama-rei sobre toda a carne” (Atos 2:17; e também 2 Timóteo 3:1; Hebreus 1:2). O fimnão está num futuro distante para a igreja, visto que ela vive no novo tempo vin-

douro, pelo fato de servir ao seu Rei. Neste contexto, o acúmulo de riquezas étragicamente irônico. Os ricos juntam e investem como se eles, ou seus descen-dentes, viverão para sempre. No entanto, os últimos dias (a saber, o começo dofim), já chegaram. Tiago vê umas figuras como que trágicas: homens e mulheresricamente vestidos, banqueteando-se enquanto conversam sobre seus investimen-tos. Na realidade, já perderam o único jogo importante, que não se pode perder.

5:4 / Além do mais, Tiago sabe que as riquezas acumuladas em geral indicaminjustiça. Na Palestina, em geral, tratava-se de injustiça contra os trabalhadoresrurais. Vede! o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, eque por vós foi retido com fraude, está clamando. O sistema econômico daPalestina utilizava trabalhadores braçais diaristas, em vez de escravos, em parteporque o escravo 

(Tiago 4:13-5:20)

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passaria a custar mais, caso ele convertesse ao judaísmo. Esses trabalhadores con-tratados eram os filhos jovens das famílias de camponeses expulsas de suas terraspor causa de bancarrota, quando as hipotecas das propriedades venceram e nãohavia como pagá-las. Tais trabalhadores viviam da mão à boca. O salário de hoje

é para comprar o desjejum de amanhã. Quando o salário não era pago no fim dodia, a família passava fome. A despeito de uma porção de mandamentos no Anti-go Testamento (Levítico 19:13; Deuteronômio 24:14-15), os ricos descobriam

 jeitos de reter o salário dos trabalhadores (e.g., Jeremias 22:13; Malaquias 3:5). Ofazendeiro poderia retê-lo até o fim da época de colheita, a fim de garantir que ocamponês viria trabalhar; poderia apelar para uma minúcia técnica a fim de provarque o contrato não foi cumprido; ou poderia alegar estar cansado demais para

pagar o salário no fim do dia. Se o trabalhador reclamasse, o patrão o poria nalista negra; se fosse aos tribunais, o rico teria os melhores advogados. Assim éque Tiago retrata o dinheiro no bolso dos ricos, dinheiro que deveria ter sido usa-do para pagar os trabalhadores que clamam por justiça.

Os clamores não deixaram de ser ouvidos por alguém: os clamores dos cei-feiros chegaram aos ouvidos do Senhor Todo-poderoso. Visto tratar-se de cei-feiros, não pode haver desculpa de falta de dinheiro; há montões de cereais paraserem vendidos. O trabalhador faminto apelou aos prantos para o único recurso

que tem: Deus. Ao mencionar o Senhor Todo-poderoso, Tiago lembra seu leitorde Isaías 5:9, onde as pessoas que adquirem grandes latifúndios são condenadas.Todos os judeus sabiam o que acontecia às pessoas condenadas por Isaías, e tam-bém sabiam que os ouvidos de Deus estão abertos para os pobres (Salmo 17:1-6;18:6; 31:2), de modo que a declaração de Tiago inclui a ameaça de julgamento.

5:5 / A vida do rico contrasta violentamente com o sofrimento do pobre: De-

liciosamente vivestes sobre a terra, e vos deleitastes. Muitos desses ricos pode-riam protestar, afirmando ser da classe média, e que haviam merecido os prazeresque desfrutavam. Tiago os contempla da perspectiva dos pobres e chama aquilode extravagância, o mesmo que 1 Pedro 5:6 taxa de vício. Na verdade é extrava-gância em face do sofrimento de outros. Por isso, acrescenta Tiago:

(Tiago 4:13-5:20)

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Cevastes os vossos corações no dia de matança. A palavra no grego tem doissentidos. Por um lado, significa: “Vós tendes vos divertido no dia de matança”.Visto que a carne fresca logo seria salgada, ou posta para secar, era costume apessoa que sacrificasse um animal dar uma grande churrascada. Mas, por outro

lado, Tiago tem em mente o duplo sentido que Tiago compreende muito bem, eque NIV e ECA expressam com perfeição. Os ricos têm abundância para comer;gozam a vida. Mas trata-se do dia bíblico da matança, o dia em que Deus vai li-quidar seus inimigos (e.g., Isaías 30:33; 34:5-8). Gozaram a vida, como se fossedia de matança; no entanto, é irônico: eles são agora o novilho cevado, e o facãode Deus está no pescoço deles.

5:6 / A fim de enfatizar o destino horroroso, e tão próximo, Tiago acrescentauma acusação final: Condenaste e mataste o justo, que não vos resistiu. A pri-meira parte dessa acusação é familiar, visto ser acusação de assassinato judicial,por meios ativos ou passivos. De forma ativa os tribunais costumam executarpessoas justas, que lhes eram inconvenientes. De modo passivo, os tribunais cos-tumavam espoliar os pobres, tirando deles o meio de vida, isto é,  a fazenda ououtros meios de sustento. Tudo era perfeitamente legal e acontecia apenas que “opobre havia morrido” de doenças causadas pela subnutrição. Deus chama a ambos

os tipos de morte assassinato.A segunda metade da acusação é um tanto difícil. É verdade que o pobre nem

sempre consegue resistir aos ricos e poderosos, de modo que com freqüência nemchega a protestar. Além do mais, a tradição do evangelho é de não resistir ao mal(Mateus 5:59), de modo que essa não-resistência poderia ser vista como a chegadado novo tempo e do julgamento final. Todavia, o tom da passagem exige umapergunta: “eles não resistem contra você?” Na terra, parece que os pobres não

resistem, o rico não ouve o clamor e o gemido em oração que antecede a morte dopobre. Contudo, Tiago sabe que isso não é o fim: no céu os que foram injustiça-dos continuam a clamar “Até quando?” (Apocalipse 6:9-11), porque têm umaaudiência perante o próprio Deus. Na verdade, temos aqui uma resistência efetiva,porque Deus vai ouvir.

Tiago encerra sua argumentação. Só lhe falta agora dizer um resumo (5:7-11)e acrescentar uma conclusão epistolar (5:12-20: votos, desejos

(Tiago 4:13-5:20)

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de boa saúde e propósitos). Aqui é que seu coração de pastor se manifesta, quandoTiago mostra à comunidade como viver durante aqueles “últimos dias”.

5:7 / Sede, pois, irmãos pacientes é  seu primeiro conselho. Paciência aqui

significa “perseverança”, “permanecer firme diante das provocações”. É a mesmacoisa que a habilidade para suportar “as provações” de 1:2 e 1:12. A resposta àinfidelidade na comunidade, ou à perseguição que vem de fora não é revidar, mascontinuar a ser fiel. A vida do discipulado constitui sua própria testemunha. Damesma forma que a paciência e a perseverança (i.e., nada de compromisso com omal, nem confrontação), a vida cristã tem exigências grandes.

A paciência é para durar até a vinda do Senhor.  Isto não significa que o

crente não precisa envidar esforços para melhorar as condições ruins prevalecen-tes hoje: a testemunha fiel procura melhorar as condições no mundo como de-monstração de sua nova vida em Cristo, mas a esperança do cristão está na segun-da vinda do Senhor. O mundo não será destruído nem o mal vencido enquantoCristo não voltar pessoalmente a fim de desarraigá-lo e destruí-lo.

Não é fácil exercer a paciência, de modo especial quando a pessoa está so-frendo. A fim de estimular-lhes a esperança, Tiago usa o exemplo do lavrador.Para o lavrador palestino, as colheitas eram sua própria subsistência e, portanto, o

precioso fruto da terra. Ele gastara suas energias arando, semeando e espantan-do os pássaros. Havia semeado as sementes que sua família poderia ter comido.Esperara pacientemente o outono, ou até receber as primeiras chuvas (outubro-novembro), antes de semear. Após haver semeado, esperara a primavera,  oudepois, as últimas chuvas (março-abril) que amadurecem os frutos. Durante todoesse tempo, seus estoques alimentícios estiveram minguando cada vez mais; nãoera incomum que os alimentos fossem racionados e as crianças se  pusessem a

chorar de fome durante um mês ou dois, antes da colheita. Quanto mais demoras-sem as chuvas, pior a situação. Entretanto, de nada adiantava a preocupação: Eletinha de aguardar as condições que não estavam sob seu controle.

5:8 / Os crentes também devem exercer a paciência: sede vós também paci-entes. À semelhança do lavrador, o crente investe a vida

(Tiago 4:13-5:20)

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no que resultará após longa espera. À semelhança do lavrador, reduzir a tensão(mediante compromisso com o mal ou ira) seria autodestruir-se. O crente precisacolocar toda sua esperança em condições fora de seu controle, esperando comtoda paciência que o Rei regresse.

Enquanto esperam, os crentes devem firmar-se: fortalecei os vossos cora-ções. Enquanto aguardam, as dúvidas devem ser combatidas a todo custo. Asdefesas internas devem ser constantemente verificadas, o coração fortalecido anteo sofrimento.

À guisa de encorajamento maior, acrescenta Tiago: a vinda do Senhor estápróxima. Para o rico, estas não são boas notícias (5:3-5); para o crente, são exce-lentes. Pode ser que a espera ainda seja longa, mas à semelhança do atleta que vai

correndo e atinge a última curva do trajeto, e vê a linha de chegada dessa corridainterminável, o crente recebe novo entusiasmo pela visão do final da carreira.

5:9 / Havendo resumido a paciência cristã como a resposta adequada à prova-ção, Tiago agora resume seu ensino a respeito da língua, e ordena: Irmãos, nãovos queixeis uns dos outros. O termo grego traduzido por “queixar-se” significa“gemer”. O gemido pode ser reação compreensível à dor (Marcos 7:34), mas aexpressão-chave aqui é: uns dos outros. O grito de dor aqui é a queixa contra um

membro da comunidade, uma crítica franca (4:11), ou um gemido que incita umapergunta e, depois, uma explicação relutante, como “já que você me pergunta”.Seja como for que a critica é exposta, ela se torna grande tentação numa comuni-dade sob pressão, tanto em termos de hostilidade ou inveja desalojada (só por quealguém leva uma vida mais confortável do que você). Tiago entendeu que issoseria destrutivo para a comunidade, cuja solidariedade era vital para apoiar oscrentes durante tempos difíceis. A razão para que não haja queixas é: para não

serdes julgados, que se assenta numa declaração de Jesus: “Não julgueis, paraque não sejais julgados. Pois com o juízo com que julgardes sereis julgados” (Ma-teus 7:1-2). Deus será severo para com o crente na mesma medida em que o cren-te for severo para com os outros; a pessoa nunca suporta seu próprio criticismo,visto que as pessoas com freqüência criticam suas próprias fraquezas nos outros.Tiago vai além de Jesus, ao salientar que, pelo fato de Deus em Cristo ordenarque o crente não julgue ao seu próximo o ato de criticar ou de queixar-se constituidesobediência.

(Tiago 4:13-5:20)

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Depois, Tiago acrescenta: O juiz está ã porta. O quadro representa Cristo depé à porta de uma casa, que é a igreja, e sua mão alcança a trava para abri-la. Estanão é boa ocasião para sermos apanhados criticando-nos uns aos outros. À seme-lhança de escolares numa sala de aula, que ouvem um murmúrio abafado e teme-

roso: “o professor vem aí”, os crentes devem aquietar-se. A proximidade da voltade Cristo serve de advertência e ao mesmo tempo de encorajamento.

5:10 / Tendo resumido seu discurso sobre a língua, Tiago passa a tratar do so-frimento: Irmãos, tomai como exemplo de sofrimento e paciência os profetasque falaram em nome do Senhor. Ao mencionar os profetas, Tiago  tem emmente não apenas os profetas que redigiram o Antigo Testamento, mas todos os

dignos deste título, tanto os pouco como os bem conhecidos, citados nos martiro-lógios judaicos, bem como em Hebreus 11. Ao empregar que falaram em nomedo Senhor, Tiago exclui os falsos profetas e ao mesmo tempo enfatiza a caracte-rística fundamental, crucial, dos verdadeiros profetas: professavam fé verdadeiraem Deus mediante palavras e obras. Não há necessidade de mencioná-los pelonome porque os judeus cristãos haviam aprendido suas histórias.

Era preciso olhar para os profetas como exemplo de sofrimentoe paciência.  A virtude crucial deles era a capacidade de perseverar, fosse qual

fosse a tribulação. Fosse Amós, proibido de falar (Amós 7), fosse Elias, persegui-do por  Jezabel (1 Reis 19:1ss), fosse Jeremias, aprisionado pelo rei Zedequias(Jeremias 38), esses homens perseveraram. Quando refletimos sobre suas vidas,aprendemos dois fatos: (1) o quinhão de um servo de Deus com freqüência envol-ve o sofrimento, e (2) a pessoa pode suportar o sofrimento e permanecer fiel.

5:11 / Em seus próprios dias, os profetas eram considerados fósseis reacioná-

rios que não gostavam das tendências modernas do culto. Eram vistos como visi-onários perigosos que acreditavam em que Deus, e não as alianças estratégicas, équem protegeria a nação. Alguns chegaram a ser considerados traidores covardesque sugeriam a rendição (e.g., Jeremias). É provável que muitas pessoas disses-sem o seguinte: “Admiro as convicções dele, mas parece-me um tanto masoquis-ta, exigindo praticamente que haja martírio, tornando-se público”. Outros

(Tiago 4:13-5:20)

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alegravam-se quando os profetas morriam ou iam embora. O sofrimento, então,estava longe de ser atraente, e jamais houve um halo ou coral angélico emprestan-do alguma glória ao ambiente. Entretanto, agora temos por bem-aventurados osque perseveraram. Mateus 5:11-12 é o pano de fundo, porque Jesus chama de

bem-aventurados os que sofrem por causa das obras de justiça. É o contrário daavaliação mundana, e Tiago deixa implícito que “a mesma felicidade pode vir aser sua”. Visto que a felicidade dos profetas era real pelo fato de não desistirem,mas perseveraram, requer-se dos crentes que perseverem também. Nesse espíri-to, Jesus já havia afirmado que se salvarão todos os que “perseverarem até o fim”(Mateus 10:22; 24:13; Lucas 21:19), e Paulo enfatiza que ganham o prêmio todosos que cruzam a linha de chegada (1 Coríntios 9:24-27; Fílipenses 3:13-14; cf. 2

Timóteo 4:6-8).Tiago menciona Jó como um profeta concreto: Ouvistes da paciência de Jó,e vistes o fim que o Senhor lhe deu. A história de Jó era uma das prediletas noscírculos judaicos; já era citado em Ezequiel 14:14, 29. Na época de Tiago haviamuitas versões ornamentadas do relato de Jó, que eram o texto canônico comadendos em duas direções: (1) enfatizavam a perseverança de Jó sob a provação e(2) sublinhavam sua retidão e de modo especial sua grande caridade. Para Tiago,o ponto mais importante é que, conquanto Jó se lamuriasse muito, recusou-se a

desistir de sua confiança em Deus, e nunca pensou em desobedecer ao Senhor.Finalmente, vistes o fim que o Senhor lhe deu,  isto é, o livramento. O chama-mento do cristão, portanto, não é para que desista e venha a perder sua recompen-sa agora, depois de tudo quanto suportou com paciência, mas que se mantenhafirme.

Enfatizando seu ponto mais importante, Tiago acrescenta a frase: O Senhor écheio de misericórdia e compaixão. Tiago está citando Salmos 103:8 ou 111:4

(provavelmente de cor), uma citação muito apropriada. Deus não gosta de presen-ciar o sofrimento humano. Ele não permitiria o sofrimento se não houvesse umbem maior à frente. O resumo encerra-se com esta nota: confia em Deus e prosse-gue com paciência e perseverança, porque o Senhor está muitíssimo interessadoem ti.

5:12 / Tiago está prestes a encerrar sua carta, pelo que começa a inserir aconclusão costumeira das cartas gregas literárias. A primeira

(Tiago 4:13-5:20)

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parte desse tipo de conclusão com freqüência era um voto que garantia sua verda-de e genuinidade. Assim é que, tendo usado primeiro uma conclusão comum(mas, sobretudo), Tiago reassume seu tópico: meus irmãos, não jureis. Emborao Antigo Testamento regulamentasse os juramentos, exigindo que se alguém ju-

rasse tal pessoa era obrigada a cumprir seu juramento (e.g., Êxodo 20:7), nãoproibia o juramento (cf. Êxodo 22:10-11). Por todo o período do Antigo Testa-mento há uma série de advertências contra os juramentos, para que ninguém osusasse frivolamente (e.g., Jeremias 5:2). Mais tarde, Siraque adverte quanto a quenão se fizessem juramentos para evitar que alguém jurasse em vão (23:9, 11).Entretanto, Jesus proibiu todo e qualquer juramento, empregando palavras fortes:“de maneira nenhuma jureis: nem pelo céu nem pela terra”. (Tiago acrescenta

a estas palavras de Jesus: nem por qualquer outro voto, em seu resumo, incluin-do o resto das palavras de Jesus em Mateus 5:34-37. Tiago apanhou as palavrasde Jesus e as resumiu; seus leitores reconheceriam a fonte que ele usou.

Os crentes não devem fazer juramentos. Dentre os mais comuns nos dias deTiago estavam os juramentos pelo céu ou pela terra. Nenhum deles deverá serempregado: seja, porém, o vosso sim, sim, e o vosso não, não. Se a pessoa apli-casse juramentos, estaria dividindo a palavra em duas categorias: promessas que apessoa realmente afirmava com toda a verdade (garantidas pelo juramento) e

promessas que não mereciam a mínima confiança. O Senhor exige do crente queele seja absolutamente fiel e digno de confiança em todas as suas palavras. Nãodeve existir nenhuma hipocrisia social segundo a qual a pessoa diz algo diferentedaquilo que lhe vai no coração. Esta exigência é importante, pois deixar de obser-vá-la significa que você será condenado (para não serdes condenados Deus é ofiador de toda palavra). É ele quem vai julgar todas as palavras. O julgamentode Deus é o padrão que os cristãos devem temer e observar.

5:13 / O segundo tópico do fechamento de uma carta grega dizia respeito ásaúde; Tiago trata desse assunto longamente, enquadrando-o no contexto das rea-ções verbais à vida. Em primeiro lugar, está alguém entre vós aflito? Ore. Asaflições a que Tiago se refere são os infortúnios da vida: perseguições, como asque os profetas sofreram (5:10; cf. 5:1-6); infortúnios exteriores, como os que Jósofreu (5:11); ou ser

(Tiago 4:13-5:20)

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caluniado por um membro da comunidade (3:1-12; cf 2:6-7). Todos estes sãoinfortúnios externos, que alguém poderia considerar facilmente estarem fora davontade de Deus, visto terem origem nos males que afligem o mundo, constituin-do ataques contra os justos. A resposta adequada a tais males não consiste em

contra-atacar (opor violência contra a violência), nem em resignação (como osestóicos aconselhavam), mas em oração. O salmista apelava a Deus para que re-solvesse o problema de seus perseguidores (Salmos 30; 50:15; 91:15), e esta étambém a resposta adequada do cristão.

Em segundo lugar, está alguém contente? Cante louvores. Com demasiadafreqüência a felicidade ou a alegria são consideradas direitos óbvios. Tiago lem-bra os cristãos de que também há um uso apropriado da língua nos momentos de

alegria, pois o Novo Testamento constantemente ordena aos crentes que estejamcheios de louvor a Deus, no lar e no trabalho, bem como na igreja (e.g., 1 Corín-tios 14:15; Efésios 5:19; Colossenses 3:16; Filipenses 4:4).

5:14 / Em terceiro lugar, está alguém entre vós doente? As doenças consti-tuíam uma situação bem mais difícil do que o sofrimento externo. A culpa pelasguerras, perseguições ou ostracismo pode ser lançada contra o mal humano, masas doenças parecem estar fora da esfera humana e, por isso, possibilitam o surgi-

mento da pergunta: “Por que isto me aconteceu?” Ou, com maior agudeza: “Que éque eu fiz para merecer isto?” O Novo Testamento emprega terminologia diferen-te para falar das doenças, e apresenta reações diferentes daquelas empregadas parao sofrimento (que sempre expressam o que a pessoa experimenta pelo fato de sercristã).

Alinhando-se segundo a atitude genérica do Novo Testamento, Tiago trata daquestão da doença de modo inteiramente diferente de seu tratamento para o sofri-

mento: Chame os presbíteros da igreja, e orem sobre ele, ungindo-o com óleoem nome do Senhor. Isto significa que a oração também é a resposta para o so-frimento, mas agora, neste caso, envolvem-se as orações e conselhos dos líderesda igreja. A igreja local era regida por um conselho formado de presbíteros; al-guns destes procurariam a pessoa doente quando a visita era solicitada. Note-se ofato interessante que os presbíteros é que são chamados, e não as pessoas dotadasdo dom específico de curar (como em 1 Coríntios

(Tiago 4:13-5:20)

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12:9, 28, 30), embora a presença desses dons de cura não constituíssem pré-requisitos para a escolha de presbíteros. Aparentemente Tiago achava que, dado orelacionamento entre cura e ministério pastoral (cf 5:15), os anciãos como corpodiretivo deveriam envolver-se, e para tais tarefas teriam sido qualificados, em

razão do cargo.Quando os presbíteros atendem ao chamado, realizam dois atos. Primeiramen-

te, oram pela pessoa doente. Este é o ato mais enfatizado, porque vem em primei-ro lugar. Pedem a Deus que cure o doente; os presbíteros não no curam por seuspróprios méritos. Em segundo lugar, ungem o doente (ungindo-o com óleo emnome do Senhor).  Embora o azeite fosse comumente utilizado como remédio(Lucas 10:34), ele não é apresentado aqui como tratamento médico. Ao contrário,

trata-se de um sinal externo e fisicamente perceptível do poder espiritual da ora-ção, bem como sinal da autoridade de quem cura (Marcos 6:13). O azeite corres-ponde à oração de cura assim como a água corresponde à oração batismal. Unge-se o doente em nome do Senhor, porque, à semelhança do batismo (Atos 2:28), onome de Jesus é invocado na oração, como detentor de todo o poder e autoridadedo ato.

5:15 / Este ato terá efetividade porque a oração da fé salvará o doente. A

palavra oração é o termo que cobre tudo quanto descrevemos. Conquanto hou-vesse azeite e provavelmente imposição de mãos, não são os atos físicos que pos-suem poder, mas a oração dirigida a Deus, proferida pelos presbíteros. Há de seroração da fé. Pronunciar uma oração, ainda que nos termos mais belos e eleva-dos, não é garantia de resposta divina, se não provier do coração. Tiago já haviasalientado antes que a confiança em Deus e a obediência a seus mandamentosconstituíam parte essencial da oração (1:5-8; 4:1-3), e agora ele repete o ensino.

Se a vida não for entregue fielmente a Deus, e é  isso que a oração exprime, asorações serão ineficazes. A fé está nos presbíteros, não no doente (Tiago nada diza respeito da fé do doente). No entanto, é crucial que os presbíteros exerçam fé: sealguma coisa “der errado” são os presbíteros, e não o doente, que devem levar aculpa do erro.

Há uma promessa: o Senhor o levantará. No grego está bem claro que Tiagoestá tratando da cura física, e não de um mero preparativo espiritual para a morte.Diz mais Tiago: é a ação do Senhor que produz

(Tiago 4:13-5:20)

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a cura, e não o óleo, nem as mãos, nem o poder dos presbíteros. Deus permanecesoberano: o Senhor responde às orações; ele não é compelido pelas orações.

Finalmente, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados.  Pode serque o pecado seja a razão por trás da doença, mas o pecado não é necessariamente

a causa das doenças. Aparentemente os presbíteros apresentavam ao doente umaoportunidade de confessar os pecados (este aspecto de aconselhamento espiritualseria talvez uma razão por que os  presbíteros eram convocados). A confissão depecados era levantada perante o Senhor junto com a doença; a cura resultanteconfirmaria que Deus havia perdoado a pessoa. Entretanto, este processo era sem-pre oferecido, e, se não houvesse pecado conhecido, tudo bem. É muito importan-te aquele “se” de Tiago: ir além dessa condicional e exigir confissão é violentar as

Escrituras e a sabedoria pastoral.

5:16 / Tiago resume seu ensino a respeito de curas em duas frases. Primeira,confessai os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para ser-des curados. A confissão de pecados é elemento importante para a cura. Pastoresexperientes, dedicados ao ministério cristão da cura, reiteradamente testemunhamdas muitas ocasiões em que a confissão de um ressentimento, de uma indisposi-ção, de uma injúria não perdoada, induziu à cura física com ou sem a necessidade

de mais oração. Todavia, Tiago agora está generalizando, indo além da situaçãode cura individual, visto que a confissão neste caso não se faz aos “presbíteros”,mas uns aos outros. Temos aqui o retrato de uma reunião na igreja, em que ospecados são confessados perante o grupo de irmãos. A confissão pública mútua(suplementada pela confissão em particular, sempre que a confissão em públiconão for apropriada) lança o alicerce da oração pública, na qual o povo de Deus,livre de todo ressentimento e ira, reconciliado mediante a confissão e o perdão,

ora pedindo a cura para si e para os outros. Numa atmosfera dessa qualidade, ra-ramente se precisará do atendimento dos presbíteros ao pé do leito do doente.A segunda frase: A oração de um justo é poderosa e eficaz. O “ justo” não é

alguém livre de pecados, perfeito, mas uma pessoa que confessou todo pecadoconhecido, que obedece aos padrões morais da comunidade cristã. Tendo  umaconsciência limpa, e estando em

(Tiago 4:13-5:20)

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perfeita união com Deus, tal pessoa ergue uma oração poderosa e eficaz. O textogrego acrescenta uma expressão difícil que provavelmente significa “quando che-ga a Deus e o Senhor a responde” (lit., “quando funciona”). A oração não é pode-rosa em si mesma, não é mágica. Contudo, seu poder é ilimitado, porque o filho

de Deus invoca um Pai de bondade e capacidade infinitas.

5:17-18 / Para comprovar sua afirmativa quanto ao poder da oração, Tiago ci-ta Elias (1 Reis 17:1—18:46). Embora o Antigo Testamento relate pouca coisa arespeito, a tradição judaica posterior centralizou-se na oração de Elias. Tiagomenciona a duração da seca a fim de sublinhar o poder da oração. Observe-se queessa oração não foi apenas destrutiva, mas curativa também, visto que Elias orou

e a seca terminou imediatamente (isto interessa muito aos cristãos a quem Tiagose dirige, pois estes presumivelmente estariam mais voltados para a cura e, dessemodo, seriam mais motivados pela oração que faz chover, para que capim cresça,do que pela oração que ocasiona uma seca prolongada).

Tiago diz mais: Elias era homem sujeito às mesmas paixões que nós. Natradição judaica, bem como no Antigo Testamento, Elias bastante humano. Épiedoso, mas com freqüência torna-se presa de dúvidas e depressões. Elias não sealteia aos píncaros da história, não se coloca num pedestal de três metros de altu-

ra, mas surge como um homem comum nas mãos de um Deus fora do comum.Visto ter Elias as mesmas paixões que nós, qualquer cristão, sendo crente obedi-ente a Deus, detém o mesmo poder. A missão pode ser diferente, mas, se umasimples oração era suficiente para o cumprimento da grande missão de Elias, cer-tamente será suficiente para a missão de qualquer crente.

5:19 / Finalmente, Tiago está pronto para encerrar sua carta, mas, ao fazê-lo,

segue o costume generalizado de mencionar seu propósito. Dirigindo-se aos cren-tes (meus irmãos), Tiago lhes propõe uma situação: se algum dentre vós se des-viar da verdade, e alguém o converter. Falar de desviar-se é falar de um aban-dono sério da verdade, como a idolatria (e.g., Isaías 9:16). A vida cristã pode serdescrita como um modo de viver oposto à morte; desviar-se do caminho da vida éperambular pela larga estrada que conduz ao inferno (Mateus 7:13-14).

(Tiago 4:13-5:20)

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Os caminhos da vida e da morte nunca se cruzam, visto que, como Tiago sustenta(4:4), o mundo e Deus excluem-se mutuamente. Esta ilustração nos traz à memó-ria O Peregrino de Bunyan.

A verdade não diz respeito a fatos intelectuais, mas a um modo de vida. Tia-

go não está interessado em erros doutrinários, não quer “pôr os pingos nos is”escatológicos, não almeja “arregaçar as mangas”, mas preocupa-se com uma ver-dade central: Jesus é Senhor! O livro todo procura demonstrar o que significa osenhorio de Jesus na vida concreta do povo de Deus. Se Jesus não for obedecido,o crente terá perdido a verdade central, e ficará atolado num pantanal de pecado emorte.

Se um crente se desvia, o resto da comunidade não deve simplesmente permi-

tir-lhe que vá, mas deve tentar trazê-lo de volta (se alguém o converter). Comoensinaram Paulo (Gálatas 6:1) e João (1 João 5:16-17), o objetivo não é o  julga-mento, mas a restauração. Entretanto, a restauração e o perdão não podem sobre-vir sem o arrependimento (cf. Lucas 17:3-4). Por isso, a primeira tarefa não é“aceitar” alguém que vai afundando, mas alcançar essa pessoa, fazê-la cair em si,levá-la a dar as costas  para seu mau caminho e reconduzi-la ao bom caminho.

5:20 / Essa tarefa de recuperar o pecador, levando-o ao arrependimento, não

fica sem sua recompensa: sabei que aquele que fizer converter um pecador doerro do seu caminho salvará da morte uma alma e cobrirá uma multidão depecados. Tiago reconhece que a pessoa que abandonou a verdade é um pecador,cujo caminho é o erro. Assim começa o Didaquê: “Há dois caminhos — um davida e o outro da morte. E é grande a diferença entre os dois caminhos”(1:1). Este fato seriíssimo é fundamental, visto que provém de Jesus (de modoespecial do sermão do monte). Em havendo confusão entre os dois caminhos, não

se pode iniciar o esforço de recuperação.Além do mais, a alma do pecador corre grave risco de morte. Conquanto Tia-go possa estar referindo-se à morte física, que ele sabe ser às vezes o resultado dopecado (5:14-16; 1 Coríntios 11:30), é muito provável que esteja referindo-se àmorte espiritual, eterna (Judas 22 e 23). Tiago reconhece a seriedade da situaçãodo pecador, e sua convicção o leva a um esforço por salvá-lo. Tiago escreveu 108versículos apenas para tentar salvar alguns crentes de uma situação que ele sabeque significa morte.

(Tiago 4:13-5:20)

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Entretanto, a história não termina aqui. O que se desviara foi reconduzido aocaminho da vida. Deus não deseja que o ímpio morra, mas que se arrependa. Agraça de Deus ainda fica disponível, não importando a extensão de nossa rebeliãocontra o Senhor (4.6). O pecador é, pois, livrado da morte. As mandíbulas do

inferno fecham-se sobre o vazio, enquanto o crente mais uma vez passa a trilhar ocaminho da vida. A libertação resultou no perdão de uma multidão de pecados, que agora estão “cobertos”, isto é, perdoados. 

Tal crente não será marcado na igreja como alguém que certa vez se desviou ese perdeu, mas como alguém que faz parte de uma comunidade formada de peca-dores perdoados. Este é o objetivo de Tiago ao escrever sua carta. Tiago salienta ocaminho errado, na esperança de que as pessoas o abandonem, e seus pecados

lhes sejam perdoados para sempre. Com essa nota de graça e de perdão, Tiagoencerra sua carta.

 Notas Adicionais #54:13 No original grego e agora, vós é expressão paralela à de 5:1, que de-

monstra que as duas passagens ficam bem juntas.Os mercadores tinham mobilidade para cima, na Palestina. Naqueles

dias, o filho mais velho herdava a propriedade do pai, enquanto os mais jovens

recebiam algum dinheiro e eram instruídos a ir cavar suas próprias fortunas. Ocomércio era o melhor meio de ganhar dinheiro. Corria-se algum risco, mas era oúnico meio de progredir; cuidar de fazendolas era negócio incerto, e a grandepopulação da Palestina exercia pressão sobre a terra, elevando os preços e man-tendo os juros altos. Por isso, a pessoa tomava grande quantidade de determinadasmercadorias e a levava a uma região onde fossem escassas, e tentava vendê-lascom lucro, em troca dos raros produtos dessa terra (e.g., Mateus 3:45-46) — Uma

vez vendidas todas as suas mercadorias, o negociante voltava para sua terra, le-vando consigo os produtos estrangeiros que revenderia com lucro. O alvo idealera repetir esse ciclo tantas vezes até a pessoa conseguir adquirir uma grande pro-priedade e tornar-se parte da alta sociedade local, rodear os detentores das maisaltas posições sociais. Veja ainda S.W. Baron,  A Social and Religious History of 

the Jews (História Social e Religiosa dos Judeus), vol. 1, p. 255-59; F.C. Grant,The Economic Background of the Gospels (Pano de Fundo Econômico dos Evan-gelhos), p. 72-76, e J. Jeremias,  Jerusalem in  the Times of Jesus (Jerusalém nos

Tempos de Jesus), p. 30-57, 195.

(Tiago 4:13-5:20)

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4:14 / A idéia de a vida ser semelhante a um vapor era comum no mundo an-tigo. O Antigo Testamento utiliza essa imagem com freqüência (Jó 7:7, 9, 16;Salmos 39:5-6; Provérbios 27:1; Eclesiastes 8:7), da mesma forma que a tradiçãosapiencial intertestamentária (Siraque 11:18-19; Sabedoria 2:1-2; 3:14); 1 Cle-

mente cita um ditado semelhante (17:6). Embora o ensino de Jesus pode ter sido abase imediata desse preceito de Tiago, sua origem pode estar no amplo reservató-rio bíblico.

4:15 / Muitos autores judaicos e gregos conheciam a sabedoria dessa frase: Seo Senhor quiser. Dizia o rabi José, do final do primeiro século: “Que todas astuas ações sejam feitas em nome do céu” (m.  Aboth 2:16; cf. 2:14). Ocorre umaconfissão desta verdade num dos rolos do mar Morto (1 QS 11:10-11). Ináciodiria a mesma coisa anos depois (To the Ephesians 10:1) (Aos Efésios 10:1). Veja

ainda G. Schrenk, “Thelo”, TDNT, vol. 3, p. 47.4:16 / O termo  jactância raramente é empregado no Novo Testamento

nesta forma (somente em 1 João 2:16), embora a mesma frase, Vós vos jactaisdas vossas presunções, ou “vos engrandeceis em vosso orgulho”, se encontre em1 Clemente 21:5. No entanto, aparece no Novo Testamento uma palavra de mes-ma origem, na lista de vícios (Romanos 1:30 e 2 Timóteo 3:2), bem como no An-tigo Testamento grego (Jó 28:2; Provérbios 21:24; 2 Macabeus 9:8). É termo quesempre diz respeito a um defeito, nunca a uma virtude; relaciona-se de perto comtoda a jactância em todos os contextos neotestamentários, assim como o orgulho ea presunção se relacionam entre si. Para João, é uma das características do mundo(1 João 2:16). No grego secular o vazio da jactância é bastante claro, porque de-signa primordialmente a pessoa que diz possuir capacidades ou virtudes sem tê-las na verdade. Veja ainda O. Delling, “ Alazon”, TDNT, vol. 3, p. 28-32. 

A Jactância raramente constitui virtude. A pessoa poderia jactar-se legiti-mamente em Deus, no sofrimento, na humilhação ou no trabalho (Romanos 5:2-3;1 Coríntios 13:3b; Filipenses 2:16; 1 Tessalonicenses 2:9; cf. 1 Clemente 21:5),mas a maior parte da jactância é auto-suficiência pecaminosa (Romanos 3:27; 4:2;1 Coríntios 1:20; 5:6; Gálatas 6:13-14). Veja ainda o comentário sobre Tiago3:14. 

4:17  / O ensinamento a respeito de não fazer o bem que é possível ser feitotambém se encontra no Antigo Testamento (e.g., Jó 31:16-20), mas baseia-se emdoutrinas como as de Deuteronômio 15:7-11. É a base da parábola do rico e Láza-ro (Lucas 16:19-31), visto que o rico é condenado ao inferno simplesmente por-que havia uma pessoa necessitada bem no portão de seu palacete a quem esse ricopoderia ter atendido, mas não o fez. Esse milionário deveria ter melhor conheci-mento de sua situação mediante a leitura do Antigo Testamento.

(Tiago 4:13-5:20)

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A tendência das lides comerciais para distrair a atenção do indivíduo, levan-do-o a desprezar as obrigações para com o Senhor, era proverbial nos dias deTiago: Siraque 11:10; 31:5-11 (“aquele que perseguir o dinheiro perder-se-á porcausa do dinheiro”). Essa pode ser a razão por que Agur pede nem pobreza nem

riqueza (Provérbios 30:7-9). 5:1  / Ao dirigir-se a certas pessoas dizendo: Agora, vós, ricos, Tiago vai a-lém das advertências de Sabedoria 2 e Hermas, Visão 393-6, pois ambos vêem operigo da riqueza, e alcançam a expressão: “ai de vós, os ricos! pois já tendes avossa consolação” de Jesus (Lucas 6:24), e a outra: “ai de vós, ricos, porque ten-des confiado em vossas riquezas, e de vossos tesouros vos separareis”, de Enoque94:8 (cf. 94:6—97:10). Tanto para Tiago quanto para Jesus, a riqueza acumuladaé um mal.

Chorai no Antigo Testamento cabe diante do desastre (Lamentações 1:1-2;Jeremias 9:1; 13:17). Esse verbo no grego (chorai) não é encontrado noutras pas-sagens do Novo Testamento, mas é usado com freqüência pelos profetas do Anti-go (e.g., Isaías 10:1; 14:31; Jeremias 31:20, 31; Ezequiel 21:12; Oséias 7:14;Amós 8:3). Veja ainda W.H. Heidland, “Ololyzo”, TDNT, vol. 5, p. 173-74.

misérias é outro termo profético, empregado noutras passagens neotestamen-tárias, em Romanos 3:16 (citando Isaías 59:7; cf. Isaías 47:11; Jeremias 6:7, 26).Um termo cognato aparece em Tiago 4:9. À semelhança de Amós (6:1-9) ou deJesus (Mateus 8:12; 13:42; 19:24), Tiago consegue enxergar longe, além do esta-do atual de grande conforto do rico, e convoca-o para a lamentação diante dasmisérias vindouras.

5:2-3 / As imagens desses versículos são tradicionais na tradição intertesta-mentária. “Apodrecer” encontra-se em Siraque 14:19 e em Baruque 6:72; estãocomidas de traça ocorre em Jó 13:28; Provérbios 25:20; Isaías 33:1; 50:9; Sira-que 42:13 e se enferrujaram ocorre em Siraque 12:11; 29:10; Baruque 6:12, 24.Tiago sabia que nem a prata nem o ouro se enferrujam, mas acumulam uma espé-cie de óxido pesado. Assim é que se usava na tradição essa analogia para o dinhei-

ro acumulado inutilmente: “Ajuda o pobre, por amor do mandamento. Perde tuaprata por amor de teu irmão, ou de teu amigo, não permitindo que ela enferrujedebaixo de uma pedra e se perca. Abre mão de teu tesouro de acordo com o man-damento do Altíssimo [i.e., dá-o por caridade e teu lucro será maior do que o ou-ro. Acumula esmolas em teu tesouro, e ele te livrará de toda aflição” (Siraque29:8-13; cf. Mateus 6:19-21 e Lucas 12:13-34). Tiago aplica o ensino de Jesus arespeito do rico em Lucas 16: a riqueza acumulada não se perde apenas; ela con-dena seu possuidor ao inferno. Veja ainda P.H. Davids, “The New Testament 

Foundation for Living More Simply”,

(Tiago 4:13-5:20)

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(O Alicerce do Novo Testamento para uma Vida Mais Simples), em Living More

Simply (Como Viver Mais Simplesmente), R. Sider, ed., (Downers Grove. Ill.:InterVarsity Press, 1980).

A conexão entre devorará a vossa carne como fogo e o julgamento final se

faz em Judite 16:17: “O Senhor Todo-poderoso tomará vingança sobre eles no diado julgamento; à carne deles o Senhor dará fogo e vermes; chorarão em doreseternamente”; cf. Números 12:12; Isaías 30:27; Ezequiel 7:19; 15:7; Amós 1:12;5:6; Sabedoria 1:18; Atos 11:5. Carne significa a pessoa toda (Levítico 26:29; Jó4:15). Fogo, como metáfora para inferno, vem do ensino de Jesus (e.g., Mateus25:41) e obras apocalípticas posteriores (2 Pedro 3:7; Judas 23; Apocalipse 11:5;20:9). Veja R. Bietenhard, “Fire” (Fogo), NIDNTT, v. 1, p. 652-58; e “ Hell” (In-ferno), NIDNTT, v. 2, p. 205-10.

Últimos dias, como sentido de julgamento final e dia da ação de Deus, é ex-pressão tomada do Antigo Testamento: Isaías 2:2; Jeremias 23:20; Ezequiel38:16; Daniel 2:28; Oséias 3:5. Esta idéia representa a base da tensão em Tiago,para quem “o juiz está à porta” (5:8-9). Veja ainda S.S. Laws,  James (Tiago), p.198-99; O. Cullmann, Christ and Time; ou G.E. Ladd, The Presence of the Future

(Presença do Futuro) — Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans, 1974 ou A Theology of 

the New Testament (Teologia do Novo Testamento), Grand Rapids: Eerdmans. p.57-80, 91-119, 193-212.

5:4 / Os trabalhadores que ceifaram os vossos campos também aparecemnas parábolas de Jesus (Mateus 9:37; 10:10; Marcos 1:20; Lucas 10:2; 15:17). NoAntigo Testamento as pessoas justas sempre afirmavam ter pago seus trabalhado-res a tempo (Jó 7:1-2; 24:10; 31:13, 38-40).

Os clamores são clamores por justiça (Gênesis 4:10; Êxodo 2:20; 1 Samuel9:16; Salmo 12:5; Apocalipse 6:9-10; Hermas, Visão 396).

O Senhor Todo-poderoso é termo característico de Isaías, que o emprega 61vezes, enquanto o resto do Antigo Testamento o usa 9 vezes apenas.

A acusação de retenção de salários pode ser literal, ou pode representar umexemplo típico de várias classes de abusos, inclusive a criação de grandes propri-edades imóveis (Isaías 5:7-9; Marcos 12:40; Lucas 20:47).

5:5 /  Deliciosamente vivestes e vos deleitastes é modo de vida condenadoem toda a Escritura (Ezequiel 16:49; Amós 2:6-8; 8:4-6; Lucas 16:19-31). Tiagoemprega a mesma palavra usada por Jesus para descrever o modo de viver dorico, em Lucas 16 (cf. 1 Enoque 98:11; 102:9-10; Hermas, Similitude 616; 626;Barnabé 103).

Quanto a Cevastes os vossos corações como imagem de deleite em prazeres,veja Isaías 6:10; Salmos 104:15; Marcos 7:21; Lucas 21:34 e T. Sorg, “ Heart ”(Coração), NIDNTT, vol. 2, p. 182.

(Tiago 4:13-5:20)

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Dia de matança ocorre em Jeremias 46:10; 50:26-27; Ezequiel 39:17; Sal-mos 22:29; 37:20; 49:14; Apocalipse 19:17-21. Descreve-se em 1 Enoque o jul-gamento do rico: “Vós vos tornastes prontos para o dia da matança, para o dia dastrevas e para o dia do grande julgamento” (1 Enoque 94:9; cf. 97:8-10; 99:15;

Jubileus 36:9-10). Os rolos do mar Morto referem-se ao “dia do massacre” (1 QH15:17-18).

5:6 / O conceito de condenação judicial (condenastes e matastes) é freqüenteno Antigo Testamento: Salmos 10:8-9; 37:14, 32; Provérbios 1:11-14; Isaías 3:13-15; 57:1; Amós 2:6; 5:12. Sabedoria 2:20 diz: “Vamos condenar [o justo] a umamorte vergonhosa, porque, de acordo com o que ele diz, será protegido”, e estaspalavras segundo alguns comentaristas são a fonte da asserção de Tiago. O tema étípico de Tiago, mas não existem paralelos verbais que comprovem a dependência

literária. Grande parte da tradição ressoa como se houvesse envolvimento de as-sassinato de pobres. Muitas dessas passagens são poéticas (e.g., Salmos 10) epodem mostrar o ponto de vista de Deus sobre assuntos que as pessoas vêem demodo diferente. Alguns pobres sofreram como Nabote (1 Reis 21),  mas muitosoutros sofreram confisco legal de seus bens (como em Isaías 3), e só Deus consi-derou esse ato injusto e imoral. Tais atos com freqüência recebiam o nome de“assassinato” na tradição judaica (e.g., Siraque 34:21-22: “o pão dos necessitadosé a vida dos pobres; quem privá-los de pão é  pessoa sanguinária. Confiscar osmeios de subsistência do próximo é assassiná-lo; reter o salário de um empregadoé derramar-lhe o sangue”).

O termo justo de fato está no singular. NIV o traduz corretamente como subs-tantivo coletivo; entretanto, por causa de sua forma singular, alguns comentaristasacham que se refere a uma pessoa específica, uma pessoa “justa”, que poderia serJesus (como em Atos 3:14; 7:52; 22:14) ou Tiago (chamado “o justo” em  Ecclesi-

astical History (História Eclesiástica), de Eusébio. Todavia, os paralelismos doAntigo Testamento são tão fortes que é muito mais provável tratar-se de referên-cia aos crentes pobres, sofredores, vistos de modo genérico. Veja ainda S.S. Laws,

 James (Tiago), p. 204-6.A expressão que não vos resistiu tem um pronome singular, masculino, “ele”

e não o plural “eles”, no grego. NIV traduz a expressão como se se referisse a umcoletivo. Como alternativa, há a tradução: “Não resistirá Deus [i.e., “ele”] contravós?” Outros têm sugerido outra tradução: “Resistiu [ou resiste] ele [i.e., Cristo]contra vós?” Este comentário sugere: “Resistem eles contra vós?” O problemaque o pronome “ele” produz ambigüidade, e no grego só o contexto pode indicar adiferença entre uma pergunta e uma afirmação. Há tremenda ênfase nas Escriturassobre a

(Tiago 4:13-5:20)

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não-resistência (Isaías 53:7; Mateus 5:39; Romanos 12:19; 1 Pedro 2:23; cf. Her-mas, Mandate 810, onde “não resistais contra ninguém” é “coisa boa” que apontapara a salvação), o que levou a igreja primitiva a uma tradição de pacifismo (vejaJ.M. Hornus, It Is Not Lawful for Me to Fight (Não É Lícito Que Eu Lute) Scott-

dale, Penn: Herald Press, 1980). Entretanto, embora Tiago diga com clareza quenão espera que os cristãos resistam (cf 5:7), mas que sofram pacientemente (istoem si mesmo significa que o novo tempo está chegando), em face de Apocalipse6, e na falta de interpretação clara da doutrina da não-resistência em Tiago, é bemprovável que a referência diga respeito à resistência celestial.

5:7 / Embora se empregue uma palavra diferente, aqui, traduzida por pacien-tes, da que se empregou em 1:2, 12 (makrothyme vs hypomone), ambos os termossão usados em Colossenses 1:11. Assim, como em 4:1-3 vs 1:13-15, há variedade

de vocabulário, à medida que as fontes mudam, mas permanece a semelhança deconteúdo. As Escrituras freqüentemente exigem paciência, e.g., Romanos 12:1-21; Hebreus 6:12, 15; 10:32-39; 12:1-24; 1 Pedro 4:12-19; Apocalipse 13:10;14:12. O cristão não foi chamado para destruir o mundo, mas para suportar seusataques e vencê-lo pelo poder do Espírito. Veja ainda U. Falkenroth e C. Brown,“Patience” (Paciência), NIDNTT, vol. 2, p. 768-76.

Até a vinda do Senhor tem sido visto às vezes como a vinda de Deus, comoem Enoque 92-105. Entretanto, na época de Tiago o termo  parousia se tornaratermo técnico que significava a vinda de Cristo: Mateus 24:3, 27, 37, 39; 1 Corín-tios 15:23; 1 Tessalonicenses 2:19; 5:23; 2 Tessalonicenses 2:1; 2 Pedro 1:16;3:4; 1 João 2:28. Por isso, seria bastante inusitado se de súbito o termo mudasseaqui para significar a vinda de Deus. O fato de Tiago também referir-se a Deuscomo o juiz em 4:1-5 não constitui realmente um problema. Os que insistem nes-sa interpretação deixam de observar duas coisas: o Apocalipse, João e outras o-bras referem-se a Deus como juiz e, a seguir, mudam, e passam a falar de Cristocomo juiz. Tiago 5:6 marca o final de uma seção importante. Quanto às váriasopiniões, veja ainda G. Braumann, “Present ” (Presente), NIDNTT, vol. 2, p. 898-901; M. Dibelius, James (Tiago), p. 242-43; S.S. Laws, James (Tiago), p. 208-9.

As primeiras e as últimas chuvas são características da extremidade orientaldo mar Mediterrâneo, e sul da serra do Touro. Quanto mais ao sul, menos confiá-veis e mais importantes se tornam essas chuvas. Conquanto sejam mencionadasno Antigo Testamento (Deuteronômio 11:14; Jeremias 5:24; Oséias 6:3; Joel2:24; Zacarias 10:1), não há evidências de que Tiago tivesse uma passagem espe-cífica em mente. Veja ainda D. Baly, The Geography of the Bible (Geografia daBíblia), p. 47-52.

(Tiago 4:13-5:20)

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5:8 / Fortalecei os vossos corações é tradução da idéia encontrada em Sal-mos 57:7; 90:17; Romanos 1:11; 1 Tessalonicenses 3:13; 2 Tessalonicenses 2:17;Hebreus 13:9. A idéia de força e de vigor de algum modo precisa ser incluída,ainda que uma tradução mais literal como “fortalecei” ou “estabelecei os vossos

corações” seja inaceitável numa versão moderna. Veja ainda G. Harder, “Sterizo”, TDNT, vol. 7, p. 655-57.

A fórmula está próxima ocorre com freqüência fora dos evangelhos, com re-ferência à vinda do Senhor: Romanos 13:12; Hebreus 10:25; 1 Pedro 4:7 Não serefere tanto a medição de tempo, quanto a indicações de imanência: “preparai-vos” ou “esperai”.

5:9 / O termo não vos queixeis (lit., “gemer”) é encontrado com freqüênciano Antigo Testamento grego, no livro de Jó e nos profetas. No Novo Testamento,

a criação geme (Romanos 8:22s), e os crentes (mesmo Paulo) “gememos”. Toda-via, os crentes não devem fazer que outros gemam (Hebreus 13:17).

Em para não serdes julgados Tiago mostra um emprego típico da tradiçãode Jesus. De maneira semelhante, Paulo em 1 Coríntios 7:10 toma um ensino deJesus e aplica-o pastoralmente de duas maneiras. Primeiramente, liga um casaldentro da igreja de modo que Paulo não permite o divórcio. Pode ser necessária aseparação, mas esta não pode ser reconhecida como permanente (portanto, não sepermite novo casamento), as palavras de Jesus tem total autoridade. Mas (emsegundo lugar) quando um elemento do casal é de fora da igreja e, portanto, estáfora da disciplina da igreja, Paulo precisa estender as implicações do ensino deJesus. O crente não deve dissolver o casamento, mas esse crente não tem obriga-ções, se o cônjuge separar-se. Isto ilustra a aplicação do ensino de Jesus a umanova situação. Tiago toma o ensino de Jesus em Mateus 7:1 e aplica-o noutrosentido. Se Jesus ensinou que não devemos julgar, isto significa que os crentesserão julgados pelo fato de terem julgado.

A expressão: o juiz está à porta constitui ensino neotestamentário típico tan-to com respeito ao julgamento dos crentes (1 Coríntios 3:10-17; 2 Coríntios 5:10)quanto em relação à iminência do julgamento (Mateus 24:33, 45-51; Marcos13:29, 34-37; Lucas 12:42-46; Apocalipse 3:3, 20). Esta tensão constitui motiva-ção para a vida cristã.

5:10 / Em tomai os profetas, Tiago faz referência a numerosas listas da lite-ratura canônica bem como da não-canônica: 1 Macabeus 2:49-64; Siraque 44:50;Jubileus; Mateus 23:29-31; Hebreus 11. Outras obras apócrifas (e.g., Martírio deIsaías) relatam a morte de alguns profetas. Esse material todo, ao lado de algumashistórias (2 e 4 Macabeus constituem martirológios extensos), desempenharammesmo papel que Foxe’s Book of Martyrs

(Tiago 4:13-5:20)

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(Livro de Mártires de Foxe), ou The Martyr’s Mirror (O Espelho do Mártir) desempenharam para as antigas gerações de cristãos. É  significativo que Tiagonão mencione os nomes de mártires cristãos, o que significa que viveu e escreveunuma época muito primitiva, cedo demais para que tais histórias existissem.

5:11  / Bem-aventurados os que perseveraram representa um termo chavenas Escrituras. O termo grego traduzido por “perseverar” aqui é o mesmo que seencontra em 1:12 e também em 4 Macabeus 7:22. Veja ainda N. Becker, “ Bles-

sing” (Bênção), NIDNTT, vol. 1, p. 215-18, e F. Hauck, “ Hypomone”,  TDNT,vol. 4, p. 585-88.

Jó é mencionado em Testamento de Abraão 15:10 e em 1 Clemente 17 comoum exemplo, mas a tradição completa aparece no Testamento de Jó, no grego, quetalvez Tiago nunca houvesse lido, mas que contém tradições orais que ele certa-

mente conhecia bem. Todo o Testamento gira ao redor da perseverança paciente,e também enfatiza a caridade de Jó (cf. Jó 29:12-17; 31:16-23) e salienta seussofrimentos como provação vinda de Satanás, semelhante à tradição da provaçãode Abraão. Assim é que a alusão a Jó apanha o tema de Tiago 2. Veja ainda P.H.Davids, “Tradition and Citation in the Epistle of James” (Tradição e Citação naCarta de Tiago).

A frase traduzida por vistes o fim que o Senhor lhe deu no originalé apenas: “o fim do Senhor”. Julgam alguns que Tiago se refere à vinda de Cristo,e outros que o fim é referência aos resultados dos sofrimentos de Cristo. Em am-bos os casos, Senhor deve referir-se a Cristo. É bem mais provável, contudo, nocontexto de Jó, que Senhor signifique “Deus”, e  o fim seja o modo que Deuscuidou de Jó, em Jó 42.

O termo cheio de misericórdia e compaixão encontra-se no Novo Testamen-to somente aqui é um termo intenso, criado pela igreja primitiva para expressar acompaixão de Deus (cf. Romanos 8:28ss). É  termo mais forte que o empregadono Antigo Testamento grego, nos Salmos (103:8; 111:4). Ocorre mais tarde emHermas (Vision 132; 228; 423; Mandate 435; 92) e outras literaturas cristãs primi-tivas.

5:12 / Embora o Antigo Testamento regulamente o juramento (não jureis) eos votos (Levítico 19:12; Números 30:3), e Deus pronuncie juramentos (Números14:21; Deuteromômio 4:31; 7:8), constituíam problema constante no período doAntigo Testamento (Jeremias 7:9; Oséias 4:2; Zacarias 5:3-4; Malaquias 3:5). Osgregos tinham problemas semelhantes. Nos rolos do mar Morto quase todos os

 juramentos eram proibidos. Paulo ainda emprega juramentos no Novo Testamento(Romanos 1:9; Gálatas 1:20; 2 Coríntios 1:23; 11:11; Filipenses 1:8; 1 Tessaloni-censes 2:5, 10), embora ele os use

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não para dar a entender que não estivesse falando a verdade noutras ocasiões, maspara declarar que, embora suas afirmações possam parecer incríveis, Deus sabiaque eram a pura verdade. Paulo está tão longe de utilizar dois níveis de verdade nalinguagem que em 2 Coríntios 1:5-2:4 ele se defende por haver mudado seus pla-

nos de viagem. Desde que o apóstolo anunciasse seus planos, ele se sentia preso aeles, a menos que alguma questão desconhecida, de grande peso, viesse a interfe-rir mais tarde.

A palavra de Jesus no texto grego e em algumas traduções apresenta um sim eum não duplos. Argumentam alguns que aqui há um juramento substitutivo: “sim,sim” é uma promessa firme, “sim” é promessa menos firme. Entretanto, NIV eECA entendem corretamente Mateus 5:34-37, visto que nas passagens paralelas

 judaicas a fórmula “sim, sim” significa que o “sim” exterior proferido pela pessoa

deve estar de acordo com o “sim” interior, do coração; em outras palavras, devehaver absoluta verdade e nenhuma hipocrisia. As diferenças verbais entre Tiago eMateus simplesmente indicam que Tiago possui uma versão variante da tradiçãooral.

Veja ainda S.S. Laws,  James (Tiago), p. 219-24; H.G. Link, “Swear ” (Jura-mento), NIDNTT, vol. 3, p. 737-43; P. Minear, “Yes or No, the Demand for Ho-

nesty in the Early Church” (Sim ou Não, a Exigência de Honestidade na IgrejaPrimitiva): J. Schneider, “Omnyo”, TDNT, vol. 5, p. 176-85; e “ Horkos”, TDNT,vol. 5, p. 459-61.

5:13 /  A  palavra traduzida por aflito refere-se à experiência íntima dedesgraça ou adversidade grave. Por exemplo, Josefo a usa em referência a revesesmilitares. Veja ainda W. Michaelis, “Kakopatheo”, TDNT, vol. 5, p. 936-37. 

Cante louvores expressão usada 56 vezes no Antigo Testamento grego, e o-riginalmente se referia a um cântico acompanhado de instrumento de cordas(Salmos 32:2, 3; 98:4, 5; 47:7; 149:3). Mais tarde, veio a significar qualquer cân-tico de louvor (Salmos 7:17; 9:2). No Novo Testamento encontramos pessoasentoando louvores em circunstâncias dolorosas (Atos 5:41; 16:25), e também emcircunstâncias mais favoráveis (1 Coríntios 14:15). Os cânticos podiam ser salmosdo Antigo Testamento, hinos tradicionais (e.g., 1 Timóteo 3:16), ou hinos impro-visados (1 Coríntios 14:15; Efésios 5:19-20). O mais importante era o crente serconstantemente agradecido a Deus por quaisquer bênçãos que recebesse (Filipen-ses 4:4, 6; 1 Tessalonicenses 5:16-18).

5:14 /  Quanto às atitudes diferentes ante o sofrimento e a doença no NovoTestamento, veja P.H. Davids, “Suffering and Illness in the New Testament ” (So-frimento e Doenças no Novo Testamento), in Understanding Power Evangelism

(Como Entender o Evangelismo do Poder) (ainda por

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publicar; o título é provisório), eds. Douglas Pennoyer e C. Peter Wagner (Ventu-ra, Calif: Regal Books, 1989).

Tanto o Judaísmo do Antigo Testamento (Êxodo 3:16; Esdras 10:14) como odo Novo Testamento (Mateus 26:3; cf. Susana 5, 29, 34) eram governados por

anciãos. Cada sinagoga, vila ou cidade grande tinha seus anciãos. A igreja primi-tiva tomou emprestada essa organização, pelo que Paulo nomeou anciãos sob ainspiração do Espírito Santo (Atos 11:30; 14:23; 15:2; 20:17). Escritos posterioresindicam os padrões usados para a escolha dos anciãos e suas funções específicas(1 Timóteo 3; 5:17; Tito 1:5; 1 Pedro 5:1; 2 João 1). Assim é que os leitores daepístola de Tiago deveriam estar bem familiarizados com os anciãos (ou presbíte-ros) como líderes da congregação local, ou da igreja da cidade grande (podia serum grupo de igrejas que funcionavam nos lares dos crentes, nenhuma delas com

número superior a 40 ou 60 membros). Veja ainda G. Bornkamm, “Presbyteros”, TDNT, vol. 6, p. 651-83, e L. Coenen, “ Bishop” (Bispo), NIDNTT, vol. 1, p. 192-201.

Ore refere-se à oração ao pé do leito, durante a visita ao enfermo, provavel-mente com imposição de mãos.

O Óleo não é o azeite medicinal de Isaías 1:6 nem de Jeremias 8:22, nem a-zeite de outra fonte judaica ou grega, embora possa estar relacionado ao “óleo dealegria” da era vindoura (Isaías 61:3) Trata-se de uma parte importante do proces-so de cura, assim como a água é importante para o batismo, tendo sido resguarda-da até nossos dias em rituais formalizados de cura nas igrejas com maior ênfaseno ritualismo e na liturgia (como no livro Episcopal de Oração Comum, p. 455-56). Em tais ritualismos, todavia, corre-se o risco de o óleo poder assumir umpoder mágico, idéia essa totalmente estranha a Tiago, que nunca abençoa óleonenhum, mas apenas ora a Deus. Veja ainda H. Schlier, “ A1eipho”, TDNT, vol. 1,p. 230-32. Quanto a curas em geral veja E. MacNutt,  Healing (Cura), Notre Da-me, Ind: Ave Maria Press, 1974, e The Power to Heal (O Poder para Curar), No-tre Dame, Ind: Ave Maria Press, 1977; e Roy Lawrence, Christian Healing Redis-

covered  (A Cura Cristã Redescoberta), Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press,1980; ainda mais modernos e práticos são K. Blue, Authority to Heal (Autoridadepara Curar), Downers Grove, InterVarsity Press, 1987; e J. Wimber, Power Hea-

ling (Poder para Curar), San Francisco: Harper & Row, 1986.Em nome do Senhor — as pessoas eram batizadas “em nome do Senhor” (A-

tos 8:16; 10:48; 9:5; Mateus 28:19), e também as curas e os exorcismos eram emseu nome (Marcos 9:38; Lucas 10:17; Atos 3:6; 4:7; 9:34). Invocava-se o nomede Jesus a fim de pedir-lhe que interviesse como lhe

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aprouvesse na iniciação do candidato na igreja, na cura dos doentes ou na expul-são dos demônios. Eram, portanto, atos que demonstravam que o poder atuanteera o de Deus, na realização daquelas obras; ao mesmo tempo, abria-se o caminhopara o exercício do poder de Deus. Veja ainda H. Bietenhard, “Onoma”, TDNT,

vol. 5, p. 277; M. Kelsey, Healing and Christianity (Cura e Cristianismo), p. 104-99; e S.S. Laws, James (Tiago), p. 225-32.

5:15 / A relação entre fé e oração também é importante para Marcos2:5; 5:34; 10:52; e Atos 14:9. O depositário da fé na maior parte dos milagres dosevangelhos e de Atos é a pessoa que ora (normalmente Jesus); só raramente se dizda pessoa curada que exerceu alguma fé. A rejeição de Cristo impede o exercícioda fé, mas a quantidade de fé no paciente é biblicamente destituída de importân-cia.

As Escrituras nos ensinam que o pecado pode causar doenças, mas ensinatambém que nem todas as doenças são causadas pelo pecado (2 Reis 19:15-19;20:3; Jó; Marcos 2:5; João 5:14; 9:2-3; 1 Coríntios 11:30). Assim é que Tiagoutiliza uma oração condicional: se houver cometido pecados. A cura total inclui operdão do pecado (Mateus 12:32; Marcos 2:5; Lucas 2:10), de modo que é precisooferecer uma oportunidade para auto-exame, confissão e declaração de perdão. Oconselho rabínico, “Se alguém for visitado pelo sofrimento muito doloroso, que apessoa faça um auto-exame” (b  Berakoth 5a), ainda é bom para o cristão, mas,quando o auto-exame nada revela, o crente deve lembrar-se de Jó. Os rabis tam-bém ensinavam que há as provações de amor (sofrimentos não-merecidos), e so-frimentos de reprovação (dores merecidas, por causa do pecado).

5:16 / O Antigo testamento está repleto de confissões. Muitos salmos, por e-xemplo, são confissões públicas de pecado, freqüentemente com um responso deperdão e cura. Veja Levítico 5:5; Números 5:7; Jó 33:26-28; Salmos 32:5; 38:3-4;40:12; 51:2-5; Provérbios 20:9; 28:13. Havia também orações de confissão portoda a comunidade (Levítico 16:21; 26:40; Daniel 9:4-10). O período intertesta-mentário continuou esta tradição (Salmos de Salomão 9:6; Judite 9:1-14; Tobias3:1-6; 3 Macabeus 2:2-20; 6:2-15). Os rolos do mar Morto prescrevem confissãoperante a comunidade (1 QS 1:23-2:1; CD 20). Tudo isso constituiu uma basepara o primitivo cristianismo, para a qual o próprio João Batista contribuiu com aconfissão pública (Mateus 3:6; Marcos 1:5); a disciplina da igreja exigia a confis-são (Mateus 18:5-22; Gálatas 6:1-3), e os documentos do Novo Testamento dãotestemunho dessa prática (Atos 19:18; 1 João 1:9). A confissão pública prosse-guiu na igreja pós-apostólica, de modo particular como prelúdio à oração (1 Cle-mente 51:3; Didaquê 4:4; Barnabé 19:12; Visão de Hermas

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113; 315-6; Similitude 9234). Se a igreja mais tarde veio a esquecer-se do perdão,tornou-se pudica no que dizia respeito ao que considerava pecado e, a seguir,formalizou, ritualizou e individualizou a confissão, isso não deveria obscurecer arigidez da prática primitiva. A confissão conduz ao perdão, tanto para o perdoador

quanto para o pecador perdoado (Mateus 6:14-15), e isso traz saúde de modo ge-ral (1 Coríntios 11:30-32; 1 João 5:16-17). Este relacionamento entre confissãopública e particular, a disciplina, o perdão e a saúde não deve ser negligenciadonem esquecido. Veja ainda M. Jeschke, Disciplining the Brother (Como Discipli-nar o Irmão), Scottdale, Penn: Herald Press, 1979.

O justo não é uma pessoa especialmente santa, mas o membro da comunidadeque confessou seus pecados e, por isso, está vivendo em harmonia com Deus(Gênesis 18:16-33; 20:7; Números 21:7; Jó 42:8; Jeremias 15:1); todavia, o mes-

mo é verdade a respeito do Novo Testamento (Mateus 1:19; Hebreus 12:23;  1Pedro 4:18; 1 João 3:7; Apocalipse 22:11). Veja ainda H. Seebass e C. Brown,“ Righteousness,” (Retidão), NIDNTT, vol. 3, p. 358-77. 

A última palavra desse versículo é um particípio, energoumene (ECA, eficaz).O estudo de S.S. Laws, James (Tiago), p. 234; J.H. Ropes, James (Tiago), p. 309;J.B. Mayor, James (Tiago), p. 77-79; e J.B. Adamson, James (Tiago), p. 99, reve-lam tantas tentativas de interpretar o sentido dessa palavra quantos intérpretesexistem. É certo que Tiago não se está referindo ao tremendo esforço que alguémdedicaria à oração (Laws), mas à eficácia da oração (Mayor).

15:17-18 / EIias ora em 1 Reis 17:20-22, mas isso ocorreu numa história dife-rente daquela citada. Entretanto, pela época de 2 Esdras 7:109, Elias é um podero-so homem de oração: “e Elias [orou] por aqueles que receberam a chuva, e poralguém que morrera, para que voltasse a viver”. A tradição judaica posterior apre-senta-o como intercessor em prol de Israel, que às vezes retorna à terra. Veja ain-da P.H. Davids, “Tradition and Interpretation in the Epistle of James” (Tradição eInterpretação da Carta de Tiago), p. 119-21; e J. Jeremias, “ Elias”, TDNT, vol. 2,p. 929-30. 

Os três anos e seis meses (cf. Lucas 4:25) não são mencionados no AntigoTestamento, mas provieram da tradição, provavelmente como metade de sete, operíodo padrão de julgamento (Gênesis 41:25-36; Daniel 7:25; 2:7; Apocalipse1:2; 12:14). Portanto, trata-se de um número simbólico e arredondado.

5:19 / Quanto à estrutura da carta, veja a Introdução, e também a obra de F.O.Francis, “The Form and Function of the Opening and Closing Paragraphs of 

 James and 1 John” (A Forma e a Função dos Parágrafos da Abertura e da Conclu-são de Tiago e 1 João).

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No Antigo Testamento, o verbo se desviar era empregado com freqüência pa-ra designar erros graves: Provérbios 14:8; Jeremias 23:17; Ezequiel 3:10; 34:4.De modo semelhante é empregado nos rolos do mar Morto nos Testamentos dosDoze Patriarcas. Este sentido de desvio moral da fé (com freqüência devido à

prisão demoníaca) também é freqüente no Novo Testamento: Mateus 18:12-13;24:4-5, 11; Marcos 12:24; 13:5-6; Romanos 1:27; 4:14; 2 Tessalonicenses 2:11; 2Timóteo 3:13; Tito 3:3; 1 Pedro 2:25; 2 Pedro 2:15-18; 1 João 2:26; 4:6; Apoca-lipse 2:20. A igreja primitiva dava especial cuidado ao desvio moral insistente, àquebra dos padrões estabelecidos, com respeito a dinheiro, palavra (mexerico),alimento (glutonice, bebedice), ira ou sexo. Os desvios nestas áreas eram motivopara excomunhão. Veja ainda M. Jeschke, Disciplining the Brother (Como Disci-plinar o Irmão); e W. Gunther, “ Lead Astray” (Desviar-se), NIDNTT, vol. 2, p.

457-61. A Verdade era um modo de viver no judaísmo (Salmos 25:4-5; 26:3;

86:11),  como o é no Novo Testamento (Mateus 22:16; João 3:21; 14:6;Romanos 1:18; Efésios 6:14; 1 Pedro 1:22; 1 João 1:6). Este conceito está claroem 1 João, onde ocorre a frase “guardar a palavra”. A verdade não é tanto algo emque se crê, mas uma forma de comportamento.

Converter literalmente é “fazer que a pessoa se volte completamente”. Trata-se de uma reviravolta completa que as Escrituras usualmente retratam como “ar-rependimento” (Isaías 6:10; Ezequiel 33:11; Atos 3:19; 9:35; 2 Coríntios 3:16). Apessoa precisa ser levada a reconhecer o erro daquele seu mudo de viver, a rejeitaresse tipo de vida, a reverter a direção em que caminha e a começar a andar pelocaminho certo, o da vida. As pessoas encontram encorajamento e ajuda nesseprocesso em muitas passagens das Escrituras, como Levítico 9:17 e Judas 23.Veja ainda Salmos 51:13; Ezequiel 3:17-21; 33:7-9; 1 Tessalonicenses 5:14; 2Tessalonicenses 3:15; 2 Timóteo 2:25; 1 João 5:16; e F. Laubach, “Conversion”(Conversão), NIDNTT, vol. 1, p. 353-55.

5:20 / A idéia de morte como penalidade pelo pecado usualmente diz respeitoà punição eterna: Deuteronômio 30:19; Jó 8:13; Salmos 1:6; 2:12; Provérbios2:18; 14:12; Jeremias 23:12. A alma não é uma parte da pessoa, mas a pessoaintegral, física e espiritual. Veja ainda C. Brown, “Soul” (Alma), NIDNTT, vol. 3,p. 676-89: W. Schmithals, “ Death” (Morte), NIDNTT, vol. 1, p. 430-41. 

Cobrirá uma multidão de pecados significa o perdão, retratado aqui comouma expiação sacrificial (i.e., os pecados são cobertos pelo sangue do sacrifício):Salmos 32:1; 85:2; Daniel 4:24; Romanos 4:7. A expressão multidão de pecados não intenciona enfatizar a iniqüidade do pecador,

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mas a profundidade da graça de Deus (Salmos 85:2; Ezequiel 28:17). Em 1 Pedro4:8 há uma citação de Provérbios 10:12: “o amor cobre todas as transgressões”,que se relaciona com esta de Tiago. Veio a tornar-se uma expressão predileta dospais da igreja, que acreditavam ter sido Jesus quem a cunhou segundo a versão de

Tiago.Uma questão problemática neste versículo é se a ação de salvar uma alma re-

fere-se a esse pecador salvo, ou ao “salvador”. O texto grego não é claro, mas éprovável que a tradução de ECA seja a mais acertada. Há uma tradição escriturís-tica que coloca a responsabilidade sobre o “salvador” (Ezequiel 3:18-21; 33:9; 1Timóteo 4:16). Se um crente ficar olhando com a maior tranqüilidade uma pessoaque caminha para a morte espiritual (e com freqüência morte física também), sem

tentar adverti-la do perigo que enfrenta, coloca a própria alma em perigo, pois talcrente desviou-se do caminho de Jesus. O Senhor Jesus jamais deixou de advertire salvar as pessoas. É possível que não seja este o significado intencionado porTiago (embora M. Dibelius,  James (Tiago), p. 258-60, e S.S. Laws,  James (Tia-go), p. 240-41, acreditem que Tiago quis dizer isso mesmo), todavia está nas Es-

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