Mestre Machado, um recorte de velhos mestres,
realinhados ao Memorial de Aires
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras – 2º semestre de 2008
A proposta desta pequena apresentação é fazer uma leitura em
comparação – um exercício de literatura comparada – baseada na
sugestão contida no Memorial de Aires, último livro de Machado
de Assis. Algumas observações são desconfiadas e sugestivas,
porque em muito são resultantes de minhas pesquisas dentro da
literatura somadas às sugestões que me foram trazidas pelo
correr do semestre e pelas leituras tratando de memorialismo
poético e ideologia. Aqui faço uma seleção do corpus, que
estará basicamente ancorado apenas em relação ao Memorial de
Aires, porque é a exigência do momento, porque é o norteador e
o limitador deste trabalho, especificamente.
Essas observações é que me levaram a considerar as bases
para o discurso de Mestres. O ponto de partida tem três bases:
a autoridade do gesto (que também será a autoridade do casal
Aguiar e do conselheiro Aires, representantes da elite carioca
de então e da sabedoria, de maneira geral), a sedução melódica
em contar histórias ritmadas (principalmente esta, tão cheia de
nomes e referências musicais) e a filosofia das regras (voltada
para o pensamento do mundo, a mesma filosofia de quem observa o
mundo lá fora e pula pela janela, para participar dele, aderir
e interferir, pervertendo suas leis e regras, também).1
1 Um sonho: “Deste lado do vale, eu podia enxergar três velhos sentados, alinhados. Cada qual em sua cadeira,
cada qual à sua maneira, falava estórias para mim, tentei prestar atenção ao que diziam, e prestava muita, mas não
escutei uma só palavra. Meu olhar estava encantado no gesto do primeiro velho – que carregava uma bengala e
contava histórias de valentia e danação –, no som do segundo velho – que carregava um pandeiro e contava
histórias de ensinar criança – e no pito do terceiro velho – que carregava, além do pito, suas histórias de sangue e
de herança.
2
Sem procurar um sentido etnográfico, tenho reconhecido em
nossa cultura de mestres, nas artes populares e canônicas,
ferramentas que em muito ultrapassam “caldo” das culturas
americana, africana e européia, que juntas e amalgamadas ainda
têm servido de justificativa e fôrma para a cultura brasileira.
As tais ferramentas parecem aspectos ou equipamentos especiais
de criação literária, poética e musical de agência eventual,
não obrigatória nem fundamental, mas essencial à criação
estética.2
Uma breve dedicação intelectual ao entendimento do que
seriam os equipamentos dos mestres trouxe à pesquisa a
evidência necessária de fundamentos. Para uma explanação
inicial, os equipamentos do tripé mostraram-se: a música (no
que tem de encanto e sintonia, cadência); a regra (na fala, na
autoridade, poder, nos espaços de atuação e de conversa) e a
herança (ancestrais, história, ensinamento).
Pretendo esboçar um entendimento do que tenho percebido como
aspectos na escrita dos mestres. Não me refiro a estrutura ou
receita, não quero saber de forma nem alerto para ingredientes;
falo de aspectos e sutilezas que podem – porque têm competência
e capacidade – ser notadas em narrativas de mestres.
A freqüência com que escrevo que não, deve muito à incerteza
destes primeiros passos. Aliás, apenas as características
encontradas nas pesquisas, para cada um dos três aspectos e
para sua atuação nos textos literários foi que recebi o esboço
do todo. Como se estivessem em lugares confortáveis, alinhadas
(porque estão de acordo, concordes, frescas e bem dispostas)
posso chegar a entender e adotar alguma significação próxima às
invenções dos escritores, à procura da síntese do mundo, para
nos mostrar o caminho, para nos ensinar, principalmente, e é
2 Durante o discurso de posse no Pen Clube do Brasil, você, minha professora, Teresa Cristina Meireles, avisa que
sua poesia, estancada na meninice, retornou na adolescência e fixou-se ao tempo dos estudos de graduação,
durante as “[...] aulas dos cursos de Letras, Direito e Música; escrita nos cadernos, nos blocos, com os temas da
Teoria Geral do Estado e de Direito Internacional, ao lado das pautas musicais com os exercícios de baixo
contínuo ou canto dado, junto às anotações de Linguística ou de Literatura Inglesa, das declinações gregas e da
Filologia, a poesia esteve sempre ali”.
3
neste único particular que têm coincidência, são aspectos de um
texto de ensinamento.
Uma característica dos três aspectos atuantes é a invocação;
eles parecem ser invocados a cada necessidade, no sentido que
nos dá Gumbrecht,3 da produção de presença, não por inferência
de sentido, não por interpretação, mas por manifestação mágica,
de possessão, de consubstanciação. Da mesma maneira o
conselheiro Aires, em conversa com a irmã, faz a invocação de
seus poderes, uma tentação como a de Fausto, em Goethe,
expressa como se dissesse: “Tornai-me a aparecer, entes
imaginários, que me enchíeis outrora os olhos visionários”.4
Outra característica evocativa poderia estar na reserva moral,
suscitada em algumas das epígrafes de José Saramago, citações
de livros não publicados, mas reconhecidos culturalmente. São
seus conselhos e provérbios o conjunto de saberes, conheceres,
dúvidas e vontades; são também livros de mestres, são coleções
da moral humana.
Se for necessário expor razões, além de meu próprio desejo
intelectual, para falar sobre os mestres, destaco algumas
recentes.
O falecimento e conseqüente recuperação da importância de
Miriam Makeba, a Mama África, e seu canto de ensinamento do que
é a cultura sul-africana, a enorme repercussão dos trabalhos de
cultivo e respeito ao povo e à cultura negra. O Encontro com
Mestres Populares, na Universidade Federal do Rio de Janeiro,
promovido pela Companhia Folclórica do Rio propõe uma linha de
diálogo entre os saberes acadêmicos e populares. Não vejo
justificativa para qualquer distinção; por mim, não cabe
alimentar diferenças, os saberes são saberes, conheceres, lá e
aqui. Uma edição especial do Suplemento Literário de Minas
Gerais (SLMG), com estudo sobre os “Vissungos, cantos afro-
3 GUMBRECHT, Hans Ulrich. “Produção de presença, perpassada de ausência, sobre música, libreto e encenação”.
In: Como falar de literatura hoje? Revista Palavra, nº7. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2001.
4
descendentes” em língua africana, ouvidos outrora nos serviços
de mineração e publicados em O negro e o garimpo em Minas
Gerais, de Aires da Mata Machado Filho (Editora Itatiaia,
1985).
Estas são juntas outra razão: reafirmam que minha procura
não é solitária. Ouço sua reverberação e entendo outra
sugestão, a de que “O narrador é um homem que sabe dar
conselhos.”5
Tomando o conjunto, aceito os conselhos dos mestres e esclareço
minha procura, porque na ausência de mestres quem se perde sou
eu.
Em comentário sobre Memórias póstumas de Brás Cubas, Abel
Baptista fala da situação de perda gerada pelo narrador morto
(para mim, a morte do mestre seria tão ou mais desconcertante),
esta discussão gira em torno do relato livre de exames e
julgamentos, porque não tem platéia ou porque não lhe importa o
que pensa a platéia. Destaco.
A metáfora da platéia descreve essa perda: não são os
mortos que perdem a platéia, são os vivos que perdem a
possibilidade de se constituírem platéia relativamente
aos mortos. “Não há platéia” descreve a situação anômala
em que os espectadores olham, assistem, apreciam; mas
aos atores, sabendo que eles olham, assistem, apreciam,
lhes é indiferente o resultado da assistência e da
apreciação. A platéia responde, talvez aplauda – os
atores é que em caso algum regressam ao palco para
agradecer.6
Prefiro viver entre mestres e, se já não estiverem vivos,
procuro conhecê-los ou entendê-los pelo que me deixaram; minha
perda tem se resolvido pelos sussurros que ouço do passado,7 meu
intelecto tem despertado sobre as coisas que percebo no que
ouço em sonho. O que percebo, enfim, tem tomado forma neste
4 GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto. E-books Brasil, acessado em 29.11.2008,
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/faustogoethe.html. 5 BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
6 BAPTISTA, Abel Barros. “Liberdade da forma”. In Suplemento Literário. Belo Horizonte: Secretaria de Estado de
Cultura de Minas Gerais, abril de 2008. 7 BENJAMIN, Walter. “Teses sobre a filosofia e a história”. São Paulo: Brasiliense, 1994.
5
estudo, agora escrito para ser discutido. Durante os estudos de
grupo e as leituras, estas percepções vão tomando força, em uma
prática de discípulo, a tentar entender.
Buscando abrigo e apoio nos escritos públicos, cito
novamente o estudo de Abel Baptista, porque preciso dele para
continuar, porque preciso da forma que ele mesmo encontrou em
Machado de Assis, adotada aqui também, que é a “forma adequada
ao pandemônio é por isso a forma livre. Livre no mesmo sentido
em que sabemos ou dizemos que uma coisa é expor, descobrir ou
arrancar a verdade e outra, bem diferente, é captar o sentido
duma piada – e rir”.8
O gesto
Na origem da narrativa está uma autoridade de quem conhece a
morte, o gesto inesquecível; “a morte é a sanção de tudo que o
narrador pode contar”. É da morte que deriva a autoridade do
narrador de Benjamin, em outras palavras, as histórias do
narrador-mestre remetem à história natural e nisto enxergamos o
“sentido da vida” a “moral da história”. Este gesto toma as
coisas do mundo e as recoloca, dispõe no mundo reordenado à
maneira que atendam, que sustentem o dito:
Os objetos iluminados perdem seus nomes: sombras e
claridades formam sistemas e problemas particulares que
não dependem de ciência, que não aludem à prática, mas
que recebem toda sua existência e todo o seu valor de
certas afinidades singulares, entre a alma, o olho e a
mão de uma pessoa nascida para surpreender tais
afinidades em si mesma, e para reproduzi-las. A mão
intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na
experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o
fluxo do que é dito.9
Para o Conselheiro Aires e para Machado de Assis, escrever o
Memorial de Aires foi também aprender a morrer, perceber a
8 BAPTISTA, op. cit.
9 BENJAMIN, op. cit.
6
encruzilhada da vida e da morte. O já bastante conversado cargo
de Aires, conselheiro e diplomata, mais uma vez atende a
leitura de Walter Benjamin sobre os trabalhos do narrador,
sobre o poder contido na mão do narrador: “O narrador figura
entre os mestres e os sábios, sabe dar conselhos e recorre ao
acervo de toda uma vida. Seu dom é poder contar sua vida, sua
dignidade é contá-la inteira”.10
Machado coloca nas mãos do Conselheiro Aires a sugestão de
que ele também poderia contar toda a sua vida, a sugestão de
que este seria seu dom; mas não é, porque o Conselheiro Aires
conta a vida de outros. O Memorial não seria um receituário de
seu próprio viver, poderia ter sido “um acúmulo de saberes e
conheceres íntimos”;11 mas não foi, porque o Conselheiro Aires
escreveu em um diário, porque escreveu de maneira íntima as
suas intimidades e as alheias. Por esses nãos Machado de Assis
derrubou de nós a impressão de mestre no Conselheiro Aires;
retirou de nós a verdade e a dignidade de contar sua própria
vida, e contou a dos outros. Neste momento, a coincidência de
iniciais, de Machado de Assis e Memorial de Aires provoca a
mesma imagem, ambos são responsáveis pela nossa falta.
O mestre é o condutor de destinos, não impõe a todos sua
autoridade, é recebido de bom grado, não usa de mando, não
manobra nem submete a jugo arbitrário. Mas o conselheiro Aires
é de outra ordem de mestres, seu modo de contar poderia ter
sido em receita de viver, mas não foi. A história que o
Conselheiro contou sugeria o que se vai desenrolando, a cada
nova e excitada anotação em diário. A cada pensamento e
peripécia, o conselheiro sugere novidade num contexto mais ou
menos previsível.
Esta peculiar anotação me deu a lembrança de um mote de
Alberto Mussa, n’O movimento pendular, “o pá eiye lona / o so
10
BENJAMIN, idem. 11
BENJAMIN, idem.
7
òkò loni.” 12 O dístico faria alusão à relação ou à sugestão de
causalidade, na verdade, o que acontece na narração do
conselheiro é de outra ordem, a do planejamento. Por uma
propriedade mágica, pela interferência de senhoras da noite,
neste dístico iorubá, está explicada uma relação de causalidade
anterior ao acontecimento provocador. Para nosso assunto, em
particular, corrobora a idéia de que Tristão e Fidélia – por
Isolda – já estavam combinados ao casamento, a enganar os
velhos, a propiciar a paixão, o noivado e a partida. É como se
Machado de Assis já dissesse, pela nomeação do jovem casal, que
o que lemos no diário do Conselheiro Aires já estava dito, já
estava escrito, já tinha acontecido em um romance ainda mais
antigo.
Outro gesto do conselheiro Aires trata de seu corpo, que
experimenta também o desejo por Fidélia, em contexto de
disponibilidade da viúva; o conselheiro participa e nisto tem
também propiciado um estatuto de autoridade. Se o corpo estiver
ausente, se não experimentar nem desejar, não influirá no
contexto, se não produzir nem compreender metáforas, não será
capaz de compreender o contexto.
Num jogo de cumprir e esquivar-se, o conselheiro Aires,
resultado da pena de Machado de Assis, vai criando e ajustando
sua obra, anota coisas aqui e ali, ignora ou omite coisa acolá,
resume e detalha a seu gosto. Por isso revela sua autoridade
sobre a obra, vai criando e ajustando o relato conforme permite
sua vigilância.
A propósito da solidão do Conselheiro Aires, percebemos uma
necessidade sua de manter-se ativo nas relações sociais, seria
uma necessidade de manter-se vivo. Segundo a concepção de
Lucien Goldmann – que sem contatos concretos com outros homens
o homem não seria capaz de manter-se humano –, pude perceber
uma figuração do medo que tem o Conselheiro desta sua solidão;
12
MUSSA, Alberto. O movimento pendular. Rio de Janeiro: Record, 2006. No original, a tradução do rodapé
“matou um pássaro ontem / com a pedra que atirou hoje”.
8
nas vezes em que chove e que fica preso em casa, o escritor
deste diário sente-se cada vez mais próximo da morte, sofre
pela dor nos joelhos, pela gripe, pela falta que faz a
companhia dos seus iguais.
Este medo da morte e da decadência alude também à presença
da destruição e da morte no século XX. Um temor não suplantado
pelo progresso, do homem que ainda está sozinho, continua a
descobrir, continua a desfazer e ainda está sozinho. Nas
pequenas reuniões, festejos e visitações haveria um
apaziguamento de temores nesta convivência da sociedade em que
estavam colocados os personagens do Memorial.
Menina, quem foi teu mestre?
– Um batuqueiro...
— Luiz Antonio SIMAS
e Alberto MUSSA, 2009.
O som
A trama pequena, singela, de todos os dados claros é
pungente,13 ainda mais por esta concepção do professor Ronaldes,
para mim, adicionada às concepções dos estudos de Gumbrecht, me
sugerem o entendimento de que a força do Memorial de Aires está
numa tensão propiciadora, assim como na ópera – tão cara a este
livro – a expectativa da realização do libreto em consonância,
em sintonia de maestro, atores-cantores, músicos e público.
A ópera é tipo especial de encenação, cujo papel
central é ocupado pela música. É um tipo de
experiência que não pode ser justamente analisada
segundo a dimensão da produção de sentido (no
âmbito interpretativo) ou segundo a identificação
de sentido (da hermenêutica). O fascinante é o que
13
MELO E SOUSA, Ronaldes de. “A gaia ciência do Conselheiro Aires”. In O romance tragicômico de Machado de
Assis. Rio de Janeiro: Eduerj, 2006.
9
permanece excluído e ainda assim postulado (uma
sugestão, apenas).14
Quanto mais leio Gumbrecht mais machadiano fica meu
entendimento da sugestão operística do Memorial de Aires; nada
é gratuito, não acontece por acaso a tomada dos nomes de
Fidélia e Tristão, seria mais um exercício da ambigüidade de
Machado a escolha desses nomes, como o particular da ópera,
este tipo especial de expor a música para manter a graça do
enredo de um livro carente de ações, de enredo simples,
singelo, entretanto, não sem significação.
O que se diz de “ver com novos olhos” ou “olhar sob nova
luz” é, na verdade, a expressão de uma idéia pela falta do
nome, é expressar alguma coisa antes já sugerida, urgentemente
nomeada porque diante da “crescente complexidade dos fenômenos
culturais” o falante precisa, mais uma vez, classificar.
No esporte, a substância é dada pela presença dos
jogadores no campo, toda a atenção e tensão dirigem-se à
possibilidade de emergir uma forma a partir da interação
dos corpos presentes. Na ópera, já que o libreto anuncia
antes a ação, a atenção e a tensão do público, dos
cantores e dos músicos está voltada para a emergência da
substância sonora.15
Ora, Machado de Assis certamente provocava em nós as
possibilidades de sua história, de dados claros, singela, a
história do casal Aguiar e de seus afilhados e visitantes se
desenrola dentro de uma das possibilidades de realização,
certamente, Machado de Assis exercitou conosco esta mesma
tensão operística; já tínhamos quase o libreto, o maestro, os
músicos, o cenário, era só o caso de ver realizar-se. E os
recursos musicais não cessam, ao contrário, o “momento de
silêncio, antes da abertura, cria a descontinuidade entre o
cotidiano e a encenação”.16 O Memorial de Aires está escrito em
diário, cada dia é um nova entrada, há intervalos seguidos e
seqüenciados, são os momentos de silêncio narrativo. Ao mesmo
14
GUMBRECHT, op. cit. 15
GUMBRECHT, idem.
10
toque que reforçam o descompromisso narrativo, as pausas, como
a despertar a atenção para o seguinte, refazem o momento de
silêncio da ópera.
Um intertexto operístico está no Memorial de Aires, a cada
citação da linguagem musical – por exemplo, tenho claro
contracanto, baixo contínuo, apoteose –, o leitor tornado
platéia é público de afilhados, de pupilos, alunos ou
seguidores e segue aqui encantado pelas evocações musicais do
escritor. O rallentando, da linguagem musical, é um ritmo aos
poucos se acabando, como vai aos poucos ralentando o diário do
velho Conselheiro Aires, mais um indício fortemente aproximado
de aprender a morrer, ralentando…
Sem querer mais falar de esquemas musicais, passo
rapidamente por uma explicação sobre a urdidura dos elementos,
da riqueza de variedades arranjadas da maneira mais equilibrada
possível no sentido de criar uma “obra de invenção e técnica,
mais que de inspiração”.17 A escrita de Machado pode considerar
a cadência perfeita, em evoluções espirais e sintomaticamente
contínuas, entretanto sua música é ilusória. No abandono dos
compromissos do casalzinho Tristão e Fidélia, há dissonância;
no casal Aguiar, antes velhos hospitaleiros e risonhos, há
solidão e saudade de si mesmos que lhes é consolo, há
dissonância; no próprio Aires, que agora ficará
irremediavelmente sozinho e morto, há dissonância. No fundo e
no fim, “tudo [...] parece beneficamente confuso”. O ato final
é de paz e “termina com as labutas da conquista, a libertação
do tempo que une o homem com Deus, o homem com a natureza, em
sensualismo, jogos e canções.18
No fim, a técnica de Machado de Assis escreve uma cerimônia
de sacrifício reconciliatório, em ritual de música e de morte.
16
GUMBRECHT, idem. 17
SCLIAR, Ester. Elementos de teoria musical. São Paulo: Novas Metas, 1986. 18
MARCUSE, Paul. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1981.
11
O pito
A regra é que dá a forma às coisas, inclusive quando as
coisas pervertem a regra que lhes deu forma, até pela burla,
essas coisas precisam se aproximar da regra. Na escrita do
Memorial de Aires, as regras estiveram na construção da
história tanto quanto nas relações da pequena elite carioca
retratada. O caso do Memorial era uma provocação final de
Machado de Assis, seria seu último livro, seria mais uma de
suas crônicas precisas, em romance, em diário que distraísse a
atenção do leitor à morosidade, que despertasse uma observação
mais alerta do mundo.
Em seu último romance, Machado de Assis escreve para
provocar, chegou a ser considerado menor pelo gosto do leitor,
mas é na sutileza que o seu Memorial deixou a opinião bem
marcada. Em uma referência ao ensino de música, à professora
Ester Scliar, um de seus alunos relata: “Chegava a ser
intransigente, polêmica e afogueada feiticeira que se comprazia
com a luta, o movimento que transformasse o lago sereno das
certezas no mar encapelado das inquietações”.19 Em Alberto
Mussa, no Elegbara, “A primeira comunhão de Afonso Ribeiro” e
“Os sábios de Tombuctu” figuram situações em que os mestres se
perdem, perdem-se de seus discípulos e perdem a maestria porque
se perdem na regra, foram desafiados em seus espaços de atuação
e perderam-se nos meandros da conversa de um andarilho
tentador.
Afonso Ribeiro percebe a disputa entre o pajé e o cacique,
sem entender bem a língua, mas percebendo cada nuance da
discórdia. O degredado enxerga na luta entre os líderes da
tribo o desejo de poder e o mando, um acredita que é líder por
desígnio de deus, acredita que é foi escolhido e é imortal; o
outro acredita que só a razão e o conhecimento garantem a vida
e a prosperidade da comunidade, ao líder cabe educar e comandar
porque é o mais capacitado. O fim dos dois é a morte, a tribo
19
ESCOBAR, Ailton. Prefácio de SCLIAR, Ester. Elementos de teoria musical. São Paulo: Novas Metas, 1986.
12
não percebe a ausência dos dois líderes e ele morrem sozinhos,
um perde o privilégio divino e o outro perde a confiança dos
seus.
Em Tombuctu, os sábios perderam-se em conflitos sobre a
verdade, acreditavam racionalmente conhecer o que era a verdade
e caíram em desgraça; o elemento desagregador foi a discórdia,
plantada por um andarilho; depois de se desentenderem os
sábios-mestres, o mundo conhecido ficou soterrado pelos novos
interesses de fé e de moeda.20
Estas narrativas privilegiam o conhecimento, as categorias
da regra, do saber e do tempo. Há uma sugestão de que os
mestres detentores do conhecimento têm também o domínio do
ensinamento, da conservação e do aprimoramento do saber. Há uma
sugestão de que será preservado da ação do tempo o conhecimento
modelado e difundido em regra, para que haja uma futura
compreensão do mundo. Contudo, no Memorial de Aires o que
acontece é a tentação à regra, a perversão da regra, a fuga da
regra.
Os relatos diários do Conselheiro Aires têm indícios de
mudança, de mutação de regras sociais, de moral e bons
costumes, de maledicência e de interesses... Entretanto, tudo
acontece na suposição da mais estreita e justa correção, D.
Cesária é o grande retrato da mudança. Ela atiça o pensamento
meio safado e pervertido, “[...] tão risonha que parecia falar
mal de mim, mas não falava, ia só – ou falava de mim consigo;
mas só consigo não teria tanto prazer. Cumprimentámo-nos e
seguimos”.21 O escritor coloca na senhora uma perversão meio
escondida, velhaca, que atiça a traição, atiça a dúvida, mas
depois passa, vai, segue, aceita o estranhamento e continua seu
próprio rumo. Esta mutação é uma provocação, tão instigante e
dificultosa que só ao bom senso musical é dado realizar.22
20
MUSSA, Alberto. Elegbara. Rio de Janeiro: Record, 2005. 21
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memorial de Aires. Belo Horizonte: Garnier, 2008. 22
SILVA, José Paulo da. Manual de fuga. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Música. Universidade do Brasil,
13
A falsidade dos relatos do Conselheiro chega a se aproximar
das apropriações criativas do sertanejo Ariano Suassuna, na
Pedra do Reino, em que faz um narrador sabedor de todos os
conhecimentos, histórias e verdades, capaz de contar seus
causos baseado em outros, sempre pervertidos à maneira do
sertanejo, a maneira de lhe servir ou de atender, “A rigor,
todas as citações no Romance da Pedra do Reino são falsas ou
transformadas, o escritor nunca cita um texto alheio sem
interferir nele, sem modificá-lo a propósito, usando para isso
o pretexto de ser Quaderna que faz a citação se amoldar a seu
estilo régio”.23 O velho Quaderna cita outros sábios e regras
pervertendo seu sentido. O velho Conselheiro conta os fatos e
os acontecidos pervertendo tudo e, é diferente, ele mesmo,
porque é desmascarado por D. Cesária, ela sabe que “as regras
[do conselheiro] não têm o rigorismo das leis”.24
Tratamos da tessitura de um espetáculo, montado ao modo mais
provável e equilibrado e simples, entretanto, nem de longe este
retrato do mundo está aproximado da sintonia, muito mais perto
ficou da dissonância; tanto é que mestre e discípulos (poderia
falar Conselheiro Aires e D. Cesária) estão em fase e
defasagem, em pleno-quase-desentendimento, encontram-se e
afastam-se, um quer fugir a si e o outro quer enganar o
primeiro.
Na cultura de presença, este espírito provocador é
encantado, do ponto de vista ideal, o corpo é “possuído” pelo
espírito, pelo demônio, pelo deus. Cada evento apresentado não
está lá para uma definição feita em contrastes, com intenções e
expectativas, mas por uma resultante dos contrastes, “A
possessão, no cotidiano, não é rasura, é ênfase”.25
1949. 23
MUZART, Idelete. “O decifrador de brasilidades”. In: Ariano Suassuna. Cadernos de literatura brasileira, nº 10.
Rio de Janeiro: Instituto Moreira Sales, novembro de 2000. 24
SILVA, op. cit. 25
GUMBRECHT, op. cit.
14
Assim, acreditando na influência do espírito possuidor
pervertendo as regras a que deveria o mundo obedecer, chegamos
aos afetos de Fidélia, a moça que foge a si mesma. Machado de
Assis tem, neste Memorial de Aires, as artes do desfazer e do
abandono, de recuar às obrigações ou aos compromissos pátrios,
mátrios e sociais. O tempo preside a tudo, passa e, por causa
do movimento das coisas, é impossível voltar ao começo. Neste
lugar vejo o poder do movimento a determinar dinastias,
sucessões, na eterna transformação das coisas, Fidélia tem
conhecimento de que o tempo passará e que cada momento é uma
tentação de seu desejo feminino, de seu desejo por ser esposa,
mãe, mulher, ela sabe e parece fugir de si mesma.
A moral é o que faz o povo conviver, segura, sustenta as
relações entre os homens. O jogo de Machado de Assis expõe
discussões das mais interessantes na literatura, das que
instigam o leitor, das miudezas morais, das regras de
convivência em comunidade, estabelecidas e pervertidas para
apaixonar o leitor, da evidência de que “O povo cansou de ser
virtuoso”.26
Essa situação cabe ao povo francês, já no período final da
Revolução, o povo novamente se rebela, a observação de
Montaigne cabe também para a descrição do que ocorre a Fidélia,
ela cansou de ser virtuosa.
O Conselheiro Aires é sábio, sensato e experiente, as suas
referências à história social deveriam ter importância maior na
narrativa, mas não têm. O narrador é dúbio, Aires é ator. Passa
pelos fatos com visão de panorama, em sobrevôo de pássaro.27 No
fim, o conselheiro Aires não assume o papel de narrador, mas
anotador cotidiano; seletivo, o velho Conselheiro age como
aquele que confunde que faz pouco caso das verdades
estabelecidas, para ser mensageiro, mediador entre diferenças,
entre diferentes mundos que, de outra forma, ficariam
eternamente separados com suas leis incompatíveis; um narrador
26
MICHELET, Jules. História da Revolução Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 27
MELO E SOUSA, op. cit.
15
que trabalha entre o dito e o não dito, entre encobrir e
descobrir.28
Machado de Assis teve aqui uma capacidade de reunir coisas,
de inventar coisas e deixar tudo sem definição; na platéia e no
jogo, deseja-se chegar ao fim da partida, deseja-se placares
bem definidos, saber exatamente quem é o vencedor e quem é o
vencido, ver a punição dos culpados e a premiação dos heróis.
Mas este desejo no Memorial fica suspenso, o autor não nos
define, exatamente, ele sugere tanto quanto o sorridente
cumprimento de D. Cesária.
Uma referência interessante ao largo mundo é a capacidade de
agradar opostos do conselheiro Aires. Assim como o deus da
transformação pode transitar entre o vivo e o morto, o deus das
encruzilhadas, da troca e da volatilidade – Hermes, Mercúrio,
Exu –, o compasso largo do Conselheiro Aires acontece para
agradar extremos, aceitar o bem e o mal, não há verdade, o que
há é a contingência.
E o tempo, que na maioria das histórias a tudo consome, aqui
é preservador da vida, a concepção da história do Memorial de
Aires é de um tempo cíclico, de sucessivas gerações, da morte
do velho e da necessidade de vida do jovem. Bastante aproximado
do pensamento africano exposto por Nei Lopes: “O ser humano tem
de acreditar na existência simultânea do passado, do presente e
do futuro e orientar seu tempo dentro da harmonia dessas três
variantes. O conceito de tempo linear é uma ilusão e a
materialidade, uma miragem”.29
28
MEIRELES, Teresa Cristina. Anotações de aula. Rio de Janeiro: 2º semestre de 2008. 29
LOPES, Nei. Kitábu - o livro do saber e do espírito negro-africanos. Rio de Janeiro: Pallas, 2007.
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Discípulos
No pequeno “Idéias de um canário” estão figuradas grandes
preocupações da humanidade e uma das resultantes proposições
deste estudo: o desejo de entender o mundo nascido da relação
entre mestre e discípulo. Nosso interesse pode chegar alguma
hora a esbarrar, na era da globalização e da consagração do
superficial, na prática dos mestres a tentar desvendar o mundo
ou educar a grande massa da população desnorteada.
Buscando um caráter originário sem comprometer o rigor
científico, levanto a suposição das relações dos mestres com
seus discípulos sem pensar em melindres nem ressentimentos
porque o que importa na arte é a estética, não a ética. Será
sempre um gesto de esperança a reunião de mestres e discípulos
para conversar. Hierarquia e ancestralidade são essenciais a
este aprendizado. Os mestres são, sim, os detentores de um
segredo, uma visão de história e de ancestralidade que não pode
ser compartilhada de modo raso, simples, direto e fácil. Só
pode ser sugerida, até que se torne, enfim, compreendida pelo
discípulo capaz. O Conselheiro Aires quer cumprir o papel de
mestre, encontrar no moço Tristão o discípulo possível, mas a
realidade é outra nesta relação. Ao fim do relato, percebemos
que o discípulo era um quase-traidor, estava distante
formalmente do discípulo aplicado, era mais de representação
que de afeto a aproximação do jovem ao casal Aguiar, ao velho
conselheiro, ao Brasil, provavelmente.
Os três aspectos são ferramentas de uso, manuseio e artifício
legado a mestres. Inclusive quando se usam deles para desfazer
a relação de mestrado, de ensinamento.
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