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MANGÁ: UMA FERRAMENTA DIDÁTICA PARA MULTILETRAMENTOS
Célia Tamara Coêlho128 Elvira Lopes Nascimento (Orientadora)
RESUMO
O objetivo dessa pesquisa é o de apresentar dados de análise dos mecanismos verbais e não-verbais presentes no gênero Mangá que
constituem aspectos de multimodalidade (KRESS & VAN LEEUWEN, 2001; DIONÍSIO, 2006) e que possibilitam a aproximação da linguagem desse
tipo de HQ com a linguagem falada no nosso cotidiano. Para tanto, selecionamos trechos do seguinte Mangá que se constitui em nosso corpus
de análise: “Chobits” nº2 da Editora Kodansha distribuída no Brasil pela Editora JBC. Dessa maneira, os simulacros edificados por esse gênero
textual (NASCIMENTO, 2009) permitem que a linguagem da arte misture-se com a linguagem da vida por meio da fala, dos comportamentos e dos
aspectos culturais representados simbolicamente em suas histórias. Dessa forma, partimos do pressuposto de que tal tipo de HQ é um texto
visualmente mais informativo e que requer dos leitores um letramento multimodal para interpretar aspectos lingüísticos e visuais e assim,
compreender os efeitos de sentido presentes no texto.
Palavras-chaves: Mangá, multimodalidade; multiletramento.
128
Aluna bolsista do programa CAPES/CNPQ do mestrado em Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Colaboradora do projeto de “Pesquisa Gêneros Textuais e Ferramentas didáticas para ensinoaprendizagem de Língua Portuguesa”,
coordenado pela minha orientadora Profa Dra Elvira Lopes Nascimento.
390
Introdução
A linguagem em seus aspectos de representação da vida co-
evoluiu com a maneira de construção da sociedade contemporânea. Dessa
forma, cultura, história e linguagem interelacionam-se e modificam-se
constantemente, na medida em que representam o agir, o pensar, o ser e
o sentir de um ser humano, ao mesmo tempo, multifacetado e individual
que fabrica a realidade tanto cotidianamente quanto nas histórias das
HQs. Convém ressaltar que o gênero Mangá 129 constitui-se em uma das
formas de manifestação artística, em que o discurso da arte e da vida
fundem-se.
O advento da imagem como simulacro de edificação simbólica e
semiótica da realidade social evidencia as mudanças na forma de ler e
produzir dos textos, que passam a ser vistos como construtos multimoda,
nos quais a modalidade escrita é vista como um dos modos de
representação (MOZDZENSHI, 2008).
Portanto,
Imagem e palavra mantêm uma relação cada
vez mais próxima, cada vez mais integrada.Com o advento das novas
tecnologias, com muita facilidade se criam novas imagens, novos layouts, bem como se
divulgam tais criações para uma ampla audiência. Todos os recursos utilizados na
construção dos gêneros textuais exercem uma função retórica na construção de sentidos dos
textos. Cada vez mais se observa a combinação de material visual com a escrita;
vivemos sem dúvida, numa sociedade cada vez mais visual.(DIONÍSIO, 2006, p.131-144)
129
A idéia que norteia esse trabalho a respeito da conceituação de gênero é a Bakhtiniana de que os gêneros textuais constituem-se em
entidades sócio discursivas que refletem e refratam os modos de agir, de pensar e de organizar da sociedade
391
A linguagem é concebida como um mecanismo de interação
social que tanto reflete quanto refrata a vida cotidiana e que sempre é
dialógica (BAHKTIN, 2003). Dessa maneira, os gêneros textuais
perpassam as manifestações discursivas e sociocognitivas dos empates
político-ideológicos que moldam e constroem as relações entre os sujeitos,
bem como,determinam os papéis sociais a serem seguidos nas distintas
situações do viver em sociedade.
O discurso verbal e não-verbal, portanto, dentro de cada gênero
textual é resultado de uma ação comunicativa tanto coletiva quanto
individual que se atualiza, constantemente, pelo fato da interatividade
entre ficção e realidade que permite a verossimilhança. Essa
verossimilhança não significa uma “cópia” exclusiva do real, mas uma
possibilidade de aceitação do enredo da história, ou seja, o
reconhecimento das redes de significados plausíveis para a sua
compreensão.
O Mangá diante do contexto da disseminação da informação em
um “click”, da iconização da cultura e sua transposição para a tela do
cinema, bem como, a sua influencia na elaboração dos quadrinhos
nacionais e mundiais, torna-se um fenômeno global que legitima e
dissemina padrões de comportamento, formas ideológicas do pensar, do
agir e do dizer da cultura japonesa, ao mesmo tempo em que simboliza os
mecanismos ideológico-culturais de uma sociedade capitalista. Dessa
maneira, essa cultura pop 130 abarca uma diversidade de leitores
(crianças, jovens e adultos) que fascinados pela sua linguagem hibrida de
leitura fácil e prazerosa projetam seus sonhos, escondem seus medos e
frustrações em uma forma de entretenimento, na qual [...] as
personagens do mangá, que, ao contrario dos super-heróis produzidos no
130
“Cultura popular, cultura de massa ou cultura pop é a cultura vernacular - isto é, do povo - que existe uma sociedade moderna. O
conteúdo da cultura popular é determinado em grande parte pelas indústrias que disseminam o material cultural, como por exemplo as indústrias do cinema, televisão, música e editorais, bem como os veículos de divulgação de notícias. No entanto, a cultura popular não pode
ser descrita como o produto conjunto dessas indústrias; pelo contrário, é o resultado de uma interação contínua entre aquelas e as pessoas
pertencentes à sociedade que consome os seus produtos”. FONTE: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cultura_popular acessado em 25/07/10
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ocidente, são heróis concebidos a partir do mundo real, os quais as
pessoas podem encontrar, além de uma espécie de miniatura. Essas
revistas servem para que os leitores vivenciem suas fantasias, que
preferem reprimir e interiorizar. São abundantes e oferecem uma válvula
de escape silenciosa afeita aos japoneses, que preferem reprimir seus
sentimentos. [...] (LUYTEM, 2001, p.40).
Essa leitura de escape presente no cotidiano, não somente, na
sociedade oriental, como também na ocidental atrai milhares de pessoas
que se reúnem em feiras como a Comic-Com (2010) 131, encontros de
animes 132, ou mesmo, em casa depois de um dia estressante para lerem
o Mangá, evidenciando que esse gênero se constitui em uma fonte da
memória compartilhada repleta de valores e regras aceitos, modificados e
reescritos pelas personagens e pelos leitores que são ao mesmo tempo
influenciados e influenciadores.
Os Mangás, essas narrativas icônico-verbais, ao serem lidos
precisam acionar uma rede de significações sociocognitivas o que requer
que o leitor seja multiletrado para poder perceber que esse tipo de texto
não é tão inocente quanto parece ser. Para tanto, propomos seu uso nas
escolas apoiado em uma prática pedagógica que permita ao aluno ser um
sujeito crítico e reflexivo sobre os textos que lê e produz, para poder
compreender, interpretar e resignificar os efeitos de sentido e os
significados tanto explicito quanto implícito nos textos que utilizam tanto
linguagem verbal quanto não verbal.
É inegável a importância desse gênero quadrinizado, tanto que
seu uso passa a ser didatizado na forma de cartilhas jurídicas e de saúde,
a fim de esclarecer a população sobre seus direito e deveres, no primeiro
caso, e no segundo, como forma de profilaxia. Dessa maneira, a
131
Uma das maiores convenções de quadrinhos do mundo, a Comic-Con acontece de 21 a 25 de julho em San Diego, nos Estados Unidos.
http://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento acessado em 25/07/10 132
Termo que define desenhos japoneses (animações) os quais derivam do mangá.
393
linguagem fluida e oralizada ancorada pelas imagens é um mecanismo
que seduz ao mesmo tempo que manipula discretamente seus leitores por
meio dos estereótipos sociais disseminados pelas personagens dessas
histórias. Nesse sentido, entendemos que esse gênero se presta a
atividades de letramento escolar por se tratar de uma prática discursiva
emergente que está ligada à aparição de novas motivações sociais que
são resultantes de novas circunstâncias de comunicação associadas à
produção tecnológica, constituindo assim um novo ambiente de interação
social que precisa ser estudado e didatizado.
1. Breve histórico do gênero Mangá e suas característica: a
edificação de um fenômeno mundial
A imagem permeia a vida humana desde os primórdios, uma vez
que surge antes da palavra escrita para representar os costumes, os
valores, os hábitos e mesmo a religiosidade e o misticismo como forma de
registro de uma cultura oralizada. Dessa maneira, os desenhos retratam o
viver da sociedade desde as pinturas rupestres 133, ao surgimento do
alfabeto ideográfico 134, até a utilização dos textos imagéticos na
sociedade contemporânea e sua fusão com o texto verbal, quadrinizado,
televisivo e virtual (internet).
133 As pinturas rupestres são desenhos feitos nas paredes das cavernas que retratam o cotidiano das sociedades préhistóricas, bem como, seus costumes e valores sociais. Elas são consideradas patrimônio da humanidade desde 1993 pela UNESCO. (ENCICLOPÉDIA BARSA
DIGITAL, 2001 – CD ROOM)Uma das maiores convenções de quadrinhos do mundo, a Comic-Con acontece de 21 a 25 de julho em San
Diego, nos Estados Unidos. http://noticias.bol.uol.com.br/entretenimento acessado em 25/07/10 134
O alfabeto ideográfico surge há aproximadamente 3.000 a.C, sendo utilizado pelas seguintes civilizações fenícia, egípcia. Os fenícios
foram os primeiros a inventarem esse tipo de escrita pictográfica em tabuas de barro e de maneira, representado de uma maneira cuneiforme
(em forma de cunha) com a finalidade de registro e preservação de sua cultura. Outras sociedades também possuem esse tipo de alfabeto
chinesa e japonesa. (ENCICLOPÉDIA BARSA DIGITAL, 2001 – CD ROOM)
394
Pinturas Rupestres
Fonte: http://pt.wikipedia.org
Desenho Mangá (animes)
Fonte: http://ultradownloads.uol.com.br
O Mangá, história em quadrinhos japonesa, constitui-se em uma
narrativa icônico-verbal, sendo utilizada pela primeira vez pelo ilustrador
Katsushika Hokusai 135 em 1814 durante o período Edo 136 (LUYTEN,
2001), em formato de livro, para poder retratar de uma maneira lúdica as
características dessa sociedade. Convém ressaltar que esse gênero textual
deriva do emakimono, pintura japonesa em rolos de papel com textos que
contavam histórias do cotidiano, dos valores e hábitos, à medida em que
iam sendo desenrolados (MOLINÉ ,2004).
Outro fato que propiciou a sua disseminação consiste em que a
maioria da população japonesa era analfabeta em relação ao alfabeto
Kanji 137 e o Mangá, dessa forma, precisou utilizar os desenhos de traços
simples e estilizados de influencia chinesa para substituir aos ideogramas
135
Katsushika Hokusai (葛飾北斎?, outubro ou novembro de 1760 – 10 de maio de 1849) foi um artista japonês, pintor de
estilo ukiyo-e e gravurista do período Edo. Em sua época, era um dos principais especialistas em pintura chinesa do Japão.[1]
Nascido em Edo (atual Tóquio), Hokusai é melhor conhecido como autor da série de xilogravuras Trinta e seis vistas do
monte Fuji (富嶽三十六景, Fugaku Sanjūroku-kei?, c. 1831) que inclui sua pintura icônica e internacionalmente conhecida,
A Grande Onda de Kanagawa, criada durante a década de 1820”. FONTE: http://pt.wikipedia.org/wiki/Katsushika_Hokusai
acessado em 27/07/10 136
Período Edo marca o início do período moderno no Japão por Xogun Tokugawa Ieyasu (1603 a 1868). Nessa dinastia o
Japão isola-se do resto do mundo por meio de uma política anti-estrangeirismo chamada de shogun e desenvolve quanto
aprimora técnicas de gravação, bem como de suporte gráfico. 137
O Kenji é um dos três tipos de alfabetos oficiais japoneses, composto de ideogramas (desenhos) para representar palavras
e até mesmo frases. Convém ressaltar que além do som, explora também, a idéia contidas nos signos. Os outros são: o
Hiragana e o Katagana, cada um com 48 caracteres.
395
desse alfabeto (FARIA, 2007). Tal procedimento visou facilitar a
transmissão e interação dos leitores com as personagens pelo
reconhecimento dos arquétipos emocionais vinculados por esse tipo de
HQ.
Contudo, foi na Era Meiji (1868 a 1912) que o Mangá passa a se
configurar mais próximo do seu formato atual pela abertura cultural,
política e econômica aos estrangeiros, principalmente, aos norte-
americanos (LUYTEN, 1976). Para tanto, houve o início de uma indústria
do entretenimento, na qual o Mangá passa a possuir linearidade em suas
histórias e personagens fixos que se baseiam na infra-estrutura da
perspectiva de apresentação das HQs americanas (fusão entre a
linguagem verbal e não-verbal com a utilização de quadros e balões para
transmissão das histórias e com enfoque nos desenhos). Segundo Moliné
(2004) a primeira HQ japonesa com esses procedimentos foi criada por
Rakuten Kitazawa em 1901 (Tagosaku to Morukubei no Tokyo Kenbutsu -
A Viagem a Tokyo de Tagosaku e Morukubei).
Com o advento do cinema, na década de 20, os japoneses
puderam utilizá-lo para desenvolver animações sonoras baseadas nas
histórias dos Mangás (SATO, 2005). Mas, somente da década de 50 é que
o termo anime desponta-se, sendo uma derivação da palavra inglesa
animation, designando os desenhos animados japoneses (LUYTEM, 2001).
A partir desse momento, os Mangás e animes com Osamu Tesuka sofrem
duas profundas transformações, de acordo com Moliné (2004): 1) o
desenho acentuado dos olhos para melhor representar simbolicamente os
sentimentos e emoções psicológicas de uma forma mais profunda que
sensibiliza eficazmente o leitor; 2) técnicas de enquadramento
cinematográfico e animação para induzir movimento e passagem do
tempo nessas histórias. Portanto, esse gênero textual alcança proporções
globais, contituindo-se em um produto de exportação que abarca
mercados como os dos EUA, Mexico, Brasil, etc. Em solo brasileiro há,
primeiramente, uma explosão mercadológica dos animes (Dragon Ball Z,
396
Samurai X, Pokémon, Naruto, dentre outras) para sua posterior
disseminação em formato de HQ. Hoje, os Mangás são inegavelmente, um
fenômeno em vendas e atraem milhares de leitores que sucumbem a
leitura prazerosa e emocionante de suas histórias que retratam varias
temáticas tais como: sátira a sociedade atual, crise existencial, humor e
sexualidade, etc.
Convém evidenciar que apesar de influenciado pelas HQs
americanas, o Mangá apresenta peculiaridades tais como: 1) personagens
próximas da realidade social, já que desempenham papéis sociais do
passado, do presente e da perspectiva do futuro da cultura japonesa,
podendo ser: samurais, dona de casas, vendedores, estudantes, robôs,
etc. Portanto, não há o misticismos dos heróis americanos, ou seja, essas
personagens são reais, sem super-poderes e com traços humanos como o
dualismo (convivem em seu ser e existir traços de bondade e maldade) e
não são imortais; 2) o público leitor influencia na sua escrita, podendo
alongar as histórias ou reduzí-las, chegando, até mesmo, a terminá-las;
3) há uma linearidade temporal e cronológica, na qual o produtor do
Mangá, chamado de Mangaka, elabora as histórias a partir do nascimento
das personagens, passando pela sua adolescência, maturidade, velhice e
até, evidenciando, a morte das mesmas. Tal procedimento, propicia uma
visão geral da história, aproximando-a da vida cotidiana real, uma vez que
o viver das personagens é verossímil, ou seja, é reconhecido como
realidade possível; 4) a leitura das histórias é realizada da direita para
esquerda, diferente da leitura da sociedade ocidental (esquerda para a
direita); 5) sua impressão acontece em papel jornal e, geralmente, é feita
de forma monocromática (em preto e branco) para baratear os custos de
impressão; 6) os formatos dos balões são diferenciados, mas próximos
dos convencionais americanos; 7) ênfase na expressão caricatural das
personagens, com olhos acentuados e traços, ao mesmo tempo angélicas
quanto sexis, e personagens masculinas com rostos afeminados; 8)
sobreposição dos quadros e o formato dos mesmos, possibilitam a idéia de
397
movimento cinematográfico durante a sua leitura; 9) divisão em faixa
etárias: shounen (garoto jovem) ,shoujo (garota jovem),o gekigá, que é
uma corrente mais realista voltada ao público adulto, seinen para homens
jovens e josei para mulheres. Os desenhos abaixo possuem a finalidade
de exemplificar os tópicos comentados anteriormente.
2
1
6
Forma de leitura dos Mangás
Revista de Mangá: Chobits nº2 pg. 34
5
4
3
398
Os Mangás conquistam
cada vez mais espaço nos
momentos de lazer de um
público, tanto oriental
quanto ocidental, que
busca uma válvula de
escape de uma realidade
permeada por regras de
conduta e moral de uma
sociedade capitalista que
enaltece, a cada dia, o
parecer e não o ser.
HQ americana: Marvel 2000 nº3
Dessa maneira, os leitores são transportados ao mundo
imaginário em que podem realizar as suas fantasias, explorar os seus
medos, salvar lindas donzelas, liberar pudores, etc. Tudo, sem sair de
casa, e ainda gastando muito pouco, em uma viagem pelo universo
acessível do Mangá, que não é nada ingênuo ou neutro.
2 Multimodalidade e multiletramento: a construção dos múltiplos significados dos textos
A fim de disseminar a utilização e a didatização na esfera escolar
do gênero Mangá, aproveitamos para evidenciar que como todo tipo de
texto, esse possui um discurso dialógico e manipulador, no sentido que
seduz os leitores de forma consciente ou não a utilizar e aceitar os
produtos, objetos de consumo, que são veiculados em suas histórias, bem
399
como, as idéias, os valores e as crenças que influenciam a forma de agir e
de ser dos indivíduos no mundo real cotidiano. Para tanto, é necessário
uma escola voltada para a formação de um sujeito histórico e social que
não pode desvincular do seu conteúdo programático textos da cultura
popular (PCNs, 1998), além de, possibilitar aos alunos desenvolver e
aprimorar as suas capacidades lingüísticas, cognitivas e discursivas
(BRONCKART, 2003) para que possam se tornar multiletrados, ou seja,
interpretar e analisar textos multimodais (NASCIMENTO, 2009).
Segundo Kress e Van Leeuwen, 2001, gêneros multimodais
referem-se àqueles que utilizam além da linguagem verbal uma linguagem
não-verbal que ao se articularem geram possibilidades de sentido. Dessa
maneira, devido a revolução nas formas de impressão e visualização dos
textos no ciber espaço, e mesmo, a existência da possibilidade de
articulação entre texto e imagem na mídia televisiva e cinematográfica, o
papel do leitor sofre profundas transformações, uma vez que se torna
primordial para uma leitura eficaz e crítica que o indivíduo seja capaz de
rearranjar suas estruturas sociodiscursivas para conseguir interpretar e
entender esses tipos de textos. Para Tanto, o multiletramento na visão de
Oliveira (2009), advêm do conceito de “letramento ideológico” que
perpassa a acessibilidade de diversos textos a serem trabalhados no
ambiente escolar, para que os alunos sejam capazes de perceber e
analisar criticamente as formas ideológicas e os mecanismos de
manipulação e dominação utilizados, bem como compreender,
interpretara e resignificar os significados que são veiculados nesses
discursos 138.
Como a nossa pesquisa foca-se na multimodalidade presente no
gênero Mangá, aproveitamos, assim, o quadro abaixo para evidenciar os
processos icônico-verbais de fabricação da realidade nesse discurso do
narrar.
138
O sentido de discurso utilizado no artigo refere-se tanto a textos verbais quanto não-verbais
400
Linguagem verbal Linguagem não-verbal
· Estruturas lexicais, fraseológicas e
discursivas que se combinam para
propiciar sentido e transmissão de
informação;
· Polifonia, intertextualidade e
dialogismo, conceitos da teoria
bakhtiniana, sendo que o primeiro
e o segundo referem-se a
possibilidade da existência de
distintas vozes sociais que
auxiliam a compor os discursos. O terceiro
termo constitui-se em
qualquer produção que perpassa as
relações sociais.
· Figuras de linguagem, tais como
onomatopéia, metáfora, hipérbole,
etc
· Balões, quadrados;
· Enfoque e distribuição da
perspectiva de enquadro das
personagens;
· Formas de impressão e
visualização;
· Desenhos e marcas gráficas;
· Tipos de cores e texturas utilizados
e seus contrastes;
· Sobreposição de cenas e quadros;
· Espaços em branco;
Quadro: recorte dos aspectos da multimodalidade no gênero Mangá
A questão da simbolização semiótica do mundo real retratada por
esse tipo de gênero aliada aos recursos verbais e não-verbais explorados
no quadro acima circundam a idéia de discurso de Fairclough (2001), que
se pauta na observação dos efeitos de sentido que essa simbolização
produz em seus leitores: 1) contribui para a construção de identidades
sociais e posicionamento do sujeito; 2) permeia e edifica as relações
sociais entre os indivíduos; 3) serve de base para a construção de um
sistema de crenças e conhecimentos. Dessa maneira, o “fazer sentido”
dos textos multimodais como o Mangá, situa-se na qualidade da narrativa
icônico-verbal em acionar em seus leitores cadeias intertextuais de
sentido, termo usado por Fairclough (2001), na qual a textualidade se
manifesta como representação tanto explicita quanto implícita do real.
As práticas discursivas que permeiam esse texto perpassam os
sistemas de cognição sociais fundamentais e organizadores das atitudes e
das representações sociais, que se estabelecem por meio dos estereótipos
veiculados pela personagens desse tipo de HQ. Portanto, o imaginário
tanto coletivo quanto individual dos seres humanos é resultado de
experiências cotidianas reais ou ficcionais, na qual arte e vida fundem-se
401
em um espetáculo, que nada mais é do que o possível e o identificável de
uma superposição do eu, do outro e do nós, em uma narrativa icônico-
verbal que conta o próprio viver do homem sócio-histórico.
3.Análise de uma cena do Mangá: “Chobits” nº2
Convém ressaltar que essa pesquisa constitui-se em um recorte,
ou seja, uma analise de uma cena da Revista de Mangá: Chobits nº 2
criada pela CLAMP 139 e distribuída no Brasil pela editora JBC, em 2003.
Primeiramente, gostaríamos de apresentar uma sucinta contextualização
do seu contexto de produção e do seu enredo, aspectos relevantes para o
compreensão do artigo.
A Revista Chobits destina-se ao público masculino de 20 a 40
anos, ou seja, é do gênero seinen mangá. Sua história acontece no século
XXI e seu personagem principal é Hideki Motosuwa, um jovem estudante
que se muda para a capital Tókio, a fim de ingressar na universidade.
Quando Hideki chega a grande cidade, descobre um mundo, no qual os
avanços tecnológico são uma realidade comum ao cotidiano. Dessa
maneira, possuir um computador portátil, ou mesmo, ser o dono de um
robô com aparência humana, os chamados persocons, é absolutamente
normal. Nesse mundo os persocons permeiam o viver dos indivíduos que
os ensinam a realizar tarefas que vão desde a lavar os pratos, até acessar
a internet, e inúmeras outras coisas mais. Hideki, também queria ter um
persocon, mas devido a sua condição de estudante, não tinha muito
dinheiro. Contudo, uma bela noite quando voltava para casa encontra
uma persocon jogada no lixo. Como ela parecia estar em perfeitas
condições, Hideki a leva para casa e a liga. Ao ligá-la o estudante percebe
que a memória da persocon foi apagada e que ela parece ser da lendária
serie dos Chobits (lenda urbana que se conta sobre persocons com a
capacidade de desenvolver uma personalidade e ter sentimentos). Como a
139
CLAMP constitui-se em um grupo de mangakas do Japão, formado por quatro escritoras mulheres: Ageha Ohkawa, Mokona, Tsubaki
Nekoi e Satsuki Igarashi. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/CLAMP acessado em 02/08/10
402
robô fala constantemente a palavra Chii, Hideki a passa chamar dessa
forma. Assim, a história desse mangá perpassa as confusões, descobertas
e incertezas que constroem os caminhos de Hideki e Chii que os levam a
busca de informações para desvendar a origem da robô.
A cena abaixo constitui-se no momento em que Chii faz Hideki
sentir vergonha diante da sehorio, a dona do apartamento no qual as
personagens moram. Portanto, analisaremos a seguir os mecanismos
multimodais apresentados nesse excerto que as autores utilizam para
construir os efeitos de sentidos disseminados por esse texto.
403
Mangá Chobits nº2
A cena desenvolve-se por meio de oito quadros que se super-
posicionam e se fundem como uma moldura, a fim de facilitar a percepção
1
2
3
4
5
6
7
8
404
do tempo e do espaço na história. Além dessa finalidade os quadros
permitem também, estabelecer a posição do leitor em relação a cena,
bem como indicam a duração de cada evento, ao mesmo tempo que dão a
idéia de movimento cinematográfico ao mangá. Portanto, o olhar do leitor
é direcionado a pairar em cada cena em uma seqüência para desvendar
seu significado. Segundo Rama (2004) os quadros servem para preencher
as lacunas, ou mesmo as falhas que possam haver entre os quadrinhos,
uma vez que possibilitam ao leitor realizar inferências, presumir e
recuperar tanto do explicito quanto do implícito os efeitos de sentido.
Convém ressaltar que todos os quadros menos o três, utilizam uma
associação entre linguagem verbal e não verbal para fabricar a ilusão da
realidade. Dessa maneira, podemos constatar que o quadro três serve de
suporte para determinar a passagem de tempo entre os quadros um e
dois, na qual a personagem Hideki encontra-se aborrecido pelo
comportamento de Chii diante da senhorio, até seu restabelecimento
(elemento pressuposto) que culmina com um passeio com a persocon no
quadros quatro e cinco pela cidade.
Para ancorar o estado psicológico de vergonha e raiva pelo
comportamento de Chii, as autoras, no quadro um, encurtam a cena
(tamanho do quadro) e desenham Hideki de cabeça baixa, ao mesmo
tempo, que evidenciam uma nuvem de raiva que paira sobre sua cabeça.
Há, ainda nessa cena o contraste de claro e escuro para demonstrar a
turbulência do pensamento da personagem que se suporta pela sua
linguagem verbal entrecortada (Bo...). No quadro dois essa raiva é
externalizada pela caricatura acentuada do rosto de Hideki que se
contrapõe a figura entrecortada de Chii, objeto de sua fúria, acentuado
pelo balão de grito (com traçado firme e formato de estrela), no qual a
personagem grita uma pergunta monológica em negrito e em caixa alta,
para si mesmo, já que a senhorio já foi embora (BOA SORTE COM O
QUÊ???). As onomatopéias nos quadros um e dois aparecem em forma
de ideogramas do alfabeto kenshi e servem para reforçar os estados
405
psicológicos das cenas por meio da utilização do recurso da sonoridade.
No primeiro quadro, permeia a idéia de (ranger de dentes) e na segundo
do grito (AHHHHH).
Os quadros quatro e cinco demonstram o passeio de Hideki e Chii
e pressupõem a volta do equilíbrio pelo passar do tempo proposto pelo
quadro três. No quadro quatro as autoras lançam mão do recurso de
aproximação da cena para fundir o olhar do leitor com o olhar de Hideki,
que se encontra em um estado de espírito pensativo sobre os
acontecimentos anteriores. Dessa forma, a cena transmite a idéia de que
Hideki olha para cima para refletir sobre o ocorrido e visualiza um canto
de uma fachada qualquer durante o passeio. Essa inferência é sustentada
pela linguagem não verbal desse quadro é confirmada pela superposição
dos balões e do quadro da cena cinco que indica o que Hideki pensa sobre
o comportamento de Chii (N-N-Não pensei que ... / Ela fosse dar uma
gafe na frente da senhoria). Também, outro mecanismo que reforça o
estado de espírito reflexivo e de preocupação de Hideki proposto pelo
quadro quatro é que na cena cinco acontece o afastamento do enfoque,
permitindo que o leitor veja o desenho da personagem levando as mãos a
cabeça, bem como, há ainda, a onomatopéia ideográfica (sentido de Uf -
marca simbólica de que Hideki assopra para dizer que se encontra tenso)
acima de sua cabeça.
Os quadros seis e sete as autores possibilitam ao leitor por meio
da linguagem verbal exposta pelo balão do pensamento, perceber o que
Hideki pensa a respeito da persocon (quadro seis / A Chii não tem a
menor noção do que é certo ou errado); e no quadro sete uma conclusão
sobre essa valoração (Ensiná-la... pode ser muito mais difícil do que eu
imaginava...). As reticências no final do pensamento de Hideki, também,
podem indicar uma antecipação de problemas futuros referente ao fato de
ensinar noções morais a Chii. A linguagem não verbal do quadro seis foca
o desenho lateral de Chii que poderia se passar por uma humana se não
fosse o detalhe das suas orelhas que se sobressaem em relação a sua
406
cabeça. Essa imagem também reforça a questão de que a persocon não
diferencia o certo do errado, já que a sua caricatura passa uma
tranqüilidade inabalável diante dos acontecimentos. Na cena sete aparece
somente a silueta de Chii em um segundo plano e no primeiro há a
acentuação da expressão facial de Hideki (linguagem não verbal) para
ancorar a idéia proposta pela linguagem verbal nesse quadro (antecipação
de um problema).
No último quadro as preocupação de Hideki sobre as dificuldades
de ensinar noções de moralidade a Chii, evidenciada pelas cenas
anteriores, são quebradas, uma vez que o desenho do rosto da persocon
volta-se para a figura implícita de Hideki que se funde a do leitor. Esse
momento em que o sorriso Chii é direcionado a Hideki e ao leitor enfatiza
a quebra e se reforça pela adversativa (Mas...) presente no balão do
pensamento. Convém ressaltar que a reticência do pensamento da
personagem Hideki permite prender a atenção do leitor, criando uma
atmosfera de curiosidade para desvendar os acontecimentos posteriores.
Considerações Finais
O Mangá constitui-se em uma narrativa icônico-verbal,
multimodal que utiliza uma linguagem verbal e não-verbal para que o
leitor possa tecer interpretações e compreender os significados das suas
histórias. Dessa forma, não pode ser vista apenas como um emaranhado
de quadros, balões e personagens que encenam em um mundo ficcional,
com uma linguagem simples e fácil.
Como percebemos pela analise acima, as histórias perpassam o
mundo real dos leitores que são influenciados e influenciadores das
ideologias expostas pelos estereótipos das personagens, que nada mais
são, que reflexos do agir, do pensar, do ser e do existir do mundo real.
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Será que a escola como instituição do saber letrado não percebe isso?
Será que você, leitor, reflete sobre o que lê?
Essas questões circundam a elaboração desta pesquisa e, porque
acreditamos que somente seremos multiletrados quando tivermos uma
escola que possibilite transposições didáticas (CHEVALLARD, apud
NASCIMENTO, 2009) das práticas discursivas, o que implica abrir as
janelas da sala de aula para a vida, utilizando, sem preconceitos e
estereótipos, os textos da chamada literatura popular. Ao nosso ver, os
mangás podem ser utilizados como ferramentas didáticas que propiciam a
reflexão sobre temas transversais (como os benefícios e malefícios da
tecnologia) e sobre a cultura da paz e da convivência social harmoniosa,
tal qual é materializada pela linguagem multimodal da revista de mangá
Chobits.
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