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MANIPULAÇÃO DA VERDADEOPERAÇÕES DE FALSA BANDEIRA

Do incêndio no Reichstag ao golpe de Estado na Turquia

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ERIC FRATTINI

MANIPULAÇÃO DA VERDADEOPERAÇÕES DE FALSA BANDEIRA

Do incêndio no Reichstagao golpe de Estado na Turquia

Tradução deJOSÉ ESPADEIRO MARTINS

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A Silvia,pela paz que me transmite e, sobretudo, pelo seu apoioa todas as loucuras que empreendo. Sem ela, não teriatranquilidade suficiente para poder criar...

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«Há toda uma história de falsa bandeira, usadapara manipular as mentes das pessoas! Nosindivíduos, a loucura é rara; mas em grupos,partidos, nações e épocas, é a regra.»

FRIEDRICH NIETZSCHE

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PRÓLOGO

Há 2500 anos, o dramaturgo grego Ésquilo de Elêusis já alertavaque «na guerra, a primeira vítima é a verdade». Na realidade, esta ideiapode alargar-se a qualquer situação de conflito, crise ou tensão, querno âmbito político-estratégico quer no tático, pois o afã dos homenspara imporem a sua vontade sobre os outros nunca conheceu limites,levando-os a recorrer a qualquer manha de forma a lograrem os seusintentos, por muito questionáveis que sejam. Daí que nunca tenhamhesitado em recorrer à mentira, à astúcia, a estratagemas, à cilada e àtraição.

A triste realidade é que as fraquezas humanas têm sido — e con-tinuam a ser — uma constante, e são elas precisamente que levam aorganizar e a pôr em prática manhas e ardis de todo o tipo e à maispequena oportunidade. Com efeito, os progressos tecnológicos narealidade servem para encontrar novos meios e procedimentos paraenganar; quase nunca para refrear ou direcionar os sentimentos.A atormentada alma humana, com a sua dose permanente de maldadee assolada pelos pecados capitais, está sempre pronta para se deixar ar-rastar pela falsidade e pela crueldade, sobretudo quando se lhe ofere-cem altas quotas de poder; é nessa altura que se julga com o direito, einclusive com o dever, de decidir sobre a vida e a morte dos seus se-melhantes. Por isso, não deve surpreender-nos que em todas as guer-ras e conflitos entre grupos humanos o recurso à mentira e ao enganoseja moeda de troca habitual. Já o dizia Winston Churchill, com a sualendária troça: «Em tempo de guerra, a verdade é tão preciosa que temde ser protegida por uma barreira de mentiras.»

Num contexto em que as lutas e as rivalidades são uma constan-te, não é de estranhar que os estados e os diferentes entes implicados

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realizem operações encobertas destinadas a culpar terceiros, situaçõesconhecidas como «operações de falsa bandeira» (a expressão procededo contexto militar, quando se içavam bandeiras de um país diferentepara confundir o inimigo). Obviamente, a finalidade das ditas ações éconseguir uma vantagem clara referente a esse terceiro, que se procuraresponsabilizar pela ação. Este costuma ser um inimigo manifesto, al-guém que se pretende ver como um adversário, ou qualquer um — se-ja um país ou uma organização — que se pretende que a outra parteconsidere um rival, normalmente para provocar um desgaste entre elesou para encontrar um aliado onde anteriormente havia uma figuraneutra.

As ações de falsa bandeira são muito variadas, desde um atentadoterrorista até um ataque efetuado por forças militares, passando poratos de sabotagem (incêndios, destruição de fábricas, etc.) e subversão,e podem realizar-se tanto «fisicamente» como «virtualmente», ou seja,no espaço cibernético, na base de uma decisão política ou no própriocampo de batalha.

Embora sejam operações encobertas, os encarregados de as reali-zar costumam ser pessoal qualificado e, geralmente, são os serviços se-cretos os responsáveis pela planificação, ou pelo menos, coordenação.Estes serviços utilizarão os seus próprios agentes — com o apoio detécnicos especializados —, elementos das forças especiais dos exérci-tos ou pessoal contratado especificamente para a operação. É precisoter em conta que a especialização dos serviços secretos na altura derealizar operações opacas e secretas, e por vezes, obscuras, torna-nosmarcadamente úteis, pelo que é normal que, de uma maneira ou deoutra, estejam diretamente envolvidos; e não é estranho que quasesempre sejam uma parte fundamental. Em certos casos, sobretudo empaíses alheados dos parâmetros democráticos, há provas de que osserviços secretos foram os verdadeiros promotores dos atos, uma vezque funcionam como verdadeiros «estados paralelos».

São inúmeros os casos históricos, pese embora só uma pequenaparte do gigantesco icebergue da manipulação chegue ao domínio pú-blico. Além dos que Eric Frattini relata detalhadamente, há a certezade muitos outros acontecimentos que seguramente nos deixariam sur-preendidos. Entre os mais badalados da Antiguidade — trata-se de umexemplo clássico — destaca-se o incêndio da antiga Roma, ordenado

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pelo imperador Nero. Ocorreu a 19 de julho do ano 64 da nossa era,dia em que o fogo arrasou dois terços da capital do império romano.Embora ainda hoje continuem a existir dúvidas sobre a verdadeiraautoria e finalidade do incêndio, dá-se por certo que o promotor doacontecimento foi o próprio Nero, que queria conquistar espaço parauma nova e grandiosa cidade e para edificar um majestoso paláciocom infraestruturas gigantescas para agradar à sua incurável megalo-mania. Embora tenha sido ele quem verdadeiramente iniciou o incên-dio, Nero acusou disso os cristãos, que foram torturados e assassina-dos às dezenas.

Só no século XX, encontramos grande abundância de casos bemdocumentados. Apontamos sumariamente alguns dos mais impressio-nantes:

— 1923: os serviços secretos soviéticos atacam organizações po-líticas na Polónia, causando centenas de mortos, para semearo caos e facilitar a mudança revolucionária no país.

— 1925: elementos dos serviços secretos soviéticos assassinam oprimeiro mandatário da Bulgária, mediante um atentado àbomba na catedral de Sófia, no qual morrem mais de 150 pes-soas, com o objetivo de gerar uma mudança política.

— 1931: no conhecido «incidente de Mukden», forças japonesasprovocam uma pequena explosão numa via-férrea e culpamdisso a China, para justificar a invasão da Manchúria por partedo exército kwantung japonês.

— 1933: Hitler organiza um atentado contra si próprio. Com issoconsegue suspender os direitos constitucionais dos alemães edeclarar o estado de emergência, o que lhe permite acumularmuito mais poder.

— Em finais e após a Segunda Guerra Mundial: os serviços se-cretos soviéticos eliminam a burguesia nacionalista na Ucrâ-nia, Bielorrússia, Estónia, Letónia e Lituânia, mediante todo otipo de atividades, desde engenhos explosivos a assassínios se-letivos. Para dissimular a sua ação, criam falsos grupos terro-ristas. Calcula-se que só na Ucrânia pode ter havido mais de25 000 mortos e 15 000 detidos.

— Entre 1946 e 1948: o Reino Unido bombardeia navios quetransportavam judeus em viagem para a Palestina e fugindo ao

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Holocausto. Para isso criou um grupo denominado «Defenso-res da Palestina Árabe», que reivindica os ataques.

— 1955: a Turquia executa um atentado contra um consuladoturco na Grécia, país que culpou do acontecimento com a fi-nalidade de incitar e justificar a violência contra os gregos.

— Entre 1950 e 1970: o FBI serve-se de provocadores para levara cabo atos violentos, culpando disso ativistas políticos, como objetivo de justificar a repressão.

— Década de 1970: tropas turcas incendeiam uma mesquita emChipre, culpando os gregos para fomentar o ódio contra eles.

— 1989: um departamento secreto da Força de Defesa da Áfricado Sul leva a cabo diversos atentados para desacreditar oCongresso Nacional Africano.

— Década de 1990: o exército da Argélia mata centenas de civisargelinos, culpando os islamitas.

— 28 de agosto de 1995: o mercado de Markale, em Sarajevo, naBósnia, é atacado com morteiros, que causam mais de quaren-ta mortos e quase uma centena de feridos. Apesar das dúvidasexistentes sobre a autoria do ataque (tal como aconteceuquando, a 5 de fevereiro de 1994, o mesmo mercado sofreu oimpacto de outra granada de morteiro, que causou sessenta eoito mortos e 200 feridos), acusaram os sérvio-bósnios, o quejustificou que a Aliança Atlântica bombardeasse a Repúblicada Sérvia.

— 1998: elementos das forças armadas indonésias tomam parteem violentos distúrbios, propiciando ou intensificando algunsdeles.

— 15 de janeiro de 1999: forças sérvias de segurança assassinamquarenta e cinco civis albaneses na aldeia kosovar de Racak, apretexto de que eram paramilitares armados. Enquanto algunsinvestigadores concluíram que, efetivamente, eram civis desar-mados, outros peritos não hesitaram em afirmar que, na reali-dade, eram combatentes a quem, uma vez mortos, tinhamdespido as fardas e vestido à civil. O facto serviu de justifica-ção para que a NATO bombardeasse a Sérvia durante quasetrês meses.

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— 2002: o exército indonésio assassina professores norte-ameri-canos em Papua e responsabiliza um grupo separatista, paraconseguir que este surgisse perante a opinião pública interna-cional como uma organização terrorista.

— 2005: soldados de Israel, vestidos como civis, apedrejam assuas próprias tropas, para acusarem os palestinianos.

— 2014: durante as revoltas populares na Ucrânia, francoatirado-res disparam com o propósito de atacar o governo de Yanu-kovitch e provocar a sua queda.

— Atualmente: julga-se que são habituais os ataques cibernéticosde falsa bandeira sobre alvos concretos, com ações muito di-versas, que podem ir desde o controlo remoto de computado-res e telemóveis até à entrada em contas nas redes sociais,para acusar os seus proprietários da realização de atividadesilícitas. Por outro lado, há boatos de ações de falsa bandeiranos conflitos mais recentes, da Líbia à Síria.

Uma das perguntas que se fazem é como chegam a ser descober-tas estas operações de falsa bandeira, tendo em conta que, pela suaprópria natureza, são realizadas em segredo. O certo é que a maioriados casos é muito difícil de provar, visto que muitas vezes tudo per-manece oculto no nebuloso mundo das conspirações. Não obstante, otrabalho de jornalistas e investigadores independentes consegue mui-tas vezes dados suficientes para afirmar com certeza a autoria de mui-tas destas operações encobertas. A desclassificação de documentostransformou-se numa fonte de informação-chave, mas também o é oarrependimento ou os interesses de outros serviços secretos, aos quaisconvém que determinado acontecimento surja à luz do dia.

De um ponto de vista político, as operações de falsa bandeiracostumam estar relacionadas com a entrada em guerra de um país,com o desenvolvimento de uma subversão ou com atos de terrorismo.Recordemos o que dizia a propósito Josef Estaline: «A forma mais fá-cil de conseguir o controlo de uma população é levar a cabo atos deterrorismo. A população reclamará a imposição de leis restritivas se asua segurança pessoal estiver ameaçada.»

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Embora se possa pensar o contrário, as operações deste tipo nãoocorrem apenas nas ditaduras. Com efeito, são inúmeras as democra-cias que recorreram à manipulação e ao encobrimento para justificardeterminadas medidas. Na realidade, podemos aventurar que os regi-mes autocráticos necessitam menos delas, uma vez que não se pede àsautoridades que ouçam nem a sua população nem a oposição política.

Como já dissemos, trata-se de orientar a opinião pública numadeterminada direção, quase sempre relacionada com a entrada numconflito bélico. Recorde-se o que dizia o estratega prussiano Carl vonClausewitz, quando afirmava que, para que uma determinada operaçãomilitar tivesse êxito, era imprescindível que existisse uma sólida e in-quebrantável comunidade de ideias e de interesses entre os governan-tes, o exército e o povo. A forma mais frequente de conseguir essamobilização dos cidadãos é através da demonização do inimigo, que sedesfigura por completo, chegando inclusivamente a nem sequer o con-siderar como humano, com o objetivo de o combater com a maior fe-rocidade. Para o conseguir, é habitual recorrer à guerra psicológica e àmanipulação das massas através dos meios de comunicação.

Hermann Göring disse que «evidentemente, as pessoas não dese-jam a guerra [...]. No entanto, no fim de contas, são os líderes do paísquem determina a política, e tudo se limita sempre a uma simplesquestão de arrastar as pessoas para onde querem, quer se trate de umademocracia quer de uma ditadura fascista, um regime parlamentar ouuma ditadura comunista. [...] Com voz ou sem voz, as pessoas podemsempre ser dirigidas. É fácil. Tudo o que se tem de fazer, é dizer-lhesque estão a ser atacados e denunciar os pacifistas por falta de patriotis-mo e por colocarem o Estado em perigo. Funciona da mesma formaem qualquer país».

De um ponto de vista «operacional», todas estas ações estão rela-cionadas, em maior ou menor medida, com o logro, induzindo em erroo adversário, por meio da manipulação, a deformação da realidade oua falsificação. Como dizia o célebre estratega chinês Sun Tzu, «toda aguerra se baseia no logro». Aqui é importante assinalar que a mentehumana é manipulável e tende a ver o que deseja ver. Daí a facilidadede que gozam algumas mensagens, simples mas insistentes, que conse-guem eliminar algumas dúvidas incómodas.

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Assinale-se também que, em situações de conflito, levam-se a ca-bo pseudo-operações de falsa bandeira, como as realizadas por forçasmilitares envergando o uniforme do inimigo. Este estratagema costu-ma utilizar-se para obter informações no terreno acerca das atividadesdo adversário. Já dizia Napoleão que «um espião num local adequadovale mais do que vinte mil homens no campo de batalha».

Não há dúvida de que estamos perante uma prática antiquíssima,tão antiga como a própria política e o uso dos exércitos. Com efeito,estas operações têm sido uma constante ao longo da história, pois nãohá dúvida de que o ato de culpar os outros países, organizações ougrupos tem sido uma constante em qualquer luta pelo poder.

A maldade intrínseca do ser humano, que vem à tona quando asua sobrevivência ou o seu modo de vida se veem ameaçados, leva-o anão reparar nos meios para alcançar um fim, partindo do princípio deque a melhor forma de motivar uma população não é mediante a razão,mas sim através das emoções. Para isso, é imprescindível uma monta-gem teatral, que derrube as defesas mentais para contar uma históriaambígua que misture realidade e ficção, e desta forma levar a popula-ção ao ódio mais exacerbado para com o inimigo.

PEDRO BAÑOS

(Coronel, analista geopolítico e ex-chefe de Contrainformaçãoe Segurança do Corpo do Exército Europeu de Estrasburgo)


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