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Marcelo Rangel Lennertz

Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: entre Facticidade e Validade

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio.

Orientador: José Maria Gómez

Rio de Janeiro

Junho de 2008

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Marcelo Rangel Lennertz

Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: Entre Facticidade e Validade

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Direito do Departamento de

Direito da PUC-Rio como parte dos requisitos

parciais para a obtenção do título de Mestre

em Direito.

Prof. José Maria Gómez Orientador

Departamento de Direito – PUC-Rio

Profª. Gisele Guimarães Cittadino Departamento de Direito – PUC-Rio

Prof. Paulo Todescan Lessa Mattos Escola de Direito do Rio de Janeiro – FGV DIREITO RIO

Prof. Nizar Messari Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de

Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 12 de junho de 2008.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Marcelo Rangel Lennertz Graduou-se em Direito na PUC-Rio em 2004. Advogado. Pesquisador da Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas – FGV DIREITO RIO.

Ficha catalográfica

CDD: 340

Lennertz, Marcelo Rangel Agências Reguladoras e Democracia no Brasil:

Entre Facticidade e Validade / Marcelo Rangel Lennertz; orientador: José Maria Gómez. – Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Direito, 2008.

175fl 29,7 cm 1. Dissertação (mestrado) – Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito.

Inclui referências bibliográficas.

1. Direito – Teses. 2. Democracia; 3. Estado

Regulador; 4. Agências Reguladoras; 5. Participação Popular; 6. Legitimidade democrática; 7. Esfera pública; 8. Teoria discursiva do Direito e da democracia; 9. Jürgen Habermas; I. Gómez, José Maria. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

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Para Ingrid, meu amor.

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Agradecimentos

Agradeço, como tudo e como sempre, à minha família pelo apoio em mais

esta conquista.

À Ingrid, sou grato, sobretudo, por seu companheirismo nos momentos

mais difíceis dessa trajetória.

Também não poderia deixar de agradecer a José Maria Gómez, pela

orientação paciente e atenciosa, e aos membros da banca, Paulo Todescan Lessa

Mattos e Gisele Guimarães Cittadino, pela disponibilidade e interesse em avaliar o

presente trabalho.

Por fim, gostaria de registrar minha gratidão a todos os professores que

fizeram parte de minha formação no programa de mestrado, em especial Gisele

Cittadino, Adriano Pilatti, Ralph Ings Bannel, Adrian Sgarbi e Márcia Nina

Bernardes; aos funcionários da Secretaria de Pós-Graduação do Departamento de

Direito da PUC-Rio, Anderson Torres Almeida e Carmen Barreto Rezende; a

meus colegas de turma; a todos da FGV DIREITO RIO, em especial aos

professores Guilherme Leite, Leandro Molhano, Luís Fernando Schuartz e

Joaquim Falcão, e ao pesquisador Pedro Cantisano; e à CAPES pelo

financiamento de minha atividade acadêmica durante esse período.

Sem a contribuição de todos, este trabalho não teria se concretizado.

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Resumo

Lennertz, Marcelo Rangel; Gómez, José Maria (Orientador). Agências Reguladoras e Democracia no Brasil: entre Facticidade e Validade. Rio de Janeiro, 2008. 175 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O presente estudo tem como objetivo investigar o problema da

legitimidade democrática da atuação normativa das agências reguladoras no Brasil

a partir da seguinte questão: Como pensar a legitimação da atividade de produção

de normas dessas entidades administrativas brasileiras a partir da teoria discursiva

do Direito e da democracia de Jürgen Habermas? O foco da análise são os

desafios que uma teoria que explica os processos de integração e reprodução da

sociedade a partir de um conceito de racionalidade situado entre a facticidade e a

validade das ações sociais deve enfrentar, quando aplicada a realidades distintas

daquela a partir da qual foi elaborada. Para tanto, assume-se, como ponto de

referência, a obra de Paulo Todescan Lessa Mattos, que, em relação às agências

reguladoras, é o principal representante de uma corrente analítica que enxerga, no

modelo habermasiano de legitimação pelo procedimento discursivamente

estruturado, uma saída teórica capaz de oferecer parâmetros normativos para a

legitimação democrática da atuação normativa dessas entidades. O diálogo com a

posição de Mattos e suas conclusões sobre o tema é constante ao longo do

trabalho e estabelece a base sobre a qual são levantados alguns pontos

problemáticos da tentativa de identificar, a partir da teoria de Habermas,

potenciais de legitimação democrática nos espaços de participação popular

institucionalizados no interior dos processos de tomada de decisão das agências

reguladoras brasileiras.

Palavras-chave Estado regulador; agências reguladoras; democracia; participação popular;

legitimidade democrática; separação dos poderes; esfera pública; teoria discursiva

do Direito e da democracia; Jürgen Habermas.

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Abstract

Lennertz, Marcelo Rangel; Gómez, José Maria (Orientador). Regulatory Agencies and Democracy in Brazil: between Facts and Norms. Rio de Janeiro, 2008. 175p. Master of Arts Dissertation – Law Department, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

The main purpose of this work is to analyze the issue of democratic

legitimacy of regulatory norms produced by independent agencies in Brazil,

considering the following question: How to think about legitimating the law-

making activity of these administrative entities according to Jürgen Habermas’

discourse theory of democracy and the law? The analysis focuses on the

challenges that a theory which explains the integration and reproduction processes

of modern societies through a concept of rationality situated between the facts and

norms of social action must face, when applied to a reality that is different from

the one that inspired its development. Thus, I take the work of Paulo Todescan

Lessa Mattos, an authority in the topic of regulatory agencies, as a reference of an

analytical perspective that sees in Habermas’ discursive model of procedural

legitimation a way to find normative parameters to legitimate the norms of these

entities. The dialog with Mattos’ argument and his conclusions is constant in this

work, and it sets the basis for developing several problematic issues related to

identifying, through Habermas’ theory, potentials of democratic legitimation in

the institutionalized spaces of public participation within the decision-making

processes of Brazilian regulatory agencies.

Keywords Regulatory State; regulatory agency; democracy; public participation;

democratic legitimacy; separation of powers; public sphere; discourse theory of

law and democracy; Jürgen Habermas.

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Sumário

1. Introdução 9

2. Agências reguladoras no Brasil: os juristas e a legitimidade

democrática

15

2.1. O Estado brasileiro contemporâneo e as agências reguladoras 15

2.1.1. A construção do Estado Regulador brasileiro 19

2.1.2. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado como

marco para o Estado Regulador no Brasil

28

2.1.3. As agências reguladoras e o novo modelo de Estado 33

2.2 Agências reguladoras independentes e legitimidade 36

2.3. O debate no meio jurídico brasileiro 42

3. Fundamentos normativos para um novo modelo de análise 50

3.1. Ação comunicativa e ética discursiva 53

3.2. Entre mundo da vida e realidade sistêmica: O Direito como

medium

68

3.3. A legitimação do Direito e do poder político no Estado de Direito 76

3.3.1. Reconstrução do sistema de direitos 78

3.3.2. Reconstrução dos princípios do Estado de Direito 87

3.3.3. A circulação do poder político legítimo nas sociedades

modernas

102

4. Teoria do discurso, participação e agências reguladoras no Brasil 115

4.1. O modelo habermasiano e as agências reguladoras brasileiras 117

4.2. Vantagens analíticas da proposta de Mattos 133

4.3. Aspectos problemáticos da proposta de Mattos 134

4.3.1. Legitimação, separação dos poderes e participação popular

4.3.2. Legitimidade e circulação do poder político: rotina e crise

135

145

4.3.3. O conceito de esfera pública no Brasil 149

5. Conclusão 167

6. Referências bibliográficas 170

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1 Introdução

Ao longo da década de 1990, assistiu-se no Brasil à implementação de

uma série de transformações institucionais que se convencionou chamar de

“Reforma do Estado”. O discurso que inspirou esse conjunto de reformas

defendia, como seu objetivo mais geral, reforçar a governança do Estado

brasileiro através da superação de sua grave crise fiscal e da instauração de um

modelo “gerencial” de Administração Pública, que superasse os “anéis

burocráticos” característicos do modelo anterior e fosse capaz de atender às

exigências de flexibilidade e eficiência impostas pela globalização econômica, a

fim de aperfeiçoar os serviços públicos prestados aos cidadãos.

Nesse sentido, os programas de “privatização” e “desestatização” das

denominadas “atividades não-exclusivas do Estado” figuravam como pontos

essenciais da reforma. A idéia era aumentar a participação do setor privado nessas

atividades e, desse modo, “desinchar” o aparelho estatal, reduzindo os gastos

públicos. Sustentava-se, porém, que a atração do setor privado – principalmente o

capital internacional – para o investimento nessas atividades demandava o

estabelecimento de uma moldura regulatória estável e sua execução técnica por

órgãos reguladores independentes, a fim de garantir as regras do jogo – e,

portanto, a previsibilidade – nas relações entre investidores e poder público.

A criação das agências reguladoras no Brasil se enquadra nesse contexto

mais amplo de reforma do Estado. A elas caberia a função de normatizar,

disciplinar e fiscalizar a atuação de agentes privados em setores da atividade

econômica que o Poder Legislativo optou por entregar à regulamentação

tecnicamente especializada e politicamente autônoma. Por meio dessa autonomia

política das agências reguladoras se buscava, por um lado, corrigir as chamadas

“falhas de mercado”, e, por outro, assegurar aos investidores que as decisões

estatais às quais estariam submetidos seriam pautadas por critérios técnicos e,

portanto, imunes a interferências políticas indevidas.

Porém, se, do ponto de vista econômico, essa “blindagem” parecia estar

justificada, do ponto de vista político, ela suscitava dúvidas quanto à legitimidade

democrática da atuação das agências. De maneira geral, a questão que se colocava

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era a seguinte: Como justificar politicamente a atuação normativa de uma entidade

administrativa cujos dirigentes não são eleitos e cujas decisões não estão sujeitas à

revisão por parte dos agentes políticos eleitos no processo democrático?

No projeto de reforma do Estado, a solução proposta para esse problema

estava ligada à criação de instrumentos de controle da atuação das agências

reguladoras e à institucionalização de espaços para a participação popular em seus

processos decisórios. Assim, destacavam-se, de um lado, os limites impostos à

atuação das agências reguladoras em função de suas relações com os Poderes

Executivo, Legislativo e Judiciário e órgãos como o CADE e os tribunais de

contas, e, de outro, instrumentos como as audiências públicas e as consultas

públicas, que visavam a tornar sua atuação permeável à participação popular.

A grande maioria dos juristas, no entanto, concentrou suas análises sobre a

questão da legitimidade democrática da atuação normativa das agências

reguladoras no plano estritamente jurídico-formal. Ou seja, entre os principais

autores de Direito administrativo e econômico no Brasil, a legitimidade ou

ilegitimidade da atuação dessas entidades administrativas são normalmente

defendidas com base numa lógica jurídico-formal de adequação de suas decisões

aos princípios constitucionais da legalidade e da separação dos poderes.

Paralelamente, é possível perceber, desde a institucionalização, em 2001,

do subgrupo “Reforma do Estado e Democracia”, do Núcleo de Direito e

Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP (criado

em 1999), o início de um novo tipo de análise sobre o tema, fruto das pesquisas

desenvolvidas a partir do projeto temático “Moral, Política e Direito: uma

investigação a partir da obra de Jürgen Habermas”. O objetivo do projeto era

entender a atividade reguladora do Estado – e a tensão por ela gerada entre

eficiência econômica e legitimidade democrática – para além do conceito lógico-

formal de legitimidade, característico de grande parte do pensamento jurídico

brasileiro.

Nessa nova perspectiva de análise – informada, normativamente, pela

teoria de Jürgen Habermas – foram postos em evidência fatores ligados ao

funcionamento, na prática, desse novo modelo estatal, como, por exemplo, o

modo através do qual se desenvolve o processo decisório sobre a definição do

conteúdo da regulação e a avaliação dos efeitos desses processos decisórios sobre

os interesses dos atores sociais. No Direito, destacam-se, como autores

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representantes dessa corrente, Paulo Todescan Lessa Mattos, no que diz respeito

às agências reguladoras, e Jean Paul Cabral Veiga da Rocha, quanto à regulação

do sistema financeiro.

O presente estudo tem como objetivo geral investigar o tema da

legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras. Entretanto, em razão

de limites de tempo e espaço, optei por recorte analítico bastante específico.

Pretendo problematizar a possibilidade de aplicação do modelo teórico de

legitimação procedimental proposto por Habermas às agências reguladoras

brasileiras. Justamente por isso, assumo, como interlocutora principal, a corrente

analítica fundada pelo Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP, que enxerga

no modelo habermasiano de legitimação pelo procedimento discursivamente

estruturado uma saída teórica capaz de oferecer parâmetros normativos na busca

por soluções para os problemas gerados pela tensão entre, de um lado, a

descentralização do poder estatal e o surgimento de núcleos decisórios

autônomos, e, de outro, a necessidade de legitimação democrática da atuação

dessas entidades. E, dado que o tema restringe-se à legitimidade das agências

reguladoras, a obra de Mattos, principal representante da referida linha de

pesquisa “cebrapeana” em relação a essas entidades administrativas, foi adotada

como principal ponto de referência.

O diálogo com a posição de Mattos e suas conclusões sobre o tema é

constante ao longo do trabalho e fornece a base sobre a qual são levantados alguns

pontos problemáticos dessa aplicação da teoria de Habermas às agências

reguladoras. Mais especificamente, da tentativa de identificar, nos espaços de

participação popular institucionalizados nos processos de tomada de decisão das

agências reguladoras, potenciais de legitimação democrática da atuação normativa

dessas entidades.

Importante ressaltar que tais críticas não se referem à proposta

habermasiana em si, mas sim ao modo pelo qual ela tem sido aplicada à realidade

das agências reguladoras brasileiras. O que, por outro lado, não implica dizer,

necessariamente, que uma tal aplicação da teoria de Habermas é inviável, mas

apenas que qualquer conclusão, positiva ou negativa, sobre sua viabilidade

demanda o enfrentamento prévio de algumas questões fundamentais.

Assim, se tenta afastar o risco de inserção num círculo vicioso, comum no

cenário acadêmico jurídico no Brasil, no qual qualquer tentativa de aplicação de

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teorias desenvolvidas nos países centrais aos problemas brasileiros é logo taxada

de “colonialismo intelectual”, ou de “idéia fora do lugar”, e acaba,

conseqüentemente, descartada. A superficialidade das razões que, muitas vezes,

justificam a tentativa de “importação” dessas teorias parece ser diretamente

proporcional à superficialidade das razões que justificam seu abandono. Daí

porque há quem se refira a esse processo de valorização acrítica de modelos

teóricos concebidos alhures como um fenômeno de “legitimação pelo

deslumbramento”, que – acrescento eu – encontraria seu correlato no processo

oposto de “rejeição pelo desconhecimento”.

A intenção, aqui, é outra. Não se nega que o intercâmbio acadêmico entre

centro e periferia pressupõe a adoção de uma perspectiva crítica acerca de teorias

que são pensadas e desenvolvidas a partir de outra realidade e, portanto, a partir

de problemas muitas vezes também distintos. Porém, isso não implica,

necessariamente, o descarte dessas teorias. Tentativas teóricas responsáveis de

adaptação e aplicação de idéias oriundas de outros países – como é o caso –

devem ser levadas a sério e problematizadas a partir de suas próprias proposições.

O confronto de experiências, a apresentação de novos problemas e,

eventualmente, a demonstração das insuficiências e as conseqüentes propostas de

alteração fazem parte do processo de construção e consolidação de uma teoria que

pretenda produzir algum tipo de conhecimento sobre a realidade. Nesse sentido,

para aqueles que desejam aplicar a teoria pensada por Habermas à realidade das

agências reguladoras no Brasil, o questionamento prévio acerca da possibilidade

de sua compatibilização às particularidades do cenário regulatório brasileiro me

parece etapa indispensável a ser percorrida.

A exposição do tema foi dividida da seguinte maneira: No primeiro

capítulo, apresento o processo histórico de criação das primeiras agências

reguladoras no Brasil, bem como o problema que sua criação suscitou em termos

de legitimidade e a maneira como esse problema tem sido enfrentado no meio

jurídico brasileiro. Esse capítulo inicial é importante para a compreensão do

contexto no qual se insere a proposta de aplicação do pensamento de Habermas

aos processos decisórios das agências reguladoras brasileiras. Devido a este

caráter acessório, optou-se por uma narrativa linear e simplificadora dos eventos

que marcaram esse processo histórico, privilegiando a dimensão institucional-

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legal de investigação em detrimento da profundidade e da complexidade analítica

que uma reconstrução histórica comporta.

No segundo capítulo, apresento o modelo teórico de legitimação

procedimental desenvolvido por Jürgen Habermas, destacando, evidentemente, os

aspectos que julgo relevantes para a compreensão da proposta teórica de Mattos e

para o desenvolvimento das críticas que a ela dirijo no capítulo seguinte.

O terceiro capítulo representa, pois, o núcleo do presente trabalho. Nele,

exponho minha interpretação sobre o modelo de análise proposto por Mattos com

base na teoria discursiva do Direito e da democracia de Habermas para a

investigação da legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras, e

aponto aquelas que são, a meu ver, as vantagens analíticas proporcionadas pela

adoção dessa perspectiva para o estudo do tema. No mesmo capítulo,

problematizo a proposta de Mattos a partir de três críticas que têm sua origem nos

desafios que uma teoria – como a de Habermas – que explica os processos de

integração e reprodução da sociedade a partir de um conceito de racionalidade

situado entre a facticidade e a validade das ações sociais deve enfrentar quando

aplicada a realidades distintas daquela a partir da qual foi elaborada. A primeira se

relaciona com a aplicação dessa teoria à atividade regulatória. São explorados,

principalmente, os pontos problemáticos da aplicação das conclusões

habermasianas sobre o princípio da separação dos Poderes do Estado à estrutura

institucional do modelo regulador de Estado. A segunda diz respeito à

operacionalização do conceito habermasiano de legitimidade para a construção de

um modelo de análise empírica. A terceira está relacionada à aplicação do modelo

teórico de Habermas à realidade sócio-política brasileira. Nela, o foco da análise

são as dificuldades que a realidade brasileira apresenta à acomodação de um

conceito essencial ao modelo habermasiano de legitimação procedimental: o

conceito discursivo de esfera pública. Nesse sentido, aponto estudos que têm

procurado identificar as peculiaridades da esfera pública na América Latina e,

especificamente, no Brasil, sustentando que os mesmos devem ser levados em

conta nas pesquisas que visam a investigar a legitimidade do poder administrativo

no âmbito das agências reguladoras.

Ao final, em sede de conclusão, procuro explicitar a linha condutora do

presente trabalho e, em caráter especulativo, formulo algumas impressões sobre os

caminhos a serem percorridos por aqueles que pretendem utilizar a teoria de

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Habermas para compreender os problemas relacionados à realidade sócio-política

brasileira.

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2 Agências reguladoras no Brasil: os juristas e a legitimidade democrática

Neste capítulo inicial, procurarei delimitar o contexto em meio ao qual

surgiram os questionamentos sobre a legitimidade da atuação normativa das

agências reguladoras e, posteriormente, a proposta de aplicação da teoria de

Habermas como possível solução para este problema. Na primeira seção, (1) será

desenhado o cenário no qual se insere o problema de pesquisa. Para tanto,

reconstruirei o processo de criação das agências reguladoras no Brasil, que se

insere no processo mais amplo de reforma do Estado na década de 1990. Em

seguida, (2) destacarei os questionamentos sobre legitimidade democrática das

agências reguladoras, que permanecem latentes desde o momento da criação

dessas entidades no cenário administrativo brasileiro. Ao final, (3) apontarei,

brevemente, as principais correntes jurídico-doutrinárias sobre o tema, procurando

demonstrar suas insuficiências.

2.1 O Estado brasileiro contemporâneo e as agências reguladoras

A ordem econômica prevista na Constituição de 1988 1 evidencia a

influência, no Brasil, de uma certa concepção acerca das funções do Estado e da

forma de sua intervenção na economia que ganhou força mundialmente a partir da

1 Como analisa Sérgio Guerra: “É de notar-se que os arts. 173, 174, 176 e 177 da Constituição Federal definiram, expressamente, o que compete ao Estado no ordenamento econômico. Por esses dispositivos constitucionais, o desempenho estatal deve se concentrar nas funções de fiscalização, incentivo e planejamento, permitindo-se, contudo, a sua atuação direta mediante a exploração de atividade econômica quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei, bem como nos casos de monopólio estatal”. Assim, conclui o autor que: “Esse novo papel do Estado está subsumido ao princípio da subsidiariedade, pelo qual a iniciativa privada tem primazia sobre a iniciativa estatal. Vale dizer, o Estado deve abster-se de exercer qualquer atividade que compete à livre iniciativa, cabendo a este o fomento, a coordenação e a fiscalização das atividades desenvolvidas pelo particular” (GUERRA, Sérgio. Introdução ao Direito das Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004, p. 6). Note-se, por outro lado, que, embora o título sobre a ordem econômica e financeira da Constituição de 1988, se comparado com o do regime anterior, revele a opção por um Estado dotado de novas funções e de instrumentos diferentes de intervenção na economia, a estrutura da administração pública nela disposta representava, de fato, uma barreira para a implementação desse novo modelo de Estado. O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado foi elaborado em 1995 justamente com o objetivo de adequar a estrutura da administração pública brasileira às exigências desse novo modelo de Estado.

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década de 1980. O modelo de Estado construído a partir dessa concepção tem sido

representado entre os juristas brasileiros pela fórmula “Estado Regulador”.

É importante ressaltar que sob o título de “Estado Regulador” se

encontram experiências de Estado que possuem diferenças significativas entre si.

Ou seja, embora as funções e forma de intervenção na economia desses Estados

sejam semelhantes – justamente por isso, são denominados “Estados

Reguladores” – o contexto de seu surgimento e, conseqüentemente, os problemas

para os quais pretendem oferecer soluções, são bastante distintos.

Nesse sentido, pode-se, por exemplo, distinguir o atual Estado Regulador

brasileiro do Estado Regulador implementado nos E.U.A. durante o período do

New Deal 2 (1933-1940). O Estado Regulador do New Deal surgiu como uma

resposta à crise gerada pelo Estado capitalista liberal do laissez-faire, não-

intervencionista, que se baseava “na auto-regulação das relações econômicas pelo

mercado, segundo a lógica do equilíbrio de preços dada pelo mercado

concorrencial puro (...), e que funcionaria segundo o pressuposto de que o homem

age racionalmente buscando a maximização de seus interesses individuais” 3. A

concentração do capital gerada por esse sistema, associada à superprodução e à

especulação financeira, levou à depressão econômica do início do séc. XX, nos

E.U.A., que teve seu apse com a quebra da bolsa de valores de Nova York, em

1929.

Diante desse quadro, defendia-se como necessário um conjunto de

mudanças institucionais que permitissem ao Governo federal enfrentar os

2 Embora nos E.U.A. a primeira agência reguladora tenha surgido ainda no séc. XIX, o Estado Regulador tal como o entendemos só surge, de fato, com a implementação do New Deal. Como explica MATTOS: “Nos Estados Unidos, a regulação de mercados tem início no final do século XIX, com a criação de órgãos de regulação estaduais. A primeira agência de regulação estadual a ter relevância no cenário econômico norte-americano é a Massachussets Noard of Railroad Commissioners, criada em 1869 para regular o transporte por meio de estradas de ferro na região. Contudo, a regulação por meio de agências independentes começa a se desenvolver efetivamente nos Estados Unidos com a criação da primeira agência de regulação setorial federal, em 1887: a Interstate Commerce Comission. No entanto, nesse momento, além das preocupações relativas a controle de tarifas, segurança e qualidade dos serviços, outras se colocam no horizonte. Em 1890 é editado pelo Congresso o Sherman Antitrust Act, e em 1914 são editados o Clayton Act e o Federal Trade Comission Act, que reforçam o aparato jurídico-institucional para a defesa da concorrência e para a regulação de mercados nos Estados Unidos. Porém, as agências de regulação se tornam importantes como mecanismos jurídico-institucionais de intervenção do Estado sobre a economia” (MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Regulação Econômica e Democracia: Contexto e Perspectivas na Compreensão das Agências de Regulação no Brasil, in: FARIA, José Eduardo (org.), Regulação, Direito e Democracia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2002, pp. 45-46). 3 Cf. MATTOS, Paulo. O Novo Estado Regulador no Brasil: Eficiência e Legitimidade. São Paulo: Editora Singular, 2006, p. 70.

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inúmeros problemas econômicos e sociais que surgiram no rastro da depressão 4.

O Estado assumia, assim, o dever de sair de sua inércia não-intervencionista para

atuar no mercado visando, principalmente, a controlar os monopólios e a

concorrência destrutiva, e a planejar o desenvolvimento econômico norte-

americano através da elaboração de estratégias de crescimento dirigidas ao setor

industrial 5.

O contexto da construção do Estado Regulador brasileiro na década de 90,

porém, é bem diferente e se insere num quadro mais amplo de mudanças na forma

de intervenção do Estado na Economia, no qual estão compreendidos, também, os

fenômenos da desestatização dos Estados capitalistas europeus e da deregulation

nos E.U.A.. Certo é que, até a década de 1980, a intervenção estatal na economia

encontrava seu fundamento nas teorias que defendiam um rígido controle do

desenvolvimento econômico por parte do Estado, o que se traduziu nas políticas

econômicas de nacionalização, na Europa, e regulação, como vimos, nos Estados

Unidos 6. Este panorama se alterou, porém, nas últimas décadas do século XX.

Nos E.U.A., a idéia de regulação que inspirou o New Deal passou por

grandes transformações ao longo dos anos. A mais significativa tem como marco

fundamental o movimento regulatório que se convencionou chamar de New Social

Regulation (1965-1980), que tinha sua base ideológica na New Left 7 norte-

americana. Se o discurso que fundamentava o Estado Regulador do New Deal

tinha como objetivo principal corrigir as falhas do mercado econômico, o discurso

defensor do Estado pós New Social Regulation buscava proteger os indivíduos

não apenas contra os interesses do grande capital, mas contra os interesses de um

Estado no qual o poder decisório estaria profundamente centralizado 8. A principal

crítica da New Left ao New Deal se dirigia ao insulamento burocrático gerado por

suas medidas, que afastavam a participação dos indivíduos na formulação de

políticas públicas, delegando o poder de decisão acerca de seu conteúdo a um

4 Cf. SUNSTEIN, Cass. O Constitucionalismo após o The New Deal, in: MATTOS, Paulo Todescan Lessa (coord). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Norte-Americano. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 132. 5 Cf. MATTOS, O Novo Estado Regulador no Brasil..., p. 86. 6 Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., p. 44. 7 “(...) a força dessa segunda onda regulatória nos Estados Unidos nasce nos movimentos políticos que serão qualificados depois como a New Left norte-americana. A organização de movimentos de ativistas políticos favoráveis à radicalização da democracia na década de 1960 – os civil rights movements – permitiu o desenvolvimento das bases teóricas que iriam dar suporte à New Social Regulation” (Cf. MATTOS, O Novo Estado Regulador no Brasil..., pp. 86-87). 8 Cf. Ibid, p. 87.

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18

grupo de especialistas. O movimento do New Social Regulation acrescentou aos

objetivos regulatórios do New Deal, portanto, a preocupação “em corrigir os

problemas de informação imperfeita aos consumidores e a pequenos acionistas,

além dos relativos à segurança dos produtos, proteção do meio ambiente, certeza

dos resultados da ação regulatória e maior eqüidade distributiva” 9. Essas

mudanças resultaram numa “redução do poder ou do grau de intervenção das

agências de regulação sobre os entes privados” 10, gerando um movimento de

desregulação (deregulation) 11 da economia americana nos anos 1980.

No caso europeu, as mudanças na forma de intervenção do Estado na

economia ocorridas na década de 1980 têm como pano de fundo um cenário

diverso do norte-americano 12. A crise fiscal do Welfare State fez surgir nos

Estados capitalistas europeus o discurso sobre a necessidade de reformar sua

estrutura jurídico-administrativa, de modo a diminuí-la para reduzir custos. Some-

se a isso a concretização do projeto da União Européia em sua vertente

econômica, que se fundava nos princípios da livre iniciativa e da concorrência, e,

desse modo, não poderia admitir monopólios estatais 13. A solução adotada por

esses países foi a introdução, em suas ordens jurídicas, de instrumentos de

fiscalização e regulação da ordem econômica, “que deram condições

institucionais para o processo de privatização das empresas estatais e para a

quebra de monopólios com a introdução de concorrência em vários setores da

economia européia” 14.

9 Cf. MATTOS, O Novo Estado Regulador no Brasil..., p. 86; Ver também: MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., p. 46. 10 Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., p. 50. 11 Explica Paulo Mattos que: “Nos Estados Unidos, a chamada desregulação da economia (deregulation) pode ser compreendida como uma redução do poder ou do grau de intervenção das agências de regulação sobre os entes privados. No entanto, podemos também definir desregulação como redução ou flexibilização das próprias normas existentes (desregulação em sentido amplo). Tais processos de desregulação passam a ganhar força nos Estados Unidos fundamentalmente a partir das seguintes críticas ao controle do desenvolvimento econômico com base em agências de regulação: captura das agências por parte dos interesses dos administrados; restrições ao ingresso de novas empresas no mercado; desincentivo à inovação; instrumentos regulatórios ineficientes com custo de aplicação excessivo; dificuldade de coordenação entre os programas de regulação; dificuldades no controle das agências; criação de distorções na concorrência” (Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., pp. 50-51). 12 Para um panorama dos debates relacionados à implantação do Estado Regulador nos países capitalistas europeus nos anos 80, ver: MATTOS, Paulo Todescan Lessa (Coord.). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Europeu. São Paulo: Eitora Singular, 2006. 13 Cf. MATTOS, Regulação Econômica e Democracia..., pp. 48-49. 14 Cf. Ibid., p. 49.

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19

Ou seja, se a crise do mercado foi responsável pelo surgimento do Estado

Regulador do New Deal e a defesa de uma maior participação da população com

vistas à limitação da atuação desse novo Estado resultou nas reformas da New

Social Regulation, serão a crise fiscal do Estado de bem-estar social e a integração

econômica proporcionada pela criação da União Européia as principais causas da

defesa da construção do modelo regulador de Estado nos países capitalistas

europeus nos anos 80.

O surgimento do Estado brasileiro contemporâneo insere-se, pois, num

contexto mais amplo de reformas regulatórias – no qual se inserem, também, os

casos norte-americano e europeu – e dele recebeu influências claras. Com efeito,

em que pese suas especificidades jurídico-institucionais e o contexto

macroeconômico de sua implantação, o discurso que acompanhou a criação do

Estado Regulador brasileiro se caracterizava, basicamente, pela busca em corrigir

a sua crise fiscal, diminuindo o tamanho do aparelho do Estado e criando novos

entes administrativos dotados de independência e competência técnica para

decidir – como ocorreu entre os países capitalistas europeus – e pelo aumento da

eficiência no controle social dos atos da administração pública – tal qual

verificado ao longo dos anos 80 nos E.U.A..

A seguir, (a) apresentaremos o processo de implementação desse modelo

de Estado no Brasil, para, então, (b) identificarmos as principais diretrizes do

projeto governamental que o viabilizou institucionalmente – o Plano Diretor da

Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE). Ao final, (c) destacaremos a

importância do papel atribuído às agências reguladoras pelo PDRAE no processo

de reforma do Estado brasileiro.

2.1.1 A construção do Estado Regulador brasileiro

No meio jurídico, o denominado “Estado Regulador brasileiro” é,

normalmente, definido como um modelo de Estado que intervém na economia de

forma indireta, fixando, através de entidades administrativas dotadas de alto grau

de autonomia e tecnicamente especializadas, certos parâmetros para o mercado,

com o objetivo de aumentar a competitividade entre os agentes produtivos e

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assegurar uma coordenação eficiente – do ponto de vista do bem-estar social – das

atividades econômicas.

É, precisamente, com relação a estes dois aspectos, ou seja, a concepção

acerca das funções que cabem ao Estado desempenhar e, principalmente, a

maneira como este deve se relacionar com a economia e com a sociedade, que se

diferencia o modelo regulador de Estado dos modelos liberal e social-

desenvolvimentista, que o precederam historicamente no Brasil.

O modelo liberal de Estado, previsto pela Constituição de 1891 15, foi

construído a partir dos ideais burgueses que inspiraram a formação dos E.U.A. 16 e

a Revolução Francesa. Duas seriam suas características principais: A limitação do

seu poder e a limitação de suas funções 17. A conjugação dessas duas idéias

básicas tem como conseqüência o reconhecimento de uma esfera de liberdade dos

indivíduos frente ao poder do Estado, constituída pelos chamados direitos

fundamentais18. E a atividade econômica faz parte dessa esfera de liberdade

inviolável ao poder estatal.

Assim, sob o ângulo da atividade econômica privada, os principais

fundamentos do Estado Liberal, sobre os quais não cabia ao Estado intervir, eram

a propriedade e os contratos 19. De fato, defendia-se que um mercado livre, que

funcionasse segundo os interesses individualistas dos atores econômicos, traria

benefícios para todo o conjunto da sociedade. Competia ao Estado apenas garantir

o direito de propriedade e o cumprimento dos contratos.

15 Não ignoramos que o próprio fato de haver existido, realmente, um Estado liberal no Brasil é tema bastante controverso. Como escreveu José Afonso da Silva acerca da Constituição de 1891: “Constituíra-se formoso arcabouço formal.(...) Faltara-lhe, porém, vinculação com a realidade do país. Por isso não teve eficácia social, não regeu os fatos que previra, não fora cumprida” (SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 79). Baseamos nossa análise dos modelos de Estado experimentados no Brasil, portanto, no modelo institucional-legal sobre o qual os mesmo se fundavam. 16 É notória a influência que a Constituição norte-americana e os ideais que a inspiraram exerceram sobre o processo de elaboração da Constituição brasileira de 1891, através de Rui Barbosa, revisor do projeto de Constituição apresentado à Assembléia Constituinte de 1890. Ver a respeito: BARRETO, Vicente (org.). O Liberalismo e a Constituição de 1988. Textos selecionados de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1991. 17 No mesmo sentido, Norberto Bobbio, para quem “por ‘liberalismo’ entende-se uma determinada concepção de Estado, na qual o Estado tem poderes e funções limitadas, e como tal se contrapõe tanto ao Estado absoluto quanto ao Estado que hoje chamamos de social” (BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 7). 18 Ver a respeito: SCHMITT, Carl. Los Principios del Estado de Derecho Liberal, in: Teoría de la Constitución. Madrid: Alianza, 1992. 19 Cf. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e a Evolução do Novo Direito Administrativo Econômico. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 49.

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21

O processo de construção do Estado Social 20-Desenvolvimentista 21

brasileiro, por sua vez, somente poderia ser compreendido se inserido no contexto

político e social vivido pelo país à época da promulgação da Constituição de

1934. A rigor, desde a década de 1920 já se criticava o “idealismo” da

Constituição de 1891, cujo texto, dizia-se, parecia ignorar os problemas e as

estruturas de poder existentes na sociedade brasileira 22. Assim, a Constituição de

1934 reflete o programa vitorioso na Revolução de 1930, cujo objetivo principal

era modificar o regime instituído pela Constituição de 1891. Sua elaboração teria

se dado, portanto, em um momento histórico de considerável incerteza no Brasil,

tanto em razão de fatores internos quanto externos 23.

Diante deste cenário, procurou-se, através da Constituição de 1934, criar

novas instituições políticas, judiciais, econômicas, culturais e educacionais, além

20 Conforme já ressaltado, a classificação que adotamos tem como critério não apenas a concepção acerca das funções do Estado, mas também a forma de sua intervenção na economia. Nesse sentido, decidimos especificar o modelo de Estado Social do Brasil com o adjetivo “desenvolvimentista” para, de um lado, diferenciá-lo do modelo de Estado Social instituído nos E.U.A. durante o período denominado new deal – que, pela forma de sua intervenção na economia, pode ser considerado um modelo de Estado Regulador –, e, de outro, ressaltar a característica marcante do modelo de Estado Social adotado pelos chamados países “em desenvolvimento” latino-americanos durante o século XX, que, no caso brasileiro, tinha como base de sua estratégia econômica, principalmente, a substituição das importações e a intervenção direta na economia através de empresas estatais. Voltaremos ao tema adiante. 21 Como explica Luiz Carlos Bresser Pereira: “O desenvolvimentismo não era uma teoria econômica, mas uma estratégia nacional de desenvolvimento. Usava teorias econômicas disponíveis para formular, para cada país em desenvolvimento da periferia capitalista, a estratégia que permitisse alcançar gradualmente o nível de desenvolvimento dos países centrais. Teorias baseadas no mercado, porque não há teoria econômica que não parta dos mercados, mas teorias de economia política que atribuíam ao Estado e a suas instituições um papel central na coordenação da economia” (BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. Macroeconomia da Estagnação e Novo Desenvolvimentismo, in: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos (org.). Nação, Câmbio e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2007, p. 3.) 22 Ver a respeito: VIANNA, Oliveira. O Idealismo da Constituição - 2a edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. O maior exemplo dessa inadequação entre o texto constitucional e a realidade se encontrava nos dispositivos sobre o exercício dos direitos políticos. Isso porque o sistema eleitoral era completamente viciado, de modo a privilegiar apenas as oligarquias de certas regiões do país, a saber, São Paulo e Minas Gerais, dando origem ao que ficou conhecido como a política “café-com-leite”. 23 Isso porque, no âmbito econômico, “a crise mundial trazia como conseqüência uma produção agrícola sem mercado, a ruína de fazendeiros, o desemprego nas grandes cidades. As dificuldades financeiras cresciam: caía a receita das exportações e a moeda conversível se evaporara” (FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: EDUSP, Imprensa Oficial do Estado, 2002, p. 185). Já no plano político, “as oligarquias dos Estados vitoriosos em 1930 procuravam reconstruir o Estado nos velhos moldes. Os ‘tenentes’ se opunham a essa perspectiva e apoiavam Getúlio em seu propósito de reforçar o poder central” (Ibid., p. 186). Ao mesmo tempo, porém, esses mesmos tenentes “representavam uma corrente difícil de controlar, que colocava em risco a hierarquia no interior do Exército” (Ibid., loc. cit.). Some-se a esses fatores internos o apoio da Igreja e, conseqüentemente, da massa da população católica ao novo governo (Ibid., loc. cit.). Externamente, desde o advento da Revolução Russa, em 1917, aumentava a pressão sobre os regimes capitalistas no sentido de se atender aos anseios de justiça social de sua população como forma de afastar o risco de uma possível revolução comunista.

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22

de aperfeiçoar as já existentes 24. Um dos pontos mais relevantes da nova

Constituição dizia respeito à ordem econômica e social, incluída pela primeira vez

na história brasileira num texto constitucional. Declarava-se que a ordem

econômica deveria ser organizada conforme os princípios da justiça e as

necessidades da vida nacional, de modo que possibilitasse a todos uma existência

digna. Dentro desses limites era garantida a liberdade econômica 25.

Nesse aspecto, a Constituição de 1934 se identifica com uma tendência

verificada nas constituições do pós-guerra nos países ocidentais. Esse “sentido

social de direito”, nela presente, pode ser percebido, também, na Constituição

alemã de Weimar, de 1919, na do México, de 1917, e na Constituição Espanhola,

de 1931 26. Assim, às funções estabelecidas pelo modelo liberal, foram

acrescentadas outras, de caráter social, isto é, que visavam a garantir o bem-estar

dos membros da sociedade e, de forma reflexa, combater a “ameaça comunista”.

Além disso, a Constituição de 1934 dispunha, ainda, sobre o

aproveitamento industrial das minas e das quedas-d’água 27, possibilitando uma

maior ingerência do poder público nesses setores. Através da imposição de

normas de controle e fiscalização – regulamentadas, respectivamente, pelo Código

de Minas 28 e pelo Código de Água 29 – ampliava o Estado sua esfera de atuação.

Seria possível perceber, portanto, uma mudança da concepção acerca do

papel do Estado, que, de garantidor dos direitos de liberdade dos indivíduos,

passava a ser considerado um instrumento de implementação de justiça social. Por

outro lado, a essa mudança de papel do Estado corresponderia, também, uma

mudança na sua relação com as esferas social e econômica. O poder estaria

centralizado no Estado que, através de seu corpo burocrático, teria passado a

implementar medidas de caráter social e a adotar a intervenção direta na economia

como estratégia de atuação, além de participar como ator econômico – por meio

das empresas estatais – da competição no mercado.

24 São exemplos de inovações trazidas pela Constituição de 1934, dentre outros, a criação das Justiças Eleitoral e Trabalhista, a burocratização do aparelho estatal e a criação do Mandado de Segurança. 25 VENÂNCIO FILHO, Alberto. Verbete sobre a “Constituição de 1934”, in: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro: Pós 1930, p. 1566. Fundação Getúlio Vargas (Disponível em: www.cpdoc.fgv.br/dhbb - Acesso em 13.08.2007). 26 Ibid., loc. cit. 27 Cf. Arts. 118 e 119 da Constituição de 1934. 28 Decreto-lei n. 1.985, de 29 de janeiro de 1940, posteriormente alterado pelo Decreto-lei n. 227, de 28 de fevereiro de 1967. 29 Decreto n. 24.643, de 10 de julho de 1934.

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23

Justamente por isso, há quem diga que “nos anos 50, tornou-se um lugar

comum a idéia de que o Estado tinha um papel estratégico na promoção do

progresso técnico e da acumulação de capital, além de lhe caber a

responsabilidade principal pela garantia de uma razoável distribuição de renda” 30.

Entretanto, ambas as transformações – das funções estatais e da sua forma de

atuação em relação à sociedade e à economia – teriam produzido, também, um

“crescimento explosivo” 31 do Estado, que, para promover o bem-estar social e o

desenvolvimento econômico, aumentou, de forma expressiva, seu corpo

burocrático, e, conseqüentemente, teve que elevar a carga tributária para arcar

com as despesas relativas às suas novas funções 32.

Esse crescimento do Estado Social-Desenvolvimentista brasileiro acabou

gerando distorções em relação à concepção ideal do modelo que, aos poucos,

tornaram-se mais evidentes. Nesse sentido, são citados como fatores de distorção

que impediam tal modelo de Estado de atender com qualidade às demandas

formuladas por seus cidadãos a captura por interesses privados das transferências

das receitas oriundas da arrecadação dos tributos, a ineficiência da administração

pública burocrática – tanto no que diz respeito à realização das atividades

exclusivas do Estado quanto ao gerenciamento das empresas estatais – e a

incapacidade física de fiscalização da corrupção existente no imenso corpo

burocrático estatal 33. Todos esses fatores, aliados ao endividamento externo cada

vez maior, teriam levado a uma grave crise fiscal, cujos sintomas se manifestaram

de maneira mais explícita nos anos 1980.

30 Cf. BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A reforma do Estado nos anos 90: lógica e mecanismos de controle. In: Cadernos MARE da Reforma do Estado, n.1. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997, p. 13. 31 A expressão é de Bresser Pereira (Cf. Ibid., loc. cit..) 32 Explica Bresser Pereira que a carga tributária “de 5 a 10 por cento no início do século [XX] passou para 30 a 60 por cento do Produto Interno Bruto dos países, e aumentou o número de burocratas públicos, que agora não se limitavam a realizar as tarefas clássicas do Estado [liberal]” (Cf. Ibid., loc. cit.). 33 Segundo Bresser Pereira: “As transferências [de receita] do Estado foram sendo capturadas pelos interesses especiais de empresários, da classe média e de burocratas públicos. As empresas estatais, que inicialmente se revelaram um poderoso mecanismo de realização de poupança forçada, na medida em que realizavam lucros monopolistas e os investiam, foram aos poucos vendo esse papel se esgotar, ao mesmo tempo que sua operação se demonstrava ineficiente ao adotar os padrões burocráticos de administração. Na realização das atividades exclusivas do Estado e principalmente no oferecimento dos serviços sociais de educação e saúde, a administração pública burocrática, que se revelara efetiva em combater a corrupção e o nepotismo no pequeno Estado Liberal, demonstrava agora ser ineficiente e incapaz de atender com qualidade as demandas dos cidadãos-clientes no grande Estado Social do século vinte, tornando necessária sua substituição por uma administração pública gerencial” (Cf. Ibid., loc. cit.).

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24

O Estado Social-Desenvolvimentista brasileiro fracassava, assim, em

cumprir as funções por ele assumidas, pois, como explica Bresser Pereira:

“Na medida em que o Estado via sua poupança pública tornar-se negativa, perdia autonomia financeira e se imobilizava. Suas limitações gerenciais apareciam com mais nitidez. A crise de governança, que no limite se expressava em episódios hiperinflacionários, tornava-se total: O Estado, de agente do desenvolvimento, se transformava em seu obstáculo”. 34

Nesse sentido, a ascensão do Estado Regulador no Brasil é associada,

freqüentemente, ao colapso do modelo social-desenvolvimentista de Estado

durante a década de 1980. Entretanto, a outro fator é atribuída, também,

importância decisiva para o seu surgimento: o fenômeno da globalização 35 –

principalmente no seu viés econômico. É possível pensar na globalização como

resultado de uma combinação entre diminuição dos custos e aumento da

velocidade dos transportes e dos meios de comunicação internacionais 36. No

âmbito econômico, “a globalização levou a um enorme aumento do comércio

mundial, dos financiamentos internacionais e dos investimentos diretos das

empresas multinacionais” 37, o que teve como efeito “um aumento da competição

internacional em níveis jamais pensados e uma reorganização da produção a nível

mundial patrocinada pelas empresas multinacionais” 38. Ou seja, formou-se um

mercado global que ganha poder em detrimento da soberania dos Estados

Nacionais, na medida em que o desenvolvimento econômico destes passa a

depender de sua capacidade de competir internacionalmente com outros países

pelos recursos dos investidores externos. Dito de outro modo, tais mudanças 34 Cf. Ibid, p. 14. 35 O termo “globalização” não comporta uma única definição. O significado usual a ele associado remete à idéia de uma conexão a nível mundial, que pode estar relacionada a diferentes áreas da vida social. Segundo Jan Aart Scholte: “Globality in the sense of transworld connectivity is manifested across multiple areas of social life, including communication, travel, production, markets, money, finance, organizations, military, ecology, health, law and consciousness” (Cf. SCHOLTE, Jan Aart. Globalization: A Critical Introduction. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2005, p. 49). 36 Sobre a importância do desenvolvimento dos meios de comunicação e transportes para a globalização, explica Bauman: “Parece claro de repente que as divisões dos continentes e do globo como um todo foram função das distâncias, outrora impositivamente reais devido aos transportes primitivos e às dificuldades de viagem. / Com efeito, longe de ser um ‘dado’ objetivo, impessoal, físico, a ‘distância’ é um produto social; sua extensão varia dependendo da velocidade com a qual pode ser vencida (e, numa economia monetária, do custo envolvido na produção dessa velocidade). Todos os outros fatores socialmente produzidos de constituição, separação e manutenção de identidades coletivas – como fronteiras estatais ou barreiras culturais – parecem, em retrospectiva, meros efeitos secundários dessa velocidade” (Cf. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999, p. 19). 37 BRESSER PEREIRA, ob. cit., p. 14. 38 Ibid., loc. cit..

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geraram uma significativa perda de autonomia por parte dos Estados Nacionais,

uma vez que, agora, na formulação de suas políticas macroeconômicas, devem

levar em conta as exigências impostas pelo mercado global.

Os efeitos da globalização econômica foram – e são ainda – sentidos de

maneira distinta pelos chamados “países desenvolvidos” e pelos “países em

desenvolvimento”. Como explica Bresser Pereira:

“(...) dado o fato de que os mercados sempre privilegiam os mais fortes, os mais capazes, aprofundou-se a concentração de renda seja entre os países, seja entre os cidadãos de um mesmo país. Entre os países porque os mais eficientes tiveram melhores condições de se impor sobre os menos eficientes. Entre os cidadãos de cada país pela mesma razão. Entre os trabalhadores de países pobres e ricos, entretanto, a vantagem foi para os primeiros: dado o fato que seus salários são consideravelmente mais baixos, os países em desenvolvimento passaram a ganhar espaço nas importações dos países desenvolvidos, deprimindo os salários dos trabalhadores menos qualificados nesses países”. 39

Assim, se o Estado Social-desenvolvimentista brasileiro já dava sinais de

seu esgotamento em razão de sua crise fiscal e da conseqüente incapacidade de

implementação de políticas públicas, esse quadro teria se tornado ainda mais

grave por força dos efeitos da globalização. Vale dizer, não apenas sua capacidade

para implementar políticas públicas estaria limitada, mas a própria elaboração de

políticas públicas pelo Estado passava a obedecer à lógica determinada pelos

interesses de investidores externos. Sustentava-se que o desafio a ser enfrentado,

portanto, era o de restaurar o Estado no seu papel de agente promotor do

desenvolvimento sem, no entanto, aumentar os gastos com a máquina pública.

Alegava-se que era necessário revigorar o Estado através de reformas que o

tornassem mais barato e eficiente na realização de suas tarefas, aliviando, assim, o

peso de seu custo sobre as empresas nacionais, que, agora, participavam da

competição no mercado global.

Assim, por meio das reformas buscava-se (a) delimitar as funções do

Estado, reduzindo seu tamanho; (b) reduzir o grau de interferência do Estado na

economia, prevendo novos instrumentos para essa intervenção; (c) aumentar a

governança do Estado, principalmente por meio de um ajuste fiscal; e (d)

aumentar a governabilidade garantindo mecanismos de participação democrática

39 Ibid., loc. cit..

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que tornassem mais legítima a atuação do governo 40. Como previa Bresser

Pereira:

“(...) o Estado do século vinte-e-um será um Estado Social-Liberal: social porque continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento econômico; liberal, porque o fará usando mais os controles de mercado e menos os controles administrativos, porque realizará seus serviços sociais e científicos principalmente através de organizações públicas não-estatais competitivas, porque tornará os mercados de trabalhos mais flexíveis, porque promoverá a capacitação dos seus recursos humanos e de suas empresas para a inovação e a competição internacional”. 41

Desse modo, se o Estado liberal se limitava a assegurar as regras do jogo

estabelecidas livremente pelos atores econômicos segundo a lógica do mercado e

o Estado Social-Desenvolvimentista buscava promover o bem-estar da

coletividade através da intervenção direta no mercado, o Estado Regulador

brasileiro deveria atuar no sentido de corrigir as falhas do mercado, de forma a

equilibrar as relações econômicas, tendo por base a eficiência da Administração

Pública e a maximização do bem-estar social 42.

Mas, afinal, no que consiste a atuação regulatória do Estado? É importante

ressaltar, desde logo, que o termo regulação comporta diferentes significados 43.

Nada obstante, no campo do Direito Econômico, a regulação é normalmente

definida como uma espécie de intervenção do Estado na economia que se

contrapõe à intervenção direta 44. Trata-se, assim, de um “conjunto de medidas

40 Ibid., pp. 18-19. 41 Ibid., p. 18. 42 Segundo Joaquim Barbosa Gomes, para quem: “O fenômeno da Regulação, tal como concebido nos dias atuais, nada mais representa, pois, do que uma espécie de corretivo indispensável a dois processos que se entrelaçam. De um lado, trata-se de um corretivo às mazelas e às deformações do regime capitalista. De outro, um corretivo ao modo de funcionamento do aparelho do Estado engendrado por esse mesmo capitalismo” (GOMES, Joaquim Barbosa. Agências Reguladoras: A “Metamorfose” do Estado e da Democracia - Uma Reflexão de Direito Constitucional e Comparado. In: BINENBOJM, Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 22). 43 Paulo Todescan Lessa Mattos adota um conceito mais amplo de regulação, que se associa a “técnicas administrativas consubstanciadas em normas destinadas à organização do sistema econômico ou que geram efeitos sobre o sistema econômico” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador no Brasil..., p. 33). Para uma exposição sobre a origem do termo regulação e dos significados aos quais o mesmo pode estar associado, bem como para uma diferenciação entre a regulação e outros institutos como a regulamentação, o poder de polícia e a Administração Ordenadora, ver: ARAGÃO, ob. cit., pp. 22-37. Para um panorama das diferentes técnicas de regulação estatal ver: BALDWIN, Robert; e CAVE, Martin. Understanding Regulation – Theory, Strategy and Practice. Oxford: Oxford university Press, 1999, pp. 34-62. 44 Assim, segundo Carlos Ari Sundfeld: “A regulação, enquanto espécie de intervenção estatal, manifesta-se tanto por poderes e ações com objetivos declaradamente econômicos (o controle de concentrações empresariais, a repressão de infrações à ordem econômica, o controle de preços e tarifas, a admissão de novos agentes no mercado) como por outros com justificativas diversas, mas efeitos econômicos inevitáveis (medidas ambientais, urbanísticas, de normalização, de disciplina

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legislativas, administrativas e convencionais, abstratas ou concretas, pelas quais o

Estado, de maneira restritiva da liberdade privada ou meramente indutiva,

determina, controla, ou influencia o comportamento dos agentes econômicos,

evitando que lesem os interesses sociais definidos no marco da Constituição e

orientando-os em direções socialmente desejáveis” 45.

Há várias teorias que procuram explicar as razões pelas quais um

determinado setor econômico é regulado pelo Estado 46. Foge, porém, aos limites

deste estudo uma análise detalhada das mesmas. Em verdade, interessa, aqui, tão

somente consignar que a implementação do que é comumente denominado

“Estado Regulador” no Brasil é identificada com uma mudança na estratégia de

intervenção do Estado na economia, que deixou de estar baseada na atuação direta

no mercado, através das estatais, para estruturar-se, de forma descentralizada, em

torno de funções de fiscalização, fomento e planejamento da atividade econômica

do país, voltadas à correção de falhas de mercado, o que pressupunha a criação de

novas entidades administrativas 47.

das profissões etc.). Fazem regulação autoridades cuja missão seja cuidar de um específico campo de atividades considerado em seu conjunto (o mercado de ações, as telecomunicações, a energia, os seguros de saúde, o petróleo), mas também aquelas com poderes sobre a generalidade dos agentes da economia (exemplo: órgãos ambientais). A regulação atinge tanto os agentes atuantes em setores ditos privados (o comércio, a indústria, os serviços comuns – enfim, as ‘atividades econômicas em sentido estrito’) como os que, estando especialmente habilitados, operam em áreas de reserva estatal (prestação de ‘serviços públicos’, exploração de ‘bens públicos’ e de ‘monopólios’ estatais)” (Cf. SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às Agências Reguladoras. In SUNDFELD, Carlos Ari (Coord). Direito Administrativo Econômico. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 18.). 45 Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 37. 46 Até os anos 70 os estudos sobre o tema partiam da premissa de que a regulação era um instrumento estatal criado para corrigir as falhas do mercado. Em 1971, porém, George J. Stigler, Professor da Universidade de Chicago, formulou o que ficou conhecido como Teoria Econômica da Regulação para afirmar que “falhas de governo coexistiam com falhas de mercado – sobrepujando-as, por vezes. Isso invalidaria e tornaria inóquo o esforço do Estado dirigido à correção das primeiras. O resultado, segundo a Escola de Chicago, era uma regulação que protegia os interesses da indústria regulada e que não promovia o bem-estar social” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa (coord.). Regulação econômica e Democracia: O Debate Norte-Americano. São Paulo: editora 34, 2004, prefácio dos organizadores, p. 15. Para uma introdução à teoria Econômica da Regulação, ver, na mesma obra: STIGLER, George J.. Teoria Econômica da Regulação; POSNER, Richard A. Teorias da Regulação Econômica; e PELTZMAN, S.. A Teoria Econômica da Regulação depois de uma década de desregulação). Ver, ainda: BALDWIN; e CAVE, ob. cit., pp. 9-33. 47 Sobre as diferentes espécies de intervenção estatal e sua relação com o processo de implementação do Estado Regulador no Brasil, Vinícius Marques de Oliveira observa que: “É atribuída ao Estado, portanto, uma série de funções na organização do processo econômico. Situando-as de maneira sintética, correspondem a dois grandes grupos: aquelas em que o Estado aparece como empresário, ou seja, como produtor ou distribuidor de bens e serviços, e aquelas em que ele se apresenta como regulador, enquadrando nesse âmbito as medidas de cunho legislativo e administrativo por meio das quais controla ou influencia o comportamento dos agentes econômicos, tendo em vista orientá-los em direções desejáveis e evitar efeitos lesivos aos

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Se é certo, assim, que, segundo o critério classificatório acima adotado,

optou-se na CRFB/88 por um modelo regulador de Estado, há que se reconhecer,

porém, que a implementação de um tal modelo somente tornou-se possível, de

fato, a partir de meados da década de 1990, após a elaboração do Plano Diretor de

Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE. O PDRAE, de 1995, representa, nesse

sentido, um marco fundamental do “processo de substituição do Estado

planejador, controlador, produtor e árbitro dos conflitos dos quais era parte por

um Estado Regulador, que se limita a impor marcos referenciais, a promover a

direção descentralizada e a adotar controles indiretos por meio fomento à

concorrência” 48.

2.1.2 O Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado como marco para o Estado Regulador no Brasil

Foi visto, portanto, que, diante da crise fiscal do Estado nos anos 80 e das

exigências de flexibilidade e eficiência da Administração Pública geradas pela

globalização econômica, defendeu-se, no Brasil, a necessidade de reforma do

Estado. O modelo de reforma pensado à época englobava uma série de aspectos,

tais como o ajuste fiscal, a liberalização comercial, o programa de privatizações e

o programa de publicização dos serviços competitivos ou não-exclusivos do

Estado 49.

No que diz respeito às funções do Estado e à forma de sua intervenção na

economia, a ordem econômica estabelecida pela Constituição de 1988 é

considerada um passo importante no caminho para uma reforma voltada à

instituição do Estado Regulador no Brasil. Contudo, com relação à estrutura da

Administração Pública, estabeleceu o Poder Constituinte de 1988 um modelo

interesses socialmente legítimos”. Prossegue o autor: “O que se pode observar no Brasil, a partir do inicio da década de 1990, foi o deslocamento da relevância atribuída às modalidades de intervenção estatal. Enquanto, por um lado, se iniciou um esvaziamento das funções do Estado empresário por intermédio do processo de privatizações de empresas estatais, por outro constituiu-se um novo aparato regulatório formado pelas agências de regulação” (Cf. CARVALHO, Vinícius Marques de. Regulação de Serviços Públicos e Intervenção Estatal na Economia, in: FARIA, ob. cit., pp. 13-14). 48 Cf. MATTOS, Paulo todescan Lessa. Regulação Econômica e Democracia..., no prefácio de José Eduardo Faria, p. 17. 49 Cf. PDRAE, p. 13.

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identificado pelos reformistas como um verdadeiro “retrocesso burocrático”, que

resultou no encarecimento do custo da máquina administrativa, tanto no que se

refere a gastos com pessoal, como em relação a bens e serviços, o que teria

gerado, conseqüentemente, um enorme aumento da ineficiência dos serviços

públicos50.

Coube ao primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso a elaboração

do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), que lançou as

bases do projeto de reestruturação do aparato estatal, visando, principalmente, a

solucionar o problema da rigidez e ineficiência da máquina administrativa, que

eram vistos como os principais limitadores diretos da capacidade do Estado de

implementar políticas públicas. Segundo o discurso político então vigente, o

PDRAE tinha como objetivo não apenas enfrentar a “crise generalizada do

Estado”, mas também, em última análise, “defendê-lo como res publica”, na

medida em que visava a reestruturar a relação entre Estado e cidadão sobre a base

da eficiência da Administração Pública 51. Ou seja, sua elaboração tinha o objetivo

de “reforçar a governança – a capacidade de governo do Estado – através da

transição programada de um tipo de administração pública burocrática, rígida e

ineficiente, voltada para si própria e para o controle interno, para uma

administração pública gerencial, flexível e eficiente, voltada para o atendimento

do cidadão” 52.

Assim, observado de uma perspectiva mais ampla, o desafio que se propôs

enfrentar através da elaboração do PDRAE em 1995 era o de reconhecer as

limitações econômicas impostas ao Estado, que impediam a volta ao

desenvolvimentismo de 1930 e 1950, sem, no entanto, adotar o modelo ortodoxo

de Estado mínimo do neoliberalismo 53. Em outras palavras, a questão que se

colocava era: Como reduzir os custos do Estado sem negar a ele seu papel

essencial de coordenador da sociedade e de promotor do desenvolvimento?

50 Ver a respeito: PDRAE, pp. 20-22; e BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos. A Reforma do Aparelho do Estado e a Constituição Brasileira (Conferência ministrada no seminário sobre a reforma constitucional realizados com os partidos políticos sob o patrocínio da Presidência da República). Brasília, janeiro de 1995. Revisada em abril. Versão eletrônica disponível em: http://www.bresserpereira.org.br (Aceso em 13.08.2007) 51 Cf. PDRAE, pp. 14-18. 52 Cf. Ibid., p. 13. 53 Cf. Ibid., p. 44: “Dada a crise do Estado e o irrealismo da proposta neoliberal do Estado mínimo, é necessário reconstruir o Estado, de forma que ele não apenas garanta a propriedade e os contratos, mas também exerça seu papel complementar ao mercado na coordenação da economia e na busca da redução das desigualdades sociais”.

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30

Na busca por uma solução, entendeu-se como medida prioritária redefinir

com clareza as funções do Estado. Redefinir as funções estatais seria, segundo a

lógica dos defensores da reforma do Estado, fazer com que ele abandonasse a

estratégia de desenvolvimento econômico e social pela via direta da produção de

bens e serviços para fortalecer-se na função de promotor indireto desse

desenvolvimento, via regulação, cumprindo, assim, o disposto na Constituição de

1988 54.

Nos termos do PDRAE, isso significava transferir, para o setor privado, as

atividades que poderiam ser controladas pelo mercado e, para o setor público não-

estatal, as atividades públicas não-exclusivas do Estado 55. A lógica orientadora

desse processo deveria levar em conta a existência de quatro grandes setores da

atuação do Estado e uma análise sobre o quão necessária e eficiente seria a

atuação estatal em cada um desses setores.

O primeiro setor seria o núcleo estratégico, correspondente ao governo em

sentido amplo, cujas atividades não poderiam ser delegadas pelo Estado 56. O

segundo seria o de atividades exclusivas do Estado, ou seja, aqueles serviços que

só o Estado poderia realizar 57 e que, portanto, também não poderiam ser

transferidos. O terceiro, por sua vez, seria o setor de atuação simultânea do Estado

e outras organizações públicas não-estatais e privadas. Seriam, portanto,

atividades com caráter essencialmente público, mas nas quais o Estado não atuaria

privativamente 58, podendo, assim, ser transferidas através de publicização 59.

54 Cf. supra, item 1.1. 55 Cf. BRESSER PEREIRA, ob. cit., p. 22. 56 “É o setor que define as leis e as políticas públicas, e cobra o seu cumprimento. É portanto o setor onde as decisões estratégicas são tomadas. Corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no Poder Executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus auxiliares e assessores diretos, responsáveis pelo planejamento e formulação das políticas públicas” (Cf. PDRAE, p. 41). 57 “São serviços em que se exerce o poder extroverso do Estado – o poder de regulamentar, fiscalizar, fomentar. Como exemplos temos: a cobrança e fiscalização dos impostos, a polícia, a previdência social básica, o serviço de desemprego, a fiscalização do cumprimento de normas sanitárias, o serviço de trânsito, a compra de serviços de saúde pelo Estado, o controle do meio ambiente, o subsídio à educação básica, o serviço de emissão de passaportes, etc.” (Cf. PDRAE, p. 41). 58 “As instituições desse setor não possuem o poder de Estado. Este, entretanto, está presente porque os serviços envolvem direitos humanos fundamentais, como os da educação e da saúde, ou porque possuem ‘economias externas’ relevantes, na medida que produzem ganhos que não podem ser apropriados por esse serviço através do mercado. As economias produzidas imediatamente se espalham para o resto da sociedade, não podendo ser transformadas em lucros. São exemplos desse setor: as universidades, os hospitais, os centros de pesquisa e os museus” (Cf. PDRAE, pp. 41-42)

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31

Finalmente, o quarto setor seria aquele responsável pela produção de bens e

serviços para o mercado e, nesse sentido, seria o menos característico em termos

de intervenção “exclusiva e/ou necessária” do Estado 60. Tais atividades poderiam

ser privatizadas, ficando o Estado com a regulamentação e controle do seu

exercício pelos entes privados.

Em resumo, o PDRAE tinha como objetivos gerais aumentar a governança

do Estado e limitar sua atuação às funções que lhe são próprias. Esses objetivos

gerais eram traduzidos para cada um dos quatro setores da atuação estatal na

forma de objetivos específicos 61. Isso porque cada um desses quatro setores

apresentaria características peculiares, tanto no que se refere às suas prioridades,

quanto aos princípios administrativos adotados.

Assim, conforme disposto no PDRAE, “no núcleo estratégico, o

fundamental é que as decisões sejam as melhores, e, em seguida, que sejam

efetivamente cumpridas”, de modo que “a efetividade é mais importante que a

eficiência”. Vale dizer: o que importa é saber “se as decisões que estão sendo

tomadas pelo governo atendem eficazmente ao interesse nacional, se

correspondem aos objetivos mais gerais aos quais a sociedade brasileira está

voltada ou não” e “se, uma vez tomadas as decisões, estas são de fato

cumpridas”62.

59 Explica Bresser Pereira que: “A palavra ‘publicização’ foi criada para distinguir esse processo de reforma do de privatização. E para salientar que, além da propriedade privada e da propriedade estatal existe uma terceira forma de propriedade existente no capitalismo contemporâneo: a propriedade pública não-estatal. (...) / O reconhecimento de um espaço público não-estatal tornou-se particularmente importante em um momento em que a crise do Estado aprofundou a dicotomia Estado-setor privado, levando muitos a imaginar que a única alternativa à propriedade estatal é a privada. A privatização é uma alternativa adequada quando a instituição pode gerar todas as suas receitas da venda de seus produtos e serviços, e o mercado tem condições de assumir a coordenação de suas atividades. Quando isto não acontece, está aberto o espaço para o público não-estatal” (Cf. BRESSER PEREIRA, ob. cit., pp. 25-27). 60 “Corresponde à área de atuação das empresas. É caracterizado pelas atividades econômicas voltadas para o lucro que ainda permanecem no aparelho do Estado como, por exemplo, as do setor de infra-estrutura. Estão no Estado seja porque faltou capital ao setor privado para realizar o investimento, seja porque são atividades naturalmente monopolistas, nas quais o controle via mercado não é possível, tornando-se necessário, no caso de privatização, a regulamentação rígida” (Cf. PDRAE, p. 42). 61 Como exemplo de objetivos específicos, é possível citar, para o núcleo estratégico, uma política de profissionalização do serviço público; para o setor de atividades exclusivas, a transformação de autarquias e fundações que possuem poder de Estado em agências autônomas; para o terceiro setor, a publicização dos serviços públicos não-exclusivos; e, para o quarto setor, dar continuidade ao processo de privatização das empresas estatais. Para uma lista detalhada dos objetivos específicos do PDRAE para cada setor da atuação do Estado, ver: PDRAE, pp. 44-48. 62 Cf. PDRAE, p. 42.

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Já em relação às atividades exclusivas do Estado, aos serviços não-

exclusivos e à produção de bens e serviços, a eficiência despontaria como critério

fundamental. Nesses setores, segundo o disposto no PDRAE, “o que importa é

atender milhões de cidadãos com boa qualidade e a um custo baixo” 63. E, para

que isso fosse possível, seria necessário substituir o modelo burocrático de

administração pela administração gerencial 64.

Não é por outro motivo que a principal idéia que justifica e orienta o

projeto de reforma do Estado brasileiro na década de 1990 é a da “eficiência e

qualidade na prestação de serviços públicos e desenvolvimento de uma cultura

gerencial nas organizações” 65, o que, no plano da reforma do aparelho do Estado

se traduz na implementação da Administração Pública Gerencial. Esse novo

modelo administrativo não negaria o modelo anterior. A idéia defendida era a de

conservá-lo, mas flexibilizando alguns dos seus princípios fundamentais 66. Como

diferença fundamental entre os dois modelos, apontava-se a forma de controle dos

atos da Administração, não mais concentrada nos processos, e sim nos resultados.

Vale dizer:

“Na administração pública gerencial a estratégia volta-se (1) para a definição precisa dos objetivos que o administrador público deverá atingir em sua unidade, (2) para a garantia de autonomia do administrador na gestão dos recursos humanos, materiais e financeiros que lhe forem colocados à disposição para que possa atingir os objetivos contratados, e (3) para o controle ou cobrança a posteriori dos resultados”. 67

A implementação dos princípios gerenciais de administração deveria

ocorrer, segundo o PDRAE, concomitantemente, em três dimensões: a dimensão

institucional-legal, que diz respeito à reforma do sistema jurídico-legal –

principalmente da ordem constitucional, por meio de emendas à constituição; a

cultural, responsável por viabilizar “a operacionalização da cultura gerencial

centrada em resultados através da efetiva parceria com a sociedade, e da

cooperação entre administradores e funcionários”; e a dimensão gestão, isto é,

aquela referente às práticas administrativas68.

63 Cf. Ibid., loc. cit. 64 Cf. Ibid., p. 43. 65 Cf. Ibid., p. 16. 66 Como, por exemplo, “a admissão Segundo rígido critérios de mérito, a existência de um sistema estruturado e universal de remuneração, as carreiras, a avaliação constante de desempenho, o treinamento sistemático” (Cf. PDRAE, p. 16). 67 Cf. Ibid., p. 16. 68 Cf. PDRAE, p. 48.

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33

Para o presente estudo, interessa o nível das práticas administrativas que

constituem a “dimensão gestão” e, mais especificamente, a previsão da criação

das agências reguladoras independentes 69, tema que trataremos a seguir.

2.1.3 As agências reguladoras e o novo modelo de Estado

A implementação da denominada Reforma do Aparelho do Estado, a partir

da elaboração do PDRAE, introduziu no cenário jurídico-administrativo brasileiro

as agências reguladoras independentes 70. Sustentava-se, então, que o caminho

rumo à Administração Pública gerencial passava pela “implantação de

laboratórios, especialmente nas autarquias voltadas para as atividades exclusivas

do Estado, visando iniciar o processo de transformação em agências autônomas,

ou seja, em agências voltadas para resultados, dotadas de flexibilidade

administrativa e ampla autonomia de gestão” 71.

Assim, segundo tal plano, essas agências, nitidamente inspiradas na figura

das independent regulatory agency do Direito Norte-americano 72, seriam

69 Cabe observar que o PDRAE utiliza o termo “autônomas”, e não “independentes”, para caracterizar as agências reguladoras. A utilização mais comum, atualmente, do termo “independente” se justifica, porém, como forma de diferenciar o grau de autonomia de que gozam essas agências da autonomia de que dispõem, por exemplo, outras entidades autárquicas integrantes do aparato estatal brasileiro. Daí falar-se, também, de uma “autonomia reforçada” das agências reguladoras se comparada com essas outras entidades. Ver a respeito: ARAGÃO, ob. cit., pp. 263-275. 70 Há hoje, no Brasil, somente no âmbito federal, dez agências: Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, criada pela Lei n. 9.427/96; Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, criada pela Lei n. 9.472/97; Agência Nacional do Petróleo – ANP, criada pela Lei n. 9.478/97; Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, criada pela Lei n. 9.782/99; Agência Nacional de Águas – ANA, criada pela Lei n. 9.984/00; Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, criada pela Lei n. 9.961/00; Agência Nacional de Transportes Aquáticos – ANTAQ, criada pela Lei n. 10.233/01; Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, também criada pela Lei n. 10.233/01; Agência Nacional do Cinema – ANCINE; criada pela MP n. 2.228/01; e Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, criada pela Lei n. 11.182/05. 71 PDRAE, p. 55. 72 Alexandre santos de Aragão observa, porém, que “como demonstração de que a recente legislação brasileira das agências reguladoras se abebera, não apenas da experiência norte-americana, como também nas recentes construções legislativas e doutrinas européias, cuja escola do Direito Administrativo integramos, é digno de nota o art. 9o da Lei Geral das Telecomunicações – Lei n. 9.472/97 –, que dispõe que a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL ‘atuará como autoridade administrativa independente’ ” (Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 237, nota n. 43). De fato, a expressão “autoridade administrativa independente” é a versão em português das “autorités administratives indépendantes” francesas. Essa aparente confusão terminológica se explica, segundo Carlos Ari Sundfeld, na medida em que, na realidade, “entes de regulação nada têm de específicos à common law, podendo, sim, ser adotados em países estranhos a esse sistema – como a França – uma vez que “a regulação não é própria de certa família jurídica, mas sim de uma opção política econômica” (Cf. SUNDFELD, ob. cit., p.23).

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instrumentos essenciais para diminuir os entraves burocráticos da atuação estatal

em setores estratégicos da economia, uma vez que sua instituição implicaria a

retirada da regulação desses mesmos setores do âmbito das escolhas políticas do

Presidente da República e de seus Ministros de Estado. Ou seja, “sob um ponto de

vista pragmático, essa pretensa despolitização tinha por objetivo criar um

ambiente regulatório não diretamente responsivo à lógica político-eleitoral, mas

pautado por uma gestão técnica e imparcial” 73.

Em verdade, a estratégia de “despolitização” de setores considerados

estratégicos para a economia se insere na lógica do processo de privatizações e de

desestatização que inspirou a Reforma do Estado 74. Isso porque se defendia que

“a atração do setor privado, notadamente o capital internacional, para o

investimento nas atividades econômicas de interesse coletivo e serviços públicos

objeto do programa de privatizações e desestatizações estava condicionada à

garantia de estabilidade e previsibilidade das regras do jogo nas relações dos

investidores com o poder público” 75. Assim, tais agências teriam como função

garantir, lançando mão de um aparato decisório fundado no seu caráter técnico e

assegurado pela sua independência em relação a interferências políticas, a

satisfação do interesse público através da regulação de setores até então afeitos à

prestação direta do Estado 76.

Isso se daria pelo desempenho, no âmbito de sua competência – definido

na lei de sua criação –, de atividades de caráter executivo, normativo e judicante,

correntemente equiparadas pelos juristas às três funções típicas do Estado, a saber:

executiva, legislativa e jurisdicional 77. O exercício dessas funções e seu elevado

73 Cf. BINENBOJM, Gustavo (coord.). ob. cit., apresentação, p. ix. 74 Sob o ângulo específico do Direito Administrativo esse fenômeno se insere no contexto maior de descentralização do Estado, também resultado das novas condições econômicas proporcionadas pela globalização. Nesse sentido, afirma André de Laubadère que: “As transformações das estruturas econômicas são hoje em dia tão rápidas que obrigam a freqüentes revisões das regras administrativas. Por outro lado, as flutuações conjunturais reclamam adaptações constantes das medidas econômicas decididas pela administração” (LAUBADÈRE, apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras..., p. 7). Acrescenta Alexandre Santos de Aragão que: “É sob esta perspectiva que a elaboração teórica e legislativa das agências reguladoras, com seu dinamismo, independência, especialização técnica e valorização das soluções consensuais, deve ser destacada como um importante instrumento de intercomunicação do sistema jurídico com o subsistema econômico envolvente” (Ibid., loc. cit.). 75 Cf. BINENBOJM, ob. cit., apresentação, p. ix. 76 Cf. CARVALHO,Vinícius Marques de. Regulação de Serviços Públicos e Intervenção Estatal na Economia, in:,FARIA, José Eduardo (org.). Regulação Direito e Democracia..., p. 14. 77 “As agências podem assumir distintos estatutos jurídicos, desde sua participação na administração direta, até sua existência autárquica e independente. A elas competem funções do Executivo, tais como a concessão e fiscalização de atividades e direitos econômicos, e lhes são

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grau de autonomia política para decidir fizeram com que alguns considerassem as

agências reguladoras um quarto Poder 78, ou, ainda, uma espécie de “mini-

Estado”79.

A regulação executiva por parte das agências reguladoras – por exemplo,

por meio de atos de consentimento de ingresso no mercado mediante concessão de

licenças, autorizações e permissões, ou, ainda, através de atos de fiscalização

sobre a execução da atividade consentida ou contratada – seria assemelhada às

atribuições dos órgãos da Administração Pública direta, no exercício do poder de

polícia 80. Já o exercício da função normativa por essas entidades consistiria na

especificação das normas gerais definidas pelo legislador às particularidades do

setor econômico regulado 81 e encontraria sua justificativa no discurso da

necessidade de flexibilidade, rapidez e especialização técnica da intervenção

estatal na economia nas sociedades capitalistas contemporâneas 82. Saber, no

entanto, até que ponto a atuação normativa das agências tem respeitado os limites

estabelecidos pelo legislador ou, ao contrário, vem usurpando sua competência, é

tema bastante controverso, que pressupõe a definição prévia de critérios capazes

de responder à pergunta acerca de quais são esses limites 83. Por fim, a função

judicante diria respeito “à solução de eventuais conflitos entre os diversos agentes

regulados, entre esses agentes e os usuários/consumidores ou com o Poder Público

(concedente, permitente ou autorizador)” 84. Ainda no âmbito da atuação

atribuídas funções do Legislativo, como criação de normas, regras, procedimentos, com força legal sob a área de sua jurisdição. Ademais, ao julgar, impor penalidades, interpretar contratos e obrigações, as agências desempenham funções judiciárias” (Cf. NUNES, Edson de O.; NOGUEIRA, André M.; COSTA, Cátia C. da; ANDRADE, Helenice V. de; e RIBEIRO, Leandro M.. Agências Reguladoras e Reforma do Estado no Brasil: inovação e contituidade no sistema político institucional. Rio de Janeiro: Garamond, 2007, p. 16). 78 Segundo Edson Nunes et al., “desde a década de 30, nos EUA, chamou-se de quarto poder às atividades atribuídas às agências. O comitê Brownlow (Committee on Administrative Management), no Governo Franklyn Roosevelt, dizia que eram, em verdade, miniaturas de governos independentes, que constituíam um ‘fourth branch of the government’ ”(Ibid., p. 17). 79 Ibid., loc. cit.. 80 Ver a respeito: GUERRA, Sérgio. O Controle Judicial dos Atos Regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 96-99; SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito Administrativo Regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 57. 81 Como ressalta Sérgio Guerra, “as Agências Reguladoras brasileiras vêm editando uma série de normas com vistas a traduzir, por critérios técnicos, os comandos previstos na Carta Magna e na legislação infraconstitucional acerca do subsistema regulado”. Nesse sentido, cita o autor, como exemplo, a interpretação do termo “eficiência”, previsto no parág. 1º, do art. 6º, da Lei n. 8.987/95. 82 Ver a respeito: SUNDFELD, ob. cit., p. 27. 83 E isso depende, em última análise, de uma teoria do Estado e, conseqüentemente, da separação dos poderes, que consiga justificar o exercício das funções estatais sem se prender a arranjos institucionais específicos. Voltaremos a este tema adiante. 84 Cf. GUERRA, Sérgio. O Controle Judicial..., pp. 125-126.

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judicante, há a previsão, nas leis de criação de algumas agências reguladoras, da

solução de controvérsias por meio de conciliação, mediação e arbitragem 85.

Percebe-se, portanto, a partir da lógica que orientou a reforma do Estado, o

quão importante era que as novas entidades reguladoras fossem dotadas de

independência para decidir 86. Em última análise, a garantia de que as decisões

resultantes de sua atuação executiva, normativa ou judicante, supostamente

técnicas, iriam prevalecer, dependia, diretamente, de que elas tivessem

independência política no desempenho de suas funções.

2.2 Agências reguladoras independentes e legitimidade

Mas o que significa, exatamente, essa “independência”? A independência

das agências reguladoras é entendida como a ausência de subordinação

hierárquica dessas entidades aos órgãos do Poder Executivo, o que, na prática, faz

com que o Conselho Diretor da agência seja a última instância decisória em

matérias de sua competência 87. Fundamentais para que seja assegurada a

independência das agências seriam a sua autonomia orçamentária e financeira 88 e

a impossibilidade de exoneração ad nutum 89 dos seus dirigentes 90 – nomeados

por mandato determinado 91– pelo Poder Executivo.

85 A título de exemplo, a lei de criação da Agência Nacional do Petróleo – ANP (Lei n. 9.478/97), no art. 43, X, prevê a necessidade de haver, no contrato de concessão para as atividades de exploração, “regras sobre a solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e arbitragem”. No mesmo sentido, a lei que criou a Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL (Lei n. 9.472/97) determina, no art. 93, XV, que o contrato de concessão contenha “o modo para solução extrajudicial das divergências contratuais”. 86 Mencionar os artigos da Legislação sobre independência. Note-se, ainda, que, como ressalta Carlos Ari Sundfeld: “No caso brasileiro, inclusive porque a Constituição o exige, as agências vêm sendo instituídas por lei, e não por mero decreto do executivo, o que tem importância óbvia quanto à garantia de sua autonomia” (SUNDFELD, ob. cit., pp. 23-24, nota 14). 87 “A independência decisória representa o estabelecimento do Conselho Diretor das Agência Reguladora como última instância decisória, haja vista a sua vinculação administrativa (e não subordinação hierárquica) ao respectivo Ministério” (Cf. GUERRA, ob. cit., p. 15). 88 “A autonomia financeira e orçamentária está assegurada nas leis instituidoras de cada Agência Reguladora. Têm como principal receita as denominadas taxas de fiscalização ou regulação pagas por aqueles que exercem as respectivas atividades econômicas reguladas, fazendo com que inexista dependência de recursos do Tesouro” (Cf. GUERRA, ob. cit., p. 15) 89 Isso significa que “os Dirigentes das Agências Reguladoras somente perderão seus mandatos em caso de renúncia, de condenação judicial transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar, cabendo à lei de criação das Agências prever outras condições para a perda do mandato” (Cf. GUERRA, ob. cit., p. 15). 90 Segundo Alexandre Aragão, as agências reguladoras são “órgãos e entidades dotadas de independência frente ao aparelho central do estado – assegurada sobretudo pela vedação de exoneração ad nutum dos seus dirigentes –, com especialização técnica e autonomia, inclusive normativa, capazes de direcionar as novas atividades sociais na senda dos interesses públicos

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Vale ressaltar que a previsão legal de vedação da exoneração dos

dirigentes das agências até mesmo pelo chefe do Poder Executivo foi objeto de

muita controvérsia no meio jurídico no passado 92. De fato, apenas recentemente,

no julgamento da ADI 1949-0/RS, o STF reverteu o entendimento até então

dominante na Corte, que autorizava a exoneração de dirigentes de autarquias

nomeados pelo Presidente para mandato determinado. Em seu voto, o Ministro

Nelson Jobim destacou que as agências reguladoras teriam sido concebidas para a

execução da política legal, que não necessariamente corresponde à política de

governo. Nesse sentido, sustentou o Ministro Jobim que a vedação à exoneração

ad nutum de seus dirigentes pelo chefe do Poder Executivo constitui condição

necessária para que as agências reguladoras possam cumprir as funções que lhes

foram atribuídas em Lei 93 – e às quais sua atuação está, portanto, vinculada – sem

sofrer interferências políticas 94.

juridicamente definidos” (Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 1). Carlos Ari Sundfeld, por sua vez, afirma que “na verdade, o fator fundamental para garantir a autonomia da agência, parece estar na estabilidade dos dirigentes” (Cf. SUNDFELD, ob. cit., p. 24). 91 Explica Carlos Ari Sundfeld: “Na maior parte das agências atuais o modelo vem sendo o de estabelecer mandatos. O Presidente da República, no caso das agências federais, escolhe os dirigentes e os indica ao Senado Federal, que os sabatina e aprova (o mesmo sistema usado para os Ministros do Supremo tribunal Federal); uma vez nomeados, eles exercem mandato, não podendo ser exonerados ad nutum”. O mesmo autor adverte, porém, que esse sistema de nomeação tem sido seguido com maior ou menor rigidez nas diferentes agências (Cf. SUNDFELD, ob. cit., p. 25). O prazo do mandato também pode variar: na ANA e na ANEEL, os mandatos dos dirigentes são de quatro anos (Cf. art. 9o da Lei n. 9.984/00 e art. 5o da Lei n. 9.427/96), enquanto que, na ANS, é de três anos (Cf. art. 6o, parágrafo único, da Lei n. 9.961/00). 92 Segundo Alexandre Santos de Aragão, “há algumas décadas começou a ser instituída, via legislativa, uma série de autarquias de regime especial a cujos dirigentes a lei restringia o poder de exoneração do chefe do Poder Executivo ao estabelecer sua nomeação por mandato determinado”. O autor cita o exemplo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, criado pela lei n. 3.807/60 e registra que “o STF, contudo, à época, considerou inconstitucional este reforço de autonomia por violar o poder de direção do Presidente da República sobre toda a Administração Pública. Esta posição jurisprudencial foi consolidada pela Súmula n. 25, que dispõe: ‘A nomeação a termo não impede a livre demissão, pelo Presidente da República, de ocupante de cargo dirigente de autarquia’ ” (Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 264). 93 No mesmo sentido entende Alexandre Santos de Aragão, entendemos que “a independência das agências reguladoras deve ser tratada sem preconceitos ou mitificações de antigas concepções jurídicas que, no mundo atual, são insuficientes ou mesmo ingênuas. Com efeito, limitar as formas de atuação e organização estatal àquelas do século XVIII, ao invés de, como afirmado pelos autores mais tradicionais, proteger a sociedade, retira-lhe a possibilidade de regulamentação e atuação efetiva dos seus interesses” (Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 9). 94 Nessa linha de raciocínio, argumentou o Ministro Jobim: “Eu, por exemplo, quando Ministro da Justiça, tive a tentação de intervir em decisões do CADE no que diz respeito a casos que aconteceram aqui, em relação à concentração COLGATE/KOLYNOS, etc., e o CADE repelia completamente o conflito que se estabeleceu naquele momento entre a política econômica do Governo, ou seja, a Secretaria de Assuntos Econômicos do Poder Executivo e a Secretaria de Defesa Econômica do Ministério da Justiça. E ele trancou a possibilidade dessa concentração na perspectiva da política macroecon6omica estar altamente interessante, mas que iria em detrimento da concorrência, que era o objetivo da lei. O CADE não era para instrumentar política de Governo,

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Daí se depreende que a independência das agências reguladoras não

implica a ausência de qualquer limite à sua atuação. Toda agência reguladora deve

ser criada por lei ordinária 95, que lhe atribui competência e estabelece os

parâmetros e limites de sua atuação.

Justamente por isso, estão previstos, no ordenamento jurídico, diferentes

mecanismos de controle dos atos decisórios das agências reguladoras, tais como a

prestação de contas junto ao respectivo Tribunal de Contas quanto às verbas

públicas por elas despendidas 96, a possibilidade de revisão judicial de suas

decisões 97, e, principalmente, a possibilidade de fiscalização de seus atos, de

alteração de seu regime jurídico e até mesmo de sua extinção pelo poder

Legislativo 98. Há, ainda, mecanismos de participação pública nos processos de

tomada de decisão das agências, como as “consultas públicas”, as “audiências

públicas” 99 e as ouvidorias.

Portanto, a qualificação “independente” deve ser entendida em termos 100.

Mesmo porque “em nenhum país onde foram instituídas [as agências reguladoras]

possuem independência em sentido próprio, mas apenas uma maior ou menor

autonomia, dentro dos parâmetros fixados pelo ordenamento jurídico” 101. Dito de

outro modo, independência, no caso das agências reguladoras, não é sinônimo de

soberania 102, mas sim de uma “efetiva descentralização autônoma, uma

mas sim a política da lei de proteção da concorrência” (Cf. ADI 1.949-0-RS. STF, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, D.J. 25/11/2005). 95 Como têm natureza institucional de “autarquia especial”, as agências reguladoras estão submetidas ao disposto no art. 5o, I, do Decreto-Lei n. 200 de 1967, que exige que as autarquias sejam criadas “por lei”. 96 Cf. art. 70 da Constituição de 1988. 97 Cf. art. 5o, XXXV, da Constituição de 1988. Cabe ressaltar que os limites do controle judicial sobre os atos administrativos – neles inseridos, portanto, os atos das agências reguladoras – são, ainda hoje, objeto de muita controvérsia. Para uma análise aprofundada do tema, ver: GUERRA, Sérgio. Controle Judicial dos Atos Regulatórios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 98 Cf. art. 49, V e X, da Constituição de 1988. 99 Para um histórico da evolução dos mecanismos de controle dos atos das agências reguladoras nos E.U.A. desde o New Deal até os anos 90 ver: SUNSTEIN, Cass. O Constitucionalismo Após o New Deal. In: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Regulação Econômica e Democracia: O Debate Norte-Americano(...). 100 Segundo SUNDFELD, dizer que as agências reguladoras são dotadas de independência é apenas “fazer uma afirmação retórica com o objetivo de acentuar o desejo de que a agência seja ente autônomo em relação ao Poder Executivo, que atue de maneira imparcial e não flutue sua orientação de acordo com as oscilações que, por força até do sistema democrático, são próprias desse poder” (Cf. SUNDFELD, ob. cit., p. 24). 101 Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 9. 102 Segundo Fezas Vital, a soberania é a “competência da competência, quer dizer, competência para marcar os limites da própria competência. E assim, se o poder político tiver compet6encia para marcar os limites dentro dos quais exerce o seu poder de ordens, dir-se-á soberano; mas se os limites dentro dos quais exerce o seu poder de dar ordens forem marcados, não por ele próprio,

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autonomia ‘reforçada’ em comparação com a autonomia das demais entidades da

Administração Indireta” 103.

É essa “autonomia reforçada” a principal nota distintiva das agências

reguladoras em relação aos demais entes de regulação previstos pelo ordenamento

jurídico brasileiro 104. Vale dizer: embora tenham natureza institucional de

autarquia, diferenciam-se das demais entidades autárquicas em razão de seu

elevado grau de autonomia.

Assim, com base no que foi visto até aqui, é possível afirmar que, em que

pesem suas especificidades 105, as agências reguladoras brasileiras têm como

características essenciais “a impossibilidade de exoneração ad nutum dos seus

dirigentes, a organização colegiada, a formação técnica, competências regulatórias

e a impossibilidade de recursos hierárquicos impróprios” 106. Apenas a conjunção

mas por outro poder, então dir-se-á não soberano”, mas apenas autônomo (VITAL, apud ARAGÃO, ob. cit., p. 313). 103 Ibid., p. 10. Importante ressaltar que no próprio PDRAE utilizou-se a expressão “agências autônomas” e não “agências independentes”. 104 O Banco Central do Brasil – BACEN e a Comissão de Valores Mobiliários – CVM, por exemplo, são entidades autárquicas com amplos poderes regulatórios que, no entanto, têm suas decisões condicionadas pelo poder normativo do Conselho Monetário Nacional (órgão específico do Ministério da Fazenda, conforme o disposto no art. 16, VII, da Lei n. 9.649/98) e podem, ainda, ter seus dirigentes exonerados pelo Presidente da República caso lhe seja conveniente (Ver a respeito: MENDES, Conrado Hübner. Reforma do Estado e Agências Reguladoras: Estabelecendo os Parâmetros de Discussão, in: SUNDFELD, ob. cit., pp. 124-127; e ARAGÃO, ob. cit., pp. 297-312). Justamente por isso, há quem diga que as agências reguladoras não representariam algo verdadeiramente novo em termos de estrutura administrativa. Ver a respeito: Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem “Em rigor, autarquias com funções reguladoras não se constituem em novidade alguma” (MELLO, Celso Antônio bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 133) e Conrado Hübner Mendes que entende “serem as agências reguladoras de pouca novidade na estrutura burocrática brasileira” (Cf. MENDES, ob. cit., p. 100). Porém, como observa Paulo Todescan Lessa Mattos, esse tipo de afirmação “ignora dois aspectos centrais à compreensão das agências de regulação no direito brasileiro: (I) o desenho institucional das agências de regulação difere dos órgãos [e entidades, acrescentaríamos] reguladores até então existentes no Brasil; e (II) os pressupostos teóricos e práticos à criação das agências de regulação diferem dos pressupostos que orientam a criação dos demais órgãos [e entidades] reguladores que encontramos no Direito brasileiro, nos diversos momentos da história econômica do país” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Regulação Econômica e Democracia..., pp. 57-58). 105 NUNES et al., mencionam trecho da obra de Richard Noll para destacar que essa diversidade de formatos institucionais não é exclusiva do Brasil e, mais ainda, é maior nos EUA do que aqui: “Regulatory agencies come in many sizes and forms. Some are headed by commissions – a group of coequal heads Who make decisions by voting on formal proposals, much like a legislature – while others have a single administrative head. Some are independent agencies technically outside the President’s administrative control, while other are lodged in executive branch departments. Some have very narrow responsibilities (…). Others, like the Occupational Health and Safety Administration, regulate every business in the nation” (NOLL, Richard (Ed.). Regulatory Policy and the Social Sciences, apud NUNES et. al, ob. cit., p. 16, nota de rodapé n. 2). 106 Cf. ARAGÃO, ob. cit., p. 10.

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desses elementos resultará na conceituação de uma entidade como agência

reguladora independente 107.

Ocorre que a criação de entidades reguladoras dotadas de um alto grau de

autonomia, em relação às decisões dos agentes públicos eleitos, para editar

normas enseja inúmeras e relevantes questões nos campos do Direito e da Política

– como as da delegação legislativa, da usurpação de competências institucionais e

da violação ao princípio da separação dos poderes. Todas elas, porém, são

derivadas de um problema fundamental, que diz respeito a um suposto déficit de

legitimidade democrática da atuação normativa dessas novas autoridades

administrativas 108, isto é, à dificuldade de justificação de seu poder normativo

com base na teoria liberal da democracia 109.

Assim, se a distância dos critérios político-partidários de decisão,

assegurada, sobretudo, pela impossibilidade do Chefe do Poder Executivo (eleito)

exonerar livremente os seus dirigentes (nomeados), é tida, do ponto de vista da

eficiência econômica, como uma das maiores vantagens do modelo institucional

das agências reguladoras, do ponto de vista político, ela se apresenta como um dos

seus maiores problemas 110. Isso porque “o usuário dos serviços e produtos

107 Cf. Ibid., loc. cit.. 108 “A insurgência de espaços administrativos efetivamente autônomos frente ao poder executivo central, do que as agências reguladoras independentes constituem o exemplo mais relevante em nosso Direito Positivo, é uma exigência da eficaz regulação estatal de uma sociedade também diferenciada e complexa. Todavia, a adoção de um modelo multiorganizado ou pluricêntrico de Administração Pública traz riscos à legitimidade democrática da sua atuação” (Cf. ARAGÃO, ob. cit., pp. 218-219). Como explica Paulo Todescan Lessa Mattos: “O que está em questão é saber em que medida pode ser legítima e democrática a decisão sobre o conteúdo da regulação por um órgão colegiado não-eleito e com autonomia decisória em relação à administração direta, em contraposição à decisão monocrática de um ministro de Estado nomeado pelo presidente da República eleito pelo voto popular. Ou, ainda, em que medida é legítima a definição de políticas públicas para um setor da economia por meio de uma agência reguladora independente, na medida em que, ao exercer sua função normativa, acaba por especificar (exercendo efetivamente poder normativo) o conteúdo das normas gerais definidas em lei pelo Poder Legislativo (eleito) ou em decreto do presidente da República (eleito)” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador Brasileiro..., p. 339). 109 Como observa, adequadamente, Aragão: “A determinação do âmbito do poder normativo das agências reguladoras pressupõe a definição do que se entende por Estado de Direito, separação de poderes, princípio da legalidade e discricionariedade” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras..., p. 397). 110 Como explica Paulo Todescan Lessa Mattos que: “as agências reguladoras independentes são autorizadas pelo Congresso a: (i) editar normas, exercendo função quase-legislativa; (ii) decidir conflitos, exercendo função quase-jurisdicional ao aplicar e interpretar normas; e (iii) executar leis, exercendo função quase-executiva de formulação de políticas públicas. E, no caso do exercício das funções executivas, as agências têm, do ponto de vista legal, garantias de independência decisória e podem, ao formular políticas públicas, contrariar os interesses políticos do presidente eleito democraticamente. Dessa forma, muitas das decisões das agências envolvem escolhas políticas traduzidas em normas editadas (political choices that ‘make law’), que têm que ser legitimadas” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador Brasileiro..., p. 171).

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regulados é, antes de ser usuário, eleitor daqueles que conferiram mandatos às

agências” 111. E, se os agentes eleitos não têm influência direta sobre as decisões

dos reguladores – ou, dito de outro modo, se não há instrumentos de

accountability eleitoral para limitar as decisões dos dirigentes das agências

reguladoras –, o cidadão, como eleitor, perde seu poder sobre as decisões públicas

tomadas em setores que afetam áreas cruciais de sua vida. Em outras palavras:

“transformado apenas em consumidor, o cidadão eleitor carece de meios para

inquirir e interpelar o (mini)Estado que governará a água que bebe, a eletricidade

que consome, o telefone que usa, o rádio que ouve, a televisão que vê, o ensino

que obtém, o transporte que utiliza, o remédio que dá a seu filho” 112.

Nesse contexto, como em qualquer outro processo de autonomização do

poder, o desafio é repensar novos instrumentos de accountability e controle da

atuação estatal, que devem estar inseridos num contexto de ampliação dos espaços

democráticos e inclusão dos cidadãos 113. O debate desenvolvido no âmbito do

Direito sobre o tema, porém, tem se concentrado apenas na dimensão jurídico-

formal deste desafio.

A seguir, apresentarei, brevemente, as principais correntes deste debate e

procurarei demonstrar suas insuficiências para o enfrentamento de uma questão

tão complexa, que envolve diferentes áreas do conhecimento, como é a questão da

legitimidade democrática da atuação normativa das agências reguladoras. Embora

seja possível falar de uma “atuação normativa” das agências no desempenho de

suas três funções 114 – normativas, executivas e judicantes –, utilizarei tal

expressão para me referir, precisamente, à função “quase-legislativa”, isto é, a

função de edição de documentos normativos jurídicos, das agências reguladoras.

Isso se deve ao fato de que somente no desempenho dessa função está

prevista, obrigatoriamente, para as agências reguladoras – embora possam elas se

111 Cf. NUNES et al., ob. cit., p. 17. 112 Ibid., pp. 17-18. 113 Cf. SUNDFELD, ob. cit., p. 24. 114 Nesse sentido, a idéia de atuação normativa não estaria identificada, unicamente, com a atividade legislativa das agências, mas se basearia na proposição de Hans Kelsen, segundo a qual uma decisão jurisdicional que aplica a lei a um caso concreto ou um ato administrativo do Poder Executivo que concretiza numa determinada situação o mandamento contido num texto normativo são etapas necessárias da atuação normativa estatal. Segundo Kelsen: “Este processo, no qual o Direito como que se recria em cada momento, parte do geral (ou abstrato) para o individual (ou concreto). É um processo de individualização ou concretização sempre crescente” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 7ª ed.. Trad. de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 263).

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diferenciar quanto à sua estrutura institucional, uma vez que cada agência é criada

por lei específica tanto no âmbito federal, como estadual e municipal – a adoção

dos mecanismos de participação popular institucionalizados nos seus processos

decisórios – notadamente, as audiências públicas e as consultas públicas. E é,

justamente, nesses mecanismos de participação popular que se tem enxergado, por

meio da aplicação da teoria de Habermas, potenciais de legitimação democrática

da atuação normativa das agências reguladoras.

2.3 O debate no meio jurídico brasileiro

A maior parte dos autores de Direito administrativo e econômico no

Brasil115 têm tratado do tema da legitimidade democrática da atuação das agências

reguladoras a partir de uma perspectiva formalista, limitada ao plano do debate

constitucional, “no qual os problemas são sempre passíveis de uma solução

técnica por meio da melhor interpretação (ou da interpretação que vencer a

disputa)” 116.

É possível identificar, dentre os numerosos estudos já produzidos 117, três

linhas principais que representam as diferentes posições assumidas por seus

115 Vale mencionar, como exceções a essa tendência disseminada entre nossos juristas, os trabalhos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa do Núcleo de Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP, dentre os quais se destaca a obra O Novo Estado Regulador no Brasil: Eficiência e Legitimidade, de Paulo Todescan Lessa Mattos, utilizada como referência para o presente estudo, e, ainda, o artigo de Gustavo Binenbojm: Agências Reguladoras Independentes no Brasil (In: BINENBOJM, Gustavo (coord.). Agências Reguladoras e Democracia. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 2006, pp. 89-110), onde o autor chama a atenção para a necessidade de fomento à participação pública e de aperfeiçoamento do sistema de controle sobre as agências reguladoras a fim de aumentar o grau de legitimidade de sua atuação. 116 Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Autonomia Decisória, Discricionariedade Administrativa e Legitimidade da Função Reguladora do Estado no Debate Jurídico Brasileiro. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O Poder Normativo das Agências Reguladoras..., pp. 341-342. 117 Ver: BINENBOJM, Gustavo (Coord.). Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006; ARAGÃO, Alexandre Santos de (Coord.). O Poder Normativo das Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 2000; MELLO, Celso Antônio Bandeira de. “Regulamento e Princípio da Legalidade”. In: Revista de Direito Público, n. 96, outubro-dezembro, 1990; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública. São Paulo: Atlas, 1999; e SUNDFELD, Carlos Ari. Introdução às Agências Reguladoras. In: SUNDFELD, ob. cit., pp. 17-38.

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autores com relação ao tema 118. Duas delas questionam a legitimidade

democrática da atuação das agências reguladoras.

A primeira o faz alegando que o poder normativo dessas entidades para

especificar o conteúdo de normas gerais previstas em lei ou decreto do Presidente

da República não possui previsão constitucional. Dessa forma, o exercício da

atividade normativa pelas agências reguladoras implicaria uma ampliação

inconstitucional da discricionariedade normativa por parte do titular do poder

regulamentar. Além disso, tal modelo de regulamentação ensejaria o risco de –

por força do aumento da discricionariedade – distanciar-se, cada vez mais, o

conteúdo dos documentos normativos editados pelas agências da intenção do

legislador quando da elaboração da lei ou do Presidente quando da elaboração do

Decreto de regulamentação de lei, que, em última análise, são autoridades eleitas

e, portanto, dispõem de maior legitimidade democrática que os diretores das

agências reguladoras. O aumento da discricionariedade geraria, ainda,

dificuldades no que diz respeito ao controle de legalidade dos atos normativos das

agências por parte do Poder Judiciário 119.

A segunda posição é ainda mais radical e afirma que a função normativa

das agências reguladoras representaria uma delegação abdicatória, ou seja, uma

renúncia do Poder legislativo ao seu dever de exercer a competência que lhe é

atribuída pela Constituição 120. Portanto, seria inconstitucional, com base no art.

25, I, do ADCT/88121, qualquer forma de delegação da função normativa por parte

do Poder Legislativo e, conseqüentemente, o poder normativo das agências

reguladoras.

Uma terceira linha seria composta por aqueles que inserem o fenômeno de

surgimento das agências reguladoras no Brasil em um contexto maior de revisão

de alguns dos postulados principais do constitucionalismo clássico – tais como os

118 A divisão aqui adotada foi proposta por Paulo Todescan Lessa Mattos. Ver a respeito: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. Autonomia Decisória, Discricionariedade Administrativa e Legitimidade da Função Reguladora do Estado no Debate Jurídico Brasileiro. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de (Coord.). Poder Normativo das Agências Reguladoras..., pp. 339-341. 119 Ver a respeito: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na Administração Pública..., pp. 140-147. 120 Ver a respeito: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Regulamento e Princípio da Legalidade.... 121 “Art. 25. Ficam revogados a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I. Ação normativa; (...)”.

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princípios da legalidade e da separação dos poderes – à luz das realidade sócio-

econômica cada vez mais complexa gerada pelo mundo globalizado 122.

Argumento muito utilizado é o da necessidade de regulação técnica de algumas

atividades específicas, que desloca o foco do problema de questões de dogmática

constitucional para o discurso sobre a exigência de eficiência da atividade

reguladora 123. Destaca-se também a previsão legal de mecanismos de controle da

atuação das agências e de formas de participação no processo decisório das

mesmas, como instrumentos capazes de responder às alegações de violação aos

princípios constitucionais da separação de poderes e do Estado democrático.

Assim, os esforços empreendidos por esses autores se resumem, normalmente, à

busca pela interpretação do texto constitucional que consiga “harmonizar” os

princípios da legalidade e da separação dos poderes com a atuação normativa

politicamente autônoma das agências reguladoras, a fim de identificar parâmetros

normativos de controle da discricionariedade administrativa.

É nesse contexto que tem crescido entre os administrativistas brasileiros o

debate sobre temas relacionados à questão dos limites do poder normativo das

agências reguladoras, como os da “deslegalização” (ou “delegificação”) e da

“delegação legislativa” 124. Nos EUA é comum a abordagem da questão a partir da

idéia da delegação legislativa. Vale dizer, entre os juristas norte-americanos, os

debates giram em torno não da possibilidade ou não de delegação legislativa por

parte do Poder legislativo às agências reguladoras, mas dos limites dessa

delegação. Entre nós, porém, há grande resistência para se reconhecer a

possibilidade de delegação da função de legislar pelo Poder Legislativo às

agências reguladoras. As posições contrárias ao exercício do poder normativo por

parte das agências reguladoras, normalmente, têm como ponto nuclear o

argumento de que é inconstitucional qualquer tipo de delegação legislativa não

autorizada expressamente em dispositivos da Constituição.

122 Ver a respeito: ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras..., pp. 218-219; e BARROSO, Luís Roberto. Agências Reguladoras: Constituição, Transformações do Estado e Legitimidade Democrática. In: BINENBOJM, Gustavo. Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. 123 Ver a respeito: SUNDFELD, ob. cit., pp. 17-38. 124 “A correlação entre o Princípio da Legalidade e o poder normativo da Administração Pública (arts. 5º, II, 37, caput, e 84, IV e VI, CF) é uma das questões mais presentes nos debates contemporâneos da Teoria Geral do Estado e do Direito Público” (Cf. ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras..., p. 396. Ver, também, do mesmo autor: Princípio da Legalidade e Poder Regulamentar no Estado Contemporâneo. In: Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro – RDPGE, vol. 53, pp. 37-60).

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Por isso, aqueles que defendem a legitimidade da atuação normativa das

agências, ao tratarem da questão, utilizam, nas palavras de Sundfeld, “uma forma

mais francesa: a administração pública tem também função normativa, que não se

confunde com a função normativa legislativa” 125. Ou seja, no Brasil, a estratégia

jurídica adotada por aqueles que defendem a legitimidade da atuação normativa

das agências reguladoras é a de se investir na argumentação acerca da

relativização do princípio da legalidade e da ampliação do poder normativo das

agências. A esta proposta corresponde a idéia de “deslegalização”, cujo

fundamento residiria na suposta necessidade de especialização técnica e

flexibilidade das normas que regulam certos setores da economia. Ao Poder

Legislativo, seria, então, relegada a tarefa de elaborar leis cada vez mais amplas e

genéricas, que não regulassem diretamente a matéria, mas estabelecessem apenas

os standards que deveriam guiar a produção normativa das agências

reguladoras126.

Na realidade, o que se depreende desse debate é que “estão todos dizendo

a mesma coisa; uns com honestidade chocante, outros, revestindo o fenômeno

dentro de categorias que o tornam mais palatáveis, tendo em vista a separação de

poderes que nos é tão cara” 127. Tal conclusão é ainda mais evidente ao se

verificar que, mesmo que se insista na tese de não se tratar de delegação

legislativa, os tipos de argumento utilizados para defender a atuação normativa

das agências reguladoras, no Brasil, são muito semelhantes aos verificados no

debate norte-americano – onde, como visto, se assume, explicitamente, que se

trata de uma delegação da função de legislar 128.

125 Cf. SUNDFELD, apud NUNES et al., ob. cit., p. 17. 126 Ver a respeito, dentre outros: ver: SOUTO, Marcos Juruena Villela. Extensão do poder Normativo das Agências Reguladoras. In: ARAGÃO (Coord.), ob. cit., pp. 125-142; e ARAGÃO, Alexandre Santos de. A Legitimação Democrática das Agências Reguladoras. In: BINENBOJM (Coord.), ob. cit., pp. 1-20. 127 Ibid., loc. cit.. 128 Seriam três, basicamente, os modelos teóricos desenvolvidos nos EUA para justificar a delegação legislativa às agências reguladoras (ver a respeito: MENDES, Conrado Hübner. Reforma do Estado e Agências Reguladoras: Estabelecendo os Parâmetros da Discussão. In: SUNDFELD (Coord.), ob. cit., p. 122). O primeiro é a denominado transmission belt model, segundo a qual tal delegação seria fundamentada pelo fato de ser o legislador, legitimado eleitoral e constitucionalmente, que cria a agência reguladora e lhe transfere o poder normativo e os limites dentro dos quais deve ele ser exercido. Além disso, os dirigentes seriam indicados pelo Presidente da República e aprovado pelo Senado – ambos órgãos democraticamente eleitos. Já o segundo é o expertise model, que justifica a delegação legislativa com base na necessidade de especialização técnica para regulação de determinadas atividades, que tornaria as agências reguladoras mais capazes de editar normas em razão de serem formadas por técnicos expertos em matérias as quais o Congresso não teria condições de regular. O terceiro é o procedural model, segundo o qual a

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No Judiciário brasileiro, parece estar prevalecendo a corrente que defende

a legitimidade do exercício do poder normativo pelas agências reguladoras 129. Na

fundamentação das decisões relevantes do Superior Tribunal de Justiça sobre o

tema, percebe-se, claramente, a forte influência exercida pelo argumento da

especialização técnica das agências. Este é o caso, por exemplo, do julgamento

dos Recursos Especiais 572.070-PR , 985.265-RS e 986.415-RS, que ratificam o

poder normativo da Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL para

definir o que seria “área local” para cobrança de tarifas telefônicas e fixar o valor

das tarifas das assinaturas telefônicas 130.

legitimidade da atuação das agências repousaria na sua capacidade de garantir aos interessados a participação no seu processo de tomada de decisões. Os argumentos ligados a este último modelo, embora ainda pouco desenvolvidos entre os juristas brasileiros, são, a meu ver, aqueles que mais se ajustam à complexidade das sociedades contemporâneas e às exigências trazidas pelo estágio atual dos debates no âmbito da ciência política sobre as teorias da democracia, dentre elas a teoria procedimentalista da democracia de Jürgen Habermas, que será tratada nos capítulos 2 e 3. 129 Em verdade, qualquer afirmação peremptória sobre a tendência decisória do Judiciário brasileiro em relação à legitimidade do exercício do poder normativo pelas agências reguladoras demandaria uma investigação empírica, o que extrapola os limites do presente trabalho. 130 Vale transcreve alguns trechos da ementa da decisão do STJ nos referidos julgamentos: “(...) 1. A regulamentação do setor de telecomunicações, nos termos da Lei n. 9.472/97 e demais disposições correlatas, visa a favorecer o aprimoramento dos serviços de telefonia, em prol do conjunto da população brasileira. Para o atingimento desse objetivo, é imprescindível que se privilegie a ação das Agências Reguladoras, pautada em regras claras e objetivas, sem o que não se cria um ambiente favorável ao desenvolvimento do setor, sobretudo em face da notória e reconhecida incapacidade do Estado em arcar com os eventuais custos inerentes ao processo. 2. A delimitação da chamada ‘área local’ para fins de configuração do serviço local de telefonia e cobrança da tarifa respectiva leva em conta critérios de natureza predominantemente técnica, não necessariamente vinculados à divisão político-geográfica do município. Previamente estipulados, esses critérios têm o efeito de propiciar aos eventuais interessados na prestação do serviço a análise da relação custo-benefício que irá determinar as bases do contrato de concessão. 3. Ao adentrar no mérito das normas e procedimentos regulatórios que inspiraram a atual configuração das ‘áreas locais’ estará o Poder Judiciário invadindo seara alheia na qual não deve se imiscuir” (STJ – RESP 572.070-PR – Rel. Min. João Otávio de Noronha – DJ 14/06/2004); “(...) 3. De acordo com o art. 21, XI, da CF/88 e com a Lei 9.472/97 - Lei Geral de Telecomunicações, a ANATEL detém o poder-dever de fiscalização e regulação do setor de telefonia em relação às empresas concessionárias e permissionárias, o que inclui o papel de controle sobre a fixação e o reajuste das tarifas cobradas do usuário dos serviços de telefonia, a fim de, dentro dessa linha principiológica, garantir o pleno acesso às telecomunicações a toda a população em condições adequadas e com tarifas razoáveis. 4. Nos termos do art. 175, da CF/88 e da Lei Geral de Concessões, Lei 8.987/95, a fixação das tarifas devidas em retribuição ao serviço prestado pelas concessionárias ocorre no ato de concessão, com a celebração do contrato público, precedido do indispensável procedimento de licitação, sempre buscando o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. 5. A despeito disso, não existe regra específica quanto à quantidade de tarifas ou quanto aos limites dessa cobrança, deixando a Lei Geral de Telecomunicações ao prudente arbítrio da ANATEL o papel de regulação e fiscalização dos serviços de telefonia fixa e móvel. 6. A cobrança da assinatura básica mensal está prevista na Resolução 85/98 da ANATEL e nas Portarias 217 e 226, de 3 de abril de 1997, editadas pelo Ministro de Estado das Comunicações, nas quais são observados critérios técnicos tanto para permitir a cobrança da tarifa básica quanto para assegurar ao usuário padrões mínimos e compatíveis de acessibilidade e utilização do serviço telefônico e obrigando, ainda, as prestadoras a dar publicidade aos seus planos de serviços. 7. Não existe incompatibilidade entre o sistema de regulação dos serviços públicos de titularidade do estado prestados de forma indireta e o de proteção e defesa do consumidor, havendo, ao contrário,

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É possível notar, portanto, que as três grandes posições doutrinárias às

quais se filiam os principais autores de Direito administrativo e econômico no

Brasil abordam a questão da legitimidade a partir de um exame de

constitucionalidade em termos de legalidade e de separação de poderes, que tem

como base uma concepção liberal da democracia e do Direito. As duas primeiras o

fazem para sustentar a inconstitucionalidade e conseqüente ilegitimidade das

agências reguladoras. A terceira, embora leve em conta em sua análise temas

externos ao Direito – como o fenômeno de complexificação e especialização das

esferas do saber e, ainda, a idéia do potencial de legitimidade democrática contido

na participação popular nos processos decisórios –, o faz unicamente como

maneira de obter argumentos capazes de mitigar os conceitos clássicos de

separação dos poderes e legalidade.

De qualquer forma, a discussão sobre a legitimidade, nos três casos, se

limita ao plano estritamente jurídico-formal e muito mais voltado para a

identificação de mecanismos institucionais de controle legal da atuação das

agências reguladoras. A criação dos espaços de deliberação pública e participação

popular nos processos decisórios das agências, pensados no projeto de reforma do

Estado como um dos principais instrumentos para tornar essas novas entidades

politicamente autônomas da Administração Pública permeáveis à participação

popular e, portanto, para suprir seu déficit democrático 131, só é considerada em

perfeita harmonia entre ambos, sendo exemplo disso as disposições constantes dos arts. 6º, inc. X, do CDC, 7º da Lei 8.987/95 e 3º, XI; 5º e 19, XVIII, da Lei 9.472/97. 8. Os serviços públicos são prestados, na atualidade, por empresas privadas que recompõem os altos investimentos realizados no ato da concessão com o valor recebido dos usuários, através dos preços públicos ou tarifas, sendo certa a existência de um contrato estabelecido entre concessionária e usuário, de onde não ser possível a gratuidade de tais serviços, o que inclui a disponibilidade do "tronco" telefônico na comodidade do lar dos usuários, cobrado através do plano básico mensal (...)” (STJ – RESP 985.265-RS – Rel. Min. Eliana Calmon – DJ 22/02/2008); “(...) 15. Não há ilegalidade na Resolução n. 85, de 30.12.1998, da Anatel, ao definir: “XXI – Tarifa ou Preço de Assinatura – valor de trato sucessivo pago pelo assinante à prestadora, durante toda a prestação do serviço, nos termos do contrato de prestação de serviço, dando-lhe direito à fruição contínua do serviço”. 16. A Resolução n. 42/05 da Anatel estabelece, ainda, que “para manutenção do direito de uso, caso aplicável, as Concessionárias estão autorizadas a cobrar tarifa de assinatura mensal”, segundo tabela fixada. 17. A cobrança mensal de assinatura básica está amparada pelo art. 93, VII, da Lei n. 9.472, de 16.07.1997, que a autoriza, desde que prevista no Edital e no contrato de concessão, como é o caso dos autos. 18. A obrigação do usuário pagar tarifa mensal pela assinatura do serviço decorre da política tarifária instituída por lei, sendo que a Anatel pode fixá-la, por ser a reguladora do setor, tudo amparado no que consta expressamente no contrato de concessão, com respaldo no art. 103, §§ 3º e 4º, da Lei n. 9.472, de 16.07.1997 (...)” (STJ – RESP 986.415-RS – Rel. Min. José Delgado – DJ 25/02/2008). 131 Mattos observa, no entanto, que a concepção de Bresser-Pereira, idealizador do PDRAE de 1995, sobre esses mecanismos de participação popular está diretamente ligada a um debate sobre a necessidade de accountability da Administração Pública. Ou seja, a principal função vislumbrada

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sua dimensão normativa. Ou seja, assume-se que a simples previsão legal de

mecanismos de representatividade ou de participação pública direta na atuação

das agências reguladoras já seria suficiente para suprir o déficit de legitimidade

democrática da atuação normativa das agências 132. Não se investiga,

empiricamente, as reais necessidades da sociedade em relação a esse tipo de

entidades e nem tampouco o que, na prática, tem ocorrido nos espaços

institucionalizados de deliberação pública previstos nos processos decisórios

envolvidos em sua atuação 133.

E esse conceito jurídico-formal de legitimidade, fundado sobre um

paradigma liberal do Direito e da democracia, que é tão abstrato a ponto de ser

indiferente à realidade, não se presta a fazer o que deveria ser sua principal

função: explicar o fundamento normativo do poder político que o Estado – no

caso, as agências reguladoras – detém de fato na sociedade 134. Essa é a razão pela

qual esse conceito formal de legitimidade que informa os estudos produzidos no

âmbito do Direito administrativo econômico brasileiro não é suficiente para por Bresser-Pereira para esses mecanismos é a de instrumentos de accountability, isto é, de responsabilização e controle a posteriori dos atos administrativos, e não como espaços reservados à deliberação prévia dos atores interessados no conteúdo da regulação pelo poder administrativo e destinados à legitimação das normas por ele editadas. Ver a respeito: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., pp. 238-239. 132 Nesse sentido, ver: SOUTO, Marcos Juruena Villela. Extensão do poder Normativo das Agências Reguladoras. In: ARAGÃO (Coord.), ob. cit., pp. 125-142; e ARAGÃO, Alexandre Santos de. A Legitimação Democrática das Agências Reguladoras. In: BINENBOJM (Coord.), ob. cit., pp. 1-20. Em sentido contrário, ainda que de uma perspectiva eminentemente problematizadora, e não propositiva, ver: MENDES, ob. cit., pp. 131-133. 133 No mesmo sentido,é a crítica elaborada Paulo Todescan Lessa Mattos. O autor procura “indicar que o conceito de legitimidade formal que está na base do direito econômico e do direito administrativo brasileiro não é suficiente para pensar o potencial democrático dos novos órgãos reguladores criados do contexto das reformas da década de 1990” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., pp. 205-206). Para ele, “Enfrentar a delegação legislativa como um fato inerente ao fenômeno do Estado regulador e dar sentido à delegação legislativa para garantir o controle democrático de processos decisórios sobre a formulação de políticas públicas pelo Executivo implica pensar a separação de poderes dentro de um novo conceito de democracia” (Ibid., p. 213). 134 Nas palavras de José Eduardo Faria: “Na visão do legalismo liberal, cuja concepção de legitimidade muitas vezes a funde e confunde com a noção de legalidade, nossas estruturas estariam vivendo uma situação de metástase: a ruptura da hierarquia lógico-formal do sistema jurídico brasileiro seria, nessa ótica, condição de sua atual legitimidade. O legislativo liberal, afinal, não prescinde em hipótese alguma da calculabilidade e da certeza – princípios básicos da ideologia burguesa que permeou a consolidação dos modernos Estados de Direito (...). Como conciliar as exigências de maior igualdade real, advogadas pelos diferentes matizes socialistas, com a liberdade formal louvada em prosa e verso pelo liberalismo? Seria possível evitar que as crescentes regulamentações efetuadas pelo Estado intervencionista, por meio do direito administrativo, na maioria das vezes ditadas por razoes de conjuntura e impostas por critérios de racionalidade material, continuem a abrir rombos fatais tanto no formalismo quanto na segurança jurídica, comprometendo, assim, a pretensa universalidade do modelo liberal de direito?” (Cf. FARIA, José Eduardo. Legalidade e legitimidade: o Executivo como legislador”. In: Revista de Informação legislativa de Brasília, ano 22, n. 86, p. 93-104, abr-jun, 1985.

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investigar as condições de legitimidade das novas entidades reguladoras criadas

no contexto das reformas da década de 1990.

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3 Fundamentos normativos para um novo modelo de análise

Com vistas à superação das limitações de uma análise estritamente jurídica

da questão da legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras,

surgem, atualmente, no âmbito acadêmico jurídico, propostas que buscam ampliar

o foco de seu estudo para além do campo do Direito. Nesse sentido, a utilização

de aportes teóricos “importados” de outras áreas do conhecimento afetas ao tema

da legitimidade do poder estatal, como a filosofia política e a sociologia, começa a

ganhar espaço no cenário jurídico brasileiro. Essa tendência evidencia, em última

análise, o reconhecimento, por parte de alguns juristas, de que a dificuldade de

legitimação teórica da atuação normativa das agências é apenas um dos

desdobramentos do problema mais amplo da crise de legitimação do poder estatal

num período histórico marcado pela incerteza resultante da contestação teórica e

prática do projeto iluminista de civilização 1.

De fato, uma vez verificados os efeitos perversos gerados por um

racionalismo exacerbado, que privilegia a dominação do espaço social por

sistemas que se orientam segundo uma lógica tecnicista e instrumental, bem como

a impossibilidade de compreensão e assimilação do turbilhão de transformações

sociais decorrentes dos avanços tecnológicos pelo modelo de conhecimento

instaurado pela modernidade, resta abalada, atualmente, a crença na razão como

fundamento da coordenação da vida em sociedade. E os efeitos desse abalo

também se estendem ao Estado e às instituições jurídicas modernas, cuja

idealização e construção se deram sobre os pressupostos do racionalismo

iluminista. Como conseqüência, o projeto de um Estado de Direito fundado, em

última análise, na razão humana torna-se cada vez mais difícil de ser sustentado.

Cria-se, portanto, uma situação bastante problemática. Isso porque, com o

advento do racionalismo moderno, afastou-se, nas sociedades capitalistas

1 Como explica Sérgio Paulo Rouanet: “(...) assistimos hoje a uma contestação teórica e prática de cada elemento do projeto iluminista de civilização”. Isso porque: “No plano teórico, a partir de uma matriz nietzschiano-heideggeriana, a ciência é vista como ideologia (Habermas) e como agente de um processo de dominação sobre a natureza e sobre os homens (Adorno e Horkheimer). A razão, em geral, é uma simples antena na superfície do poder e uma indutora da docilidade social (Foucault). O irracionalismo se difunde nas atitudes e comportamentos sociais. Banidos pela ilustração, o mito e a superstição voltam triunfalmente” (Cf. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 98).

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contemporâneas, a possibilidade de se recorrer a critérios metafísicos de

fundamentação do poder político. Vale dizer: fatores como a religião e a tradição

perderam sua capacidade de justificação da obediência à ordem jurídica e ao

poder estatal nessas sociedades. Por outro lado, a razão, apontada como

fundamento último do poder legítimo pelos iluministas, também se encontra,

agora, desacreditada.

Some-se a isso o fato de que, diferentemente das sociedades pré-modernas,

a realidade pluralista das sociedades capitalistas contemporâneas não comporta

uma análise por modelos teóricos pensados a partir da homogeneidade entre

indivíduos que se reconhecem a partir de uma identidade coletiva. A diferença e o

desacordo são seus traços fundamentais, de modo que qualquer tipo de solução

para o problema da legitimidade deve levar em conta a necessidade de busca de

um consenso em meio à heterogeneidade e ao conflito 2.

A grande questão que se coloca àqueles que buscam conferir legitimidade

aos ordenamentos jurídicos e ao poder do Estado, portanto, é como fazê-lo sem

recorrer a critérios metafísicos de fundamentação – como a religião e a tradição –

e nem a uma suposta ética universal iluminista, fundada nos ideais “racionais” de

bem comum e totalmente desconectada da realidade. Dito de outro modo, trata-se

de construir um conceito de legitimidade que mantenha relação com a realidade e

supere concepções por demais abstratas – seja por sua excessiva idealização, seja

por seu caráter formalista –, mas que, ao mesmo tempo, conserve, em si, um

componente normativo, que torne possível a possibilidade de crítica e alteração

dessa mesma realidade.

Nesse sentido, o modelo teórico de Jürgen Habermas tem sido apontado

como uma solução promissora e, cada vez mais, sua utilização no ambiente

jurídico brasileiro – dos direitos humanos à regulação econômica – vem ganhando

novos adeptos. Isso porque, para Habermas, uma teoria social que tenha como

2 Explica Gisele Cittadino que: “Diferentemente da modernidade, é possível apreender as sociedades tradicionais enquanto coletividades ‘naturais’, como um todo homogêneo, pois ainda que seja possível analisá-las a partir de um ponto de vista específico – religião, política, economia – todas estas noções se entrelaçam de tal forma que constituem uma realidade única, orgânica e integrada. O consenso aqui se confunde com a dimensão ‘natural’ do agrupamento social. A sociedade democrática contemporânea não pode ser apreendida desta forma. A multiplicidade de valores culturais, visões religiosas de mundo, compromissos morais, concepções sobre a vida digna, enfim, isso que designamos por pluralismo, a configura de tal maneira que não nos resta outra alternativa senão buscar o consenso em meio da heterogeneidade, do conflito e da diferença” (Cf. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva – Elementos da Filosofia Constitucional Contemporânea. 2ª Ed. Rio de janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 78).

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objeto de análise as sociedades modernas contemporâneas – democráticas e

capitalistas – tem que escolher seus conceitos básicos de maneira que estes

permitam identificar nas práticas políticas fragmentos e partículas de uma “razão

existente” a elas incorporadas, ainda que ela possa estar distorcida. Não se admite,

portanto, a contraposição entre ideal (normativo) e real (sociológico) nesse tipo de

análise, uma vez que na facticidade dos processos políticos empiricamente

observáveis estaria inserido, ainda que apenas parcialmente, um conteúdo

normativo. Em suas palavras:

“(...) o modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de Direito, não pode ser descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico, quando não se leva em conta a dimensão de validade do Direito e a força legitimadora da gênese democrática do Direito”. 3

No presente capítulo, apresentarei, sucintamente 4, o modelo teórico

desenvolvido por Habermas, a fim de preparar as bases para a análise, no capítulo

III, de uma corrente teórica que, a partir de tal modelo, tem buscado investigar o

tema da legitimidade democrática da atuação normativa das agências reguladoras

brasileiras.

Habermas tem como foco o problema teórico das condições de integração

e reprodução, sobre bases racionais, das sociedades modernas contemporâneas –

caracterizadas por um alto grau de complexidade e diferenciação funcional, bem

como pela ruptura da possibilidade de justificação referida a uma moral de nível

convencional5 ou a critérios metafísicos 6. Propõe, como solução, sua Teoria da

Ação Comunicativa, que introduz um novo tipo de racionalidade – a

racionalidade comunicativa – supostamente existente nas relações interpessoais

na sociedade e reproduzido nas instituições jurídico-políticas do Estado de Direito

moderno. Com isso, constrói um paradigma procedimental do Direito

discursivamente estruturado e, segundo ele, capaz de dar conta das dificuldades de

3 Cf. HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito entre Facticidade e Validade – Vol. II. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 9. 4 Em razão da vasta produção do autor, não há, aqui, qualquer pretensão de proceder a uma análise exaustiva de sua teoria. Do mesmo modo, tendo em vista que sua obra recebeu a influência dos mais variados campos do conhecimento, não serão apontadas as origens das idéias por ele assimiladas e desenvolvidas, salvo quando condição necessária para a compreensão das mesmas. 5 Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Trad. Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. 6 Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

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legitimação das normas jurídicas, das estruturas de dominação política e do

exercício do poder administrativo enfrentadas nas sociedades contemporâneas.

Antes, porém, de aprofundar a proposta habermasiana de legitimação da

ordem jurídica e do poder estatal, farei uma breve introdução (1) aos principais

aspectos da Teoria da Ação Comunicativa de Habermas e (2) ao papel

desempenhado pelo Direito em sua teoria. Somente então, tratarei da (3)

reconstrução habermasiana da idéia de Estado de Direito, onde serão apresentados

a idéia de legitimação pelo procedimento estruturado segundo a ética do discurso

e seus obstáculos nas sociedades modernas.

3.1 Ação comunicativa e ética discursiva

Embora reconheça que o advento da modernidade e o deslocamento dos

fundamentos do poder para o locus da razão humana significaram para o homem a

sua emancipação face às fontes da dominação no período pré-moderno, Habermas

identifica efeitos colaterais gerados pelo racionalismo, que se encontram no cerne

de processos repressivos contemporâneos.

Nesse sentido, sua preocupação principal é desenvolver uma teoria capaz

de assimilar os problemas gerados pela modernidade – mais precisamente, pela

compreensão da modernidade fundada na filosofia do sujeito 7 – sem, contudo,

abrir mão do potencial crítico que acompanha o conhecimento racional 8. Dessa

7 Como explica Habermas: “A modernidade inventou o conceito de razão prática como faculdade subjetiva. (...) Isso tornou possível referir a razão prática à felicidade, entendida de modo individualista e à autonomia do indivíduo, moralmente agudizada – à liberdade do homem tido como um sujeito privado, que também pode assumir os papéis de um membro da sociedade civil, do Estado e do mundo. No papel de cidadão do mundo, o indivíduo confunde-se com o do homem em geral – passando a ser simultaneamente um eu singular e geral” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., p. 17). Essa concepção mostrou-se, porém, problemática, pois “após a implosão da figura da razão prática pela filosofia do sujeito, não temos mais condições de fundamentar os seus conteúdos na teleologia da história, na constituição do homem ou no fundo casual de tradições bem-sucedidas. Isso explica os atrativos da única opção que ainda parece estar aberta: a do desmentido intrépido da razão em geral nas formas dramáticas de uma crítica da razão pós-nietzscheana, ou à maneira sóbria do funcionalismo das ciências sociais, que neutraliza qualquer elemento de obrigatoriedade ou de significado na perspectiva dos participantes. Ora, todo pesquisador na área das ciências sociais que não deseja apostar tudo em algo contra-intuitivo, não será atraído por tal solução. Por esta razão, eu resolvi encetar um caminho diferentes, lançando mão da teoria do agir comunicativo: substituo a razão prática pela comunicativa. E tal mudança vai muito além da simples troca de etiqueta” (Cf. Ibid., p. 19). 8 Juan Carlos Veslasco Arroyo, sobre esse ponto, assinala que, para Habermas, “Una condena absoluta de la razón en su conjunto, sin embargo, dista mucho de constituir el modo más reflexivo e idóneo de reaccionar ante las manifiestas patologías del mundo moderno. El ‘malestar de le

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forma, o autor desenvolve sua teoria como uma “autocrítica” ou “revisão” no

âmbito da própria modernidade, e não como tentativa de superação do projeto

cultural moderno 9.

Ponto central da elaboração do modelo teórico habermasiano é, portanto, a

defesa da possibilidade de reabilitação da razão como fundamento da integração

social. De modo simplificado, é possível enxergar o problema da integração social

como um problema de interação social, isto é, de coordenação de ações dos

indivíduos na sociedade. Habermas utiliza, basicamente, a tipologia weberiana

segundo a qual uma ação é social quando os agentes, na persecução dos seus

planos de ação individuais, orientam-se a partir de suas próprias expectativas a

respeito das ações individuais e expectativas dos outros 10.

Assim, da perspectiva dos indivíduos, problemas podem surgir quando a

execução de seus planos de ação depende do comportamento – da ação ou

omissão – de outro agente. Quando isso acontece, é necessário que um agente

tenha seu plano de ação anexado ao(s) plano(s) de ação do(s) outro(s) 11.

Tendo isso em vista, Habermas procura encontrar nas próprias interações

sociais a solução para o problema de como tornar possível a anexação dos planos

individuais de ação dos agentes delas participantes de modo a que eles ajam de

forma coordenada. O autor direciona seu olhar para a identificação de estruturas modernidad’está provocado fundamentalmente por una realización deformada de la razón en la historia, por una suerte de hipertrofia racionalista. Sin embargo, anatematizar de plano cualquier uso de la razón moderna constituye un sinsentido, ya que la viabilidad de una critica lógicamente consistente de los efectos no deseados de la modernización depende a su vez de los presupuestos racionales y normativos ‘que la modernidad puso a punto’. En el moderno proceso de racionalización hay elementos positivos subyacentes que ciertamente pueden y deben ser salvados; es más, en muchos ámbitos el proceso de ilustración ha sido realmente insuficiente y, por tanto, tal como enfatiza Habermas, la modernidad es un proyecto inacabado y aún no superado. No habría, por tanto, que apresurarse en despedirla, sino, mas bien, en llevar a su cumplimiento aquellos aspectos emancipatorios que tras ser anunciados fueron abandonados o traicionados”. (ARROYO, Juan Carlos Velasco. La Teoría Discursiva del Derecho: Sistema jurídico y democracia en Habermas. Madrid: Boletín Oficial del Estado y Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2000, p. 16). 9 Ver a respeito HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo..., p. 361. 10 Cf. SCHUARTZ, Luís Fernando. Entre Teoria e Esperança: Os “Potenciais de Racionalidade” do Direito Moderno na Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas. In: Norma, Contingência, Racionalidade: Estudos preparatórios para uma Teoria da Decisão Jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 230. Ver a respeito, também: HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I: Reason and the Rationalization of Society. Transl. Thomas McCarthy. Boston: Beacon Press, 1984..., pp. 279-286. 11 Ibid., p. 231. Nas palavras de Habermas: “Podemos entender uma interação como sendo a solução para um problema de coordenação: como coordenar entre si os planos de ação de vários atores, de tal modo que as ações de Alter possam ser engatadas nas de Ego? (...) O problema da coordenação coloca-se a partir do momento em que o ator só pode executar o seu plano de ação de modo interativo, isto é, com o auxílio (ou mediante a omissão de auxílio) de pelo menos um outro ator” (HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., pp. 70-71).

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presentes na comunicação intersubjetiva que tornariam possível o entendimento

mútuo entre os participantes de uma interação social lingüisticamente mediada 12.

A atenção por ele dispensada ao entendimento no contexto da interação

comunicativa tem por objetivo evidenciar os mecanismos que possibilitam aos

agentes harmonizarem os seus planos individuais de ação cooperativamente 13 –

isto é, sem recorrerem aberta ou veladamente à violência física ou simbólica e

nem à manipulação –, sobre a base de interpretações convergentes da situação que

forma o contexto da interação 14. Assim, Habermas faz uma aposta na ação comunicativa como mecanismo

privilegiado para a solução do problema de coordenação das ações individuais em

sociedade. Mais especificamente, o autor acredita na existência de um potencial

de racionalidade contido nas ações comunicativas (ações voltadas para o

entendimento mútuo), que pode ser verificado nas interações sociais

lingüisticamente mediadas.

Buscando identificar essa estrutura racional – isto é, os pressupostos

comunicativos universais internos à linguagem – dos processos comunicativos

12 “Nunca teria tentado uma reconstrução pragmático-formal do potencial racional da fala se não tivesse a expectativa de que, dessa maneira, pudesse obter um conceito de racionalidade comunicativa do conteúdo normativo dos pressupostos universais e inevitáveis da prática necessária (uncircumventable) de processos cotidianos de alcançar entendimento. Não é o caso dessa ou daquelas preferência, de noções ‘nossas’ ou ‘deles’ de uma vida racional; em vez disso, o que está em jogo aqui é a reconstrução de uma voz da razão, uma voz que estamos obrigados a deixar falar nas práticas comunicativas diárias – se queremos ou não” (HABERMAS, apud BANNEL, Ralph Ings. Habermas & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, pp. 52-53). Ralph Ings Bannel explica que, em sua análise, Habermas “tenta descrever ‘as estruturas gerais da comunicação lingüística’, que são universais, e, sobretudo, a condição da possibilidade de uma reflexão crítica e a construção do conhecimento em todos os domínios da vida, incluindo as esferas moral-prática e estética. Assim, Habermas amplia a análise da razão para além da razão teórica; para a razão prática, em uma concepção que recupera a unidade da razão, mas uma razão fraca em comparação com a concepção de razão desenvolvida pelo pensamento iluminista”. Vale dizer: “(…) é na análise da linguagem, especificamente na sua pragmática formal, que Habermas localiza a racionalidade comunicativa e, portanto, os vestígios do sonho da liberdade através da razão. Habermas argumenta que existe um potencial para a racionalidade contido em práticas lingüísticas” (Cf. BANNEL, ob. cit., p. 52). 13 Esse ponto é especialmente importante para Habermas, na medida em que é o fundamento para a construção de sua teoria do Direito e da democracia, que “(...) toma como ponto de partida a força social integradora de processos de entendimento não violentos, racionalmente motivadores, capazes de salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base da manutenção de uma comunhão de convicções” (Habermas, Jürgen. Democracia e Direito entre Facticidade e Validade – vol. I..., p. 22). 14 Porém, como explica Luís Fernando Schuartz, “[i]sso de modo algum implica que todo e qualquer processo de negociação de interpretações convergentes no âmbito de uma interação comunicativa tenha que desembocar, necessariamente, em um consenso entre os participantes. O aspecto decisivo é que também os dissensos sejam conjunta, cooperativa e consensualmente (!) identificados, bem como levados em conta no curso futuro da interação” (SCHUARTZ, ob. cit., p. 233).

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humanos, Habermas desenvolve, como resultado da incorporação em seu

pensamento de idéias oriundas tanto da crítica à filosofia analítica da linguagem

quanto da teoria dos atos de fala 15, o que denomina teoria da pragmática formal.

Sua intenção é examinar a função cognitiva da linguagem – responsável pela

compreensão do significado daquilo que é dito e, conseqüentemente, pela

viabilidade do entendimento – não apenas de um ponto de vista semântico, mas

também do ponto de vista pragmático.

Da crítica à filosofia analítica da linguagem – principalmente por parte da

semântica formal – Habermas aproveita as idéias de que as sentenças – e não as

palavras isoladas – devem ser a unidade básica de significado da análise

lingüística e que seu significado não pode ser separado da relação que a

linguagem tem com a validade de afirmações 16. Ou seja, “falantes e ouvintes

compreendem o significado de uma sentença quando sabem sob que condições ela

é verdadeira”17. A semântica formal, então, desenvolve a tese de que o significado

de uma frase é determinado por suas condições de verdade 18.

No entanto, esse tipo de análise se baseia em três formas de abstração que

não se adéquam ao projeto habermasiano. A primeira é uma abstração semântica.

Vale dizer: assume-se que o significado poderia ser abstraído das regras

pragmáticas para o uso de enunciados, o que Habermas discorda. A segunda é

uma abstração cognitivista, que afirma que todo significado poderia ser reduzido a

conteúdos proposicionais e frases assertóricas. Habermas, porém, pretende

estender a idéia das condições de validade de um proferimento lingüístico para

além desses limites. E a terceira é uma abstração objetivista, segundo a qual

aquilo que faz com que uma proposição seja verdadeira poderia ser explicado por

condições de verdade compreensíveis do ponto de vista de uma terceira pessoa. 15 A teoria dos atos de fala tal como incorporada por Habermas foi desenvolvida por John Searle a partir da obra de John Austin (Ver a respeito: SEARLE, John. Speech Acts. Cambridge: Cambridge University Press, 1976; e ARAÚJO, Manfredo. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. São Paulo: Loyola, 1996). 16 “The semantics founded by Frege and developed through the early Wittgenstein to Davidson and Dummett gives center stage to the relation between the sentence and state of affairs, between language and the world. (…) The meaning of sentences, and the understanding of sentences meanings, cannot be separated from language’s inherent relation to the validity of statements” (Cf. HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, p. 276). Sobre esse ponto, ver, também: BANNEL, ob. cit., p. 67. 17 “Speakers and hearers understand the meaning of a sentence when they know under what conditions it is true” (Cf. HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, p. 276). 18 “Thus truth semantics developed the thesis that the meaning of a sentence is determined by its truth conditions” (Ibid., p. 277).

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Segundo esse raciocínio, o conhecimento das condições de verdade atribuível a

um falante e a um ouvinte do ponto de vista performativo – isto é, enquanto

participantes de uma interação linguisticamente mediada que, em suas

performances, devem adotar posturas de “sim” e “não” em relação ao que é dito –

não seria contemplado.

Habermas precisava, pois, conservar a idéia introduzida pela semântica

formal de que a compreensão do significado de uma sentença (necessária para o

entendimento mútuo) estaria ligada ao conhecimento, por parte dos atores de uma

interação lingüisticamente mediada, das condições sob as quais ela é verdadeira e,

ao mesmo tempo, superar as três abstrações assumidas por essa teoria. O passo

inicial para isso se deve à apropriação de uma crítica interna à tradição da

semântica formal. Habermas incorpora a distinção feita por Michel Dummet entre

conhecer as condições que fazem com que uma proposição seja verdadeira e

conhecer as razões que permitem a um falante afirmar a proposição como

verdadeira. Ou seja, “[s]e a proposição é a expressão de suas condições de

verdade, precisamos, para compreendê-la, ser capazes de reconhecer as condições

sob as quais a proposição é verdadeira” 19. Assim, conhecer apenas “as

circunstâncias observáveis que indicam o hábito dos falantes de tomar por

verdadeira uma proposição não é suficiente”, pois “o conhecimento das condições

de verdade repousa no conhecimento das razões que dizem por que elas são

eventualmente preenchidas” 20.

Haveria, pois, uma relação interna entre as condições de verdade de um

enunciado e as razões que poderiam justificar uma correspondente pretensão de

verdade. E, com isso, a práxis da justificação – vale dizer, o jogo da argumentação

– adquire papel essencial, na medida em que “[a]o jogo lingüístico do afirmar não

pertencem apenas a apresentação e a contestação de afirmações, mas também sua

fundamentação ou refutação” 21. E as razões que justificam uma pretensão de

verdade só podem ser acessadas se o terceiro é capaz de se colocar na perspectiva

de participante da interação comunicativa. É com base nessa idéia que Habermas

procurará superar a abstração objetivista.

19 Cf. HABERMAS, Jürgen. Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: Duas versões complementares da virada lingüística. In: Verdade e Justificação: ensaios filosóficos. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004, pp. 84-85, grifos nossos. 20 Ibid., p. 85, grifos nossos. 21 Ibid., loc. cit..

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O segundo passo para superar as abstrações assumidas pela semântica

formal e, também, para desenvolver o insight da teoria do significado de Dummett

– concebido ainda na tradição da semântica formal – dentro de uma teoria da ação

comunicativa, que tem como foco a dimensão pragmática da linguagem, se dá

através da apropriação por Habermas da teoria dos atos de fala de John L. Austin

e John Searle 22. Segundo essa teoria, os enunciados (atos de fala) – e não as

sentenças, como sustentado pela semântica formal, ou as palavras, como

sustentado pela filosofia analítica da linguagem – são os elementos primários de

uma análise do significado lingüístico. E atos de fala podem ser analisados com

relação a dois elementos: seu conteúdo proposicional e sua força ilocucionária.

Isso implica reconhecer que, com atos de fala, não somente dizemos algo sobre o

mundo dos fatos e estados de coisas (conteúdo proposicional), mas também

empregamos a linguagem para outros fins, como, por exemplo, prometer,

ameaçar, avisar etc. A esse segundo elemento do uso da linguagem dá-se o nome

de força ilocucionária 23.

A força ilocucionária lingüística decorre do compromisso assumido pelo

participante, ao se engajar na interação, em satisfazer as pretensões de validade

sustentadas na sua oferta comunicativa. As pretensões de validade sustentadas em

um ato de fala podem ser satisfeitas tanto por meio de razões reconhecidas como

válidas quanto por meio da consistência futura do seu comportamento em termos

de adequação entre o que o participante fala e faz. Por isso, seria possível dizer,

segundo Habermas, que o engajamento na interação “é fonte de obrigações para o

sujeito da oferta comunicativa, da mesma maneira que o ‘Sim’ – expresso ou

tácito – do outro participante da comunicação diante da oferta o vincula a fazer ou

a deixar de fazer determinadas coisas (em função do conteúdo semântico da oferta

a que seu assentimento foi dado)” 24.

Assim, através da apropriação da idéia de dupla estrutura da fala (conteúdo

proposicional + força ilocucionária), desenvolvida por Austin e Searle, Habermas

consegue superar as duas primeiras abstrações assumidas pela semântica da 22 “A teoria dos atos de fala desenvolvida por Austin e Searle é própria para situar o pensamento fundamental da teoria da significação de Dummett na moldura de uma teoria do agir comunicativo” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Filosofia hermenêutica e filosofia analítica: Duas versões complementares da virada lingüística..., p. 91). Ver, também, a respeito: HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, pp. 118-123; e HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol I..., cap. 3. 23 Cf. BANNEL, ob. cit., p. 70. 24 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 232-233.

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verdade. Isso porque a compreensão do significado de um enunciado pressupõe a

consideração de sua força ilocucionária, isto é, da dimensão pragmática (do uso da

linguagem) desse mesmo enunciado. Uma análise lingüística não deve se prender,

portanto, apenas ao conteúdo proposicional e às frases assertóricas – isto é, à

dimensão semântica da linguagem. Ao contrário, com base na teoria dos atos de

fala, Habermas afirma ser possível, também, analisar, formalmente, as regras

pragmáticas do uso da linguagem. E, com isso, “a validade não é vista como

amarrada somente à função representacional da linguagem e ao conteúdo

proposicional dos enunciados” 25, mas seria possível sustentar pretensões de

validade de acordo com outras duas funções da linguagem, a saber: a função de

estabelecer e regular normas no mundo ‘social’ e a de expressar a subjetividade do

falante no mundo subjetivo 26.

Assim, por meio da idéia de “condições de validade”, desenvolvida por

Habermas, a análise da validade de um enunciado numa interação comunicativa é

generalizada para além dos limites da pretensão de “verdade das proposições” –

relacionada ao mundo dos objetos e estados de coisas – podendo incluir, também,

os enunciados que veiculam normas sociais – que sustentam uma pretensão de

validade normativa – e os enunciados que expressam estados subjetivos dos

interlocutores em comunicação – que sustentam uma pretensão de autenticidade

(ou sinceridade)27. Ou seja, é com base nas pretensões de validade que as razões

apresentadas pelos participantes em sua busca pelo entendimento no processo de

interação comunicativa devem ser analisadas.

Desse modo, ao condicionar a compreensão dos enunciados lingüísticos

como “enunciados válidos” – e, portanto, aceitos pelos participantes – à

possibilidade de sustentação dessa pretensão de validade por meio de razões

numa interação comunicativa, Habermas afirma existir uma conexão interna entre

a compreensão de um enunciado e suas condições de validade. Sua tese, portanto,

“é a de que para entender um enunciado temos que saber como o usaríamos com o

objetivo de alcançar um entendimento sobre algo”, isto é, temos que saber sob

25 Cf. BANNEL, ob. cit., p. 70. 26 Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, pp. 325-326. 27 Ibid., p. 71.

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quais condições o ouvinte o aceitaria (o compreenderia como um enunciado

válido) 28.

Isso implica que o sucesso ilocucionário – ou seja, ligado à produção da

força ilocucionária – de um enunciado (ato de fala) dependerá da satisfação das

pretensões de validade por ele levantadas 29. O que pressupõe que o ouvinte não

apenas a compreenda a expressão lingüística, mas também que ele aceite o

enunciado como válido e assuma obrigações relevantes para a seqüência de

interações 30. É nesse efeito coordenador das ações dos indivíduos, produzido pelo

sucesso ilocucionário racionalmente alcançado numa ação comunicativa, que

Habermas concentrará seu projeto de construção de uma teoria social da ação,

com o objetivo de enfrentar os problemas de integração social das sociedades

modernas 31.

Importante notar que, para Habermas, as pretensões de validade não se

restringiriam às interações comunicativas realizadas em um contexto social

específico, mas estariam presentes em qualquer interação comunicativa, sendo,

nesse sentido, universais 32. Ou seja, em qualquer atuação orientada para o

entendimento mútuo, qualquer ato de fala inteligível emanado pelo falante ergue

os três tipos de pretensão de validade, a saber: que o enunciado formulado é

28 “We understand a speech act when we know what makes it acceptable” (Cf. HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, p. 297). 29 “O êxito ilocucionário de um ato de fala mede-se pelo reconhecimento intersubjetivo que a pretensão de validade levantada por meio dele encontra” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do Entendimento Mútuo..., p. 109). 30 “O sentido ilocucionário de um proferimento não é o de que o ouvinte tome conhecimento da opinião (ou intenção) de F [– o falante –], mas o de que ele chegue à mesma concepção de F (ou que leve a sério o anúncio de F). Para que F alcance sua meta ilocucionária, não basta que O [– o ouvinte –] conheça as condições de verdade (ou de sucesso) de “p” [conteúdo proposicional do proferimento]; O também deve compreender o sentido ilocucionário de afirmações (ou de declarações de intenção) e, se possível, aceitar as pretensões de verdade correspondentes” (Ibid., p. 112). Dito de outro modo: “A hearer understands the meaning of an utterance [enunciado] when, in addition to grammatical conditions of well-formedness and general contextual conditions, he knows those essential conditions under wich he could be motivated by a speaker to take an affirmative position. These acceptability conditions in the narrower sense relate to the illocutionary meaning that S [the speaker] expresses by means of a performative clause” (HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, p. 298). 31 “From the standpoint of a sociological theory of action, my primary interest has to be in making clear the mechanism relevant to the coordinating power of speech acts. To this end I shall concentrate on those conditions under wich a hearer can be motivated to accept the offer contained in a speech act, assuming that the linguistic expressions employed are grammatically well formed and that the general contextual conditions required for a given type of speech are satisfied”(HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. I…, p. 298). 32 Segundo Habermas: “Qualquer um que participe de uma prática argumentativa já deve ter aceito essas condições de conteúdo normativo. Pelo simples fato de terem passado a argumentar, os participantes estão necessitados a reconhecer esse fato” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo..., p. 161.

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verdadeiro; que o ato de fala é correto em relação a um contexto normativo

existente; e que o objetivo manifestado no ato de fala expressa os seus

sentimentos e objetivos verdadeiros33.

Vale destacar que enquanto as relações sociais e comunicativas de nossa

vida cotidiana não são problematizadas, pretensões de validade não são desafiadas

e a interação se desenvolve sobre as bases de um consenso de fundo fornecido por

significados compartilhados entre os atores 34. Com efeito, somente quando esse

consenso de fundo é quebrado e, portanto, a pretensão de validade de um

determinado ato de fala é questionada, é que se recorre ao procedimento

discursivo. Assim, por meio da argumentação, procurar-se-á restaurar as

pretensões de validade postas em questão, que poderão, ao final, ser reafirmadas

ou substituídas 35.

Assim, em linhas gerais, o que caracteriza a interação comunicativa é a

coordenação dos planos individuais de ação dos participantes por meio do

mecanismo do entendimento mútuo. E o que torna possível essa coordenação –

isto é, essa “anexação” das ações de uns às ações dos outros – “é, em última

instância, a aceitação das pretensões de validade sustentadas uno acto com a

oferta comunicativa, baseada na suposição de que tais pretensões podem, em caso

de demandas por razões, ser satisfeitas por meio de argumentos

intersubjetivamente válidos” 36. Vale dizer: “o agir comunicativo estabelece uma

relação reflexiva com o mundo, na qual a pretensão de validade levantada em

cada enunciado deve ser reconhecida intersubjetivamente; para isso acontecer, o

33 Ver: HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo…, pp. 167-168; e BANNEL, ob. cit., pp. 80-81. 34 Como explica Luís Fernando Schuartz “Na aceitação por parte do outro participante que viabiliza a coordenação dos planos individuais de ação e que, estruturalmente, se constitui como negação da possibilidade de negação de uma pretensão de validade, manifesta-se a convicção desse outro participante a respeito da aceitabilidade racional (i.e. bancada por razões) da oferta comunicativamente veiculada” (SCHUARTZ, ob. cit., p. 236). Assim, “O sucesso da oferta comunicativa do participante A se verifica na aceitação da oferta pelo participante B, mas tal aceitação repousa, por sua vez, em uma dupla negação, i.e. na negação da – sempre presente – possibilidade de negação ou rejeição da oferta. Ao aceitar a oferta de A, B está negando uma possível negação, a qual, contudo, sobrevive, como momento constitutivo da sua aceitação, no acordo comunicativo entre A e B e que pode ser, a qualquer momento, atualizada. Habermas fala de um ‘risco de dissenso’ (Dissensrisiko) inscrito de maneira permanente no próprio mecanismo do entendimento” (Ibid., p. 238). 35 O resgate de uma pretensão de validade, no caso de pretensões de verdade e correção, estabelece-se argumentativamente, ou seja, aduzindo razões, e o resgate das pretensões de sinceridade, pela consistência do comportamento dos falantes (Ver: HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo..., pp. 167-168). 36 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 237.

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falante depende da cooperação dos outros” 37. Esse seria o uso principal da

linguagem, inerente ao telos do discurso humano 38.

É, pois, dessa capacidade humana de ação dirigida ao entendimento que

Habermas extrai a noção de racionalidade comunicativa. A racionalidade

comunicativa “repousa, portanto, na conexão interna entre: (i) as condições que

tornam válido um ato de fala; (ii) a pretensão, levantada pelo falante de que sejam

cumpridas essas condições; e (iii) a credibilidade da garantia por ele assumida de

que poderia, se necessário, resgatar discursivamente essa pretensão de validade”39.

Por outro lado, não é qualquer procedimento discursivo que permitirá

resgatar a pretensão de validade desafiada de forma a produzir um resultado

presumivelmente racional 40. A racionalidade demanda a imparcialidade numa

situação de comunicação e uma distribuição de papéis – essencial para a

racionalidade comunicativa corporificada em processos do entendimento mútuo –

segundo a qual “os envolvidos podem assumir, a cada vez, os papéis de falante e

de ouvinte (e, se necessário, de um terceiro presente), ou seja, os papéis da

primeira, da segunda e da terceira pessoas” 41. Assim, são necessárias condições

bem específicas para que um procedimento deliberativo tenha maiores chances de

produzir um consenso verdadeiro, a saber:

“(a) publicidade e inclusividade: ninguém que pudesse fazer uma contribuição relevante com relação à pretensão de validade objeto da controvérsia deve ser excluído; (b) iguais direitos de se engajar em comunicação: todo mundo deve ter a mesma oportunidade de falar sobre o assunto discutido; (c) exclusão de enganação e ilusão: participantes devem ser sinceros no que eles dizem; e (d) ausência de coerção: a comunicação deve ser livre de restrições que impeçam o melhor argumento a ser levantado e que determinem o resultado da discussão”.42

37 Cf. BANNEL, ob. cit., pp. 53. Nas palavras de Habermas: “(..) falo em agir comunicativo quando os atores tratam de harmonizar internamente seus planos de ação e de só perseguir suas respectivas metas sob a condição de um acordo existente ou a se negociar sobre a situação e as conseqüências esperadas” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo; trad. de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 165). 38 Segundo William Outhwaite, “One of the central elements of Habermas theory is the distinction between the genuinely communicative use of the language to attain common goals, wich Habermas takes to be the primary case of language-use and ‘the inherent telos of human speech’, and strategic or success-oriented speech (…).” (OUTHWAITE, William. Habermas: A Critical Introduction. Stanford: Stanford University Press, 1994, p. 45) 39 Cf. HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do Entendimento Mútuo..., p. 109. 40 A rigor, “(…) sabemos que uma prática não deve ser levada a sério como argumentação quando não satisfaz pressupostos pragmáticos determinados” (HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 66). 41 Ibid., loc. cit.. 42 Cf. HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada..., p. 67. Explica Habermas que: “Os pressupostos (a), (b) e (d) estabelecem as regras do processo de argumentação de um universalismo igualitário, que tem por conseqüências, considerando as perguntas morais-práticas, que os interesses e orientações de valores de cada envolvido sejam considerados

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Ou seja, tais condições representam um padrão independente 43 em relação

ao qual a deliberação pode ser avaliada, garantindo, assim, a possibilidade de

formação de um acordo racional 44.

Assim, em última análise, a solução para o descrédito da razão como

instrumento de integração social estaria na superação das opiniões de caráter

privado pelas concepções intersubjetivamente compartilhadas, ou reconhecidas45.

Isso implica substituir, como base de uma teoria social da ação, a racionalidade

monológica, isto é, auto-referenciada ao sujeito do conhecimento, por uma

racionalidade dialógica: a racionalidade comunicativa 46.

Note-se, porém, que, dependendo da maneira pela qual um ator conecta

seus planos e ações aos planos e ações de outro(s) ator(es), outro tipo de interação igualmente. E porque nos discursos práticos os participantes são simultaneamente os envolvidos, assume o pressuposto (c) que, considerando as perguntas teórico-empíricas, exige exclusivamente uma ponderação correta e imparcial dos argumentos, o significado adicional de estar aberto hermeneuticamente e de ser sensível contra o auto-engano criticamente, tanto em relação à auto-compreensão como referentemente à compreensão do mundo dos outros” (Ibid., loc. cit.). 43 Inicialmente, Habermas se referiu a esse conjunto de condições como uma “situação ideal de fala”. Diante das inúmeras críticas dirigidas a tal conceito, esclarece William Outhwaite: “It is clear enough that Habermas never intended the ideal speech situation to be understood as a concrete utopia wich would turn the world into a gigantic seminar. He has sometimes compared it to what Kant called a transcendental illusion, involving the extension of the categories of understanding beyond the limits of expeience, but with the difference that this illusion is also a ‘constitutive condition of the possibility of speech” (OUTHWAITE, ob. cit., p 45). Gisele Cittadino acrescenta que, embora não haja dúvidas de que se trata de uma concepção contrafática, as exigências impostas pela situação ideal de fala têm uma função regulativa, “na medida em que permite comparar acordos argumentativos empíricos com as condições ideais de comunicação racional” (Cf. CITTADINO, ob. cit., p. 111). Nas palavras do próprio Habermas: “(...) aqueles pressupostos inevitáveis, como sempre também contrafáticos, da prática da argumentacao não são de modo algum apenas construtos, porém são operativamente importantes na conduta do próprio participante da argumentação. Quem participa seriamente de uma argumentação procede realmente a partir desses pressupostos” (HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada..., p. 68). De todo modo, é possível perceber que, em suas obras mais recentes, a expressão “situação ideal de fala” raramente tem sido utilizada por Habermas. 44 Isso porque “a aceitabilidade racional das exigências de validez se apóia ao final apenas em tais fundamentos que se afirmam contra objeções, sob determinadas condições de comunicação repletas de exigências. Quando o processo de argumentação não deve perder o seu sentido, a forma de comunicação dos discursos deve ser constituída de tal modo, que todos os esclarecimentos e informações os mais relevantes possíveis sejam verbalizados e de tal forma ponderados, que a tomada de posição do participante possa ser motivada intrinsecamente apenas através da capacidade revisora dos fundamentos flutuando livremente” (Ibid., p. 66). 45 “(...) na opinião de Habermas, o poder da razão/reflexão somente pode ser entendido se conseguirmos nos livrar da filosofia da consciência (ou do sujeito). Isso quer dizer, entre outras coisas, que, para ‘resgatar a experiência esquecida de reflexão’ temos que analisar a pragmática da comunicação, ou seja, a pragmática do uso de linguagem na mediação da interação social” (Cf. BANNEL, ob. cit., pp. 51-52). 46 “A razão comunicativa distingue-se da razão prática por não estar adscrita a nenhum ator singular nem a um macrossujeito sóciopolítico. O que torna a razão comunicativa possível é o medium lingüístico, através do qual as interações se interligam e as formas de vida se estruturam.” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., p. 20).

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social linguisticamente mediada pode ocorrer 47. Isso porque, vale esclarecer,

Habermas emprega o termo “interação” (ou “agir social”) como um conceito

complexo, que pressupõe a ligação entre dois tipos de ação: “agir” e “falar”. Nas

interações lingüisticamente mediadas, portanto, “agir” e “falar” podem estar

ligados de maneiras diferentes, formando diferentes “constelações”. Assim,

“quando as forças ilocucionárias dos atos de fala assumem o papel de

coordenadoras da ação, a constelação é uma; e será outra toda vez que as ações de

fala estiverem subordinadas de tal modo à dinâmica extra-lingüística das

influências de atores que se influenciam mutuamente através de uma atividade

orientada para um fim, que as energias de ligação especificamente lingüísticas

deixam de ser utilizadas”48. Desse modo, é necessário, segundo Habermas,

distinguir as ações comunicativas – caracterizadas pelo uso da linguagem para o

entendimento – daquilo que ele denomina ação estratégica 49 – no sentido de ação

orientada exclusivamente para resultados.

Dois são os critérios principais de distinção propostos por Habermas. O

primeiro diz respeito ao mecanismo de coordenação da ação. Ou seja, “é preciso

saber, antes de mais nada, se a linguagem natural é utilizada apenas como meio

para transmissão de informações ou também como fonte da integração social” 50.

Na primeira hipótese, tratar-se-ia, segundo Habermas, de uma ação estratégica. Já

na segunda, ter-se-ia uma ação comunicativa.

O outro critério distintivo entre os dois mecanismos de coordenação das

ações e planos dos atores sociais decorre do aproveitamento da força ilocucionária

lingüística. Numa ação comunicativa, a linguagem funciona de maneira

desimpedida como fonte de coordenação social 51. Assim, a força consensual do

entendimento mútuo lingüisticamente mediado é efetivamente aproveitada,

47 Como explica Ralph Ings Bannell: “É importante fazer uma distinção entre os atos comunicativos e o agir comunicativo. Os atos de fala podem coordenar ações estratégicas tanto quanto o agir comunicativo” (CF. BANNELL, ob. cit., p. 82). 48 Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., p. 70. 49 Segundo Habermas: “Na medida em que os atores estão exclusivamente orientados para o sucesso, isto é, para as conseqüências do seu agir, eles tentam alcançar os objetivos de sua ação influindo externamente, por meio de armas ou bens, ameaças ou seduções, sobre a definição da situação ou sobre as decisões ou motivos de seus adversários. A coordenação das ações de sujeitos que se relacionam dessa maneira, isto é, estrategicamente, depende da maneira como se entrosam os cálculos de ganho egocêntricos. O grau de cooperação e estabilidade resulta então das faixas de interesse dos participantes” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo..., pp. 164-165. 50 Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., p. 71. 51 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 230-231.

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gerando o efeito de coordenação das ações dos atores. Já nas ações estratégicas,

essa força ilocucionária não é aproveitada e a coordenação das ações “depende da

influência dos atores uns sobre os outros e sobre a situação da ação, a qual é

veiculada através de atividades não-lingüísticas” 52.

Na forma estratégica de interação, predominam, portanto, os chamados

efeitos perlocucionários 53 sobre os ilocucionários. Os atores deixam de lado o

pressuposto da orientação recíproca com base em um conjunto de pretensões de

validade intersubjetivamente compartilhadas, de modo que as condições de

sucesso das ações de cada participante deixam de estar relacionadas com a

aceitação racional das referidas pretensões e passam a depender da convicção dos

agentes sobre a probabilidade da incidência de sanções (prêmios ou punições).

Isso importa, por outro lado, numa modificação das perspectivas dos atores, que

têm que abandonar o enfoque performativo, no qual procuram entender-se com o

outro sobre algo no mundo, e assumir o enfoque objetivo de um observador

orientado pelo sucesso de seu plano de ação e que deseja produzir, por meio de

sua influência, algo no mundo 54.

Importante destacar, no entanto, que essa forma manifestamente

estratégica de agir é diferente do uso estratégico latente da linguagem. Isso

porque, como visto, “no agir manifestamente estratégico os atos de fala,

emasculados ilocucionariamente, perdem o papel de coordenação da ação em

favor de influências externas à linguagem”, de maneira que esta, debilitada,

“passa a preencher apenas as funções de informação que restam quando se retira

do entendimento lingüístico a formação do consenso, o que faz com que a

validade do proferimento, deixada em suspenso na própria comunicação, não

52 Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., p. 71. 53 “Chamamos ‘perlocutórios’ os efeitos de atos de fala que, eventualmente, também podem ser obtidos de maneira causal por ações não-lingüísticas” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do Entendimento Mútuo..., p. 121). 54 “Vista na perspectiva dos participantes, os dois mecanismos, o do entendimento motivador da convicção e o da influenciação que induz o comportamento, excluem-se mutuamente. Ações de fala não podem ser realizadas com a dupla intenção de chegar a um acordo com um destinatário sobre algo e, ao mesmo tempo, produzir algo nele, de modo causal. Na perspectiva de falantes e ouvintes, um acordo não pode ser imposto a partir de fora e nem ser forçado por uma das partes – seja através da intervenção direta na situação da ação, seja indiretamente, através de uma influência calculada sobre os enfoques proposicionais de um oponente. Aquilo que se obtém através de gratificação ou ameaça, sugestão ou engano, não pode valer intersubjetivamente como acordo; tal intervenção fere as condições sob as quais as forcas ilocucionárias despertam convicções e geram ‘contatos’ ” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., pp. 71-72).

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possa mais ser apreendida diretamente” 55. No caso de uso estratégico latente da

linguagem, “a ação estratégica é empregada de maneira parasitária à ação

comunicativa, pois simula uma orientação comunicativa para atingir um

determinado fim não declarado 56. Nesse sentido, é considerada por Habermas

como uma forma “fraca” do uso comunicativo da linguagem e do agir

comunicativo 57, tendo em vista que, nesses casos, a racionalidade comunicativa

se entrelaça com a racionalidade teleológica de agentes orientados pelo sucesso,

mas sempre de modo que as metas ilocucionárias dominem os sucessos

perlocucionários que, conforme o caso, são também ambicionados 58.

Em resumo, dois mecanismos de coordenação das ações e planos

individuais dos atores podem ser verificados no plano das interações sociais

lingüisticamente mediadas: a ação estratégica e a ação comunicativa. Esta, por

sua vez, comporta um sentido fraco e um sentido forte. Tais distinções serão

relevantes para entender, no item 4.1, em que medida a teoria da democracia

deliberativa proposta por Habermas supera o debate entre as concepções liberal e

republicana da democracia e por que, segundo Paulo Mattos, essa mesma teoria

seria mais adequada para compreender a dinâmica de formação da vontade

política no interior dos órgãos regulatórios do Estado.

O modelo teórico de Habermas se apóia, portanto, nas premissas de que o

mundo social – no qual as instituições que compõem o Estado de Direito estão

55 Ibid., p. 75. 56 “O uso estratégico latente da linguagem vise parasitariamente do uso normal da linguagem, porque ele somente pode funcionar quando uma das partes toma como ponto de partida que a linguagem está sendo utilizada no sentido do entendimento. Esse status deduzido aponta para a lógica própria, subjacente na comunicação lingüística, a qual só tem efeitos coordenadores durante o tempo em que submeter a atividade teleológica dos atores a determinados limites” (Ibid., p. 73). 57 “Falo de agir comunicativo num sentido fraco, quando o entendimento mútuo se estende a fatos e razões dos agentes para suas expressões de vontade unilaterais; falo do agir comunicativo num sentido forte tão logo o entendimento mútuo se estende às próprias razoes normativas que baseiam a escolha dos fins” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do Entendimento Mútuo..., p. 118). 58 Sinteticamente, explica Luís Fernando Schuartz que: “os efeitos ilocucionários predominam quando: (i) são produzidos de maneira – semanticamente – ordenada a partir do conteúdo de um ato ilocucionário bem sucedido (por exemplo, quando uma ordem é cumprida pelo destinatário após ser aceita, uma intenção é realizada etc.), (ii) se verificam como conseqüências semanticamente não determinadas, embora condicionadas, pelo sucesso ilocucionário de ações lingüísticas (por exemplo, quando uma afirmação surpreende o destinatário), ou mesmo (iii) nos casos de uma ação estratégica latente, em que uma das partes da interação apenas simula uma orientação no entendimento mútuo para a obtenção de resultados que devem permanecer – como um condição necessária do sucesso – ignorados pela outra parte. Nas perlocuções, ao contrário, desaparece inclusive a suposta predominância do efeito ilocucionário sobre o perlocucionário (pensemos em uma ameaça não-velada, por exemplo) (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp 233-234). Sobre o mesmo ponto, nas palavras de Habermas, ver: HABERMAS, Jürgen. Racionalidade do Entendimento Mútuo..., pp. 121-124.

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incluídas – é uma realidade lingüisticamente constituída e que, nesse sentido,

qualquer tentativa de compreendê-lo racionalmente somente se admite possível

através de uma reconstrução dessa realidade a partir de processos interpretativos

intersubjetivamente válidos. E, dado que as ações sociais se desenvolvem sobre a

base de certas pressuposições compartilhadas, que se pretendem válidas tanto por

aqueles diretamente afetados por essas ações quanto por aqueles que delas se

aproximem de fora, a interpretação das mesmas pode ser submetida a um critério

objetivo de correção – o critério da racionalidade comunicativa –, na medida em

que é possível reconstruir as razões – fundadas sobre pretensões de validade – que

motivaram o ator social a realizá-las 59. Com isso Habermas consegue ligar a

formação de um consenso racional com as condições de validade de uma ação e,

conseqüentemente, estabelecer a possibilidade de crítica imanente acerca da

validade dessas ações.

Todavia, Habermas reconhece que seu modelo de integração social,

fundado na força ilocucionária imanente ao agir comunicativo, é incompleto, pois,

embora sua racionalidade garanta a validade dos resultados, ele carece de critérios

externos capazes de gerar uma força motivacional que garanta a transformação

dos consensos racionalmente alcançados em ação. Vale dizer: a demonstração de

que, por exemplo, uma determinada norma é apta a produzir uma adesão livre,

racionalmente motivada, não garante, por si só, seu o cumprimento 60.

E essa carência de uma motivação externa para que a ações sejam

desempenhadas com base no consenso racionalmente atingido se torna ainda mais

problemática diante das condições de integração social da sociedade moderna. E

isso não apenas porque está presente, em toda interação comunicativa, uma certa

instabilidade decorrente do risco do dissenso que, se materializado, pode resultar

59 “Qualquer um que se utilize de uma linguagem natural, a fim de entender-se com um destinatário sobre algo no mundo, vê-se forçado a adotar um enfoque performativo e a aceitar determinados pressupostos. Entre outras coisas, ele tem que tomar como ponto de partida que os participantes perseguem sem reserves seus fins ilocucionários, ligam seu consenso ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis, revelando a disposição de aceitar obrigatoriedades relevantes para as conseqüências da interação que resultam de um consenso. E o que está embutido na base de validade da fala também de comunica às formas de vida reproduzidas pela via do agir comunicativo” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito entre Facticidade e Validade – vol. I…, p. 20). 60 “A transferência de saber para o agir é incerta devido à fragilidade e ao nível extremo de abstração de uma auto-regulação arriscada do sujeito que age moralmente, especialmente devido à improbabilidade de processos de socialização capazes de promover competências tão pretensiosas” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., pp. 149-150).

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no rompimento da seqüência de ações que caracteriza esse tipo de interação 61.

Além disso, há também o fato de a integração da sociedade moderna depender de

mecanismos de coordenação alternativos – e, até certo ponto, contrários – ao do

entendimento, característicos dos sistemas de ação funcionalmente especializados

representados pela economia e pelo poder administrativo. Os mecanismos de

coordenação desses sistemas se apóiam nos códigos operativos do dinheiro e do

poder e são responsáveis por uma expansão do domínio social no qual

predominam as interações estratégicas em detrimento da coordenação através do

entendimento – ver infra, no item 3.2.

A solução proposta por Habermas para esse problema é o moderno Direito

positivo, isto é, o sistema de direitos e as instituições do Estado de Direito criados

pela modernidade 62. Desse modo, o Direito se apresenta como um medium

necessário e apto a absorver as inseguranças decorrentes de uma orientação

puramente moral do comportamento, tendo em vista que as expectativas

recíprocas de comportamento, ao se institucionalizarem juridicamente, ganham

força obrigatória e contam com potencial da sanção estatal. É na obra Direito e

Democracia entre Facticidade e Validade que Habermas desenvolve em detalhes

esse ponto de seu pensamento, o qual será abordado a seguir.

3.2 O Direito entre mundo da vida e realidade sistêmica

A proposta habermasiana atribui ao Direito um papel central para a

integração e organização da sociedade. O Direito é tratado por Habermas como

um medium capaz de operar em meio à relação entre as esferas nas quais se

desenvolve o processo de integração e reprodução da sociedade, denominadas

61 Tal instabilidade é reflexo da tensão entre facticidade e validade inerente a todo processo de entendimento, isto é, do fato de que os processos de deliberação voltados para o entendimento tendem a incrementar o mesmo risco do dissenso que deveriam absorver. Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-Metafísico..., p. 85. 62 “Uma moral dependente de um substrato de estruturas da personalidade ficaria limitada em sua eficácia, caso não pudesse atingir os motivos dos agentes por um outro caminho, que não o da internalização, ou seja, o da institucionalização de um sistema jurídico que complementa a moral da razão do ponto de vista da eficácia para a ação. O direito é um sistema de saber e, ao mesmo tempo, um sistema de ação (...). E, como o direito está estabelecido simultaneamente nos níveis da cultura e da sociedade, ele pode compensar as fraquezas de uma moral racional que se atualiza primariamente na forma de um saber” (Ibid., loc. cit.).

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mundo da vida e realidade sistêmica 63. E, através dele, as estruturas que

asseguram a racionalidade comunicativa nas interações sociais poderiam ser

estendidas para o nível macro-social.

O mundo da vida é o ponto de referência através do qual Habermas

procura explicar “como é possível surgir ordem social a partir de processos de

formação de consenso que se encontram ameaçados por uma tensão explosiva [de

um permanente risco de dissenso] entre facticidade e validade” 64. É constituído

pelos planos da vida privada e da opinião pública, os quais, estruturados

lingüisticamente, reproduzem-se a partir do agir comunicativo. Assim, “o mundo

da vida forma o horizonte para situações de fala e constitui, ao mesmo tempo, a

fonte das interpretações, reproduzindo-se somente através de ações

comunicativas” 65, e representa “o espaço no qual a prática comunicativa elabora

interpretações cognitivas, expectativas morais e manifestações expressivas” 66.

Como decorrência da especificação funcional de uma linguagem técnica,

que emerge da linguagem coloquial do mundo da vida, mas que dele se diferencia

por força da introdução de códigos especiais mantenedores de delimitações que

63 Juan Carlos Veslasco Arroyo observa que: “(...) el autor alemán hace uso de un instrumental conceptual de disímil procedencia teórica: las nociones de ‘mundo da vida’ y ‘sistema’. Aunque de alguna manera pueden recordar la contraposición existente entre base y superestructura, ninguna de ellas proviene de la tradición marxista: el concepto de Lebenswelt (mundo da vida) posee una marcada raigambre fenomenológica y la categoría de System (sistema) procede del universo teórico de la metabiología y la cibernética social”. (ARROYO, ob. cit., p. 20) 64 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 40. Explica o autor que: “o alto risco de dissenso, alimentado a cada passo através de experiências, portanto através de contingências repletas de surpresas, tornaria a integração social através do uso da linguagem orientado pelo entendimento inteiramente implausível, se o agir comunicativo não estivesse embutido em contextos do mundo da vida, os quais fornecem apoio através de um maciço pano de fundo consensual. Os entendimentos explícitos movem-se, de si mesmos, no horizonte de convicções comuns não-problemáticas, ao mesmo tempo, eles se alimentam das fontes daquilo que sempre foi familiar. Na prática do dia-a-dia, a inquietação ininterrupta através da experiência e da contradição, da contingência e da crítica, bate de encontro a uma rocha ampla e inamovível de lealdades, habilidades e padrões de interpretação consentidos” (Cf. Ibid., loc.cit.). 65 Cf. Ibid., p. 41. 66 Cf. CITTADINO, ob. cit., p. 115. No mesmo sentido, Juan Carlos Velasco Arroyo explica que “El mundo de la vida sirve precisamente de horizonte cognitivo y trasfondo normativo de la acción comunicativa: los contextos sociales en los que está inserta la acción comunicativa suministran el necesario respaldo mediante un masivo consenso de fondo, un marco de convicciones compartidas en el que el inevitable disenso, en vez de presentarse como factor potencial de desintegración social, cobra razón de posibilidad, así como sentido. Bajo el concepto de mundo de la vida se reúnen las diferentes esferas regidas por la acción comunicativa, que se articulan en torno a tres núcleos estructurales: la cultura, la sociedad y la personalidad. Estas estructuras simbólicas del mundo de le vida se reproducen por medio de la apropiación y transmisión de la tradición cultural, los procesos de socialización y los mecanismos intersubjetivos de solidaridad grupal. De modo comunicativo también se coordinarían las acciones en la esfera privada e íntima de la familia y, particularmente, en los espacios públicos de participación política”. (ARROYO, ob. cit., p. 23).

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interrompem o circuito de comunicação do mundo da vida, Habermas identifica

uma outra esfera de integração social, a qual denomina realidade sistêmica. A

realidade sistêmica habermasiana é constituída por dois subsistemas: o econômico

e o administrativo. Tais mecanismos de integração, através de seu código próprio,

coordenam as ações de uma maneira objetivista, descartando o uso comunicativo

da linguagem.

Importante notar que “a integração da sociedade moderna depende, em

larguíssima escala, desses subsistemas, cuja reprodução requer mecanismos de

coordenação alternativos e, em certa medida, opostos ao do entendimento,

reprodução que acaba ‘liberando’ quantidades massivas e crescentes de interações

sociais do tipo estratégico às custas das interações baseadas no entendimento” 67.

Por outro lado, há processos de diferenciação no mundo da vida que, embora

comportem certo grau de especificação 68, uma vez que seus componentes –

cultura, sociedade, estruturas da personalidade – diferenciam-se no interior de

uma linguagem multifuncional, não resultam em um código unidimensional.

Justamente por isso, não constituem novos subsistemas, pois esses mesmos

componentes permanecem entrelaçados em um nível de diferenciação mais baixo,

que mantém a unidade de fundo na linguagem coloquial de definição e

processamento de problemas como esfera de sua dimensão.

Assim, Habermas admite que as complexas sociedades contemporâneas

procedem à sua integração, por um lado, mediante valores, normas e processos de

busca do entendimento e, por outro, sistemicamente, através do mercado e do uso

administrativo do poder político. Porém, a expansão da racionalidade instrumental

dos subsistemas econômico e administrativo faz com que os imperativos da lógica

sistêmica penetrem no mundo da vida 69. Essa invasão é denominada colonização

67 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 239. 68 Juan Carlos Velasco Arroyo adverte que “el contraste entre los dos tipos de contextos de acción no debe interpretarse como una diferencia absoluta, sino más bien como una diferencia de grado. Las acciones integradas en el sistema presuponen cierta consensualidad y referencia a normas; y las acciones integradas socialmente también implican ciertos cálculos estratégicos. Por eso, más que una diferencia irreductible, es ante todo una diferencia de perspectiva metodológica: la perspectiva del mundo de la vida es hermenéutica e internalista, mientras que la perspectiva del sistema es objetivadora y externalista”. (ARROYO, ob. cit., pp. 23-24) 69 A racionalização do mundo da vida – e sua conseqüente institucionalização – nessas sociedades “possibilita o aparecimento e o aumento de subsistemas cujos imperativos autônomos atuam destrutivamente sobre este mesmo mundo da vida” (Cf. HABERMAS, Jürgen, apud, CITTADINO, ob. cit., p. 115).

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do mundo da vida 70 e se opera por meio da substituição da interação simbólica

mediada por normas – própria do mundo da vida – por uma interação regulada

adaptativamente através de meios técnicos de controle, independentes da

linguagem, como são o dinheiro para a economia e o poder para a

administração71. Em outras palavras, isso significa dizer que o mundo da vida

racionalizado possibilita o aparecimento e o aumento de sistemas cujos

imperativos autônomos – dinheiro e poder –, na medida em que se diferenciam da

linguagem comum e dela se excluem, atuam destrutivamente sobre este mesmo

mundo da vida 72. Dessa forma, estrutura-se um ambiente de ameaça e violência,

onde os sujeitos são tentados a abandonar a interação comunicativa, uma vez que

as relações humanas encontram-se instrumentalizadas 73.

A saída para se evitar essa colonização do mundo da vida, segundo

Habermas, estaria no medium do Direito. O termo “medium” é utilizado com um

sentido técnico, que remete à noção de “meio de comunicação simbolicamente

generalizado” e decorre da apropriação, por Habermas, de parte da teoria dos

sistemas de Parsons 74. Como explica Schuartz:

“Um Medium é um artifício simbólico para a veiculação de uma oferta comunicativa e a simultânea motivação do destinatário para sua aceitação. O Medium assume uma função "desoneradora" (entlastende Funktion) em relação aos custos incorridos e à energia consumida por participantes em processos de entendimento que têm que transcorrer sob condições de aumento de complexidade (i.e. maior número e variedade de comunicações possíveis) e redução das zonas de intersecção entre os estoques de saber de cada participante e, com isso, também uma função neutralizadora em relação ao "risco do dissenso" que, nessas condições, atinge patamares problemáticos. Meios de comunicação simbolicamente generalizados viabilizam, em outras palavras,

70 Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria de la Accion Comunicativa – Tomo II..., p. 280. 71 ARROYO, ob. cit., p. 24. Há que se destacar que os imperativos impostos pela lógica do mercado e pela lógica burocrática possuem uma dinâmica própria: “por um lado, pelo seu caráter autônomo, carecem de justificação e, por outro, têm a capacidade de neutralizar os âmbitos de ação estruturados comunicativamente” (Cf. CITTADINO, ob. cit., p. 116). 72 “(...) The rationalization of the lifeworld makes possible the emergence and growth of subsystems whose independent imperatives turn back destructively upon the lifeworld itself”(Cf. HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action – Vol. II..., p. 186). 73 Como explica Gisele Cittadino: “As restrições e distorções à comunicação engendradas pelos imperativos do mercado e do poder configuram, segundo Habermas uma ‘violência estrutural’, que não se manifesta como tal, mas que viola a rede intersubjetiva das práticas comunicativas cotidianas. A sociedade contemporânea, portanto, convive com a violência decorrente dos mecanismos da monetarização que regem a esfera da vida privada e com os imperativos da burocratização que invadem a esfera da opinião pública. Por trás deste processo de colonização do mundo da vida se encontram orientações valorativas e interesses específicos que de nenhum modo podem ser considerados constitutivos da identidade da comunidade em seu conjunto” (Cf. CITTADINO, ob. cit., p. 116). 74 Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I…, pp. 102-112.

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importantes economias de informação e tempo e, partindo daí, a coordenação de planos individuais de ação e a estabilização de padrões de interação social inerentemente instáveis”.75

Essa generalização simbólica que caracteriza o medium se dá através da

especificação de um código operativo que lhe é próprio e, nesse sentido, o

diferencia dos demais. Enquanto o medium do “dinheiro” opera segundo o código

“ter/não ter” e o medium do “poder” com o código “ordenar/obedecer”, o Direito

opera segundo o código representado pela fórmula binária “lícito/ilícito”. Vale

dizer: o que caracteriza o medium do Direito é o fato de que as expectativas

normativas, as ações e comunicações que lhe são próprias são estruturadas e

classificadas com base no código operativo “lícito/ilícito”.

Agir de forma “lícita”, isto é, conforme ao Direito, implica possuir a

capacidade de mobilizar, caso seja necessário, o uso da coerção legítima do

Estado em face daqueles que desejam impedir a realização dessa mesma ação.

Essa capacidade advém da idéia – característica do Direito moderno – de validade

jurídica 76, cujo sentido somente se explica através da referência simultânea à

validade social (ou fática) do Direito e à sua legitimidade 77. O conceito de

75 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 253-254. 76 “Esse formato moderno da validade jurídica (ou da "forma do direito") é, segundo Habermas, resultado de processos de racionalização sociocultural tanto na dimensão do incremento qualitativo das razões que sustentam o caráter obrigatório das normas, como também na dimensão da garantia da estabilização de expectativas normativas sob as condições de uma expansão crescente do quantum de interações do tipo estratégico. / Assim, de um lado, a racionalização do direito ocorre na dimensão da justificação das suas normas. Os critérios de fundamentação das normas para atribuir-lhes validade jurídica estão ligados, em última instância, às exigências de uma moral de nível pós-convencional. Isso implica dizer que normas são válidas quando merecem, da totalidade dos indivíduos efetiva e potencialmente afetados por sua implementação, o reconhecimento intersubjetivo no âmbito de processos de argumentação nos quais tais indivíduos são participantes – ainda que virtuais. De outro, a racionalização do Direito moderno também se deve a uma espécie de afinidade existente entre as normas que o integram e os processos de acúmulo de racionalidade estratégica/instrumental. Nesta dimensão, a reorganização da validade jurídica está funcionalmente associada à diferenciação de uma burocracia estatal e de uma economia capitalista./ O tipo moderno da validade jurídica pode ser visto, assim, como um ponto de convergência da racionalização sociocultural no que se refere às duas dimensões, ou seja, como resposta institucional a esse duplo processo de racionalização: de um lado, aos ganhos qualitativos relativos aos tipos de argumentos que "contam" para a satisfação de pretensões de validade universal e a justificação de normas; de outro lado, aos imperativos funcionais de sistemas sociais que institucionalizam, normalizam e estimulam comportamentos estratégicos e o domínio controlado sobre processos naturais e sociais” (Ibid., p. 242-243). 77 “A validade social de normas do direito é determinada pelo grau em que consegue se impor, ou seja, pela sua possível aceitação fática no círculo dos membros do direito. Ao contrário da validade convencional dos usos e costumes, o direito normatizado não se apóia sobre a facticidade de formas de vida consuetudinárias e tradicionais, e sim sobre a facticidade artificial de ameaças de sanções definidas conforme o direito e que podem ser impostas pelo tribunal. Ao passo que a legitimidade de regras se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa; e o que conta, em última instância, é o fato de elas terem surgido num processo legislativo racional – ou o fato de que elas poderiam ter sido justificadas sob pontos de vista

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validade jurídica explicita, portanto, o caráter dúbio da pretensão de validade

sustentada por toda genuína norma jurídica, a saber: a possibilidade do apoio em

um estoque organizado de força legítima para a satisfação da pretensão nominal

de vigência social, de um lado, e a possibilidade do apoio em argumentos

intersubjetivamente válidos para a satisfação da pretensão nominal de

legitimidade, de outro lado 78.

E, na medida em que se refere tanto à facticidade da validade social –

medida pela obediência geral às normas jurídicas –, quanto à legitimidade da

pretensão ao reconhecimento normativo, o Direito se apresente como um medium

híbrido, capaz de dar conta de ambas as formas de coordenação de planos e ações

individuais de atores envolvidos em interações sociais – ação comunicativa e ação

estratégica. Com isso, abre-se para os atores sociais – membros da comunidade da

comunidade jurídica – a possibilidade de “escolherem entre dois enfoques

distintos em relação à mesma norma jurídica: objetivador ou performativo”, de

modo que, “para o arbítrio de um ator que se orienta pelo sucesso próprio, a regra

constitui um empecilho fático na expectativa da imposição do mandamento

jurídico – com conseqüências previsíveis no caso de transgressão da norma”,

enquanto que, para o ator que age comunicativamente, “a regra amarra a sua

‘vontade’ livre através de uma pretensão de validade deontológica” 79.

Ou seja, por deixar em aberto os motivos que determinam o

comportamento lícito, é possível dizer que o medium do Direito tolera que os

atores assumam um enfoque estratégico em relação a certas normas. Mas, por

outro lado, diferentemente do medium do dinheiro e do medium do poder, o

Direito não é capaz de substituir o entendimento lingüisticamente mediado nas

suas funções de coordenação social, mas apenas de desonerá-lo, isto é, reduzir

seus custos por meio de mecanismos de abstração e de redução de comple-

xidade80. Por isso, até mesmo as normas jurídicas consideradas do ponto de vista

estratégico pelos atores sustentam, na qualidade de elementos integrantes de uma

ordem jurídica legítima em seu conjunto, a pretensão de validade normativa, que

requer dos destinatários um reconhecimento racionalmente motivado e,

pragmáticos éticos e morais” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 50). 78 Cf. SCHUARTZ, ob. cit. p.255. 79 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., p. 51. 80 Cf. SCHUARTZ, ob cit., p. 256.

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conseqüentemente, a possibilidade de obediência por um motivo não coercitivo –

isto é, que não pode ser produzido pela força. Razão pela qual “a ordem jurídica

deve tornar possível a qualquer momento a obediência às suas regras por respeito

à lei”81. Do ponto de vista da normatização jurídica, isso implica a necessidade de

que o Direito positivo tenha que se legitimar racionalmente. O que, em última

análise, dada a relação de dependência entre legitimidade e a satisfação discursiva

de pretensões de validade universais, pressupõe que as normas jurídicas

positivadas possam ser interpretadas como resultado de processos de ar-

gumentação orientados para o entendimento mútuo, aos quais deve ter sido

assegurado o acesso, em condições igualitárias, a todos os destinatários, de modo

que os mesmos, em sua totalidade, possam compreender-se – virtualmente ao

menos – como autores dessas normas 82.

Por outro lado, essa pressuposição demanda a institucionalização jurídica

dos pressupostos comunicativos de processos discursivos sob forma de

procedimentos de formação da opinião e da vontade políticas, que, nas sociedades

modernas, se estruturam como procedimentos democráticos de producao

normativa sustentados por um conjunto de direitos subjetivos “que garantam, a

seus titulares, enquanto indivíduos orientados em um entendimento mútuo, a

participação direta e indireta nos referidos procedimentos” 83.

Ou seja, é através do uso público da razão, num processo democrático no

qual os pressupostos comunicativos que garantem um discurso racional estão –

presumivelmente – institucionalizados juridicamente, que Habermas vislumbra a

saída para se evitar a colonização do mundo da vida. A rigor, “Habermas não tem

a pretensão de sugerir um modelo de ética discursiva que elimine a dominação e a

violência decorrentes dos interesses que instrumentalizaram as relações

humanas”84. Sustenta, porém, a possibilidade de limitação dessa dominação desde

que o Direito possa funcionar como o “transformador” dos “fracos impulsos

sócio-integradores” originados no mundo da vida em parâmetros eficazes, do

ponto de vista comportamental, para as operações sistêmicas 85.

81 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. I..., p. 52. 82 Cf. SCHUARTZ, ob cit., p. 246. 83 Ibid., p. 247. 84 Ibid., loc. cit.. 85 Ibid., p. 256. Ver também: HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 221.

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Somente assim o Direito pode funcionar como medium a serviço da

integração social 86. Vale dizer, tendo em vista que “os meios de regulação –

dinheiro e poder administrativo – são ancorados no mundo da vida através da

institucionalização jurídica dos mercados e das organizações burocráticas” 87, as

normas jurídicas podem influenciar comportamentos e estratégias dos agentes

integrantes de ambos os sistemas. Apenas na “linguagem do Direito” os resultados

dos processos de entendimento – atingidos comunicativamente – adquirem

coercibilidade e se transformam num código assimilável pelos sistemas, podendo,

assim, circular por todas as esferas da sociedade.

Diante dessas considerações, fica mais evidente por que ao Direito

moderno é imputada por Habermas a tarefa de solucionar as insuficiências

relativas à motivação para a ação associadas a uma teoria da sociedade que

explica a integração social a partir da noção de agir comunicativo: Ao Direito

cabe a função de “guardião” da racionalidade comunicativa. Segundo Schuartz:

“Se, para a crítica imanente da sociedade moderna, exige-se a localização dos pontos de contato entre as condições necessárias de sua reprodução e a orientação dos agentes sociais em pretensões de validade universais, e se o sistema jurídico - sobretudo na forma do “moderno direito positivo” - é capaz de realizar a função do transporte, do nível das interações “face a face” para o nível da sociedade como um todo, das estruturas de racionalidade presumidamente inerentes à ação orientada no entendimento, então poder-se-ia pensar no direito moderno como uma espécie de guardião macrossocial da racionalidade comunicativa. (...) Os pressupostos contrafáticos - as ‘estruturas’ - do entendimento aparecerão reflexivamente, em meio a procedimentos institucionalizados de natureza discursiva, nos processos de criação e aplicação do direito no Estado Democrático de Direito”. 88

Ou seja, segundo Habermas, haveria um potencial de racionalidade inscri-

to nas instituições do Estado Democrático de Direito, tanto através da 86 “No sistema jurídico, o processo da legislação constitui, pois, o lugar propriamente dito da integração social. Por isso, temos que supor que os participantes do processo de legislação saem do papel de sujeitos privados do direito e assumem, através de seu papel de cidadãos, a perspectiva de membros de uma comunidade jurídica livremente associada, na qual um acordo sobre os princípios normativos da regulamentação da convivência já está assegurado através da tradição ou pode ser conseguido através de um entendimento segundo regras reconhecidas normativamente. Essa união característica entre coerção fática e validade da legitimidade, que tentamos esclarecer através do direito subjetivo à assunção estratégica de interesses próprios, exige um processo de legislação no qual os cidadãos devem poder participar na condição de sujeitos do direito que agem orientados não apenas pelo sucesso. Na medida em que os direitos de comunicação e de participação política são constitutivos para um processo de legislação eficiente do ponto de vista da legitimação, esses direitos subjetivos não podem ser tidos como os de sujeitos jurídicos privados e isolados: eles têm que ser apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimento, que se encontram numa prática intersubjetiva de entendimento” (Ibid., pp. 52-53). 87 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I…, pp. 104-105. 88 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 247.

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institucionalização jurídica de procedimentos discursivamente estruturados para a

solução racional de problemas, como por meio do reconhecimento generalizado

de direitos subjetivos que asseguram uma participação universal nos referidos pro-

cedimentos. E isso seria relevante não apenas para a solução de problemas

relativos à integração social, mas também para problemas relativos à reprodução

da sociedade moderna, pois “é a hipótese da institucionalização macrossocial

desses nichos de racionalidade comunicativa que viabiliza a análise estritamente

teórica de determinados processos sociais enquanto fontes de crises e patologias,

uma vez que, sem a suposta ‘incorporação da razão comunicativa’ nas

mencionadas instituições, desaparece a plataforma normativa que assegura à

pretensão da teoria ao exercício da crítica imanente o reclamado título de legitimi-

dade” 89.

3.3 A legitimação do Direito e do poder político no Estado de Direito

Assim, a tese principal que sustenta o projeto de integração social proposto

por Habermas é a da incorporação macrossocial da razão comunicativa nas

instituições político-jurídicas da sociedade moderna. O autor assume, com isso, o

ônus argumentativo de demonstrar como essa incorporação ocorre. Para tanto,

Habermas divide a exposição de seu raciocínio em duas etapas. Na primeira,

empreende uma reconstrução, com base na sua teoria do discurso, do Estado de

Direito moderno. Essa reconstrução é apresentada nos capítulos 3 e 4 da obra

Direito e Democracia entre Facticidade e Validade. Neles, Habermas propõe a

“reconstrução racional” 90 da auto-compreensão normativa das ordens jurídicas

modernas através da reinterpretação dos direitos fundamentais e de instituições

centrais do Estado Democrático de Direito com base na teoria do discurso 91. O

objetivo dessa etapa inicial é “demonstrar que, e como, as representações

normativas que reconhecemos nas afirmações de princípios acerca dos direitos de

89 Ibid., pp. 249-250. 90 William Outhwaite adverte que “A reconstructive theory will not be expected to display what Giddens has called ‘the enormous revelatory power’ of natural-scientific theories, and, although a new theory of action is as broad a project as one could imagine, it will still be telling us how we do something we know we do already.” (OUTHWAITE, ob. cit., p. 109). 91 Essa reconstrução encontra-se exposta nos capítulos III e IV de: HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito entre Facticidade e Validade – Vol. I... .

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cada indivíduo e do funcionamento das instituições políticas e jurídicas (enquanto

produtos da época moderna e legados da tradição do pensamento iluminista acerca

da organização político-jurídica da sociedade moderna) podem ser justificadas

segundo padrões de racionalidade universais e merecem aceitabilidade generali-

zada” 92.

Na segunda etapa, Habermas examina, de uma perspectiva sociológica, as

condições de implementação dessas normas jurídicas e instituições, por ele

reinterpretadas, nos processos de circulação do poder político das sociedades

capitalistas contemporâneas. Esse momento da análise de Habermas se caracteriza

pela assunção do enfoque descritivo por parte do autor, preocupado, agora, não

mais em reconstruir os fundamentos de uma ordem normativa e suas instituições,

mas em identificar, na relação de tensão entre o ideal – supostamente

institucionalizado nas normas jurídicas – e a realidade, os obstáculos que essas

instituições enfrentam quando inseridas na facticidade social dos processos

políticos dessas sociedades.

Assim, se nos capítulos 3 e 4 Habermas discute a tensão entre facticidade e

validade no interior do próprio Direito – que, como visto no item 3.2, decorre do

caráter ambivalente da validade jurídica –, nos capítulos 7 e 8, analisa o que

denomina “tensão externa” (externa ao sistema jurídico) entre facticidade e

validade 93.

Não pretendo, obviamente, reconstituir todo o caminho percorrido por

Habermas em seu raciocínio. Cabe, aqui, destacar tão somente os pontos

específicos desse percurso que são reproduzidos por Mattos em sua apropriação

do pensamento habermasiano e aqueles que prepararão as bases para a construção,

no capítulo III, das críticas que oponho a essa apropriação. Nesse sentido,

procurarei concentrar-me nos aspectos essenciais para a compreensão tanto dos

fundamentos normativos de seu modelo de legitimação do Direito e do poder

administrativo (tensão interna entre facticidade e validade) quanto das

dificuldades apresentadas à sua efetivação na prática dos processos políticos das

sociedades modernas (tensão externa entre facticidade e validade).

Dividirei a exposição desses temas em três tópicos. Nos itens (a) e (b),

abordarei, respectivamente, a reconstrução habermasiana do sistema de direitos e

92 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 251. 93 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 10.

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dos princípios e instituições do Estado de Direito. No item (c) apresentarei a

concepção de democracia deliberativa habermasiana, a qual se apóia em seu

modelo de legitimação pelo procedimento discursivamente estruturado. Ainda

neste mesmo item, tratarei dos obstáculos decorrentes da realidade dos processos

políticos à implementação de ordens jurídicas legítimas nas sociedades modernas

identificados por Habermas.

3.3.1

Reconstrução do sistema de direitos

O passo inicial de Habermas para a reconstrução discursiva da auto-

compreensão das ordens jurídicas modernas é a reconstrução do sistema de

direitos. Para tanto, o autor parte da seguinte questão: quais os direitos que os

cidadãos têm que atribuir uns aos outros caso queiram regular legitimamente sua

convivência através do medium do Direito positivo 94?

Nesse sentido, pode-se entender a reconstrução habermasiana do sistema

de direitos das ordens jurídicas modernas como uma explicitação dos pressupostos

necessários para que, na prática, a empreitada de um grupo de indivíduos que

deseja auto-regular a interação entre seus membros, através da definição

consensual de um conjunto de princípios fundamentais de convivência na forma

de direito positivo legítimo, seja possível. Em sua análise, Habermas assume

como dados a serem levados em conta por esse grupo de indivíduos – e, portanto,

por ele próprio, na medida em que adota um enfoque reconstrutivo –, “um

conjunto de propriedades que caracterizam o Medium do moderno direito positi-

vo, bem como um conjunto de propriedades que caracterizam o conceito moderno

de legitimidade” 95.

Foi visto – no item 3.2 – que uma das características do medium do Direito

diz respeito à função desoneradora das justificativas morais para a ação, que é

94 Id., Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 113. 95 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 251-252. Explica Habermas que “(…) a ‘nossa’ introdução teórica in abstracto de direitos fundamentais revela-se ex post como um artifício. Ninguém é capaz de lançar mão de um sistema de direitos no singular, sem apoiar-se em interpretações já elaboradas na história. ‘O’ sistema de direitos não existe em um estado de pureza transcendental. Porém, após mais de duzentos anos de desenvolvimento constitucional na Europa, temos vários modelos à disposição; eles podem servir a uma reconstrução generalizadora da compreensão que acompanha necessariamente a prática intersubjetiva de uma auto-legislação empreendida com os meios do direito positivo” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 166).

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gerada pela idéia de licitude (ação conforme ao Direito). O que importa em dizer

que, agindo de forma lícita, um sujeito está autorizado a empregar livremente a

sua vontade, independentemente das razões que orientam sua ação96. Na moderna

compreensão do Direito, essa idéia desempenha um papel central e corresponde

ao conceito de direito subjetivo 97. Os direitos subjetivos definem iguais

liberdades de ação para todos aqueles considerados como portadores de direitos 98

– idéia que, em última análise, é explicitada pelo próprio conceito de lei99. É essa

função desoneradora dos direitos subjetivos que explicam por que o moderno

Direito positivo consegue se adaptar “à integração social de sociedades

econômicas que, em domínios de ação neutralizados do ponto de vista ético,

dependem de decisões descentralizadas de sujeitos singulares orientados pelo

próprio sucesso” 100.

Porém, também foi visto que a função do Direito não se resume apenas a

garantir o espaço de liberdade de ação no qual indivíduos estrategicamente

orientados por uma racionalidade instrumental, característica dos subsistemas

econômico e administrativo, podem agir. Mesmo porque, da dimensão de

legitimidade que compõe a noção de “validade jurídica”, decorre a exigência de

que as normas jurídicas que delimitam esse espaço de liberdade, no qual ações

estratégicas podem se desenrolar, possam ser justificadas racionalmente. Em

termos habermasianos, isso significa que as normas jurídicas positivadas por meio

de um processo legislativo democrático têm que poder ser entendidas como o

resultado de processos de argumentação orientados para o entendimento mútuo,

aos quais deve ter sido assegurado o acesso, em condições igualitárias, a todos os

destinatários. E, desse modo, o sistema de direitos também deve garantir “as

condições precárias de uma integração social que se realiza, em última instância,

96 O direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as transfere para as leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação” (Ibid. p. 114). 97 “(...) direitos subjetivos (rights) estabelecem os limites no interior dos quais um sujeito está justificado a empregar livremente a sua vontade” (Ibid., p. 113). 98 “Direitos subjetivos não estão referidos, de acordo com seu conceito, a indivíduos atomizados e alienados, que se entesam possessivamente uns contra os outros. Como elementos da ordem jurídica, eles pressupõem a colaboração de sujeitos, que se reconhecessem reciprocamente em seus direitos e deveres, reciprocamente referidos uns aos outros, como membros livres e iguais do direito (Ibid., p. 121). 99 “O conceito da lei explicita a idéia do igual tratamento, já contida no conceito do direito: na forma de leis gerais e abstratas, todos os sujeitos têm os mesmos direitos” (Ibid., p. 114). 100 Ibid. loc. cit..

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através das realizações de entendimento de sujeitos que agem comunicativamente,

isto é, através da aceitabilidade de pretensões de validade” 101.

Habermas aplica tais idéias à reconstrução do sistema de direitos. Segundo

ele, o próprio medium do Direito, enquanto tal, pressupõe determinadas categorias

de direitos que definem o status de pessoas jurídicas como portadoras de direitos

em geral 102. Na idéia de que “toda norma de comportamento que se revestir de

forma jurídica torna possível a seu destinatário a percepção de um conjunto de

terminado de liberdades subjetivas negativas, cujo conteúdo expressa um ‘estar-

desonerado’” 103 em relação às obrigações ilocucionárias geradas nas interações

comunicativas, Habermas identifica o conteúdo de um direito subjetivo

fundamental inscrito, constitutivamente, no próprio medium do Direito, e fonte

originária de um tipo qualificado e ainda muito abstrato de “autonomia

privada”104.

E é isso que leva à proposição in abstracto de três categorias de direitos,

ligadas a essas propriedades formais do medium do Direito 105, que

institucionalizam o próprio código jurídico através da definição do status das

pessoas portadoras de direitos. São elas: (1) a categoria de “direitos fundamentais

que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida

possível de iguais liberdades subjetivas de ação” 106; (2) a categoria de “direitos

fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de

101 Ibid. loc. cit.. 102 Ibid., p. 155. 103 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 258-259. 104 Ibid., pp 260-261. Nas palavras de Habermas: “(...) a autonomia privada de um sujeito do direito pode ser entendida essencialmente como a liberdade negativa de retirar-se do espaço público das obrigações ilocucionárias recíprocas para uma posição de observação e influência recíproca” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 156). 105 Esclarece Luís Fernando Schuartz que: “Essas propriedades formais do Medium do direito estão caracterizadas por três abstrações levadas a efeito da perspectiva genérica do destinatário de uma norma jurídica” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 256). As três abstrações a que o autor se refere são incorporadas por Habermas, em seu raciocínio, a partir da obre de Kant: “Kant caracterizara a legalidade de modos de agir, servindo-se de três abstrações que se referem aos destinatários, não aos autores do direito. Em primeiro lugar, o direito não leva em conta a capacidade dos destinatários em ligar a sua vontade, contando apenas com sua arbitrariedade. Além disso, o direito abstrai da complexidade dos planos de ação no nível do mundo da vida, limitando-se à relação externa da atuação interativa e recíproca de determinados agentes sociais típicos. Finalmente, o direito não considera, conforme vimos, o tipo de motivação, contentando-se em enfocar o agir sob o ponto de vista de sua conformidade à regra” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 147). Ou seja, a idéia é que tais abstrações, características do vínculo jurídico, traduzem um “estar desonerado” de obrigações comunicativas. 106 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 159.

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um membro numa associação voluntária de parceiros do direito” 107; e (3) a

categoria de “direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade

de postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da

proteção jurídica individual” 108. Estas duas últimas categorias são exigidas como

correlatas necessárias à primeira, na medida em que, de um lado, o “código do

Direito” somente pode ser aplicado no interior de uma comunidade jurídica

concreta, determinada através dos direitos subjetivos fundamentais de

pertencimento à essa mesma comunidade jurídica 109, e, de outro, uma

institucionalização jurídica do código do Direito demanda “a garantia dos

caminhos jurídicos pelos quais a pessoa que se sentir prejudicada em seus direitos

possa fazer valer suas pretensões” 110, que se materializa na oferta de prestação de

serviços de natureza jurisdicional.

Para que sejam positivados, tais direitos, porém, devem ser “talhados”, isto

é, confeccionados sobre medida, respeitando-se a igual liberdade de arbítrio dos

atores portadores de direitos. Este processo requer o reconhecimento de outras

categorias de direitos subjetivos, “as quais seriam, por sua vez, necessárias para a

constituição de procedimentos discursivos de criação do direito capazes de zelar

pela legitimidade de direitos subjetivos a serem então positivamente

atribuídos”111. Isso porque, vale ressaltar, da maneira como foram inicialmente

formulados, nada garante que os direitos pertencentes às três categorias acima

mencionadas sejam legítimos. A pretensão de legitimidade do Direito positivo –

como já foi dito – decorre da exigência de que a liberdade de cada um possa

conviver com a igual liberdade de todos, segundo uma lei geral, que deve poder

ser justificada racionalmente 112.

107 Ibid., loc. cit.. 108 Ibid., loc. cit.. 109 “Isso deriva do próprio conceito de positividade do direito, isto é, da facticidade da normatização e da imposição do direito. Normas jurídicas originam-se das decisões de um legislador histórico, referindo-se a um universo geograficamente delimitado e a uma coletividade de parceiros jurídicos delimitável socialmente, e, com isso, a um âmbito de validade especial. (...) O estabelecimento de um código jurídico exige, por isso, direitos que regulam a participação numa determinada associação de parceiros jurídicos e, deste modo, permite a distinção entre membros e não-membros, cidadãos e estranhos” (Ibid. p. 161). 110 Ibid., p. 162. 111 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 252. 112 “Pois o direito legítimo somente se coaduna com um tipo de coerção jurídica que salvaguarda os motivos racionais para a obediência do direito. O direito coercitivo não pode obrigar os seus destinatários a isso; deve ser-lhes facultado renunciar ou não conforme o caso, ao exercício de sua liberdade comunicativa e à tomada de posição em relação à pretensão de legitimidade do direito, ou seja, deve-se permitir que abandonem, num caso concreto, o enfoque performativo em relação

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E essa justificação racional apenas poderia ser obtida caso cada uma das

categorias de direitos inferidas a partir do medium do Direito fosse submetida ao

que seria, segundo Habermas, o único teste de legitimidade aceitável sob

condições modernas 113 – caracterizadas pela impossibilidade de recurso a

critérios metafísicos ou tradicionais de justificação e pelo pluralismo de visões de

mundo 114–, a saber, um teste de validade normativa, proposto a partir do princípio

do discurso “D”.

O princípio do discurso simplesmente põe em destaque o sentido das

exigências de uma fundamentação pós-convencional. Por isso, não há dúvidas de

que ele possui um conteúdo normativo. Porém, tal princípio se encontra num tal

nível de abstração, que consegue ainda ser neutro em relação ao direito e à moral,

referindo-se às normas de ação em geral 115. Seu conteúdo explicita as condições

de validade de uma norma, adotando a necessidade de imparcialidade dos juízos

práticos como critério. Desse modo, o teste de validade por ele proposto consiste

em saber se uma norma “pode ou não ser considerada expressão de interesses

generalizáveis relativamente aos indivíduos efetiva e potencialmente afetados pela

sua implementação” 116. Daí porque a formulação proposta por Habermas:

“D: São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”. 117

ao direito, trocando-o pelo enfoque de um ator que calcula as vantagens e que decide arbitrariamente. Normas jurídicas devem poder ser seguidas com discernimento” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., pp. 157-158). 113 Como explica Schuartz: “Ao mexer nas condições sob as quais normas de comportamento merecem a aceitabilidade generalizada dos seus destinatários, o processo de racionalização, sociocultural desloca, definitivamente, a correspondente base de validade da tradição e do ethos de uma comunidade particular para os arranjos discursivos nos quais as mais diferentes contribuições apresentadas pelos mais diferentes interessados podem ser, explícita e publicamente, expostas, defendidas, criticadas, aceitas e refutadas. É assim que o ‘discurso racional’ converte-se em ‘ultima instância’ no que se refere ao juízo sobre a validade de uma determinada norma” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 264). 114 “Com o abalo dos fundamentos sagrados desse tecido moral, têm início processos de diferenciação. No nível do saber cultural, as questões jurídicas separam-se das morais e éticas. No nível institucional, o direito positivo separa-se dos usos e costumes, desvalorizados como simples convenções” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 141). 115 Ibid., p. 142. 116 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 263-264. 117 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 142. Sobre os conceitos constantes dessa formulação, Explica Habermas que: “O predicado ‘válidas’ refere-se a normas de ação e a proposições normativas gerias correspondentes; ele expressa um sentido não específico de validade normativa, ainda indiferente à distinção entre moralidade e legitimidade. Eu entendo por ‘normas de ação’ expectativas de comportamento generalizadas temporal, social e objetivamente. Para mim, ‘atingido’ é todo aquele cujos interesses serão afetados pelas prováveis conseqüências provocadas pela regulamentação de uma prática geral através de normas. E ‘discurso racional’ é toda a tentativa de entendimento sobre pretensões de

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Para se aplicar o princípio D como teste de validade de normas jurídicas, é

necessário, porém, uma especificação. Pois, como mencionado anteriormente,

essa formulação abstrata do princípio do discurso refere-se às normas de ação em

geral, podendo incluir não apenas normas jurídicas, como também normas morais.

Nesse sentido, a qualificação do princípio D como teste de validade de normas

jurídicas está ligada a um desdobramento desse princípio na forma específica de

um princípio democrático, enquanto, no que diz respeito à validade de normas

morais, esse desdobramento resulta no princípio moral. Essa especificação do

princípio D em princípio democrático ou em princípio moral é relevante, pois

determina não apenas os tipos de argumentos que contam para afirmar que uma

norma é válida – há argumentos aceitos no teste de validade jurídica que não

seriam aceitos para validar uma norma moral – como também quais os

correspondentes arranjos discursivos que devem estar envolvidos nesse teste 118.

Além disso, essa distinção será necessária para entender, mais à frente, no item

3.3.2, o conceito de formação racional da vontade política, essencial para a

compreensão no modelo habermasiano de legitimação da ordem jurídica e do

poder administrativo.

Para o propósito da reconstrução do sistema de direitos, entretanto,

interessa mais imediatamente apenas a distinção entre as formas que o princípio D

pode assumir que diz respeito às condições de viabilização dos arranjos

discursivos. Isso porque, se o princípio do discurso exige que o teste sobre a

validade de uma norma seja – ainda que virtualmente – conduzido pelos próprios

validade problemáticas, na medida em que ele se realiza sob condições da comunicação que permitem o movimento livre de temas e contribuições, informações e argumentos no interior de um espaço público constituído através de obrigações ilocucionárias. Indiretamente, a expressão refere-se também a negociações, na medida em que estas são reguladas através de procedimentos fundamentados discursivamente” (Ibid., loc. cit.). 118 “No primeiro caso, normas devem ser racionalmente fundamentadas somente por meio de argumentos que atestem a sua validade para todas as pessoas capazes de formular juízos morais; no outro caso, normas devem ser racionalmente justificadas também por meio de argumentos mais restritivos quanto ao âmbito de validade, vale dizer, argumentos ético-políticos e pragmáticos 46. Nesse sentido, o critério de validade básico do "atendimento igualitário dos interesses de todos" significa no âmbito jurídico algo distinto do que significa no âmbito da moral. É a razão prática como um todo que se faz presente nos processos de justificação de normas morais e é o caráter constitutivo da referência ao ponto de vista particular de uma comunidade jurídica localizável no espaço e no tempo que permite relativizar o alcance da pretensão de validade de uma norma jurídica - ao menos no que não disser respeito ao necessário teste de compatibilidade da norma com o estoque de normas morais válidas (algo que, segundo a posição ha bermasiana, também tem que ser considerado critério de validade de normas jurídicas)” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 265-266). Ver também: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., pp. 142-144.

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participantes dos discursos racionais, nos quais argumentos favoráveis e

contrários às pretensões de validade são apresentados, o princípio democrático

demanda, para sua operacionalização, a institucionalização jurídica dos arranjos

discursivos segundo os quais esse processo argumentativo irá se desenrolar. Isso

implica que seja deixada de lado a perspectiva do observador – isto é, de um

teórico que “diz para os civis quais são os direitos que eles teriam que reconhecer

reciprocamente, caso desejassem regular legitimamente sua convivência com os

meios do direito positivo” 119 –, até então adotada para a reconstrução do sistema

de direitos, a fim de que os próprios participantes possam aplicar, por si mesmos,

o princípio do discurso. O que faz com que seja necessário introduzir uma outra

categoria de direitos, a saber: “(4) Direitos fundamentais à participação, em

igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos

quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam

direito legítimo”120. Pois, como sujeitos do direito, os participantes só conseguirão

autonomia caso se entendam e ajam como autores dos direitos aos quais desejam

submeter-se como destinatários 121.

E, com isso, a reconstrução do sistema de direitos completa um círculo

“onde se encontram as perspectivas do destinatário e do autor de normas jurídicas

e é constatada a dependência recíproca – e a co-participação originária – da

autonomia privada e da autonomia pública na garantia das condições de

legitimidade de uma norma jurídica (e, em geral, de um ordenamento jurídico

como um todo)” 122. É nesse sentido que, para Habermas, a autonomia privada e a

autonomia pública dos cidadãos podem ser definidas de modo que a relação entre

ambas seja concebida não como uma relação de concorrência, na qual uma

119 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 163. 120 Ibid., p. 159. 121 “Após essa mudança de perspectivas, nós não podemos mais fundamentar iguais direitos de comunicação e participação a partir de nossa visão [de observador]. Ora, são os próprios civis que refletem e decidem – no papel de um legislador constitucional – como devem ser os direitos que conferem ao princípio do discurso a figura de um princípio da democracia. (...) A liberdade comunicativa está referida, antes de qualquer institucionalização, a condições de um uso da linguagem orientado pelo entendimento, ao passo que as autorizações para o uso público da liberdade comunicativa dependem de formas de comunicação asseguradas juridicamente e de processos discursivos de consulta e de decisão. Estes fazem supor que todos os resultados obtidos segundo a forma e o procedimento correto são legítimos. Iguais direitos políticos fundamentais para cada um resultam, pois, de uma juridificação simétrica da liberdade comunicativa de todos os membros do direito; e esta exige, por seu turno, uma formação discursiva da opinião e da vontade que possibilita um exercício da autonomia política através da assunção dos direitos dos cidadãos” (Ibid., p. 164). 122 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 267.

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restringe a outra, mas como uma relação de co-originalidade 123. Pois, “no final

das contas, a institucionalização jurídica do Medium do direito se realiza uno acto

com a institucionalização jurídica ‘concreta’ dos direitos subjetivos relativos à

autonomia privada, que, por sua vez, se realiza uno acto com o uso ‘originário’

dos direitos subjetivos relativos à autonomia pública, a qual, enfim, acaba por

coincidir com a institucionalização jurídica ‘concreta’ do ‘código do direito’” 124.

As quatro categorias de direitos subjetivos apresentadas até agora

abrangem o que se pode chamar de direitos subjetivos absolutos 125. Isso porque

tais direitos decorrem diretamente da aplicação do princípio do discurso,

especificado sob a forma de princípio democrático, ao medium do Direito. São

eles os direitos generalizados (1) à maior medida possível de iguais liberdades

subjetivas; (2) ao status de membros espontâneos de uma comunidade jurídica

livremente constituída; (3) ao acesso à prestação jurisdicional na defesa e proteção

de interesses e direitos individuais; e (4) à participação em processos de formação

da opinião e vontade políticas.

Por fim, há que se mencionar, ainda, uma última categoria de direitos que

integra o sistema de direitos proposto por Habermas, qual seja a categoria dos “(5)

123 No capítulo 3 de Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, Habermas explora as razões pelas quais a relação entre autonomia privada e autonomia pública dos indivíduos encontra-se, atualmente, obscurecida. A justificativa para o desenvolvimento dessa etapa de seu raciocínio decorre da constatação de que, tanto no âmbito da dogmática jurídica – no qual se verifica uma dicotomia entre direito subjetivo (autonomia individual) e direito objetivo (lei), que dificulta a compreensão adequada do aparente “paradoxo” de como a legitimidade pode surgir da legalidade – quanto nos campos da teoria política e da filosofia do Direito – onde se desenvolveu a falsa idéia de uma relação de concorrência entre direitos humanos e soberania popular, atualmente exemplificada nos debates, nos EUA, entre as correntes teóricas políticas liberal e republicana –, não se conseguiu pensar de forma harmônica a relação entre as liberdades privadas subjetivas (autonomia privada) e a soberania popular (autonomia pública). Segundo Habermas, “em ambos os casos, as dificuldades [para relacionar harmonicamente tais conceitos] podem ser explicadas, não somente a partir de premissas da filosofia da consciência, mas também a partir de uma herança metafísica do direito natural, ou seja, a partir da subordinação do direto positivo ao direito natural ou moral” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 115). Ao contrário de tais concepções, o autor alemão sustenta que há uma relação de co-originalidade entre a autonomia privada e a autonomia pública dos indivíduos de uma comunidade jurídica, que fica clara quando se decifra, através da teoria do discurso, a idéia da “auto-legislação” nas sociedades modernas, segundo a qual os cidadãos devem ser, simultaneamente, autores e destinatários das normas jurídicas. Assim, tanto o aparente paradoxo da legitimidade através da legalidade – incompreensível a partir da dogmática jurídica – o quanto a relação – supostamente problemática – entre direitos humanos e soberania do povo poderiam ser adequadamente entendidos. O que, por outro lado, tornaria possível definir um sistema de direitos que contemple, igualmente, a autonomia privada e à autonomia pública dos cidadãos, respondendo, então, à pergunta acerca de quais seriam os direitos necessários para que indivíduos regulem legitimamente, por meio do Direito, sua convivência. Ver a respeito: Ibid., pp. 115-138. 124 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 268. 125 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 160

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Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e

ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento,

em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) a (4)” 126. Trata-se dos

chamados direitos sociais, isto é, de direitos que “dão cobertura a exigências de

segurança social - entendida esta última tanto na dimensão da garantia de

condições materiais suficientes para a fruição dos direitos relativos à autonomia

privada e à autonomia pública, como na dimensão da proteção diante dos riscos

associados a problemas ecológicos e tecnológico-científicos” 127. Os direitos

relativos a essa categoria são direitos fundamentados de modo relativo, pois

funcionam de forma “instrumental constitutiva” 128 com relação aos direitos

fundamentais das demais categorias. Isto é, sua inclusão no sistema de direitos se

justifica apenas na medida em que isso for necessário para um aproveitamento em

igualdade de chances dos direitos das demais categorias, “mas isso no sentido

forte de que os direitos absolutos que definem a autonomia privada e a autonomia

pública dos membros de uma comunidade jurídica implicam o reconhecimento

dos direitos relativos como condições necessárias para a legitimidade do

respectivo ordenamento jurídico - ou, em se tratando da sociedade moderna, de

um ordenamento jurídico qualquer”129.

Essa inserção dos direitos sociais no sistema de direitos é responsável por

introduzir um elemento de conexão da proposta de Habermas com a facticidade

das sociedades capitalistas modernas. Nesse sentido, representa um ponto

importante da teoria habermasiana, pois permite ao autor incorporar “a reflexão

crítica em relação aos limites das posições alternativas que confiam ingênua ou

inconscientemente nas promessas nominais dos catálogos standardizados de

direitos fundamentais adotados de maneira generalizada nos textos constitucionais

e tratados internacionais” 130.

126 Ibid., loc. cit.. 127 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 269. 128 A expressão é de Luís Fernando Schuartz (Ibid., loc. cit.). 129 Ibid., pp. 269-270. 130 Ibid., p. 270.

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3.3.2 Reconstrução dos princípios do Estado de Direito

No item anterior, procurei demonstrar que, em sua reconstrução do sistema

de direitos através da teoria do discurso, Habermas compreende os direitos

fundamentais como os pressupostos nos quais os membros de uma comunidade

jurídica moderna se apóiam quando pretendem regular as relações entre si,

legitimamente, através do medium do Direito – sem apelar, portanto, para motivos

de ordem religiosa ou metafísica. Em outras palavras, “nesses direitos reflete-se a

socialização horizontal dos civis, quase in statu nascendi” 131, razão pela qual

haveria – como foi visto – uma relação de co-originalidade entre as autonomias

privada e pública dos cidadãos de uma comunidade jurídica. Assim, sob a ótica

discursiva, os direitos fundamentais estabelecem as condições necessárias para

tornar possível a integração e reprodução social por meio da comunicação e, desse

modo, revelam-se constitutivos para toda associação de membros jurídicos livres e

iguais.

Porém, esse ato auto-referencial de institucionalização jurídica da

autonomia política entre os indivíduos não seria suficiente para estabilizar-se a si

próprio. A sua consolidação – e perpetuação – exigiria a instauração, organização e

funcionamento de um poder estatal 132. Isso porque, segundo Habermas, um

entrelaçamento duradouro entre autonomia pública e autonomia privada demandaria

um processo de institucionalização jurídica que não se limitasse apenas às

liberdades subjetivas de ação das pessoas privadas e às liberdades comunicativas

dos cidadãos, mas se estendesse, também, “ao poder político – já pressuposto com o

medium do direito – do qual depende a obrigatoriedade fática da normatização e da

implantação do direito” 133. Assim, a auto-compreensão normativa das ordens

jurídicas modernas não se referiria apenas às condições necessárias para a

legitimidade de normas e processos de produção de normas (sistema de direitos),

mas também à legitimidade das estruturas de dominação política e do uso do

poder administrativo pelo Estado.

131 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 169 132 Ibid., loc. cit.. 133 Ibid., loc. cit..

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Justamente por isso, o passo seguinte de Habermas em sua reconstrução

dessa auto-compreensão do Estado de Direito moderno consiste na demonstração da

relação entre Direito e poder político. Haveria, segundo o autor, uma interligação

conceitual originária entre ambos. Vale dizer: tendo em vista, por um lado, que os

direitos subjetivos só podem ser estabelecidos e impostos por uma organização

capaz de tomar decisões que possam ser obrigatórias para a coletividade 134, e, por

outro, que a obrigatoriedade de tais decisões se deve à forma jurídica da qual as

mesmas se revestem 135, seria correto afirmar que o conceito de poder político-

administrativo está pressuposto no conceito de direito legítimo e vice-versa. Em

resumo, nas palavras de Habermas:

“O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm que ser implantados, porque a comunidade de direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser implementados. Tais aspectos não constituem meros complementos, funcionalmente necessários para o sistema de direitos, e sim, implicações jurídicas objetivas, contidas in nuce nos direitos subjetivos. Pois o poder organizado politicamente não se achega ao direito como que a partir de fora, uma vez que é pressuposto por ele: ele mesmo se estabelece em formas do direito. O poder político só pode desenvolver-se através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais”. 136

Dessa interdependência entre Direito e poder político resulta que também o

poder administrativo do Estado – na medida em que é exercido por meio do Direito

– deve poder ser considerado legítimo. E a fonte da legitimação das estruturas de

dominação política e do uso do poder administrativo pelo aparato estatal reside no

processo de normatização legítima do Direito. A explicação detalhada de como

134 “O Medium do direito, na qualidade de Kommunikationsmedium, serve para motivar um desti-natário ou um grupo de destinatários a aceitar uma determinada obrigação. A especificidade deste Medium está na sua capacidade de gerar a motivação necessária para a aceitação da proposta normativa seja por meio da referência a um estoque de argumentos intersubjetivamente válidos, seja por meio da mobilização de um estoque de poder. A satisfação da sua ‘pretensão de vigência social’ requer a possibilidade do recurso a um poder estocado que, em particular nas sociedades modernas, é monopolizado por um aparato estatal organizado. Do ponto de vista normativo, é esta relação de dependência entre direito e poder que reclama a necessidade de legitimação do poder, e é nesta exigência normativa que consiste a idéia do Estado de Direito”. (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 271). 135 “O poder político-administrativo, entendido como capacidade de tomar e implementar decisões coletivamente vinculantes, somente pode estabilizar-se, i.e. tornar-se macrossocialmente relevante, se e enquanto aparecer na forma de poder organizado, o que requer, por sua vez, o direito como meio de organização: poder organizado somente existe enquanto viabilizado pela institucionalização jurídica de cargos, relações de hierarquia, etc. E, novamente, tem-se a idéia de Estado de Direito a reclamar desta relação de dependência que seja selada exclusivamente por direito legítimo” (Ibid., loc. cit.). 136 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I…, p. 171.

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ocorre esse processo é desenvolvida por Habermas no capítulo 4 da obra Direito e

Democracia entre Facticidade e Validade.

De forma resumida, pode-se dizer que Habermas parte do argumento, já

mencionado, da existência de uma conexão funcional entre os códigos do Direito e

do poder. Ou seja, ambos os códigos, embora se diferenciem e possuam funções

próprias, exercem, também, funções complementares entre si 137. E isso, na

modernidade, está diretamente ligado ao fato de que o poder político só pode se

desenvolver como poder legal, sob a forma do Direito positivo. Assim, o poder

político complementa a função de estabilização das expectativas de

comportamento – própria ao Direito – à medida que contribui, por meio da

ameaça da coerção, para o surgimento da segurança jurídica, que permite aos

destinatários das normas jurídicas calcularem as conseqüências de seus próprios

comportamentos e o dos demais membros da comunidade jurídica 138. O Direito,

por sua vez, contribui para a função própria do poder organizado em forma de

Estado através das normas de competência 139, que revestem as instituições do

Estado com autorizações, e das normas de organização, que estabelecem os

procedimentos segundo os quais se criam programas de leis que são elaboradas na

administração ou na justiça 140.

Essa relação entre código do Direito e código do poder não significa,

porém, que há uma “troca auto-suficiente e horizontal entre direito e poder

137 “Fazemos, pois, uma distinção entre as funções que o direito e o poder preenchem um em relação ao outro, e as funções próprias que o direito e o poder, enquanto códigos, desempenham para a sociedade em geral. / Ao emprestar forma jurídica ao poder político, o direito serve para a constituição de um código de poder binário. Quem dispõe do poder pode dar ordens aos outros. E, neste sentido, o direito funciona como meio de organização do poder do Estado. Inversamente, o poder, na medida em que reforça as decisões judiciais, serve para a constituição de um código jurídico binário. Os tribunais decidem sobre o que é direito e o que não é. Nesta medida, o poder serve para a institucionalização política do direito” (Ibid. p. 182). 138 “Sob esse ponto de vista, as normas jurídicas têm que assumir a figura de determinações compreensíveis, precisas e não-contraditórias, geralmente formuladas por escrito; elas têm que ser públicas, conhecidas por todos os destinatários; elas não podem pretender validade retroativa; e elas têm que ligar os respectivos fatos a conseqüências jurídicas e regulá-los em geral de tal modo que possam ser aplicados da mesma maneira a todas as pessoas e a todos os casos semelhantes. A isso corresponde uma codificação que confere às regras do direito um elevado grau de consistência e explicação conceitual. Esta é a tarefa de uma jurisdição que elabora cientificamente o corpus jurídico, submetendo-o a uma sistematização e a uma configuração dogmática” (Ibid., pp. 182-183). 139 “O direito não se esgota simplesmente em normas de comportamento, pois serve à organização e à orientação do poder do Estado. Ele funciona no sentido de regras constitutivas, que não garantem apenas a autonomia pública e privada dos cidadãos, uma vez que também produzem instituições políticas, procedimentos e competências” (Ibid., p. 183). 140 Ibid., loc.cit.

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político” 141. Em condições pós-metafísicas de justificação do poder, o simples

fato de revestir-se o poder estatal da forma jurídica não é suficiente para torná-lo

legítimo 142.

Assim, se é certo que o poder político, nas sociedades modernas, deve

sua autoridade normativa unicamente à forma do Direito, o fundamento

legítimo dessa autoridade depende da ligação das normas jurídicas com as

condições de sua elaboração num processo democrático juridicamente

institucionalizado, que, presumivelmente, viabiliza o exercício da autonomia

política dos cidadãos por meio de procedimentos deliberativos discursivamente

orientados. Justamente por isso, a hipótese sustentada por Habermas é a de que o

sistema jurídico somente é capaz de garantir a realização adequada de sua função

de complementação do poder político quando traz consigo uma presunção de

legitimidade derivada, em última análise, da força (ilocucionária) socialmente

integradora da ação comunicativa 143.

Essa relação interna entre ação comunicativa e presunção de legitimidade

dos resultados dos procedimentos discursivamente estruturados e juridicamente

institucionalizados de formação da vontade política, e entre estes e o poder

juridicamente organizado do aparato estatal, apenas se sustentaria se e enquanto

mediada por um tipo particular de poder político, que Habermas denomina “poder

comunicativo” 144.

Habermas estabelece, assim, uma distinção entre duas espécies de poder

político: poder comunicativo e poder administrativo. Poder administrativo é o

poder político constituído sob a forma jurídica, ao passo que o poder

141 Ibid., loc. cit.. 142 “Nas sociedades tradicionais, fora possível produzir, um nexo plausível entre o direito estabelecido de fato e o direito legitimamente pretendido, uma vez que estavam preenchidas, de modo geral, as condições do seguinte cenário: Tendo como pano de fundo cosmovisões religiosas reconhecidas, o direito ocupara inicialmente uma base sagrada; esse direito, via de regra administrado e interpretado por juristas teólogos, era amplamente aceito como componente reificado de uma ordem salvífica divina, ficando subtraído, enquanto tal, ao poder humano. O próprio detentor do poder político, na qualidade de senhor supremo do tribunal, estava subordinado a esse direito natural. O direito normatizado burocraticamente pelo senhor, ou seja, o direito ‘positivo’ no sentido pré-moderno, apoiava sua autoridade na legitimidade do senhor (mediada através da competência judicial), na sua interpretação de uma ordem jurídica dada preliminarmente, ou no costume, sendo que o direito consuetudinário extraía sua autoridade da tradição. Porém, com a passagem para a moder-nidade, a cosmovisão religiosa obrigatória decompôs-se em forças de fé subjetivas, fazendo com que o direito perdesse sua indisponibilidade e a dignidade metafísica” (Ibid., pp. 184-185). 143 Ibid., p. 115. 144 Ibid., pp. 185-186. Ver, ainda: SCHUARTZ, ob. cit., pp. 272-273.

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comunicativo reside no potencial de formação de uma vontade comum numa

comunicação não coagida e, desse modo, não pode ser efetivamente possuído por

ninguém 145 e nem criado por meio do Direito – ainda que seja elemento essencial

para a produção de normas jurídicas legítimas.

O poder comunicativo é gerado por meio do uso público das liberdades

comunicativas, isto é, “da capacidade de todo e qualquer sujeito que fala e age de

posicionar-se, enquanto participante de interações orientadas no entendimento

mútuo, em face das ofertas comunicativas dos demais participantes” 146. A rigor, o

poder comunicativo nasce quando, da utilização dessas liberdades comunicativas,

resulta uma convergência entre os participantes do discurso, sustentada pela

aceitação – expressa ou tácita – de pretensões de validade normativa a partir de

argumentos intersubjetivamente compartilhados entre eles. Isto decorre do fato de

que, como visto no item 3.1, as convicções produzidas através do discurso e

compartilhadas intersubjetivamente possuírem uma força motivadora, ainda que

“não seja mais do que a pequena força motivadora que está presente nos bons

argumentos” 147 – isto é a força ilocucionária.

É nesse sentido que se pode afirmar que o uso público de liberdades

comunicativas é um gerador de potenciais de poder 148, política e juridicamente

relevante. Vale dizer, a partir do momento em que as liberdades comunicativas

dos civis são mobilizadas – em processos de entendimento de maior amplitude e

juridicamente institucionalizados – para a formação de vontade política que irá

influenciar a produção do Direito legítimo, as obrigações ilocucionárias geradas

nesse processo se constituem num potencial que os detentores do poder

administrativo não podem – ou, ao menos, não devem – ignorar 149.

Assim, o poder comunicativo está na base tanto da legitimação do poder

administrativo como da constituição do direito legítimo que responde

145 “(…) segundo Hannah Arendt, ninguém pode ‘possuir’ [o poder comunicativo] verdadeiramente: ‘o poder surge entre os homens quando agem em conjunto, desparecendo tao logo eles se espalham’” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., pp. 185-186). 146 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 273. Ver também: HABERMAS, , Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 186. 147 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 186. 148 Ibid., loc.cit... 149 Ibid., pp. 186-187.

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imediatamente por tal legitimação 150, de modo que, se o poder da administração

do Estado, constituído conforme o Direito, não estiver apoiado num poder

comunicativo normatizador, a fonte da qual o Direito extrai sua legitimidade

secará 151. Daí por que, segundo Habermas, o Direito não é apenas constitutivo do

poder político no sentido de sua organização, mas é também o medium através do

qual poder comunicativo se transforma em poder administrativo 152. E essa

transformação tem o sentido de uma procuração para agir no quadro de permissões

legais 153. Por meio dela, atrela-se a atuação – implementação e aplicação de

normas jurídicas – do aparelho do Estado à vontade política resultante do

exercício da autonomia pública dos cidadãos 154.

Note-se que a tese da vinculação do poder administrativo ao poder

comunicativo encontra seu fundamento na leitura que Habermas faz dos processos

de formação da opinião e vontade políticas como processos discursivos 155. Isso

150 “A atribuição dessa dupla função ao poder comunicativo é sistematicamente justificável, uma vez que aquilo que aparece, do ponto de vista cognitivo, como uma condição de satisfação da pretensão de legitimidade inerente às normas do direito positivo, vale dizer: a possibilidade de referência a um estoque de razões intersubjetivamente válidas cuja existência nós estamos autorizados a presumir em virtude da estrutura discursiva que caracteriza o procedimento de produção das referidas normas, é algo que, do ponto de vista motivacional, surge como único fator admissível de instituição daquelas obrigações ilocucionárias que respondem pela constituição do poder político que está na base de todo direito legítimo” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 274-275). 151 Ibid., p. 186. 152 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 190. Ver, ainda: SCHUARTZ, ob. cit., p. 271. 153 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 190. 154 Como observa SCHUARTZ, esta leitura, que resulta “de uma reconstrução racional - i.e. justificadora - das ‘intuições normativas’ supostamente encarnadas nas instituições do Estado de Direito moderno, em particular, nos seus princípios”, é “o cerne da reconstrução habermasiana da idéia do Estado de Direito, entendida no sentido de uma exigência normativa endereçada ao modo de circulação do poder no interior do sistema político-jurídico”. Isso explica a ênfase dada por Habermas à necessidade da institucionalização jurídica desse tipo de procedimentos. Como pontua SCHUARTZ, em última análise, “a legitimidade (racionalidade) de normas e instituições Jurídicas em geral dependeria da possibilidade de sua reconstrução ou enquanto condições ‘lógica’ ou faticamente necessárias para tal institucionalização e sua estabilização, ou então enquanto re-sultados de procedimentos de produção de normas discursivamente estruturados e já institucionalizados juridicamente” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit.,p. 276). 155 Segundo Habermas: “Os direitos de participação política remetem à institucionalização jurídica de uma formação pública da opinião e da vontade, a qual culmina em resoluções sobre leis e políticas. Ela deve realizar-se em formas de comunicação, nas quais é importante o princípio do discurso, em dois aspectos: O princípio do discurso tem inicialmente o sentido cognitivo de filtrar contribuições e temas, argumentos e informações, de tal modo que os resultados obtidos por este carrinho têm a seu favor a suposição da aceitabilidade racional: o procedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do direito. Entretanto, o caráter discursivo da formação da opinião e da vontade na esfera pública política e nas corporações parlamentares implica, outrossim, o sentido prático de produzir relações de entendimento, (...) desencadeando a força produtiva da liberdade comunicativa. O poder comunicativo de corvicções comuns só pode surgir de estruturas da

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implica assumir, no sentido do que foi dito no item 3.2, que as próprias

instituições do Estado moderno – e, em particular, seus princípios –, dado que

cristalizadas através do medium do Direito, encarnariam as estruturas da racio-

nalidade comunicativa que possibilitariam presumir a legitimidade (racionalidade)

do resultado de tais processos. Tal presunção tem como base a assunção da

existência de “uma relação de equivalência entre condições de aceitabilidade

racional ou condições de racionalidade, de um lado, e condições de sucesso em

procedimentos estruturados discursivamente, de outro lado” 156. Pois, em

procedimentos institucionalizados juridicamente e discursivamente estruturados,

os participantes têm que agir comunicativamente – seja por meio de um agir

comunicativo no “sentido forte” daqueles que agem orientados pelo entendimento,

seja através de um agir comunicativo em “sentido fraco” dos que agem segundo

interesses próprios (ver supra, item 3.1) – se quiserem ser bem sucedidos.

Tendo isso em vista, “é possível desenvolver a idéia de um Estado de

Direito com o auxílio de princípios segundo os quais o Direito legítimo é

produzido a partir do poder comunicativo e este último é novamente transformado

em poder administrativo pelo caminho do direito legitimamente normatizado” 157.

Tais princípios são propostos a partir da perspectiva da institucionalização jurídica

da rede de discursos e negociações no interior da qual os processos de formação

da opinião e da vontade políticas devem se realizar. Através desses processos, a

pergunta “o que devemos fazer?”, constitutiva do exercício da autonomia política

dos cidadãos, deve poder ser respondida, racionalmente, de diferentes maneiras158,

intersubjetividade intacta. (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., pp. 190-191) 156 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 276. Nas palavras de Habermas: “A aceitabilidade racional dos resultados obtidos em conformidade com o processo explica-se pela institucionalização de formas de comunicação interligadas que garantem de modo ideal que todas as questões relevantes, temas e contribuições, sejam tematizados e elaborados em discursos e negociações, na base das melhores informações e argumentos possíveis” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 213). 157 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 212. 158 Para Habermas, o direito serve como medium para a auto-organização de comunidades jurídicas que se afirmam, num ambiente social, sob determinadas condições históricas. Com isso, imigram para o direito conteúdos concretos e pontos de vista teleológicos. Diferentemente das regras morais, que, ao formular aquilo que deveria ser do interesse simétrico de todos, exprimem uma vontade geral pura e simples, as regras jurídicas exprimem, também, a vontade particular dos membros de uma determinada comunidade jurídica. Ou seja, “enquanto a vontade moralmente livre é, de certa forma, virtual, pois afirma apenas aquilo que pode ser aceito racionalmente por qualquer um, a vontade política de uma comunidade jurídica, que também deve estar em harmonia com idéias morais, é a expressão de uma forma de vida compartilhada intersubjetivamente, de situações de interesses dados e de fins pragmaticamente escolhidos” (Ibid., p. 191) E isso faz com que se amplie o leque dos

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argumentos relevantes para a formação política da vontade: aos argumentos morais acrescentam-se razões pragmáticas e éticas. Em resumo, Habermas explica a interligação entre a normatização jurídica e a formação do poder comunicativo existente na formação discursivamente estruturada da opinião e da vontade de um legislador político lançando mão de um modelo processual que segue a lógica da argumentação: “ele parte de questionamentos pragmáticos, passa pela formação de compromissos e discursos éticos, atinge a clarificação de questões morais, chegando finalmente a um controle jurídico de normas. Nesta seqüência modifica-se a constelação formada pela razão e pela vontade. Com o deslocamento do sentido ilocucionário do ‘dever-ser’, modifica-se também o conceito da vontade ao qual esses imperativos se dirigem, pelo caminho que inclui desde recomendações técnicas ou estratégi-cas, conselhos clínicos e mandamentos morais” (Ibid., p. 204). Ou seja: “as constelações formadas pela razão e pela vontade modificam-se de acordo com os aspectos pragmáticos, éticos e morais da matéria a ser regulada. A partir dessas constelações se esclarece o problema do qual parte a formação discursiva de uma vontade política comum” (Ibid., p. 205) Desse modo, caso se suponha que as questões políticas se colocam inicialmente na forma pragmática de uma escolha valorativa de fins coletivos e de uma consideração pragmática de estratégias que o legislador político deseja votar, poder-se-ia imaginar que o início do modelo processual de formação discursivamente estruturada da opinião e da vontade de um legislador político se dá com a “fundamentação pragmática de programas gerais, que ficam na dependência de uma aplicação e de uma execução” (Ibid., pp. 205-206). Tal fundamentação dependeria, primeiro, “de uma interpretação correta da situação e da descrição adequada do problema que se tem pela frente, da afluência de informações relevantes e confiáveis, da elaboração correta dessas informações, etc.” (Ibid., p. 206). Note-se que nesse primeiro estágio da formação da opinião e da vontade, faz-se necessário um saber especializado, “que é naturalmente falível e raras vezes neutro do ponto de vista valorativo, sendo, portanto, controverso” (Ibid., loc. cit.). Vale dizer: “Nas próprias ava-liações políticas de perícias e contra-perícias, entram em jogo pontos de vista que dependem de preferências” (Ibid., loc. cit.). E nessas preferências, se manifestam situações de interesses e orientações axiológicas, que, num segundo plano, entram em concorrência aberta entre si, obrigando a uma mudança no nível do discurso. Pois os discursos pragmáticos dizem respeito apenas à “construção e a avaliação das conseqüências de possíveis programas, não a formação racional da vontade, a qual só pode aceitar uma sugestão quando se apropria dos fins e valores hipoteticamente pressupostos” (Ibid., loc. cit.). Assim, prosseguindo a controvérsia em torno de argumentos, o modo como ela será decidida dependerá do aspecto sob o qual a matéria a ser regulamentada é acessível a um esclarecimento – em termos de justificativas racionais – posterior. De modo que: “Quando se trata diretamente de um questionamento moralmente relevante (...) então é preciso lançar mão de discursos que submetem os interesses e orientações valorativas conflitantes a um teste de generalização no quadro do sistema de direitos interpretados e configurados constitucionalmente. Ao contrário, quando se trata de um questionamento eticamente relevante (...) então é o caso de se pensar em discursos de auto-entendimento, que passam pelos interesses e orientações valorativas conflitantes, e numa forma de vida comum que traz reflexivamente à consciência concordâncias mais profundas” (Ibid., pp. 206-207). Entretanto, dada a complexidade e o pluralismo existente nas sociedades contemporâneas, nem sempre essas alternativas estarão abertas. Nesses casos, “resta a alternativa de negociações que exigem evidentemente a disposição cooperativa de partidos que agem voltados ao sucesso” (Ibid., p. 207). Segundo Habermas, “negociações naturais ou não-reguladas apontam para compromissos aceitáveis pelos participantes sob três condições. Tais compromissos prevêem um arranjo que é: a) vantajoso para todos; b) que exclui pingentes que se retiram da cooperação; c) exclui explorados que investem na cooperação mais do que ganham com ela”. Esses processos de negociação seriam adequados para situações nas quais não é possível neutralizar as relações de poder, como é pressuposto nos discursos racionais. Os compromissos resultantes dessas negociações contêm um acordo que estabelece um equilíbrio entre interesses conflitantes. Assim, “enquanto um acordo racionalmente motivado se apóia em argumentos que convencem da mesma maneira todos os partidos, um compromisso pode ser aceito por diferentes partidos por razões diferentes” (Ibid., loc. cit.). Por outro lado, “a corrente discursiva de uma formação racional da vontade romperia com o elo de um tal compromisso, caso o princípio do discurso não pudesse valer, ao menos indiretamente, em tais negociações” (Ibid., pp. 207-208). Desse modo, embora não se realize diretamente nas negociações e compromissos, o princípio do discurso garante, nesses casos, um consenso não-coercitivo de forma indireta, “desdobrando-se através de procedimentos que regulam as negociações sob pontos de vista da imparcialidade” (Ibid., p. 208). Pois, “se a negociação de

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na medida em que se refira a questões colocadas nos planos pragmático 159, ético 160 e moral 161.

O primeiro princípio do Estado de Direito proposto por Habermas é o

princípio da soberania popular, segundo o qual todo o poder do Estado emana do

povo. É neste princípio que Habermas enxerga o elo (a “charneira”) entre o

compromissos decorrer conforme procedimentos que garantem a todos os interesses iguais chances de participação nas negociações e na influenciação recíproca, bem como na concretização de todos os interesses envolvidos, pode-se alimentar a suposição plausível de que os pactos a que se chegou são conformes à equidade” (Ibid., loc. cit.). Importante notar, porém que, “dado que a formação de compromissos não pode substituir discursos morais, não se pode reduzir a formação política da vontade à formação de compromissos” (Ibid., p. 209). Isso porque “as condições procedimentais, que conferem aos compromissos faticamente selados a suposição de eqüidade, precisam ser justificadas em discursos morais” (Ibid., loc. cit.). O mesmo vale para discursos ético-políticos. Seus resultados têm de ser ao menos compatíveis com princípios morais. 159 “Questões pragmáticas colocam-se na perspectiva de um ator que procura os meios apropriados para a realização de preferências e fins que já são dados. Essas instruções para a ação têm a forma semântica de imperativos condicionados. Sua validade repousa, em última instância, no saber empírico que elas assimilam. Elas estão fundamentadas em discursos pragmáticos. Nestes, são determinantes os argumentos que referem o saber empírico a preferências dadas e fins estabelecidos e que julgam as conseqüências de decisões alternativas (que geralmente surgem sem que se tenha ciência) de acordo com máximas estabelecidas. Todavia, a partir do momento em que os próprios valores orienta-dores tornam-se problemáticos, a pergunta: ‘o que devemos fazer?’ aponta para além do horizonte da racionalidade teleológica” (Ibid., pp. 200-201). 160 “Questões ético-políticas colocam-se na perspectiva de membros que procuram obter clareza sobre a forma de vida que estão compartilhando e sobre os ideais que orientam seus projetos comuns de vida. A questão ético-existencial: quem sou eu? quem desejo ser? que tipo de vida é bom para mim?, colocada no singular, repete-se no plural, modificando, desta forma, o seu sentido. A identidade de um grupo refere-se às situações nas quais os membros podem dizer enfaticamente ‘nós’; ela não constitui uma identidade-eu em tamanho grande, e sim, o seu complemento. O modo como nós nos apropriamos das tradições e formas de vida nas quais nascemos e como as continuamos seletivamente decide sobre quem nós somos e queremos ser enquanto cidadãos”. (Ibid., p. 201) 161 Como visto, para Habermas, em discursos pragmáticos, examinamos se as estratégias de ação são adequadas a um fim, pressupondo que nós sabemos o que queremos; e, em discursos ético-políticos, nos certificamos de uma configuração de valores sob o pressuposto de que nós ainda não sabemos o que queremos realmente. No entanto, para ele, “uma boa fundamentação precisa levar em conta um outro aspecto – o da justiça. Antes de querer ou aceitar um programa, é preciso saber se a prática correspondente é igualmente boa para todos. Com isso desloca-se, mais uma vez, o sentido da pergunta: ‘o que devemos fazer?’. Em questões morais, o ponto de vista teleológico, que nos permite enfrentar problemas por meio de uma cooperação voltada a um fim, desaparece por trás,do ponto de vista normativo, sob o qual nós examinamos a possibilidade de regular nossa convivência no interesse simétrico de todos. Uma norma só é justa, quando todos podem querer que ela seja seguida por qualquer pessoa em situações semelhantes. Mandamentos morais têm a forma semântica de imperativos categóricos ou incondicionais. O que se ‘deve’ fazer significa aqui que a prática correspondente é justa. E tais deveres são fundamentados em discursos morais. Neles são decisivos os argumentos que conseguem mostrar que os interesses incorporados em normas contestadas são pura e simplesmente generalizáveis. Em discursos morais, a perspectiva etnocentrista de uma determinada coletividade se alarga, assumindo a perspectiva abrangente de- uma comunidade comunicativa não-circunscrita, onde cada membro se coloca na situação, na compreensão e na autocompreensão do mundo de cada um dos outros, e onde todos praticam em comum a assunção ideal de papéis (Ibid., pp. 202-203).

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sistema de direitos e a construção do Estado de Direito 162. Isso porque, através do

princípio da soberania popular, o direito subjetivo à participação, com igualdade

de chances, na formação democrática da vontade, vem ao encontro da

possibilidade jurídico-objetiva de uma prática institucionalizada de

autodeterminação dos cidadãos.

Assim, a idéia contida no princípio da soberania popular não é outra senão

a da auto-legislação, correspondente ao exercício da autonomia política dos

cidadãos. Ou seja, o exercício do poder político é orientado e se legitima pelas

normas jurídicas que os cidadãos criam para si mesmos em processos

democráticos de formação da opinião e da vontade, estruturados discursivamente.

Em última análise, tais processos podem ser encarados como mecanismos para

soluções de problemas, que garantem um tratamento racional de questões

políticas. São eles que tornam possível o uso e o emprego efetivo de iguais

liberdades comunicativas, uma vez que obrigam os participantes e

simultaneamente os estimulam a fazer uso da razão prática em suas dimensões

pragmática, ética e moral, ou, se for o caso, a buscar um equilíbrio eqüitativo dos

seus interesses 163.

Portanto, interpretado pela teoria do discurso, o princípio da soberania

popular significa, que todo o poder político se depreende do poder comunicativo

dos cidadãos 164. Note-se que essa exigência de ligação entre poder administrativo

e poder comunicativo não ignora a impossibilidade prática de que todos os

cidadãos estejam reunidos simultaneamente para deliberar, diretamente uns com

os outros, acerca de todas as decisões a serem tomadas sobre o exercício do poder

político. A alternativa para essa questão estaria na criação de corporações

deliberativas representativas, segundo o princípio parlamentar. Contudo, vale

destacar que a composição (eleições, garantias, organização) e o funcionamento

(regras de decisão – princípio da maioria, quórum para aprovação etc.) das

corporações parlamentares devem ser regulamentados à luz do princípio do

discurso, “de tal modo que os pressupostos comunicativos necessários para

discursos pragmáticos, éticos e morais, de um lado, e as condições de negociações

162 Ibid., loc. cit.. 163 Ibid., loc. cit.. 164 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 213.

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eqüitativas, de outro lado, possam ser preenchidas satisfatoriamente” 165. Da

observância ao princípio do discurso resultam, ainda, as exigências de pluralidade

de concepções políticas (princípio do pluralismo político) e de complementação

da formação da opinião e da vontade parlamentares através de uma “formação

informal da opinião na esfera pública política, aberta a todos os cidadãos”. Este

ponto é extremamente caro a Habermas, uma vez que, segundo o autor:

“O conteúdo do princípio da soberania popular só se esgota através do princípio que garante esferas públicas autônomas e do princípio da concorrência entre os partidos. Ele exige uma estruturação discursiva das arenas públicas nas quais circulações comunicativas, engrenadas anonimamente, se soltam do nível concreto das simples interações. Uma formação informal da opinião, que prepara a formação política da vontade influindo nela, não é sobrecarregada pela institucionalização de uma deliberação entre pessoas presentes que buscam uma tomada de decisão.” 166

Essas arenas, que compõem a denominada esfera pública, devem estar

protegidas pelos direitos fundamentais a fim de que possam viabilizar o

surgimento do poder comunicativo por meio do livre fluxo livre de opiniões,

pretensões de validade e tomadas de posição.

Mas, além dessas exigências, a ligação do poder administrativo ao poder

comunicativo dos cidadãos demanda, também, o reconhecimento de outros

princípios. O primeiro deles seria o princípio da ampla garantia legal do

indivíduo, assegurado através de um Judiciário independente. Isso porque, as

comunicações políticas dos cidadãos na esfera pública deságuam nos parlamentos

e se transformam em lei. A rigor, a formação política da vontade tem como

objetivo final atingir a atividade legislativa, pois ela própria surge da configuração

e interpretação do sistema dos direitos que os cidadãos se reconheceram

mutuamente através de leis e, além disso, o poder estatal só pode ser organizado e

dirigido legalmente 167. Ao generalizar expectativas normativas, as leis (Direito

positivo) estabelecem a base para as pretensões jurídicas dos indivíduos. Tais

pretensões resultam da aplicação de leis a casos singulares, seja pelos caminhos

da administração, seja pelo caminho auto-executivo, e, caso frustradas, podem ser

exigidas judicialmente.

Porém, para impor suas decisões, a Justiça deve contar com a

possibilidade da utilização dos meios de repressão do aparelho do Estado.

165 Ibid., p. 214. 166 Ibid. loc. cit.. 167 Ibid., pp. 214-215.

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Por isso, a fim de evitar o risco de auto-programação, a Justiça deve não

apenas estar impedida de exercer a atividade legislativa, como também

vincular-se às normas jurídicas democraticamente produzidas pelo

parlamento (princípio da ligação da justiça ao direito vigente).

É dessa maneira, portanto, que os direitos fundamentais dos indivíduos são

protegidos juridicamente – administrativa e judicialmente – no Estado de Direito.

Importante notar que esse mecanismo de proteção estatal dos direitos

fundamentais de acordo com divisão de competências entre legislação e aplicação

do direito remete, em última análise, a uma diferença de lógica argumentativa

entre fundamentação e aplicação de normas. Isto é, discursos de fundamentação e

de aplicação precisam ser institucionalizados juridicamente de diferentes

maneiras. Enquanto, nos discursos de fundamentação, haveria somente

participantes, cujas interações, estabelecidas horizontalmente, são reguladas,

discursivamente, pelas regras do procedimento, nos discursos de aplicação

seria preciso decidir qual das normas consideradas válidas é a adequada

numa situação cujas características foram descritas da forma mais completa

possível 168.

Ou seja, ao poder administrativo (discursos de aplicação) não caberia

interferir nas premissas que se encontram na base tanto das decisões do

parlamento que resultaram numa lei, quanto da Justiça, ao interpretar essa mesma

lei (discursos de fundamentação) 169. A necessidade de vedação a esse tipo de

interferência do poder administrativo aparece de forma ainda mais evidente caso

se leve em conta que Justiça não pode prescindir do poder administrativo para que

sejam implementadas as decisões judiciais e que, em última instância, a própria

legalidade da atuação do poder administrativo deve – se questionada – ser

decidida pela Justiça. Nessa idéia reside o sentido nuclear da separação dos

poderes do Estado, representado nos princípios da legalidade da administração e

do controle judicial e parlamentar da administração. Como explica Habermas:

168 Ibid., p. 215. 169 O caso da jurisdição constitucional, isto é, o controle de constitucionalidade das leis por um tribunal constitucional, é um caso à parte, tratado por Habermas, separadamente, no capítulo VI de Democracia e Direito entre Facticidade e Validade. Não explorarei, porém, o tema em razão de não guardar relação direta com os objetivos do presente trabalho. Mesmo porque, como mencionado no primeiro capítulo, os tribunais brasileiros – tanto o STF quanto o STJ – têm respeitado e confirmado a atuação normativa das agências reguladoras brasileiras. Assim, o foco, aqui, está direcionado muito mais para a relação entre os Poderes Executivo e Legislativo do que entre estes e o Judiciário.

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“Enquanto o poder administrativo é consumido para a instalação, organização e aplicação do direito, opera à maneira de condições possibilitadoras. Quando, porém, a administração assume outras funções, que não as administrativas, há uma submissão de processos da legislação e da jurisprudência sob condições limitadoras. Tais intervenções ferem os pressupostos comunicativos de discursos legislativos e jurídicos, estorvando os processos de entendimento dirigidos pela argumentação, que são os únicos capazes de fundamentar a aceitabilidade racional de leis e decisões judiciais. Por isso, a autorização do executivo para a promulgação de normas jurídicas necessita de uma norma especial, conforme ao direito administrativo”. 170

Assim, se faz valer o princípio da proibição da arbitrariedade no interior

do Estado. O que significa, da perspectiva dos indivíduos, que “os direitos que os

cidadãos inicialmente se atribuem na dimensão horizontal de interações

cidadão-a-cidadão precisam estender-se, a partir do momento em que se

constituiu um poder executivo, à dimensão vertical das relações dos cidadãos

com o Estado” 171. Com isso, tais direitos assumem o sentido adicional de

direitos de defesa 172, que determinam o conteúdo do princípio da separação

entre Estado e sociedade.

Normalmente, tal princípio é associado à experiência concreta do

Estado liberal burguês. Contudo, do modo como Habermas o formula, o

princípio da separação ente Estado e sociedade apenas veicula, de forma

geral, “a garantia geral jurídica de uma autonomia social que atribui a cada um,

enquanto cidadão, as mesmas chances de utilizar-se de seus direitos políticos de parti-

cipação e de comunicação” 173, não coincidindo, assim, necessariamente, com apenas um

determinado modelo histórico de Estado.

Nesse sentido, a versão discursiva do princípio da separação entre Estado e

sociedade teria, como essência, a criação na sociedade de uma esfera de proteção dos

indivíduos em face do Estado não somente para que eles possam usufruir de sua

autonomia privada, mas, também, de sua autonomia pública. Visto dessa perspectiva, tal

princípio pressupõe a existência, consolidação e fortalecimento de uma sociedade civil,

derivada das relações de associação e participação política dos cidadãos – isto é, da

capacidade dos indivíduos se associarem a fim de exercer sua autonomia política – além

170 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 217. 171 Ibid., loc. cit.. 172 Como lembra Habermas: “Esses direitos ‘liberais’ em sentido mais estrito formam, inclusive, do ponto de vista histórico, o núcleo das declarações dos direitos humanos. Deles nasceu o sistema dos direitos - inicialmente fundado num direito racional” (Ibid., pp. 217-218). 173 Ibid., p. 218.

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de uma cultura política suficientemente desacoplada de estruturas de classe vigentes na

sociedade 174.

Isso porque caberia à sociedade civil a função de “amortecer e neutralizar a

divisão desigual de posições sociais de poder e dos potenciais de poder daí derivados” 175,

de modo que aquilo que Habermas denomina “poder social” pudesse facilitar o exercício

da autonomia dos cidadãos. Por “poder social” Habermas se refere à chance de

imposição, por um ator, de seus próprios interesses no âmbito de uma relação social,

ainda que contra a resistência e em detrimento da vontade de outros. Nesse sentido, a

noção de poder social é ambígua em relação aos objetivos da institucionalização de

processos discursivos para a formação da opinião e vontade políticas e a constituição de

poder comunicativo, pois ele tanto pode possibilitar como restringir a formação do poder

comunicativo 176.

Atuando como possibilitador da constituição do poder comunicativo, o poder

social deve proporcionar as condições materiais necessárias para uma assunção autônoma

de liberdades comunicativas ou de ação, formalmente iguais 177. Quando, porém, o poder

social é desempenhado de forma a gerar uma distribuição assimétrica de recursos

materiais e capacidade de influência sobre o processo político, exerce um papel limitador

da possibilidade de formação do poder comunicativo 178.

Assim, o princípio da separação entre Estado e sociedade visa a impedir

que o poder social se transforme diretamente em poder administrativo, sem passar

antes pelas comportas (ou “eclusas”) da formação comunicativa do poder – que,

como veremos, funcionam como um filtro 179. Do ponto de vista da organização

do poder, a idéia de que se deve impedir a intervenção direta do poder social no

poder administrativo se expressa no princípio da “responsividade democrática”

(democratic accountability) dos detentores de cargos políticos em relação aos

eleitores e ao parlamento. Os parlamentares, representantes do povo, têm que se

expor, periodicamente, a novas eleições e, desse modo, à responsabilidade da

174 Ibid., pp. 218-219. 175 Ibid., p. 219. 176 Ibid., p. 219. Ver, também: SCHUARTZ, ob. cit., p. 279. 177 “Em negociações políticas, por exemplo, os partidos envolvidos têm que conseguir credibilidade para suas promessas ou ameaças através do poder social” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 219). 178 “Através deste modo interventor [, limitador do poder comunicativo], empresas, organizações e associações conseguem, por exemplo, transformar o seu poder social em político, seja diretamente, através da influência na administração, ou indiretamente, através de intervenções e manobras na esfera pública política” (Ibid., loc. cit.). 179 Ibid., pp. 211-212.

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Administração Pública e seus membros por suas próprias decisões e pelas decisões de

seus agentes subordinados corresponde o poder de controle e de exoneração

(impeachment) que os órgãos do parlamento detêm.

Em resumo, portanto, pode-se dizer que os princípios do Estado de Direito

desenvolvido por Habermas articulam-se em torno da seguinte idéia:

“A organização do Estado de direito deve servir, em última instância, à auto-organização política autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu, com o auxílio do sistema de direitos, como uma associação de membros livres e iguais do direito. As instituições do Estado de direito devem garantir um exercício efetivo da autonomia política de cidadãos socialmente autônomos para que o poder comunicativo de uma vontade formada racionalmente possa surgir, encontrar expressão em programas legais, circular em toda a sociedade através da aplicação racional, da implementação administrativa de programas legais e desenvolver sua força de integração social – através da estabilização de expectativas e da realização de fins coletivos. Ao se organizar o Estado de direito, o sistema de direitos se diferencia numa ordem constitucional, na qual o medium do direito pode tornar-se eficiente como transformador e amplificador dos fracos impulsos sociais e integradores da corrente de um mundo da vida estruturado comunicativamente”. 180

Ou seja, a garantia do exercício efetivo, pelos cidadãos, dos seus direitos

políticos (autonomia pública) é uma exigência que deve ser satisfeita tanto pela

constituição de poder comunicativo em processos de formação racional da opinião

e vontade políticas e sua incorporação em normas jurídicas (leis), quanto por meio

da circulação social deste poder comunicativo nos processos de aplicação e

implementação destas normas pela Justiça e pela Administração Pública. A

expectativa de que essa circulação do poder comunicativo pela sociedade ocorra

depende de que tais procedimentos juridicamente institucionalizados de formação

da opinião e vontade políticas se deixem reconstruir como procedimentos

genuinamente discursivos (ainda que indiretamente, como no caso dos processos

legítimos de negociação política). Somente assim, torna-se possível confiar na sua

capacidade de transmissão de poder comunicativo ao longo das engrenagens do

poder movimentadas no sistema político-jurídico 181, ou, dito de outro modo, na

180 Ibid., pp. 220-221. 181 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 280-281. Sobre a necessidade de se enxergar os procedimentos institucionalizados juridicamente como procedimentos genuinamente discursivos, observa Schuartz que: “Este é um ponto muito importante, uma vez que tal preservação supõe, rigorosamente, o asseguramento de pressupostos normativos nada triviais que se furtam à institucionalização jurídica, a saber, as ‘condições comunicativas ideais’ – supostamente – implícitas nos processos de argumentação, e que esta mesma garantia é dificilmente compatível com as restrições temporais, materiais e sociais que são próprias aos procedimentos de aplicação e implementação do direito. Habermas reconhece esta dificuldade e a enfrenta por meio da exigência

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sua capacidade de legitimação do Direito e do poder do Estado.

3.3.3 A circulação do poder político legítimo nas sociedades modernas

Com base no que até agora foi dito, já é possível expor, em linhas gerais, a

concepção de Jürgen Habermas acerca da legitimação do Direito e do poder

estatal nas sociedades modernas. Como visto, nos capítulos 3 e 4 de Direito e

Democracia entre Facticidade e Validade, seu objetivo é demonstrar que – e

como – a auto-compreensão normativa do Estado de Direito – isto é, as

representações normativas que reconhecemos nas afirmações de princípios acerca

dos direitos de cada indivíduo e do funcionamento das instituições políticas e

jurídicas – pode ser reconstruída racionalmente. Resumidamente, pode-se dizer

que a idéia do Estado de Direito consiste na exigência de se ligar “o sistema

administrativo, comandado pelo código do poder, ao poder comunicativo, estatuidor

do direito, e de mantê-lo longe das influências do poder social, portanto da

implantação fática de interesses privilegiados” 182.

Até esse ponto, portanto, sua análise das condições da gênese e da

legitimação do Direito se concentra na política legislativa, deixando em segundo

plano os processos políticos. Habermas procura demonstrar que “as instituições do

Estado de direito devem garantir um exercício efetivo da autonomia política de

cidadãos socialmente autônomos para que o poder comunicativo de uma vontade

formada racionalmente possa surgir, encontrar expressão em programas legais,

circular em toda a sociedade através da aplicação racional, da implementação

administrativa de programas legais e desenvolver sua força de integração social -

através da estabilização de expectativas e da realização de fins coletivos” 183. A

idéia básica é a de que, para ser legítimo, o poder administrativo não deve reprodu-

zir-se a si mesmo, e sim regenerar-se a partir da transformação do poder

comunicativo.

Mas como essa idéia pode se relacionar com as afirmativas de teorias

sociológicas, que enxergam a política como uma arena na qual se desenrolam

de que a institucionalização jurídica das mencionadas condições lhes deixem, "na medida do possível", intocadas” (Ibid. loc. cit., nota de rodapé n. 70). Ver, também, supra, item III.1.a. 182 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 190. 183 Ibid., p. 220.

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processos de poder? Haveria dificuldades para a realização da idéia de Estado de

Direito reconstruída por Habermas nas sociedades modernas? Quais seriam? As

respostas oferecidas por Habermas a tais questionamentos são o objeto deste item.

Vale notar que esse ponto do desenvolvimento teórico de Habermas marca

uma mudança na sua perspectiva de análise. O autor deixa a perspectiva

reconstrutiva do filósofo, que analisa, no plano conceitual, as tensões internas ao

Direito – a saber, entre positividade e legalidade; entre autonomia privada e

autonomia pública; e entre poder político e Direito legítimo – e assume a

perspectiva descritiva do sociólogo, a quem cabe, agora, a tarefa de compreender

a “tensão externa” (ao Direito) entre a idéia discursiva de Estado de Direito e a

facticidade dos processos político-jurídicos na sociedade moderna 184. Interessa

agora, pois, investigar o desnível entre norma e realidade, tomando o poder como

facticidade social, perante o qual as idéias podem ser desacreditadas 185.

184 “Até o momento, adotamos a linha de uma teoria do direito que discute a tensão entre facticidade e validade no âmago do próprio direito. Nas páginas seguintes tomaremos como tema a relação externa entre facticidade e validade, ou seja, a tensão entre a auto-compreensão normativa do Estado de direito, explicitada na teoria do discurso, e a facticidade social dos processos políticos - que se desenrolam nas formas constitucionais” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 10). 185 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 174.

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Não há, porém, qualquer contradição nessa mudança de perspectiva 186.

Isso porque, em seu projeto teórico, Habermas vislumbra a construção um

conceito de legitimidade democrática através de um modelo normativo de

democracia capaz de dar conta da visão mais sóbria – até mesmo cínica – que as

análises sociológicas têm sobre o processo político. Para ele, o derrotismo

normativo resultante das análises de várias correntes da sociologia política “não é

fruto de evidências concretas, mas do uso de estratégias conceituais falsas”, pois “o

modo de operar de um sistema político, constituído pelo Estado de direito, não pode

ser descrito adequadamente, nem mesmo em nível empírico, quando não se leva em

conta a dimensão de validade do direito e a força legitimadora da gênese

democrática do direito” 187. Ou seja, uma sociologia da democracia tem que

escolher conceitos básicos que permitam identificar, nas práticas políticas,

“fragmentos e partículas de uma ‘razão existente’, mesmo que distorcida” 188. Nesse

sentido, a identificação de pontos de apoio na faticidade dos sistemas político-

jurídico modernos, que permitam afastar a tese da impossibilidade da realização

186 Como explica Schuartz: “A referida mudança de perspectiva não significa uma verdadeira cisão no plano metodológico. Ao contrário, é essencial para o objetivo de Habermas a afirmação de que o conteúdo normativo do Estado Democrático de Direito - tal como reconstruído nos moldes da teoria do discurso - é inerente à faticidade das instituições políticas e jurídicas do Estado moderno, não podendo faltar em nenhuma descrição empiricamente adequada destas instituições. A relação entre ‘ideal normativo’ e ‘realidade’ é tratada em termos não de uma contraposição, mas de uma ‘tensão externa’ (externe Spannung). O objetivo da empreitada teórica de reconstrução do conteúdo normativo das instituições do moderno Estado Democrático de Direito não é salvar o ideal ‘por si’; a preservação da faticidade do ideal, ou melhor, do ideal na faticidade, interessa na medida em que permite a identificação de pontos de apoio para o exercício da crítica imanente. Neste contexto, a reconstrução das ‘intuições normativas’ dos sistemas jurídicos modernos se-gundo o receituário da teoria do discurso não é casual. Ela é uma condição estritamente necessária para que tal identificação seja realizada no nível de profundidade adequado, que é aquele descoberto por Habermas para resolver o problema metodológico dos fundamentos normativos da crítica. Há, neste sentido, uma bela simetria entre a localização da solução para este problema nos ‘pressupostos pragmáticos da comunicação orientada ao entendimento mútuo’, de um lado, e a leitura teórica do sistema de direitos enquanto conjunto de condições necessárias para a institucio-nalização jurídica destes ‘pressupostos’ no nível correspondente à forma reflexiva deste tipo de comunicação (i.e. o nível do discurso) - e das instituições do Estado de Direito enquanto conjunto de condições necessárias para estabilizar tal ‘constituição originária’ -, de outro lado. Complementarmente a este requisito formal, há também uma exigência de caráter ‘substantivo’, expressa na primazia qualificada concedida aos conteúdos dos processos supostamente espontâneos de entendimento que se desenrolam anarquicamente nos espaços públicos em que se articula a ‘base’ da sociedade civil. São estes os dois pilares fundamentais sobre os quais construiu-se a teoria do direito habermasiana e que, enquanto tais, serão preservados a todo custo na tradução sociológica da idéia do Estado Democrático de Direito e no modelo teórico da sociedade moderna no qual esta tradução se encaixa” (Cf. SCHUARTZ, ob. cit., pp. 283-284). 187 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 9. 188 Ibid., loc. cit..

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105

do sentido normativo que foi reconstruído discursivamente, constitui, para o

projeto teórico de Habermas, uma etapa indispensável 189.

Um bom ponto de partida para a compreensão do significado da tensão

externa entre ideal normativo e realidade social para a teoria de Habermas está

relacionado com a idéia de que a institucionalização de discursos e negociações

em processos democráticos é capaz de assegurar a presunção de racionalidade dos

resultados destes procedimentos 190. Como visto, tal presunção se apóia na

suposição de que os pressupostos da racionalidade comunicativa estariam

assegurados nos procedimentos juridicamente institucionalizados no Estado

Democrático de Direito. Mas isso dificilmente é compatível com as restrições

temporais, materiais e sociais características dos procedimentos de aplicação e

implementação do Direito nas sociedades modernas. Essa dificuldade é

reconhecida por Habermas e faz com que o autor assuma que, devido ao seu

conteúdo idealizador, os pressupostos comunicativos gerais de argumentações só

podem ser preenchidos de modo aproximado 191.

Assim, a tensão externa entre facticidade e validade pode ser colocada nos

seguintes termos: De um lado, os processos democráticos de formação da opinião

e da vontade política têm – do ponto de vista normativo – a função de transportar

e atualizar, no âmbito macro-social, os potenciais de racionalidade comunicativa

latentes, por assim dizer, no estoque de saber socialmente acumulado. De outro, a

possibilidade de realização do conteúdo normativo implícito no princípio

democrático, tendo em vista a magnitude dos obstáculos – decorrentes da

facticidade social dos processos políticos – que se impõem à sua implementação

nas sociedades modernas, parece cada vez mais remota192. As críticas dirigidas às

189 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 276. 190 Ibid., pp. 284-285. A chave de uma concepção genuinamente procedimentalista, segundo Habermas: “consiste precisamente no fato de que o processo democrático institucionaliza discursos e negociações com o auxílio de formas de comunicação as quais devem fundamentar a suposição da racionalidade para todos os resultados obtidos conforme o processo”, de modo que: “A política deliberativa obtém sua força legitimadora da estrutura discursiva de uma formação da opinião e da vontade, a qual preenche sua função social e integradora graças à expectativa de uma qualidade racional de seus resultados” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., pp. 27-28). 191 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 223. 192 Sobre esse ponto, Habermas menciona as transformações sociais globais apontadas por Norberto Bobbio que levaram este autor italiano a adotar uma estratégia deflacionária na construção de seu conceito de democracia: “Ele registra inicialmente algumas transformações sociais globais que não correspondem às promessas das concepções clássicas: especialmente o surgimento de uma sociedade policêntrica de grandes organizações, na qual a influência e o poder político passam para atores coletivos, saindo cada vez mais das mãos de associados singulares; em

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concepções normativas do Estado de Direito, nesse sentido, se fortalecem 193. E

mesmo a versão ‘minimalista’ de reconstrução do conteúdo discursivo dos

procedimentos, proposta por Habermas, não está imune diante delas.

A rigor, “num sistema político que sofre a pressão da complexidade social,

essas limitações manifestam-se através de dissonâncias cognitivas crescentes, que

nascem da distância que separa as suposições de validade do Estado de direito

democrático das formas concretas que esse processo político assume” 194. Essa

sobrecarga cognitiva do sistema político é resultado da crescente presença e

predominância de problemas de coordenação gerados pelos sistemas de ação

funcionalmente especializados. E “ao perigo da crescente marginalização das

questões relacionadas à integração moral e à autocompreensão e auto-realização

éticas dos indivíduos na sociedade moderna, bem como da não solução dos cor-

respondentes problemas, junta-se, no plano das interações entre tais indivíduos, o

perigo da crescente penetração, na forma de ‘monetarização’ e ‘burocratização’,

da racionalidade estratégico-instrumental em âmbitos sociais que somente

poderiam ser integrados de uma maneira não-patológica por meio de interações

comunicativas” 195 – ou seja, o perigo de colonização do mundo da vida.

O exercício do poder político pelo Estado torna-se, assim, cada vez mais

independente em relação ao modo deliberativo de uma socialização realizada

consciente e autonomamente, gerando “momentos inerciais” da sociedade 196. E

esse “ensimesmamento” do poder do Estado, como visto, é objeto de críticas de

Habermas, na medida em que reduz as possibilidades de mudança social por meio

de processos conscientes de deliberação e decisão.

segundo lugar, a multiplicação de interesses de grupos concorrentes, a qual dificulta uma formação imparcial da vontade; a seguir, o crescimento de burocracias estatais e de tarefas públicas, o que propicia uma dominação tecnológica; finalmente, a apatia das massas, que se distanciam das elites, as quais contrapõem-se oligarquicamente aos sujeitos privados, sem autonomia” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 26). 193 “(...) parece que nas sociedades complexas abre-se cada vez mais a fresta entre necessidade de coordenação, de um lado, e realizações de integração, de outro - fresta que o direito e a política deveriam fechar - na medida em que o sistema administrativo tem que assumir tarefas de regulação, as quais sobrecarregam o modo deliberativo de decisão. Nessa sobrecarga torna-se perceptível a resistência que as sociedades complexas oferecem à realidade, através da qual elas enfrentam as pretensões investidas nas instituições do Estado de direito. A teoria da decisão revela que o processo democrático é consumido, "por dentro", pela escassez de fontes funcionalmente necessárias; e ‘por fora’, ele se choca, no entender da teoria do sistema, contra a complexidade de sistemas funcionais intransparentes e dificilmente influenciáveis” (Ibid., p. 49). 194 Ibid., p. 48. 195 Cf. SCHUARTZ, ob. Cit., p. 287. 196 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 49.

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Diante disso, “é preciso perguntar se o modo, de socialização discursiva,

suposto para a auto-organização da comunidade jurídica, ou seja, para uma

associação de sujeitos livres e iguais, é possível nas condições de reprodução de

uma sociedade complexa e, em caso afirmativo, como isso pode dar-se” 197. Não é

por outro motivo que o modelo de circulação do poder político legítimo que

Habermas desenvolve está voltado para o peso empírico do fluxo oficial do poder

(sociedade civil/esfera pública instituições do Estado Democrático de Direito

sistemas funcionais: burocracia estatal e economia) prescrito pela idéia de Estado

Democrático de Direito. E esse peso depende, principalmente, da capacidade da

sociedade civil em gerar impulsos vitais através de esferas públicas autônomas e

capazes de ressonância, as quais podem introduzir, no sistema político, conflitos

existentes na periferia 198. Mesmo porque, na perspectiva dos participantes, os

momentos de inércia podem ser percebidos como diferenças entre norma e

realidade, que fornecem o pretexto para detectar e elaborar questões práticas em

geral 199.

Tendo isso em mente, o modelo a que Habermas recorre para a descrição e

explicação dos processos de comunicação e decisão no sistema político-jurídico é

construído com base num eixo centro-periferia, no qual tais processos são

estruturados através de um sistema de “comportas” (ou “eclusas”) e caracterizados

através de dois padrões de processamento de problemas 200. O núcleo do sistema

político é formado pelos complexos institucionalizados dotados juridicamente de

competências e prerrogativas de deliberação e decisão, a saber: “a administração

(incluindo o governo), o judiciário e a formação democrática da opinião e da

vontade (incluindo as corporações parlamentares, eleições políticas,

concorrência entre os partidos, etc.)” 201. No interior desse núcleo, a capacidade

de ação varia de acordo com a densidade da complexidade organizatória. Assim,

por exemplo, o complexo parlamentar é o que se encontra mais aberto para a

percepção e a tematização de problemas sociais; porém, comparado ao

complexo administrativo, ele possui uma capacidade menor de processar

problemas. O núcleo possui uma periferia interna, na qual se encontram

197 Ibid., pp. 25-26. 198 Ibid., p. 58. 199 Ibid., loc. cit.. 200 Ibid., pp. 86 e ss.. 201 Ibid., p. 87.

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instituições de natureza administrativa ou quase-administrativa com poderes

restritos de autogestão e auto-regulação – por exemplo, universidades, fundações,

representantes de corporações etc. –, e, quando considerado em seu conjunto, uma

periferia externa, onde se encontram os fornecedores e os consumidores do

sistema, “ocupados, respectiva e tipicamente, com os processos de implementação

de medidas políticas ou administrativas e com a articulação de problemas e

formulação de propostas” 202.

Forma-se, portanto, uma rede complexa de atores em torno do sistema

político. Os denominados “consumidores” são aqueles que “se interpõem entre

administração pública e organizações privadas, grupos de interesses, etc., que

preenchem funções de coordenação em domínios sociais carentes de regulação,

porém intransparentes” 203. Trata-se, pois, de sistemas de negociação, que não se

confundem com grupos “fornecedores”, isto é, “associações e ligas que

enfrentam os parlamentos e administrações, inclusive pelo caminho da justiça,

tematizando problemas sociais, colocando exigências políticas, articulando

interesses e necessidades e influenciando a formulação de políticas ou projetos

de lei” 204.

As decisões que se pretende, efetivamente, implementar devem atravessar

os estreitos canais do núcleo, passando pelas comportas constituídas por esse

complexo central, a fim de que sejam dotadas de autoridade – isto é, sejam

possam ser impostas à coletividade 205. Todavia, a legitimidade de tais decisões

permanece condicionada à participação ativa da periferia em processos

argumentativos direcionados à formação da opinião e da vontade políticas 206.

Nesse sentido, desempenha papel essencial para o modelo de Habermas a

idéia de esfera pública política. Esta seria uma “caixa de ressonância” onde os

problemas a serem elaborados pelo sistema político encontrariam eco. Nesta 202 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 289. 203 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p. 87. 204 Ibid., loc. cit.. “O leque abrange desde associações que representam grupos de interesses claramente definidos, uniões (com objetivos de partido político), e instituições culturais (tais como academias, grupos de escritores, radical professionals, etc.), até ‘public interest groups’ (com preocupações públicas, tais como proteção do meio ambiente, proteção dos animais, teste dos produtos, etc.), igrejas e instituições de caridade. Essas associações formadoras de opinião, especializadas em temas e contribuições e, em geral, em exercer influência pública, fazem parte da infra-estrutura civil de uma esfera pública dominada pelos meios de comunicação de massa, a qual, através de seus fluxos comunicacionais diferenciados e interligados, forma o verdadeiro contexto periférico”. (Ibid., pp. 87-88). 205 Ibid., p. 88 206 Ibid. loc. cit..; Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 289.

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medida, funciona, segundo Habermas, como um conjunto de sensores não

especializados, porém, sensíveis no âmbito de toda a sociedade 207. A esfera

pública constitui uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo

entendimento 208, que se apóia sobre o domínio da linguagem ordinária e está em

sintonia com a “compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana” 209

sem, contudo, estar ligada exclusivamente qualquer um dos saberes

especializados ligados a funções gerais de reprodução do mundo da vida210.

Na perspectiva de uma teoria da democracia, a esfera pública deve reforçar a

pressão exercida pelos problemas. Ou seja, não basta que ela se limite a percebê-los

e a identificá-los. Deve, além disso, “tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los

de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo

complexo parlamentar” 211. Assim, de forma resumida, a esfera pública pode ser

descrita como “uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas

de posição e opiniões”, na qual “os fluxos comunicacionais são filtrados e

sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em

temas específicos” 212.

207 Note-se que: “A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regula o modo de pertença a uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se carateriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis”. (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 92). 208 “O espaço de uma situação de fala, compartilhado intersubjetivamente, abre-se através das relações interpessoais que nascem no momento em que os participantes tomam posição perante os atos de fala dos outros, assumindo obrigações ilocucionárias. Qualquer encontro que não se limita a contatos de observação mútua, mas que se alimenta da liberdade comunicativa que uns concedem aos outros, movimenta-se num espaço público, constituído através da linguagem. Em princípio, ele está aberto para parceiros potenciais do diálogo, que se encontram presentes ou que poderiam vir a se juntar” (Ibid., p. 93). 209 Ibid., p. 92. 210 “Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana. Descobrimos que o mundo da vida é um reservatório para interações simples; e os sistemas de ação e de saber especializados, que se formam no interior do mundo da vida, continuam vinculados a ele. Eles se ligam a funções gerais de reprodução do mundo da vida (como é o caso da religião, da escola e da família), ou a diferentes aspectos de validade do saber comunicado através da linguagem comum (como é o caso da ciência, da moral, da arte). Todavia, a esfera pública não se especializa em nenhuma destas direções; por isso quando abrange questões politicamente relevantes, ela deixa ao cargo do sistema político a elaboração especializada. A esfera pública constitui principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem com os conteúdos da comunicação cotidiana” (Ibid., loc. cit.). 211 Ibid., p. 91. 212 Ibid., loc. cit..

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Em outras palavras, essa visão do regime democrático, que traduz em

termos sociológicos a teoria do discurso, afirma que “as decisões impositivas,

para serem legítimas, têm que ser reguladas por fluxos comunicacionais que

partem da periferia e atravessam as comportas dos procedimentos próprios à

democracia e ao Estado de direito, antes de passar pela porta de entrada do

complexo parlamentar ou dos tribunais (e às vezes antes de voltar pelo caminho

da administração implementadora)” 213. Desse modo, por meio desse modelo de

comportas, seria possível evitar que o poder do complexo administrativo ou o

poder social das estruturas intermediárias que têm influência no núcleo central

se tornem independentes em relação ao poder comunicativo que se forma no

complexo parlamentar 214.

Contudo, a exigência de que todas as decisões vinculantes coletivamente

percorram as etapas desse modelo não corresponde ao modo de proceder comum

nas democracias ocidentais. Como mencionado anteriormente, em condições

modernas, o sistema político-jurídico é sobrecarregado pelos problemas de

coordenação decorrentes dos sistemas de ação funcionalmente especializados e

sofre uma pressão contínua da complexidade social que o envolve, operando, em

regra, em sentido inverso ao oficial. Essas contracorrentes, por outro lado, não

representam apenas “o desmentido de uma facticidade social cínica” 215. Parte

dessas decisões “ensimesmadas” contribui para a redução da complexidade do

modelo oficial de circulação do poder, estabelecendo padrões de funcionamento.

A rigor, a maior parte das operações no núcleo do sistema político segue o ritmo

ditado por certas rotinas: “Tribunais emitem sentenças, burocracias preparam

leis e elaboram petições, parlamentos despacham leis e orçamentos, centrais de

partidos conduzem disputas eleitorais, clientes influenciam ‘suas’

administrações - e todos esses processos caminham de acordo com padrões

estabelecidos” 216.

Do ponto de vista normativo, interessaria apenas saber se essas rotinas

continuam abertas a impulsos renovadores, oriundos da periferia. Em caso de

resposta afirmativa, tratar-se-ia apenas de mecanismos de redução de

213 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade eValidade – Vol. II..., pp. 88-89. 214 Ibid., loc. cit.. 215 Ibid., p. 89. 216 Ibid., loc. cit..

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complexidade gerados pelo próprio sistema. Entretanto, se a resposta for

negativa, tais rotinas seriam nada mais que os reflexos cristalizados de estruturas

de poder social antidemocrático, que contribuem para uma atuação patológica do

poder estatal 217.

Há, portanto, dois modos de tratar dos problemas sociais, que são

decisivos para a regulação dos fluxos da comunicação. No modo normal de

funcionamento do sistema político-jurídico, “a relação entre centro e periferia

flui no sentido e ritmo ditados por rotinas administrativas, inércias burocráticas e

interações pontuais mais ou menos promíscuas entre funcionários e órgãos

públicos, de um lado, e grupos de interesse ou agentes privados individuais com

maior ou menor poder social ou influência, de outro lado” 218. Porém, em caso de

crise, isto é, quando estiver em perigo a solução de problemas relativos à

integração social e, em última instância, das próprias instituições político-

jurídicas 219, esse modo de operar conforme convenções habituais é substituído

por um outro. Pois nessas situações “a pressão da opinião pública consegue

forçar um modo extraordinário de elaboração de problemas, que favorece a

regulação da circulação do poder através do Estado de direito, atualizando,

portanto, sensibilidades em relação às responsabilidades políticas reguladas

juridicamente” 220.

Como conclusão, tem-se que a constatação de que o núcleo do sistema

político-jurídico que constitui o Estado Democrático de Direito funciona,

normalmente, de acordo com um fluxo de poder que obedece o sentido centro-

periferia, não constitui, por si só, um problema normativo. Pois, “para que a idéia

do Estado Democrático de Direito possa manter-se sociologicamente intacta,

exige-se apenas que as instituições que compõem este complexo estejam, em

princípio, abertas aos inputs da periferia e que mudem de padrão nos casos

críticos - em última instância, naquelas situações em que estiver em perigo a

integração social da sociedade” 221.

Mas o que garantiria que, no interior dessa periferia do sistema jurídico-

político, não houvesse deformações – seja por meio da atuação de um conjunto de

217 Ibid. pp. 89-90. 218 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 290. 219 Ibid., p. 289. 220 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p. 89. 221 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 290.

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atores detentores de poder social, ou por meio da atuação de especialistas em

publicidade, capazes de selecionar informações e controlar os acessos aos meios

de comunicação de massa – no processo de constituição do poder comunicativo

que irá influenciar as instituições que formam o complexo central do Estado

Democrático de Direito 222? As pesquisas desenvolvidas na área da sociologia da

comunicação descrevem as esferas públicas das democracias ocidentais como

ambientes dominados pelo poder e pela mídia, o que reforçaria essa objeção.

A resposta de Habermas para essa questão decorre da utilização da mesma

estratégia aplicada para a descrição do funcionamento do sistema político-jurídico

para dar conta das resolver os problemas no interior da própria periferia. O autor

faz uma distinção entre três tipos de atores na esfera pública informal. Primeiro,

diferencia os atores que surgem do público e participam na reprodução da esfera

pública dos atores que ocupam uma esfera pública já constituída, a fim de aproveitar-se

dela para exercem influência no sistema político – como, por exemplo, grandes grupos

de interesses, bem organizados e ancorados em sistemas funcionais 223. A terceira

categoria de atores seriam os profissionais da mídia – repórteres, jornalistas,

publicitários etc. – que, por serem responsáveis pela seleção de informações e pelo

controle do acesso aos meios de comunicação de massa tornam-se fonte de uma

nova espécie de poder – o poder da mídia – o qual, embora já comece a ser

regulamentado tanto juridicamente quanto por parâmetros ético-profissionais, não é

suficientemente é controlado. Assim “o análogo ao problema do ‘amalgamento’ e

‘ensimesmamento’ do poder social e administrativo em relação ao poder

comunicativo consiste, agora, no problema da definição unilateral e interessada,

por políticos, publicistas e organizações privadas, do espectro de temas e do

sentido do fluxo das comunicações com as quais o público, reduzido ao papel de

consumidor passivo, é confrontado” 224. E, novamente, a saída encontrada por

Habermas consiste em se concentrar não na normalidade, mas sim em situações

de crise social. Nas suas palavras:

“Basta tornar plausível que os atores da sociedade civil, até agora negligenciados, podem assumir um papel surpreendentemente ativo e pleno de

222 “Convém saber até que ponto as tomadas de posição em termos de sim/não do público são autônomas - se elas refletem apenas um processo de convencimento ou antes uma processo de poder, mais ou menos camuflado” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p. 108 ). 223 Ibid., p. 96. 224 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 291.

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conseqüências, quando tomam consciência da situação de crise. Com efeito, apesar da diminuta capacidade organizacional, da fraca capacidade de ação e das desvantagens estruturais, eles têm chances de inverter o fluxo convencional da comunicação na esfera pública e no sistema político, transformando destarte o modo de solucionar problemas de todo o sistema político”. 225

Mesmo porque, os grupos de interesses detentores de poder social, que

exercem influência no sistema político através da esfera pública, quando

participam de negociações reguladas publicamente ou de tentativas de pressão

não-públicas, não podem usar, de forma explícita, os potenciais de sanção sobre

os quais se apóiam. Isso se justifica na medida em que, “para contabilizar seu

poder social em termos de poder político, eles têm que fazer campanha a favor de

seus interesses, utilizando uma linguagem capaz de mobilizar convicções” 226. E

as opiniões públicas decorrentes dessas convicções, formadas graças ao uso

velado de poder social – dinheiro ou poder organizacional – perdem sua

credibilidade tão logo essas fontes de poder social são reveladas e se tornam

públicas. O que decorre do fato de que “as opiniões públicas podem ser

manipuladas, porém não compradas publicamente, nem obtidas à força” 227. A

rigor, “antes de ser assumida por atores que agem estrategicamente, a esfera,, pública tem que reproduzir-se a partir de si mesma e configurar-se como uma

estrutura autônoma”228.

Em resumo, portanto, o desenvolvimento, implementação e consolidação

da idéia do Estado Democrático de Direito, entendida a partir da teoria do

discurso, dependem não apenas da institucionalização jurídica dos

correspondentes procedimentos e pressupostos comunicativos, como, também, da

interação entre deliberações institucionalizadas e opiniões públicas elaboradas nas

esferas informais do espaço público, tais como associações, movimentos sociais,

organizações não governamentais etc. 229. Ambas as condições são igualmente

indispensáveis para que se possa falar em legitimidade do poder político nas

sociedades modernas.

225 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p. 115. 226 Ibid., p. 96. 227 Ibid., p. 97. 228 Ibid., loc. cit.. 229 Sobre os conceitos de sociedade civil e esfera pública na obra de Habermas, ver: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol II..., cap. VIII.

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114

A seguir, apresentarei uma corrente teórica que tem buscado, a partir desse

modelo teórico, investigar o tema da legitimidade da atividade de produção de

normas das agências reguladoras no Brasil, destacando suas vantagens analíticas

em relação à perspectiva dominante que tem orientado a grande maioria dos

estudos sobre o tema no Brasil e problematizando algumas de suas premissas.

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4 Teoria do discurso, participação e agências reguladoras no Brasil

Tratou-se, no primeiro capítulo, do processo de surgimento das agências

reguladoras no Brasil. Viu-se que tal processo é parte de uma série de reformas

institucionais implementadas no Brasil na década de 1990, que resultaram no

denominado modelo regulador de Estado 1. Diferente do modelo anterior,

caracterizado pela intervenção direta do Estado na economia através das empresas

estatais, o Estado regulador foi idealizado a partir do discurso segundo o qual

apenas as denominadas “atividades exclusivas” do Estado deveriam ser exercidas

diretamente pelo Estado, enquanto que as “atividades não-exclusivas” deveriam

ser delegadas à iniciativa privada.

De acordo com o Plano Diretor da Reforma do Estado – PDRAE, a

privatização de atividades essenciais – ainda que não-exclusivas do Estado – à

sociedade, deveria ser acompanhada, por outro lado, pela criação de órgãos

regulatórios tecnicamente especializados, dotados de alto grau de autonomia

política e capazes de estabelecer, com a agilidade e flexibilidade necessárias,

marcos normativos voltados para a correção de falhas de mercado, a fim de

orientar a atuação dos agentes econômicos no sentido da maximização do bem-

estar social. Em alguns setores, esses órgãos regulatórios foram constituídos sob a

forma de agências reguladoras. Normativamente 2, é possível afirmar que a

institucionalização das agências reguladoras brasileiras na década de 1990 foi

diretamente influenciada pelas experiências históricas ocorridas na década

anterior nos EUA e nos países capitalistas da Europa. Se destes se absorveu a

experiência de criação de órgãos de regulação para novos mercados decorrentes

1 Esta é a denominação adotada pela maioria dos juristas brasileiros, que se apóiam num conceito jurídico de regulação. Paulo Mattos, porém, prefere utilizar a expressão “novo estado regulador”, em razão de adotar um conceito econômico de regulação, segundo o qual qualquer forma de intervenção na economia por parte do Estado pode ser classificada como atividade de regulação estatal. Ver a respeito: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p. 33 e ss. 2 Na prática, porém, Nunes et alli ressaltam que, a despeito de toda teorização e diretrizes sobre a reforma do Estado, não existiram, até maio de 1996, definições claras sobre o formato institucional e organizacional das agências idealizadas para fiscalizar e regular os serviços públicos que seriam privatizados. No momento da criação das chamadas “agências de primeira geração” – a saber, ANATEL, ANEEL e ANP – o poder Executivo não tinha clareza sobre o modelo a ser instituído, como revelam as declarações de atores intimamente envolvidos no processo de criação de tais agências, apresentadas pelos autores (Cf. NUNES et alli, ob. cit.).

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da privatização de atividades até então desempenhadas de forma monopolística

pelo Estado, daquele incorporou-se as exigências de sofisticação dos mecanismos

de controle e responsabilização (accountalibity) da atuação desses novos órgãos,

tanto no plano de sua relação institucional com os demais elementos da estrutura

do Estado, quanto no plano do controle social por parte da população. Nesse

sentido, pode-se perceber na estrutura institucional das agências reguladoras

brasileiras a existência tanto de mecanismos de controle ligados à interferência

dos Poderes do Estado na atuação das agências, como de mecanismos de

participação popular nos processos de tomada de decisão dessas entidades.

Viu-se, porém, que, desde sua criação, as agências reguladoras foram – e

continuam sendo – objeto de críticas relacionadas, principalmente, a um suposto

déficit de legitimidade democrática da de sua atuação normativa. O principal alvo

dos ataques seria o alto grau de autonomia política decisória de que gozam essas

entidades administrativas – ver item I.2. Se, do ponto de vista econômico, a

justificativa desse nível de autonomia reside na necessidade de previsibilidade e

prevalência de critérios técnicos para a tomada de decisão – ainda que como

destacado por Mattos, dentro da técnica existe espaço escolha política 3– e,

portanto, de blindagem contra interferências políticas indevidas, da perspectiva

jurídico-política, essa delegação legislativa a órgãos formados por dirigentes que

não foram eleitos pelo povo e que não estão sujeitos à accountability eleitoral

carece de uma justificativa capaz de gerar consenso.

Isso porque, como visto, entre os juristas, a questão da legitimidade

democrática da atividade de produção de normas pelas agências reguladoras tem

sido abordada de forma reducionista e insuficiente. Os debates sobre o tema, em

geral, se limitam a uma perspectiva jurídico-formal, no qual as propostas de

solução são pensadas a partir da “melhor interpretação” dos princípios

constitucionais da separação dos Poderes e da legalidade.

Neste capítulo, meu objetivo é apresentar uma concepção teórica que

procura abordar a questão da legitimidade democrática da atuação normativa das

agências reguladoras brasileiras com apoio no conceito habermasiano de

3 Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p. 248.

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democracia deliberativa 4. Foi visto, no segundo capítulo, de forma resumida, o

percurso teórico percorrido por Habermas para solucionar o problema dos

fundamentos da legitimidade do Direito e do poder administrativo nas sociedades

modernas. O autor alemão busca reconstruir a idéia de Estado de Direito na

modernidade sobre as bases de um novo tipo de racionalidade – a racionalidade

comunicativa –, o que pressupõe a possibilidade de que o poder comunicativo

gerado nas esferas públicas informais, constituídas no mundo da vida, possa ser

institucionalizado através da política e do medium do Direito, a fim de influenciar

a Administração Pública e o mercado. Cabe, agora, apresentar como Paulo

Todescan Lessa Mattos – principal representante da corrente teórica

supramencionada nesse campo temático – busca enfrentar o problema teórico da

legitimidade do poder normativo das agências reguladoras no Brasil a partir da

aplicação do paradigma habermasiano de legitimação pelo procedimento

discursivamente estruturado aos mecanismos de participação popular

institucionalizados nos processos decisórios dessas entidades.

4.1 O modelo habermasiano e as agências reguladoras brasileiras

O trabalho de Mattos veicula, expressamente, uma proposta de ruptura

com o padrão de análise jurídica da questão da legitimidade das agências

reguladoras apresentado no primeiro capítulo 5. Com efeito, sua análise aborda a

questão de uma perspectiva mais ampla, no âmbito da tensão entre as teorias da

regulação e as teorias da democracia, ou, de modo mais específico, entre a

eficiência da regulação e as exigências de legitimidade democrática e de controle

das agências reguladoras independentes.

4 Conforme já mencionado, essa perspectiva teórica se insere num projeto mais amplo desenvolvido pelo Núcleo de Direito e democracia do CEBRAP, do qual MATTOS foi pesquisador. 5 Logo na introdução, afirma o autor: “Os modelos de análise predominantes na doutrina jurídica brasileira em matéria de direito administrativo e direito econ6omico não são, a meu ver, suficientes para compreender a complexidade do funcionamento do Estado regulador e, principalmente, as condições de legitimidade de processos decisórios sobre a formulação de políticas públicas num contexto de delegação legislativa (ou de exercício da capacidade normativa de conjuntura) por órgãos reguladores dotados de autonomia decisória. Seriam modelos ainda presos a um paradigma liberal de direito, focados em análises de adequação lógico-formal de normas a um ordenamento jurídico hierarquicamente constituído” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador…, p. 28).

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Em sua obra, Mattos parte dos fatos da regulação estatal – entendida como

intervenção estatal na economia – nas sociedades capitalistas contemporâneas e

do crescimento, nessas sociedades, do poder normativo da Administração

Pública6. Isto é, o autor reconhece que, ante os desafios que atualmente se

colocam aos Estados Nacionais e seus ordenamentos jurídicos 7, é inevitável que o

Estado interfira na atuação do mercado e que essa tarefa caiba, cada vez mais, ao

Poder Executivo. A grande questão a ser investigada, segundo Mattos, portanto, é

a de como – do ponto de vista do modelo institucional do Estado – e a partir de

quais parâmetros normativos, regular?

É nesse sentido que o autor se contrapõe àqueles que simplesmente negam,

de antemão, a legitimidade de normas produzidas pelas agências reguladoras, com

base numa idéia de separação dos Poderes que remete, em última análise, a um

conceito liberal de democracia. Segundo Mattos, atualmente, o Poder Legislativo

– composto por representantes eleitos do povo, que contam, pois, com a

legitimidade democrática – tem se mostrado incapaz de regular as questões que

lhe são apresentadas com a agilidade, flexibilidade e especialização técnica que as

mesmas requerem. Com isso, são cada vez mais gerais as leis produzidas pelo

Legislativo, o que amplia o espaço de discricionariedade a ser preenchido através

do exercício do poder normativo pela Administração Pública. A ela cabe a

concretização das disposições, dotadas de alto grau de generalidade e abstração,

contidas nas leis produzidas pelo Legislativo em políticas públicas, que

demandam a produção de normas mais específicas.

Assim, considerando a inexorabilidade da regulação por parte da

Administração Pública, há que se escolher, inicialmente, como será desempenhada

essa função. Vale dizer, a atividade regulatória será exercida pela chamada

Administração Pública direta, ou por entidades administrativas que compõem a

denominada Administração Pública indireta? De que maneira isso pode

influenciar a legitimidade democrática da regulação?

Mattos demonstra que, no Brasil, as experiências de regulação da

economia diretamente pelo Poder Executivo, típicas do Estado social- 6 “Na medida em que o Estado capitalista regulador se forma, em oposição à concepção de um Estado liberal ideal (...), essencialmente para a correção de falhas de mercado, aumenta a delegação legislativa para formulação de normas pelo Estado” (Ibid., p. 67).Ver também: Ibid., capítulo 2, pp. 69-108. 7 Sobre o tema ver: FARIA, José Eduardo. O direito na economia globalizada. São Paulo: Malheiros, 1999.

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desenvolvimentista, estiveram sempre associadas à práticas antidemocráticas 8.

Desde o Estado getulista, o que se pode observar é uma concentração do poder

decisório quanto à políticas públicas na figura do Presidente da República,

caracterizando o que O’Donnel denomina “democracia delegativa”9. O Presidente

assumia que recebia da população “um ‘cheque em branco’ para governar e

decidir qual é o ‘interesse público’ do país” 10. A obrigatoriedade de prestação de

contas perante os demais Poderes e instituições do Estado e a sociedade em geral 11 se apresentava, aos olhos do Presidente, como um obstáculo inconveniente à

plena autoridade que, por delegação, acabara de receber12.

Assim, a experiência institucional de um modelo de Estado marcado pela

concentração do poder decisório sobre a regulação na Administração Pública

direta – e, em última instância, no Presidente da República – constituiu-se, no

Brasil, com claros déficits de legitimidade democrática. Dada a consolidação dos

chamados “anéis burocráticos” 13, poucos eram os grupos de interesse que tinham

acesso aos processos decisórios em matéria de políticas públicas, e poucos eram

os mecanismos institucionalizados de controle democrático das decisões

tomadas14. Durante os regimes autoritários, esses déficits de legitimidade se

tornaram, obviamente, ainda maiores.

Segundo Mattos, porém, a redemocratização do Brasil, que culminou na

promulgação da Constituição de 1988, e a reforma do Estado da década de 1990

alteraram, significativamente, esse quadro. Com efeito, ao menos do ponto de

vista institucional, o “novo” modelo regulador de Estado, decorrente dessas

8 Ver a respeito: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., capítulo 3, pp. 109-154. 9 Cf. O’DONNEL, Guillermo. Democracia Delegativa. In: Revista Novos Estudos, n. 31, outubro de 1991. 10 Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador…, p. 23. 11 “Os partidos políticos e o Congresso são esvaziados enquanto canais de circulação do poder político, sendo o processo de formulação de políticas públicas centralizado na burocracia estatal interna ao Poder Executivo de forma fechada e pouco pública (a ‘caixa preta’ do Governo), onde as decisões administrativas são tomadas de forma não procedimentalizada e sob a justificativa geral de serem as decisões administrativas discricionárias e técnicas. Dessa forma, decisões sobre a regulação de setores da economia brasileira passam a ser revestidas de um caráter ‘apolítico’, como se decisões técnicas não implicassem escolhas de ordem política. E, na ausência de controles democráticos institucionalizados sobre a atuação dessa burocracia estatal, decisões discricionárias acabam por revelar decisões arbitrárias” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., pp. 23-24) 12 Cf. O’DONNEL, ob. cit., p. 31. 13 Ver a respeito: CARDOSO, Fernando Henrique. O modelo político brasileiro e outros ensaios. 4 ed. São Paulo: Rio de Janeiro: DIFEL, 1979; e MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., cap. 3. 14 Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., pp. 24-25.

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transformações, representaria, se comparado ao modelo anterior, um grande

avanço no sentido da legitimação das decisões da Administração Pública. Isso

porque, nele, estão previstos espaços de participação popular, resultantes da

combinação entre os direitos fundamentais de associação, livre acesso à

informação, liberdade de expressão e participação – garantidos pela Constituição

de 1988 – e mecanismos institucionalizados de participação nos processos de

tomada de decisão sobre a formulação de políticas públicas capazes de aumentar a

sujeição da Administração Pública ao controle democrático de sua atuação pela

sociedade. E, nesse sentido, Mattos sustenta que, na medida em que esses canais

de participação popular nas decisões da Administração Pública jamais existiram

no Brasil, o “Novo Estado Regulador” brasileiro seria, historicamente, do ponto

de vista institucional, o mais capaz de gerar decisões democraticamente

legítimas15.

As agências reguladoras estariam inseridas neste cenário. Segundo Mattos,

elas fariam parte da criação de “uma nova dinâmica política para a ação

regulatória do Estado”, pois “a formulação de políticas setoriais, que antes estava

restrita aos gabinetes ministeriais, aos conselhos institucionalizados no interior da

burocracia estatal da administração direta, subordinada às decisões políticas do

Presidente da República e ao jogo de barganhas políticas com o Congresso,

passou a ser feita de forma insulada por técnicos especializados, porém aberta ao

público afetado pelas normas editadas pelas agências” 16. A abertura a que Mattos

se refere seria garantida, principalmente, através de mecanismos, como as

audiências públicas e consultas públicas, normalmente institucionalizados nos

processos decisórios das agências reguladoras pela lei de sua criação. O autor

analisa, de forma mais detida, as consultas públicas, em razão de, conforme o

disposto na lei de criação da ANATEL (objeto de sua análise), serem as mesmas

obrigatórias para a produção de normas, enquanto que a realização de audiências

públicas depende de juízo dos dirigentes da agência.

15 “É possível afirmar que a adoção de mecanismos de consultas públicas e audiências públicas pode significar um avanço em termos de accountability do processo decisório sobre políticas setoriais no Brasil. Isso ocorreria na medida em que a ‘caixa-preta’ dos ministérios perde relevância no processo decisório, permitindo que outros grupos de interesse, que não apenas aqueles com acesso privilegiado aos canais de circulação de poder político na relação Presidente-Congresso, participem do processo decisório e tenham os seus interesses ouvidos no interior das novas agências” (Ibid., p. 25). 16 Ibid., p. 25.

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Ou seja, se, como visto no primeiro capítulo, aqueles que sustentam a

ausência de legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras o fazem

alegando que os dirigentes dessas entidades administrativas não foram

diretamente eleitos pelo povo e não estão sujeitos à accountability eleitoral – na

medida em que não podem nem mesmo ser exonerados pelo chefe do Poder

Executivo – os defensores de uma possível legitimidade de sua atividade de

produção de normas apontam, como resposta, a previsão de mecanismos

institucionalizados de participação popular nos processos decisórios das agências,

expressa nas leis de sua criação.

Mattos se filia a este último grupo, porém, com algumas – e relevantes –

diferenças. Isso porque o autor não se contenta apenas com a previsão, em lei, dos

instrumentos de participação popular. Defende ele que as condições efetivas de

deliberação nos espaços de participação popular institucionalizados nos processos

de tomada de decisão das agências reguladoras devem ser levadas em conta em

qualquer estudo que pretenda investigar a legitimidade das normas produzidas por

essas entidades 17. E isso porque, nestes canais de participação popular, estaria

contido um “potencial democrático” capaz de legitimar a atuação normativa das

agências reguladoras.

Nesse ponto, Mattos se vê obrigado a enfrentar um outro tipo de crítica, de

cunho sociológico. Mais especificamente, as críticas às agências reguladoras

provenientes de análises que não enxergam, nessas entidades administrativas, uma

estrutura institucional capaz de evitar a continuidade e permanência de padrões de

funcionamento patológico da Administração Pública, culturalmente incrustados na

atividade política brasileira, como o “clientelismo”, a “cordialidade” e o

“patrimonialismo”. Mattos se contrapõe às concepções herdeiras dessa tese, por

ele denominada – com base em Jessé Souza 18– “patrimonialista”, da realidade

17 Isso se justifica na medida em que, segundo o autor: “No contexto de redemocratização do Brasil e de valorização da sociedade civil e da esfera pública como elementos constitutivos da democracia e, assim, das condições de legitimidade de políticas públicas, as agências reguladoras surgem como uma possibilidade de descentralização da ação regulatória do Estado”, pois “os mecanismos de consultas públicas e audiências públicas adotados no interior das novas agências reguladoras podem ser tomados como a garantia de legitimidade do conteúdo da regulação, uma vez que por meio destes estariam sendo expressos e supostamente atendidos os interesses do público (i.e., grupos de interesse) afetados pelas políticas públicas definidas pela agência” (Ibid., loc. cit.). 18 Cf. SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora UNB, 2000.

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política brasileira, que, em última análise, assumem como modelo de Estado a ser

alcançado o tipo ideal do Estado liberal. Segundo o autor:

“O problema da tese dos estamentos burocráticos e do patrimonialismo estaria no fato de que levaria à conclusão, por um lado, de que ‘a nossa formação social seria defeituosa devido à permanente influência da herança estatal portuguesa’, que teria impedido ‘o país de livrar-se do atraso social e econômico’. E, por outro lado, conduziria a uma apologia do modelo de Estado liberal, como sendo aquele que mais próximo de uma burocracia estatal racional voltada para a garantia do funcionamento do mercado no capitalismo e das liberdades civis fundamentais na democracia. Só com o florescimento do Estado democrático racional seria possível o livre desenvolvimento do capitalismo industrial e a formação de uma sociedade politicamente capaz de exercer direitos e liberdades civis”. 19

Assim, para Mattos, tanto os juristas, limitados aos aspectos jurídico-

formais de constitucionalidade em termos de legalidade e separação dos poderes,

quanto os autores presos à tese patrimonialista da realidade política brasileira, não

percebem o potencial democrático contido nos canais de participação popular

previstos na estrutura institucional das agências reguladoras brasileiras.

Mesmo outras correntes analíticas que buscam justificar a criação e

atuação das agências, rejeitando, também, as análises ancoradas na tese

patrimonialista, o fazem, segundo Mattos, com base em argumentos como a

necessidade de estabilidade regulatória – ligada às idéias de credibilidade da ação

regulatória – ou de criação de mecanismos de controle e responsabilização

(accountability) posteriores da atuação dessas entidades20. Não haveria, portanto,

uma preocupação com o que Mattos chama de condições substantivas de

deliberação nos processos decisórios 21, ou seja, “as condições de funcionamento

dos mecanismos de participação pública institucionalizados com função de

legitimação de processos decisórios sobre o conteúdo de políticas públicas – as

condições de participação de grupos de pressão durante o processo e as condições

de deliberação” 22.

Por outro lado, aqueles que procuram deslocar o foco da análise para a

esfera pública e para o interior dos processos deliberativos parecem se vincular,

19 Ibid., p. 230. 20 “Nesses modelos, a accountability é pensada, por um lado, como controle de resultados da Administração (em termos de eficiência dos resultados), centrada no processo eleitoral (accountability vertical) como forma de responsabilização ou numa relação de freios e contrapesos entre os três Poderes entendida de forma por demais mecânica ou estática” (Ibid., p. 28). 21 Ibid., pp. 231-240. Mattos identifica essa carência de uma análise das condições substantivas de deliberação nos processos decisórios nas contribuições de Marcus André Melo, Guillermo O’Donnel, Luiz Carlos Bresser-Pereira e Fábio Wanderlei Reis. 22 Ibid., p. 235.

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segundo o entendimento de Mattos, a uma concepção republicana de democracia 23. Desse modo, embora a dinâmica da participação pública de grupos de interesse

na esfera pública seja incluída nesse tipo de análise, não se conseguiria, “dados os

traços de um republicanismo idealizado” 24 dar conta de problemas substantivos

de legitimidade democrática, pois não haveria uma preocupação com “o

funcionamento dos procedimentos decisórios internos à burocracia estatal

enquanto condições de institucionalização do conteúdo de políticas públicas no

interior do sistema na forma do conteúdo de normas (o conteúdo da regulação)”25.

Para Mattos, portanto, a compreensão adequada do potencial democrático

contido nos espaços de participação pública nos processos decisórios das agências

reguladoras e, conseqüentemente, da questão da legitimidade da atuação

normativa dessas entidades, demanda um modelo de análise capaz de dar conta da

complexidade das relações sociais próprias ao fenômeno do Estado regulador.

Segundo o autor:

“Tal modelo precisa permitir uma análise que seja capaz de avaliar o desenho institucional de órgãos reguladores e sua relação com o Poder Executivo (Administração direta), com o Poder Legislativo e com o Poder Judiciário para além de uma concepção liberal de democracia que assume uma relação estática entre tais poderes. Ao mesmo tempo, deve ser um modelo capaz de avaliar os procedimentos institucionalizados para tomada de decisão, assumindo tais procedimentos como meios de controle democrático e de deliberação pública sobre questões relevantes de ordem política , que estão na base da escolha de técnicas administrativas para regular a economia e a vida social – a definição do conteúdo da regulação. Por fim, tem que ser um modelo capaz de avaliar as condições de participação na esfera pública brasileira. Saber quem é o público (i.e. grupos de interesse) que está atuando junto às agências, influenciando o conteúdo da regulação, e como está se dando o processo decisório no interior das agências passou a ser importante para uma análise das condicoes de legitimidade democrática da formulação de políticas setoriais no Brasil pós-reforma do Estado” 26.

É em razão disso que Mattos adota, como marco normativo para a

investigação de sua hipótese, a teoria discursiva do Direito e da democracia de

Jürgen Habermas. A proposta habermasiana seria adequada a seus objetivos, na

medida em que – segundo seu entendimento – nela, a legitimidade do poder

decorreria da participação dos atores sociais nos processos institucionalizados de

23 Mattos se refere à posição de Leonardo Avritzer, principalmente em: AVRITZER, Leonardo. Democracy and the public space in Latin America. Princeton: Princeton University press, 2002. Ver: MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., pp. 241-243. 24 Ibid., p. 29. 25 Ibid., p. 242. 26 Ibid., pp. 27-28.

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deliberação pública e, desse modo, seria possível superar as limitações de análises

fundadas numa concepção – liberal – de democracia, que vêem no Poder

Legislativo o representante exclusivo dos interesses legítimos da sociedade.

Assim, as consultas públicas e audiências públicas poderiam garantir a

legitimidade do conteúdo da regulação, tendo em vista que, por meio destes

espaços públicos institucionalizados, os atores sociais afetados pelas políticas

definidas por uma agência reguladora podem participar diretamente do processo

de tomada de decisão dessas entidades, tornando-se capazes de fazer com que seus

interesses sejam levados em conta e influenciem os resultados desses processos.

Ou seja, se, “no plano jurídico-formal, a fonte de legitimidade da ação regulatória

do Estado continua sendo a lei setorial” aprovada pelo Poder Legislativo, “no

plano político, a fonte de legitimidade democrática das políticas formuladas pelas

agências reguladoras deixariam de ser apenas os interesses e as decisões do

Presidente da República (eleito) e dos congressistas (eleitos)” 27.

Mattos destaca que, no plano da teoria política, Habermas superaria o

debate entre as correntes liberal e republicana de democracia 28 ao propor o

conceito de democracia deliberativa 29, segundo o qual, a atividade política é

27 Ibid., p. 27. 28 Segundo Habermas: “Na perspectiva liberal, o processo democrático se realiza exclusivamente na forma de compromissos de interesses. E as regras da formação do compromisso, que devem assegurar a eqüidade dos resultados, e que passam pelo direito igual e geral ao voto, pela composição representativa das corporações parlamentes, pelo modo de decisão, pela ordem dós negócios, etc., são fundamentadas, em última instância, nos direitos fundamentais liberais. Ao passo que a interpretação republicana vê a formação democrática da vontade realizando-se na forma de um auto-entendimento ético-político, onde o çonteúdo da deliberação deve ter o respaldo de um consenso entre os sujeitos privados, e ser exercitado pelas vias culturais; essa pré-compreensão socialmente integradora pode renovar-se através da recordação ritualizada do ato de fundação da república” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 19). 29 “O modelo procedimental de democracia habermasiano permite, em certa medida, incorporar o debate sobre organização e ação de grupos de interesse que atuam segundo uma racionalidade estratégica (instrumental) com vistas a fins. E nesse sentido nos afastamos do idealismo excessivo republicano. Ao mesmo tempo, Habermas se afasta do individualismo metodológico inerente às teorias de rational choice e, ao trabalhar com o conceito de racionalidade comunicativa, dá ao seu modelo de democracia a capacidade de avaliar a atuação de grupos de interesse na esfera pública segundo outra perspectiva. É nesse ponto que a avaliação das condições de participação pública se torna relevante” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p. 201).Como explica o próprio Habermas: “a teoria do discurso assimila elementos de ambos os lados, integrando-os no conceito de um procedimento ideal para a deliberação e a tomada de decisão. Esse processo democrático estabelece um nexo interno entre considerações pragmáticas, compromissos, discursos de auto-entendimento e discursos da justiça, fundamentando a suposição de que é possível chegar a resultados racionais e eqüitativos. Nesta linha, a razão prática passa dos direitos humanos universais ou da eticidade concreta de uma determinada comunidade para as regras do discurso e as formas de argumentação, que extraem seu conteúdo normativo da base de validade do agir orientado pelo entendimento e, em última instância, da estrutura da comunicação

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entendida como um processo de conformação de preferências com vistas à

elaboração e institucionalização, no sistema jurídico-político, do conteúdo de uma

determinada política pública. E, nesse processo, as preferências assumidas

previamente pelos atores políticos podem ser alteradas durante a deliberação,

enquanto que aquelas preferências que se mantiverem devem ser externalizadas e

justificadas racionalmente. O que leva à conclusão de que, nos termos da

democracia deliberativa, “as condições para uma formação política racional da

vontade não devem ser procuradas apenas no nível individual das motivações e

decisões de atores isolados, mas também no nível social dos processos

institucionalizados de formação de opinião e de deliberação” 30. Em outras

palavras, isso significa que o conteúdo da regulação não seria, necessariamente,

resultado de “um processo de disputa no jogo de barganha para influenciar a

decisão sobre políticas públicas” 31, pois os processos institucionalizados de

formação de opinião e de deliberação também podem ser entendidos como

processos nos quais se busca criar e garantir condições de vida no interesse de

todos 32. É nessa mudança de perspectiva – da teoria da escolha racional

(individualismo metodológico) para a teoria do discurso – quanto aos processos

de formação da vontade política que Mattos identifica a principal vantagem

analítica da adoção da idéia de democracia deliberativa de Habermas33.

lingüística e da ordem insubstituível da socialização comunicativa” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 19) . 30 Ibid., p. 72. 31 Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador Brasileiro..., p. 191. 32 Nas palavras de Habermas: “(…) a tarefa da política não consiste apenas em eliminar regulamentações ineficientes e antieconômicas, mas também em criar e garantir condições de vida, no interesse simétrico de todos” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – vol. II..., pp. 69-70). Segundo o autor, os processos políticos podem ser considerados “arranjos que influenciam as preferências dos participantes, pois eles selecionam os temas, as contribuições, as informações e os argumentos, de tal modo que somente os que são ‘válidos’ conseguem atravessar, em caso ideal, o filtro das negociações eqüitativas e dos discursos racionais, assumindo importância para as tomadas de resolução” (Ibid., p. 72.). 33 De fato, o grande ganho teórico para a análise da questão da legitimidade democrática da atuação das agências reguladoras identificado por Mattos no modelo habermasiano reside no fato de que este considera não apenas a dimensão sistêmica, mas também “a ação da sociedade civil e a formação (e transformação) de opiniões (ou preferências) no plano da esfera pública” (Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador Brasileiro..., p. 156). Ou seja, não apenas o desenho institucional e os procedimentos decisórios institucionalizados, mas as “condições de participação no plano da organização da sociedade civil e na esfera pública” são relevantes para se aferir a legitimidade de uma decisão por parte da Administração Pública e, mais especificamente, das agências reguladoras (Ibid., loc. cit.). Mattos ressalta que, em Habermas, “esses dois tipos de condições se comunicam. Condições sistêmicas de maior participação pública e deliberação podem estimular a ação de grupos de pressão desde a sociedade civil. Ao mesmo tempo, maior atividade e organização de grupos engajados no debate na esfera pública sobre o conteúdo de políticas públicas pode levar à radicalização democrática dos mecanismos de

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Tal concepção de democracia, como visto no item 3.3.c, leva em conta a

atuação de grupos de interesse para além das instituições que formam o núcleo do

sistema político-jurídico, incluindo os processos informais de formação do poder

comunicativo nas esferas públicas. A análise do problema da legitimidade

democrática do conteúdo da regulação através do modelo de democracia

deliberativa busca investigar, pois, a maneira como funciona a circulação de poder

político juridicamente regulada e as formas pelas quais o poder comunicativo

pode ser convertido em poder administrativo.

A partir do modelo habermasiano, é possível afirmar que problemas de

legitimação numa dada sociedade podem surgir quando se verifica a existência de

uma esfera pública pouco ativa ou quando há uma participação privilegiada de

certos grupos políticos em detrimento de outros. Isso interessa a Mattos na medida

em que “a esfera pública e as condições de atuação de atores relevantes na

sociedade civil passam a ter um lugar privilegiado no modelo de análise da

organização social” 34. E, desse modo, a investigação das condições efetivas da

participação pública através de consultas públicas e audiências públicas nos

processos de tomada de decisão das agências reguladoras passa a constituir uma

etapa fundamental para a avaliação de tais mecanismos como instrumentos de

legitimação democrática das decisões das agências.

Vale dizer: as consultas públicas e audiências públicas se apresentariam

como instrumentos potencialmente aptos a legitimar democraticamente a atuação

das agências reguladoras, na medida em que fossem capazes de reproduzir, no

processo decisório das agências reguladoras, um ambiente discursivo capaz de

gerar resultados que possam ser considerados legítimos – racionais – pelos

participantes. A discussão sobre a legitimidade democrática da atuação das

agências reguladoras deixa, assim, o campo da adequação jurídico-formal aos

princípios da legalidade e da separação dos Poderes e passa a se concentrar nas

participação institucionalizados” (Ibid., loc. cit.). Desse modo, passam a integrar o modelo teórico de análise da legitimidade democrática “o modo como se dá o processo decisório sobre a definição do conteúdo da regulação, considerando os atores que participam de processos decisórios e os atores afetados pelas normas editadas, e a avaliação dos efeitos desses processos decisórios sobre os interesses que estão em jogo” (Ibid., pp. 245-246). 34 Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador Brasileiro..., p. 30.

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condições efetivas de deliberação nos processos decisórios das agências por meio

dos mecanismos institucionalizados de participação popular 35.

Há, pois, uma aposta no sentido de que a teoria habermasiana forneceria os

critérios necessários para se apontar obstáculos e potenciais democráticos no

desenho institucional dos órgãos reguladores e nos procedimentos decisórios

sobre o conteúdo da regulação. Isso tornaria possível aperfeiçoar os

procedimentos administrativos, para que a ação regulatória do Estado fosse

permeada pela participação pública através de processos de deliberação racional

sobre o conteúdo das políticas que ingressarão no sistema jurídico por meio de

normas. E, assim, poder-se-ia examinar, efetivamente, a legitimidade democrática

da atuação normativa de uma agência reguladora 36.

Para explorar de forma mais específica essa hipótese, Mattos analisa a

estrutura institucional e o funcionamento de uma das agências reguladoras criadas

no contexto da reforma do Estado da década de 1990, a Agência Nacional de

Telecomunicações – ANATEL 37. Inicialmente, o autor explicita, do ponto de

vista do desenho institucional, as formas de controle da autonomia decisória da

ANATEL, previstas na sua lei de criação (Lei Geral de Telecomunicações – LGT,

Lei n. 9472/97) tanto no plano da separação dos poderes (accountability

horizontal), como no plano da participação popular na Administração 35 Para Mattos, Habermas amplia, pois, o debate sobre accountability da atuação da burocracia estatal (poder admnistrativo), na medida em que, a partir do seu modelo deliberativo de democracia, seria possível falar mecanismos de accountability vertical mediante participação pública direta. Ou seja, mecanismos de accountability vertical não limitados aos processos eleitorais. Assim, nas palavras de Mattos: “Ao falar em accountability vertical, estamos falando, a partir da noção de deliberação no modelo habermasiano de democracia, em condições de legitimidade dos processos decisórios e não apenas em responsabilização como controle a posteriori de resultados (em termos de eficiência da decisão ou dos efeitos produzidos). Entendo que essa ampliação do conceito de accountability é fundamental para compreender o potencial democrático dos mecanismos de participação pública – enquanto procedimentos que fazem parte do processo decisório sobre o conteúdo da regulação – introduzidos no modelo de agências reguladoras no Brasil” (Ibid., p. 202). 36 Mattos assevera que a análise das condições de legitimidade do processo decisório sobre o conteúdo da regulação depende de um modelo capaz de dar conta de ambas as faces do Direito identificadas por Habermas: “a face sistêmica, que institucionaliza e garante direitos e procedimentos de participação pública; e a face que o torna meio comunicativo de demandas que nascem na esfera pública por meio da ação de grupos de interesse organizados na sociedade civil e que, mediante instrumentos de participação pública, podem ser internalizadas como conteúdo de normas no interior do sistema. Nesse segundo sentido, o Direito é parte constitutiva da caixa de ressonância que a esfera pública pode ser para tornar público o debate sobre questões relevantes em matéria de políticas públicas” (Ibid., p. 248). 37 Segundo Mattos, tal estudo serve “como forma de avaliação do potencial democrático da ANATEL enquanto agência reguladora adotada no Brasil na década de 1990. Ao mesmo tempo, fornece elementos para pensar, desde uma perspectiva teórica da democracia procedimental, as condições de legitimidade democrática do conteúdo da regulação no contexto do novo Estado regulador no Brasil” (Ibid., p. 249).

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(accountability vertical deliberativa). Num segundo momento, são apresentados

os resultados de uma pesquisa empírica sobre o funcionamento das consultas

públicas 38 realizadas nos processos decisórios da ANATEL, que busca avaliar,

também, as condições de participação e deliberação nesses espaços públicos

institucionalizados. O autor tem por objetivo identificar quem são os atores que

fazem uso das consultas públicas para influenciar o processo normativo da

ANATEL; quais são os tipos de interesse defendidos por esses atores ao

participarem de consultas públicas; qual o nível de incorporação das propostas dos

atores no conteúdo das normas editadas pela ANATEL; e se há ou não

justificativas por parte da ANATEL para incorporar ou rejeitar as propostas 39.

É dessa forma, portanto, que Mattos procura apontar os potenciais e os

déficits democráticos do modelo de agências reguladoras dotadas de autonomia

decisória, tendo como caso específico a ANATEL. Segundo o autor:

“(...) o estudo realizado no caso da ANATEL permite chegar a conclusões sobre (a) o grau de autonomia decisória da agência e as condições de controle democrático da atuação da agência no plano dos três poderes (accountability horizontal); (b) a efetividade dos mecanismos de participação pública no funcionamento da ANATEL em termos de condições de deliberação sobre o conteúdo da regulação (mecanismos deliberativos de accountability vertical); e (c) as condições de participação de grupos de interesse no processo de formulação do conteúdo da regulação (condições de accountability deliberativa vertical na esfera pública)”. 40

Essas conclusões a que chega Mattos podem ser resumidas da seguinte

maneira:

(a) Quanto aos mecanismos de accountability horizontal, o autor

demonstra a existência de várias formas de controle da atuação da ANATEL pelos

Poderes Executivo (Administração Pública direta), Legislativo e Judiciário. Em

relação ao Poder Legislativo, as condições de controle estão ligadas,

principalmente, aos mecanismos de prestação de contas das atividades do

Conselho Diretor, que estão previstos tanto na LGT quanto na Constituição de

1988. A LGT também prevê que os indicados para o Conselho Diretor da

ANATEL sejam aprovados pelo Senado Federal.

38 A escolha de Mattos em pesquisar apenas as consultas públicas se justifica na medida em que “a consulta pública é o principal mecanismo de participação pública no processo decisório da ANATEL na definição do conteúdo da regulação. Isso porque está diretamente associado à função normativa da agência” (Ibid., p. 262), conforme disposto no art. 42 da Lei n. 9.472/97 (Lei geral de Telecomunicação – LGT). 39 Ibid., p. 249. 40 Ibid., loc. cit..

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No que diz respeito ao controle judicial dos atos administrativos –

inclusive os normativos – da ANATEL, Mattos indica que seria possível

estabelecer uma relação entre as condições de deliberação sobre o conteúdo da

regulação e os limites da revisão judicial, o que permitiria avaliar objetivamente o

mérito das decisões administrativas da ANATEL. Isto é, sem substituir o

conteúdo da regulação por sua decisão, o Poder Judiciário poderia invalidar as

normas editadas por ausência ou insuficiência de justificativas racionais

apresentadas sobre os motivos do conteúdo da regulação. Contudo, não é isso que

se tem observado na prática. Com efeito, sob “o ‘dogma da discricionariedade

administrativa’ e no ‘lugar-comum retórico’ que o conceito de interesse público

representa em parte relevante da doutrina brasileira em matéria de direito público,

o Judiciário acaba por ter o seu papel diminuído” 41 no controle do mérito dos atos

administrativos.

Por fim, quanto ao controle da atuação da ANATEL pelo Poder Executivo,

vários mecanismos de accountability horizontal também são previstos na

legislação. Em primeiro lugar, há uma divisão de competências entre as matérias

que dizem respeito à definição da política governamental de telecomunicações,

atribuída à Administração Pública, e as matérias que cabem à ANATEL definir ou

especificar na execução dessa política pré-definida pelo governo. Isso implica a

necessidade de prestação de contas por parte da ANATEL à Administração direta

quanto à execução da política governamental de telecomunicações, permitindo,

inclusive, a possibilidade de demissão de membros do Conselho Diretor caso esta

não estiver sendo cumprida. Além disso, o Presidente da República tem o poder

de indicar os nomes dos integrantes do Conselho Diretor da ANATEL.

(b) Em relação aos mecanismos de participação popular da ANATEL

(mecanismos deliberativos de accountability vertical), Mattos afirma que, do

ponto de vista do seu desenho institucional, os mesmos permitem a deliberação

pública sobre o conteúdo da regulação, tendo em vista que possibilitam que partes

afetadas registrem seus argumentos nos processos decisórios da ANATEL 42. As

consultas públicas se destacam como mecanismos de accountability vertical mais

relevante, pois, além de viabilizarem a deliberação acerca do conteúdo das normas

a serem editadas e a defesas dos interesses das partes afetadas, sua realização é,

41 Ibid., p. 288. 42 Ibid., pp. 293-294.

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segundo a LGT, obrigatória para o exercício de função normativa por parte da

ANATEL. Os mecanismos da audiência pública e do procedimento de denúncia

ou reclamação, embora sejam importantes para o controle da execução de

políticas públicas definidas pela agência e para a resolução de conflitos, não são

de realização obrigatória pela agência. No caso da denúncia, a iniciativa parte

daqueles interessados na instauração de um processo administrativo. Já no caso da

audiência pública, sua realização depende de juízo de conveniência do

administrador43.

Porém, na prática, o desempenho de tais mecanismos na função de

“controle substantivo” dos argumentos e justificativas apresentados à ANATEL

nos processos analisados por Mattos apresenta algumas falhas que são entendidas

pelo autor como “déficits democráticos procedimentais”. Isso porque a idéia de

controle substantivo, segundo Mattos, se caracterizaria da seguinte maneira: (i)

pela possibilidade de contraditório e amplo acesso (por intervalo de tempo

definido) aos argumentos dos atores que se manifestam em consultas públicas, a

fim de aumentar a discussão pública de motivos e efeitos almejados no conteúdo

da regulação a ser definida; (ii) pela fundamentação das decisões do Conselho

Diretor, explicando as razões da aceitação e da recusa dos argumentos contidos

nas manifestações dos participantes; (iii) pela realização de audiências públicas

conjuntamente com consultas públicas, gerando foros deliberativos durante o

prazo em que a minuta do texto da norma a ser editada esteja em discussão 44.

Mas os resultados da pesquisa realizada por Mattos, considerando todas as

consultas públicas realizadas na ANATEL, entre 1998 e 2003, sobre o tema

“universalização de serviços de telecomunicações e questões correlatas”,

demonstram, que: (i) somente em três das dez consultas públicas pesquisadas

houve a possibilidade de contraditório e amplo acesso aos argumentos dos demais

atores participantes; (ii) em apenas uma das consultas a ANATEL formalizou

resposta aos atores que se manifestaram; e (iii) em apenas quatro consultas

públicas o Conselho Diretor da ANATEL entendeu por bem realizar, também,

audiência pública no processo de elaboração das normas regulatórias 45.

43 Ibid., pp. 294-295. 44 Ibid., pp. 295-296. 45 Ibid., loc. cit..

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O controle substantivo dos procedimentos representa, para Mattos, um

ideal a ser perseguido para o aperfeiçoamento democrático-institucional das

agências reguladoras. Pois o cumprimento das três condições por ele elencadas,

em última análise, tem por objetivo viabilizar um maior controle da atuação

normativa das agências, não só em termos de accountability vertical como,

também, de accountability horizontal.

(c) Quanto às condições de participação de grupos de interesse no processo

de formulação do conteúdo da regulação, é possível afirmar que as consultas

públicas da ANATEL têm sido efetivamente utilizadas não apenas por

associações ou empresas de telecomunicações, mas também por outros atores

sociais. E isso, segundo Mattos, por si só, “comprova que esse tipo de mecanismo

de participação tem o potencial democrático de ampliar a participação de outros

atores da sociedade civil na deliberação sobre o conteúdo da regulação, que não

apenas aqueles que sempre fizeram parte da ‘tríplice aliança’ ou que tiveram

acesso privilegiado aos ‘anéis burocráticos’ do Estado” 46. Conclusão reforçada

pelo fato de que interesses distintos daqueles das empresas reguladas são levados

à ANATEL, embora, quantitativamente, o índice de representação destes nas

propostas ventiladas nas consultas ainda seja predominante em face da

representação daqueles.

Por outro lado, a predominância quantitativa das propostas que

representam os interesses das empresas reguladas 47 não significa,

necessariamente, predominância de influência dessas empresas sobre o processo

decisório. Em primeiro lugar, porque não há uma contraposição obrigatória os

interesses das empresas e os interesses classificados por Mattos como “difusos”48.

46 Ibid., p. 298. 47 “A categoria interesse empresarial privado é definida por demandas de alteração do texto das minutas de normas cujos argumentos e justificativas apresentados apontam para efeitos pretendidos que beneficiam as empresas atuantes no setor de telecomunicações ou em setores correlatos” (Ibid., p. 277). 48 “A categoria de interesses difusos é definida por demandas que têm por base argumentos e justificativas para alteração de normas visando efeitos que beneficiam uma coletividade de atores. Defesa de direitos dos consumidores e do meio ambiente são exemplos típicos. Contudo, a defesa de direitos e interesses que possam beneficiar grupos coletivos mais restritos também se enquadram nessa categoria. É o caso dos interesses de portadores de deficiência física, de população de baixa renda ou sem renda, de população de determinadas regiões do país e de trabalhadores. Por sua vez, a defesa de direitos e interesses mais amplos, como a universalização de serviços (incluindo aqui a ampliação dos tipos de serviços com metas de universalização e dos setores a terem serviços universalizados), o desenvolvimento tecnológico nacional, a universalização de acesso a informações (incluindo setores específicos como saúde e educação), a

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Em segundo lugar, porque, de acordo com o conceito habermasiano de

democracia deliberativa – no qual Mattos se apóia –, mesmo quando “os

interesses difusos defendidos contrariarem interesses empresariais privados (e

vice-versa) é possível supor que a deliberação pública sobre as opções que estão

em jogo crie pressão (política) para que uma decisão seja tomada pelo órgão

regulador, sendo racionalmente justificada com base nos argumentos apresentados

e efeitos almejados com a regulação a ser estabelecida” 49. Em terceiro lugar,

porque não existe discrepância entre os índices de incorporação de sugestões que

veiculam interesses privados das empresas reguladas e de sugestões que

representam interesses difusos – o índice de incorporação destas é, inclusive,

superior ao daquelas.

Assim, o simples fato de propostas que representam interesses difusos

conseguirem circular nos processos decisórios da ANATEL é suficiente, segundo

Mattos, para indicar a existência de um potencial democrático contido no

mecanismo das consultas públicas 50.

Mattos destaca, ainda, outros resultados que chamam a atenção, como, por

exemplo, o baixo índice de participação de associações de defesa do consumidor e

de outros organismos não governamentais. Ressalva, porém, que as causas para

isso podem ser variadas: falta de conhecimento desses mecanismos de

participação; falta de recursos como tempo, dinheiro e informação; falta de

confiança na efetividade do uso desses mecanismos na ANATEL etc. Uma das

hipóteses que poderiam ser levantadas, segundo o autor, é a de que os déficits

democráticos apontados no funcionamento desses mecanismos (especialmente a

ausência de resposta formal às manifestações e a impossibilidade de contra-

argumentação no processo) possam ter sido reconhecidos pelos representantes de

interesses difusos, que, desse modo, teriam perdido a confiança na efetividade das

consultas públicas 51.

O último dado relevante diz respeito ao baixo índice geral de incorporação

das propostas dos participantes das consultas públicas. O que também está aberto

a diferentes hipóteses explicativas. Por exemplo, seria plausível cogitar, como faz

democratização de controle da aplicação de recursos na universalização de serviços, também foram incluídos na categoria de interesses difusos” (Ibid., loc. cit.). 49 Ibid., p. 299. 50 Ibid., loc. cit.. 51 Ibid., pp. 299-300.

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Mattos, que a ANATEL não estaria assumindo seriamente a importância dos

mecanismos de participação pública para sua atuação. E, se, caso testada, essa

hipótese não fosse falsificada, isso significaria um déficit de legitimidade

democrática na formulação do conteúdo da regulação52.

Em síntese, a conclusão geral a que chega Mattos é a de que “os

mecanismos de participação pública adotados na ANATEL têm um potencial

democrático” 53, considerando o sentido que foi por ele atribuído a esse conceito

com base na teoria deliberativa da democracia de Habermas e também as

características da atividade regulatória do Estado brasileiro antes das reformas da

década de 1990. Esse potencial democrático, porém, “não se realizou

completamente ou pode não se realizar, tendo em vista os déficits democráticos

apontados”54.

Nas próximas seções, apontarei, segundo meu entendimento, as vantagens

analíticas da adoção da proposta teórica de Mattos para o tratamento do tema da

legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras brasileiras (2), bem

como o que julgo serem os pontos problemáticos de tal proposta (3).

4.2 Vantagens analíticas da proposta de Mattos

Não há dúvidas de que a proposta teórica de Mattos representa uma

contribuição relevante para o debate sobre a legitimidade da atuação normativa

das agências reguladoras brasileiras. A meu ver, trata-se, a rigor, da contribuição

mais relevante já produzida no meio jurídico sobre o tema. Isso porque, por um

lado, abre espaço para uma busca de parâmetros normativos para o conceito de

legitimidade que estejam situados além dos limites formais dos textos normativos

jurídicos. Por outro, procura testar tal conceito face à facticidade dos processos

decisórios das agências reguladoras, operacionalizando-os através da construção

de um modelo de análise empírica, a fim de produzir conhecimento capaz de

explicar e atuar sobre a realidade.

52 Ibid., p. 300. 53 Ibid., loc. cit.. 54 Ibid., loc. cit..

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Nesse sentido, Mattos evidencia – ao mesmo tempo em que busca superar

– as insuficiências do padrão de pesquisa consolidado entre os juristas brasileiros

sobre a questão da legitimidade do poder normativo das agências reguladoras. Os

estudos que seguem a este padrão se limitam a uma análise estritamente jurídico-

formal do tema, segundo a qual tanto a legitimidade quanto a ilegitimidade da

atuação normativa das agências decorrem da “melhor” interpretação que se faça

dos princípios constitucionais da legalidade e da separação dos poderes.

Mattos, ao contrário, parte do fato da inexorabilidade da regulação da

economia pelo Estado nas sociedades capitalistas modernas através da atribuição

crescente de funções normativas à Administração Pública. Isso faz com que

tentativas de interpretação jurídicas “puras” dos princípios constitucionais da

separação de Poderes e da legalidade, com base num paradigma liberal de

democracia, mostrem-se, desde logo, inadequadas para a compreensão do

problema.

Além disso, por meio da comparação entre os modelos institucionais do

Estado brasileiro antes e depois das reformas da década de 1990, o autor

demonstra que o desenho institucional do que denomina “novo Estado regulador”

representa um ganho democrático em relação ao modelo de Estado anterior,

principalmente em razão de prever mecanismos de participação da sociedade nas

decisões da Administração Pública. Com isso, deixa claro que o foco das

investigações sobre o tema deve estar em saber se e como esses mecanismos de

participação pública podem, efetivamente, cumprir a função para a qual foram

idealizados, isto é, de legitimar, democraticamente, a atividade de produção

normativa da Administração Pública.

É com esse objetivo que Mattos investiga a estrutura institucional da

ANATEL e o funcionamento das consultas públicas por ela realizadas. Sua aposta

é a de que, com base no conceito de democracia deliberativa, seria possível

construir um modelo de análise capaz de apontar déficits e potenciais

democráticos nos processos de produção normativa dessa entidade.

A meu ver, esta última etapa da elaboração de sua proposta, por seu caráter

inovador e ousado, merece ser colocada à prova através da problematização de

seus próprios pressupostos. Na próxima seção, pretendo, pois, questionar três

aspectos da apropriação da teoria de Habermas por Mattos para a construção de

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seu modelo de análise acerca da estrutura institucional e funcionamento da

ANATEL.

4.3 Aspectos problemáticos da proposta de Mattos

As críticas que pretendo explorar foram formuladas a partir das

proposições de Mattos sobre as características necessárias a “um modelo de

análise que dê conta da complexidade das relações sociais próprias do fenômeno

do Estado regulador” 55. Segundo o autor, tal modelo deve: (a) ser capaz de

avaliar o desenho institucional de órgãos reguladores e sua relação com os três

Poderes do Estado para além de uma concepção liberal de democracia; (b)

permitir uma avaliação dos procedimentos de controle democrático e de

participação pública institucionalizados para tomada de decisão sobre o conteúdo

da regulação; (c) ser capaz de avaliar as condições de participação na esfera

pública brasileira 56. Mattos assume que a teoria discursiva do Direito e da

democracia de Habermas seria capaz de informar, normativamente, a construção

de um modelo de análise que reunisse essas três características.

Com base nisso, questionarei até que ponto: (a) o modelo deliberativo de

democracia de Habermas pode ser utilizado para se avaliar o desenho institucional

das agências reguladoras e sua relação com os três Poderes do Estado; (b) o

conceito de legitimidade sustentado por Habermas pode ser operacionalizado

empiricamente para avaliar os processos decisórios das agências reguladoras; (c) o

conceito habermasiano de esfera pública dá conta da realidade política brasileira.

4.3.1 Legitimação democrática, separação dos poderes e participação popular

Mattos reconhece que a atividade regulatória do Estado tem como base,

em grande medida, o aumento da delegação da função legislativa por parte do

Poder Legislativo ao Poder Executivo. O que pode ser explicado em razão da

55 Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p. 27. 56 Ibid., pp. 27-28.

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crescente complexidade das relações sociais nas sociedades capitalistas

contemporâneas. Essa delegação legislativa, porém, é objeto de críticas que têm

como fundamento uma concepção liberal do princípio da separação dos Poderes

do Estado. No caso específico das agências reguladoras, essas críticas são

fortalecidas pelo fato de que as decisões tomadas pelos dirigentes que compõem

os Conselhos Diretores dessas entidades, e não são eleitos pelo voto popular,

quanto ao conteúdo das normas de regulação por elas elaboradas, não podem ser

revistas pelo chefe do Poder Executivo, democraticamente eleito, e, ainda, pela

relativa estabilidade de que gozam tais dirigentes em seus cargos durante o

cumprimento de seus mandatos.

Para responder a esse tipo de crítica, Mattos se apóia na concepção

habermasiana de democracia deliberativa, segundo a qual, nas sociedades

capitalistas contemporâneas, a soberania popular é procedimentalizada 57, devendo

ser interpretada de modo intersubjetivista58. O conceito de democracia deliberativa

pressupõe, pois, a imagem de uma sociedade descentrada 59, e não centralizada no

Estado, o que implica um deslocamento da fonte de legitimação do poder

administrativo: se, de uma perspectiva liberal, o centro do qual emana o poder

político legítimo está localizado no parlamento, da concepção deliberativa de

democracia, o poder político legítimo surge, sob a forma de poder comunicativo,

através dos procedimentos informais de deliberação dos atores da sociedade civil

na esfera pública.

57 “A soberania do povo retira-se para o anonimato dos processos democráticos e para a implementação jurídica de seus pressupostos comunicativos pretensiosos para fazer-se valer como poder produzido comunicativamente. Para sermos mais precisos: esse poder resulta das interações entre a formação da vontade institucionalizada constitucionalmente e esferas públicas mobilizadas culturalmente, as quais encontram, por seu turno, uma base nas associações de uma sociedade civil que se distancia tanto do Estado como da economia” (Ibid. p. 24). 58 “A identidade da comunidade jurídica que se organiza a si mesma é absorvida pelas formas de comunicação destituídas de sujeito, as quais regulam de tal modo a corrente da formação discursiva da opinião e da vontade, que seus resultados falíveis têm a seu favor a suposição da racionalidade” (Ibid. loc. cit..). 59 “A teoria do discurso conta com a intersubjetividade de processos de entendimento, situada num nível superior, os quais se realizam através de procedimentos democráticos ou na rede comu-nicacional de esferas públicas políticas. Essas comunicações destituídas de sujeito - que acontecem dentro e fora do complexo parlamentar e de suas corporações - formam arenas nas quais pode acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de matérias relevantes para toda a sociedade e necessitadas de regulamentação. O fluxo comunicacional que serpeia entre formação pública da vontade, decisões institucionalizadas e deliberações legislativas, garante a transformação do poder produzido comunicativamente, e da influência adquirida através da publicidade, em poder aplicável administrativamente pelo caminho da legislação” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., pp. 21-22).

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137

Assim, é com base nessa idéia – qual seja, a de que a legitimidade surge do

poder comunicativo gerado nos procedimentos deliberativos, que remetem, em

última análise, a formas de comunicação destituídas de sujeito, que acontecem

tanto dentro do parlamento, quanto fora dele, na rede comunicacional de esferas

públicas políticas – que Mattos entende ser possível superar as críticas dirigidas à

legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras que têm por

fundamento uma concepção liberal de democracia.

De fato, tais críticas se encontram ainda muito atreladas a uma noção de

separação dos Poderes na qual a soberania popular, fonte da legitimação do poder

estatal, é representada de forma monopolística pelo parlamento, o que subestima a

capacidade de autodeterminação democrática das pessoas que deliberam nas esferas

públicas informais, isto é, sua capacidade de influenciar uma formação política

racional da vontade. Para a teoria deliberativa da democracia, no entanto, “a

lógica da divisão dos poderes só faz sentido se a separação funcional garantir, ao

mesmo tempo, a primazia da legislação democrática e a retro-ligação do poder

administrativo ao comunicativo” 60. Ou seja, os cidadãos politicamente

autônomos têm que poder se considerar autores do Direito ao qual obedecem

enquanto sujeitos privados.

Porém, ao se concentrar na dimensão deliberativo-procedimental do

modelo habermasiano de legitimação democrática, Mattos deixa de explicitar

pontos importantes do raciocínio de Habermas e subestima a importância que as

corporações parlamentares – o Poder Legislativo – exercem na teoria discursiva

do Direito e da democracia.

Normativamente, o modelo habermasiano de política deliberativa

pressupõe diferenciações de tipos de argumentos e discursos inerentes ao processo

de formação da opinião e da vontade política, que estão diretamente ligadas à

reconstrução discursiva das instituições do Estado de Direito moderno – ver item

3.3.b. Nesse aspecto, vale aprofundar um pouco mais as implicações dessa idéia

para a noção de separação dos Poderes, que introduzi no item 3.3.b.

A reconstrução discursiva da auto-compreensão do Estado de Direito

moderno, empreendida por Habermas nos capítulos 3 e 4 de Direito e Democracia

entre Facticidade e Validade, nada mais é, em última análise, do que a

60 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 233.

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reconstrução da auto-compreensão normativa do modelo liberal de Estado, isto é,

das representações normativas reconhecidas sobre direitos individuais e

instituições político-jurídicas resultantes da tradição do pensamento iluminista no

qual se funda a modernidade. E a idéia de separação dos Poderes, segundo a

concepção liberal clássica, é explicada através da seguinte diferenciação das

funções do Estado: “enquanto o legislativo fundamenta e vota programas gerais

e a justiça soluciona conflitos de ação, apoiando-se nessa base legal, a

administração é responsável pela implementação de leis que necessitam de

execução” 61.

Mas, para Habermas, a separação dos Poderes do Estado de Direito moderno

não pode ser explicada suficientemente a partir da experiência concreta do Estado

liberal 62. Daí porque propõe ele uma análise dos princípios do Estado de Direito na

qual os mesmos não estejam vinculados à qualquer ordem jurídica histórica e nem a

uma forma concreta de institucionalização. Nesse sentido, o fato de se reconhecer a

separação abstrata de três funções do Estado não quer dizer que, no plano

institucional, tais funções sejam concretizadas num igual número de organizações63.

Pelo contrário, Habermas deixa claro que os princípios do Estado de Direito, dentre eles o

da legalidade e controle judicial e parlamentar da administração – que esclarece o sentido

nuclear da separação dos Poderes 64 –, quando concretizados no nível organizatório das

instituições políticas ou do processo político, assumem diferentes formas. E, desse modo, o

fato de que uma determinada organização institucional concreta não obedeça ao esquema

clássico da separação dos Poderes não quer dizer, necessariamente, que ela seja contrária à

idéia de separação dos Poderes 65.

61 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 232. 62 Segundo Habermas, a concepção liberal da separação dos Poderes do Estado se apóia numa inter-pretação estreita do conceito de lei, que perde de vista sua gênese democrática: “Ela carateriza a lei através de princípios semânticos gerais e abstratos e considera preenchido o princípio da legalidade da administração, quando a execução administrativa se limitar rigorosamente a uma concretização do conteúdo normativo geral, de modo adequado às circunstâncias. Na linha dessa interpretação, a lei não deve a sua legitimidade ao processo democrático, mas à sua forma gramatical. O encurtamento semântico propõe uma interpretação da divisão de poderes, seguindo uma lógica de subsunção. Segundo esta linha, a ligação do legislativo à constituição e a ligação do executivo à lei medir-se-ia pela subordinação lógica dos conteúdos normativos mais específicos aos mais gerais: medidas, estatutos e decretos têm que subsumir-se à lei, do mesmo modo que as leis simples se subordinam à norma constitucional”. (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 236). 63 Ibid., p. 237. 64 Ibid., p. 216. 65 Ibid., p. 240, nota de rodapé n. 63.

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Na verdade, a avaliação das formas concretas de institucionalização de

princípios que informam a idéia de separação dos poderes, demanda que se assuma o

ponto de vista abstrato de análise da utilização dos diferentes tipos de argumentos,

bem como das correspondentes formas de comunicação que esses tipos de

argumentos comportam. “O olhar tem que se dirigir mais aos discursos e negociações

nos quais se forma a vontade do legislador e ao potencial de argumentos pelos quais

as leis se legitimam” 66.

Desse modo, na perspectiva da teoria do discurso, as funções da produção de

leis, da Justiça e da administração podem ser diferenciadas de acordo com as formas

de comunicação e potenciais de argumentos correspondentes 67. Em resumo, leis

regulam a transformação do poder comunicativo em administrativo, na medida em

que: i) são elaboradas de acordo com um processo democrático; ii) fundamentam

uma abrangente proteção legal garantida por uma Justiça independente; e iii)

subtraem da administração implementadora o tipo de argumentos normativos que

sustentam as decisões legislativas e judiciais 68. Segundo Habermas:

“Esses argumentos normativos fazem parte de um universo no qual o legislativo e a jurisprudência distribuem entre si o trabalho de fundamentação das normas e o da sua aplicação. Uma administração limitada a discursos pragmáticos não pode mover nada nesse universo com contribuições próprias; ao mesmo tempo, ela extrai dele as premissas normativas que ela precisa colocar na base de suas próprias decisões teleológicas informadas empiricamente”. 69

Ou seja, “do ponto de vista da lógica da argumentação, a separação entre as

competências de instâncias que fazem as leis, que as aplicam e que as executam,

resulta da distribuição das possibilidades de lançar mão de diferentes tipos de

argumentos e da subordinação de formas de comunicação correspondentes, que

estabelecem o modo de tratar esses argumentos” 70.

E, de acordo com essa idéia, “somente o legislador político tem o poder

ilimitado de lançar mão de argumentos normativos e pragmáticos, inclusive os

constituídos através de negociações eqüitativas, isso porém, no quadro de um

procedimento democrático amarrado à perspectiva da fundamentação de normas” 71.

A administração não constrói (função do legislador), nem reconstrói (função da

66 Ibid., p. 238. 67 Ibid., loc. cit.. 68 Ibid., loc. cit.. 69 Ibid., pp. 238-239. 70 Ibid., p. 239. 71 Ibid. loc. cit..

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Justiça), argumentos normativos. As leis vinculam a persecução de fins coletivos a

premissas normativas nelas estabelecidas, de modo que a atividade administrativa se

restringe a escolhas entre tecnologias e estratégias de ação, no horizonte da

racionalidade pragmática 72.

Assim, a atuação administrativa elabora o conteúdo teleológico do direito

vigente, enquanto este confere forma de lei a políticas e dirige a realização

administrativa de fins coletivos. Somente dessa maneira, a idéia da separação

funcional dos Poderes pode garantir, ao mesmo tempo, a primazia da legislação

democrática e a retro-ligação do poder administrativo ao comunicativo, e os

cidadãos politicamente autônomos podem se considerar autores do Direito ao

qual obedecem enquanto sujeitos privados.

Dois elementos que decorrem da idéia de separação de Poderes e que,

segundo Habermas, contribuem para a primazia da legislação democrática são “a

autorização do pessoal dirigente através dos eleitores, em votações gerais” e,

especialmente, “o princípio de conformidade à lei, de uma administração que deve

estar submetida ao controle parlamentar e judicial” 73. Ocorre, porém, que, como

visto, no caso das agências reguladoras, os dirigentes não são eleitos e nem estão

sujeitos à accountability eleitoral. E, além disso, dado que Poder Legislativo elabora

leis cada vez mais gerais, é bastante amplo o espaço discricionário de decisão das

agências, o que dificulta o controle judicial 74. Vale dizer, quando o Congresso

atribui às agências reguladoras, por meio de leis como a LGT, a de petróleo (Lei n.

9.478/97), de energia elétrica (Lei n. 9.427/96), planos de saúde (Lei n. 9.961/00)

etc., a capacidade de decidir entre, de um lado, a necessidade de universalização dos

serviços de telecomunicação, eletricidade, preço acessível de combustíveis e de 72 Ibid., loc. cit.. 73 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. I..., p. 234. Note-se que, segundo Habermas: “Essa ligação da administração à lei não pode ser confundida com uma outra espécie de mecanismo limitador do poder. A divisão regional e funcional do poder administrativo numa administração estruturada de modo federativo, bem como a subdivisão do executivo em administrações especiais e universais seguem o modelo de ‘checks and balances’ - da distribuição do poder no interior de uma divisão funcional de poderes, já realizada. Esta distribuição do poder administrativo está acoplada apenas indiretamente à lógica da divisão de poderes, a saber, na medida em que a descentralização do aparelho administrativo tem efeitos de bloqueio, de retardamento e de moderação, que abrem a administração em geral a controles externos” (Ibid., p. 234-235). 74 Segundo Habermas, o esquema liberal clássico da divisão dos poderes perde sua atualidade frente ao surgimento, no Estado Social, de leis que não veiculam programas condicionais, mas sim programas finalísticos. Essas leis “contêm cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados ou concretos, finalidades que servem de medida, que abrem à administração um amplo espaço de opinião”. E “uma administração planejadora, executora e configuradora não pode mais restringir-se à implementação técnica de normas gerais e suficientemente determinadas, sem levar em conta questões normativas” (Ibid., p. 236-237).

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planos de saúde etc., e, de outro, a necessidade de gerar empregos, atrair

investimentos e fomentar o crescimento econômico, parece claro que os

administradores devem fazer escolhas valorativas que não se enquadram na idéia de

competência exclusivamente técnica ou profissional.

Ora, isso certamente não se enquadra na descrição ideal – resultado da

reconstrução proposta por Habermas – de uma Administração Pública cuja

atuação é informada, exclusivamente, pela racionalidade teleológica e pautada por

argumentos normativos – externos a ela – estabelecidos através do desempenho

das funções de fundamentação e aplicação da lei por parte do legislador e da

Justiça. Habermas reconhece que, na medida em que a implementação de leis

finalísticas sobrecarrega a administração com tarefas relacionadas com o aprimoramento

do Direito e com a aplicação da lei, a base de legitimação clássica das estruturas

administrativas não é mais suficiente 75. No entanto, o autor afirma que, nesses casos, “a

lógica da divisão dos poderes precisa ser realizada em estruturas modificadas – por

exemplo, através da introdução de formas de comunicação e de participação

correspondentes ou através do estabelecimento de processos judiciais ou parlamentares, de

processos da formação de compromissos, etc.” 76.

Note-se que o foco do problema, para Habermas, não está, em si, na

assunção da função de produção de normas pela Administração Pública, mas

no fato de que, no desempenho de tal função, “se lança mão, em larga escala e

a qualquer hora, de argumentos normativos, os quais, segundo o esquema

clássico da separação entre os poderes, estavam reservados à justiça e ao

legislador parlamentar” 77. Assim, diante de “uma administração sobrecarregada

com tarefas de regulação, a qual não pode mais limitar-se a executar leis de modo

normativamente neutro e competente, no quadro de atribuições normativas

75 “Com o crescimento e a mudança qualitativa das tarefas do Estado, modifica-se a necessidade de legitimação, quanto mais o direito é tomado como meio de regulação política e de estruturação social, tanto maior é o peso de legitimação a ser carregado pela gênese democrática do direito. A quantidade de programas políticos pode, inclusive, sobrecarregar o medium do direito, quando o processo político fere as condições procedimentais de normatizações legítimas, diferenciadas nos princípios do Estado de direito, em última instância, quando atinge o processo democrático da estruturação política autônoma do sistema de direitos (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p. 171).” 76 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., pp. 239-240. 77 Ibid., p. 182.

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claras”78, Habermas propõe que se pense em mecanismos institucionais que

viabilizem discursos envolvendo a fundamentação e a aplicação de normas – os

quais extrapolam o quadro profissional de um preenchimento pragmático de

tarefas – e sejam capazes de fazer com que se possa tratar, racionalmente, no

âmbito administrativo, de questões que envolvem o escalonamento dos bens

coletivos, a escolha entre fins concorrentes e a avaliação normativa de casos

particulares. Ou seja, “uma vez que a administração, ao implementar programas

de leis abertos, não pode abster-se de lançar mão de argumentos normativos, ela

tem que desenvolver-se através de formas de comunicação e procedimentos que

satisfaçam às condições de legitimação do Estado de direito” 79.

Habermas, no entanto, não especifica quais seriam esses mecanismos e

nem desenvolve, de forma suficiente, de que maneira eles se integrariam às

demais instituições do Estado de Direito. Ao contrário, o autor problematiza ainda

mais a questão, como se percebe no trecho abaixo:

“(...) é necessário perguntar se tal ‘democratização’ da administração – que ultrapassa o simples dever de informar e que complementou o controle parlamentar e judicial da administração a partir de dentro – implica apenas a participação decisória de envolvidos, a ativação de ombudsmen, de processos análogos ao tribunal, de interrogatórios, etc., ou se implica, além disso, outros tipos de arranjo num domínio tão suscetível a estorvos e onde a eficiência conta tanto”. 80

Assim, embora reconheça a necessidade de, ante a sobrecarga do sistema político-

jurídico nas sociedades capitalistas contemporâneas, se pensar novas formas institucionais

para que seja preservada a ligação entre o poder administrativo e o poder comunicativo

nessas sociedades, Habermas deixa claro que essa inovação, na prática, “é questão de um

jogo que envolve tanto a fantasia institucional, como a experimentação

cuidadosa” 81. Portanto, se, no plano abstrato da teoria do discurso, essas práticas

de participação pública poderiam ser entendidas como processos destinados à

legitimação das decisões administrativas, capazes de substituir a atuação do

legislador ou da Justiça no tratamento de questões que envolvem argumentos

normativos, quando trazidas para o plano real, a operacionalização dessa idéia em

formas institucionais concretas exige o enfrentamento de novos problemas.

78 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II..., p. 184. 79 Ibid., p. 184. 80 Ibid., pp. 184-185. 81 Ibid., p. 184.

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Isso porque, o estabelecimento de um ambiente discursivo através dos

mecanismos de participação pública exige que o Estado exerça funções que o

modelo normativo de Habermas não admite. Práticas comuns no Direito

regulatório contemporâneo, como, por exemplo, a auto-regulação das empresas, a

mediação e a conciliação, parecem não se enquadrar no princípio da separação

entre Estado e sociedade civil. Nelas há uma “horizontalização” da relação do

Estado com os atores da sociedade civil que, por sua vez, assumem poderes

ligados à decisão e à implementação de normas, e não apenas à capacidade de

influenciar indiretamente as decisões do sistema político.

Ademais, não custa lembrar que há diferenças significativas, diretamente

ligadas à questão da representatividade e, por conseguinte, da legitimidade

democrática, entre os processos decisórios que se desenvolvem nas corporações

parlamentares e aqueles que se desenrolam nas agências reguladoras. Habermas

entende que, organizatoriamente, o principio que mantém a divisão entre Estado e

sociedade civil e que impede uma intervenção direta do poder social no poder

administrativo “encontra sua expressão no princípio da responsabilidade

democrática de detentores de cargos políticos em relação aos eleitores e aos

parlamentos” 82. Vale dizer: “Deputados têm que se expor periodicamente a novas

eleições; a responsabilidade do governo e os parlamentares para com suas

próprias decisões e para com os serviços públicos dependentes de suas diretrizes

correspondem aos direitos de controle e de exoneração da representação popular”.

Sabe-se que os parlamentares são eleitos pelo povo; estão sujeitos à

accountability eleitoral; e os resultados dos processos deliberativos determinam a

decisão a ser tomada pelo Poder Legislativo. Já em relação às agências

reguladoras, tem-se que, embora o formato institucional não seja sempre o mesmo

em todas as agências, o Conselhos Diretor de cada uma dessas entidades é

composto por membros não-eleitos; que, portanto, não estão sujeitos à

accountability eleitoral – nem mesmo pela via indireta, na medida em que não

podem ser exonerados ad nutum pelo chefe do Poder Executivo durante o

mandato –; e cujas decisões não estão, de forma alguma, vinculadas aos resultados

dos processo deliberativos ocorridos através dos mecanismos de participação

institucionalizados pelas leis de criação das agências reguladoras.

82 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol I..., p. 219.

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Isto posto, não é óbvia – e muito menos trivial – a aplicação das idéias ultra-

abstratas que sustentam o paradigma procedimentalista do Direito à concretude

das instituições do Estado Regulador brasileiro, como as agências reguladoras.

Mesmo porque, a rigor, o projeto teórico de reconstrução discursiva desenvolvido

por Habermas em Direito e Democracia entre Facticidade e Validade se apóia na

auto-compreensão normativa da experiência institucional concreta do Estado

liberal. E, em tal contexto, a possibilidade de criação de mecanismos

institucionais de participação popular nas decisões da administração surge como

uma medida “compensatória” de um modelo normativo de Estado que não

consegue mais dar conta dos problemas que se lhe apresentam nas sociedades

capitalistas contemporâneas. Dito de outro modo, do ponto de vista da auto-

compreensão normativa da sociedade, tais mecanismos continuam a ser

considerados como paliativos para um funcionamento “patológico” da

Administração.

O reconhecimento dos mecanismos de participação pública como

instrumentos integrantes do sistema político-jurídico, aptos a legitimar

democraticamente – ou, nas palavras de Mattos, dotados de um “potencial

democrático” – as decisões da administração que envolvem argumentos

normativos, depende, assim, de uma reconstrução desses arranjos institucionais à

luz da teoria do discurso, o que, no Brasil, ainda não foi feito 83.

83 Para uma tentativa de operacionalização do paradigma procedimentalista habermasiano nos ambientes regulatórios desenvolvida no contexto europeu, ver: BLACK, Julia. Procedimentalizando a Regulação: Parte I; e Procedimentalizando a Regulação: Parte II. In: MATTOS, Paulo Todescan Lessa (coord.). Regulação Econômica e Democracia: O Debate Europeu..., pp. 141-203. O trabalho de Black é capaz de fornecer uma pequena amostra do quão complexo é pensar, a partir da Teoria de Habermas, os espaços de participação popular institucionalizados nas agências reguladoras como instrumentos capazes de democratizar e legitimar a atuação dessas entidades e, conseqüentemente, superar as questões constitucionais contrapostas à sua atuação. A autora inglesa procura desenvolver um modelo de procedimentalização “em sentido amplo” a partir da teoria da democracia deliberativa de Habermas. Mas, para tanto, entende serem necessárias modificações em dois importantes aspectos, que, no entanto, permanecem em aberto: “Em primeiro lugar, argumenta-se que a demanda por deliberação não é suficiente, pois ainda que todos os deliberantes possam ser reunidos, existe a probabilidade de a comunicação ser bloqueada pela diferença: diferença nos modos do discurso, nas técnicas do argumento, na linguagem e demandas de validade. O discurso, portanto, pode precisar ser mediado por meio da adoção de estratégias de tradução, mapeamento e resolução de disputas. Se os reguladores podem ou devem assumir esse papel de mediação permanece, porém, uma questão aberta. Em segundo lugar, argumenta-se que as formas deliberativas de formação e regulação de políticas são compatíveis com arranjos mais pluralistas e poliárquicos do que Habermas permite. Tais arranjos precisam ser adotados para que a procedimentalização ‘em sentido amplo’ se torne operativa (Cf. BLACK, ob. cit., p. 167).

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4.3.2 Legitimidade e circulação do poder político: rotina e crise

A segunda crítica direcionada à proposta de Mattos diz respeito à sua

tentativa de operacionalizar, empiricamente, o conceito de legitimidade proposto

por Habermas em Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, com o

objetivo investigar a existência do que denomina “potencial democrático” nas

consultas públicas da ANATEL. A hipótese de Mattos é a de que as consultas

públicas se apresentariam como instrumentos potencialmente aptos a legitimar

democraticamente a atuação das agências reguladoras, na medida em que fossem

capazes de reproduzir, no processo decisório das agências reguladoras, um

ambiente discursivo capaz de gerar resultados que possam ser considerados

legítimos pelos participantes.

Mattos define duas dimensões a partir das quais procura investigar o

potencial democrático das consultas públicas. Primeiro, pretende avaliar em que

medida as consultas públicas, como mecanismos de participação popular

institucionalizados nos processos decisórios das agências reguladoras, cumprem a

função – que por ele lhes é atribuída 84 – de “controle substantivo”, isto é, de

“meios de controle democrático e de deliberação pública sobre questões

relevantes de ordem política, que estão na base da escolha de técnicas

administrativas para regular a economia e a vida social” 85. Essa avaliação quanto

ao controle substantivo dos argumentos e justificativas apresentados pelos

participantes nos processos deliberativos sobre o conteúdo das políticas que

ingressarão no sistema jurídico por meio de normas regulatórias editadas pelas

agências serve de medida para se identificar potenciais e déficits democráticos na

dimensão institucional desses mecanismos de participação popular. E, como visto,

Mattos escolhe três indicadores para operacionalizar sua análise no plano

institucional: (i) a possibilidade de contraditório e amplo acesso (por intervalo de

tempo definido) aos argumentos dos atores que se manifestam em consultas

84 Suponho, aqui, como condição para prosseguir na análise da proposta de Mattos, que a problemática etapa de institucionalização de espaços de participação popular nos processos de tomada de decisão das agências reguladoras de acordo com a teoria discursiva do Direito e da democracia de Habermas – mencionada no item anterior – foi ultrapassada com sucesso, de modo que seria possível assumir tais mecanismos participativos como instrumentos aptos a legitimar as decisões normativas das agências reguladoras. 85 Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa. O Novo Estado Regulador..., p. 28.

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públicas; (ii) a fundamentação das decisões do Conselho Diretor; (iii) a realização

de audiências públicas conjuntamente com consultas públicas 86.

A outra dimensão do conceito de potencial democrático avaliada por

Mattos diz respeito às condições efetivas de participação nas consultas públicas.

Nela o autor define como indicadores os dados referentes a quem participa das

consultas públicas, quais são os temas levantados por tais atores em suas

sugestões e qual o grau de incorporação das mesmas às normas que são editadas

pela ANATEL.

Na dimensão institucional, os indicadores escolhidos são adequados para

apontar – como, de fato, o fazem – dificuldades na incorporação de pressupostos

comunicativos formais mínimos – sem os quais não se pode falar em deliberação

do ponto de vista da teoria do discurso – nos procedimentos das consultas

públicas. Porém, na dimensão referente às condições efetivas de participação nas

consultas públicas, a metodologia escolhida por Mattos não me parece adequada

para avaliar, com base no conceito de legitimidade habermasiano, o potencial

democrático das consultas públicas realizadas pela ANATEL. Isso porque, como

demonstrado no item 3.3.c, o conceito de legitimidade proposto por Habermas,

com base no modelo de circulação do poder político de Peters, não se presta a

uma análise empírica em circunstâncias de normalidade.

É certo que, como visto, no modelo de reprodução social pensado por

Habermas em Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, o sistema

político-jurídico se diferencia nas sociedades modernas como sistema responsável

pelo processamento e solução reflexiva dos problemas de integração que não

foram solucionados espontaneamente em outros âmbitos sociais. E, nos termos do

modelo normativo de Estado de Direito construído com base na teoria do

discurso, o sistema político-jurídico deve operar aberto para os impulsos de poder

comunicativo produzidos pela sociedade civil nas esferas públicas, de modo que

os mesmos possam influenciar os processos de tomada de decisões coletivamente

vinculantes 87.

Contudo, Habermas reconhece o fato de que, dada a complexidade dos

problemas de integração das sociedades capitalistas contemporâneas e a

sobrecarga cognitiva por eles gerada, o sistema político-jurídico, em sua rotina,

86 Ibid., pp. 295-296. 87 Cf. SCHUARTZ, ob. cit., p. 288.

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opera em sentido inverso ao devido. E ele procura equacionar esse obstáculo

oposto pela realidade ao seu modelo por meio de uma “deflação de expectativas”,

segundo a qual assume, como suficiente, do ponto de vista normativo, que o

sistema político-jurídico opere no sentido ideal “apenas – porém, nestes casos,

invariavelmente – nas situações críticas, quando estiver em perigo a solução de

problemas relativos à integração social da sociedade na ‘última instância’ das

instituições político-jurídicas” 88.

Por isso, com base no conceito de legitimidade de Habermas, não é

possível medir, empiricamente, o potencial de legitimação de um órgão do

sistema político-jurídico – no caso, a ANATEL – durante a rotina de seu

funcionamento. A verificação da existência ou não de um potencial democrático

nos mecanismos de participação pública depende, justamente, de que seja possível

caracterizar, empiricamente, um momento de “crise”, isto é, uma situação na qual,

em função do descompasso entre as decisões do sistema político e a opinião

discursivamente gerada na esfera pública política, a própria integração da

sociedade estiver ameaçada. Diante de tal circunstância, se, através dos

mecanismos de participação popular, a sociedade civil conseguisse influenciar o

Conselho Diretor da ANATEL – como órgão do sistema político-jurídico – na

tomada de suas decisões, de modo a adequá-las à opinião e vontade políticas

produzidas comunicativamente na esfera pública – estabelecendo, portanto, o

fluxo ideal do poder político –, poder-se-ia dizer que a atuação da agência, como

um todo, é legítima. Mas, enquanto essa situação de crise não é demonstrada, não

é possível investigar o potencial democrático das consultas públicas da ANATEL.

O que não implica dizer, entretanto, que a pesquisa de Mattos não tem

utilidade. Muito pelo contrário. Ela fornece dados extremamente relevantes para

um mapeamento – descritivo – do funcionamento das consultas públicas da

ANATEL, permitindo, assim, que sejam levantadas novas hipóteses para estudos

futuros. Porém, com base nela, não é possível afirmar a existência ou não de

potencial democrático – tal qual definido por Mattos – nessas consultas públicas.

Na verdade, quanto à dimensão referente às condições de participação nas

consultas públicas, os números não permitem que se chegue a qualquer conclusão

segura. Não é possível saber, por exemplo, se o baixo nível de incorporação das

88 Ibid., p. 289.

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sugestões ventiladas nas consultas públicas às normas editadas pela ANATEL,

verificado na pesquisa de Mattos, é um reflexo do exercício de poder social

antidemocrático por atores da sociedade civil ou se, ao contrário, reflete de

maneira fiel a opinião e a vontade política legítima formada na esfera pública

informal 89. Por outro lado, verificar que é grande a participação de atores não

ligados às empresas reguladas nas consultas públicas e que nelas é grande a

circulação de debates relativos a interesses difusos também não é suficiente para

se poder concluir, com segurança, sobre a existência ou não de um potencial

democrático. Isso porque – como será sustentado no próximo item – a grande

barreira à retro-ligação do poder administrativo ao poder comunicativo gerado na

esfera pública no Brasil parece estar relacionada não à possibilidade de

participação, mas à capacidade de influenciar as decisões do sistema político-

jurídico.

Ou seja, em última análise, dado que o conceito de potencial democrático

depende da dimensão relativa às condições de participação nas consultas públicas,

o modelo de Mattos não é adequado para testar a hipótese por ele formulada. A

meu ver, a dificuldade para a operacionalização da idéia de legitimidade de

Habermas está ligada, principalmente, ao nível de abstração no qual o autor

desenvolve sua teoria. Habermas está preocupado com a legitimidade da ordem

jurídica e do poder estatal como um todo, e não com a legitimidade de cada

decisão resultante de cada processo decisório. A construção de um modelo

empírico teria, pois, que levar isso em conta. Teria, primeiro, que operacionalizar

o conceito de “situação de crise”, a fim de demonstrar sua ocorrência. Depois,

pensar em indicadores capazes de apontar se, por conta da crise acusada pelos

sensores da esfera pública, a agência reguladora, através do mecanismo da

consulta pública, leva em conta os influxos de poder comunicativo originários da

89 “Coloca-se a questão de saber até que ponto a facticidade social desses inevitáveis momentos de inércia constitui um ponto de cristalização para complexos de poder ilegítimos, independentes do processo democrático, mesmo quando a facticidade social já foi considerada na estrutura formal e organizacional de instituições e constituições do Estado de direito. Levanta-se o problema da inserção imperceptível do poder – que se concentra nos sistemas sociais funcionais, nas grandes organizações e nas administrações estatais – na base sistêmica do fluxo do poder regulado por normas e o problema da eficácia da intervenção do fluxo não-oficial desse poder não legitimado no circuito do poder regulado pelo Estado de direito” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Democracia e Direito entre Facticidade e Validade – vol. II..., p. 56).

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participação dos atores da sociedade civil em processos deliberativo-discursivos

institucionalizados por meio das consultas públicas em suas decisões futuras 90.

4.3.3 O conceito de esfera pública no Brasil

A última crítica dirigida à contribuição de Mattos diz respeito ao modo

como o autor se apropria do conceito discursivo de esfera pública 91, proposto por

Habermas, para analisar um tema que se insere no contexto particular da realidade

política brasileira. Embora assuma de forma explícita essa opção metodológica92,

Mattos não se aprofunda na explicação das razões e, principalmente, das

implicações dessa escolha, passando ao largo do debate existente entre autores

que adotam o modelo deliberativo de esfera pública no Brasil, no qual se destaca a

divergência quanto à necessidade ou não de se alterar tal modelo para que o

mesmo possa dar conta dos problemas característicos do cenário sócio-político

brasileiro.

De uma perspectiva mais ampla, é possível afirmar que o desenvolvimento

do modelo discursivo de esfera pública habermasiano se insere nos debates em

torno da necessidade de reformulação, em face do intervencionismo estatal, das

teorias sobre a relação entre Estado e sociedade nos regimes democráticos. A

questão à qual se dirige, portanto, é a de como elaborar um modelo de democracia

que consiga preservar o ideal normativo da auto-regulação dos cidadãos – núcleo

da idéia da soberania popular – vinculando-o a processos políticos verticais

(liberal-representativos) e horizontais (participativo-democráticos). E isso implica

90 O recente caso envolvendo a demissão de membros do Conselho Diretor da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC talvez pudesse fornecer dados relevantes para uma investigação acerca da legitimidade da atuação desta agência reguladora. Foge aos limites do presente trabalho, porém, realizar qualquer tipo de análise quanto ao mesmo. 91 O conceito de esfera pública apresentado, inicialmente, por Habermas em Mudança Estrutural da Esfera Pública foi alterado pelo autor durante a década de 1990, após a elaboração de sua Teoria da Ação Comunicativa em 1981. Assim, no prefácio da reedição alemã da obra em 1990, e, principalmente, em Três Modelos Normativos de Democracia e Direito e Democracia entre Facticidade e Validade, Habermas desenvolve o conceito deliberativo de esfera pública (Ver a respeito: HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003; ___________. Três Modelos Normativos de Democracia...; e ___________. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II...; e, ainda, AVRITZER & COSTA, ob. cit., pp. 705-710; e BERNARDES, Márcia Nina. Globalization and Political Inclusion in Brazil: Domestic Implications of Transnational Public Spheres. New York: New York University School of Law, A thesis submitted for the degree of Juridical Science Doctor, 2006 ). 92 Cf. MATTOS, Paulo Todescan Lessa Mattos. O Novo Estado Regulador..., p. 30.

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a necessidade de reflexão sobre formas de integração e articulação entre esses

tipos de processos políticos e, conseqüentemente, sobre o papel da sociedade civil

nas democracias contemporâneas.

Nesse sentido, compartilho com Mattos a opinião de que, comparado com

o modelo institucionalista de análise, típico dos estudos sobre a transição

democrática de países da América Latina, o modelo da esfera pública representa

um ganho analítico para a compreensão do processo – constante e ambíguo – de

democratização da sociedade brasileira e, portanto, para o estudo da questão da

legitimidade do poder administrativo em nosso país. Isso porque, como observam

Avritzer e Costa, há dois problemas analíticos fundamentais nas teorias

institucionalistas da transição democrática. O primeiro está ligado à

desconsideração do papel ativo dos novos atores sociais que emergem no contexto

da democratização (movimentos sociais, associações de vizinhos, ONGs etc.).

Para tais teorias, a contribuição desses atores se resumiria a fortalecer a posição

das elites democráticas no jogo da política institucional, única arena em que a

construção da democracia efetivamente aconteceria. O segundo diz respeito à

relação de causalidade assumida entre política e cultura, segundo a qual às

mudanças político-institucionais corresponderiam, imediatamente, o enraizamento

de valores e práticas democráticas na sociedade 93.

Ou seja, falta à corrente teórica institucionalista um conceito substantivo

de espaço público que permita, em relação ao primeiro problema, entender como

se constroem, pela comunicação pública, a legitimidade e o poder efetivo que

conquistam os novos atores sociais e, quanto ao segundo, demonstrar como a

existência ou inexistência de uma sociedade civil atuante e de uma esfera pública

ativa tem papel fundamental na construção de uma cultura democrática e na

elaboração de mecanismos de fiscalização pública que inibam práticas

antidemocráticas enraizadas na realidade política brasileira, como o clientelismo e

o patrimonialismo 94. O que somente é possível caso o foco da análise esteja

93 Cf. AVRITZER, Leonardo; e COSTA, Sérgio. Teoria Crítica, Democracia e Esfera Pública: Concepções e Usos na América Latina. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, Vol. 47, n. 4, 2004, p. 720. 94 Ibid., loc. cit.. Para Avritzer e Costa, o papel da esfera pública na construção da democracia não é adequadamente considerado pelos autores que seguem a linha das teorias da transição. Nestas análises sobre a esfera pública na América Latina, “predomina (...) a visão herdada da sociologia da sociedade de massas e da recepção tardia do conceito de indústria cultural, conforme foi elaborado pela primeira geração da Escola de Frankfurt. Assim, esboça-se a imagem de um público atomizado e disperso que, de produtores críticos de cultura se transformaram, no âmbito

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voltado para a visualização das inter-relações entre os processos sócio-culturais e

político-institucionais 95.

É exatamente por isso que, ao se conceber espaço público a partir do

modelo discursivo de esfera pública, isto é, como uma arena, na qual se

concretizam e se condensam intercâmbios comunicativos gerados em diferentes

campos da vida social, se amplia a capacidade de compreensão das ambigüidades

inerentes aos processos de transformação social, de reconfiguração do poder

político e do surgimento de novos atores sociais no cenário político 96. Pois, a

concepção habermasiana de esfera pública permite que se reconheça, como

mecanismos de integração social, tanto a força aglutinadora da coordenação

sistêmica, quanto as interações orientadas pelo entendimento, fundadas sobre as

estruturas comunicativas do mundo da vida 97. Ou seja, a esfera pública passa a

ser concebida como resultado das tentativas de coordenação sistêmica, de um

lado, e do processo comunicativo de formação da opinião pelos atores da do processo mesmo de constituição da sociedade de massas, em consumidores passivos dos produtos da indústria cultural” (Ibid., p. 717). Ou seja, “No que diz respeito propriamente à esfera pública política, pode-se postular, seguindo tal visão, que as sociedades latino-americanas – diferentemente do contexto europeu, onde a fragmentação urbana e a emergência da sociedade de massas teriam produzido a obliteração da esfera pública burguesa preexistente – seriam caracterizadas pela inexistência histórica de tal espaço comunicativo. São os meios de comunicação de massa que ocupariam, desde os primórdios da constituição de uma sociedade urbana na América Latina, o lugar das mediações sociais, estabelecendo ‘uma nova diagramação de espaços e intercâmbios urbanos’. Não se espera, obviamente, que, nesse espaço público assenhoreado pela mídia, argumentos racionais sejam esgrimidos, questões substantivas sejam levadas a debate e posições doutrinárias e ideológicas claras e diferenciadas venham à tona. Diante da lógica própria da mídia, com ênfase na televisão, em cuja linguagem não cabem verdades matizadas nem longos exercícios argumentativos, mas apenas enunciados bombásticos, a política veria se esvaírem seus conteúdos” (Ibid., p.718). 95 “Para deslindar os processos sociais de transformação verificados no escopo da democratização, as investigações teriam, portanto, que penetrar o tecido das relações sociais e da cultura política gestada nesse nível, revelando as modificações aí observadas. Ao mesmo tempo, rompendo o véu do discurso institucional universalista, esses estudos necessitariam debruçar-se sobre os padrões concretos de relacionamento entre o Estado e a sociedade civil, analisando o papel de atores como movimentos sociais, organizações não governamentais etc. para a operação de transformações em tais relações” (Cf. COSTA, Sérgio. Movimentos Sociais, Democratização e a Construção de Esferas Públicas Locais. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais – RBCS, Vol. 12, n. 35, out. 1997, p. 121). 96 Cf. COSTA, Sérgio. As Cores de Ercília: Esfera pública, democracia, configurações pós-nacionais. Belo Horizonte: UFMG, 2002, pp. 12-13. 97 Como observa Adrián Gurza Lavalle, “é cabível afirmar que a chave do revigoramento da publicidade [isto é, da Öffentlichkeit, normalmente traduzida para o português como esfera pública] reside na arquitetura dual da sociedade e na relação necessária entre ambos os níveis. De um lado, o mundo da vida sempre exposto às investidas colonizadoras provindas dos sistemas, mas por definição salvo, já que a espontaneidade social e a infindável produção de sentenças nunca serão suprimidas ou reguladas por completo; do outro, a realidade sistêmica ensimesmada, porém incapaz de produzir sua própria legitimidade e, portanto, de se enclausurar diante dos reclamos que, emergindo do mundo da vida, alcançam consenso social pela via da publicidade” (Cf. LAVALE, Adrián Gurza. Jürgen Habermas e a virtualização da publicidade. In: Margem, São Paulo, n. 16, dez. 2002, p. 81).

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sociedade civil, por outro. Dessa maneira, a imagem do espaço público segundo

essa concepção não é mais “a de um simples palco para encenação de atores

estrategicamente voltados para a manipulação das opiniões” 98. Para ela dirigem-

se, também, “fluxos comunicativos condensados na vida cotidiana, que encerram

questões relevantes para o conjunto da sociedade” 99.

O mesmo argumento pode ser utilizado para superar as objeções da

chamada “corrente funcionalista” da esfera pública, preocupadas em enfatizar os

processos de “espetacularização” e de conseqüente perda de substância

argumentativa das deliberações nos espaços públicos. Não se nega, com base na

concepção deliberativa de esfera pública, a ocorrência de tais processos nas

sociedades contemporâneas. Habermas busca demonstrar, contudo, que eles não

representam a totalidade das relações que se desenvolvem na esfera pública. Isso

porque, para além do espaço público transformado em mercado, persistem “um

leque diversificado de estruturas comunicativas e uma gama correspondente de

processos sociais (de recepção e reelaboração das mensagens recebidas e de

interpenetração entre os diferentes micro-campos da esfera pública), cuja

existência confere, precisamente, consistência, ressonância e sentido ao

espetáculo, ancorando-o, novamente, no cotidiano dos atores” 100. Em última

análise, na ausência desses processos comunicativos, “as imagens e mensagens,

ainda que tecnicamente eleboradas e esteticamente empolgantes, ecoariam no

vazio, destituídas de substância e credibilidade” 101.

É exatamente neste ponto, que a idéia de sociedade civil assume um papel

fundamental no modelo Habermasiano. Como visto no item 3.3.c, a sociedade

civil abrange os atores sociais que absorvem e condensam a ressonância que as

situações-problema emergentes na sociedade encontram nos domínios da vida

privada 102, canalizando tal resposta de forma amplificada tanto para a vida

98 Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública. In:Lua Nova – Revista de Cultura e Política, n. 36, 1995, p. 58. 99 Ibid., p. 59. 100 Cf. COSTA, Sérgio. Do simulacro e do discurso: esfera pública, meios de comunicação de massa e sociedade civil. In: Comunicação & Política, nova série, vol. 4, n. 2, mai-ago 1997, p. 124. 101 Ibid., p. 125. 102 Nas palavras de Habermas: “Os problemas tematizados na esfera pública política transparecem inicialmente na pressão social exercida pelo sofrimento que se reflete no espelho de experiências pessoais de vida. E, na medida em que essas experiências encontram sua expressão nas linguagens da religião, da arte e da literatura, a esfera pública ‘literária’, especializada na articulação- e na descoberta do mundo, entrelaça-se com a política” (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade –

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privada quanto para a esfera pública política. Assim, aos atores da sociedade civil

é atribuída uma dupla função. Enquanto a condensação das “situações-problema”

percebidas na vida cotidiana corresponde à uma atuação defensiva desses atores –

pois relacionada à preservação e à ampliação das estruturas comunicativas do

mundo da vida –, a tematização de tais problemas da esfera privada dos

indivíduos e sua canalização na esfera pública constitui uma dimensão ofensiva de

sua atuação 103.

É dessa maneira que as situações-problema percebidas nos micro-domínios

privados da prática cotidiana dos atores da sociedade civil, tematizadas e

amplificadas na esfera pública política, se transformam em fluxos de poder

comunicativo capazes de percorrer os sistemas de eclusas institucionais “até

assumir o caráter de persuasão sobre membros autorizados do sistema político,

determinando mudanças no comportamento destes” 104. Somente quando esses

fluxos comunicativos extrapolam as fronteiras das esferas públicas autônomas,

eles podem ter acesso às instâncias deliberativas previstas na ordem democrática

e, conforme a lógica de assédio 105, influenciar a tomada de decisão nesses

Vol. II..., 97). Prossegue o autor, explicando que: “No início, tais experiências são elaboradas de modo ‘privado’, isto é, interpretadas rio horizonte de uma biografia particular, a qual se entrelaça com outras biografias, em contextos de mundos da vida comuns. Os canais de comunicação da esfera pública engatam-se nas esferas da vida privada- as densas redes de interação da família e do círculo de amigos e os contatos mais superficiais com vizinhos, colegas de trabalho, conhecidos, etc. - de tal modo que as estruturas espaciais de interações simples podem ser ampliadas e abstraídas, porém não destruídas. De modo que a orientação pelo entendimento, que prevalece na prática cotidiana, continua valendo também para uma comunicação entre estranhos, que se desenvolve em esferas públicas complexas e ramificadas, envolvendo amplas distâncias” (Ibid., p. 98). Habermas conclui que: “A esfera pública retira seus impulsos da assimilação privada de problemas sociais que repercutem as biografias particulares” (Ibid., loc. cit.). 103 Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., pp. 59-60. Segundo Habermas, essa dupla função já havia sido observada por Cohen e Arato “(...) nos novos movimentos sociais, os quais perseguem objetivos ‘ofensivos’ e ‘defensivos’ ao mesmo tempo. ‘Através de uma ofensiva’, eles tentam lançar temas de relevância para toda a sociedade, definir problemas, trazer contribuições para a solução de problemas, acrescentar novas informações, interpretar valores de modo diferente, mobilizar bons argumentos, denunciar argumentos ruins, a fim de produzir uma atmosfera consensual, capaz de modificar os parâmetros legais de formação da vontade política e exercer pressão sobre os parlamentos, tribunais e governos em benefício de certas políticas. Ao passo que ‘defensivamente’ eles tentam preservar certas estruturas da associação e da esfera pública, produzir contra-esferas públicas subculturais e contra-instituições, solidificar identidades coletivas e ganhar novos espaços na forma de direitos mais amplos e instituições reformadas” (Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 103). 104 Cf. COSTA, Sérgio. Esfera Pública, Redescoberta da Sociedade Civil e Movimentos Sociais no Brasil: Uma Abordagem Tentativa. In: Revista Novos Estudos – CEBRAP, v. 1994, n. 38. São Paulo, 1994, p. 43. 105 “O poder comunicativo é exercido à maneira de um assédio. Mesmo não tendo intenções de conquista, ele interfere nas premissas dos processos de juízo e de decisão do sistema político, a fim de fazer valer seus imperativos, na única linguagem capaz de ser entendida pela fortaleza sitiada: ele administra o pool de argumentos que o poder administrativo pode, é verdade, manipular

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ambientes. Nesses casos, a esfera pública política desempenha sua função de

intermediação entre os impulsos comunicativos gerados no mundo da vida e o

núcleo do sistema político.

Assim como Cohen e Arato, Habermas reconhece, contudo, que a

sociedade civil e a esfera pública “garantem uma margem de ação muito

limitada para as formas não-institucionalizadas de movimento e de expressão

política” 106, o que decorre dos limites à capacidade da sociedade civil de auto-

organizar a sociedade como um todo. Trata-se, segundo ele, de uma “auto-limitação

estruturalmente necessária para a prática de uma democracia radical” 107. Esses

limites são divididos por Habermas em três eixos temáticos. O primeiro está

vinculado aos requisitos sócio-estruturais da sociedade civil. Segundo o autor, a

formação de uma sociedade dinâmica de pessoas privadas necessita de um mundo da

vida já racionalizado 108. O segundo está relacionado à questão do poder. Vale

dizer: os atores da sociedade civil não podem exercer poder político ou

administrativo, apenas influência 109. Para gerar um poder político, sua influência tem

que abranger, também, as deliberações de instituições democráticas da formação da

opinião e da vontade, assumindo uma forma autorizada. O terceiro e último eixo

temático diz respeito à questão da complexidade: “Para que possam funcionar

como catalisadoras de processos espontâneos de formação da opinião, as

organizações da sociedade civil não podem se transformar em estruturas instrumentalmente, porém não ignorar, uma vez que é estruturado conforme o direito” (Cf. HABERMAS, Jürgen. A Soberania do Povo como Processo. In: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol. II..., p. 273). Com isso, Habermas quer dizer que: “a eficácia do poder comunicativo é indireta, apresentando-se como limitação da realização do poder administrativo – que é o exercício do poder de fato. E, para preencher a supramencionada função de assédio, a opinião pública informal tem que seguir o caminho da deliberação responsável e organizada através de procedimentos democráticos” (Ibid., p. 276). 106 Ibid., p. 104. 107 Ibid., loc. cit.. 108 “Caso contrário, podem surgir movimentos populistas que defendem cegamente os segmentos petrificados da tradição de um mundo da vida ameaçado pela modernização capitalista. Esses movimentos são modernos devido às formas de sua mobilização, porém antidemocráticos em seus objetivos” (Ibid., p. 104). 109 E “(...) essa influência pública e política tem que passar antes pelo filtro dos processos institucionalizados da formação democrática da opinião e da vontade, transformar-se em poder comunicativo e infiltrar-se numa legislação legítima, antes que a opinião pública, concretamente generalizada, possa se transformar numa convicção testada sob o ponto de vista da generalização de interesses e capaz de legitimar decisões políticas” (Ibid. p. 105). Como explica Costa: “Os atores da sociedade civil não possuem poder político ou administrativo, dispõem apenas de uma forma mediatizada de geração de poder. Isto é, a influência destes sobre a política consubstancializa-se nas mensagens que, percorrendo os mecanismos institucionalizados do Estado constitucional, alcançam os núcleos decisórios. Desta forma, procura-se afastar a idéia de que a sociedade civil possa assumir as funções que cabem ao Estado”. (Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., pp. 60-61).

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formalizadas, dominadas pelos rituais burocráticos. De outra forma, o ganho de

complexidade poderia significar a rendição aos imperativos organizacionais e o

conseqüente distanciamento da base” 110.

Por outro lado, Habermas distingue os atores da sociedade civil dos demais

atores da esfera pública. De forma resumida, é possível citar quatro aspectos a

partir dos quais essa distinção é estabelecida. O primeiro diz respeito ao conteúdo

das reivindicações. Os atores da sociedade civil tematizam situações-problemas

percebidas nos micro-domínios da vida privada cotidiana e que, portanto, têm

relevância para toda a sociedade, enquanto os atores chamados de “consumidores”

(ou clientes) do sistema político por Habermas (sindicatos, grupos de interesse

etc.) representam, no âmbito da esfera pública, as reivindicações de grupos

políticos e econômicos específicos 111. O segundo aspecto está ligado ao tipo de

comunicação na esfera pública. Os atores da sociedade civil agem

comunicativamente, transformando a esfera pública numa arena da argumentação

discursiva e de convencimento do conjunto da sociedade com base na força –

racional – do melhor argumentos, enquanto os demais atores agem orientados pelo

sucesso, procurando, exclusivamente, conferir maior publicidade às suas

reivindicações pela ocupação de espaços públicos 112. O terceiro se relaciona ao

tratamento conferido pelos atores à esfera pública. Na medida em que não

dispõem de outros meios para exercerem influência sobre o processo político além

da atuação da esfera pública, os atores da sociedade civil empenham-se na

reprodução e revitalização da esfera pública, buscando, de um lado, oferecer

resistência às ameaças de obliteração da esfera pública e, de outro, explorar

intensivamente as possibilidades comunicativas existentes e ampliar as fronteiras

dessa esfera, mediante a incorporação de novas minorias e grupos marginais e da

intervenção de novos meios comunicativos 113. O quarto aspecto concerne às

origens dos atores sociais. Vale dizer: enquanto os denominados grupos

consumidores têm sua origem vinculada a certos campos funcionais como

partidos políticos, grupos de interesse, representações funcionais etc., a identidade

dos atores da sociedade civil é constituída ad hoc, no âmbito da atuação coletiva,

110 Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., p. 60. 111 Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II…, p. 87. 112 Ibid., pp. 92-93. 113 Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., p. 63.

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e com o suporte de um público recrutado entre a totalidade das pessoas

privadas114.

Diante de tais características, é necessário reconhecer que, tomado ao pé

da letra, o modelo discursivo de esfera pública parece demasiadamente ideal para

ser utilizado na maior parte das democracias contemporâneas. Como destaca

Costa, caso “se leve, por exemplo, às últimas conseqüências o pressuposto de que

a relevância pública dos atores da sociedade civil é devida exclusivamente ao

conteúdo e ao apelo argumentativo de suas intervenções, muito poucos seriam os

sujeitos coletivos, empiricamente observáveis, a merecer um enquadramento na

categoria de representante da sociedade civil” 115. Isso porque, na prática,

paralelamente ao esforço do convencimento por meio de argumentos racionais,

tais atores procuram se adaptar aos requisitos estruturais dos veículos,

realizando,assim, um trabalho de relações públicas – isto é, “oferecendo

informações de valor noticioso, orientadas, no nível de conteúdos e quanto aos

prazos, pelas formas de produção jornalísticas e pelas características institucionais

dos meios de comunicação de massa” 116 – com o intuito de obter espaço na mídia

e dar maior publicidade às suas reivindicações.

Mas, a rigor, essa circunstância, de modo algum, impede que tais atores

sejam “classificados” como atores da sociedade civil – ou seja, como

fornecedores de demandas para o sistema político (e não consumidores de suas

decisões). Essa ambigüidade é absorvida pelo modelo de Habermas, na medida

em que o autor localiza na própria organização interna dos atores coletivos a

condição para que os atores desempenhem a função de canalizar os problemas

emergentes da vida cotidiana para a esfera pública. Em outras palavras, “caso o

ator permaneça permeável aos impulsos provindos da base e aos processos

espontâneos de formação da opinião, ele certamente se manterá, estruturalmente,

em condições de condensar as situações-problema emergentes no mundo da vida e

de transportá-las para a esfera pública” 117. 

É a partir dessa idéia que Costa procura afastar as objeções à incorporação,

no Brasil, do modelo discursivo da esfera pública, demonstrando que o mesmo

114 Ibid., loc. cit..; e HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre Facticidade e Validade – Vol II…, pp. 96-97. 115 Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., p. 63. 116 Ibid., loc. cit.. 117 Ibid., p. 64.

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pode ser utilizado em muitas situações 118. Pois se é certo que a realidade

brasileira apresenta problemas para acomodar idéias como a da distinção, acima

mencionada, entre atores da sociedade civil (fornecedores) e demais atores da

esfera pública (consumidores) 119, também não há dúvidas de que, em diversas

ocasiões, é possível observar que as organizações da sociedade civil no país são

capazes de conferir caráter público a determinados temas, fazendo com que os

mesmos consigam chegar ao núcleo do sistema político-jurídico e sejam levados

em conta na tomada de decisão dos agentes autorizados 120. Exemplo dessa

ambigüidade pode ser percebido nos casos, investigados por Costa, de atuação das

associações de moradores das cidades mineiras de Uberlândia, Juiz de Fora e

Governador Valadares em experiências de administração municipal participativa 121. Segundo o autor:

“Parece indiscutível que estas organizações efetivamente tematizam tensões das esferas privadas, revelando o caráter geral e conferindo tratamento público a

118 Segundo o autor, “Em que pesem os diferentes níveis de desenvolvimento da sociedade civil e da esfera pública nas democracias maduras e em países como o Brasil, emergem, do confronto destes diferentes contextos, interessantes constatações. / O modelo que descreve a participação da sociedade civil no processo de formação de decisões públicas apresentado no tópico anterior , por exemplo, pode ser transposto, em variadas situações, para o caso brasileiro. / Para iniciar com um caso extremo e ruidoso pode-se mencionar o processo recente de afastamento do presidente da República. / Parece ineludível a importância, no episódio, das pressões no nível da esfera pública e da ‘dramatização’ do tema, por meio das manifestações públicas, dos rostos pintados ou da simbolização do luto das roupas pretas, para a geração e sustentação das decisões tomadas pelo complexo parlamentar e para a transposição de várias eclusas institucionais que conduziram finalmente ao impeachment. / Em outros episódios, menos sensacionalistas, como nas campanhas do movimento ecologista, pode-se também observar como as organizações da sociedade civil no país conferem caráter público a determinadas questões levando ao seu tratamento pelas instâncias decisórias” (Cf. COSTA, Sérgio. Esfera Pública, Redescoberta da Sociedade Civil e Movimentos Sociais no Brasil..., p. 49). 119 “Tratada à luz da situação brasileira, a diferenciação deixa transparecer o seu caráter meramente normativo, empiricamente pouco plausível” (Ibid., p. 50). Normalmente se enfatiza no Brasil a circunstância de que interesses são diretamente projetados no aparelho do Estado e que não haveria, portanto, sujeitos coletivos autônomos que representassem publicamente tais interesses (ou seja, inexistência de sociedade civil). Isso porque não teria ocorrido em nosso país uma separação completa entre as esferas da economia, da sociedade civil e da sociedade política: “Em muitas situações, os interesses dos diferentes segmentos sociais não são trazidos a uma esfera pública autônoma, onde eles são discutidos e confrontados; eles percorrem os canais do próprio Estado que, nesses casos, por meio de processo não universalistas, portanto, variáveis e arbitrários, pondera e decide” (Ibid., loc. cit.). 120 Pois, mesmo quando agem de maneira “instransparente”, os atores sociais coletivos não estão preocupados com o fortalecimento da esfera pública, mas sim com seus interesses particulares e dos setores que representam. Nesse sentido, perdem o principal traço que os distingue dos Grupos de Interesse. Porém, essa estratégia de negociações intransparentes “se traz resultados concretos para as organizações da sociedade civil, só pode fazê-lo esporadicamente, ou por um curto espaço de tempo” (Ibid. loc. cit.). Isso porque, diferente dos Grupos de Interesse que contam com recursos organizacionais e instrumentos de pressão próprios, os atores das sociedades civis dependem da repercussão pública de suas ações para sustentar sua força política. 121 Cf. COSTA, Sérgio. Movimentos Sociais, Democratização e Construção de Esferas Públicas Locais..., pp. 122-124.

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questões como moradia, saúde, educação etc. Ao mesmo tempo, entretanto, conforme mostram diferentes trabalhos, as organizações de moradores procuram beneficiar-se dos ‘relacionamentos clandestinos’ com o Estado e o sistema político, acertando, através de suas cúpulas, acordos (para o apoio político, para a obtenção de melhorias para o bairro ou até vantagens pessoais) que nunca são objeto de discussão pública, nem mesmo no nível do conjunto dos membros da organização. Nesses casos, as organizações de moradores agem, da mesma forma que os Grupos de Interesse, buscando ‘feudalizar’ o Estado e fortalecendo os seus laços particularistas” 122.

Outro aspecto problemático da realidade sócio-política brasileira em

relação ao modelo habermaisano diz respeito à dificuldade de diferenciação clara

entre a esfera político partidária e o próprio Estado. Pois, como observam Avritzer

e Costa, o modelo discursivo de esfera pública foi formulado “por referência

empírica a um contexto em que há mecanismos efetivos de controle do Estado

pelos cidadãos e os partidos políticos, a despeito do desencantamento dos últimos

tempos, ainda funcionam como estruturas eficientes de intermediação entre a

sociedade civil e o sistema político” 123. No Brasil, entretanto, o sistema partidário

se consolidou a partir da montagem de máquinas partidárias alimentadas pela

patronagem e capazes de distribuir, privadamente e por meio de acordos

clientelistas, benefícios públicos. E, dessa forma, não exercem os partidos

políticos brasileiros a função de intermediação entre sociedade civil e o Estado. A

rigor, “confundidos com o aparato administrativo e ‘desenraizados’ na sociedade

civil, eles não se prestam à função de, no plano individual, possibilitar a ‘auto-

racionalização de interesses’ e, no âmbito do Estado, atuar como ordenador da

seletividade de temas e demandas”, mas, ao contrário, “acabam se transformando,

do ponto de vista individual, em instrumentos de realização de projetos pessoais

de poder, enquanto, com relação ao Estado, operam um processo autonomizado

(fora do controle da sociedade civil) de eleição de temas e produção de

decisões”124. O que abre espaço para o surgimento cada vez maior de novos atores

da sociedade civil – associações de moradores, ONGs, clubes etc. –, questionando

a idéia de monopólio da representação política pelos partidos políticos e

implementando alternativas participativas de democracia que passam a concorrer

com os clássicos instrumentos representativos.

122 Id., Esfera Pública, Redescoberta da Sociedade Civil e Movimentos Sociais no Brasil..., pp. 50-51. 123 Cf. AVRITZER & COSTA, ob. cit., p. 723. 124 Cf. COSTA, Sérgio. Esfera Pública, Redescoberta da Sociedade Civil e Movimentos Sociais no Brasil..., p. 51.

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Mas, em última análise, essas dificuldades para o “emolduramento”

analítico das peculiaridades do quadro sócio-político brasileiro, que não são

contempladas no modelo discursivo de esfera pública originariamente proposto

por Habermas, não impediriam a utilização de tal modelo para o estudo da

realidade política do país. Pois, embora mecanismos não públicos

(“intransparentes”) de acesso ao sistema político e influência sobre suas decisões,

em muitos casos, sejam, ainda, preponderantes, é possível observar a existência de

uma esfera pública que, apoiada numa “sociedade civil que se (re)constrói,

apresenta sinais efetivos de independência e vitalidade, operando, de fato, como

caixa de ressonância para a ‘criação’ de questões públicas” 125. 

Os trabalhos desenvolvidos a partir de perspectivas teóricas filiadas às

correntes institucionalista e sistêmica não dão conta desta ambigüidade e, desse

modo, não são capazes de reconhecer o conteúdo “democratizante” de práticas

estabelecidas no Brasil. Práticas que, a rigor, tiveram início ainda na década de

1970, quando ao termo “sociedade civil” foi atribuída uma função político-

estratégica de ponto de apoio para o projeto de oposição ao regime militar 126. E

que se aprofundaram durante o período de transição para o regime democrático no

Brasil, já na década de 1980, na forma de associações voluntárias e movimentos

sociais no âmbito local, criando uma nova esfera de deliberação e negociação que

Avritzer conceitua como “Públicos Participativos” (participatory publics) 127.

Atualmente, malgrados o florescimento das clivagens na sociedade civil brasileira

– que se encontravam latentes antes da instauração do regime democrático –,

resultantes dos múltiplos interesses de seus diferentes atores – feministas,

movimento negro, movimentos ecológicos etc. –, e as ambivalências geradas por

fenômenos sociais recentes – como a proliferação e internacionalização das

ONGs, a aliança dessas entidades com setores empresariais, o crescente desejo de

regulação dos atores da sociedade civil pelo Estado – é possível apontar, segundo

Costa, evidências da continuidade dos processos de construção de uma esfera

pública ativa e de uma sociedade civil autônoma, desacoplada do Estado. Dentre 125 Ibid., loc. cit. 126 Id., As Cores de Ercília..., p. 55. 127 Cf. AVRITZER, Leonardo;e WRAMPLER, Brian. Públicos Participativos: Sociedade Civil e Novas Instituições no Brasil Democrático. In: COELHO, Vera Schattan P.; e NOBRE, Marcos (orgs.). Participação e Deliberação: Teoria Democrática e Experiências Institucionais no Brasil Contemporâneo. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 212; e, também, AVRITZER, Leonardo. Democracy and The Public Space in Latin America. Princeton: Princeton University Press, 2002, pp. 135-170.

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160

as práticas que contribuem para esse processo, o autor ressalta, “o surgimento de

meios de comunicação ‘críticos’, a expansão da sociedade civil e a preservação de

espaços públicos primários, dentro dos quais se observa um processo ‘alternativo’

de formação de opinião” 128.

Tanto Avritzer quanto Costa concordam, portanto, que o modelo da esfera

pública conta com um instrumental conceitual mais adequado à descrição do

processo de democratização da sociedade brasileira. Resta saber, porém, até que

ponto o modelo de esfera pública, tal qual proposto por Habermas, é suficiente

como padrão normativo de análise dos processos políticos no Brasil. Dito de outro

modo: é necessário fazer adaptações a esse modelo para incorporá-lo às análises

sobre democracia e legitimidade do poder administrativo na realidade sócio-

política brasileira?

Para Avritzer 129, a resposta a essa questão é afirmativa. Sua crítica ao

modelo habermasiano se dirige à separação rígida entre Estado e sociedade civil,

que importa na não admissão da possibilidade de ampliação dos mecanismos

institucionalizados de formação da vontade política a fim de se conferir poderes

efetivos aos Públicos Participativos. Como esclarecem Avritzer e Costa:

“De fato, a preocupação de Habermas com a defesa do caráter institucional/constitucional do Estado de direito, assim como a influência da teoria parsoniana sobre o autor, a qual enfatiza a distinção e a necessidade de preservação de códigos de coordenação específicos nos diferentes sistemas (a sociedade civil produz influência política, mas não decide nem implementa políticas), levam-no a subestimar completamente as estruturas de participação pública. Dessa maneira, em toda a sua discussão sobre espaço público, faltam referências à necessidade de horizontalizar os processo decisórios ou à necessidade de promover processos de ‘alfabetização política’, que permitam, no plano local, a vivência da noção de poder”. 130

Essa é a razão pela qual Avritzer considera a proposta habermasiana

insuficiente para promover um caminho alternativo para que se vincule razão (o

consenso gerado na esfera pública) e vontade política (a institucionalização

jurídica desse consenso). Pois, a rigor, a despeito da racionalidade dos resultados

obtidos através da deliberação pública, são os detentores do poder político que

decidem quando incorporá-los e transformá-los em leis e políticas públicas 131. Se

128 Id., As Cores de Ercília..., p. 80. 129 Ver a respeito: AVRITZER, Leonardo. Democracy and The Public Space in Latin America..., pp. 48 e ss. 130 Cf. AVRITZER & COSTA, ob. cit., p. 713. 131 Cf. AVRITZER, Leonardo. Democracy and The Public Space in Latin America..., p. 49.

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161

essas exigências de auto-limitação dos atores da sociedade civil e de separação

clara entre sociedade civil e detentores do poder político são compreensíveis

quando referidas a uma realidade social na qual se verificam mecanismos efetivos

de controle do Estado pelos cidadãos e onde os partidos políticos ainda funcionam

como estruturas capazes de intermediar a relação entre sociedade civil e sistema

político, quando aplicadas, porém, ao contexto político típico das democracias

latino-americanas – onde são freqüentes as violações aos direitos humanos e nas

quais práticas clientelistas e patrimonialistas ainda influenciam, num grau

considerável, os processos decisórios do sistema político – acabam elas

funcionando como barreiras à democratização 132. Isso porque, segundo o autor, o

principal problema dessas democracias não é, em si, a possibilidade de

participação nos processos deliberativos, mas a possibilidade de que o resultado

de tais processos influencie, efetivamente, as decisões do sistema político.

Haveria um bloqueio – resultante da continuidade do domínio de um grupo social

sustentado pela cultura política estabelecida – do fluxo do poder político legítimo,

situado na “última comporta” do modelo de circulação do poder adotado por

Habermas 133.

Para Avritzer, seria preciso, portanto, que “no seio de uma esfera pública

porosa e pulsante, temas, posições e argumentos trazidos pelos novos atores

sociais encontrem formas institucionais de penetrar o Estado e, por essa via,

democratizá-lo, tornando-o objeto de controle dos cidadãos” 134. E o conceito

deliberativo de esfera pública proposto por Habermas não seria suficiente para

enfrentar os desafios apresentados pelo contexto político brasileiro à

concretização desse projeto.

Márcia Nina Bernardes aponta, porém, raízes mais profundas do problema

identificado por Avritzer. A autora concorda com este diagnóstico de “bloqueio”, 132 Ou seja, segundo Avritzer: “(...) as questões centrais com as quais a democracia lida mudam de acordo com os diferentes cenários políticos. No caso brasileiro, o clientelismo, a falta de capacidade de pressão da população e a distribuição desigual dos bens públicos em nível local são algumas das questões com as quais as formas fixas da democracia não são capazes de lidar de forma adequada” (Cf. AVRITZER, Leonardo. Modelos de deliberação democrática: uma análise do orçamento participativo no Brasil. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002, p. 592). 133 Nas palavras de Avritzer: “A redemocratização brasileira envolveu, simultaneamente, grandes doses de continuidade política misturadas com algumas doses de inovação política. Em nível político, apesar dos primeiros indícios de formas de organização social, as forças hegemônicas ao longo do processo de modernização mantiveram o controle sobre o sistema político” (Ibid., p. 572) 134 Cf. AVRITZER & COSTA, ob. cit., p. 713.

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162

segundo o qual os fluxos de poder comunicativo emanados da esfera pública não

conseguem atravessar as comportas para chegar ao núcleo decisório do sistema

político-jurídico. Mas, segundo ela, Avritzer atribui importância muito grande a

esse aspecto do problema em sua análise, depositando sobre os ombros da

sociedade política brasileira uma responsabilidade excessiva pelo vácuo entre

sociedade civil e sistema político-jurídico 135. O que, a rigor, acaba por restringir

sua análise à discussão de questões relacionadas apenas ao regime político,

negligenciando a investigação de outras dimensões do problema 136.

Bernardes chama a atenção para a existência de bloqueios numa etapa

anterior àquela sobre a qual Avritzer concentra sua atenção. Segundo ela:

“(…) the first challenge one faces when trying to eliminate, or at least diminish, domination in stratified societies is to thematize the relations of domination ― such as those involving the rich and the poor, the rural property owner and the land worker, the politician and his or her constituent ― thereby taking them out of the lifeworld background and putting them into the public sphere, making these relations of domination an issue on the public agenda”. 137

Na verdade, o modelo discursivo da esfera pública, segundo Bernardes,

não explora de forma detalhada o modo como os fluxos comunicativos

provenientes da esfera pública ingressam no sistema político-jurídico. Habermas

assumiria, simplesmente, que o modelo das comportas é suficiente para se

compreender o processo de conversão da opinião pública formada

discursivamente em poder comunicativo e, então, em poder administrativo.

Contudo, no caso brasileiro, essas passagens não são simples e muito menos

automáticas 138. Devido ao hibridismo de nossa cultura política, que mistura

elementos democráticos e não democráticos, constituiu-se, no Brasil, um mundo

da vida estruturado sobre um pano de fundo normativo repleto de ambigüidades,

cujas estruturas tradicionais e privatistas ainda não foram suficientemente

tematizadas e problematizadas. Assim, haveria dois momentos problemáticos, que

são anteriores ao bloqueio sofrido pelos fluxos comunicativos no sistema político-

135 Cf. BERNARDES, ob. cit., p. 99. 136 “Although he [Avritzer] says that the main obstacles to democracy in the country are (1) the nature of the elites, (2) the hybridization of Brazil’s democratic practices, and (3) the lack of institutional mechanisms capable of assuring accountability or of expanding the public culture, he does not sufficiently theorize how the cultural hybridism affects society at large, whose support for, tolerance of, or resignation to many widespread undemocratic practices has been pivotal for their continuation, as the cases of police brutality against the urban poor and the peasantry clearly illustrate” (Ibid., pp. 99-100). 137 Ibid., pp. 100-101. 138 Ibid., p. 102.

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163

jurídico, a saber: conseguir perceber e tematizar, nos micro-domínios da vida

cotidiana, temas sobre os quais se sustentam relações de dominação racionalmente

injustificáveis, e incluí-los na pauta de discussões da esfera pública a fim de que

os mesmo ganhem repercussão. Como resultado, tem-se que: “(1) some topics do

not reach the dominant public sphere; (2) even when they do, the influence of the

discursively generated public opinion is not always strong enough to overcome

the traditional structural barriers to its transformation into communicative and,

then, administrative power” 139.

Bernardes procura explorar como o processo de consolidação de esferas

públicas transnacionais pode desempenhar um papel relevante para a superação de

tais problemas no Brasil, cogitando, ainda, assim como Avritzer, da necessidade

de se atrelar os resultados dos processos deliberativos a algum tipo de poder 140.

Dentre os autores brasileiros que trabalham a partir do marco teórico do

modelo discursivo da esfera pública, Costa parece ser o mais próximo das idéias

originariamente defendidas por Habermas. Principalmente no que diz respeito à

proposta habermasiana de auto-limitação da sociedade civil, que, em momento

algum é por ele questionada. Assim, para Costa, os atores da sociedade civil não

poderiam exercer qualquer tipo de poder político ou administrativo, mas apenas

influência 141 sobre as deliberações de instituições autorizadas responsáveis pela da

formação democrática da opinião e da vontade política. Há que se manter, pois, “a

distinção entre a esfera societária e a esfera política e o Estado, de sorte que a

influência da sociedade civil se concretize de forma anônima e difusa por meio da

existência de uma esfera pública transparente e porosa, permeável às questões

originadas no mundo da vida” 142.

139 Ibid., pp. 102-103. 140 Ibid., pp. 101-103. 141 E “(...) essa influência pública e política tem que passar antes pelo filtro dos processos institucionalizados da formação democrática da opinião e da vontade, transformar-se em poder comunicativo e infiltrar-se numa legislação legítima, antes que a opinião pública, concretamente generalizada, possa se transformar numa convicção testada sob o ponto de vista da generalização de interesses e capaz de legitimar decisões políticas” (Ibid. p. 105). Como explica Costa: “Os atores da sociedade civil não possuem poder político ou administrativo, dispõem apenas de uma forma mediatizada de geração de poder. Isto é, a influência destes sobre a política consubstancializa-se nas mensagens que, percorrendo os mecanismos institucionalizados do Estado constitucional, alcançam os núcleos decisórios. Desta forma, procura-se afastar a idéia de que a sociedade civil possa assumir as funções que cabem ao Estado”. (Cf. COSTA, Sérgio. A Democracia e a Dinâmica da Esfera Pública..., pp. 60-61). 142 Cf. COSTA, Sérgio. As Cores de Ercília..., p. 26.

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164

Ponto extremamente caro a Costa no modelo discursivo da esfera pública é a

preservação do enraizamento dos movimentos sociais e demais atores da sociedade

civil em esferas sociais “que são, do ponto de vista institucional, pré-políticas” 143.

Assim, a intenção de se transformar a legitimidade democrática dos movimentos

sociais e atores da sociedade civil em performance participativo-institucional é vista

com ressalvas pelo autor 144. Porque, segundo ele, “o caráter diferencial e renovador

da ação dos movimentos sociais reside precisamente na sua institucionalidade distinta

(mais flexível e informal) e em seu ancoramento nos processos primários de

reprodução social” 145. Vale dizer, sua contribuição para o revigoramento da vida

pública deve se restringir à função de “tornar conhecidas demandas e questões que

emergem nas franjas dos núcleos institucionais de discussão e deliberação” 146.

Assim, diante de todo o exposto, resta evidente, a meu ver, que o uso da

concepção discursiva de esfera pública na América latina demanda que se

enfrente, previamente, críticas feitas a tal modelo que têm por objetivo sua

adaptação a contextos sociais distintos daquele de sua criação, na Europa. As

divergências existentes entre as contribuições de Costa, Avritzer e Bernardes, em

última análise, giram em torno de uma questão fundamental, qual seja, a de saber

se – e como – o modelo discursivo de esfera pública – tal qual proposto por

Habermas a partir da realidade sócio-política dos países da Europa Ocidental – e a

proposta emancipadora e democratizante nele encarnada podem ser aplicados à

realidade política brasileira. 143 Id., Movimentos Sociais, Democratização e a Construção de Esferas Públicas Locais..., p. 122. 144 “São compreensíveis as angústias daqueles atores políticos e daqueles cientistas sociais que, apercebendo-se da ‘feudalização’ do Estado pelos interesses privados e do solapamento do conteúdo público das arenas representativas pelas práticas e acordos intransparentes, apostam no ‘arejamento’ da esfera pública mediante a ampliação das competências institucionais dos ‘atores da sociedade civil’. Não obstante, a circunscrição da democratização da esfera pública ao seu âmbito institucional pode apresentar conseqüências políticas e analíticas danosas. Politicamente, ela pode representar a indução ao surgimento de atores que, apesar de serem formalmente delegados da sociedade civil, apresentam-se desvinculados dos anseios e expectativas políticas da população. Reproduzirão assim, nas arenas institucionais, sua lógica sistêmica, divulgado demandas constituídas no âmbito estrito da própria organização” (Cf. COSTA, Sérgio. Atores da Sociedade Civil e Participação Política: Algumas Restrições. In: Cadernos do CEAS, n. 155, jan-fev 1995, pp. 72-74). Por outro lado, “Analiticamente, a redução da esfera pública à sua dimensão institucional ofusca a visualização das regiões de articulação entre os processos comunicativos de reprodução cultural e as formas de consolidação institucional da democracia. Nesse movimento, os atores da sociedade civil são transformados em atores intermediadores de interesses políticos, destituídos de qualquer idiossincrasia sociocultural. Já não serão mais os co-responsáveis pela tradução e transmissão para a órbita político-institucional dos anseios difusos gestados nos interstícios do tecido social. Tampouco contribuirão, agindo na direção oposta, para o enraizamento dos valores democráticos nas ‘práticas cotidianas’ ” (Ibid., loc. cit.). 145 Id., Do simulacro e do discurso..., p. 131. 146 Ibid., loc. cit..

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Um aspecto importante desse debate para o tema do presente estudo é o da

influência dos resultados das deliberações na esfera pública nos processos

decisórios das agências reguladoras. Isso porque, vale lembrar, não há qualquer

obrigatoriedade por parte do Conselho Diretor em adotar as sugestões dos atores

participantes dos procedimentos deliberativos. A pesquisa de Mattos demonstra,

como visto, que é baixo o índice de incorporação das sugestões de alteração dos

textos normativos submetidos a consultas públicas pela ANATEL. Demonstra,

também, que na grande maioria das consultas públicas não houve nem mesmo

justificativa formalizada em relação às sugestões recusadas pela agência.

Se as hipóteses de Avritzer e Bernardes estiverem corretas, não haveria,

efetivamente, um potencial democrático nos mecanismos de participação popular

institucionalizados nos processos decisórios das agências reguladoras. Esses

mecanismos teriam que ser “reforçados” por algum tipo de instrumento que

atrelasse o resultado da deliberação a algum tipo de poder sobre a decisão do

Conselho Diretor da agência reguladora. Mas, tendo em vista as desigualdades de

recursos materiais existentes entre as empresas reguladas e os demais atores

envolvidos nos processos participativos das agências reguladoras, em termos de

informação, tempo e dinheiro, que conseqüências a vinculação das decisões das

agências ao resultado das deliberações poderia gerar?

Esse tipo de questão é um exemplo dos desafios que se apresentam à

utilização do modelo discursivo de esfera pública para a análise da legitimidade

da atuação normativa das agências reguladoras no Brasil. A escolha de uma ou

outra concepção teórica sobre a recepção de tal modelo nos estudos sobre a

realidade política brasileira tem repercussão direta nas conclusões a que se chega

em termos de propostas de solução.

Mattos, porém, não entra nesse mérito. Em sua análise, o autor atribui

relevância excessiva à questão do desenho institucional de mecanismos de

participação popular que sejam capazes de funcionar, efetivamente, como canais

através dos quais os impulsos de poder comunicativo oriundos da esfera pública

possam influenciar os processos de tomada de decisão da Administração Pública.

Com isso, perde de vista o debate sobre a construção e o funcionamento da esfera

pública no Brasil, e negligencia questões relevantes, diretamente associadas às

condições de surgimento do poder comunicativo nesses ambientes, fazendo com

que sua análise se torne incompleta. Pois, ainda que os instrumentos de

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participação pública sejam capazes de viabilizar um funcionamento de uma esfera

pública capaz de transmitir fluxos comunicativos gerados no âmbito de interações

pautadas pelo entendimento para as instâncias decisórias das agências

reguladoras, permanece sem resposta a questão da sustentação, no nível da

sociedade, desta formação espontânea de opinião, ancorada no mundo da vida 147.

147 “(...) uma cultura jurídica pós-autoritária e uma sociedade civil ativa não podem ser simplesmente fabricadas. O poder administrativo não é o instrumento apropriado para a construção de formas de convivência democráticas. Elas só podem ser gestadas no âmbito dos processos comunicativos presentes nos diferentes níveis da vida social e que perpassam e conformam a esfera pública em suas variadas dimensões. Os esforços – necessários e desejados! – de ‘tradução’ político-institucional de padrões político-culturais emergentes não podem, por isso, deixar de observar o processo autônomo e socialmente difuso de construção desses padrões” (Cf. COSTA, Sérgio. Movimentos Sociais, Democratização e a Construção de Esferas Públicas Locais..., p. 132).

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5 Conclusão

Passados mais de dez anos do surgimento das primeiras agências

reguladoras no Brasil, as controvérsias acerca da legitimidade de sua atuação

permanecem. Longe de ser apenas um problema teórico, tal questão gera efeitos

concretos para o funcionamento das instituições do Estado brasileiro e, em última

análise, para a integração social. Numa cultura jurídica fundada, ainda, numa

concepção liberal clássica do Direito e da democracia, as agências reguladoras

parecem ter dificuldades para desempenhar de forma eficiente a função para a

qual foram criadas.

Indícios disso podem ser observados em pesquisa recente do Supremo

Tribunal Federal 1 sobre os Recursos Extraordinários e Agravos de Instrumento –

ao todo, 3.991 – recebidos entre julho e novembro de 2007, já distribuídos aos

ministros com a preliminar de repercussão geral por assunto. O estudo demonstra

que os processos judiciais que têm por objeto questões relativas à telefonia

constituem a terceira maior demanda do tribunal 2 (11,6%). É certo que a maior

parte desses casos tem sua origem nas relações de consumo entre as empresas de

telefonia e seus clientes. No entanto, o excessivo número de processos judiciais

envolvendo as empresas reguladas pela ANATEL pode, talvez, significar que a

atuação da agência encontra-se desvinculada das demandas legítimas a ela

dirigidas pelos atores da sociedade civil. A hipótese de que os consumidores de

serviços de telecomunicações não vislumbram a possibilidade de reconhecimento

e defesa de seus interesses pela ANATEL e, portanto, dirigem suas demandas em

face das empresas concessionárias, primordialmente, ao Judiciário, e não à

agência, parece, a meu ver, uma explicação bastante plausível para esse

fenômeno. Aquilo que Mattos identificou como “déficits democráticos” na

ANATEL – ver supra, item 4. 1 – corroboraria para tal hipótese explicativa, que,

naturalmente, teria que ser investigada mais a fundo. 1 Supremo Tribunal Federal. Gabinete Extraordinário de Assuntos Institucionais. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário. Dezembro de 2007. Disponível em http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudenciaRepercussaoGeral/arquivo/estudoRepercussaoGeral.pdf (acesso em: 06.05.2008). 2 O número de processos envolvendo questões de regulação de telefonia representa 11,60% dos processos que chegaram ao STF no período, ficando atrás apenas das demandas envolvendo servidores públicos e militares (20,32%) e execuções fiscais e questões fiscais (20,17%).

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168

No plano teórico, a compreensão do tema continua nebulosa. Estudos

como o de Pó e Abrúcio demonstram que o formato institucional e as regras às

quais uma agência reguladora está submetida interferem no comportamento da

burocracia e dos atores do respectivo setor regulado, permitindo a ampliação da

accountability e do espaço democrático. Contudo, no mesmo trabalho, os autores

também reconhecem que formato institucional e regras quanto ao funcionamento

das agências idênticos, não garantem, por si só, resultados iguais se aplicados em

contextos diferentes. Ou seja, se os mecanismos institucionais de participação

popular podem funcionar como um canal por meio do qual a atuação das agências

reguladoras pode ligar-se com as demandas da sociedade civil, sua mera previsão

legal parece não ser suficiente para garantir uma atuação legítima dessas

entidades.

No estágio atual da discussão, portanto, as análises, positivas ou negativas,

sobre a legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras, que

extrapolam o plano jurídico-formal, parecem se diferenciar a partir do ponto de

vista do qual observam o mesmo fenômeno. Aqueles que acreditam no potencial

de legitimação democrática da participação popular nos processos decisórios

ressaltam o caminho que já se percorreu, no Brasil, desde o fim do regime militar,

no sentido da democratização da Administração Pública e do controle – prévio e

posterior – de suas decisões. Outros, porém, concentram-se em destacar quanto

ainda falta percorrer neste mesmo caminho.

Nessa linha de raciocínio, ponto nuclear para se enfrentar tal controvérsia

parece residir na compreensão da maneira pela qual as diferentes realidades sócio-

políticas dos processos decisórios das agências reguladoras (facticidade) se

relacionam com as regras e o formato institucional aos quais estão submetidas

(validade), e de como essa relação de tensão entre esses elementos interfere no

processo – constante e ambíguo – de democratização do funcionamento dessas

entidades. Justamente por isso, procurei explorar uma perspectiva teórica que, a

meu ver, pode contribuir de maneira relevante para o enfrentamento dessa questão

crucial.

Ainda na introdução, alertei, porém, que não seria apresentada qualquer

resposta definitiva quanto à viabilidade da aplicação das idéias sustentadas pela

teoria discursiva do Direito e da democracia de Jürgen Habermas à questão da

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169

legitimidade da atuação normativa das agências reguladoras brasileiras. Agora, ao

final, as razões pela qual assumi postura tão cautelosa restam evidentes.

Na verdade, a principal conclusão do presente estudo, em torno da qual

gravitam as críticas que apresentei à proposta de Mattos, é a de que há muito o

que desenvolver entre o nível ultra-abstrato no qual Habermas concebe sua teoria

e os problemas concretos que se apresentam nas agências reguladoras brasileiras.

Existe um espaço considerável – diria mesmo um abismo – a ser preenchido por

teorias intermediárias que, inspiradas pela obra de Habermas, podem tentar

desenvolver um aparato conceitual mais adequado ao tratamento de problemas

sociais concretos, que surgem em contextos sociais distintos daquele no qual

Habermas desenvolveu sua obra.

O modelo teórico habermasiano fornece, sem dúvidas, pontos de

referência a partir dos quais a questão da legitimidade pode ser tratada de forma

mais adequada nas sociedades capitalistas contemporâneas. Mattos percebeu as

vantagens analíticas de tal modelo em relação ao conceito de legitimidade que, até

hoje, fundamenta os trabalhos que tratam do tema tanto no meio jurídico

brasileiro, quanto no âmbito da tradição teórica político-social de nosso país. Sua

obra evidencia as insuficiências de ambas as perspectivas e procura desenvolver

um conteúdo normativo para os mecanismos de participação popular, capaz de

apontar os potenciais e déficits democráticos desses instrumentos.

Por outro lado, sua proposta ousada e inovadora de operacionalização dos

conceitos de Habermas abre espaço para a discussão das etapas intermediárias que

devem ser percorridas numa tal empreitada. Ou seja, pensar o desenho

institucional dos mecanismos de participação popular a partir de sua relação com

as demais instituições do Estado Democrático de Direito; operacionalizar o

conceito de legitimidade para a construção de um modelo empírico de análise; e

explorar as repercussões dos recentes desenvolvimentos da concepção discursiva

de esfera pública na realidade brasileira para o estudo da participação popular nos

processo de tomada de decisão das agências reguladoras, são apenas exemplos de

questões a serem desenvolvidas nesse nível intermediário.

E, em última análise, construir a solução para tais questões nada mais é do

que responder à pergunta sobre a viabilidade da aplicação do modelo

habermasiano à realidade das agências reguladoras brasileiras.

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