MARIA RAMALHO ESPECIALISTA EM DIREITO DO TRABALHO
Voltou-se "bastante atrás"no memorando da troika
Foi a terceira doutorada na área em Portugal.Diz que "o empregador pode fazer quasetudo com o tempo de trabalho".
PRIMEIRA LINHA ALTERAÇÕES À LEI LABORAL
MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHOPROFESSORA DE DIREITO DO TRABALHO
Novo período deexperiência traz"precariedadedescontrolada"Um país com despedimentos rígidos, como Portugal, deve ser flexívelna contratação a termo. Mas as alterações ao Código do Trabalhotrocam precariedade "semicontrolada" por "precariedade total".
CATARINA ALMEIDA PEREIRA
O alargamento do pe-ríodo experimentalde trabalhadores à
procura do primeiro
emprego e desem-
pregados de longa duração pode pro-mover uma precariedade "descon-
trolada", considera Maria do Rosá-
rio Palma Ramalho. Apresidente da
Associação Portuguesa de Direito do
Trabalho alerta ainda que esta me-dida comporta um duplo risco de in-constitucionalidade. Podem estar
em causa os princípios da segurançano emprego e da igualdade.
Com estas alterações ao Códigodo Trabalho, a precariedade vai
baixar em Portugal?Este diploma está pensado justa-
mente para fazer baixaraprecarieda-de - diz isso na exposição de motivos.
Do meu ponto de vista, estas medidas
nãovãodiminuiraprecariedade.An-tes existe o risco de a aumentar.
Aumentar porquê?
Aprincipal medida é dirigida aos
trabalhadores à procura de primeiro
emprego e desempregados de longa
duração, que deixam de ter acesso à
possibilidade de serem contratados a
termo mesmo para necessidades per-
manentes da empresa. Isso desapare-ce. E substituído por uma outramedi-da de contornos complexos que é o
alargamento do período experimen-tal até seis meses. Ora, o que vai acon-tecer?Estestrabalhadorestinhamaté
agora um contrato a termo. Passam a
poder ter um contrato por tempo in-
determinado, mas com um período
experimental com a duração normal
de um contrato atermo: seis meses. Se
num contrato a termo por seis meses
eles pelo menos sabiam quando ces-
sava o seu contrato, e teriam direito a
uma compensação, agora passam a
poder ser contratados por tempo in-
determinado, mas o seu contrato pode
cessar a qualquer momento e sem in-
demnização. Ou seja, há a passagemdeuma situação deprecariedade ape-sar de tudo semicontrolada para umaprecariedade total, descontrolada.
Não acredito que isto traga qualquerestabilidade.
0 Governo argumenta que está aincentivar a contratação sem ter-
mo.A nossa legislação do trabalho
tem sempre tentado diminuir a pre-cariedade [eml9B9eem2oo9].Por-que o contrato a termo tem sido de
utilização muito frequente e certa-mente além das motivações normais
de um contrato de trabalho a termo,além das necessidades temporárias.
Simplesmente falta fazer a reflexãosobre as causas dessa utilização. Anossa legislação vai aos sintomas da
doença, mas não vai à causa.
Eaqualéacausa?A causa é que temos um regime
muito restritivo em matéria de des-
pedimento. Nos países que têm umregime mais livre de despedimento o
recurso à contratação a termo é mui-to mais limitado.
Mas durante o programa de ajus-tamento diminuímos a rigidezdos contratos sem termo, sobre-
tudo através da redução das
compensações por despedimen-to. E não houve qualquer redu-
ção da precariedade. 0 que a faz
pensar que uma nova medidanesse sentido iria funcionar?
A flexibUização dos despedimen-tos não é apenas em matéria do valor
da compensação. [...] Portugal ainda é
dos países onde é mais difícil despedir
porcausa dos fundamentos.
Aprofundando o seu raciocínio,continuará sempre a existir umincentivo para contratar a ter-mo enquanto não chegarmosao ponto teórico do contratoúnico.
Não, até porque o contrato úni-co em Portugal seria inconstitucio-nal. Temos uma proibição de des-
pedimentos sem justa causa, e bem,
porque o contrato do trabalho não
é um contrato qualquer, o trabalha-dor deve ser protegido no despedi-mento. O que eu tenho sempre de-fendido é que quando nós temos um
regime de despedimentos rígido de-veríamos ter um regime de contra-
tação a termo flexível. A Alemanha
pode fazer contratos de trabalho a
termo até dois anos sem justifica-ção. Eu tenho uma visão desta ma-téria que decorre da estatística: cada
vez que restringimos os contratosde trabalho a termo, e fizemo-lo em
1989, surgem outros fenómenosmuito piores: por exemplo, a ques-tão dos [falsos] recibos verdes só é
relevante a partir de 1989.
E neste caso o refúgio vai ser o
contrato por tempo indetermi-
nado com dispensa no perío-do experimental.Exactamente. Será. Sendo que
aplicar-se só aos desempregados de
longa duração e aos trabalhadores à
procurade primeiro emprego é uma
solução bizarra, cuj a constituciona-
lidade é duvidosa. O período experi-mental existeparaumafunção, para
que as partes avaliem o seu interes-
se em continuar aquela relação. As
únicas situações em que é mais alar-
gado [180 dias] é nos chamados car-
gos de complexidade técnica ou os
cargos dirigentes. Ora neste caso te-mos um alargamento que não temnada que ver com o cargo. Tem quever como facto de aquelapessoanão
ter tido nunca um emprego ou de jáestar há mais de um ano àprocuradetrabalho. Portanto: tem que ver comuma qualidade do sujeito. Não éparaisso que o período experimental foi
instituído.
Achaque tem deser em funçãodas características do cargo e
não do sujeito?
Repare: o despedimento duran-
te o período experimental é uma ex-
cepção ao artigo 53.° da Constitui-
ção, ao princípio da segurança do
emprego. Que tem umajustificaçãoobjectiva, lógica e admissível. Se va-mos começar a esticar... Além de po-der haver aqui uma discriminação
emfunçãodaidade, as pessoas àpro-
cura de primeiro emprego são qua-se todas jovens. Ou então uma dis-
criminação em razão da situaçãoeconómica porque umdesemprega-
do de longa duração, portanto, está
sem rendimentos há muito tempo.
Está a dizer é que não está
apenas em causa o princípioda segurança no emprego.Pode estar em causa o princípio
da igualdade.
Defendequecom um regime de
despedimentos rígidos devía-
mos ter um regime de contrata-
ção a termo flexível. Mas há u m
certo consenso contra a preca-riedade, nomeadamente quan-do se discute, por exemplo, anatalidade.
Pois há. Mas o problema é queo nosso Código assenta na ideia de
que osempregos do século XXl são
iguais aos empregos do século XXe até do século XIX e não é verda-de. Veja os jovens trabalhadores.Não estão à procura de um empre-go para a vida. [...] Parece-lhe queos jovens que agora vão ser contra-tados por tempo indeterminadocom período experimental de seis
meses vão pensar na natalidade du-
rante esses seis meses?
E se estiverem com contratos a
prazo?
Apesar de tudo, o contrato a
prazo pode ir até três anos - agorasegundo a proposta passa a ser dois- só pode cessar no final daqueletempo, não pode cessar a meio sem
razão, quando cessar confere di-reito a uma compensação, confe-re direito a prestações de subsídio
de desemprego [se for renovado,
por via dos descontos] . É um bo-cadinho menos instável do que o
trabalhador que é contratado portempo indeterminado e ao fim de
três ou cinco meses e 29 dias temde sair. O que estou a dizer é que,do meu ponto de vista, o que é ditona exposição de motivos comosendo objectivo do diploma não é
conseguido com as medidas que o
diploma traz. ¦
PERFIL
A 3. a doutoradaem Direitode Trabalho
Professora de Direito do Traba-lho da Faculdade de Direito daUniversidade de Lisboa, Mariado Rosário Palma Ramalho foi aterceira pessoa em Portugal a ti-rar o doutoramento em Direitodo Trabalho, "uma área que pre-
cisava de um tratamento cientí-fico profundo porque antes do
25 de Abril praticamente nãoexistia". É professora catedráti-ca de Direito do Trabalho na Fa-culdade de Direito da Universi-dade de Lisboa. Faz consultorianesta área e na da igualdade. Em
2013, coordenou a equipa queajudou a elaborar a Lei Geral do
Trabalho em Funções Públicas.É desde esse ano presidente da
Associação Portuguesa de Direi-to do Trabalho (APODIT), um"fórum" que junta advogados,magistrados, inspectores ou
académicos, em debates em
Portugal e no estrangeiro.
"O empregador podefazer quase tudo como tempo de trabalho"
Era preciso alterar o regime do
banco de horas individual, palco de
"abusos". A lei dá pouca margemao empregador nos salários ou des-
pedimentos e muita no tempo de
trabalho, considera Maria do Ro-sário Palma Ramalho.
Faz sentido acabar com o ban-
co de horas individual?
O banco de horas individualtem sido palco de vários abusos porparte dos empregadores. Não nos
podemos esquecer de que o con-trato de trabalho não é um contra-
to como outro qualquer. É um con-trato em que há uma pessoa subor-
dinada a outra pessoa. Portanto,acaba porhaveruma certa imposi-
ção [do banco de horas] a coberto
de um acordo.
Que na sua opinião é nocivo
para as pessoas?
Embora possa em teoria até fa-
vorecer interesses do trabalhador,como a conciliação entre a vida pri-vada e a vida familiar, na prática o
banco de horas em Portugal é uti-lizado por razões apenas ligadas a
interesses empresariais. Isso é le-
gítimo porque a lei o permite, masé desequilibrado.
Neste ponto concorda com o
sentido da política do Governo?
Concordo que devia ser feitauma intervenção. Não sei se esta foide facto a melhor porque esta so-
lução é um bocadinho bizarra e es-
capa ao controlo da convenção co-lectiva.
Está a falar do banco de horas
grupai?Sim.
É uma nova figura?E pelo menos uma solução ori-
ginal. Mas em grandes empresasissojá se faz. Vamos lá ver: nós nem
precisaríamos de fazer desapare-cer o banco de horas individual.Precisaríamos era de dizer que ele
era subsidiário em relação ao ban-
co de horas da convenção colecti-
va. É o que acontece, por exemplo,
no regime de adaptabilidade. Isso
tornaria outra vez necessário ao
empregador e apelativo para as as-
sociações sindicais regularem esta
matéria na contratação colectiva.
Não haveria o mesmo desequilí-brio negociai. Porque não é o tra-balhador que negoceia sozinho.
Neste pacote elimina-se o ban-
co de horas individual, masnão se toca noutros aspectosdo tempo do trabalho.O nosso sistema tem uns dese-
quilíbrios: há áreasem que protegeimenso: trabalho atenuo, despedi-
mento, remuneração. São áreas em
que o sistema é muito rígido. E há
outras normas em que o sistema ali-
geirou muitíssimo, a partir do Có-
digo de 2003: adaptabilidade fun-
cional, mobilidade geográfica, fle-xibilidade temporal, aligeirou mui-tíssimo. Portanto: o sistema é dese-
quilibrado. O tempo do trabalho é
das matérias em que hoje em dia o
empregador praticamente tudo
pode fazer. Só 20 e poucos porcen-to dos trabalhadores é que aindatêm um horário rígido.
Mas elimina-se o banco de ho-
ras individual. 0 que acha queainda pode ser crítico no tem-
po de trabalho?
Temos de pensar estrategica-mente o sistema Em Portugal, tra-balha-se muitas horas mas não se
trabalha produtivamente muitashoras. Os nossos empresários são
tradicionais: gostam de ter um tra-balhador extensivo e não intensi-
vo. Gostam de ter o trabalhador lá
muitas horas. E uma cultura. E isso
não se coaduna com outras vidas
que as pessoas têm direito a ter.
Mais: ainda gostam de o poder con-tactar quando eleja lá não está 24sobre 24 horas.
Era necessário regular isso
na lei ou a lei já é clara?
O direito à desconexão? Comofizeram os franceses? Não precisa-mos de regular, mas precisamos de
nos habituar, enquanto trabalha-
dores, a não atender o telefone. ¦
MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO PROFESSORA DE DIREITO DO TRABALHO
Voltou-se "bastante atrás"no memorando da troika"Paulatinamente", tem-se voltado "bastante atrás" no memorando deentendimento. A opinião de Maria do Rosário Palma Ramalho é sustentadanas portarias de extensão, que "despromovem" a filiação sindical.
CATARINA ALMEIDA PEREIRA
Nãoé verdade que as re-
formas introduzidasdurante o programade ajustamento se
mantenham praticamente intactas,considera Maria do Rosário Palma
Ramalho, sustentando que as por-tarias de extensão despromovem a
filiação sindical.
0 Governo optou por não re-
vogar quase nada do memo-rando de entendimento, salvo
o banco de horas individual,além dos feriados que foram
repostos em 2016. Faz bem?
Bem... Também já revogou ou-tras coisas. Já revogou a política so-
bre portarias de extensão, revoga a
matéria do entendimento sobre o
trabalho suplementar, que passoua ser imperativo para as convençõescolectivas [que não poderão estabe-
lecer valores de pagamento de tra-balho suplementar mais baixos do
que a lei].
0 que seria importante paraquem está, por exemplo, a ten-tar compensar o fim do banco
de horas individual.
Por exemplo. [E] poderá serim-
portante numa época de crise eco-nómica que as convenções que os
sindicatos possam acordar com os
empregadores baixem o valor do
trabalho extraordinário a pagarcontra a promessa de não haver des-
pedimentos. Portanto, paulatina-mente tem-se voltado bastanteatrás no memorando.
Bastante? E as compensações,os despedimentos, as férias, o
próprio valor do trabalho su-
plementar? Não acha que a re-forma laborai da troika está pra-ticamente inalterada?
Não, não partilho dessa opinião.Acho que em algumas coisas se vol-tou atrás e em algumas coisas comefeitos estruturais no sistema. Como
nas portarias de extensão. Há mui-tos anos que critico esta figura, mui-to cómoda tanto para empregado-res como para associações sindicais.
É paternalista.Exacto. E desresponsabilizan-
te e a prazo mina o sistema de auto-nomia colectiva, não promove, an-tes despromove, a filiação sindical.
O trabalhador sabe que cedo ou tar-de lhe vai ser aplicada a convençãocolectiva e, portanto, não tem de se
mexer, não tem de se filiar nos sin-dicatos. Basta ver os dados do LivroVerde com oito e tal por cento de
trabalhadores filiados. Anossa con-
tratação colectiva não é represen-tativa. E isso deve-se em grande par-te às portarias de extensão.
Teríamos um sistema maissaudável se incentivássemos
a filiação sindical?
Sem dúvida. Se uma convençãocolectiva é celebrada em represen-
tação de 8% dos trabalhadores e de-
pois por via de uma portaria de ex-tensão a está a aplicar a 90% dos
trabalhadores ... Obviamente há
uma falha de representatividade,não é? Por outro lado, estigmatizacada vez mais os trabalhadores sin-
dicalizados, porque são tão poucos
que são apontados a dedo nas em-
presas.
0 Governo não acaba com a
caducidade, mas introduz um
novo prazo que a pode atrasar.É uma medida que pode sus-
pender o prazo de sobrevigência até
quatro meses, mas ainda acrescen-tar o tempo do próprio processo,
porque desencadeia uma nova for-ma de arbitragem que há-de ser re-
gulamentada. [Portanto] podem sermuito mais do que quatro meses. [...]
Temos em Portugal convenções co-lectivas de vida efémera, curtíssima,e de morte interminável.
Defende [a caducidade e] um
regime de contrato a termoflexível. Já quando pensa no
banco de horas preocupa-secom a falta de poder negociaido trabalhador. E critica polí-ticas que desincentivam a fi-
liação sindical. Como se arti-culam estas ideias?
Vamos lá ver: há uma alteraçãode modelo das relações de trabalho.
O trabalhador pode trabalhar da sua
casa ou da China. Com as novas tec-
nologias pode ser chamado [a qual-
quer hora]. As próprias relações de
trabalho são menos estáveis, nin-
guém já quer emprego para a vida.Por outro lado, como o trabalhadorde hoje tem mais habilitações, háuma ilusão de que o trabalhador é
hoje mais igual em relação ao em-
pregador. Isso é falso: está tão su-bordinado como já esteve e a rela-
ção de trabalho é tão desequilibra-
da como já foi. Tem a possibilidadede invasão da privacidade, que não
tinha. Tem as novas tecnologias a
apitar no seu ouvido, que não tinha.Há fenómenos de assédio relevan-tíssimos. A legislação deve-se
adaptar mais a novos paradigmase não pensar no contrato de tra-balho tal como ele era há 50 ou há
70 anos. Mas por outro lado a di-mensão colectiva é muito impor-tante porque se mantém aquelafalta de suficiente dos trabalhado-res nas relações individuais. E porisso o peso dos sindicatos e das co-missões de trabalhadores tem de
ser maior. ¦