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  • MASTECL ou

    Tratado Geral da Comdia

    Texto de

    LUIS ALBERTO DE ABREU

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    PRLOGO

    NO PALCO APENAS UMA CADEIRA E UMA MESA.

    SOBRE ESTA UM COPO E UMA GARRAFA DE GUA.

    ANTES DE SE INICIAR O ESPETCULO, APS O SE-

    GUNDO SINAL, UM SUJEITO ENTRA NO PALCO E

    LENTAMENTE O ATRAVESSA. ASSEMELHA-SE MAIS

    A UM DAQUELES VELHOS E FURIBUNDOS FUNCIO-

    NRIOS DE TEATRO J MEIO ESCLEROSADOS QUE

    SE IRRITAM COM QUALQUER COISA QUE A PLATIA

    FAA. NO TRAJETO ENVIA OLHARES IRRITADOS

    PLATIA, ENCARA-A, S VEZES PRA FIXANDO

    PESSOAS DO PBLICO QUE FALEM MAIS ALTO OU

    SE AGITEM. O JOGO TODO BASEADO EM ESTMU-

    LO-RESPOSTA COM A PLATIA. O AUTORITRIO

    FUNCIONRIO QUER A PLATIA EM SILNCIO E

    ATENTA. ENTRA NAS COXIAS, MAS IMEDIATAMENTE

    RETORNA NO MESMO PASSO COMO SE QUISESSE

    SURPREENDER O PBLICO EM ALGUM COMPOR-

    TAMENTO ILCITO. SE HOUVER RISOS OU ALGUMA

    MANIFESTAO DA PLATIA ELE TAMBM REAGE.

    AO FIM DO JOGO ELE COMEA SUA IMPRECAO

    AGRESSIVA QUE, AOS POUCOS, VAI SE TORNANDO

    MAIS E MAIS GRADILOQUENTE.

    BOCARRO: (A ALGUM DO PBLICO) Que foi? Algum problema?

    Levou facada ou a cara assim mesmo? Nasceu assim

    ou foi acidente? (FAZ UM GESTO DE DESAGRADO

    PARA A PLATIA, VIRA-SE PARA SAIR, MAS VOLTA

    IRRITADO. AO PBLICO EM GERAL) Vocs esto pen-

    sando que no sou polido, no tenho educao, no nasci

    em bero de ouro, no mesmo? Ento vou esclarecer

    uma coisa: isso mesmo! E mais: sou o zelador deste te-

    atro. E o que faz um zelador? Um zelador eu! zela por

    aquilo que outras pessoas vocs! no apreciam cui-

    dar. Por isso, ai! se eu pegar algum jogando papel no

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    cho! Ai,ai!, se descobrir algum colando chicletes debai-

    xo das poltronas! Ai, ai, ai!, se algum puser os ps sobre

    elas! Ai,ai,ai,ai!, se eu ouvir bips, pagers e celulares to-

    cando durante o espetculo! Aproveito para informar que

    este teatro est equipado com todos equipamentos de

    segurana e que possui sada de emergncia e se todos

    vocs quiserem aproveitar, se levantar, fazer uma fila or-

    deira e sair por ela, um favor que me fazem! (ESPERA

    UM TEMPO) J que ficaram quero comportamento civili-

    zado! (FIXA ALGUM DO PBLICO) A senhorita, d pra

    fechar as pernas quando sentar? O senhor, d pra parar

    de tirar cera do ouvido? E a bolinha que, com muito em-

    penho, trabalho e arte, conseguiu extrair no jogue no

    meu cho! (A OUTRO) O senhor pare de chupar os den-

    tes e... (FIXA OUTRO ESPECTADOR, MENEIA A CA-

    BEA, INCONFORMADO) Meu Deus! O senhor sabia

    que enquanto se espera o incio de um espetculo os de-

    dos servem para fazer milhes de outras coisas que no

    sejam coar o miolo da bunda, raspar o saco ou dragar

    lodo e caca do fundo do nariz? Ningum precisa gostar

    de mim e meu contrato no diz que devo ser simptico

    com vocs. E, se difcil pra vocs suportar a mim que

    sou um s, imaginem o que , pra mim, suportar todos

    vocs, todos os dias, durante todos esses anos! Mas j

    que, por azar do destino, vamos ter essa breve convivn-

    cia que ela seja, pelo menos, tolervel! Saio, mas estarei

    l atrs vigiando cada um de vocs! (SAI. TOCA O TER-

    CEIRO SINAL. ENTRA O ACADMICO: COM ALGUNS

    PAPIS).

    CENA 1 A IMAGEM CMICA

    ACADMICO: Boa noite. Antes de comear nossa palestra gostaria de

    fazer alguns esclarecimentos e confessar um equvoco de

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    minha parte. Sou professor universitrio e desde a juven-

    tude pesquiso a comdia para melhor conhecer seus v-

    cios e seu potencial corruptor de costumes. Aviso no

    gosto de comdia, no tenho senso de humor e que o ri-

    so, para mim, apenas um objeto de estudo e no tenho

    pela comdia o apreo que lhe devota o povilu, a plebe,

    o povinho ordinrio das ruas! (INCONFORMADO) E foi

    somente quando cheguei aqui que percebi que tinha me

    metido com atores de uma tal Fraternal Companhia e, ao

    invs de uma seleta platia de estudiosos, tenho aqui um

    pblico vido por um espetculo. Informo que no fao

    parte dele! E deixo claro que as presumveis grosserias,

    as imagens e personagens grotescas que vi atrs das cor-

    tinas e que imagino que devero ser mostradas neste pal-

    co, no so responsabilidade minha! Minha to somente

    a palestra! No voltei no mesmo passo assim que pus os

    ps neste teatro por fora do contrato e por respeito a vo-

    cs. Respeito que espero ver retribudo durante o trans-

    correr de minha fala.

    BOCARRO: (ENTRA) Pdeixar que estou de olho! E, qualquer coisa,

    estou sua inteira disposio para jogar porta a fora

    qualquer engraadinho! (ENVIA UM OLHAR AMEAA-

    DOR PARA A PLATIA E SOME ATRS DAS CORTI-

    NAS).

    ACADMICO: Para falar sobre a comdia, primeiro precisamos respon-

    der a uma pergunta: o que nos faz rir? Sabemos que al-

    gumas imagens enchem as pessoas de pnico. O san-

    gue, por exemplo. Ele considerado o princpio da vida e

    a viso, a imagem, desse lquido vital se esvaindo, se

    perdendo, algo que nos impressiona dramaticamente.

    Imagens que possam significar risco de vida, como ar-

    mas, objetos cortantes ou perfurantes ou possam associ-

    ar-se com a imagem da morte como esqueletos, putrefa-

    o, imobilidade, escurido, produzem em ns um acen-

    tuado desconforto. Da mesma forma, existe outro tipo de

    imagens que significam vida, prazer ou afastamento da

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    morte. Essas so imagens nos induzem ao riso. Bem, di-

    zem que a comdia nasce nos ritos de fertilidade e creio

    que isso verdade. Imaginem o que uma colheita farta, a

    viso da abundncia de cereais e os depsitos cheios de

    trigo e de gros no devem ter enchido de satisfao o

    homem primitivo. Isso significava o afastamento das agru-

    ras da fome e, conseqentemente, da morte. Est na na-

    tureza, que d ao homem no somente a vida, mas tam-

    bm d os meios de manuteno dessa mesma vida, o

    princpio da comdia. Ateno, agora, por favor! Um ator

    vai entrar com um falo, o rgo sexual masculino, uma

    imagem muito presente nos antigos ritos de fertilidade.

    Peo a vocs uma atitude madura, condizente com o ca-

    rter cientfico dessa palestra. (ENTRA UM PERSONA-

    GEM CORCUNDA, TORTO, COM UM CARALHO SA-

    INDO DE SUA VIRILHA. O MEMBRO TO GRANDE

    QUE ALCANA O CHO ONDE APOIADO POR DU-

    AS RODINHAS. O HOMEM, COM GRANDE ESFORO

    CARREGA O CARALHO. ACADMICO V ESTUPE-

    FATO A ENTRADA DO CORCUNDA)

    ACADMICO: (UM TANTO IRRITADO) No precisava ser to grande!

    CORCUNDA: O senhor no viu o de papai!

    ACADMICO: (AO PBLICO) Um pouco de seriedade, por favor! Este

    pnis...

    CORCUNDA: No pnis, saroba. Pnis o mesmo instrumento s

    que bem menor. Pnis a ferramenta de rico, de mdico,

    de padre...

    ACADMICO: Posso continuar? (APONTA O CORCUNDA) Observem

    esta figura grotesca. Temos nela vrios elementos que

    nos ajudam a identificar alguns dos princpios bsicos da

    comdia. Comecemos pelo falo. Vamos examin-lo deti-

    damente. (CORCUNDA TEM UMA REAO MAROTA.

    O ACADMICO: COMEA A VESTIR UMA LUVA CI-

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    RRGICA) Um pnis no mais que um rgo caverno-

    so que se enche de sangue, cresce e endurece.

    CORCUNDA: Nem todos.

    ACADMICO: (SEM DAR IMPORTNCIA INTERFERNCIA) Porm

    no o rgo em si que nos faz rir, mas o que ele repre-

    senta. Um genital representa a reproduo da vida, o tri-

    unfo contra a morte, e isso nos satisfaz, nos relaxa, nos

    faz rir.

    CORCUNDA: Duvido. Pra encarar um troo desse aqui vai ter de relaxar

    muito.

    ACADMICO: A imagem de um lavrador que lana sementes na terra

    frtil se associa asperso do smen, a semente huma-

    na, no tero feminino. E tanto a terra quanto o tero frutifi-

    cam. O tero nos d o novo ser, a terra o alimento que

    sustenta o ser. E com ambos vencemos a morte!

    CORCUNDA: Essa porqueira tudo isso, ? (BATE SATISFEITO NO

    FALO) Cabra bom!

    ACADMICO: Mas no rimos s por isso. Existem tambm sensaes

    fsicas causadas por inmeras ramificaes nervosas,

    sensveis ao toque (CORCUNDA REAGE), frico

    (CORCUNDA RI), dor. (D UM BELISCO OU UM

    TAPA NO FALO. CORCUNDA FAZ CARA DE CHORO).

    Comporte-se! (CORCUNDA EXIBE BEIO E MENEIA A

    CABEA AFIRMATIVAMENTE. SUSPIRA COMO CRI-

    ANA)

    ACADMICO: Reparem agora, e melhor, em seu tamanho e espessura!

    So exagerados, superam a imaginao, vo alm de

    qualquer medida lgica. E aqui ns temos um dos fun-

    damentos da comdia: a hiprbole. Sempre que tivermos

    imagens ou situaes excessivamente exageradas, que

    se situem alm da lgica, estaremos entrando nos dom-

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    nios da comdia. Ao ver uma verga desse quilate, essa

    enormidade sem sentido ns nos perguntamos rindo pra

    que tudo isso?

    CORCUNDA: Inveja, pura inveja!

    ACADMICO: O que de til pode-se fazer com uma insensatez dessa?

    CORCUNDA: (APONTA O FALO) Tens um desse? Vocs, a, tm um

    desses? Pesa, ocupa espao, mas junta cinqenta das

    mixarias de vocs e no d uma dessa!

    ACADMICO: E pra que serve essa estupidez de membro alm de pro-

    vocar riso? Voc j teve algum orgasmo?

    CORCUNDA: Como, no? Uma vez eu...(GRAMEL) vrios... a-

    ...(GRAMEL) nem te conto!

    ACADMICO: Conta.

    CORCUNDA: Conto! Um dia, depois... (GRAMEL) cresceu... (GRA-

    MEL E GESTOS ENFTICOS DE CRESCIMENTO DE

    TENSO SENSUAL) Cores, estrelas e flores... (RI E

    FAZ GESTO DE VITRIA)

    ACADMICO: Conseguiu?

    CORCUNDA: (IRRITADO) Quase, p! J falei, que insistncia! Uma vez

    deu uma comicho boa e comecei a imaginar coisas, ca-

    da coisa!, o corao comeou disparar, a circulao san-

    gunea aumentou, a presso arterial subiu, o sangue co-

    meou a descer, aumentar o tamanho da estrovenga e...

    ACADMICO: E...?

    CORCUNDA: (INCONFORMADO) Faltou sangue na cabea, desmaiei!

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    ACADMICO: O que mais nos causa riso nesta figura? A deformao!

    Os defeitos fsicos e morais so a base da comdia, se-

    gundo o sbio Aristteles. (CORCUNDA REAGE S A-

    FIRMAES DO ACADMICO) E essa figura tola, des-

    proporcional, feia, torta, com este falo gigantesco e intil,

    tem tudo para se tornar um sucesso cmico.

    CORCUNDA: (AFLITO) Obrigado, mas podia ir mais rpido?

    ACADMICO: Quanto mais ele for um fracasso na vida real mais suces-

    so ter como personagem.

    CORCUNDA: Ou o senhor fica falando e eu saio, sem problema.

    ACADMICO: (PARA O CORCUNDA) Espera. (PARA O PBLICO)

    Mas o exagero, a deformao, defeitos fsicos e morais s

    nos faro rir, lembrem-se bem disso!, se no tiverem

    conseqncia, se no nos emocionarem.

    CORCUNDA: Senhor...

    ACADMICO: A comdia trata de maneira inconseqente a dor, o sofri-

    mento e at a morte!

    CORCUNDA: (EXPLODINDO) Di, caramba, di! No tem conseqn-

    cia uma ova! Pensa que fcil sustentar um membro

    desses?! Doem os bagos, caramba! (FAZ BEIO INFAN-

    TIL E COMEA A CHORAR) Vocs no sabem o que

    minha vida!

    ACADMICO: (DIDTICO) Em suma de um coitado como esses que

    rimos.

    CORCUNDA: (SUSPIRANDO) .

    ACADMICO: Parece que nele h dor, sofrimento...(CORCUNDA CHO-

    RA EXAGERADAMENTE) essa corcunda dupla...

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    CORCUNDA: No corcunda, so meus bagos. Questo de equilbrio.

    Se fosse na frente eu caa.

    ACADMICO: Porque, ento, rimos dele?

    CORCUNDA: Porque so um bando de fi...(RECONSIDERA) gente sem

    alma!

    ACADMICO: A relao que se estabelece na comdia de superiori-

    dade. Os personagens so inferiores. Os personagens da

    comdia so inferiores a ns. So mais tolos que ns,

    mais feios, mais desgraados. E mesmo quando so es-

    pertos, sua esperteza no rende l muita coisa til. por

    isso que rimos dele.

    CORCUNDA: Ah,? Explica melhor isso.

    ACADMICO: Voc exageradamente estpido...

    CORCUNDA: Isso s um detalhe!

    ACADMICO: Tolo alm de qualquer medida humana.

    CORCUNDA: T, t, mas tirando isso...

    ACADMICO: Sua ao no tem lgica. Pode sair.

    CORCUNDA: Inveja! Pura inveja!

    ACADMICO: Sai. Quero continuar a palestra.

    CORCUNDA: Tem mais coisas a falar sobre um personagem cmico

    como eu. Nada em mim se fixa. Nem idia, nem desejo,

    nem projetos. Tudo, at a dor e o sofrimento passam ra-

    pidamente... Tudo morre e renasce...

    ACADMICO: Como na prpria natureza que quem gera a comdia.

    Mas, agora, sai.

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    CORCUNDA: No saio!

    ACADMICO: Por favor, eu preciso continuar.

    CORCUNDA: No saio!

    ACADMICO: E por que?

    CORCUNDA: Sei l! Eu sou assim! No tenho lgica! (ENTRA BO-

    CARRO)

    BOCARRO: Sai, mas sai mesmo! Sai, com ajuda das suas pernas ou

    com ajuda das minhas no centro da sua bunda! Raspa do

    meu teatro! (INVESTE SOBRE CORCUNDA QUE FO-

    GE.) Covarde!

    ACADMICO: Ao contrrio do personagem dramtico o personagem

    cmico sempre medroso. Mas, como nada nele dura

    muito tempo, logo ele volta provocador. (CORCUNDA

    ENTRA MOSTRA A BUNDA PARA BOCARRO)

    BOCARRO: Vou lhe espremer o que mole e quebrar o que duro!

    (SAI ATRS DE CORCUNDA QUE FOGE)

    CENA 2 OS BAIXOS HUMANOS, A TOPOGRAFIA DOS GNEROS.

    ACADMICO: So essas bobagens e esse tipo de gente que fazem o

    universo do riso. Mas no s isso. (RETOMA O AR PRO-

    FESSORAL) O homem ri daquilo que v ou daquilo que

    imagina. Um pesquisador russo, Mikhail Bakhtin, escreveu

    um excelente trabalho sobre o riso popular, que todos os

    interessados em comdia deveriam ter em mos. Trata-se

    de Cultura Popular na Idade Mdia e no Renascimento.

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    Nesse livro, entre outras coisas ele desenvolve a interes-

    santssima idia de uma topografia dos gneros. Isso quer

    dizer que a comdia e o drama se referem a certas partes

    do corpo humano e...(BOCARRO ENTRA INTERROM-

    PENDO A FALA DO ACADMICO:)

    BOCARRO: (MAL HUMORADO) Escapou! Chispou! Escafedeu! Mas

    o mundo tem curvas e numa delas eu trombo com o cana-

    lha! (PERCEBE QUE O ACADMICO O ENCARA.

    PERGUNTA COM UM GESTO DE CABEA O QUE

    FOI).

    ACADMICO: O senhor est interrompendo minha palestra.

    BOCARRO: Desculpe, mas que quando...

    ACADMICO: Continua interrompendo.

    BOCARRO: claro, desculpe. (OLHA PARA A PLATIA) O senhor

    tem mais algum que deseja colocar na rua? (ACADMI-

    CO: MENEIA A CABEA) Se o senhor quiser...

    ACADMICO: Quero continuar...

    BOCARRO: claro. (VAI SAIR MAS IMPLICA COM ALGUM NA

    PLATIA) No quer botar ningum pra fora, mesmo?

    Nem aquele ali? Ele no est rindo demais? Nem de me-

    nos? (D DOIS PASSOS EM DIREO PLATIA) Eu

    vou l... posso ir l? Sabe o que ? Eu tenho faro e no

    gostei da cara dele, cismei. E quando cismo porque al-

    guma coisa vai acontecer. (ALTERANDO-SE) E como

    no suporto a angstia de esperar melhor resolver o as-

    sunto de vez! Eu vou l (NUM IMPULSO FAZ MENO

    DE IR EM DIREO PESSOA.)

    ACADMICO: Deixe o rapaz!

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    BOCARRO: Por que? seu parente? Ele lhe deve dinheiro? Tem com

    ele algum tipo de relao anormal e indecente? Est se

    doendo por que?

    ACADMICO: Quero continuar minha palestra!

    BOCARRO: claro. Mas, veja bem, eu no consigo olhar pra aquela

    cara sem me subir nas raivas! Raivoso como estou, reco-

    nheo, eu perturbo sua palestra. Logo, a maneira de re-

    solver a questo ir l, por aquele infeliz no meio da rua a

    trompao e pescoo e tudo volta santa paz. Resolvido!

    ACADMICO: (IRRITADO) Fora, por favor! Sai! (BOCARRO FICA

    PERPLEXO COM O ACADMICO E POR TRS VEZES

    FIXA O ACADMICO SEM SABER SE SAI OU SE EX-

    PLODE. FINALMENTE SAI FAZENDO GESTOS DE

    AMEAA AO RAPAZ E A OUTRAS PESSOAS DA

    PLATIA.)

    ACADMICO: (SEGREDA PARA O PBLICO REFERINDO-SE A BO-

    CARRO) Ele no sabe, mas outro personagem cmi-

    co. A comicidade dele provm da ausncia de lgica. Ele

    se irrita sem razo nenhuma, tem vontades tirnicas, au-

    toritrias, mas incapaz de concretiz-las. Toda a raiva

    dele no tem conseqncia. Por isso rimos.

    BOCARRO: (PONDO MEIO CORPO EM CENA, AMEAADOR) O

    senhor est falando de mim?

    ACADMICO: E aqui se estabelece um interessante jogo ilgico. Pode-

    mos imaginar que este homem faa parte dessa represen-

    tao, mas podemos igualmente imagin-lo zelador deste

    teatro.

    BOCARRO: o que sou!

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    ACADMICO: O que quer que ele seja, nada do que essa irritada e tola

    figura fizer pode nos ameaar. A raiva, dio, violncia dele

    no tem nenhuma conseqncia dramtica.

    BOCARRO: (ALTERANDO-SE) Vou repetir a pergunta: o senhor est

    falando de mim?

    ACADMICO: Ningum aqui acredita realmente que ele seja capaz de

    fazer o que promete. Nem eu, nem vocs, nem aquele

    pobre rapaz! (BOCARRO, IRRITADO, FIXA O RAPAZ

    E COMEA A ARREGAAR AS MANGAS.)

    BOCARRO: (APARENTANDO CALMA) Muito bem, professor! Muito

    bem, pobre rapaz! Vamos ver se mexer comigo tem ou

    no tem conseqncias! (AMEAADOR, DESCE PLA-

    TIA, EM DIREO DO RAPAZ)

    ACADMICO: Rimos disso. Enquanto no drama o risco real, as coisas

    que acontecem no palco podem acontecer de fato na

    nossa vida, na comdia sabemos que impossvel.

    BOCARRO: Vo confiando!

    ACADMICO: Na comdia, a fria, s vezes parece real. Mas a fria

    de um tolo. (BOCARRO MOSTRA-SE IRRITADSSIMO)

    Sabemos que s um jogo, um jogo to absurdo e ilgico

    que, todo mundo sabe, no pode acontecer na vida real.

    BOCARRO: (FURIOSO) Eu no sei! Esqueceram de me avisar! (A-

    VANA NA DIREO DO RAPAZ)

    ACADMICO: (A BOCARRO) Obrigado pela colaborao. Pode voltar

    s cortinas. (BOCARRO PARALISA TENTANDO EN-

    TENDER). Sua representao de tolo foi perfeita!

    BOCARRO: (TENTANDO CONTER-SE) Representao? Isso uma

    espcie de brincadeira?

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    ACADMICO: Exato. Comdia sempre uma espcie de brincadeira.

    BOCARRO: (FURIOSO) E quem no leva a coisa na brincadeira?

    ACADMICO: Esse o tolo, o personagem cmico.

    BOCARRO: (SOTURNO) Sei. Quer dizer que se eu fosse l pregasse

    o muque na tbua da venta do sujeito eu seria tolo? Se eu

    no vou, sou tolo por no ir, isso?

    ACADMICO: O senhor, no, o personagem. Isso uma representao,

    no ?

    BOCARRO: (TENTANDO CONTER-SE) claro!

    ACADMICO: Tudo o que o tolo faz tolice, entendeu?

    BOCARRO: (AINDA IRRITADO) Estou tentando.

    ACADMICO: Ento vai tentar entender l dentro e me deixa continuar.

    Falvamos sobre a topografia da comdia...(BOCARRO

    LANA UM OLHAR FULMINANTE AO ACADMICO E

    AO RAPAZ E SAI.) Segundo Bakhtin, no prprio corpo

    humano se localizam os gneros. Por exemplo, na cabe-

    a, imagem da inteligncia, da conscincia, da vontade,

    se localiza a tragdia e o drama. A vontade herica de

    seus personagens impulsiona a concretizao de seus

    projetos. No outro extremo do corpo humano esto as i-

    magens que nos induzem ao riso. Alm do pnis, a ima-

    gem da barriga e dos glteos, da bunda melhor dizendo,

    tambm gera riso. (ENTRA IEPE)

    ACADMICO: Quem o senhor?

    IEPE: Sou Iepe e sou pobre, campons e beberro, o que perfaz

    trs defeitos num homem s. De meu tenho uma roupa de

    ir festa que a mesma que uso no trabalho porque s

    tenho uma e que esta. Ah, e tenho uma mulher que de

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    longe at que parece gente e que me surra todos os dias!

    (ENTRA NLI E SE COLOCA NA FRENTE DO ACAD-

    MICO. ESTE IRRITADO SE AFASTA.)

    NLI: Surro mesmo e ningum tem nada com isso! Surro e no

    tenho que dar satisfao a nenhum de vocs que no co-

    nheo. Meu nome Nli e no estou nem um pouco inte-

    ressada em saber o nome de vocs! No tenho nenhum

    prazer em conhec-los porque isso aqui no nenhuma

    reunio social e nem vim aqui para fazer amigos. Amigos,

    me bastam os que eu no tenho! Surro porque gosto e

    ele merece. Todos merecem! Homem devia apanhar, no

    mnimo, segunda, quarta e sexta, pra ficar manso. Quem

    aqui nunca teve vontade de aplicar um bom corretivo no

    companheiro levante a mo. (A ALGUM DA PLATIA)

    O senhor, no. Perguntei s para as mulheres. Outro dia

    chamei Iepe, dei-lhe duas moedas e mandei que fosse

    cidade comprar sabo.

    IEPE: Fui. Mas no meio do caminho havia uma venda, havia

    uma venda no meio do caminho, no meio do caminho ha-

    via uma venda e, de dentro dela, o dono gritou: Vem to-

    mar uma, Iepe. Eu respondi: (NUMA RAPIDEZ VERTI-

    GINOSA MAS MANTENDO AS INTENES) No posso,

    vem rapaz, estou indo pra cidade, uma s, de jeito ne-

    nhum, pe outra, Ah! (ESTALA A LNGUA), a Nli me

    mata, quem bebe cinco, bebe seis, no bebo mais, a

    saideira, agora a ltima mesmo, s mais uma, e quando

    percebi l se tinha ido uma moeda!

    NLI: A cabea de Iepe no era muito inteligente, mas tinha boa

    memria das surras que tinha levado de sua mulher, Nli,

    e decidiu que tanto a cabea quanto o resto do corpo de-

    via rumar direto para a aldeia para comprar o sabo. (IE-

    PE COMPE UMA POSE CORAJOSA E SEGUE CAMI-

    NHO.)

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    IEPE: Acontece, no entanto, que a barriga de Iepe tinha vida

    prpria e resolveu que o melhor era voltar e tomar mais

    uma. (IEPE FAZ A CURVA E VOLTA COMO SE FOSSE

    PUXADO POR SUA PROEMINENTE BARRIGA.)

    NLI: Contra essa ltima deciso se revoltou sua bunda que era

    quem sempre pagava com varadas a irresponsabilidade

    da barriga. E apoiou a cabea de Iepe em sua deciso de

    ir para a aldeia. (AOS TROPEOS, EM MARCHAS E

    CONTRAMARCHAS IEPE VAI FRENTE.)

    IEPE: Inferiorizada em nmero, a barriga pediu ajuda s pernas.

    No entanto, apenas uma delas veio em seu socorro. (U-

    MA PERNA SEGUE DE UM LADO E A OUTRA TENTA

    CAMINHAR DO OUTRO. O MOVIMENTO DE IEPE, A-

    GORA, DE UM BBADO COMPLETO.) Isso, sem falar

    dos braos, cada um deles tomando um partido. (DE-

    SESPERADO) Socorro! Sou prisioneiro de uma guerra

    dentro de mim mesmo! (DECIDIDO) Sou um homem e um

    homem segue sua cabea! (A CUSTO E COM PASSOS

    BBADOS, IEPE VAI SE DIRIGINDO SADA. IEPE

    PARA.) Mas uma parte da cabea de Iepe deu de imagi-

    nar o lquido borbulhante caindo no copo, a comicho ras-

    cante da bebida descendo pela garganta, a catarata alco-

    lica precipitando-se pela faringe e espraiando-se pela

    barriga, e, finalmente, os clidos vapores do lcool subin-

    do e tonteando. A bunda de Iepe chorou, pediu, implorou

    mas ele decidiu: s mais uma! (PODE-SE REPETIR O

    LAZZI DA PERDA DA PRIMEIRA MOEDA COM VELO-

    CIDADE AINDA MAIS ALUCINANTE)

    NLI: E o traste voltou, bebeu, saiu, andou, caiu e dormiu na

    beira do caminho. Mas justo por ali passaram um baro

    com seus serviais e resolveram fazer uma brincadeira

    com o pobre Iepe.

  • 17

    17

    IEPE: Pegaram Iepe, levaram para o palcio, vestiram-lhe ricas

    roupas e o colocaram dormindo sobre a cama do baro.

    Tudo isso para que ele pensasse ser o baro quando a-

    cordasse.

    NLI: Iepe acordou sem saber o que estava fazendo no meio de

    tanta riqueza. Informaram a Iepe que ele era baro e que

    s vezes tinha alucinaes nas quais se imaginava um

    pobre campons. Como Iepe no se convencia disso dis-

    seram que ele estava doente e chamaram dois mdicos.

    IEPE: O primeiro era um mdico naturalista, especializado em

    ungentos, chs, vomitrios e lavagens instestinais de v-

    rios tipos e espcies.

    NLI: (ENQUANTO EXAMINA SEM PERDER O FOCO DO

    PBLICO) O que deve ter havido, explicou o mdico, foi

    uma congesto intestinal de carter gasoso a qual impe-

    dindo que a presso interna dos intestinos fosse aliviada

    pelo canal competente, provocou uma reverso tal que a

    aca dos gases foraram entrada na corrente sangnea e

    por a chegaram at o crebro onde seus fortes odores

    desandaram a memria do senhor baro.

    IEPE: E isso mau, doutor?

    NLI: Muito. Mas pior seria se a congesto intestinal fosse de

    carter pastoso de tal forma que os sedimentos fecais se

    depositassem no interior de sua cabea. (CONTINUA O

    EXAME) O melhor tratamento um feroz purgativo que,

    aliviando os tubos intestinais e digestivos, consiga extrair

    os gases do crebro e os conduza de volta ao sistema

    circulatrio e da aos intestinos e, por fim, os expulsem

    sob a forma de pum! O outro mdico era um famoso sen-

    sitivo, radioestesista e terapeuta de vidas passadas. Co-

    mo tem passado?

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    IEPE: Como campons no tenho passado muito bem, no. Nli

    tem me batido muito e tenho bebido pouco. Como baro a

    nica coisa que sei que penso ser campons.

    NLI: Um caso tpico, raciocinou o terapeuta. O baro, com cer-

    teza, foi campons em alguma vida passada. E, agora, o

    campons que ele foi pretende tomar o corpo do baro.

    preciso separar o baro do campons.

    IEPE: Mas como?

    NLI: Se um purgativo pode sugar os gases do crebro, bem

    capaz de atrair alma do campons e evacu-la pelo ter-

    minal dos intestinos.

    IEPE: Foi isso que respondeu, com douta cincia, o mdico na-

    turalista, no que foi apoiado pelo terapeuta e aplaudido

    por mim, Iepe, que era uma besta. E ainda sou um pouco

    bastante.

    NLI: E deram a Iepe o purgativo (ABRE A BOCA DE IEPE E

    DESPEJA NELA O PURGATIVO.)

    IEPE: Depois que Iepe bebeu fez-se silncio como no universo

    antes da criao. Depois se ouviu um ronco, um estrondo,

    um rugido na barriga de Iepe. (IEPE FAZ CARA DE C-

    LICAS) E agora, com sua licena, eu preciso... preciso!

    (AFASTA-SE E AGACHA-SE)

    NLI: Narram as crnicas que Iepe cagou duzentas e trinta e

    cinco carroas cheias at o tampo, encheu seiscentos e

    oitenta barris de oitenta litros e dois corotes de quinze,

    completou mil e setecentos gales, preencheu quatrocen-

    tas e setenta latas de margarina de quinhentos gramas e

    uma latinha de extrato de tomate.

    IEPE: Isso no primeiro fluxo. No segundo fluxo, sem recipientes

    que pudessem cont-la, a enxurrada do barro deslizou pe-

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    lo morro e cobriu o vale e plantaes at a altura de um

    metro e meio. Um velho morreu afogado por no achar

    ningum que lhe fizesse respirao boca a boca.

    NLI: Iepe verteu lgrimas e cagou at a alma. Uma alma s,

    no! Almas de vrias pessoas que ele havia sido no pas-

    sado. Botou fora a alma do campons, de uma odalisca,

    de um legionrio romano, uma rameira etrusca, um escra-

    vo grego e de quatro ou cinco assrios de diversas po-

    cas!

    IEPE: E no stimo dia Iepe descansou. E tudo aquilo foi bom

    porque, no ano seguinte, comemorou-se a melhor colheita

    da histria do lugar. (ACADMICO, QUE ACOMPANHA-

    VA A REPRESENTAO DE MAU HUMOR, INTER-

    ROMPE).

    ACADMICO: Posso continuar aquela antiga palestra que eu tinha co-

    meado?

    NLI: No sei... a gente entrou pra fazer uma graa...

    IEPE: , essa coisa de palestra meio chata...

    ACADMICO: (FURIOSO) Chato?! Foram anos! Anos de pesquisa e es-

    tudo! Meu trabalho srio!

    IEPE: E o nosso cmico!

    NLI: A gente tem mais uma ou duas cenas. Se a platia qui-

    ser...

    ACADMICO: Ou eu ou vocs! (IEPE E NLI RIEM SUPERIORES E

    LANAM OLHARES SIGNIFICATIVOS AO PBLICO.

    ENTRA BOCARRO: COM UMA CARA M)

    BOCARRO: Algum problema, senhor?

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    ACADMICO: Ou eu e ele ou vocs!

    NLI: A platia podia votar.

    IEPE: No provoca, Nli!

    BOCARRO: (ESCANDINDO AS SLABAS) (PARA NLI) No se a-

    treva a propor. (PARA O PBLICO) No se atrevam a vo-

    tar! Anarquia, no!

    NLI: Comdia anarquia!

    IEPE: Vambora!

    ACADMICO: Isso no anarquia, isso uma palestra! Na palestra

    mando eu!

    BOCARRO: E no teatro mando eu!

    IEPE: Vamos pensar num acordo.

    BOCARRO: Eu bato e vocs apanham!

    IEPE: Tudo bem. Vamos pensar melhor e dentro de duas sema-

    nas a gente trs a resposta. (SAI ARRASTANDO NLI.)

    Vamos que ele feio, bravo e deve estar com fome!

    (BOCARRO ESPERA A SADA DE IEPE: E NLI. NA

    SADA LANA UM OLHAR AMEAADOR EM DIRE-

    O PLATIA. PRA, FIXA O RAPAZ QUE PEGOU

    PRA CRISTO E SAI.)

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    CENA 3 A IRREFREVEL ENTRADA DE BICA-ABERTA

    ACADMICO: Voltemos seriedade. Eu falava, antes de ser interrompi-

    do, sobre a topografia dos gneros. (MOSTRA UM QUA-

    DRO COM UM DESENHO DA FIGURA HUMANA) A ca-

    bea humana indica o gnero dramtico, srio. A cabea

    reduto da inteligncia e da vontade, duas caractersticas

    dos personagens dramticos. onde o esprito humano

    se manifesta, onde os grandes projetos humanos so ge-

    rados, onde os sonhos ganham forma e existncia con-

    creta. Na parte alta do ser humano situa-se o drama e a

    tragdia. Da parte intermediria (APONTA O PEITO) pro-

    vm os sentimentos e as paixes, leves e necessrios

    como o ar que penetra os pulmes, fortes como o corao

    que impulsiona a vida, vitais como o fgado. Alis, na anti-

    guidade o rgo smbolo da paixo era o fgado e no o

    corao. (APONTA OS BAIXOS) Finalmente, a comdia

    nasce das imagens dos baixos do ser humano. Do est-

    mago pra baixo, tudo gera riso. Tudo o que se relaciona

    com a reproduo, a digesto e a excreo, de prefern-

    cia com algum exagero, gera riso como acabamos de ver

    aqui representado. Glutes, beberres, cages, mijes,

    processos intestinais, n nas tripas, desinterias, aes re-

    alizadas por essas partes, aluses a sons, movimentos,

    menes a problemas de funcionamento, sons, gestos,

    referncias generalizadas a esses rgos geram natural-

    mente o riso. Como se v, o riso, ao contrrio do drama,

    no principia de forma muito nobre. E, se no bastasse, a

    comdia preza destruir, derrubar, ridicularizar os valores

    do drama. (TENTA JUSTIFICAR-SE E AOS POUCOS

    VAI SE INFLAMANDO NUMA IRRITAO CRESCEN-

    TE) Vejam, no me levem a mal. No que eu tenha oje-

    riza pela comdia em si, apenas no aprecio essa coisa

    desregrada, esse gosto pelo achincalhe, esse prazer que

    tem a comdia em investir contra o respeitvel, essa n-

    sia em avacalhar o que institudo, em profanar coisas

    nobres e sagradas! (ACALMA-SE) Vejam! preciso que

    algumas coisas sejam consideradas sagradas. A materni-

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    dade, por exemplo... Poucas coisas no mundo so to

    sublimes como a figura da me... (OUVE-SE BARULHO

    E BATE-BOCA NOS BASTIDORES. ENTRA BICA-

    ABERTA, UMA MULHER DESCABELADA E ENORME,

    SEGUIDA POR BOCARRO. BICA-ABERTA ANDA

    COM AS PERNAS ABERTAS, DESCADEIRADA).

    BICA-ABERTA: Entro e ningum me impede! Tira a mo de mim!

    ACADMICO: Tira essa mulher daqui!

    BOCARRO: S se for a bala! O que posso fazer se algum me deixar

    por ordem aqui!

    BICA-ABERTA: Eu j estou morta, sua besta! (ATNITO, BOCARRO

    OLHA PARA ACADMICO).

    ACADMICO: (CONFORMADO) Pode deixar. mais uma cena do es-

    petculo.

    BOCARRO: Tem certeza?

    ACADMICO: No muito.

    BOCARRO: Um professor universitrio! O senhor no tem vergonha,

    no? Permitindo essa baguna, essa zorra! O senhor tem

    pacincia, eu no tenho muita, no! Prestem ateno no

    que eu estou dizendo! (SAI, IRRITADO)

    ACADMICO: Suponho que, para prosseguimento do espetculo, eu de-

    vo perguntar quem a senhora.

    BICA-ABERTA: Sou a finada mulher de Gargantua! Ai, quando me lembro

    da minha pobre morte!

    ACADMICO: Ela era a me de Pantagruel.

    BICA-ABERTA: No me lembre disso!

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    ACADMICO: (AO PBLICO) Eis aqui, Bica-aberta, criao de um cle-

    bre escritor francs do sculo XVI, Franois Rabelais.

    BICA-ABERTA: Conhece aquele criminoso? Aquela mente doentia?

    ACADMICO: Ele considerado um dos pilares da literatura cmica.

    BICA-ABERTA: s minhas custas!

    ACADMICO: (CANSADO) Mas faz o que a senhora bem entender. (AO

    PBLICO) Eu no tenho nenhuma responsabilidade so-

    bre o que ela disser ou fizer. (AFASTA-SE. BOCARRO

    SURGE ENTRE A PLATIA E L FICA ALGUNS INS-

    TANTES COMO A SONDAR O AMBIENTE).

    BICA-ABERTA: Tirando o da reta, n?! Vocs, homens, so todos i-

    guais! (AO PBLICO, COMO EMOO QUASE SINCE-

    RA). A vocs peo que me ouam e sejam meu consolo e

    razo. Tudo comeou quando comecei a ganhar forma na

    cabea de Rabelais e imaginei para mim um grande futu-

    ro, filha de um famoso escritor. Estranhei ter recebido o

    estranho nome de Bica-aberta, mas no comeo tudo bem:

    casei com o gigante Gargantua que, apesar de gluto,

    beberro e peidorreiro, era gigante em todos os sentidos,

    principalmente naquele que as mulheres tanto prezam.

    Apesar do exagero, ai, que exagero de comprimento e

    circunferncia!, eu tambm muito prezava, porque como

    diz o ditado cresce a mo, lasseia a luva. Acontece que

    nesse vai e vem pra c, meu nego, fiquei grvida. At a,

    tambm, tudo bem, feliz com a honra de pr no mundo o

    filho do gigante Gargantua. Mas os meses foram passan-

    do e me dei conta que filho de gigante, gigante . E me

    perguntei por onde que essa criana que, no quinto

    ms, j tinha dois metros e dez, iria sair? Num sculo XVI,

    sem anestesia nem cesariana! (SUSPIRA E ENXUGA

    UMA LGRIMA) Eu, na minha ingenuidade, confiei que

    Rabelais daria soluo. Afinal, o nascimento do gigante

    Gargantua, meu marido, foi tambm muito estranho. A

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    criana, em vez de descer, subiu pela veia cava, trepou

    no diafragma, chegou omoplata e saiu pela orelha es-

    querda de sua me. E minha sogra nunca reclamou do

    parto que lhe arranjou o senhor Rabelais. Assim, fiquei

    tranqila at que chegou o grande dia e a eu entendi, de

    fato, o que entrar sorrindo e sair chorando. Por onde e

    como vocs acham que o gigante Pantagruel nasceu?

    (SOLUA) No riam que aumenta a minha dor. Vejam o

    parto que me arrumou a mente doentia de Rabelais: meu

    ventre gigantesco se contraiu e eu comecei me abrir, me

    abrir, me abrir, para dar passagem, primeiro, a sessenta

    tropeiros, cada um puxando uma mula carregada de sal,

    depois nove dromedrios carregados de pernil e lnguas

    de boi defumadas, sete camelos carregados de bacalhau,

    vinte e cinco carroas de alho, cebola, cebolinha, alho-

    por. Todos saindo alegres, conversando, sem eu nem

    saber como que tinham entrado. Finalmente desceu

    Pantagruel, to grande e to pesado que me descadeirou

    toda. Morri. Choraram minha morte e pronto, acabou mi-

    nha histria. S a que entendi porque ele me deu o

    nome de Bica-aberta. E que s ocupei meia pgina em

    toda a extensa obra de Rabelais para que ele e todos vo-

    cs se divertissem minha custa!

    CENA 4 PERSONAGENS A PROCURA DE UM ESPETCULO

    ACADMICO: (AO PBLICO) Acho que agora vocs comeam a enten-

    der meu ponto de vista. (IEPE ENTRA EM CENA E PE-

    SE A PROCURAR ALGO NAS ARARAS) Do ponto de

    vista do pblico a comdia s diverso mas do ponto de

    vista das personagens... (PARA BICA-ABERTA) A se-

    nhora pode sair para que eu possa prosseguir minha pa-

    lestra?

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    BICA-ABERTA: No. Eu vou ficar aqui.

    ACADMICO: A troco de qu?

    BICA-ABERTA: S meia pgina numa obra de mais de mil. No me con-

    formo!

    ACADMICO: Rabelais j morreu, no sou parente, no recebi a senho-

    ra como herana!

    IEPE: , psiu! D licena? O senhor no viu um chapu de pa-

    lha por a?

    ACADMICO: No, no vi. E dem-me licena vocs! Quero terminar

    minha palestra.

    IEPE: (COM SOTAQUE MINEIRO E POSTURA DE JOO TEI-

    T) i, no vai dar, no, senhor. Sem o chapu no pos-

    so fazer a cena. Sem a cena no vou poder interromper

    sua palestra.

    ACADMICO: Melhor. No tenho nada a ver com a sua cena! Fao a pa-

    lestra duma vez e estou livre. Fora!

    IEPE: O senhor no est entendendo. Vamos por partes: este

    figurino do Iepe, aquele bbado que cagou o mundo.

    ACADMICO: O Corcunda?

    IEPE: No o Corcunda foi antes!

    BICA-ABERTA: Aquele, o beberro que entrou comigo.

    ACADMICO: Com a senhora? A senhora entrou sozinha!

    BICA-ABERTA: No comigo o que eu sou agora, comigo o que eu era an-

    tes, a Nli, a que batia no marido.

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    IEPE: O senhor nunca foi ao teatro? Nunca assistiu uma pea

    com muito personagem e pouco ator? A gente se perde!

    Onde que eu estava mesmo...

    ACADMICO: No estou entendendo, nem quero...

    IEPE: (IRRITADO) Quieto, seno quem no entende mais nada

    sou eu! cada hora uma roupa, um personagem! Um dia

    eu ainda fao um protagonista! Agora, calma! Eu sou o

    Aleh, essa roupa do Iepe e eu ia entrar em cena daqui a

    pouco como Joo Teit. Por isso estava procurando o

    chapu. isso. O senhor viu? (ACADMICO FAZ UM

    GESTO DE IRRITAO) s dizer se viu ou no viu!

    No tem crise, no tem stress, no tem neurose! No pre-

    cisa xingar a me nem bater no pai!

    ACADMICO: Saiam agora!

    BICA ABERTA Eu, no! Estou aqui para exigir a continuao da minha

    histria.

    IEPE: No saio porque preciso achar o chapu.

    ACADMICO: O chapu no est aqui! No est vendo?

    IEPE: Estou! No sou cego! Est l dentro! Mas o diretor organi-

    zou a cena assim. Eu tinha de entrar e pentelhar a sua

    palestra por causa do chapu.

    BICA-ABERTA: A cena uma citao a Pirandello, um autor que levou a

    comdia aos limites do nonsense. Ele criou uma lgica

    prpria para seus personagens, desvinculada do realismo

    cmico por si s absurdo. Por isso eu quero que algum

    d outra continuao ao meu personagem. No gostei de

    entrar e morrer de parto com um tropel de gente, mulas e

    camelos saindo de mim!

    ACADMICO: O palestrante sou eu. A senhora saia!

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    BICA-ABERTA: S saio depois de me dirigir ao pblico e perguntar se a

    falta de sentido da minha histria cmica e a falta de sen-

    tido da prpria comdia no semelhante falta de sen-

    tido de nossas prprias vidas. E se revelar isso no o

    mais profundo sentido da comdia.

    IEPE: Orra, meu! No entendi nada do circunstancial, mas cap-

    tei o sentido essencial do raciocnio.

    BICA-ABERTA: O sentido da comdia revelar o grotesco que habita o

    mundo! Maldito Rabelais! Precisava me usar pra revelar

    isso? (SAI FURIOSA. ACADMICO OLHA PARA IEPE E

    O INQUIRE COM UM GESTO DE CABEA. IEPE ME-

    NEIA A CABEA NEGATIVAMENTE).

    ACADMICO: Ento assim?

    IEPE: (D DE OMBROS) No tem outro jeito! No hora de eu

    sair. (COM UM GESTO O ACADMICO CHAMA BO-

    CARRO. ESTE ENTRA E SEGURA IEPE. IEPE SE

    SOLTA, FURIOSO) No pe a mo em mim! Se voc me

    encosta a mo eu vou lhe xingar de besta ignorante e vo-

    c vai me cascar um soco! A, eu me conheo, vou cha-

    mar sua me de marafona! Maria Regimento! Mulher de

    beira de estrada! E sabe o que voc vai fazer?

    BOCARRO: Vou quebrar seus ossos um por um.

    IEPE: isso mesmo! Mas eu que perco os dentes, mas no

    perco a lngua vou lhe chamar de tudo que nome Bro-

    gonz! Socranca! Becio! Cretino! Fresco! E, a, pronto!,

    sou um homem morto! Estou certo?

    BOCARRO: Certssimo!

    IEPE: Ento, pra evitar essa desavena, voc no me pe a

    mo e eu saio na hora certa e de livre e espontnea von-

    tade, entendeu? (SAI)

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    BOCARRO: (PENSA UM POUCO SEM CHEGAR CONCLUSO)

    Juro que no entendi nada.

    ACADMICO: (INTENCIONAL) Eu acredito.

    CENA 5 UM TELEGRAMA MARTINS PENA

    (ENTRA UMA MULHER NORDESTINA)

    MULHER: D licena?

    ACADMICO: Se a senhora pedisse antes de entrar em cena eu no da-

    ria, mas j que entrou...

    BOCARRO: Se quiser eu ponho pra fora...

    MULHER: Faz isso no, menino, que voc no me conhece, no sa-

    be de quem sou filha, de quem sou me, de quem sou pa-

    rente! No sabe se tomei leite no copo ou se mamei em

    ona!

    ACADMICO: Melhor deixar. (AO PBLICO) Repito: nada disso de

    minha responsabilidade!

    MULHER: Sou parente dos Limeira, l da Paraba. Estou morando

    em Itaquera e me abalei pra c quando soube de sua pa-

    lestra.

    ACADMICO: Obrigado.

    MULHER: Agradea, no, que no vim pelo senhor. Conhece Z Li-

    meira?

    VOZ OFF Correio! (BOCARRO SAI)

    ACADMICO: No.

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    MULHER: Pois, ! disso que vim reclamar. Ningum conhece Z

    Limeira! O poeta popular do absurdo! Vocs no esto

    com essa tal de pesquisa de comdia popular? Que co-

    mdia popular brasileira essa que s tem Iepe, Till Eu-

    lenspiegel... (ENTRA JOO TEIT)

    ACADMICO: Isso no comigo!

    TEIT: comigo! A senhora fala do que no sabe! Primeiro que

    montamos Sacra Folia, Burundanga, Parturio e Anel de

    Magalo com personagens inspirados em tipos cmicos

    populares brasileiros!

    MULHER: Quero saber de Z Limeira!

    TEIT: Segundo que Iepe e Till so personagens estrangeiros

    mas o contexto brasileiro! Nacionalizamos esses perso-

    nagens!

    ACADMICO: Isso no me interessa nem interessa ao pblico!

    TEIT: Interessa a ns! Ela lana acusaes que mancham a sa-

    grada reputao de nossa corja cmica!

    ACADMICO: Algum pe esses dois pra fora! (ENTRA BOCARRO)

    BOCARRO: Chegaram dois telegramas do autor de Mastecl! (L)

    Meus respeitos ao pblico.

    TEIT: J comea puxando o saco! Corintiano, pulga, puxa-saco

    e erva daninha d em tudo quanto lugar!

    BOCARRO: () Impossibilitado de estar presente, exijo fim imediato

    dessa discusso, ponto. Quanto a Z Limeira, estamos

    preparando auto em homenagem a esse poeta popular.

    Agora, que se retome rigor e seriedade palestra, ponto de

    exclamao! Peo, Acadmico, gentileza de discorrer so-

    bre ambivalncia da comdia.

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    TEIT: S imposio, imposio! O autor que v pro meio do in-

    ferno!

    BOCARRO: Segundo telegrama: (L) V voc, Aleh! Saudaes a to-

    dos, ponto final. (AMEAADOR) Agora posso pr vocs

    pra fora juntando a minha autoridade de zelador do teatro

    com a autoridade do autor da pea.

    MULHER: bora, que, agora, fedeu!

    TEIT: Montar pea de autor vivo d nisso! Eu falei pro diretor:

    Vamos montar um Molire, mas o Ednaldo no, porque o

    Abreu, o Abreu... saco! (SAEM).

    BOCARRO: (AO ACADMICO) O palco seu. E a platia tambm. E

    se algum no quiser ser, o senhor me avise. (SAI)

    ACADMICO: Vamos ver se, agora, a gente consegue chegar ao final

    sem mais incidentes. (D UM LONGO SUSPIRO E PAS-

    SA A MO NO ROSTO, TENSO). Desculpe. Talvez vo-

    cs achem estranho o fato de um pesquisador como eu

    dedicar anos de estudo a algo que detesta. uma contra-

    dio, reconheo, e devo arcar com suas conseqncias.

    E isso me irrita profundamente. (TRMULO TOMA UM

    COPO DGUA. SUSPIRA). Desculpem meu descontro-

    le. E acreditem: detesto ser assim. Meu caso no ques-

    to de remdio nem terapia. (SEGREDA AO PBLICO)

    outra coisa que no posso revelar e tambm no vejo mo-

    tivo em expor em pblico minha intimidade. (RECOM-

    PE-SE) Mas vamos aproveitar essa tranqilidade antes

    que interferncias ou telegramas a perturbem. Recapitu-

    lando: Como regra geral rimos do que consideramos de-

    feito, do que consideramos menor que ns. s vezes, ri-

    mos de ns mesmos porque percebemos que somos me-

    nores do que imaginvamos. como se o ser humano

    devesse ter um padro: jovem, forte, bonito, inteligente,

    potente. Tudo o que estiver abaixo desse padro, fora

    dessa proporo, objeto do riso humano: a impotncia,

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    a burrice, a feira, a fraqueza ou covardia, a meninice ou

    a velhice. Mas s vamos rir se o defeito no tiver conse-

    qncia dolorosa que possa nos emocionar. E mais va-

    mos rir quanto mais exagerado for o defeito. Rimos dos

    defeitos do carter covardia, avareza, falsidade e outros

    ; dos defeitos do pensamento tolice, falha, ausncia ou

    exagero da lgica dos defeitos fsicos mancos, tortos,

    pensos, impotentes dos defeitos de comportamento

    caipiras, tmidos, doidos, gente que fala sozinha, pessoas

    que no sabem se portar, se vestir, etc. Rimos tambm

    daquilo que nos mete medo: rimos da morte, da autorida-

    de, dos tiranos. (BOCARRO SURGE E SE MANTM

    IMPASSVEL. SE ALGUM RIR ELE ENVIA UM OLHAR

    AO ACADMICO COMO SE PERGUNTASSE: PODE

    RIR? CRUZA O PALCO ORGULHOSO DE SUA AUTO-

    RIDADE). claro que rimos de forma que a autoridade

    no perceba nossas intenes o que a transforma num to-

    lo ou quando estamos distantes para que nosso riso no

    tenha conseqncias. Rimos tambm, e muito, de qual-

    quer referncia s partes baixas do corpo. Imagens do

    corpo, da bebida, da comida, da satisfao das necessi-

    dades naturais e da vida sexual, principalmente se essas

    imagens forem exageradas. Ou seja, rimos de inmeras

    coisas e comdia se faz de inumerveis formas. (ENTRA

    TEIT ESTENDE O BRAO MOSTRANDO O CHAPU).

    TEIT: Encontrei, !

    ACADMICO: Estava demorando muito!

    TEIT: , eu devia ter entrado antes. Essa falao sua est muito

    chata.

    ACADMICO: (IRRITADO) A cultura custa esforo a ignorncia vem de

    graa!

    TEIT: (NO MESMO TOM) Est insinuando que eu no valho

    nada?

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    ACADMICO: No, estou dizendo que voc a personificao da igno-

    rncia!

    TEIT: Arregou, n?! (PAUSA. TEIT ESPERA ALGUMA AO

    DO ACADMICO:) Vai!

    ACADMICO: Vai o qu?

    TEIT: Pergunta quem eu sou seno a coisa no anda!

    ACADMICO: (CONTRARIADO) Quem voc?

    TEIT: Sou Joo Teit, primo de Macunama, colega de Chic,

    sobrinho de Ariano Suassuna, parente de uns filhos da

    criao de Renata Pallottini e de Chico de Assis. E sou

    descendente de Arlequim.

    ACADMICO: Acabou ou tem mais?

    TEIT: Eu tenho um vazio por dentro, um vcuo, um oco...

    ACADMICO: Na alma?

    TEIT: Que alma! No estmbogo! Tenho fome e um buraco na

    barriga. A alma eu tentei vender pra comprar uma morta-

    dela na chapa, mas no consegui preo!

    ACADMICO: Eis um dos mais antigos e famosos tipos da comdia. Foi

    o demnio panudo e comilo das primitivas festas de co-

    lheita, foi o jovem tolo das farsas atelanas no primeiro s-

    culo da era crist, o personagem popular andarilho e mor-

    daz da Idade Mdia, o irrequieto e vivaz servo de comer-

    ciantes e burgueses no renascimento e o faminto perso-

    nagem do sculo XVIII, dono de uma fome e uma vontade

    de comer sem fim. Esse tolo que tenta desesperadamente

    satisfazer seus instintos - comida e bebida, sexo, prazer -

    ou no tem controle sobre eles, permanece vivo at hoje

    na comdia popular.

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    TEIT: Vamos logo que j passou da hora de eu fazer um lanchi-

    nho. (ENTRA BORACIA)

    BORACIA: Sou Boracia, sou mulher de comerciante e contratei esse

    traste toa para trabalhar em meu estabelecimento.

    JOO TEIT: Isso uma virago, uma mulher macho que s o co, por-

    tuguesa com muque de estivador, cabelo nas ventas e

    bigode!

    BORACIA: Buo! Isso penugem! Esse um traste embrulho, indo-

    lente, que se aproveita de qualquer descuido meu para

    tentar encher a barriga sem fundo com o que tem em meu

    armazm. No vale metade do que eu devia lhe pagar

    mas no pago!

    JOO TEIT: Mas a senhora prometeu!

    BORACIA: E, agora, desprometo, pronto!

    JOO TEIT: E eu fico assim, ?

    BORACIA: Assim, assado e de rabo virado!

    JOO TEIT: Mas eu s ganho meio salrio!

    BORACIA: Pois! Tu vales meio homem! E pago muito! Um gajo co-

    mo tu no tem mais merecimento nem maior serventia!

    Alm do mais, comes e bebes de minha mesa e dormes

    debaixo de meu teto!

    JOO TEIT: To pouco como que h uma semana que no descomo,

    dona Boracia.

    BORACIA: No o que?

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    JOO TEIT: No descomo, no obro, no borro, no visito a casinha,

    no sento no trono, no devolvo, no empurro, dona Bo-

    racia! Isso no normal!

    BORACIA: E o que voc quer?

    JOO TEIT: Quero aumento de salrio pra comer mais um bocadinho.

    O bocadinho vai fazer as engrenagem do estmbogo

    funcionar, o estmbogo manda o bocadinho que comi

    pros tubo das tripa grossa, as tripa macetam aquilo tudi-

    nho e jogam pras tripa fina. A, as tripa se enrolam e ron-

    cam de contentamento e eu falo " hoje e agora!" A, eu

    corro, sento e "oh!, felicidade!" Isso tudo que eu quero,

    dona Boracia.

    BORACIA: Que vergonha, Joo Teit! O homem busca riqueza, li-

    berdade, mulheres.

    JOO TEIT: Depois. Primeiro o prazer.

    ACADMICO: Uma cena repleta de referncias ao baixo corporal do ser

    humano. Mas a comdia atinge um sentido mais amplo.

    Ela ambivalente quando reafirma que todos os mais al-

    tos e nobres sonhos humanos devem ter como base e ob-

    jetivo a satisfao dos desejos mais simples e prazerosos.

    A fome fisiolgica transforma-se numa fome simblica,

    num desejo de felicidade coletiva. O estmago, esse va-

    zio fisiolgico transforma-se num vazio filosfico.

    TEIT: Como que isso?

    BENEDITA: (ENTRANDO) Deixa que eu explico. Tem uma histria

    desse Teit-cachorro que aconteceu l na cidadezinha de

    Burundanga onde eu era cozinheira do Coronel Marru.

    Eita, homem cavernoso esse Marru, tirano, poderoso,

    senhor de terra e mais terra.

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    TEIT: Eu mais um companheiro meu, Matias Co, com fome, na

    pindaba, vendendo almoo pra comer a janta e trocando

    a janta pelo caf da manh, desesperamos. Assaltamos

    dois jipeiros.

    BENEDITA: O jipe era do exrcito nacional e os dois eram um capito

    e um tenente. Vestiram a roupa deles, tomaram o jipe e

    deixaram os dois militares amarrados, nuzinhos como

    vieram ao mundo.

    JOO TEIT: Mas no abusamos da castidade dos moos que no so-

    mos disso.

    BENEDITA: Chegaram a Burundanga e fizeram tanta confuso que fo-

    ram confundidos com militares que estavam preparando

    um golpe de estado. Coronel Marru e os polticos do lu-

    gar apoiaram ogolpe e esse Teit tanto virou, mexeu,

    fedeu que acabou assumindo o comando da revoluo

    que nem existia. Mas o povo de Burundanga acreditava

    que sim.

    JOO TEIT: Eu no queria, mas mandar bom. to bom! muito

    bom! (TEIT VAI, AOS POUCOS, ASSUMINDO ARES

    EXAGERADOS DE TIRANO)

    BENEDITA: Tanto virou, mexeu, tretou que mandou prender seu com-

    panheiro Matias Co e, tonto que Teit era e ainda , fez

    desatino sobre desatino na nsia de satisfazer sua fome

    ancestral.

    TEIT: (J COMPOSTO) De agora em diante, eu assumo o co-

    mando. Aos traidores a priso! Minha primeira ordem

    que me faam o mais suntuoso banquete que se tem no-

    tcia em comemorao minha chefia. Benedita!

    BENEDITA: Que que tem eu?

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    JOO TEIT: Agora eu estou no alto como eu sempre te dizia antiga-

    mente: que eu ia correr mundo e ia vencer. Voc est

    comigo ou contra mim? Comigo pode pedir o que quiser.

    BENEDITA: Eu quero ficar bem longe de vocs todos que pra con-

    servar minha cabea no lugar e meu juzo dentro dela!

    JOO TEIT: Cadeia nela! E cadeia pra todo mundo que falar contra

    mim ou contra a revoluo! Eu sou a revoluo! Quem

    burro pede a Deus que o mate o ao diabo que o carregue.

    Eu no sei no que vai dar isso. Mas enquanto no der em

    nada eu vou me fartar! (CAI LUZ DA CENA FICANDO

    ILUMINADO APENAS JOO TEIT PARA SEU SOLI-

    LQUIO DA FARTURA UNIVERSAL. O TOM DA CE-

    NA DE UMA AMBIVALNCIA LRICA E CMICA)

    Porque, finalmente, eu cheguei ao poder! Ah!, a glria de

    mandar e ser obedecido, porque eu sempre mandei mas

    ningum nunca mexeu uma palha pra me obedecer! Mas,

    agora, eu tenho poder! E vou mandar fazer uma mesa de

    dez quilmetros de comprimento, contratar mil e duzentos

    gachos e mandar churrasquear duas mil cabeas de ga-

    do! E mando forrar a mesa de compotas, pizzas califr-

    nia, sashimis, gulash, paejas, capeletes, quibes e tutu de

    feijo! E ver aquela fartura toda e todo mundo comendo

    bonito e eu comendo mais que todo mundo porque sou eu

    que mando! (COMEA A EMOCIONAR-SE) E ver minha

    pana crescer, estufar, cair sobre os joelhos e se trans-

    formar no maior cemitrio, no maior sumidouro de frango

    e outras iguarias de que j se teve notcia no mundo! A,

    vou sentar e chorar de emoo porque tenho o poder de

    comer e beber tudo o que at hoje foi s sonho e vontade.

    Que uma revoluo assim seja eterna enquanto dure!

    ACADMICO: A comdia ambivalente tambm quando une numa s

    coisa, o sagrado e o profano, a necessidade de satisfazer

    a fome e as grandes esperanas do ser humano. O su-

    blime e o baixo corpreo esto indissoluvelmente unidos

    na comdia.

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    BENEDITA: O caso que contado no auto de natal, Sacra Folia, foi

    assim. Todo mundo sabe que a Sagrada Famlia, Jesus,

    Maria e Jos, fugiu para o Egito pra livrar o menino-deus

    da fria de Herodes. O que ningum sabe que se perde-

    ram no caminho e tanto andaram, tanto andaram que vie-

    ram bater nessas bandas, dez a doze lguas pra l da Pa-

    raba.

    JOO TEIT: E aconteceu que o anjo Gabriel veio procurar um guia pra

    voltar Belm. Eu como conheo mais ou menos bem o

    Par que fica ali, na divisa parece que com Santa Catari-

    na, de bom grado e de boa f resolvi ajudar.

    BENEDITA: Bom grado? Esse sujeito toa, um homem que nem ser-

    ve pra troco de compra mida, esse mesmo Joo Teit,

    Deus o perdoe!, aproveitou um segundo de distrao da

    Virgem Maria e coitada! No foi culpa dela! - seqestrou

    o menino Jesus. E agora est a pra levar o castigo.

    JOO TEIT: No riam que o momento tenso. Tem gente querendo

    usar minha pele de tapete, jogar minha alma nos quintos

    e usar o resto pra fazer sabo.

    BENEDITA: E no qualquer um no. o arcanjo So Gabriel e a

    Virgem Maria. So Jos nem se fala! T l dentro que no

    se agenta de gana, de vontade de cantar o seu cajado

    no lombo de Teit.

    JOO TEIT: (CHOROSO) Ai, meu Deus, que no tenho nem a quem

    pedir!

    BENEDITA: , Teit, o momento tenso. Voc fez das suas e das

    tantas que voc fez essa foi a pior! Seqestrar o menino

    Jesus! Agora t a, tentando se justificar, prestes a ser

    carregado pelo demnio pra ser socado, sem remisso,

    no fundo dos infernos.

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    JOO TEIT: (NUM TOM AMBIVALENTE, DRAMTICO E CMICO)

    Gente! Oh, gente! Eu sempre tive um oco, um buraco no

    lugar da barriga, sempre vazio! No quis fazer mal pra

    ningum, nem para o menino, gente! S que disseram

    que esse menino ia trazer fartura, ia transformar gua em

    vinho, multiplicar po e peixe... e quem multiplica po e

    peixe multiplica frango, churrasco, lingia... presuntos...

    Com esse menino, dizem que tem a promessa de que vai

    haver um banquete universal, farto e eterno... vai correr

    leite e mel! (SUSPIRA, COMICAMENTE DRAMTICO,

    PATTICO) O caso, gente, que eu sei como so essas

    promessas! Eu entro na fila do banquete e, quando chega

    a vez de Joo Teit aqui e de quem igual a ele, da pa-

    nela no sobrou nem a rapa e do churrasco nem o osso

    da costela. Ento, resolvi radicalizar: quero garantir agora

    minha parte na promessa. O que eu queria era ver o me-

    nino realizar aqui a promessa de fartura. Queria ver, pelo

    menos uma vez, todo mundo comendo com a boca tudo o

    que at hoje s comeu com os olhos! Quero ver essa me-

    sa que nunca desfeita e esse banquete que nunca ter-

    mina. Seqestrei o menino e registrei em cartrio como fi-

    lho legtimo de Joo Teit! E no devolvo. No da pro-

    fecia que esse menino vai fazer galho seco florescer e a

    terra frutificar? Pois, ento! Ele fica aqui no Brasil que

    pr gente aproveitar um pouco da profecia.

    BENEDITA: E assim foi

    E assim ficou sendo

    E o mundo fica agora sabendo

    Onde o menino Deus

    Permaneceu at os doze anos

    At ser visto novamente

    Ensinando os doutores do templo em Jerusa-

    lm.

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    CENA 6 O CAOS E SUA MANUTENO GERAM A COMDIA

    ACADMICO: (IRRITADO) Posso reassumir a minha palestra?

    BENEDITA: Justo agora que estava indo to bem.

    ACADMICO: Se deixar por conta de vocs o tempo inteiro seria usado

    com cenas!

    TEIT: No seja injusto! Se deixasse por nossa conta a gente s

    teria feito o comeo e o fim.

    BENEDITA: E o meio, pra no deixar buraco entre os dois!

    ACADMICO: O combinado foi que eu faria a palestra e vocs fariam

    pequenas intervenes! O tempo quase todo de uma pa-

    lestra sria foi usado com chistes, piadas e gracinhas!

    BENEDITA: Somos cmicos! Comdia para rir.

    ACADMICO: Sou pesquisador! Comdia tambm pra refletir. (ENTRA

    BOCARRO)

    BOCARRO: Posso ajudar em alguma coisa, professor?

    ACADMICO: (EXPLODINDO) Pode ficar no seu lugar de zelador! Zele

    pelo seu teatro que da minha palestra zelo eu de agora

    pra frente! (BOCARRO ENCARA FURIOSO O ACA-

    DMICO. ESTE SUSTENTA O OLHAR). Fora! (BOCAR-

    RO SAI ROSNANDO)

    TEIT: (PARA BENEDITA) Puxa! Pensei que o professor nunca

    fosse tomar atitude de homem! (ACADMICO FULMINA

    OS DOIS COM O OLHAR). Est bem, j fomos! (SAEM)

    ACADMICO: Sei que conto com a compreenso de vocs, que no

    precisaria, mas fao questo de me desculpar pelo que

    transformaram essa nossa reflexo sobre o universo c-

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    mico. Desculpem tambm minha alterao, mas h dentro

    de mim uma contradio que no consigo solucionar... Na

    verdade no era aqui que eu queria estar, fazendo esse

    papel ridculo... (COM DECISO) Querem mesmo saber o

    que acho da comdia? A comdia no o inverso, nem o

    lado negativo e inconseqente do gnero srio, dramti-

    co. A comdia uma estrutura muito maior, abarca toda

    uma viso de mundo, toda uma postura perante a vida.

    Rimos do que est ligado vida e do que est ligado

    morte, rimos em batizados e velrios. O homem sempre

    celebrou tanto a morte quanto a vida com o riso. A com-

    dia nasceu dos ritos de fertilidade, filha da natureza e,

    para a natureza, morte e vida so apenas aspectos de

    seu eterno movimento. A comdia corrosiva, destrutiva,

    fere, s vezes, mortalmente, instituies, conceitos, idi-

    as, personalidades no para que permaneam mortos,

    mas para que renasam renovados. A comdia, como a

    natureza, destri para regenerar!

    VOZ OFF: Correio!

    ACADMICO: Aponta nos personagens defeitos que no conseguimos

    ver em ns mesmos! Grita aos nossos ouvidos que ne-

    nhuma idia, nenhum tirano, nenhum tolo, nenhum ser

    to perfeito que deva durar pra sempre. Tudo e todos ns

    seremos destrudos pelo riso para renascer transforma-

    dos. (ENTRA BOCARRO)

    BOCARRO: Telegrama do autor. Senhor professor: siga o persona-

    gem tal qual eu constru, ponto de exclamao! O senhor

    um pesquisador sisudo, severo, que detesta festas e

    comdias!

    ACADMICO: Mas isso incoerente! Eu detesto ir a festas para anali-

    sar quem se diverte, compendiar formas de diverso,

    pesquisar porque as pessoas riem. E eu mesmo no pos-

    so me divertir!

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    VOZ OFF Correio! (BOCARRO SAI)

    ACADMICO: Detesto essa incoerncia de ser quem mais pesquisa a

    comdia e nunca deu um nico riso. J encheu as medi-

    das! J chegou ao tampo! Chega! (TEIT ENTRA)

    TEIT: Que isso? Onde vai to revoltado?

    ACADMICO: Cansei de ser uma mera incoerncia! Os grandes mo-

    mentos da comdia foram quando a tradio popular jun-

    tou-se com a tradio culta. Foi assim na commedia

    dellarte, foi assim com Molire, com Shakespeare, com

    Rabelais. A tradio culta deu-lhe a geometria, a forma; a

    tradio popular emprestou-lhe vitalidade.

    TEIT: E o senhor vai fazer o que?

    ACADMICO: Cansei desse papel ridculo!

    TEIT: Devagar com o andor seno a coisa desanda! Quem faz

    rebeldia sou eu. O senhor um professor serioso, de car-

    ranca e catadura!

    ACADMICO: No sou mais! No tenho coerncia nem consistncia!

    Sirvo apenas de escada pra vocs entrarem e fazer gra-

    a.

    TEIT: Pra mim est timo!

    BOCARRO: Telegrama do autor: Senhor professor, prossiga com a

    palestra!

    ACADMICO: (PARA O PBLICO) No prossigo!

    TEIT: Assim no d, a coisa no anda! O senhor apenas um

    personagem tcnico, s um pretexto pra falarmos sobre

    os princpios da comdia!

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    ACADMICO: No sou pretexto! Sou um pesquisador!

    TEIT: Ento seja!

    ACADMICO: Mas no sou idiota!

    TEIT: (IRRITADO) Mas tem de ser! Tem de ser ridculo e idiota

    como tem sido at agora, seno no tem comdia!

    BOCARRO: Telegrama de um outro autor.

    TEIT: Outro?

    BOCARRO: Luis de Sttau Monteiro, um autor portugus. Denuncio que

    enviar telegramas durante representao teatral plgio

    de idia presente em minha pea A Guerra Santa!

    TEIT: Quem diria, hein!

    ACADMICO: C pra ns, eu j desconfiava de alguma coisa assim. Se

    eu fosse personagem desse Sttau Monteiro estaria melhor

    arrumado.

    TEIT: Nada! Autor tudo doido. Escrevem essas besteiras pra

    gente falar e pro povo ficar rachando o bico.

    ACADMICO: Eu no me conformo em ser assim, entende? Persona-

    gem, canhestro, mal ajambrado...

    TEIT: Acontece, todo mundo erra. s vezes no nem culpa do

    autor. O diretor j mandou reescrever seu personagem,

    mas quem diz que o autor acerta? Personagem tambm

    nasce com defeito, torto, esquisito. o seu caso!

    VOZ OFF Correio! (ENTRA BENEDITA)

    TEIT: Outra vez!

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    BENEDITA: Chegaram dois telegramas e eu no pego mais corres-

    pondncia. O carteiro xingou minha me! Disse que no

    agenta mais esse vai e vem da agncia pra c! (PARA

    BOCARRO) E o senhor corre que tem uma gente, a,

    esquisita querendo entrar pelos fundos do teatro. (BO-

    CARRO SAI) Telegrama do autor: Diga ao senhor Luis

    Sttau Monteiro que no houve plgio. Utilizei os telegra-

    mas como elementos pardicos como estou utilizando e-

    lementos de Pirandello. A pardia das grandes obras

    caracterstica da cultura popular que onde baseamos

    nosso projeto teatral! Para finalizar: Senhor professor:

    prossiga com a palestra! ponto de exclamao! (ACA-

    DMICO TOMA O OUTRO TELEGRAMA)

    ACADMICO: Este do diretor! Est muita falao! Cad o ritmo? A-

    cabem com essa discusso de autores, com essa discus-

    so de personagens. Acabem com essa zona no meu es-

    petculo! Faam a cena como eu ensaiei e autor bom

    autor morto!!! (OLHA OS OUTROS E COMENTA AS-

    SUSTADO) Trs pontos de exclamao.

    TEIT: O homem t irritado. melhor a gente fazer cena. (EN-

    TRA BOCARRO)

    BOCARRO: Tem dois caras l querendo entrar. Se so amigos de vo-

    cs vo l resolver que eu j estou por aqui, no limite, nos

    cascos e ainda acabo matando um!

    ACADMICO: Mas quem so?

    BOCARRO: Um tal de Pter Askalander e um tal de Pedro Lacrau.

    ACADMICO: Mas so personagens da prxima pea, Stultfera Navis,

    que ainda vai estrear em setembro!

    TEIT: (LEMBRANDO) i! A culpa minha. Comecei a construir

    esses personagens mas tive de parar pra fazer Mastecl.

    No fcil fazer dois trabalhos ao mesmo tempo!

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    BOCARRO: Que que eu fao? Cubro de porrada ou deixo ir?

    TEIT: Nem um nem outro. Amarra que quando acabar a tempo-

    rada dessa pea eu cuido deles. (BOCARRO SAI)

    BENEDITA: Que que a gente faz?

    TEIT: (AO ACADMICO) melhor o senhor voltar palestra.

    ACADMICO: De jeito nenhum.

    TEIT: Mas, homem! J lhe expliquei: voc contraponto!

    BENEDITA: Tem de haver um personagem ridculo como o senhor pra

    personagens como eu e ele termos mais graa.

    ACADMICO: No, senhor! Comdia no tem de ter s personagens

    toscos, estereotipados.

    TEIT: Estamos falando de comdia popular.

    ACADMICO: Principalmente esta! Ela tem vigor criativo e o requinte de

    geraes de criadores que durante sculos apuraram sua

    forma, seu textos, seu gesto. A comdia popular a cele-

    brao da inteligncia de sucessivas geraes de artistas

    annimos. (ENTRA BOCARRO)

    BOCARRO: Chegaram mais dois telegramas dizendo que o diretor e o

    autor esto vindo pra c!

    BENEDITA: Ichi, vai feder!

    ACADMICO: bom mesmo! Tenho uma ou duas coisas a dizer!

    BOCARRO: Ento voc vai dizer essas coisas na casa do chapu, na

    casa da me Joana, na casa do Bonifcio! No meu teatro,

    no! No quero arruaa! E pra que no comece eu estou

    acabando com essa zorra! J que nem autor, nem diretor,

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    45

    nem atores chegam a um consenso sobre a continuao

    da pea, dou o espetculo por terminado. J tarde, eu

    moro longe, tenho de pegar dois nibus!

    ACADMICO: Escuta...

    BOCARRO: No quero essa confuso de vocs!

    ACADMICO: Comdia confuso!

    BOCARRO: No mais! Aqui, no! confuso da porta pra fora!

    essa a palavra: fora! Fora! Fora vocs! (PARA O PBLI-

    CO) Fora vocs tambm! E, se no sarem, pela primeira

    vez na vida uma comdia vai ter conseqncia. E no vai

    ser boa pra nenhum de vocs! (COMEA A FECHAR AS

    CORTINAS.) Tenham a bondade, ou melhor, a obrigao

    de aplaudir o espetculo. (AOS ATORES) Vocs, venham

    aqui na frente e agradeam. E, agora, saiam! Vocs, ato-

    res, e vocs, pblico! Mas saiam de forma ordeira, sem

    atropelo, sem falar alto, sem arrastar os ps, sem cortar a

    frente do outro, sem obstruir as sadas, sem ficar rindo fei-

    to bestas, sem falar mal da pea. Esto todos obrigados a

    indic-la a parentes e amigos. Boa noite, se conseguirem

    ou se tiverem competncia pra isso! No digo muito obri-

    gado porque ningum me obriga a nada! O espetculo

    acabou! Adeus e espero no v-los mais em meu teatro!

    FIM

    Qualquer utilizao deste texto, parcial ou total,

    deve ter a autorizao do autor:

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    09400-000 Ribeiro Pires SP

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