4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
MEMENTO MORI – VERSÕES DO URBANO ATRAVÉS DAS PAISAGENS FÚNEBRES NO ESPAÇO-TEMPO CONTEMPORÂNEO
ANDRADE, RUBENS DE (1); SILVA, ALDONES NINO SANTOS DA (2); CANTÚ, BRUNO (3)
1. Escola de Belas Artes – EBA/UFRJ – Dep. de História e Teoria da Arte. Av. Pedro Calmon, 550.
Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901 [email protected]
2. Escola de Belas Artes – EBA/UFRJ – Depart. de História e Teoria da Arte. Av. Pedro Calmon,
550. Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901 [email protected]
3. Escola de Belas Artes – EBA/UFRJ – Departamento de História e Teoria da Arte
Av. Pedro Calmon, 550 - Cidade Universitária, Rio de Janeiro - RJ, 21941-901 [email protected]
Resumo As manifestações da morte e de estados fúnebres (luto, dor, tristeza, mal, sofrimento) são duas instâncias de representações distintas e indissociáveis no desenho da paisagem urbana. Ambas vigoram na cidade desde o seu surgimento; ambas estabelecem inequívocas relações entre vivos e mortos, sejam seres humanos ou inumanos, carne ou pedra. Todavia, ao considerar o modus vivendi urbano contemporâneo, percebe-se a existência de sentidos e significados, subordinados ao domínio da morte, e a esfera dos ritos fúnebres, que, por sua vez, sinalizam o modus de reinterpretação da escala hierárquica e da representatividade de cada uma dessas ordens no cotidiano da cidade. O recorte temático selecionado para este estudo instiga a formulação de uma matriz analítica em que é possível estabelecer, entre outras coisas, relações de interdependência e intermediações mútuas de atributos cotidianos da vida e da morte; ou seja, a existência e ausência, a angústia e alívio, a falta e substituição, o aqui e o além, associados, que projetam no ambiente construído a consciência dos estados fúnebres que a paisagem pode adquirir. Compreende-se que a reflexão aqui proposta transita através de conceitos referenciados à ideia de paisagem stricto sensu, mais detidamente, às singularidades teóricas de estudos voltados à paisagem cultural que, aliás, mediará a leitura de fragmentos dos espaços fúnebres da cidade como cemitérios, monumentos in memoriam, como também as manifestações ritualísticas que ganham materialidade no espaço urbano e expressam a ordem da finitude da vida. Palavras-chave: Paisagem fúnebre; Morte; Arte urbana; Paisagismo.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
O recorte epistemológico e o elenco de questões
E é no entanto essa interrogação sobre a sorte dos mortos que quero exorcizar, de que quero fazer o luto para mim mesmo. Porquê? Porque minha relação com a morte ainda não ocorrida é obscurecida, obliterada, alterada pela emancipação e pela interiorização da questão da sorte dos mortos já mortos. É a morte de amanhã, no futuro anterior de certo modo, que eu imagino, e é essa imagem do morto que serei para os outros que quer ocupar todo o espaço, com sua carga de questões: o que são, onde estão, como são/estão os mortos? (RICOEUR, 2012, p. 9).
O estudo dos lugares dedicados aos ritos de consagração e celebração da memória dos
mortos na cidade contemporânea, a partir do campo de estudo da arquitetura paisagística,
tem, na sua origem, perspectivas que convergem para dois elementos fundamentais na
produção do meio ambiente urbano: a paisagem e a arte. Ambas trazem em si relações
estreitas com a ideia de cultura. Ambas traduzem e pluralizam o conceito de civilização.
Ambas oferecem ferramentas conceituais e postulados teóricos que ajudam a interpretar os
lugares que os mortos ocupam na cidade e como a morte se mostra visível através do
desenho da paisagem na forma de cemitérios, monumentos in memoriam ou rituais
religiosos.
A “carga de questões” que surge a partir das relações constituídas entre a cidade, os
mortos e o “espectro da morte”, sinaliza caminhos para interpretar como a finitude humana
se revela no ambiente, espraia-se pelos espaços do tecido urbano e certifica ao homem
contemporâneo que a morte verdadeiramente é o fim da vida; é, de acordo com Voltaire
uma experiência cujo conteúdo real não é apenas o fato de morrer, mas também a certeza
de dever morrer (VOLTAIRE apud LANDSBERG, 2009). Tal perspectiva ganha
representatividade e profusão através de elementos animados e inanimados presentes em
cemitérios, monumentos in memoriam, ou, até mesmo, em ações religiosas de teor
ritualístico, cujos atributos, sejam paisagísticos, artísticos ou culturais, ganham força
imagética e significado simbólico ao criarem paisagens em que a atmosfera fúnebre,
mórbida e soturna que lhe parece ser peculiar, nutre o imaginário metafísico e sobrenatural
da cidade, onde a certeza da morte, aparentemente, ainda assombra a sociedade.
De fato, cada um dos fenômenos que surgem no espaço urbano, sob o signo do
aniquilamento do homem, mitiga, no corpo social, aquilo que Paul Ricouer denomina de
angústia do esquecimento, ou seja, como a experiência do luto iniciado na lembrança da
morte (RICOUER, 2012) pode se tornar um importante agente na construção do trabalho da
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
memória e o trabalho do luto (ibidem, grifo nosso) na sociedade. Segundo o autor, tanto a
memória quanto o luto são palavras de esperança arrancadas do não dito (ibidem), as
mesmas contribuem para a invenção de ideários que retroalimentam o imaginário social e
ativam múltiplos processos na cidade.
O entrelaçamento estabelecido pelos vetores artístico-paisagísticos reafirma as narrativas
histórica, artístico-cultural e socioespacial na relação morte versus cidade, o que reforça a
construção de um campo epistemológico ampliado para explorar processos e fenômenos
que ocorrem nos espaços ritualísticos do tecido urbano. Portanto, importa a esta discussão
interpretar como as sociedades contemporâneas decifram o impacto do desaparecimento da
vida, relativa ao seu semelhante, ou até mesmo, ao desaparecimento de partes do ambiente
urbano onde se tecem relações, negociam-se ideologias e firmam-se trajetórias de vida.
Também se faz necessário perceber como as ideologias e as trajetórias da vida se projetam
nas múltiplas formas de representar a morte no cotidiano da vida urbana através do aporte
epistemológico inscrito nas ideias de paisagem cultural.
Dimensões da morte na cidade em perspectiva
As manifestações da morte e de estados fúnebres (luto, dor, tristeza, mal, sofrimento) são
duas instâncias de representações distintas e indissociáveis no desenho da paisagem
urbana. Ambas vigoram na cidade desde o seu surgimento e estabelecem inequívocas
relações entre vivos e mortos, sejam seres humanos ou inumanos, a carne ou a pedra.
Todavia, ao considerar o modus vivendi urbano contemporâneo, percebe-se a existência de
sentidos e significados subordinados ao domínio da morte e à esfera dos ritos fúnebres, os
quais, por sua vez, sinalizam o modus de reinterpretação da escala hierárquica e da
representatividade de cada uma dessas ordens no cotidiano da cidade. O binômio
morte/estados fúnebres potencializa o surgimento de ambientes/ambiências que transmitem,
simultaneamente, o tônus da vida, manifestado no corpo social ou nos artefatos que animam
a cidade, assim como o vácuo representado pela morte, que se traduz pela dissolução do
corpo, aniquilamento das materialidades e, sobretudo, pela extinção das zonas de contato
físico, representadas por elementos ou entidades nas quais não mais se evidencia o pulsar
da vida e dos processos que transformam a matéria. Tal perspectiva, interposta ao
movimento da cidade, consubstancia-se em lugares onde o inanimado, o silêncio, o
desaparecimento, o sombrio, o esquecimento e o fantasmagórico se fazem presentes.
Na obra A cidade na história, suas origens, transformações e perspectivas, Lewis Mumford
afirma que, desde a gênese da cidade, a ideia da morte é algo presente; ele propõe que a
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
cidade dos vivos é ela mesma decorrência da cidade dos mortos. Afinal, os mortos foram os
primeiros a ter uma morada, um espaço, onde o grupo que enterrava seus mortos,
provavelmente, retornava a intervalos regulares (MUMFORD, 2002). As primeiras
manifestações comprovadas do homo sapiens com relação à morte precedem, dessa forma,
o próprio surgimento das cidades. Por esse motivo, parece haver um caráter fundamental e
contraditório no processo de formação da cidade, qual seja: a cidade, desde o seu
surgimento, é o palco da vida, mas, inicialmente, ganhou suas primeiras representações a
partir da ideia de morte.
Michel Lauwers, outro nome relevante quando o tema da morte inscreve-se na construção
da ideia de cidade, aponta em uma direção semelhante à postulada por Lewis Mumford. O
autor destaca em sua obra, O nascimento do cemitério: lugares sagrados e terra dos mortos
no Ocidente medieval, que a coabitação dos mortos e dos vivos constitui um dos traços
maiores das formas de organização social que se impuseram na Europa ocidental ao longo
da Idade Média (LAUWERS, 2015).
A cidade contemporânea continua a conviver com a morte e esse é um fato concreto e
irrefutável do nosso cotidiano. Contudo, a sociedade parece restringir a morte – ou qualquer
representação que esteja atrelada a ela – a locais sagrados ou dedicados a ritos
cerimoniais. Todavia, a morte se mostra presente no cotidiano urbano de um modo sutil ou
espetacular, seja através dos diálogos silenciosos de enlutados que velam seus mortos nas
capelas cemiteriais ou, ainda, pelos meios de comunicação que, através do cyberespaço,
amplificam nas redes sociais e sites de notícias informações de catástrofes, acidentes
fatais, atentados terroristas, e, por outro lado, mitigam na população o processo da morte
dos seus ícones religiosos, celebridades do mundo das artes e espetáculos ou, mesmo, a
biografia de assassinos.
A morte em movimento e o cotidiano da vida urbana
Todos os elementos anteriormente destacados oferecem diversos parâmetros para ler e
interpretar a cidade através da perda de vidas humanas, inumanas e de formas inanimadas
que se materializam na paisagem. A morte e suas representações in situ e in visu, inscritas
no cemitério, monumentos funerários e demais espaços onde o signo da finitude humana se
estabelece, possuem a capacidade de produzir questionamentos valiosos sobre os símbolos
em que estão inscritos.
Neste sentido, por meio das questões ligadas à ideia de lugares dedicados aos ritos de
consagração e celebração da memória dos mortos na cidade contemporânea e de como os
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
mesmos desenham paisagens específicas, abre-se um campo amplo para análises, e as
formas plásticas e visuais que a morte adquire na cidade são diversificadas, desde a arte
tumular tradicional (encontrada nos cemitérios da cidade, onde é possível defrontar-se com
esculturas típicas que exaltam a religiosidade da fé cristã) a obras de artistas de renome em
cemitérios tradicionais dos grandes centros urbanos, tais como o Cemitério da Consolação,
em São Paulo, ou o Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro.
No caso do cemitério São João Batista, fundado em 16 de outubro de 1851, é possível notar
a existência de acervo de arte funerária (arquitetura e esculturas) que não se destaca
apenas pelo valor artístico de suas obras, mas também porque o espaço cemiterial, num
todo, revela muito sobre os diferentes níveis de representações estabelecidas entre a morte,
a sociedade e aqueles que foram ali sepultados. O cemitério carioca, em muitos aspectos,
aproxima-se da ideia de um museu a céu aberto devido à quantidade, à qualidade de obras
que ele abriga como também pela questão autoral que se destaca devido à presença de
obras assinadas por artistas renomados de diferentes nacionalidades. Rodolpho Bernadelli,
Octávio Corrêa Lima, Heitor Usai, Celita Vaccani, Humberto Cozzo estão entre os escultores
brasileiros; os franceses são representados por Jean Magrou e Colin George, e os italianos
surgem através de nomes como J. Guazzini, B. P. Giusti, Luca Arrighini e A. Canessa1, ou
seja, o território dos mortos firmou-se, através da arte funerária, como um lugar que serve
de depósito das lembranças e nos libera do peso das responsabilidades infligidas à memória
(JEUDY, 2005, p.15).
Nas alamedas e aleias que desenham o tecido urbano do cemitério São João Batista, o
observador depara-se com sepulturas, jazigos e esculturas inspirados nos estilos
neoclássico, neogótico, art nouveau, eclético, art déco e moderno. O trabalho, criado por
artistas, ao longo de mais de um século, tem como denominador comum imagens clássicas
da ornamentação funerária que faz uso de elementos clássicos da simbologia cristã, na
maioria das vezes, na arquitetura de túmulos, como também nos ornatos que definem
sepulturas e esculturas de personagens “anônimos” e de nomes de vulto que se encontram
sepultados no São João Batista.
As representações fúnebres estão atreladas à cosmovisão de determinados contextos
históricos, políticos, religiosos e sociais, e cada uma delas, guardada sua esfera de
influência, parece ainda inspirar a criação de artistas contemporâneos, como é possível
observar na série Passagens de Bruno Cantú. Desenhista e pintor de Minas Gerais, Cantú
valoriza a interpretação da paisagem fúnebre através de uma leitura literal de objetos que se
manifestam no contexto cemiterial. O caráter de suas composições evoca todo tempo a
1 Ver http://www.artefunerariabrasil.com.br. Acesso em 20.Ago.2016.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
esfera transcendental; a dureza da pedra, representada em esculturas e conjuntos
arquitetônicos, materializa hierarquias terrenas que contrastam com o senso etéreo,
evidenciado nas figuras de anjos, santos e mártires que “encarnam” a ordem celestial e a
ideia da eternidade em um cenário em que a certeza do fim, do enterramento, do luto e da
dor torna-se uma presença constante.
O traço forte e marcante, a composição de pictogramas, a presença de símbolos cristãos e
o usos de tipografias criam visualidades em que cultura e arte organicamente se fundem e
acrescentam inúmeras camadas num palimpsesto que revela diferentes maneiras de
construir e interpretar ideias acerca da nossa humanidade, dos propósitos da vida e daquilo
que estaria por vir após a morte. (Figuras 1, 2, 3 e 4)
Figura 1: Passagens II Bruno Cantú 17,5 com x 16 cm Técnica mista sobre papel, 2016
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Figura 1: Passagens I Bruno Cantú 39,5 com x 16 cm | Técnica mista sobre pape,
2016.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Figura 3: Passagens III Bruno Cantú
22,5 com x 15 cm Técnica mista sobre papel
2016
Figura 4: Passagens IV Bruno Cantú 39,5 com x 16 cm Técnica mista sobre papel 2016
Superação da dor e do luto e celebração da vida através de intervenções paisagísticas
No Brasil, temos inúmeras referências de paisagens nas quais a ideia de morte e luto
encontra-se bastante imbricada nos monumentos in memoriam e outras construções, que
surgem nas mais diversificadas formas e que não seguem, necessariamente, os clássicos
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
arranjos que, em geral, são utilizados para demarcar, no ambiente construído, os momentos
de luto, de perda, de dor e de sofrimento a serem rememorados pela sociedade na
paisagem.
O Parque da Juventude, em São Paulo, é um exemplo de composições de paisagens que
não se adaptam aos padrões de monumentos in memoriam, mas que, na sua essência,
demonstram que esta questão é algo latente na ideação de seus espaços. Construído sobre
as ruínas da Casa de Detenção do Carandiru, o Parque da Juventude é um local que, ainda
hoje, possui profundas marcas da dor humana e da morte, memórias de sofrimento difíceis
de serem apagadas, ainda que o viço do jardim e a dinâmica de usos inerentes ao parque
público (projetado pelo escritório dos arquitetos urbanistas Rosa Kliass e José Luiz Brenna)
sejam os elementos essenciais do projeto paisagístico que redesenhou aquela paisagem. O
parque foi construído a partir da desativação da Casa de Detenção do Carandiru, presídio
onde, em 2 de outubro de 1992, 111 detentos perderam a vida após a tentativa da Polícia
Militar de pôr fim a uma rebelião. Após a tragédia, a estrutura penitenciária entrou em
declínio e, em 2002, foi desativada e em parte demolida para dar lugar ao parque público
(Figura 5).
O parque projetado trouxe vitalidade ao local através dos usos típicos que qualificam
grandes áreas livres dos centros urbanos; além dos aparelhos de esportes e de recantos
aprazíveis, foram projetados equipamentos de usos culturais e educativos que alteraram
significativamente as características locais daquela paisagem. Independentemente do
aspecto lúdico e educativo que hoje a área possui, a memória da dor e do sofrimento está
mantida no parque através de vestígios de alguns pavilhões, que surgem naquele ambiente
como “espectros” de uma arquitetura da opressão que não mais existe, mas, por outro lado,
revigora a memória daqueles que, de alguma forma, foram atingidos por um evento de
profunda dor, que, em especial, atingiu pessoas que perderam familiares de forma violenta
e desumana.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Figura 5: Panorama dos pavilhões do Complexo do Carandiru em São Paulo, que dez anos após rebelião e o massacre de 111 detentos, foi desativado, tendo alguns de seus pavilhões implodidos e outros adquirido novos usos. Fonte: http://noticias.bol.uol.com.br/fotos/imagens-do-dia/2015/10/02/carandiru-de-presidio-modelo-a-palco-de-massacre.htm?fotoNav=1#fotoNav=99
Inaugurada em 2003, a nova paisagem, que desenhou o Parque da Juventude, impôs uma
silhueta renovada e original aos 240.000m2 de área. A arquitetura da paisagem que abrigou,
por décadas, o exercício do “vigiar” e do “punir” e, igualmente, demonstrou a aplicação da
letra da lei, também conviveu com a sua omissão, ao renunciar aos critérios fundamentais
dos direitos humanos no episódio do massacre do Carandiru. A potência desumana do
evento que marcou o epílogo da existência da Casa de Detenção desmoralizou o poder
público e expôs a toda a sociedade a falência do Estado nas esferas política, jurídica e
militar, uma vez que não conseguiu atuar em uma crise de grandes proporções a contento.
A omissão do Estado culminou em uma ação até então impensável: a morte, em massa, de
dezenas de seres humanos; ou seja, a manifestação de prática vil e hedionda que resultou
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
no desmanche, na desagregação, na desaparição de vidas alheias. Vidas que, ao longo de
suas respectivas trajetórias, tiveram sequestrada de seus cotidianos a possibilidade do gozo
de sua cidadania, dos direitos e deveres, representada pela educação e pelo trabalho que,
em perspectiva, seriam a força capaz de desenhar percursos alternativos para suas
existências. O resultado desse processo foi de fato o oposto; aqueles homens, sejam
detentos ou policiais, confrontaram-se com a insensatez da escolha entre o matar ou morrer,
interposto com a crueldade e uma visão torpe de um Estado que contribuiu sobremaneira
para o aniquilamento prematuro de vidas. O saldo de processo para sociedade? O peso do
doloroso luto impingido aos familiares, que perderam seus parentes, e à sociedade, que foi
capturada pelo grotesco gesto de insanidade que marcou aquele lugar.
O potencial transformador da arte paisagística, através dos jardins, de esculturas, da arte
urbana narrada por meio do grafite e ações de grupos e movimentos sociais, tonifica uma
dinâmica espacial de usos no parque em que o fruidor tem a possibilidade de vivenciar
experiências anaminéticas, ou seja, exercitar a memória ao confrontar-se com a história do
lugar. Esse movimento permite não somente o redimensionamento do lugar, mas também
uma leitura da paisagem inscrita em uma nova ordem de valores, tendo como referência o
ambiente pretérito e aquele que se configurou após a implantação do parque na
contemporaneidade. (Figura 6)
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Figura 6: Os antigos pavilhões do Complexo do Carandiru após a implantação do parque deram uma nova configuração a paisagem. As paredes derrubadas, deixaram apenas vãos que parecem formar uma espécie de folies contemporâneas que atravessam jardins e criam espaços lúdicos e iluminados em uma área onde antes abrigava a opressão, a dor, e a ausência de liberdade. Fonte: Fotografias gentilmente cedidas por Vera Tângari, 2014.
Hoje, a paisagem que perpassa as “celas” vazias do Carandiru não se consubstancia como vácuos na memória dos que ali vivenciam o espaço; talvez o insepulto cadáver arquitetônico, atravessado pela poesia e a beleza de um jardim, seja uma espécie de prenúncio do armistício entre o concreto, que antes aprisionava, e que agora deixa tudo o que tem vida fruir, e se espraia através dele O exercício de usufruir de liberdade nesse cenário bucólico está posto em um espaço livre que solicita e ativa no observador as mais diferentes experiências sensoriais entre arte paisagística e genius loci do lugar. A arte que se faz presente através da visualidade paisagística do jardim imanta o ambiente com uma aura edênica e cria possibilidades para vivências de um lugar onde o silêncio, a paz e o contato direto com a natureza ofereçam uma forma aprazível de vivência, através de uma lente inversamente proporcional àquela pela qual aquele lugar esteve impregnado.
No Rio de Janeiro, temos outro parque público – o Aterro do Flamengo – que abriga um memorial funerário icônico na paisagem brasileira, o Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (MNMSGM), conhecido como Monumento aos Pracinhas2.
2 O Monumento é visitado por inúmeras autoridades nacionais e internacionais, tendo contado com visitantes ilustres como o papa João Paulo II e Elizabeth II, Rainha da Inglaterra.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Inaugurado em 5 de agosto de 1960, tem a assinatura de Marcos Konder Netto e Hélio Ribas Marinho, ambos arquitetos modernistas de relevo no cenário brasileiro que ao vencerem o concurso público para a construção do monumento, deixaram a sua marca na paisagem carioca.
A solução arquitetônica proposta, apesar de ser composta por clássicos elementos que caracterizam os monumentos in memoriam tradicionais (museu e mausoléu), tem sua estrutura temática inscrita em conceitos e em ideologias que marcaram o movimento da arquitetura moderna conforme afirma Ricardo de Souza Rocha, ao destacar que o Monumento à Terceira Internacional (1919-1920), de Vladimir Tatlin, o Monumento aos Caídos de Março (1921-1922) de Walter Gropius e o Monumento a Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo (1926), de Mies van der Rohe (RICARDO, 2007), indicavam que projetos de teor semelhante ao Monumentos dos Pracinhas tinham a questão da monumentalidade e da abstração como centro do debate arquitetônico internacional (ibdem), além de uma sensível inclinação para demandas de ordem sociopolítica que se aproximavam a uma perspectiva alinhada às ideologias socialistas.
O Memorial dos Pracinhas, idealizado pelo marechal João Baptista Mascarenhas de Moraes, comandante da Força Expedicionária Brasileira (FEB), tinha como premissa3 trazer de volta à pátria os heróis anônimos que tombaram nos campos de batalha da Itália. Logo, a criação do monumento habita uma ordem transcendental, quando busca resgatar a memória e os feitos dos mortos na Segunda Guerra Mundial. O marechal parece deixar clara essa prerrogativa quando justifica o seu desejo a partir da relação que engendra a ideia do resgate da memória a partir da recuperação dos restos mortais e da monumentalização. Quando afirma que “Eu os levei para o sacrifício; cabia-me trazê-los de volta para receber as honras e as glórias de todos os brasileiros”, fica visível que os restos mortais dos pracinhas surgem atrelados à glória nacional e a honrarias de guerra, quase sempre interpretadas a partir de uma perspectiva político-militar. Nas referências ao local e no imaginário social é interessante notar que o termo morte – que integra o seu nome oficial – é preterido em comparação ao Monumento aos Pracinhas, afinal, a ênfase à morte que era expressa no título da obra acaba por ser retirada.
O memorial, concebido como museu e mausoléu, possui 10.000m2 dos quais 6.850m2 referem-se especificamente à área construída. As formas arquitetônicas e o desenho da paisagem inscrevem-se em uma escala monumental em que a grandiosa esplanada ladeada de jardins conduz o observador a duas notáveis plataformas que, por sua vez, produzem um lugar cuja atmosfera inspira um sentido de solenidade e sobriedade à paisagem. O projeto arquitetônico destaca-se pelo uso de formas geométricas puras, conforme as soluções usadas à época de sua construção por arquitetos modernos, e pela imponência que lhe é inerente, justificada pelas dimensões que as plataformas possuem, como também pela altura que o monumento atinge (31 metros). Tais características tornam o monumento, além de um elemento simbólico na paisagem, um referencial físico no tecido urbano da região Central do Rio de Janeiro, que pode ser notado e contemplado a partir de diferentes pontos geográficos da cidade. (Figuras 7, 8, 9 E 10).
3 Site oficial do monumento:
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Figuras 7, 8, 9 e 10: Panorama do Memorial do Pracinhas. A arquitetura da paisagem do memorial se destaca pelo conjunto escultórico e composição paisagística do parque do Flamengo, onde espelhos d´água em cascata, a monumental paltaforma e os jardins periféricos projetados por Burle Marx reafirmam a imponência do monumento. Fonte: Fotografias de Aldones Nino, 2016.
O memorial também forma um desenho de paisagem distinto na conjuntura urbano-
paisagística do Parque do Flamengo. Afinal, o traçado do parque de Affonso Eduardo Reidy,
o Museu de Arte Moderna – MAM e os jardins projetados por Roberto Burle Marx, que
interligam ambas as construções, criaram um complexo arquitetônico-paisagístico de
significativo impacto na enseada da baía de Guanabara. Esse conjunto não só representa
uma fase efusiva na história da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo da cidade do Rio
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
de Janeiro, mas ele também reflete um tempo-espaço que coroou mudanças relevantes no
habitus do cidadão carioca ao lhe oferecer um novo modus vivendi a partir da implantação
de um parque e de equipamentos urbanos que valorizaram a vida cultural da cidade (MAM),
como também evocaram a história recente da nação, ao celebrar aqueles que perderam
suas vidas no conflito mundial. Essas memórias fúnebres, suscitadas pelo Monumento dos
Pracinhas, também emergem na paisagem de forma didática, ao solicitar do observador um
tempo para reflexão. Mesmo que as alegorias da morte tradicionalmente utilizadas nesses
espaços não se façam presentes, ainda assim, a solução arquitetônica dada ao monumento,
traduzida pela estabilidade estrutural e austeridade das formas, captura a atenção do
observador e o lança para o campo sensível onde a morte, a dor e o luto se fazem
presentes nos sentidos da memória.
Vale ainda destacar que o entourage de artistas que compõe o projeto do memorial foi
formado por nomes do universo das artes visuais como Júlio Catelli Filho – autor da
escultura de metal com características futuristas –, Alfredo Ceschiatti – responsável pela
escultura em granito em homenagem às Forças Armadas – e Anísio Araújo de Medeiros –
projetista do painel de azulejos que homenageia civis e militares mortos no mar, em 1959.
Ou seja, a relação entre a memória dos mortos e a paisagem desenhada passou
efetivamente pelo território da arte.
Práticas do luto, mausoléus e áreas cemiteriais: cultura e paisagem
no desenho do ambiente urbano
Desde 1889, com a proclamação da República, o corpo de capelães militares é extinto,
assim como a prática religiosa no interior dos quartéis. Ainda que embebida de ideais
positivistas, a entrada do Brasil, na Segunda Guerra Mundial, recria o corpo de capelães
militares, ao integrar estes à Força Expedicionária Brasileira. Desta forma, embarcam para a
Itália 25 padres católicos e 2 pastores protestantes. O fato em si estimulou nosso interesse
em interpretar qual era a dimensão e as reais necessidades de práticas e rituais religiosos
em uma situação onde o confronto direto com a morte era algo notadamente esperado. A
sociedade brasileira mostrou-se alheia a determinados ideais positivistas, logo, rituais e
credos tradicionais não se extinguiram do cotidiano da sociedade brasileira, sobretudo
devido à forte religiosidade que surge como uma característica que lhe é distinta. Portanto,
diante da presença da morte, a formação ideológica do militar se viu acuada diante das
pressões geradas pelas crenças do corpo social que iria arriscar suas vidas pela pátria.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Diante de tais princípios que pautaram a relação entre os expedicionários versus a
possibilidade da morte no campo de batalha, surgiram ações que buscavam resguardar a
integridade do corpo dos soldados mortos em batalha, o que, na prática, indicava um claro
exercício de cuidado com a dor e o luto de familiares, amigos e da própria pátria, pelos seus
heróis. Exemplo que referencia este fato pode ser analisado a partir do cemitério militar
brasileiro construído na cidade de Pistoia, na Itália, cujas características são notadamente
cristãs, como: a) a ideia do solo consagrado, b) o enterramento com ritos religiosos, c) a
presença de túmulos com cruzes brancas; c) o uso de uma enorme cruz no pátio central. É
comum a existência de cemitérios militares em regiões de conflitos bélicos. Na Itália, ainda
hoje existe o Cemitério Americano em Florença, e até mesmo um Cemitério dos Alemães
em Pomezia (PIOVEZAN, 2011).
Em julho de 1960, uma Comissão de Repatriamento dos Mortos do Cemitério de Pistoia
(CRMCP) parte para a Itália com o dever de garantir a exumação dos 462 corpos existentes
no Cemitério Brasileiro. Em dezembro do mesmo ano chegam, em uma aeronave da Força
Aérea Brasileira, as urnas contendo os restos mortais, e, após uma semana, acontece uma
solenidade, na qual se realizou um cortejo fúnebre pela avenida Rio Branco. A comissão de
Repatriamento dos Mortos partiu para a Itália em 20 de junho de 1960, e a cerimônia
aconteceu em 22 de dezembro4. Após o cortejo, as urnas foram depositadas nos
respectivos jazigos do mausoléu, em mármore preto nacional com tampas de mármore de
Carrara, onde encontram-se, gravados, nome, graduação ou posto, unidade, data de
nascimento e morte.
É sabido que os ideais positivistas, que foram disseminados nas Forças Armadas a partir do
final do século XIX, priorizavam a laicização de suas práticas. Assim, os mausoléus
coletivos militares têm como marca feições assumidamente cívicas e patrióticas.
Uma das urnas de mortos não identificados passou a simbolizar o “Soldado Desconhecido”
e foi entregue pelo marechal Mascarenhas ao presidente Juscelino Kubitschek, que a
depositou na base do Pórtico Monumental. O soldado desconhecido visa dar espaço aos
corpos tombados que não tiveram honrarias e glórias. Desta forma, essa urna surgiu com
uma incrível potência simbólica, já que evidencia o anonimato de soldados, pracinhas e
combatentes em geral, os quais morrem em meio aos conflitos, e seus restos mortais não
retornam para suas famílias, e estas devem lidar com o luto e a dor da perda sem o
enterramento tradicional.
4 É importante ressaltar a importância desse cerimonial, que ocorreu no mês anterior à sucessão presidencial. Assim se realizou uma das últimas grandes cerimônias do governo Juscelino Kubitschek, finalizando seu mandato e cunhando de vez a imagem de “pai” do Brasil moderno, que persiste até os dias de hoje.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Entre os 462 corpos, um adquiriu a mais potente carga simbólica, pois o espectro do
soldado desconhecido estabelece o eixo de ligação com um modelo universal. Destituído de
particularidades, esse corpo pode ser associado à figura de um brasileiro heroico e
combatente, o qual se privou de sua existência em nome da sua nação e da liberdade.
Logo, a presença que sentimos ao encarar esse corpo, depositado na base do Pórtico
Monumental, nos possibilita uma ligação com um herói anônimo, pois os outros corpos
podem pertencer a uma memória familiar, pessoal. O soldado anônimo, destituído de face e
nome, transmite a ideia central do monumento, já que representa a memória esquecida e
que agora jaz resgatada e imortalizada na construção de concreto.
O monumento firma a importância da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial,
surgindo como marcador da inserção do Brasil no conflito, que foi um dos maiores
acontecimentos do último século, pois foi responsável por uma reordenação na configuração
geopolítica mundial, e ponto de partida de inúmeras inflexões acerca do posicionamento e
direcionamento do homem do século XX, exercendo grande influência nas ciências
humanas. Essas inflexões partem da mortalidade e destruição da guerra, que condenou à
morte milhões de seres humanos, além de dizimar inúmeras cidades. A Segunda Guerra
evidenciou o poder da destruição em massa, partindo do desaparecimento de vidas
humanas e de cidades. E tanto o Monumento aos Pracinhas, no Rio de Janeiro, quanto o
Monumento Votivo Militar Brasileiro, em Pistoia, unem elementos da arquitetura e da arte
pública, que criaram paisagens, as quais não podem ser compreendidas sem elencar
elementos da cultura daqueles que ali vivem, criam e morrem.
O Exército brasileiro exerceu grande influência na formação da história nacional, possuindo
um importante valor simbólico para a identidade da nação, pois era a instituição primeira que
pensou em termos de coesão e unidade territorial. O espaço geográfico é transpassado por
inúmeras dinâmicas, e uma potente dinâmica criadora de espaços e ambiências é a morte,
que, pelo viés da guerra, é potencializada por questões de monumentalidade, diplomacia e
memória nacional. Tais monumentos evidenciam como a representação da morte, atrelada
às artes visuais, ao paisagismo e à arquitetura, evidencia as trocas sociais, sem as quais
não poderíamos ler a paisagem que se impõe aos nossos olhos. A morte, como signo,
revela traços do patrimônio artístico e histórico nacional, e a finitude e o óbito estão presente
nessas construções, como elementos constitutivos da identidade e da memória nacional.
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
Considerações finais
A espetacularização da morte através da guerra, de rebeliões, ou ainda, dos ritos fúnebres
do luto não apenas movimentam o imaginário social, como também resultam em
manifestações espaciais que perpetuam os efeitos de lembranças trágicas que se abatem
sobre a sociedade. A arquitetura da paisagem, através de intervenções paisagísticas e de
ações artísticas, surge, portanto, como elemento singular para a alteração do desenho do
ambiente construído, cujo interesse visa diretamente à manutenção, à potencialização ou ao
apagamento de eventos funestos que marcam a história da humanidade. A intervenção na
paisagem, com este intuito, serve para perpetuar, ou apaziguar lembranças que geraram
sofrimentos e deixaram feridas no imaginário social. Nesse sentido, os exemplos aqui
elencados, a partir de distintos espaços geográficos no mundo, foram guiados por interesses
de rememoração que continuam a dialogar com os interesses do Estado e da sociedade.
O caso do Parque da Juventude contribuiu para dar um novo uso e significado a um espaço
atrelado a vivências trágicas e imbuído delas. A proposta de arte e paisagem, ali
estabelecida, de diferentes formas e conteúdos, apesar de revelar as falhas de um Estado
busca ajudar a cicatrizar as feridas abertas no imaginário social, mesmo que as mesmas,
apesar do tempo decorrido, não fossem totalmente esquecidas.
Concluímos que as relações estabelecidas entre os diversos atores sociais e os
acontecimentos atrelados à lembrança da morte, do luto e do sofrimento são vetores
potencializadores da formação de determinados espaços na cidade contemporânea. Os
eventos que ocorrem na trama urbana possuem a potência de transformar espaços através
da arquitetura da paisagem e da arte paisagística, paisagismo que reescreve a essência
simbólica inscrita na cidade e propõe novas narrativas urbanas. A morte, enquanto um
potente signo da finitude humana, dimensiona e tenciona aspectos históricos e sociais. Os
domínios da dor, da morte e do luto podem, assim, servir de fio condutor para a
compreensão de representações tanto materiais quanto imateriais que surgem no meio
urbano. As sociedades contemporâneas decodificam o impacto do desaparecimento da vida
e do próprio aniquilamento do ambiente urbano através de representações da memória dos
mortos na cidade.
O Monumento aos Pracinhas e o Monumento Votivo Militar Brasileiro dialogam com a
aniquilação da guerra, que, ao apagar vidas, impõe o esquecimento do desaparecimento
aos combatentes. A arquitetura surge, então, como um meio de restauração da memória
dos mortos, e, no caso das guerras, pode servir como o resgate ou afirmação da memória
nacional, que é fruto de intensos embates. Dentro de uma perspectiva mais contemporânea,
o Monumento aos Pracinhas deve se destacar, já que pertence ao sítio que foi considerado
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
como Paisagem Cultural – Patrimônio da Humanidade pela Unesco5, fruto de um processo
construído pelo IPHAN, que levou em conta uma série de elementos de notável valor
paisagístico e cultural presentes no desenho da paisagem.
Os conflitos políticos são um sítio onde a dinâmica da morte e do desaparecimento se impõe
com notável força; então, a afirmação da memória, por meio de manifestações artísticas,
surge como uma reconhecida estratégia de preservação diante da finitude da existência.
Para compreender a elaboração desses espaços, assim como a sua formatação final, é
necessário que se compreendam os significados inscritos ali, que não estão dados na sua
figuração, podendo ser acessados apenas na compreensão simbólica dos eventos ocorridos
em determinado sítio, assim como no impacto social dos eventos que ali ocorreram.
Referências
ARIÈS, Philipe. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp, 1977.
BESSE, Jean-Marc. O gosto do mundo: exercícios de paisagem. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014.
JEUDY, Henri Pierre. Espelhos da cidade. Rio de janeiro: Casa da Palavra, 2005.
LAVELLE, Louis. O mal e o sofrimento. São Paulo: É realizações, 2011.
LANDSBERG, Paul Ludwig, Ensaio sobre a experiência da morte e outros ensaios. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.
PIOVEZAN, A. A “magia” do soldado desconhecido: rituais fúnebres militares. In: Comunicação XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis: UFSC, 2015.
______. Cemitérios e mausoléus militares no Brasil: o embate entre o laico e o confessional. In:Anais do XXVII Simpósio Nacional de História- ANPUH. São Paulo: ANPUH, 2011.
TUAN, Yi-fu. Paisagens do medo. São Paulo: Unesp, 1979.
ROCHA, R. S. A arquitetura moderna diante da esfinge ou a nova monumentalidade: uma análise do Monumento Nacional aos Mortos na Segunda Guerra Mundial. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.15, n.2, p. 151-167, 2007.
RODRIGUES, José Carlos. Tabu da morte. Rio de Janeiro: FioCruz, 2011.
RICOEUR, Paul. Vivo até a morte. São Paulo: Melhoramentos
5 O Aterro do Flamengo compõe, com a entrada da baía de Guanabara e suas bordas d'água desenhadas – Passeio Público, Parque do Flamengo, Fortes Históricos de Niterói e Rio de Janeiro, Pão de Açúcar e Praia de Copacabana – um dos sítios contemplados como patrimônio pela Unesco.