Memórias de Tempos Sombrios: A Resistência
Democrática na UERJ. (1968/1978)
CARLOS EDUARDO MARTINS DA SILVA*
I - Os caminhos para a investigação
Em outras palavras, quanto mais Superficial alguém for,
mais provável será que ele ceda ao mal
Hannah Arendt
Tratando-se de uma pesquisa que partiu, inicialmente, dos depoimentos concedidos
a nossa pesquisa pelos professores, acabamos por imergir através da memória individual (e
coletiva) na história da universidade. Considerei que esses depoimentos orais, nos revelaram a
trama na qual esses professores estavam inseridos em seu respectivo contexto. Como nos diz
Sergio Castanho, “a história do tempo presente traz consigo as questões das fontes. Como é
sabido as questões das fontes constituem um dos pilares básicos sobre que se assenta o que
fazer histórico” (2010, p. 67). Por isso precisei recorrer à história oral, pois ela dá voz aos
diferentes sujeitos e auxilia na construção da memória coletiva, afinal: “Cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva (...). (HALBWACHS, 1990, p. 51).
A memória ao trabalhar simultaneamente com passado e presente, possibilita, como
nos indica Roger Chartier, romper com o distanciamento para realização da análise histórica.
(...) o historiador do tempo presente é contemporâneo de seu objeto e portanto
partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as
mesmas referências fundamentais(...) Para o historiador do tempo presente, parece
infinitamente menor a distância entre a compreensão que ele tem de si mesmo e a dos
atores históricos, modestos ou ilustres, cujas maneiras de sentir e de pensar ele
reconstrói (1996, p. 216).
A história oral e a memória são possibilidades de convívio com o inusitado, pois,
como nos diz Paul Thompson (1992), sua riqueza consiste na “multiplicidade de pontos de
vista” que podemos encontrar. É fundamental para o desenvolvimento da pesquisa,
compreender os diversos e diferentes contextos de inserção, a relação de complexidade, de
múltiplas inserções e a interação dos docentes da universidade em questão.
O que a experiência do indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma
modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o ponto de
vista micro-histórico oferece à observação não é uma versão atenuada, ou mutilada,
de realidades macrossociais: é, e este é o segundo ponto, uma versão diferente
(REVEL, 1994, p. 28).
*Doutorando PPFH/UERJ-Bolsista Capes/DS
Ao tentar compreender o contexto histórico que compõe o cenário dos sujeitos
sociais participantes da pesquisa através de suas memórias, nos aproximamos do conceito de
experiência pois ele é útil para resgatar a dimensão humana do processo social e político, pois:
... o que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta: “experiência
humana”. É esse, exatamente, o termo que Althusser e seus seguidores desejavam
expulsar, sob injúrias, do clube do pensamento, com o nome de “empirismo”
(THOMPSON, 1988, p.182).
Nesse sentido, retornarmos, aqui, a rica e complexa relação entre objetividade e
subjetividade, como nos indica, também, de forma explicativa, Gohn (2005):
Devem-se explicar também as ideias, os valores e as ideologias que organizam os
interesses e a forma de os sujeitos e grupos sociais. (...) Há sempre liberdade de
escolha para os sujeitos: a realidade não é uma página já escrita, os sujeitos as
escreve, com suas ações, sob determinadas condições (p. 258).
Hoje, na perspectiva da história do tempo presente, pensar as condições de ação
social em determinadas situações, faz-se necessário, em nossa pesquisa, pensar o controle social
e as relações de dependência, temáticas que encontramos nas fundamentações teóricas em
Norbert Elias. Revel nos indica:
Elias pensa o social em termos de interdependências, quer se trate dos indivíduos ou
dos grupos: a noção de configuração (figuration) serve para identificar o complexo
de ligações de dependências recíprocas que constituem a matriz do jogo social e que
estão em permanente atualização entre aqueles que são os protagonistas (REVEL,
2009, pag. 83).
Assim, a perspectiva metodológica da história oral, possibilitou um novo olhar do
complexo jogo social da universidade no período autoritário e é nessa linha de raciocínio que
um aspecto essencial a nossa pesquisa histórica está presente em,
... uma palavra que pode servir para identificar o que está no centro da questão aqui,
uma palavra que (e isto talvez não seja por acaso) nem sempre encontrou seu
equivalente em francês: é o termo inglês agency, proposto por E.P Thompson, e que
designa ao mesmo tempo as disposições à ação e as possibilidades de agir em uma
dada situação (REVEL, 2009, p. 121).
Agência humana desenvolve-se no tempo e no espaço e em cada espaço social os
agentes humanos agem de forma que as condições podem (ou não) oferecer as possibilidades
de ação, assim, cada espaço contém a sua própria historicidade.
II – Memórias e experiências da ditadura e da resistência democrática na UERJ: indícios
e singularidades.
Esse “novo” caminho de repensar a universidade nos levou a essa operação histórica
diacrônica, complexa, porém mais interessante dentro desse campo “aberto” assim em nossa
primeira entrevista com o professor Ricardo Donato, compreendi que no caso do Hospital
existia um campo político crítico ao regime instalado com o golpe civil-militar, tomando como
parâmetro a passagem do entrevistado de discente à docente, solicitei ao professor que
confirmasse os marcos cronológicos do seu processo na universidade e, assim, fui assinalando
com o entrevistado: “você entra aqui em 1964 como aluno, em 1969 o senhor se forma, passa
por 1968 aquele movimento todo, em outubro de 1968, em 1969 o senhor termina a graduação,
faz residência em 1971” (Entrevista com o prof. Ricardo Donato, em 28/03/2012); e ele
confirma: “ainda em de 1971 eu sou contratado como docente” (Entrevista com o prof. Ricardo
Donato, em 28/03/2012).
Procurei pistas sobre esse processo na tentativa de avançar a investigação, perguntei
sobre a relação dele com alguns professores que tinham um significativo poder no Centro
Biomédico, com: o professor Piquet Carneiro, o professor Jayme Landmann e o professor
Suassuna e como estes professores atuaram no período da ditadura civil-militar, ou seja, se eles
se posicionaram contra a ditadura. O prof. Ricardo Donato respondeu: “em determinado
momento sim, com certeza, eu não considero nenhum deles tenha sido aliado da ditadura”
(Entrevista realizada em 28/03/2012).
Continuei as reflexões e busquei dialogar com informações de outras entrevistas
para avançar nos questionamentos sobre esse processo de ingresso na universidade e dialogando
com o professor Bruno1, quando debatíamos a repressão na universidade, ele afirmou:
Então, essa questão da repressão, o 477, entendeu? O 477 eu não me lembro de ter
sido aplicado no hospital. Mas certamente você vai encontrar pessoas lá do campus
1 J. E. Bruno é formado em medicina pela PUC/MG, e foi simpatizante da organização de esquerda POLOP.
Chega ao Rio de Janeiro em janeiro de 1969 para fazer residência médica.
que podem te guiar sobre isso aí. (...) (Entrevista com prof. Bruno, realizada em
20/03/2012).
Procurando indícios sobre o uso do 477/68 no Hospital, obtivemos a inédita2
informação apresentada por L. Roberto Tenório3, indicando um elemento que nos dá pistas
sobre a diferenciação entre o campus e o hospital, o 477 no centro biomédico,
LT: Expulsou o Andrade, expulsou o Fritz, expulsou o Campos, expulsou o Ivan.
Expulsou gente que depois voltou. O Andrade é uma pessoa importante para você
entrevistar. É professor de Microbiologia lá, professor titular de Microbiologia, o
Andrade. Voltaram durante a ditadura. O Piquet ajudou muito nessa volta.
(Entrevista com Luiz Roberto Tenório, realizada em 01/08/2013)
Na entrevista realizada com o prof. José Eustáchio Bruno, ao tratar de sua atividade
política logo após a chegada Hospital, o professor da medicina chama a atenção para a
existência de uma significativa militância entre os médicos, o que possibilitou a convocação de
uma greve dos residentes4 no HUPE, nos primeiros dias de 1969, eis o relato do prof. Bruno:
(...) Como os R2s recebiam, os R1s estavam querendo receber também. E eu era R1.
Aí eu fui para essa assembleia, sentei lá no fundo no teatro e algumas pessoas falando
e foi nessa época que eu até conheci o Tenório e outros companheiros lá. (...) o
pessoal votou pela greve e eu também votei, tinha o meu direito a opção (...).
(Entrevista com o prof. José Eustáchio Bruno, realizada em 20/03/2012).
Mesmo após participar das atividades do movimento dos residentes, o então
grevista José E. Bruno torna-se médico, assistente do professor Jayme Landmann e, ainda na
ditadura, professor da FCM. Ao saber do acontecimento de greve dos médicos-residentes em
1969 e 1970 no hospital das clínicas após o fechamento político implantado pelo AI-5, indaguei
Tenório sobre esses acontecimentos e ele, para a minha grata surpresa, me indicou mais uma
greve,
A liderança principal dessa greve se chama Paulo Gadelha5. Em 78. Presidente da
Fiocruz hoje. Presidente eleito, eleito! O Gadelha foi lá da escola, liderança do
2 Não encontramos, nos livros, nenhuma referência ao processo dos professores no centro Biomédico. 3 Luiz Roberto Tenório foi cassado pelo AI-5 e retorna ao Hospital em 1975 sob proteção do seu tio paterno, Oscar
Accioly Tenório reitor da UERJ entre 1972-1976. Após a saída de seu tio da reitoria, L. Tenório permaneceu na
universidade. Ao Tomar conhecimento da segunda sessão de tortura (1972) em seu sobrinho, o reitor Oscar
Accioly Tenório demitiu a esposa e a sobrinha do General Sílvio Frota, ambas, funcionárias da Universidade. 4 Ricardo Donato afirmou que foram realizadas duas greves de médicos residentes no HUPE, uma em 1969 e outra
em 1970. 5 Graduado em Medicina pela FCM/Uerj, 1970-1976. Residência Médica no Hospital de Clínica da Uerj, 1977-
1978. Foi presidente da Associação Nacional dos Médicos Residentes.
movimento residente, e fez a primeira greve nacional6 no regime militar ainda em 78!
Em 78! (...) ele teve a petulância e a coragem política! Foi ótimo!(...). (Entrevista com
Doutor Luiz Roberto Tenório, realizada em 01/08/2013)
Percebe-se que havia, naquele contexto na UERJ, diferentes relações/ interações,
que não podiam ser resumidas apenas na relação entre a ação repressora no hospital e no campus
e o poder instituído em nosso país, mesmo nesse período as relações eram complexas e
contraditórias, não deveriam ser entendidas de modo unilateral, durante a entrevista com o prof.
Bruno com base nos indícios que considerei ter encontrado, insisti no papel que o prof. Piquet
Carneiro teve à frente da direção da FCM e do centro Biomédico, como uma pessoa que garantia
certa liberdade de atuação política, parece que ele exercia um papel de “protetor” de alguns
estudantes, médicos e docentes que atuavam neste espaço:
(...) outras pessoas talvez, não só dele, mas de outras também. Você não tinha [como]
falar sobre isso, o nível de repressão do hospital era um pouco mais atrasado com
relação à universidade como um todo (...) Então, a coisa estava muito mais
direcionada para o campus, essa repressão era mais direcionada para o campus (...)
Para o bem foi isso ... um certo esquecimento da área biomédica (Entrevista com o
prof. José Eustáchio Bruno, em 20/03/2012).
“Outras pessoas? O nível de repressão do hospital era um pouco mais atrasado com
relação à universidade” ... belos indícios do prof. Bruno que nos dão conta do distanciamento
entre as diversas unidades na dual universidade. Ao pesquisar as resistências no Hospital
Universitário/Faculdade de Ciências Médicas no Banco de dados o grupo Tortura Nunca Mais,
me deparei com uma interessante informação: o professor catedrático da Universidade tinha
respondido um IPM7 que é assim relatado no Boletim8
(...) O diretor da faculdade, Américo Piquet Carneiro, em que pesem várias
evidências contidas nos autos, de ter cooperado com as investigações sobre seus
colegas e sobre a professora Nina9, acabou sendo indiciado no final do inquérito, por
omissão na repressão aos alunos(...)
6 Primeira greve nacional ocorrida durante a ditadura militar. Essa greve foi anterior a greve dos operários do ABC
paulista liderado por LULA, segundo L.R. Tenório. 7 IPM: Inquérito policial Militar. A primeira pista sobre o IPM do professor Américo Piquet Carneiro encontrei no
site do Instituto de Biologia da UERJ, a segunda informação foi em pesquisa no jornal Correio da manhã e a
terceira fonte foi no Boletim do grupo Tortura Nunca mais (BNM n.400). O IPM foi aberto no dia 11 de julho de
1969 na escola de comando e Estado-Maior da Aeronáutica. 8 Boletim Nunca Mais - número 400/Grupo Tortura Nunca Mais. 9 Professora Nina Pereira Nunes, professora do Instituto de medicina social e filha do médico, ex-deputado estadual
e ex-preso político, Adão Pereira Nunes.
(http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/docreader.aspx?bib=REL_BRASIL&pesq=
americo+piquet+carneiro&pesquisa=Pesquisar. Acesso dia 15/08/2014/13: 42).
Sobre o IPM de Piquet carneiro, o diálogo com L. Tenório nos dá uma pista
interessante sobre esse processo complexo:
LT: Na minha prisão da aeronáutica, os caras (...) Em 69. Queriam que eu dissesse
qual era a participação do Piquet Carneiro nos movimentos de esquerda da
faculdade. E eles falavam: “Não é possível que ele não tenha.” Moisés era assistente
dele, Hésio Cordeiro era assistente dele, Ricardo Donato foi, Emilio Francisco, todos
eles de esquerda. (Entrevista com Luiz Roberto Tenório, realizada em 01/08/2013)
Se o professor Landmann, mantinha-se em uma posição de resistência fechada, o
professor Catedrático Américo Piquet Carneiro mantinha-se em uma postura mais aberta como
podemos observar na sua participação ativa contrária ao sistema. Segundo informações de
Tenório, ele contribuindo financeiramente com a rede de solidariedade as famílias de presos
políticos, em nosso campo de visão, essa atitude marcava durante o auge da ditadura uma
postura de resistência, confiança e solidariedade do cristão e progressista que negou-se a
entregar os estudantes em 1968 e será defendido, pelo seu grande nome na medicina carioca e
pelo papel de representante da FCM, publicamente pelo conselho universitário, conforme indica
o jornal O Correio da Manhã: “UEG solidária ao diretor da faculdade de C. Médicas”:
Em face do Inquérito Policial Militar (IPM), na faculdade de ciências médicas, da
Universidade do Estado da Guanabara, o conselho universitário da UEG, em sua
última sessão, enviou ao professor Américo Piquet Carneiro, diretor da faculdade de
Ciências médicas, a seguinte mensagem – “o conselho universitário da Universidade
do Estado da Guanabara resolveu em sua última reunião apresentar irrestrita
solidariedade ao professor Américo Piquet Carneiro, membro do colegiado e diretor
da Faculdade de Ciências Médicas, em face da conjuntura que injustamente envolve
sua reconhecida devoção ao ensino superior, ao qual se tem dedicado com isenção
ideológica, amor ao apostolado, total probidade, exemplar desprendimento e
admirável mobilização de cultura científica (Correio da Manhã. 09/08/63. Sábado.
pag.09).
A luta pela incorporação do Hospital possibilitou a criação de uma frente de
resistência dos alunos e professores contra a política impositiva (heterônoma) do governo
autoritário de aumento das vagas na universidade (excedentes) que na UERJ colocou em lados
opostos o corpo médico e a política educacional do governo federal e estadual. É interessante
pensar que essa luta em pleno autoritarismo aprofundou a opção no centro biomédico pela sua
autonomia.
Esse trio10 me chamou perguntando qual seria a posição nossa em relação aos
excedentes (...) fomos contra a entrada dos excedentes, porque os excedentes
transformariam uma faculdade, que se a capacidade para ministrar para 80 e 100
alunos, iria para 300 alunos. A Universidade do Brasil naquela época aceitou os
excedentes e caiu a qualidade de ensino porque aceitou os excedentes. E o que era
mais grave nos excedentes, eles foram negociar a entrada deles diretamente com o
Costa e Silva, Presidente da República, levado pelo Suplicy, Ministro da Educação e
Cultura. E ai eles criaram a turma Iolanda Costa e Silva, que era mulher do Costa e
Silva, para agradar o regime militar e poder entrar na faculdade com notas
baixíssimas etc. E era uma quantidade enorme de excedentes. Então essa luta de
resistência contra os excedentes, contra esse clientelismo do governo em cima da
Faculdade de Ciências Médicas, unificou o Movimento Estudantil com o movimento
dos Professores, independente da ideologia dos dois movimentos. Isso foi muito
importante. Uma frente única para resistir (....)(Entrevista com Luiz Roberto Tenório,
realizada em 01/08/2013).
Frente para resistir à quebra da qualidade acadêmica da faculdade, frente pra resistir
à política de intervenção “disfarçada” do governo, frente pela autonomia, durante a entrevista
com o médico Luiz Tenório fui percebendo mais nitidamente a ação pessoal e política que
alguns professores da FCM tiveram frente a alguns acontecimentos e é apresentado pela
memória dele sobre seus mestres:
(...) Quando eu fui cassado pelo AI-5, foi na época que estava fazendo seleção para
residente, o Landmann falou: “Tenório não pode mais continuar como residente. Está
muito visado. Vai acabar sobrando problema para gente.” Quem segurou a peteca
foi o Virgílio Pinto, que era o diretor do (trecho não identificado 1.20.11) dentro do
hospital, assistente do Landmann. Virgilio tentou ali. O Malta Maia, por exemplo,
quando eu fui preso na aeronáutica, ficava incomunicável. (...) Malta Maia quando
soube que eu fui torturado, ele era presidente da Academia Brasileira de Medicina,
ele foi pro Hospital da Aeronáutica, chamou o diretor e falou “eu quero ver meu
assistente porque eu soube que ele tá preso ai.” Ai um brigadeiro que era médico
“Professor, você não pode ver, ele está incomunicável, Lei de Segurança Nacional”,
“Como não? Eu não posso ver?”. Desceu, sentou num banquinho que tem no jardim
do hospital, figura conhecidíssima (...) sentou ali, todo quanto era médico que entrava
ali conhecia o professor Malta Maia, diretor do Miguel Couto, “o que o senhor está
fazendo?” “estou esperando para poder falar com meu assistente”. Ai foi criando um
clima dentro do hospital que o diretor foi ficando, chegou no final da tarde, ele lá,
sem comer, sem nada, ai o brigadeiro voltou com ele, me trouxe, levou ele até o quarto
que eu estava preso. Malta Maia me perguntou o que eu estava precisando, se estava
sendo bem tratado e tal. E a partir dai quebrou a incomunicabilidade, no dia seguinte
o advogado foi me ver, os familiares puderam me visitar e etc. Graças à atitude dele.
Foi esse que te levou para o sítio que o senhor comentou ...
LT: Não, quem me levou para o sítio foi o médico do Lacerda, Antônio Rebello Filho.
Professor da FCM de clínica médica. E o Antônio Rebello era de direita, lacerdista!
Criou o clube do Lacerda depois que o Lacerda morreu, ele e uma outra galera.
10 Américo era diretor, o vice era o Jaime que acumulava a direção do hospital e o Paulo de Carvalho que era o
diretor do Centro Biomédico
Morava ali em frente a UERJ. E nós ficamos amigos, ele foi médico do meu pai. E
ele, um dia eu chegando ao hospital Pedro Ernesto de manhã cedo, ele estava na
porta do hospital, eu deixei o carro. “Entra no meu carro”, eu “Mas por quê?” e ele
“Entra! Você não confia em mim?” ai eu entrei. Assim que entrei no carro: “Você
está na lista para ser jogado do helicóptero!”. A lista que Burnier fez que o Sérgio
macaco denunciou. Sabe dessa história, né? “Você está nesta lista! Então você vai
ficar escondido lá no sitio” Mario Lago passou por lá. (Entrevista com Luiz Roberto
Tenório, realizada em 01/08/2013)
Professores Virgílio Pinto, Malta Maia e Antônio Rebello Filho, homens que não
eram considerados “progressistas”, mas se colocaram, pontualmente contra o sistema, inclusive
no tangente ao processo de violação aos direitos humanos. A posição política desses mestres
pode ser vista como uma atitude isolada em relação a Tenório, mas pode também nos indicar
que na modulação social do centro biomédico, segundo os indícios, esta seria uma unidade
acadêmica com menor grau de vigilância repressora, como indicado acima pelos entrevistados
e/ou locus de uma maior possibilidade de ação política, inclusive dos lacerdistas, presença
significativa nas ciências médicas e críticos aos rumos da ditadura já em 1968. Durante a
entrevista, Tenório me chamou a atenção para atitude individual de outros professores, entre
eles, o então diretor do hospital,
A Nilcéa11 foi casada com o Eduardo Farestein professor de medicina social. Os dois
estavam um pouco visados pela repressão. O Landmann12 chamou os dois e mandou
os dois para os EUA13 para fazer curso lá para livrá-los da prisão. Nilcéia deve isso
ao Landmann.
(Entrevista com Luiz Roberto Tenório, realizada em 01/08/2013)
Contraditória e diferente os caminhos percorridos pela UERJ durante a ditadura
civil-militar e interessante pensar, mais uma vez, que a universidade que tinha a “velha” Escola
Superior de Guerra e ao mesmo tempo tinha tamanha resistência na FCM/HUPE a ponto de ter
força acadêmica e política para criar o respeitado e novíssimo Instituto de Medicina social.
11 Professora da FCM, ex-reitora da UERJ (2000/2004) e ex-Ministra da Secretaria Especial de políticas para as
Mulheres (2004/2006). 12 Segundo o próprio, em entrevista realizada em 1996 ao Jornal MED ON LINE/n.5, foi fundador do PSB (Partido
Socialista Brasileiro) em 1945 e esteve na Rússia com o Historiador Jacob Gorender em 1959. 13 México. Segundo informações de Eduardo Farestein, seu companheiro a época.
Durante a entrevista com o professor Ricardo Santos,1415 ex-aluno do Cap/UERJ e
da UFRJ, tratamos de abordar a sua forma de ingresso na universidade e o processo de
contratação na Universidade,
Em 75, o Guilherme me indica junto com o professor Romildo Bueno para ser
contratado pela Farmacologia da UERJ. (...) Eu entro com carteira, como contratado
da faculdade de Ciências Médicas e passo depois em 76 ou 77, não me lembro
exatamente, para o IB, automaticamente com a fundação do Instituto de Biologia (...)
a disciplina de Farmacologia passa a compor o Instituto de Biologia. (Entrevista
realizada em 02/04/2012).
Retornei à questão da sua prisão política e do seu processo de ingresso na
Universidade e indaguei se tal acontecimento havia interferido no seu relacionamento com o
prof. Roberto Alcântara Gomes16 e assim Ricardo Santos respondeu:
Não. (...) De forma nenhuma. Ele era uma pessoa [que] eu já conhecia do Instituto
de Biofísica da UFRJ, tínhamos uma visão dele de uma pessoa conservadora, com
competência técnica brilhante, membro da Escola Superior de Guerra, o que era
currículo favorável ao poder da época. E, no entanto, ele não colocou nenhuma
objeção, ou seja, eu encontrei na UERJ um sistema que não exigia atestado
ideológico. Até que a UERJ me parecia muito segura (sentido irônico, naturalmente),
porque aqui dentro estava a Escola Superior de Guerra (...). Aqui dentro estava a
Escola Superior de Guerra, então não existia exigência de atestado ideológico, aqui
era muito mais disfarçado, embora efetiva a repressão. (...). (Entrevista realizada em
02/04/2012).
A reflexão do professor nos indica um dos caminhos de pesquisa, pois, por ser a
UERJ a universidade que abrigava a própria encarnação do sistema, não seria necessário
solicitar o atestado ideológico, porém, em 1968, a universidade já tinha colaborado com o
processo de perseguição e prisão de vários dirigentes estudantis e, inclusive, com a cassação
pelo decreto-lei 477 de três professores do campus17,
Pelo menos um deles, o professor Carlos Haroldo Porto Carreiro de Miranda,
considerado um dos melhores na sua área, recorreu argumentando que a UEG era
fundação de direito privado, situando-se, portanto, fora da jurisdição do AI-5. O
Conselho Universitário,o entanto, aprovou o parecer do relator, confirmando o ato.”
(Bessa, José Ribamar. Uerj em questão. Ano II, nº 9. Novembro de 1990, pp.4-5.)
14 Militante do PC do B, preso entre junho e agosto de 1973 no DOI-CODI RJ. 15 Professor do instituto de Biologia e primeiro presidente da Asduerj (1979/1981) 16 Diretor do instituto de Biologia. 17 Professores: Bayard Boiteux, Carlos Haroldo Porto Carreiro de Miranda e Helio Marques.
É, aqui, que encontramos um elemento contraditório e que nos coloca, novamente,
de frente a questão-problema de nossa reflexão: uma universidade que usou o decreto-lei 477 e
o AI-5, mas que não solicitava o atestado ideológico18, e é nesse sentido que uma das possíveis
compreensões para não solicitar o dito atestado estaria na instalação da ESG19, no pós-68, pois
a sua presença:
... força os homens desarmados, nos espaços sociais pacificados, a controlarem sua
própria violência mediante precaução ou reflexão. Em outras palavras, isso impõe às
pessoas um maior ou menor grau de autocontrole (ELIAS, 1993, p. 201).
Podemos “sentir” que os (micro)poderes tiraram proveito desse fato político e
cultural para “passar” elementos que não puderam estar “oficialmente” nesse espaço, essa
perspectiva de raciocínio, dada pela “oportuna” vinda da ESG para a UERJ, é um dos elementos
da linha de investigação para compreender a existência de uma gama de professores
progressistas dentro da universidade. Ou o “filtro” não funcionava ou não o queriam colocar
em funcionamento na, singular, Uerj.
Um conjunto de fatores foram fundamentais para consolidar um espaço na
universidade, apesar de toda a perseguição política e ideológica dentro e fora do espaço
uerjiano, com certa garantia de movimentação intelectual e política aos militantes do
movimento estudantil que viraram (ou não) professores e/ou médicos e por enquanto podemos
afirmar categoricamente que o encontro positivo entre a história da escola fundadora com as
lutas unificadas (incorporação do Hospital/contra os excedentes) dos professores e estudantes,
as posições críticas dos progressistas, liberais e, mesmo, nessa singular configuração social, dos
lacerdistas pós-68, com a mentalidade e cultura científica nesse espaço formador, possibilitou
durante o processo de redemocratização que esse espaço fosse o impulsionador de uma nova
mentalidade universitária, de uma nova síntese.
(In)Conclusão provisória
Nesse artigo, percebemos que ao longo das entrevistas uma grande riqueza
empírica, assim, por limitação e opção, apresento algumas passagens in totem, outras, carentes
18 A UERJ também não solicitava o comprovante de participação eleitoral. 19 Não encontramos em nenhuma obra sobre a História universidade referências sobre a vinda da ESG para a
universidade.
ainda de aprofundamento analítico, mas sem perder o foco na intenção de, a partir da relação
entre oralidade e memória apresentar indícios em que as ricas experiências apontam ações,
opções e emoções e indicam o caminho de investigação na História do tempo presente que
possibilite aos historiadores novas investigações, questionamentos e reflexões para identificar
singularidades e novas elaborações sobre o passado com o qual compartilhamos uma
proximidade temporal. Nesse sentido, em tempos de “comissão da verdade” e “abertura dos
arquivos” desses tempos sombrios e tristes, a pesquisa histórica na vertente do tempo presente
sobre a universidade que estamos iniciando ganham novos elementos e novas reflexões.
Interessante foi perceber que na FCM/HUPE ocorreu uma rede crítica ao sistema vigente. Essa
é uma pesquisa em construção, portanto um caminho longo, árduo e profundo ainda teremos
que continuar a trilhar incluindo o trabalho de constituição de fontes e de avançar em nossa
capacidade analítica.
Referências
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