MEMÓRIA E LUGAR: DAS REPRESENTAÇÕES À CONSTRUÇÃO DAS
IDENTIDADES CONTEMPORÂNEAS NO AGRESTE PERNAMBUCANO
Alexandre Gomes Teixeira Vieira
Estudante do Mestrado profissional em Culturas Africanas da Diáspora e dos povos
indígenas – PROCADI – UPE, Campus Garanhuns.
E-mail: [email protected]
Introdução
As dinâmicas identitárias no tempo presente são percebidas de forma ampla e
complexa (HALL, 2006), devendo estas terem uma maior atenção pelas ciências sociais.
Uma interface possível e pertinente para resolver essa questão surge da inter-relação
entre os campos da Antropologia e da História Ambiental, como foi proposto por Vieira
et al. (2017). Tal perspectiva pretende agregar as minucias e detalhes que compõe as
representações sociais de uma comunidade humana, sua pertença e o conjunto de signos
que implicam em sua dinâmica identitária.
Para tanto, este trabalho se propõe a analisar os processos identitários e as
memórias provenientes de um “lugar”, categoria que aqui pegamos emprestada da
geografia na perspectiva de Twan (1974), ao colocar o lugar como ponto de partida à
produção cultural. O lugar em questão é o vale do riacho São José, zona rural de Caetés-
PE.
A área de estudo possui rico patrimônio arqueológico – arte rupestre – ao mesmo
tempo que está impregnada de memórias próprias daquela que chamamos de História do
Nordeste Brasileiro. É aparente a ligação entre as memórias e os lugares, onde estes
ganham diferentes significados na construção do imaginário local, sendo como provas
para materialidade da identidade e das histórias construídas pelas populações
contemporâneas nessa localidade.
O objetivo geral deste estudo, é propor a compreensão do imaginário local
enquanto parte do processo identitário. Tendo como objetivos específicos: apresentar as
narrativas locais e a partir delas sistematizar a ampla gama de signos que integram,
grosso modo, a cultura local. Pensar a (res)significação do patrimônio material indígena
existente na área, também como fio condutor do processo identitário e da construção
simbólica das comunidades locais contemporâneas.
Área de estudo
O vale do riacho São José (imagem 1), é uma importante área natural, localizada
na porção oeste do município de Caetés, na transição Agreste/Sertão do estado de
Pernambuco. Possui uma vasta área de vegetação de caatinga bem preservada e rico
acervo arqueológico pré-colonial.
Imagem 1 – vista de uma das paisagens do vale do riacho São José.
Fonte: VIEIRA, A.G.T.
Aspectos Teóricos e Metodologia
Para realização desta pesquisa, foram realizadas incursões à campo, para registro
dos lugares de memórias, sendo estes: sítios arqueológicos pré e pós-coloniais, antigas
estradas, edificações e paisagens naturais entre outros lugares onde há interação e
apropriação humana. Além do registro dos lugares, foram realizadas entrevistas com a
população local, foram entrevistadas 20 pessoas no período de setembro de 2014 a abril
de 2018. Na metodologia da História Oral, foi utilizado o método de entrevista nas
formas: semiestruturada; aberta; focalizada e projetiva, conforme Minayo (2016, p.59).
Outro importante aspecto dessa pesquisa, é a da História Oral, conforme Souza
(2016) e Pesavento (2008), mesclando história oral e etnografia (observação
participante), como métodos articuladores e unificados voltados à Folckomunicação
como propôs Melo (2008), para entrevistas com comunidades rurais e mapeamento dos
signos de determinada comunidade. Ambas as perspectivas acima citadas, utilizam
fontes orais para obtenção do registro histórico.
Duas categorias de grande importância utilizadas nesse estudo são: “Lugar” e
“Paisagem”, seja enquanto espaço lugar (TWAN, 1983; 2012), proveniente de sentidos
e significados para aqueles que o ocupam hoje, seja enquanto lugar de memórias (LE
GOFF e NORA,1988), daqueles que ali estiveram em outros tempos da história, ou
ainda, enquanto local base para a produção cultural como defende a corrente da história
ambiental (VIEIRA, 2012; VIEIRA, 2015; VIEIRA, et al., 2017).
Resultados e discussão
Conforme a metodologia empregada, cinco tipos de narrativas com temas bem
delimitados surgiram e se sobressaíram ao longo da pesquisa. É preciso pontuar, que os
temas aqui mapeados, aparecem como marcos fundamentais, para compreensão dos
signos, das representações e da dinâmica identitária no lugar estudado.
As narrativas foram: memórias sobre os “cabocos brabos”, histórias dos “reinos
encantados”, causos de “matadores de onça”, aparecimentos de “guarás” e relatos de
“malassombros”. Um elemento a parte, em relação às narrativas, mas fundamental na
convergência das ideias, foi a interpretação dada pelos moradores locais, à presença dos
sítios de arte rupestre na região. Todos estes elementos somados, dão uma ideia, da
diversidade cultural da área estudada, ao passo que caracteriza um verdadeiro
“Caldeirão Cultural” (CARVALHO, 1998).
Para melhor compreender essa ideia de Caldeirão Cultural, Silva (2015, p.96)
coloca o seguinte:
[...] as práticas culturais híbridas também podem ser identificadas na música,
na religião, na linguagem, no esporte, nas festividades a partir das relações
entre as instituições e as pessoas. Outros exemplos dados pelo autor são o
carnaval brasileiro, as igrejas e formações religiosas que se apropriam de
diversas formas de culto, ícones e filosofias. Já a variedade de objetos que diz
respeito aos povos híbridos está mais ligada à figura do híbrido como um
mediador cultural e as formas de representação social dos que “nascem
híbridos”, isto é, aqueles que já nascem com uma consciência dúplice, os
frutos de dois ou mais povos e que, por isso, possuem uma relação
extremamente peculiar com sua origem e identidade. A variedade de
terminologias usadas para a descrição dos processos de interação e
consequências da hibridização cultural são, [...] empréstimo, hibridismo,
caldeirão cultural, ensopadinho cultural, tradução cultural e crioulização.
Sobre as memórias acerca dos chamados “Cabocos brabos”, conforme as
narrativas dos pesquisandos, estes eram “negos de cabelo bom”. Como colocado na
bibliografia por Silva (2014), “caboclo” é um termo para designar indígenas, isso em
uma região onde oficialmente não existam índios ou mesmo o dizer índio, foi um termo
apropriado também, na negação de determinadas etnias por parte de posseiros
interessados nas terras desses povos.
É preciso, no entanto, ampliar as possibilidades que traz o termo “caboco”, tendo
em vista que tal palavras, apresenta grande potencial, quando bem explorado no estudo
da questão indígena sobretudo no interior de Pernambuco. É quase que indiscutível,
afirmar a presença indígena na área do vale do São José, não somente pela presença dos
sítios de arte rupestre, que demonstram intenso povoamento pré-colonial, mas
principalmente pelas exaustivas narrativas, das populações locais ao referenciar os
cabocos e cabocas, que viveram nessa área.
Entre os mais emblemáticos relatos, está o de dona Nazaré, sobre a família que
vivia nas imediações dos sítios Tapera e Lagoa Rasa, segundo ela, “tinha uma família,
homem, mulher e umas três crianças, mais ou menos, que morava debaixo de um
partido de Jiquiri, eu via eles, quando ia passar, pra lavar roupa, e todo dia eles tavam lá.
Botavam a roça e viviam, lá, debaixo do pé de Jiquiri”.
O relato de seu esposo o sr. Pazinho ao afirmar que sua avó ou bizavó, teria sido
pega “acuada por cachorro em cima de uma jurema, a velha era caboca, por isso que a
minha raça tem essa feição morena”. Também as narrativas do Zé preto do Pé da Serra,
que fala: “minha vó era caboca e foi pega acuada aqui perto”. Mas a questão dos
cabocos torna-se ainda mais interessante quando vemos a fala de Dona Luzinete, ao ser
indagada sobre a existência dos cabocos brabos na região, como podemos ver em um
fragmento de sua entrevista a seguir:
Entrevistador: A senhora...Desse pessoal que chama “caboco brabo”, que
chamava “caboclo” a senhora tem alguma coisa pra contar sobre isso, nessa
região?
Colaboradora: Não... A minha vó... A minha vó que era mãe de pai, ela
disse que a mãe dela, a mãe dela era... num dizia que era pegado de cachorro
nerá!? foi pegado de cachorro a minha vó que era mãe de pai. Era... ela era
bem morena mas meu avô num era não. Mas disse a minha vó, oie era aquele
pessoal que foi... que dizia que era... – a mente da gente vai esquecendo – ela
disse que a vó dela foi pegada, e dizia: de dente de cachorro! Naquele tempo,
que graças a Deus tivero a sorte de ser...diz que quando eles souberam que
tavam liberto nera... uma nega. Pai cansava de contar. A família inteira ainda
contava... Uma escrava! Escrava! As escrava... aí dissero “foi libertado!” no
dia 13 de maio de nem sei qual foi o ano, quando Nossa Senhora aparecida
apareceu, tá com uns trezentos anos. Aí foi libertados. Ai disse que uma
negra a coitada: -“Não diga isso não!”. – “Então vocês estão libertos!” E eles
tudo amarrado, trabalhando. E ela disse hiiirrr (Som de respiração forçada) e
fez assim, e teve um infarte e morreu de alegria. De alegria né!? Foi a minha
bisavó ou tataravó o pessoal morria tudo veio nesse tempo! A minha vó
morreu aqui com 95 anos!
Imagem 2 – entrevista com a senhora Luzinete de Julio Basilio em sua residência no
sítio Malhada do Cosme, adjacências do vale do São José, Paranatama – PE
Fonte: TEIXEIRA, G.S.S.
Luzinete de Júlio Basílio, representa uma memória de sua família que
desenvolvera importante papel de dominação na região. Trata-se de eximia fonte de
colaboração para a compreensão da memória coletiva histórica popular da região
observação para diferenciação oferecida por Halbwachs (2006) a memória coletiva
(histórica popular), e a memória histórica oficial. Em sua avançada idade de 83 anos,
aparenta uma boa memória factual congelada, “Memória congelada” e “memória livre”
são termos utilizados por Prins (1992), dos principais fatos ocorridos, presenciados ou
por via da tradição oral, com algumas pequenas nuances de memória livre.
Fora percebido, que sua identidade acabara sendo forjada como “a solteira
devota religiosa”, que apesar da perceptível beleza de juventude, envelhecerá com
alguns relances de culpabilidade internas por não ter chegado a se casar. Logo a questão
da beleza fora uma forma subjetiva de mostrar que a estética não seria o motivo para
não arrumar um marido, mas outras questões de ordem sociocultural.
Essas narrativas reforçam a ideia de que a área de estudo é um caldeirão cultural,
mas que as representações acerca da existência dos cabocos, ora representados como
inegavelmente indígenas, ora mesclados com a ideia dos negros alforriados ou fugidos,
é parte da memória coletiva da região. Através das narrativas é possível constatar a
perseguição e a violação exercida contra as mulheres “cabocas”, pegas a força e levadas
para constituir família com os moradores brancos e patriarcas das famílias tradicionais
dessa região.
Para concluir o pensamento, ainda que breve sobre a questão dos cabocos, Silva
(2016), menciona em seu texto sobre história ambiental e indígena de Pernambuco, que
os pés de serra e as áreas de brejo dos topos de serras e vales eram habitados pelos
povos originários. O vale do São José, em seus mais de 12.500 hectares, apresenta todas
as características ambientais e de ocupação histórica favoráveis para percebermos a
presença indígena ali, mas apagada dessa região pela pressão e interesses dos não
índios.
No entanto, os vários elementos culturais presentes, os conhecimentos, os
dialetos e as memórias ainda que de alguma forma negando e mesclando as narrativas
acerca dos cabocos a outras histórias, tendem a revelar muito mais que somente apagar
a memória sobre os povos originários nessa região. Nas festividades de outrora,
narradas por sr. Paizinho, sr. Luiz de Zumba e João de Zumba, os vários elementos
étnicos afloram em suas narrativas, a exemplo dos sambas de coco das festas dos Fié, e
das histórias de reinos encantados, quase sempre precedidas por bebedeiras e farras.
Sobre as narrativas ligadas aos ditos “Reinos Encantados” e “Tesouros”. Estes
surgem do imaginário local como uma justificativa para os sítios de arte rupestre, que
para a população não possuíam uma explicação de origem, onde seriam locais onde
foram escondidos tesouros por trás das inscrições algumas vezes degradas na tentativa
de se chagar a tais riquezas. E ainda de se abrir os “portais” para chegar reinos
encantados de fartura e beleza.
Tais narrativas construídas quase que em oposição as difíceis condições de vida
sob o clima semiárido e mesmo como resquício de signos culturais externos ao conjunto
simbólico cristão. Sobre tais signos externos ao cristianismo é possível perceber relação
com signos de cultura indígena e afro-brasileira, com fortes referências à jurema e
outros cultos.
Sabemos que de forma tradicional e historicamente constituída, na área de
estudo, o uso de várias plantas nativas como o chá da Jurema-Branca (Chloroleucon
dumosum), eram usados com fins alucinógenos. Também se sabe, que as várias receitas
de temperadas e cachaças artesanais continham tais plantas e eram consumidas por
caçadores e pessoas em geral, em reuniões em lugares como os sítios de arte rupestre e
outros locais isolados. Essas reuniões ao que se sabe, eram bastante frequentadas tanto
por homens quanto por mulheres.
As pessoas que frequentavam esses lugares eram grandes conhecedores das
funções medicinais das plantas nativas e de seus preparos, usos e fins, dentre os quais os
principais usos relacionados ao consumo no contexto em questão, eram:
anticoncepcionais, abortivos, afrodisíacos e alucinógenos. Muitos dos moradores da
região afirmam essas informações em suas narrativas, apesar de terem certa resistência
ao se identificar no ato das entrevistas.
Sobre os causos dos matadores de Onças, estes estão quase sempre relacionadas
aos patriarcas das famílias tradicionais da região e a aparecimentos do temido animal,
sempre referenciados “a mais que 30 anos”. A ideia de afirmação da força dos chefes de
família “matadores de onça” é ainda hoje usada como gíria pela população local, em
alusão a alguém muito corajoso. No entanto, essas histórias parecem ter sido
apropriadas, de seus verdadeiros autores, que eram em geral pessoas mais pobres que
aventuravam-se nas noites dentro da caatinga para caçar e eventualmente encontravam-
se com as temidas onças.
Esse fato foi constatado na fala de Zé Preto, ao desmistificar uma das mais
clássicas histórias de onça da região. De fato, todas essas histórias se repetem em
muitos detalhes e se complementam, mas também se contradizem, variando muito de
quem as narra. O fato é que independente de sua veracidade, é um estigma simbólico,
presente até os dias de hoje.
Por fim as histórias de “Guarás” e “Malasombros”. Sobre essas duas últimas
formas de narrativas, vale salientar que podem vir a ser releituras de lendas do velho
mundo, onde toda carga simbólico-religiosa emerge. Da mesma forma que mesclam
elementos do velho mundo a mitos autóctones próprios das comunidades originárias e
mesmo construídos a partir do contexto cultural único do vale do São José, sem
necessariamente derivar de mitos e narrativas anteriores.
Imagem 3 - pegada do guará (Procyon cancrivorus) geralmente associada a
transformação de homem em animal devido a semelhança da pegada com uma mão
humana
Fonte: VIEIRA, A.G.T.
Vários são os locais mais relatados quanto aos causos de malassombros, mas um dos
mais emblemáticos é a “Casa Amarela”, localizada no sítio Cacimba Cercada, lado sul do
vale do são José. Conforme contam moradores próximos da casa amarela, após a morte de
seus proprietários essa casa passou a ser mal-assombrada, o que afugentou potenciais
moradores para o local, estando fortemente presente no imaginário da população local como
já foi descrito por Vieira et al. (2017).
Dentre os principais relatos, estão os de barulhos no interior da casa, e o fato de uma
voz de uma mulher oferecendo velas ser ouvida nas proximidades do lugar nos dias de sexta
feira. Atualmente a casa está em ruinas, restando apenas os alicerces e o temor ainda
presente nas narrativas da população.
Em geral, todas as casas “velhas”, guildas de avelós (Euphorbia tirucalli), arvores,
como o imbuzeiro (Spondias tuberosa), o pé-de-caixão (Ruprechtia laxiflora) e o pau-
ferro (Libidibia leyostachia), estão associadas às histórias de assombração. Uma outra casa
bastante referenciada, está localizada no fundo do vale do São José na localidade do
Rebeiro. A “Casa da Cascavel”, como é popularmente conhecida, é associada a diversos
relatos de malassombros, geralmente contados por caçadores que usam o lugar como abrigo
durante as noites em que descem para caçar nos fundos do vale.
Há informações de que um dos primeiros moradores dessa casa coexistia com uma
cascavel debaixo do fogão de lenha, o que veio a sugerir o nome atribuído a casa. Outro
lugar análogo é a “Casa do Rebeiro” (imagem 4) e o Barreiro da Olaria, ou como é
frequentemente chamado “Barreiro do trepa”. Esse lugar compunha um complexo
habitacional do começo do século XX, estando cerca de 15m do curso do riacho São José e
aproximadamente 200m da Casa da cascavel. Além das casas, havia um curral de “faxina”
técnica que utiliza varas de alecrim (Lippia sp.) e carcará (Senegalia polyphylla) na
construção da cerca para conter caprinos e ovinos.
Também, estava localizada próximo a um barreiro usado como olaria, na produção
de tijolos e telhas. Esse complexo, está circundado por: dois sítios arqueológicos; um lugar
chamado “poço das piabas”; e o encontro dos rios “Firme”, “70” e “São José”, e nas
proximidades do “Chorão” lugar com presença de várias arvores de mesmo nome.
Caracterizando uma típica habitação dessa área dos séculos XIX e início do XX, conforme
sabe-se através das narrativas.
Imagem 4 – Complexo habitacional da casa do Rebeiro visto da parte alta do vale do
São José
Fonte: MORAIS, W.P.
Esse local ainda é uma referência, pois a casa está próxima a uma trilha que corta o
Vale no sentido norte-sul. O Barreiro da Olaria é utilizado para reabastecer o suprimento de
água de quem passa pela trilha em meio a vegetação de caatinga. A casa e o barreiro são
amplamente usados como local de lazer, onde pessoas vão acampar frequentemente,
também como já mencionado, é usada como abrigo por caçadores que costumam
“faxiar” (caçar a noite).
É preciso pontuar, que assim como no passado as populações pré-coloniais
utilizaram esses espaços, as populações “contemporâneas” que chegaram a essa região
povoaram primeiro o fundo do Vale e não os planaltos. Tanto, que conforme
depoimentos de João Silvino e Chico Broca: “o Agreste era terra de cabocos e de
pobres, as maiores moradias, os ranchos e fazendas, estavam mais para o sertão, nos pés
das serras e embrejados”.
Essa leitura do espaço nos leva a perceber que as casas do fundo do Vale estão
construídas próximo ao curso dos rios, numa distância similar ou igual à localização dos
sítios de arte rupestre. Nessa mesma localização, conforme as narrativas de dona Nazaré
e sr. Paizinho: “existia uma família de cabocos que vivia numa ‘lóca’, entre o Chorão e
o Poço das Piabas”, tratando aqui do caso especifico dos cabocos dessa localidade.
Assim como as comunidades autóctones dessa região, as populações
contemporâneas que chegaram no vale do São José a apenas algumas décadas,
utilizaram os mesmos espaços e recursos que seus antecessores. Mesmo sem que
houvesse um contato entre ambas as populações. Deram significado e uso para os
recursos ali existentes constituíram seu habitus e uma pertença, e todas as possíveis
representações sociais provenientes dessa experiência.
O meio e os recursos nele presente foram determinantes para sua ocupação e
significação, como a disposição de abrigos naturais, fontes de água, caça, pesca e coleta
de frutos e sementes. Bem como, os recursos para edificação de casas de taipa e
alvenaria, cercados e a produção agrícola, assim como o conhecimento dos ciclos
fenológicos e disposição de chuvas.
Para concluir a reflexão, ao observar a Casa do Fundo do vale, percebemos que
ela está voltada para oeste, direção oposta à das chuvas de inverno e dos ventos diários,
permitindo exemplificar aqui, a ideia do lugar como ponto de partida para a produção
cultural. Essa preocupação e compreensão do meio pelos povos que ali estiveram,
parece remontar ao período pré-colonial, sobretudo quando observamos as inscrições do
sítio “Talhado da Letra” (imagem 5), localizado nas proximidades da área citada.
Imagem 5 – representação do riacho São José em uma inscrição rupestre ao lado a
paisagem representada na inscrição
Fonte: VIEIRA, A.G.T.
Segundo os moradores mais antigos da região, os riachos mantinham água em
seu curso por um período de 8 a 10 meses isso para a transição dos séculos XIX e XX, o
que resolvia o abastecimento de água das populações de seu entorno. Logo, as
populações que viveram na região mantiveram vivas essas memórias em seus discursos
até hoje, bem como materializado nas edificações locais mesmo as feitas em períodos
muito afastados de tempo.
Apesar da riqueza do patrimônio arqueológico indígena pré-colonial existente na
área de estudo, não iremos nos deter aqui ao seu potencial cientifico do ponto de vista
arqueológico. O ponto de discussão nesta ocasião são os significados atribuídos a estes
locais enquanto, parte do conjunto de signos e representações culturais da população do
vale do São José.
Outro importante elemento, presente nas narrativas das populações locais,
estavam relacionadas aos sítios de arte rupestre da região estudada. Em relação aos
sítios arqueológicos entre os quais podemos citar os sítios: “Talhado da Letra”, “Pedra
da Letra”, “Pedra do Muinho”, “Pedra do Urubu”, “Furna do Rebeiro” e “Pedra
Vermelha”. Segundo depoimentos de moradores locais, “...os mais velhos acreditavam
que lá existia uma chave, e quem descobrisse a chave encontraria muitas riquezas e um
“reino encantado”.
Referencias as narrativas e ao folclore dos reinos encantados em relação a sítios
de arte rupestre no semiárido nordestino já são referenciadas desde o trabalho de Costa
(1980), sobre arqueologia brasileira, apesar deste não ser o interesse do pesquisador,
ainda assim ele cita:
Perto de Piracuruca, no Piauí, num ermo, afloram, por entre a rasteira
vegetação do carrascal, inúmeros rochedos de bizarras formas esculturadas
pelas erosões milenáres. Com certa dose de imaginação, o sertanejo nelas vê
ruas alinhadas, arcos de triunfo, catedrais, estátuas e outras coisas urbanas.
[...] Contam que ali jazem sete belíssimas cidades encantadas por artes
mágicas em tempo remotíssimo. O mistério daquelas rochas curiosas naquela
região deserta e semi-árida, as inscrições rupestres betadas de tinta vermelha,
que semeiam as lajes, as formas arquiteturais que se perfilam no horizonte,
quando a gente se aproxima do lugar, tudo isso contribuía para a formação da
lenda (COSTA, 1980)
O relato vindo do Piauí vem de encontro aos relatos existentes na área de estudo.
Atribuições divinas e mágicas sobre as inscrições rupestres são comuns na região do
vale do São José, assim como as interpretações a paisagens naturais existentes na
região. Outra relação estabelecida entre os sítios e a população é a de caráter religioso,
no que diz respeito ao catolicismo popular, a exemplo disso, um morador relatou: “...eu
acreditava que aquilo tinha sido deixado por Cristo quando esteve aqui na terra”.
Como o principal referencial religiosos para as comunidades locais o
cristianismo, ainda que impregnado de elementos “rurais” de práticas ora referenciadas
em cultos indígenas, ora em cultos afro-brasileiros, isso para não mencionar elementos
judaizantes e outros signos religiosos externos ao cristianismo, são sem dúvida o ponto
de partida para interpretar os sítios de arte rupestre aos olhos das populações locais.
Os moradores atribuem um sentido religiosos a quase todos os fenômenos que
não conseguem explicar, desde a disposição climática, determinados comportamentos
animais, até intervenções humanas de tempos passados. Autores como Aguiar (1996),
pontua que não podemos desvincular as inscrições rupestres do fator religiosos e de sua
relação com o lugar onde está.
Considerações finais
É evidente que as memórias resgatadas neste estudo foram negligenciadas pela
historiografia vigente, mas são de fundamental importância para compreensão da
história e dos sistemas sociais da área estudada. Tais memórias não são mera alegoria
ou folclore, elas ditam as normas, a tradição e justificam a identidade das populações do
vale do São José. Bem como, ilustram a relação de intimidade e pertencimento entre as
pessoas e o lugar onde vivem. Logo, é uma necessidade da historiografia
contemporânea repensar as fontes e problematizar a perspectiva de “memória, história e
lugar”, como importante polo de discussão e de possibilidade para reescrita da história.
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