São 10 da manhã e as máquinas de fax da emissora ABC News recebem um
documento. “Meu nome é Bryce Williams”, diz a mensagem. “Eu atirei em duas
pessoas hoje mais cedo”. A carta continua em outras 22 páginas, detalhando o
que motivou o repórter Vester Lee Flanagan II, conhecido pelo pseudônimo que
assina a mensagem, a matar dois ex-colegas de trabalho durante o expediente
ontem, na Virginia.
Foi um crime previamente arquitetado: a arma já estava com ele desde o dia 19
de junho e as balas levavam as iniciais das vítimas do massacre da igreja de
Charleston, quando um supremacista branco matou 9 negros que participavam
de atividades no templo. Segundo a carta enviada à emissora, a intenção de
Williams era vingar o ataque, matando colegas de trabalho que faziam
comentários racistas, e se suicidando depois.
“E quanto a Dylann Roof? [autor do atentado em Charleston] Você quer uma guerra racial, não é? Pois então terá”,escreveu. “Sim, vai parecer que estou com raiva. E estou. Tenho todo o direito de estar. Mas quando eu deixar este planeta, o único sentimento que quero levar é paz.”
O ataque levou personalidades públicas a se pronunciarem a favor do
desarmamento, como forma de “evitar novos ataques”. Da Casa Branca, o
porta-voz do governo, Josh Earnest, disse que existem “muitas armas nas
mãos de pessoas que não deveriam ter armas”. E continuou:
“[O tiroteio de hoje] é mais um exemplo de uma violência armada que está se tornando
muito comum nos Estados Unidos”,ressaltou. “E existem algumas coisas de bom senso que apenas o Congresso poderia fazer, que nós sabemos que teriam um impacto tangível em reduzir a violência armada”.
No Twitter, Hillary Clinton, que é pré-candidata à presidência pelo partido
Democrata, afirmou que a sociedade “não pode esperar muito antes de agir
para parar a violência armada”.
As falas de Earnest e Clinton refletem um senso comum fartamente repetido
pela imprensa: a ideia de que proibir armas levaria a uma redução desses
crimes. E para justificar isso, sempre são levantadas algumas evidências –
como o fato de os Estados Unidos terem uma taxa de ataques em massa muito
acima da média dos países desenvolvidos ou as taxas de porte de arma
elevadas em grande parte dos estados.
Isso você provavelmente já leu em algum lugar.
O lobby da imprensa americana – e da brasileira, por consequência – pró-
desarmamento é gritante e o gráfico abaixo ilustra isso muito bem.
Ele é resultado de uma análise de 216 notícias sobre armas dos maiores
programas de TV e redes de notícia americanos que foram ao ar entre
dezembro de 2012 e janeiro de 2013. Em vermelho, estão as notícias com viés
anti-armamento e em azul, as pró-armamento, que foram catalogadas pelos
pesquisadores.
Pelas manchetes, seria fácil concluir que os Estados Unidos é o país que mais
sofre com esses ataques no mundo. Só tem um problema: este dado é
equivocado. O discurso já foi repetido pelo próprio presidente Obama, que
afirmou numa coletiva após os ataques em Charleston:
“Nós como país precisamos reconhecer o fato de que esse tipo de violência em massa não acontece em outros países desenvolvidos. Isso não acontece em outros países com essa frequência”, disse.
De fato, os Estados Unidos são o maior alvo de atiradores em massa no
mundo. O que nunca é levado em conta é o tamanho da população americana:
são 319 milhões de pessoas num país continental. É uma população próxima
da União Europeia, composta por 19 países.
E isso torna as coisas totalmente desproporcionais.
Não é por acaso, por exemplo, que esses ataques ocorrem com maior
frequência justamente nos estados mais populosos. Os mapas abaixo mostram
a distribuição de ataques em massa e a população de cada estado americano.
A relação é clara.
Tiroteios em massa desde 2012. Fonte: Vox.com
População americana por estado. Fonte: Learn NC, via Wikipedia.
Além disso, ao contrário do que boa parte da mídia tenta passar, o número de
armas de fogo por habitante não parece estar relacionado com isso. Os
estados costeiros, por exemplo, possuem uma taxa de armas de fogo bem
baixa e leis bem restritas com o porte e a posse desses artefatos. Nada disso
impediu que 486 inocentes perdessem a vida entre 2000 e 2013 em tiroteios
massivos.
Como uma imagem vale mais que mil palavras, o gráfico abaixo acaba com as
dúvidas:
É fácil perceber como esses massacres se distribuem pelo país. Mas, como os
Estados Unidos então se comparam com o resto do mundo? Como Obama
afirmou, será que isso também não acontece além do Atlântico?
John R. Lott, economista, pesquisador em segurança pública e autor do
livro Mais Armas, Menos Crimes, se questionou sobre isso e
catalogou alguns dados reveladores.
Claro, o número de ataques ocorridos nos Estados Unidos é imenso: foram
38 só entre 2009 e 2013, uma distância enorme pro segundo colocado, a
Alemanha, que teve somente 3 ataques no período.
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Mas esses números, isolados, não provam nada. É preciso colocá-los em taxas
por milhão de habitantes. Foi o que o Lott fez e os Estados Unidos caíram para
a 9ª posição, atrás de países como Noruega, Finlândia e República Tcheca e
diversos outros com pouca liberdade de porte de armas.
O número de vítimas dos atiradores também não é nenhum número tão
alarmante nos Estados Unidos, como vendem os jornais. Lott também rankeou
o número de vítimas. Resultado: 8º lugar para os americanos.
O único ponto fora da curva é a Rússia. Foram 0,006 mortes por cada milhão, o
último país da lista.
Deveríamos copiar o modelo de segurança Russo? Bem, a não ser que você
veja alguma vantagem em morrer num bombardeio em vez de um tiroteio, não:
entre 2009 e 2014, a Rússia foi alvo de 8 homens-bomba, que mataram 188
pessoas – 1,31 mortes por milhão de habitantes.
Ironicamente, o controle de armas tem um histórico racista. Nos Estados
Unidos, foi usada por diversos estados como forma de evitar que os escravos
revidassem os abusos de seus senhores. O medo era tão grande que até cães
chegaram a ser considerados uma “arma” e sua posse por negros, proibida.
Com o crescimento do governo e a posterior libertação dos escravos, o
desarmamento se estendeu para toda a sociedade, de diferentes formas.
O crime de Bryce Williams, portanto, não é só uma tragédia para a família das
vítimas, para o jornalismo ou para a história. É, sobretudo, uma tragédia para a
sociedade americana, que vê o caso ser usado como argumento por um
governo ainda maior, mais focado nas consequências – nunca na causa – e,
consequentemente, mais racista: o dia de ontem poderia ter sido outro, se os
fiéis de Charleston tivessem tido a chance de reagir.