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    Merleau-Ponty e as Cincias Sociais: corpo, sentido e existncia.

    Miriam C. M. Rabelo1

    Um dos aspectos caractersticos da filosofia de Merleau-Ponty sua curiosidade para as

    reflexes e achados de outros campos disciplinares, sua disposio para pensar

    filosoficamente estes achados redescrev-los sob o ponto de vista da filosofia (da

    fenomenologia) e para atravs deste pensamento abrir trilhas pelas quais a reflexo

    histrica, sociolgica, antropolgica etc. pudessem se aventurar. Aqui pretendo iluminar

    algumas dessas trilhas e refletir sobre o trabalho que, no mbito das cincias sociais,

    pode ser feito a partir delas.

    Se nos pedirem para identificar a contribuio de Merleau-Ponty s cincias

    sociais, imediatamente nos ocorrero questes priorizadas pelo filsofo, que ao serem

    incorporadas pelos cientistas sociais, no demoraram de render frutos importantes para

    suas disciplinas. Entre estas est sem dvida a temtica do corpo ou corporeidade a

    qual me voltarei em breve. Mas alm de oferecer um conjunto de tpicos, ou melhor, de

    novas categorias para problematizao e anlise do social, Merleau-Ponty brinda-nos

    tambm com um certo estilo de reflexo uma maneira de colocar os problemas, de

    seguir as pistas ou rastros deixados pelas aes dos outros que nos propomos a

    compreender, de descrever interpretativamente estas aes. No menos importante que

    os conceitos, categorias e concluses analticas de fato, talvez mais importante,

    porque efetivamente os engloba este estilo mais elusivo para os cientistas sociais,

    mais difcil em converter em um programa de pesquisa, mais desafiador enquanto guia

    s nossas interpretaes.

    Nesta minha fala me deterei em trs questes chaves que a filosofia de Merleau-

    Ponty coloca s cincias sociais embora significativas, certamente no so as nicas.

    A primeira diz respeito a uma re-descrio da experincia humana ou da prtica, para

    usar um termo mais corrente nas cincias sociais, a partir da corporeidade; a segunda a

    uma re-descrio da significao (e de noes como a de expresso e representao,

    bastante correntes na anlise social) a partir de um questionamento radical da ciso

    entre materialidade e sentido e a terceira uma proposta de interpretao que recusando

    1 Professora Dra. do Departamento de Sociologia e Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais,

    pesquisadora do Ncleo de Estudos em Cincias Sociais e Sade (ECSAS) da Universidade Federal da

    Bahia.

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    explicitamente o pensamento causal, possa dar conta do movimento da existncia

    enquanto dinmica em que se articulam no s natureza e cultura, corpo e alma, mas

    tambm a generalidade da histria e dos ciclos orgnicos e a singularidade dos atos

    pessoais. Enquanto a primeira questo pelo qual inicio foi em grande medida

    assumida pelas cincias sociais contemporneas, ou ao menos por algumas de suas

    correntes mais expressivas, as duas seguintes ainda mantm o carter de questes

    marginais no quadro destas cincias.

    Merleau-Ponty, seus leitores e a teoria da ao

    atravs de sua reflexo radical sobre o corpo, que a fenomenologia de Merleau-Ponty

    primeiro impacta as cincias sociais. Embora, enquanto objeto de estudo, o corpo seja

    uma presena recorrente na sociologia (e na antropologia), a tematizao explcita da

    corporeidade enquanto problema sociolgico deve-se em grande medida a recuperao das

    idias de Merleau-Ponty por estudiosos destas disciplinas. Entre estes se destacam sem

    dvida Michel Foucault e Pierre Bourdieu que dialogam com Merleau-Ponty sem

    maiores pretenses de fidelidade mas tambm toda uma gerao de cientistas sociais

    contemporneos, em sua maioria antroplogos, que introduzem idias do filsofo no

    mbito de suas disciplinas. Graas s suas contribuies o termo embodiment

    (corporeidade) estabeleceu-se na literatura para enfatizar a dimenso encarnada

    corporificada da cultura e das prticas sociais (do conhecimento, das emoes, da moral,

    etc).

    A teoria da ao um dos campos que sofre reorientao significativa sob o

    impulso da reflexo fenomenolgica no s de Merleau-Ponty como tambm de

    Husserl e Heidegger2 e talvez seja o campo em que a discusso sobre o corpo primeiro

    produz deslocamentos importantes. Para dar uma medida destes deslocamentos, vale a

    pena apresentar rapidamente alguns dos elementos chaves das abordagens a ao que

    durante muito tempo dominaram as cincias sociais. No modelo parsoniano, certamente

    o mais influente entre o que estou chamando de abordagens tradicionais ao, toda

    ao pode ser pensada em termos da articulao entre quatro elementos: um ator, um

    fim ou estado futuro antecipado que este ator visa provocar, uma situao (composta

    de meios e condies) em que ele atua, e a orientao normativa, que corresponde a

    2 Enquanto as idias de Husserl inspiram diretamente o programa sociolgico de Schutz e, atravs deste,

    exercem forte influncia sobre a etnometodologia; a sociologia de Pierre Bourdieu que articula mais

    diretamente elementos da filosofia de Heidegger e Merleau-Ponty em uma teoria de prtica formulada

    para superar os impasses do subjetivismo e do intelectualismo.

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    valores e normas interiorizados pelo ator. essa ltima que preside tanto a definio

    dos fins quanto a seleo dos meios e que, portanto, integra os demais elementos da

    ao, conferindo-lhe uma dimenso sistmica. Neste modelo analtico, vale notar, a

    situao neutra com relao ao que nela se desenrola: simplesmente o palco

    onde so executadas diretrizes normativas.

    Queria examinar cada um destes termos e sua articulao, a luz do pensamento

    de Merleau-Ponty. Na Fenomenologia da Percepo nosso filsofo volta-se contra as

    teorias que igualam o sujeito da experincia conscincia e relegam o corpo a condio

    de simples instrumento a seu servio. Parsons um claro exemplo desta orientao: no

    seu modelo analtico o corpo no pertence ao plo do ator; funciona antes como

    instrumento ou meio do qual ele se serve. A unidade de referncia que estamos

    considerando como ator no o organismo, mas um ego ou self. Para o ator seu

    corpo to parte da situao da ao quanto o ambiente externo (Parsons, 1968: 47).

    Central na crtica merleau-pontiana a noo de corpo vivido (claramente

    ausente do esquema de Parsons). Antes de constituir um objeto para reflexo - nosso

    corpo que miramos no espelho, o corpo do outro cuja figura avaliamos ou o

    organismo ao qual se voltam as cincias biomdicas, dotado de propriedades

    universais e passveis de anlise - o corpo o fundamento de nossa experincia no

    mundo, dimenso mesma do nosso ser. No domnio da experincia constitui o ponto de

    vista pelo qual nos inserimos no mundo. partir da perspectiva que o corpo fornece que

    nos orientamos no espao (ou melhor, que somos no espao) e apreendemos e

    manipulamos os objetos. Enquanto centro de instrumentalidade, o corpo no tem o

    mesmo status que os demais objetos que percebemos e empregamos na lida cotidiana;

    ele se confunde com nosso prprio ser.

    Postular a imbricao necessria entre corpo e conscincia no para Merleau-

    Ponty retirar o corpo de seu lugar consagrado na natureza, para jog-lo no terreno da

    subjetividade. Trata-se antes de redefinir os dois termos a partir desta sua imbricao.

    Perpassado pelo subjetivo (todo ele psquico), o corpo no mais matria inerte ante

    o espetculo da cultura, corpo vivido. Ancorada no corpo, por sua vez, a

    subjetividade j no pode mais ser tomada como interioridade, lcus de onde emanam e

    onde so armazenadas representaes acerca do mundo. O corpo enraza no mundo da

    cultura e da histria (mas tambm dos sensveis), nos enreda nas aes de outros e faz

    os outros inevitavelmente participar de nossas aes. Imiscuda no corpo, a

    subjetividade j no pode mais ser entendida como espao bem demarcado de existncia

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    pessoal (caracterizado por atributos como racionalidade, autonomia e controle). No

    corpo encontramos uma dimenso de existncia annima, pr-pessoal que diz respeito

    tanto ao ritmo de nossa vida natural, quanto generalidade dos papis sociais, que nos

    remete tanto para a esfera das funes e processos orgnicos, quanto a ao do hbito

    arraigado, das aspiraes no articuladas e disposies sedimentadas, dificilmente

    acessveis reflexo. Essa existncia annima, escreve Merleau-Ponty, traa um halo de

    generalidade em torno de minha individualidade absoluta: H um sujeito abaixo de

    mim, para quem existe um mundo antes que eu ali estivesse... Esse esprito ativo ou

    natural meu corpo (ibid: 589).

    A reflexo sobre o corpo produz assim um descentramento do sujeito tema que

    se tornou verdadeira palavra de ordem nas cincias sociais contemporneas. Ao mesmo

    tempo enfatiza a cumplicidade operante entre corpo e mundo, no apenas expondo a

    presena do mundo e do outro no fundo da prpria subjetividade, como tambm

    revelando a sociabilidade enquanto condio existencial que funda qualquer processo de

    subjetivao. Minha existncia encarnada se tece sob o horizonte da existncia do outro;

    meus gestos retomam e respondem ao outro, nos seus gestos descubro minhas intenes.

    Atravs dos nossos corpos, nossas aes entrecruzam-se, referem-se mutuamente e por

    vezes adquirem uma fluncia ou um ritmo que nos configura enquanto um ns, sujeito

    coletivo de prticas e discursos. Habitamos um mundo comum e dessa sociabilidade

    primria que posso surgir enquanto sujeito e que, por vezes, o outro, surge enquanto

    objeto ou me faz surgir nessa mesma condio.

    O sujeito que, na experincia, orienta-se por um senso de familiaridade com os

    espaos sociais que compem seu mundo cotidiano, compreende este mundo com o

    corpo ou justamente porque corpo: meu corpo tem seu mundo ou compreende seu

    mundo sem precisar passar por representaes, sem subordinar-se a uma funo

    simblica ou objetivante (ibid: 195). A noo de compreenso presente na

    Fenomenologia da Percepo revela ntida convergncia com o conceito heideggeriano.

    Para Heidegger a compreenso aponta para uma prioridade de nosso engajamento

    prtico no mundo sobre a atitude descolada de conhecimento. Na perspectiva de

    Heidegger, a prtica um retomar contnuo de contextos de dados de sentido que

    compreendemos sem precisar articular. De maneira semelhante, na Fenomenologia da

    Percepo, Merleau-Ponty fala de uma compreenso prtica que no da ordem do eu

    penso, mas do eu posso, e que remete ao corpo - no o corpo objetivo, massa de

    dados sensveis ou soma de partes interrelacionadas, mas o corpo como sistema de

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    aes possveis, um corpo virtual cujo lugar fenomenal definido por suas tarefas e

    por sua situao (ibid: 336). O hbito um claro exemplo dessa compreenso

    encarnada: Dizamos - escreve ele - que na aquisio do hbito o corpo que

    compreende. Essa frmula parecer absurda se compreender for subsumir um dado

    sensvel a uma idia e se o corpo for um objeto. Mas justamente o fenmeno do hbito

    nos convida a remanejar nossa noo de compreender e nossa noo do corpo (ibid:

    200). Na aquisio de hbitos incorporamos, enquanto prolongamento do nosso corpo,

    um certo tipo de situao, de tal modo que, ao agir, experimentamos um acordo entre o

    que visamos e o que nos dado, entre a ao e sua efetivao. O hbito no solda

    respostas individuais a estmulos individuais; modo de compreenso prtica, antes o

    poder de responder por um tipo de soluo a um certo tipo de situao.

    Embutido nessa reflexo est uma crtica importante a duas noes dominantes

    nas cincias sociais, ambas com repercusses notveis na definio de sujeito e

    subjetividade: a noo de sujeito racional presente na teoria da ao, e a idia de que a

    relao do indivduo com o mundo mediada por representaes acerca do mundo (a

    subjetividade correspondendo, assim, a um espao interior onde so produzidas e/ou

    armazenadas essas representaes). Conforme observa Taylor: a noo de que nossa

    compreenso do mundo se acha fundada em nossas relaes com ele equivale tese de

    que essa compreenso no se baseia em ltima anlise em quaisquer representaes no

    sentido de descries identificveis independentemente daquilo que descrevem

    (Taylor, 2000: 24). Essa crtica tem marcado a teoria social contempornea e est

    presente nas abordagens ao de diversos autores influenciados pela fenomenologia.

    Pierre Bourdieu certamente um deles, talvez o mais conhecido - embora ele

    mesmo evite alardear seu dbito para com a fenomenologia. Inspirado em Merleau-

    Ponty, Bourdieu desloca o sujeito racional da teoria parsoniana para o habitus - um

    corpo socializado, resultado de uma histria coletiva que se inscreve nas posturas, nos

    movimentos, nos gostos, que educa os sentidos e marca distines que so to mais

    eficazes quanto menos passveis de se tornarem objeto de reflexo. As experincias

    adquiridas no jogo social, bem como os esforos acumulados para intervir no jogo so

    integrados, via uma sntese espontnea, em um esquema corporal: mais que agregado de

    comportamentos sociais, o habitus uma potncia virtual para agir e responder s

    situaes que solicitam formas caractersticas de mobilizao do corpo, segundo um

    esquema socialmente constitudo. Enquanto senso corporificado do jogo social, o

    habitus opera sem a necessidade de atos de escolha e reflexo de um agente racional. A

    Afonso SocilogoHighlight

    Afonso SocilogoHighlight

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    introduo do conceito de habitus na teoria da prtica faz parte de um projeto mais

    amplo de anlise social. Trata-se para Bourdieu de:

    ... construir uma teoria materialista capaz de recuperar no idealismo... o lado ativo do

    conhecimento prtico... Eis precisamente a funo da noo de habitus que restitui ao agente um

    poder gerador e unificador, construtor e classificador, lembrando ainda que essa capacidade de

    construir a realidade social, ela mesma socialmente construda, no a de um sujeito

    transcendental, mas de um corpo socializado... (Bourdieu, 2001: 167)

    Recuperando a tradio fenomenolgica, neste caso via sua aproximao ao

    pragmatismo clssico, o socilogo alemo Hans Joas (1996) tambm recorre a uma

    noo de compreenso prtica, habitual, para colocar em questo o modelo de sujeito

    racional. A corporeidade, argumenta o autor, chama ateno para disposies e

    aspiraes operantes em um nvel pr-reflexivo, e que dificilmente e sempre apenas

    parcialmente ganham o status de idias articuladas, tornando-se objeto possvel de

    reflexo. Capacidade definidora do sujeito racional, a reflexo sempre relativa a essa

    compreenso corporal, pr-reflexiva; depende dela e se ergue a partir dela.

    Nem o conhecimento claro dos fins nem a obedincia a regras podem servir para

    explicar o curso da ao. Nas teorias da ao inspiradas na fenomenologia, a crtica a

    representao como mediadora da nossa relao com as situaes, os outros e as

    coisas aparece como crtica a idia de que o sujeito age a partir de regras ou normas

    interiorizadas. Conforme argumentam seus adeptos, a ao no causada por regras

    funda-se antes em um senso no articulado de contexto (para os etnometodlogos um

    contexto presumido), que orienta o ator e do qual depende a sua capacidade mesma de

    recorrer a regras3.

    A reflexo sobre o corpo tambm embasa uma reviso importante do conceito de

    situao, ou melhor, do lugar ocupado por esta categoria na teoria da ao. No esquema

    parsoniano a situao neutra com relao ao que nela se desenrola; simplesmente

    o palco onde so executadas diretrizes normativas. Conforme argumenta Garkinkel, ao

    colocar peso explicativo na orientao normativa, Parsons no elabora uma teoria da

    ao, mas uma teoria do que antecede a ao. No seu modelo analtico o valor da

    situao lhe aderido de fora so os fins previamente colocados que fazem com que

    alguns objetos adquiram status de meios, e outros apaream como condies que

    impem limite capacidade realizadora do sujeito. No a toa que o espao seja

    3 Em uma verso bastante particular do crculo hermenutico os etnometodlogos propem que ao invs

    de serem causas da ao, as regras funcionam como recursos interpretativos atravs do qual os atores

    articulam, relatam e justificam suas aes.

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    considerado pelo prprio Parsons uma categoria irrelevante no esquema analtico da

    ao (diferente do tempo que categoria bsica).

    Na Fenomenologia da Percepo a temtica do espao ocupa papel de destaque.

    No me parece exagerado dizer que a fenomenologia do corpo tambm uma

    fenomenologia do espao no sentido em que corpo e espao formam um sistema

    integrado. Assim como Heidegger nos conduz espacialidade originria do dasein ao

    descrever seu engajamento prtico com as coisas-instrumentos em contextos de

    ocupao, Merleau-Ponty desvela o espao como arena da prxis. Diferente de

    Heidegger, entretanto, para nosso autor, pensar o espao nestes termos, como terreno da

    prxis, implica j no reconhecimento do papel do corpo na constituio da

    espacialidade. Os lugares circunscrevem contextos ou horizontes que nos conectam

    significativamente a outros, que permitem que pessoas e objetos se destaquem e possam

    vir ao encontro na dinmica da ocupao. Mas o corpo tambm horizonte, o terceiro

    termo sempre subentendido desta estrutura figura-fundo, toda figura se perfila sobre o

    duplo horizonte do espao exterior e do espao corporal (Merleau-Ponty, 1994: 147):

    afinal ele que oferece a perspectiva a partir da qual outros corpos e objetos esto

    posicionados. Corpo e lugar esto em estreita dependncia e relao. Como unidade dos

    sentidos o corpo est sempre mobilizado pelos mltiplos apelos do lugar. Os lugares,

    por sua vez, no s dependem da intencionalidade corporal como tambm

    freqentemente se mostram em termos de diferenciaes que esto fundadas na prpria

    estrutura diferenciada do corpo: acima/embaixo; direita/esquerda; frente/costas (Casey,

    1996).

    A abordagem fenomenolgica ao espao serve sem dvida de contraponto

    interessante ao modelo parsoniano e os crticos mais contundentes deste modelo tm, de

    maneiras diferenciadas (muitas vezes atravs de aproximaes entre a fenomenologia e

    outras vertentes filosficas, como o pragmatismo), se apoiado nela para resgatar o papel

    importante da situao na configurao da ao4. A idia de uma sintonia ou

    sincronizao entre corpo e lugar no processo de ao tem rendido bons frutos na teoria

    social. Nesta direo Joas (1996) fala de fins ou quase fins operantes na ao tal modo

    amarrados a certos tipos de situao que usualmente no se destacam delas enquanto

    4 preciso fazer a ressalva de que muitos dos desdobramentos mais radicais da reflexo de Merleau-

    Ponty sobre o espao, suas ramificaes na discusso acerca do sentido e da existncia, tm sido

    relativamente ignorados pelas cincias sociais mainstream. Trataremos de alguns destes desdobramentos

    na seo seguinte.

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    planos ou projetos conscientes, que so despertados pelas situaes, a partir de nosso

    envolvimento com elas.

    Bourdieu (1977) por sua vez defende que estabilidade da vida social repousa

    sobre uma sintonia fina entre habitus e mundo, corpo e lugar. A configurao dos

    lugares que habitamos demanda certos modos de ajustamento corporal, reforando e

    naturalizando padres de ao e interao (com base em diferenas de classe, gnero,

    gerao, etc); assim como as disposies e tcnicas corporais socialmente constitudas

    revelam os lugares como contextos adaptados a essas mesmas habilidades corporais e s

    classificaes ou idias estereotipadas que elas corporificam.

    Inspirado por esta idia, o antroplogo Michael Jackson procura identificar, em

    sua etnografia dos Kuranko da Serra Leoa, os contextos de sociabilidade Kuranko que

    suscitam uma quebra no habitus, abrindo caminho para uma explorao criativa de

    novas imagens e idias. Conforme procurar mostrar os rituais de iniciao constituem

    instncias desse tipo, em que formas alteradas de uso do corpo funcionam como

    gatilhos para a produo de novas imagens e confronto com distintas possibilidades de

    organizao do mundo social. Vale notar que as mudanas sinalizadas por Jackson

    (conforme mostra a citao abaixo) referem-se a processos de orientao espacial

    (movimento x repouso; agachado x ereto; dentro de casa x fora de casa):

    Meu argumento que esta disrupo do habitus, em que as mulheres

    gozam de mobilidade irrestrita na vila e em que os homens devem

    prover para si (cozinhando mesmo suas prprias refeies) ou ficar em

    casa como mulheres agachadas (quando se faz o cortejo do objeto de

    culto das mulheres pela vila), coloca as pessoas abertas para

    possibilidades de comportamento que elas incorporam, mas no esto

    ordinariamente inclinadas a expressar. Alm do mais acredito que

    com base na fora dessas possibilidades extraordinrias que as pessoas

    controlam e recriam seu mundo, seu habitus. (Jackson, 1989: 129)

    Para resumir este primeiro tpico podemos dizer que a retomada crtica do corpo na

    teoria social a partir de uma reflexo oriunda da fenomenologia est ligada a um

    descentramento do sujeito, definido como interioridade auto-contida que se relaciona

    com o mundo por meio de representaes e que desenvolve e exercita, no meio social,

    capacidade de controle sobre os objetos, sobre o prprio corpo e sobre os outros. Este

    descentramento, tambm j vimos, tem como contrapartida uma nfase na sociabilidade:

    o resgate do corpo, argumenta Taylor, tambm resgate do outro (Taylor, 2000: 187).

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    Novas questes

    A reflexo merleau-pontiana sobre a corporeidade no tardou a ser absorvida nas

    cincias sociais. A Fenomenologia da Percepo inspirou uma reviso significativa das

    abordagens dominantes ao social e embasou uma crtica ao dualismo corpo e mente

    fortemente arraigado no pensamento sociolgico tradicional. Sua leitura pelos cientistas

    sociais tem sido, no entanto, seletiva. Neste momento gostaria de me voltar para duas

    questes bastante caras a Merleau-Ponty presentes no s na Fenomenologia da

    Percepo, mas em algumas de suas obras mais tardias que, embora potencialmente

    relevantes s cincias sociais, tm recebido pouca ateno dos estudiosos dessas

    disciplinas. A primeira aparentemente uma questo mais restrita, embora tenha

    ramificaes bastante importantes no pensamento de Merleau-Ponty: diz respeito s

    relaes entre materialidade e idealidade no advento do sentido. A segunda toca

    diretamente a proposta merleau-pontiana de compreender o humano a partir da tica da

    existncia. precisamente este vis que conduz Merleau-Ponty a uma recusa explcita

    do pensamento causal. Ao contrrio da seo anterior, na exposio destes temas, me

    deterei mais nas prprias idias de Merleau-Ponty.

    Recuperando os nexos entre materialidade e idealidade na teoria da significao

    A questo da articulao entre materialidade e idealidade na experincia do sentido

    retomada com freqncia na obra de Merleau-Ponty. As cincias sociais tm mantido

    estes dois campos tradicionalmente separados, at porque evocam muito diretamente a

    dualidade natureza e cultura que lhes to cara. A maneira como socilogos,

    antroplogos e mesmo gegrafos abordam o espao bem indicativa desta orientao:

    ao espao objetivo, real, que serve de pano de fundo s aes humanas, justapem o

    espao simblico, culturalmente construdo pela adio de significados a esta

    espacialidade natural.

    Assim um domnio simblico postulado como existindo acima ou

    sobreposto ao domnio das coisas materiais ou da natureza. Enquanto acesso aos

    significados requer operaes de cognio, acesso ao domnio da matria/natureza

    envolve experincia sensvel ou simplesmente sensao. Muitas das teorias do

    simbolismo esto construdas segundo esta lgica. Em linhas gerais definem os

    smbolos como objetos (mas tambm gestos e aes) cujo significado remete para alm

    de sua existncia material, sensvel. O objeto pode ter se tornado smbolo por alguma

    afinidade percebida entre sua forma sensvel e o contedo ideal de que feito portador,

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    mas suas propriedades sensveis nada tm a ver com a produo ou transformao do

    significado. Em outras palavras, o objeto simblico vale enquanto suporte de

    significado - sua materialidade ignorada em favor do significado social que ele porta:

    funciona como expresso ou representao material seja de concepes abstratas da

    cultura (viso de mundo, cosmologia), seja de relaes sociais vigentes no espao social

    (como as relaes de poder entre diferentes agentes ou grupos). Figura apenas como

    intermedirio5 atravs do qual o significado transita, mas no faz nenhuma diferena em

    termos do significado mesmo nenhum deslocamento ou transformao advm do fato

    de que o significado circula ou encarnado nele.

    Esta maneira de conceber a relao entre coisa material e sentido delineia um

    estilo recorrente e bem sucedido de anlise cultural que consiste em por em relao ou

    descobrir a relao oculta entre duas ordens distintas: a ordem da materialidade ou da

    natureza, e a ordem dos significados ou da cultura. Trata-se para os cientistas de

    desvendar os significados sociais profundos, ocultos por trs da aparente naturalidade de

    corpos e coisas. Assim atravs de suas obras descobrimos que arranjos arquitetnicos

    expressam/simbolizam as hierarquias sociais vigentes em uma sociedade ou que o

    traado da cidade representa no espao a estrutura social. Tambm aprendemos que

    emoes que os sujeitos vivem atravs de uma profuso de sensaes corporais podem

    funcionar como metforas poderosas para situaes sofridas de desigualdade e

    dominao poltica; e que a intrincada configurao de coisas comida, objetos, dana,

    msica com que as pessoas se envolvem em um contexto ritual representa a

    cosmologia da sua religio ou ainda, em outro nvel, as relaes de poder a que esto

    sujeitas naquele espao. Neste tipo de anlise como se as coisas e os corpos se

    erguessem de sua materialidade ao funcionarem como smbolos guardies de

    concepes abstratas ou intermedirios de foras sociais. Na medida em que os sujeitos

    comuns e no apenas os cientistas tm acesso a estes significados (em vrias

    abordagens os significados agem a um nvel inconsciente), este acesso envolve

    cognio, embora, como observem vrios estudiosos dos rituais, a emoo seja auxiliar

    freqente da cognio (as reaes emotivas geradas pelo contato com os smbolos em

    5 Estou aqui me apoiando em uma distino proposta por Latour (2005) entre mediadores e

    intermedirios: enquanto estes ltimos so meros veculos atravs dos quais certos significados ou

    contedos so transportados (mas que em nada alteram esses contedos), os mediadores so entidades que

    participam elas mesmas da construo dos contedos que transportam, produzindo deslocamentos,

    tradues e transformaes ao longo do percurso.

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    contextos rituais contribuem para o conhecimento e reforo dos significados que eles

    portam).

    Em Merleau-Ponty a discusso das relaes entre o sensvel e a idia delineia-se

    primeiro como uma reflexo acerca da percepo. Contra a disjuno entre percepo e

    cognio, Merleau-Ponty argumenta que a percepo j experincia de sentido e que

    cognio (tanto quanto a emoo) repousa em uma operao mais originria de

    significao, fundada em uma cumplicidade prvia entre o sujeito da percepo e o

    objeto percebido, ou entre o sentiente e o sensvel. Antes que as coisas sejam

    apreendidas pela reflexo como entidades objetivas, existe uma comunicao com elas,

    que se nutre do nosso co-pertencimento a um ambiente ou espao existencial. Na

    realidade, todas as coisas so concrees de um ambiente, e toda percepo explcita de

    uma coisa vive de uma comunicao prvia com uma certa atmosfera (Merleau-Ponty,

    1994: 430). Ao colocar o acento na espacialidade existencial para descrever a

    experincia perceptiva, Merleau-Ponty logra escapar da alternativa entre reduzir a

    percepo a um somatrio de sensaes distintas soldadas pelo hbito ou conceb-la

    como a imposio de uma forma sobre contedos dispersos. A percepo comunho

    com as coisas como comunho pressupe nossa insero comum no lugar e

    gradativamente revela o lugar como arena de nosso encontro.

    A coisa, escreve Merleau-Ponty, o correlativo do corpo, uma estrutura

    acessvel inspeo do corpo e se queremos descrever o real tal como ele nos aparece

    na experincia perceptiva, ns o encontramos carregado de predicados antropolgicos

    (ibid: 429). Por outro lado, na unidade da coisa, tal como dada na experincia

    perceptiva, que aprendo a unidade do meu corpo. A percepo tanto uma explorao

    das coisas via o movimento, quanto uma resposta s suas solicitaes, a maneira pela

    qual elas apelam aos sentidos, pedem certos modos de engajamento corporal (como

    atividade ou relaxamento), dirigem o olhar, a qualidade do toque, o ritmo da

    experincia. H assim uma relao fundamental entre percepo e movimento,

    passividade e atividade: percebo uma qualidade quando meu corpo adota a atitude ou

    comportamento que ela prope (percebo o azul quando meu corpo adota a significao

    motora do azul). A percepo de fato o movimento pelo qual todo meu corpo assume

    e se sincroniza com uma situao: O sujeito da sensao no nem um pensador que

    nota uma qualidade, nem um meio inerte que seria afetado ou modificado por ela; uma

  • 12

    potncia que co-nasce com um certo meio de existncia ou se sincroniza com ele (ibid:

    285).

    Esta reflexo traz uma redefinio importante do conceito de sentido. A

    percepo uma experincia de sentido, mas o sentido da coisa percebida no uma

    idia que unifica seus aspectos sensveis, fazendo-a aparecer como um objeto a um

    sujeito: um estilo que nos solicita e mobiliza. Antes de apreendermos as coisas como

    objetos entidades discretas e isoladas discernimos nelas um estilo que se desenha

    atravs de suas sucessivas aparies, uma tonalidade ou ambincia. Ns no

    percebemos quase nenhum objeto, assim como no vemos os olhos de um rosto

    familiar, mas seu olhar e sua expresso. Existe ali um sentido latente, difuso atravs da

    paisagem ou da cidade, que reconhecemos em uma evidncia especfica sem precisar

    defini-lo (ibid: 378). Compreender situar-se neste sentido latente, retomar, via o

    comportamento, o estilo que as coisas nos propem. Nas palavras do autor:

    compreendemos a coisa como compreendemos um comportamento novo, quer dizer

    no por uma operao intelectual de subsuno, mas retomando por nossa conta o modo

    de existncia que os signos observveis esboam diante de ns (ibid: 428). Vale a pena

    nos determos um pouco na noo de estilo por sinal bastante recorrente na

    Fenomenologia da Percepo. Como estilo, a significao no existe independente do

    sensvel, no uma idia abstrata que este no faz mais que representar. Um estilo ao

    mesmo tempo fortemente material relaes entre corpos e coisas e fortemente ideal

    a orientao geral que emerge de tais relaes e que se cristaliza em torno delas.

    Na Fenomenologia da Percepo h talvez dois momentos importantes em que

    Merleau-Ponty procura se desfazer da dualidade entre materialidade e sentido

    subjacente s abordagens intelectualistas da significao. No primeiro a discusso gira

    em torno da expressividade do corpo. Postular que o corpo porta uma significao o

    mesmo que tom-lo enquanto signo em uma operao de representao? O que

    queremos dizer quando afirmamos que o corpo exprime contedos existenciais, ou

    normas e valores da sociedade, ou ainda as hierarquias que nela estruturam as relaes

    entre as pessoas? Para Merleau-Ponty a relao puramente exterior entre signo e

    significado no serve para descrever a expressividade do corpo. Se a cada momento o

    corpo exprime as modalidades da existncia... no como os gales significam a

    graduao ou como um nmero designa uma casa: aqui o signo no indica a

    significao, ele habitado por ela (ibid: 222). Para aqum dos meios de expresso

    convencionais preciso reconhecer uma operao primordial de significao em que o

  • 13

    expresso no existe separado da expresso... (ibid: 229). Esta tambm a relao entre

    a palavra enquanto coisa sonora - e o seu sentido: o sentido [da frase] no est na

    frase como a manteiga na fatia de po, qual segunda camada de realidade psquica

    estendida por cima do som: o sentido a totalidade do que se diz, a integral de todas as

    variaes da cadeia verbal, dado com as palavras aos que possuem ouvidos para

    ouvir. (Merleau-Ponty, 1992: 149)

    Assim como a expressividade do corpo no equivale a sua operao como signo

    que representa, evoca ou remete a um significado que existe independente dele,

    tampouco o sentido da coisa percebida uma idia que sua materialidade serve para

    carregar ou guardar. Enquanto estilo, o sentido habita a coisa como a alma habita o

    corpo; no est atrs das aparncias (Merleau-Ponty, 1994: 428). Esta concepo de

    sentido posteriormente desenvolvida em uma reflexo preciosa sobre a idealidade do

    sensvel:

    A literatura, a msica, as paixes, mas tambm a experincia do

    mundo visvel so, tanto quanto a cincia de Lavoisier e de Ampre a explorao de um invisvel, consistindo ambas no desvendamento de

    um universo de idias. Simplesmente aquele invisvel, aquelas idias

    no se deixam separar, como as dos cientistas, das aparncias

    sensveis () essas verdades no esto apenas escondidas como uma realidade fsica que no soubemos descobrir, invisvel de fato, que

    poderemos um dia chegar a ver face a face, e que outros, melhor

    colocados, poderiam ver j agora, desde que se retire o anteparo que o

    dissimula. Aqui, pelo contrrio, no h viso sem anteparo: as idias

    de que falamos no seriam por ns mais conhecidas se no

    possussemos corpo e sensibilidade, mas ento que seriam

    inacessveis s nos poderiam ser dadas como idias atravs de uma

    experincia carnal. No se trata apenas do fato de que a encontremos

    ocasio para pens-las; que sua autoridade, seu poder fascinante e

    indestrutvel advm precisamente de estarem elas em transparncia,

    atravs do sensvel ou em seu mago. (Merleau-Ponty, 1992: 144-5)

    Para Merleau-Ponty a relao entre o sensvel e o cultural, o material e o ideal no

    equivale a uma relao entre diferentes camadas de experincia. A metfora das

    camadas s pode conceber o sentido como uma adio matria, e mostra-se incapaz de

    dar conta de um sentido carnal, de idias que no podem ser desconectadas do mundo

    sensvel sob pena de que seu sentido seja perdido ou simplesmente substitudo por uma

    verso derivada. Ao invs de estarem sobre o sensvel, estas idias esto nas

    articulaes dos sons, das cores, cheiros e movimentos. O material no seu suporte

    ocasio para pens-las nem o vu que deve ser removido para que possam ser

    apreendidas prenhe de sentido, sustentado por uma idealidade que adere a ele, e que

    apenas por um tipo de derivao pode ser descolada dele.

  • 14

    A noo de uma idealidade sensvel proposta por Merleau-Ponty repousa em

    uma abordagem compreenso como prtica corporal: sincronizar-se com uma

    situao, discernir um estilo atravs de uma atitude que j uma resposta a ele, acolher

    e retomar o sentido proposto pelos contextos e coisas. De acordo com Merleau-Ponty as

    idias sensveis compem um horizonte a partir do qual as idias abstratas so formadas

    e do qual nunca se destacam completamente. Tecidas nos interstcios do sensvel, nas

    articulaes de um meio intersensorial, elas apontam para um sentido difuso, que brota

    de um certo modo de ser em situao. A idealidade da linguagem tampouco est

    desconectada deste sentido carnal. O mundo em que estamos sensorialmente envolvidos

    sempre j perpassado pela linguagem - de fato como seres culturais, toda nossa

    paisagem inundada por palavras (Merleau-Ponty, 1992: 149) - e por mais abstrato que

    seja um discurso este nunca inteiramente livre da aderncia ao sensvel.

    Voltemos agora anlise social. A partir dessas colocaes podemos dizer que

    nem a sociologia nem a antropologia avanam muito no entendimento da vida social ao

    mostrar que significados sociais, polticos, econmicos (relaes de poder e

    desigualdades) so expressos atravs de imagens corporais (ou de arranjos espaciais),

    como se seu contedo original, ao ser transferido para o campo das caractersticas e

    funes do corpo fsico (ou do espao natural), apenas ganhasse a uma tonalidade

    mais viva ou mesmo um maior poder de persuaso. Enquanto integrantes da

    experincia, o poltico, social e cultural no so sentidos abstratos, mas dimenses

    vividas e, portanto, j articuladas no corpo (e no espao), assim como o corpo no

    simplesmente sede de sensaes brutas e o espao no o pano de fundo neutro da vida

    cultural. Se levarmos a srio a noo de sentidos carnais, proposta por Merleau-Ponty,

    devemos, ento, pensar na dinmica de poder que vigora em um certo campo social no

    como sentidos que transitam atravs dos corpos dos participantes de gestos, posturas,

    formas de vestir ou que so representados por um determinado arranjo de coisas, mas

    como sentido aderido aos corpos e coisas, formando com eles um contexto total de

    experincia. Estamos aqui prximos da noo foucaultiana de poder como difuso e

    concreto, presente nas micro-articulaes entre pessoas e coisas.

    Mais interessante e proveitoso do ponto de vista terico do que mostrar o

    que as coisas representam procurar entender o que elas fazem fazer6: como apelam

    6 Esta expresso utilizada por Bruno Latour em sua proposta de uma sociologia das associaes. H

    importantes convergncias entre as abordagens de Latour e Merleau-Ponty que no poderei abordar no

    espao deste texto.

  • 15

    nossa ateno e convidam ao, como esto ligadas a outras coisas e pessoas em

    circuitos de interao que ajudam, em virtude de sua prpria materialidade, a enquadrar

    e manter. Recorrendo ao meu ltimo exemplo no incio desta seo a anlise dos

    rituais preciso reconhecer que do ponto de vista da experincia encarnada de seus

    participantes, os objetos que compem e se sucedem em uma cena ritual no se

    apresentam primeiro e fundamentalmente como smbolos, que condensam e evocam

    pensamentos inconscientes ou normas e valores abstratos (duplicando assim idias que

    existem independentes delas). Emergem primeiro como estilo, como um apelo

    percepo e ao. Como tal seu sentido no separvel de sua materialidade, de sua

    inerncia no lugar e de sua existncia prtica para aqueles que so tocados ou movidos

    por eles. Para descrever o tipo de compreenso que se produz nos rituais, ou no que

    ordinariamente classificamos como eventos carregados de simbolismo preciso antes

    de mais nada considerar como o evento abre um campo de sentido ao propor certos

    modos de engajamento sensvel, ou ao colocar em comunicao pessoas e coisas.

    Procurando resumir a orientao que passa a caracterizar a antropologia a partir

    de seu encontro com a fenomenologia, Jackson fala de uma ateno ao corpo enquanto

    lcus de agncia social e aos contextos vividos de sociabilidade nossa nfase

    deslocou-se, portanto, daquilo que as crenas significam intrinsecamente para o que elas

    so feitas significar, e o que elas realizam para aqueles que as invocam e as usam

    (Jackson, 1996: 6).

    Para o antroplogo ingls Tim Ingold a reorientao requerida bem mais

    radical. Trata-se de mudana mesma do ponto de partida da disciplina, um

    questionamento de algumas das premissas que para muitos definem o lugar da

    antropologia em relao s outras cincias. Embora no se considere representante de

    uma vertente fenomenolgica na antropologia, Ingold influenciado por Merleau-Ponty

    e em certo sentido o antroplogo que de forma mais consistente tem questionado a

    ciso entre materialidade e sentido, natureza e cultura presente em muitas abordagens

    das cincias sociais.

    Conforme Ingold (2000) a noo de cultura dominante na antropologia

    perfeitamente compatvel com a concepo de natureza das cincias naturais e no faz

    mais que contribuir para assentar essa diviso de campos em uma distino entre esferas

    ontolgicas: de um lado a unidade da natureza, do outro a diversidade das culturas ou

    dos mundos construdos culturalmente um mesmo mundo natural processado segundo

    significados ou esquemas culturais distintos. Embora antroplogos tenham mostrado

  • 16

    que a diviso natureza e cultura estranha a alguns povos nativos (constituindo, de fato,

    no grande baluarte da cultura ocidental moderna), o esquema analtico que cinde

    natureza e cultura permanece inalterado: ainda se est falando de diferenas entre

    culturas (ou da maneira como cada cultura concebe a relao cultura/natureza); a

    natureza verdadeiramente real permanece como suposto no questionado.

    Esta concepo de cultura como mundo de significados discursivos opera um

    duplo desengajamento: o primeiro corta o vnculo do mundo humano com o mundo

    natural, supe que os humanos deram um passo para fora do mundo habitado por todas

    as outras criaturas viventes; o segundo estabelece uma distncia (impossvel de superar)

    entre o antroplogo e os povos que pesquisa, distncia necessria para que aquele possa

    ver uma cosmologia naquilo que para as pessoas antes de mais seu mundo da vida.

    Desfazer este duplo desengajamento, argumenta Ingold, requer substituir a

    improdutiva dicotomia entre natureza e cultura pela sinergia dinmica entre organismo e

    ambiente7 (ibid: 16). Ao assumir como ponto de partida a unidade organismo-ambiente

    a ateno do antroplogo se desloca dos padres culturais pelos quais as pessoas

    constroem seus mundos, para os modos de envolvimento e engajamento pelos quais

    habitam um mundo junto com seres diversos; do estudo das crenas que medeiam suas

    relaes com espao e com os outros, para o estudo das sensibilidades e habilidades

    pelas quais percebem e participam deste mundo comum, se fazendo junto com ele.

    apenas a partir deste ponto de vista que podemos de fato superar a idia de que os

    significados so atribudos s coisas e ao mundo, sobrepondo-se a eles como uma

    segunda pele de crenas que encobre o real. Ao descobrir que seres animados diversos

    habitam o mundo da vida dos povos que estuda e mesmo o seu prprio mundo da vida,

    o antroplogo deve lembrar que:

    O ser animado (animacy)... no uma propriedade que as pessoas imaginativamente projetam sobre as coisas que elas percebem em sua

    volta. Ao invs um potencial dinmico, transformativo do campo total de relaes em que seres de todos os tipos, mais ou menos como

    pessoas ou como coisas, contnua e reciprocamente, se fazem existir.

    O carter animado do mundo da vida, em suma, no o resultado da

    infuso de esprito na substncia, de agncia na materialidade, mas

    ontologicamente anterior a sua diferenciao (Ingold, 2006:10).

    7 Da mesma forma que rejeita a viso de cultura como representao, Ingold tambm rejeita a viso do

    ambiente como realidade fsica imutvel, existindo independente daqueles que o habitam.

  • 17

    O movimento da existncia

    Na Fenomenologia da Percepo Merleau-Ponty prope que entendamos a pertena e

    envolvimento do sujeito no mundo (para Ingold a sinergia organismo-ambiente) como

    existncia. Ao procurar descrever a existncia, o seu movimento, expe tambm um

    estilo de interpretao e articula uma crtica poderosa ao pensamento causal.

    Para Merleau-Ponty a existncia abarca movimento que pe em relao ordens

    diversas. Antes que uma unidade j dada, corpo e alma, natureza e cultura, orgnico e

    psquico se articulam neste movimento. Mas no se trata nunca de uma fuso perfeita ou

    superao de uma ordem pela outra. O homem concretamente considerado no um

    psiquismo unido a um organismo, mas esse vaivm da existncia que ora se deixa ser

    corporal, ora se dirige as atos pessoais (Merleau-Ponty, 1994: 130).

    Se o orgnico e o psquico podem se conjugar na existncia, porque no so

    estranhos um ou outro, porque entre eles h troca e contaminao. Merleau-Ponty v

    a no a relao entre duas ordens de fatos que se influenciam de fora, mas a conexo

    vital de diferentes dimenses de uma existncia total ou totalizadora:

    A vida da conscincia vida cognoscente, vida do desejo ou vida perceptiva sustentada por um arco intencional que projeta em torno de ns nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa

    situao fsica, nossa situao ideolgica, nossa situao moral, ou

    antes, que faz com que estejamos situados sob todos esses aspectos.

    esse arco intencional que faz a unidade dos sentidos, a unidade entre

    os sentidos e a inteligncia, a unidade entre a sensibilidade e a

    motricidade (ibid: 190).

    Enquanto totalidade ou movimento totalizador, a existncia envolve transcendncia

    contnua. Mas a transcendncia da vida orgnica pela vida pessoal - sublimao da

    existncia biolgica na existncia pessoal sempre parcial, nunca plenamente

    realizada. Na temporalidade est a chave para entend-la: a fuso entre alma e corpo

    no ato, a sublimao da existncia biolgica em existncia pessoal, do mundo natural

    em mundo cultural tornada ao mesmo tempo possvel e precria pela estrutura

    temporal de nossa experincia (ibid: 125). A relao se explica aqui pela estrutura de

    retenes e protenses que conecta cada presente com seu passado e porvir, fazendo que

    o tempo no a seja a experincia de uma mera sucesso de instantes pontuais. Enquanto

    movimento de totalizao da vida, cada presente integra a si um passado de modo que

    mesmo o passado remoto das estereotipias orgnicas pode ser reintegrado a existncia

    pessoal - mas esse movimento nunca se fecha e essa integrao sempre tambm

  • 18

    conservao. Em outras palavras, se o presente pode se comunicar com o passado

    porque no pode elimin-lo ou super-lo completamente, seno reaprend-lo e assumi-

    lo. O movimento no simples superao, mas de conservao e retomada.

    Este o mesmo movimento (temporal) que faz com que a histria e a cultura

    no sejam alheias a generalidade e impessoalidade absoluta dos processos orgnicos e

    que na histria e na vida social pe em relao a singularidade dos atos pessoais e a

    generalidade dos papis e situaes cristalizadas. Para entender esta relao preciso

    superar a alternativa entre por um lado, ver os primeiros como atos de pura criao e

    conceber a histria como novidade perptua, e por outro, tomar os segundos como

    condies que se impem sobre os sujeitos e explicar a histria como determinao.

    As estereotipias no so uma fatalidade, e assim como a vestimenta, o

    adorno, o amor transfiguram as necessidades biolgicas por ocasio das quais

    eles nasceram, da mesma forma no interior do mundo cultural o a priori

    histrico s constante para uma dada fase... Assim, a histria no nem

    uma novidade perptua, nem uma repetio perptua, mas o movimento

    nico que cria formas estveis e as dissolve. (ibid: 130)

    O pensamento causal incapaz de dar conta desta dialtica da existncia: opera pondo

    em relao fatos ou contedos diversos que assume de antemo como sendo exteriores

    uns aos outros. apenas nestes termos que pode tomar a classe, a nao ou a cultura

    como causas do comportamento, ou como fatalidades que se impem sobre ns de fora,

    deixando escapar o fato de que, ao invs de causas ou fatores externos, estes so

    fundamentalmente modos de coexistncia que nos solicitam.

    Merleau-Ponty ilustra bem as limitaes da anlise causal ao discutir a relao

    entre sexualidade e existncia na Fenomenologia da Percepo. O que queremos dizer,

    pergunta, quando afirmamos que estes termos esto em uma relao de expresso? Aqui

    h dois erros a se evitar. O primeiro consiste em pensar a relao de expresso segundo

    a lgica causal. A sexualidade, argumenta o filsofo, no pode ser causa da existncia,

    porque efetivamente participa dela e o grande achado da psicanlise no foi ter

    finalmente localizado a causa de nossos dramas existenciais na pulso sexual, mas

    justamente de ter integrado a sexualidade dinmica do existir. O segundo erro aquele

    que, procurando escapar ao pensamento causal, toma a vida sexual como simples

    reflexo da existncia, reduzindo-a a essa ltima. Na sexualidade, escreve nosso autor, se

    encena uma corrente particular da vida, que embora retomada e reintegrada ao

    movimento mais geral do existir, no se apaga ou se dissolve neste movimento.

  • 19

    Nesta discusso se delineia um novo modo de pensar a relao entre forma e

    contedo. O movimento da existncia e tambm da histria - no a pura sucesso de

    contedos diversos que se relacionam de fora segundo uma cadeia de causalidade. Mas

    tambm no se deixa captar como imposio de uma forma que, em ltima instncia,

    dissolve a multiplicidade dos contedos e anula a contingncia da histria.

    A relao entre matria e forma aquela que a fenomenologia chama de Fundierung: a funo

    simblica repousa na viso como em um solo, no que a viso seja sua causa... A forma integra a

    si o contedo a tal ponto que, finalmente, ele parece um simples modo dela mesma, e as

    preparaes histricas do pensamento parecem uma astcia da Razo disfarada em natureza

    mas, reciprocamente, at em sua sublimao intelectual o contedo permanece uma contingncia

    radical, como o primeiro estabelecimento ou fundao do conhecimento e da ao, como a

    primeira apreenso do ser ou do valor dos quais o conhecimento e a ao jamais esgotaro a

    riqueza concreta... (ibid: 179)

    Posteriormente Merleau-Ponty reelabora seu entendimento acerca do movimento da

    existncia atravs da noo de instituio. Se sentido da existncia - e da histria - no

    uma forma atemporal que paira sobre ela e que comanda de cima a sucesso dos

    eventos, nem o resultado arbitrrio de uma srie de experincias singulares, porque

    toda a experincia est sempre aberta ao passado e ao futuro, j que (minhas) aes

    pedem desdobramentos que sero realizados e retomados por outros. O sentido da

    histria, escreve Merleau-Ponty, institudo (ao invs de constitudo), um estilo que

    emerge atravs de sucessivas apropriaes de modos herdados de ao e coexistncia. O

    estilo que se delineia neste movimento de retomada no uma estrutura ou sentido a

    priori; no est imune contingncia dos eventos. Na imagem eloqente do autor, o

    sentido convite para uma seqncia (Merleau-Ponty, 1968a: 61).

    Com a noo de instituio Merleau-Ponty deseja tanto retirar do presente o

    livre poder de criao (ou constituio), que faz dele o artfice da histria; quanto retirar

    do passado o poder absoluto de determinao que, na interpretao histrica, o

    transforma em um conjunto de condies ou fatores causais. Por um lado, preciso

    entender que o presente s poderia ser senhor absoluto da histria, se tivesse rompido

    completamente seus vnculos com o passado, se no fosse ele mesmo herdeiro do

    passado. Por outro, entretanto, cabe lembrar que se o passado pr-figura o presente e o

    futuro e assenta os termos sobre os quais estes se erguem, o futuro que confirma e faz

    vigorar o passado em sua retomada como observa Merleau-Ponty a busca iniciada

    pelo presente que conduz articulao de uma verdade acerca do passado: no homem,

    o passado pode no apenas orientar o futuro... mas dar lugar, ainda, a uma busca, no

  • 20

    sentido de Kafka, ou a uma elaborao indefinida: conservao e superao so mais

    profundos, de modo que se torna impossvel de explicar a conduta por seu passado,

    como de resto por seu futuro, uma vez que ecoam um no outro (ibid: 61-2)8.

    Merleau-Ponty (1984) encontra na sociologia de Weber uma aplicao desta

    noo de instituio. Embora preocupado em compreender a emergncia de certas

    estruturas na histria, Weber recusou-se a pensar este processo a partir uma linha de

    desenvolvimento a priori que reduzisse os fatos matria bruta de uma lgica histrica.

    Para ele nem o capitalismo j estava contido no calvinismo, nem o calvinismo

    representava uma fase precria, ainda dependente, do que viria a ser um sistema

    econmico inteiramente autnomo. Weber partiu da indeterminao essencial da

    histria, e viu os acontecimentos como encerrando possibilidades sempre dependentes

    da retomada humana para sua plena efetivao. Assim entendeu que se o calvinismo

    continha o germe de uma orientao econmica capitalista, esta orientao s poderia

    ser encontrada pelo historiador se este atentasse para o campo de ao aberto pela

    posio religiosa. Tratava-se de compreender como certas escolhas se cristalizaram

    neste campo, se engataram e reforaram, mediante a iniciativa humana, escolhas

    semelhantes feitas em outros domnios de prtica, fazendo surgir uma estrutura ou um

    estilo a partir do que, em um dado momento, eram apenas possibilidades histricas e

    que s posteriormente poderiam se transformar em sua verdade ltima.

    Neste percurso interpretativo, sugere Merleau-Ponty, Weber efetivamente

    superou o abismo que em seus escritos metodolgicos, separa o historiador que

    contempla o passado de fora e articula uma verdade sobre ele, e o agente histrico, que

    impedido de ter acesso ao sentido da histria em virtude do seu engajamento nela. A

    conexo entre calvinismo e capitalismo no foi tecida ao acaso ou sob o domnio de

    uma razo que apenas o historiador est em posio para identificar (e que para alguns

    cabe a ele produzir). A afinidade entre a orientao religiosa e o ethos econmico

    no era alheia aos agentes religiosos - embora no to bem posicionados quanto o

    historiador, eles a viram ser tecida ou confirmada a partir das respostas que suas

    escolhas precipitaram nos outros. A narrativa do historiador s pode re-apreender este

    percurso, na medida em que ela mesma mobilizada por uma interrogao do passado.

    Talvez devido a sua ateno mediao fundamental da ao na cristalizao das

    8 Traduo de Monclar Valverde.

  • 21

    estruturas Weber pode compreender to bem o movimento de conservao e retomada

    atravs do qual um sentido se sedimenta na histria, como convite a uma seqncia.

    No me interessa aqui avaliar at que ponto Merleau-Ponty fiel a Weber em

    sua apreciao da obra do autor. Desejo, antes, observar, que o estilo de interpretao

    histrica que Merleau-Ponty distingue em Weber, e que ele articula a partir da noo de

    instituio, no tem sido objeto privilegiado de ateno dos cientistas sociais.

    Basta observarmos a maneira como as cincias sociais mainstream tm

    buscado compreender as relaes que as pessoas cultivam com seu passado. Atualmente

    est bastante em voga uma viso do passado como fabricado ou inventado: narrativa

    construda por determinados grupos ou seus representantes para legitimar identidades

    no jogo poltico. Assim o passado redescoberto tomado como seleo e fabricao

    tendenciosa realizada do ponto de vista do presente. Seu papel criar um foco de

    identificao e mobilizao social: forjando um passado comum e apresentando o futuro

    como seu resultado necessrio, esta narrativa confere credibilidade a um estado

    desejvel de coisas. Em outras palavras, e parafraseando Bourdieu, transforma

    estratgia em destino.

    Curiosamente esta viso do passado construo simblica que serve para

    fortalecer lideranas e seguidores em um campo poltico - frequentemente articulada

    outra, bastante diferente, que visa responder questo de por que certas pessoas ou

    grupos precisam recorrer estes tipos de construo, ou melhor, que visa identificar as

    condies explorao de classe, de gnero ou tnico-racial, por exemplo que

    explicam o recurso a certas formas de mobilizao. Aqui a anlise d uma guinada e

    apresenta o passado como uma cadeia objetiva de eventos transcorridos, de foras

    sociais e econmicas que determinam presente e futuro. Uma linha demarcatria

    desenhada entre passado real e passado fabricado: ligado a este h o sujeito como

    agncia, uma imagem de construo ativa do mundo; ligado quele, um contexto de

    condies objetivas e uma imagem de submisso passiva. Interessante observar que em

    ambas as solues a conexo que as pessoas mantm com seu passado s pode ser

    externa: quer como criao ativa ou como conservao passiva, o passado privado de

    seus elos vitais com a experincia. Em um dos cursos que proferiu no Collge de

    France, Merleau-Ponty observou:

    O problema da memria no tem sada enquanto se hesita entre a

    memria como conservao e a memria como construo. [] [a] imanncia e a transcendncia do passado, a atividade e a passividade

    da memria no podem ser reconciliados enquanto no renunciarmos

  • 22

    a colocar o problema em termos de representao. Se, para comear, o

    presente no mais representao (Vorstellung), mas uma certa posio nica do ndice do ser no mundo, se nossas relaes com ele,

    quando ele desliza para o passado, como nossas relaes com o

    entorno, so atribudas a um esquema corporal que detm e designa

    uma srie de posies e possibilidades temporais, se o corpo quem a

    cada vez responde [] questo: Onde estou e que horas so, ento no haver mais alternativa entre conservao e construo. (Merleau-

    Ponty 1968b:72)9.

    Concluso

    Merleau-Ponty via na reflexo sobre a corporeidade um foco a partir do qual repensar

    no apenas a experincia (individual ou coletiva), mas tambm nossa maneira de

    compreend-la de articular o seu sentido. Parece-me acertado dizer que para ele o

    reconhecimento da corporeidade do ser mundo deveria tanto servir de base para a

    formulao de novos conceitos nas cincias do homem, quanto abrir caminho para um

    novo estilo de interpretao uma alternativa poderosa ao pensamento causal que

    evitasse, ao mesmo tempo, atribuir ao sujeito do presente liberdade de criao

    incondicionada. Nas cincias sociais estes dois desenvolvimentos no se deram de

    forma integrada ou por igual. Os cientistas sociais que souberam se assenhorar de suas

    idias sobre o corpo e com base nelas formular proposies bastante novas para o

    entendimento do mundo social que incorporaram no seu vocabulrio terico termos

    claramente influenciados pela tradio fenomenolgica, como compreenso prtica,

    habitus, sentido pr-reflexivo, etc. foram mais tmidos ou resistentes a se apropriar da

    reflexo merleau-pontiana para superar o pensamento causal de fato, para rever sua

    concepo geral de cincias sociais.

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    9 Traduo de M. Rabelo. No original em francs: Le problme de la memoire est au point mort tant on

    hsite entre la mmoire comme conservation et la mmoire comme construction. (...) Limmanence et la transcendence du pass, lactivit et la passivit de la mmoire ne peuvent tre rconcilies que si lon renounce poser le problme en termes de representation. Si, pour commencer, le prsent ntait pas representation (Vorstellung), mais une certaine position unique de lindex de ltre au monde, si nos rapports avec lui, quand il glisse au pass, comme nos rapports avec lentourage spatial, taient attribus une schema postural qui dtient et dsigne une srie de positions et possibilits temporelles, si le corps est

    qui rpond chaque fois a la question: O suis-je et quelle heure est-il, alors il ny aurait pas dalternative entre conservation et construction

  • 23

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