meus chinelosbettina lenci
meus chinelosbettina lenci
para Moema
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Capítulo 1
Domingo, 13 de fevereiro de 2016. É meio dia. O humor de
Dora está cinza como o inverno que envolve a árvore desfeita
de folhas entrevistas pela janela.
“Meus chinelos, meus chinelos!”
Desviar a visão de Astrid é impossível porque a poltrona
destinada aos visitantes fica em frente à sua cama. Dora
não pensa na agonia da amiga em busca dos seus chinelos.
Acorrentada às lembranças, ela se culpa por substituir
o sofrimento de Astrid, mergulhando em seus próprios
pensamentos. Desamparada, rememora os dias ensolarados
da terra natal de ambas, amigas desde infância em Tanger.
Dora vê os chinelos da amiga colocados - pela diligente
enfermeira,- em frente aos pés de Astrid, mas ela continua a
chamar, agoniada, “Meus chinelos”! “Meus chinelos”!
“Como começa isso?” O mal de Alzheimer lhe desperta
pensamentos confusos. Ao menos, ali sentada, Dora pode
ficar em silêncio de reza, velando o sono da demência.
Rotineiramente ela visita sua amiga. Não sente pena de Astrid
mas, pergunta-se por que cumprir o ritual acompanhando
a inexorável e impiedosa decadência da brilhante mente
da pessoa clamando por chinelos que estão aos seus pés.
O quarto é grande. O silêncio pesado, o ar rarefeito. Num
instinto de sobrevida, Astrid precisa de todo ar para si. No
teto, o remendo de uma parede demolida, provavelmente para
dar a sensação à doente de que não vai sufocar como uma
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flor de estufa em extinção. O tom das paredes verde claro, as
cortinas graciosamente floridas com leves e murchas rosas
apagadas combinam com o papel de parede. O quarto é
agradável e feminino. A colcha rosa está dobrada aos pés da
cama.
-”Esta colcha me deixa nostálgica” irrompe Dora irritada,
pouco atenta à decoração do quarto. Respira fundo e passa
da irritação à angústia. Imagina ter inspirado um cheiro
agridoce de cereal armazenado, o cheiro do sofrimento! O
futuro incerto lhe causa opressão e a passagem do tempo,
uma dor cáustica na boca do estômago: “estou só”!
“Meus chinelos”! “Meus chinelos” ouve novamente.
A enfermeira chega e os calça novamente com delicadeza.
Se Dora tivesse que descrever Astrid diria que ela lembra
Edith Piaff, cantora francesa do pós-guerra. Dela emanava
uma energia solar apesar da sua fragilidade física e
emocional. Seus rompantes eram irascíveis, coléricos. De
baixa estatura, o andar desajeitado, musculosa, cabelos
ruivos encaracolados, unhas do pé sempre vermelhas e da
mão muito compridas. Esboçou leve sorriso ao lembrar-se da
vaidade excessiva de Astrid, altiva como uma tocha olímpica
de vencedor de maratona. Dora fez contas: “nasci em 45, ela
em 46.” Este cálculo a entristeceu: estavam juntas desde a
escola primária.
Sem prévia indicação, Astrid levanta os braços para
que a ajudem a sair da cama. Emagrecida, curvada e
trôpega, dependurada no braço da enfermeira, ela indica
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o grande terraço. Dora a acompanha. Profusão de vasos
dependurados, trepadeiras subindo pelas paredes e uma rara
coleção de orquídeas tornara-o romântico. Astrid cuidara
pessoalmente desta parte da casa. Escolhera flores que a
lembravam das cores do seu país de origem: maravilha e
amarelo, cor das primaveras no continente africano.
Os vasos vermelhos, envelhecidos, destacam-se da parede
ocre das areias do deserto e o piso é de ladrilhos geométricos
azuis, amarelos e vermelhos, característicos dos paises
árabes. O terraço era cercado por um balcão cuja grade
remetia ao início do século XIX francês.
Nascidas na Argélia de nacionalidade francesa, ambas
estudaram no mesmo colégio de freiras e juntas terminaram
a faculdade de letras em Paris. Astrid acabara de conseguir
o seu diploma quando casou-se com um diplomata francês.
Cansada do diplomata e da França, conheceu um médico
inglês e mudou-se para a Inglaterra. De natureza inquieta e,
sedenta pelas novidades da revolução dos estudantes em
1968 em Paris, formou-se doutora em Filosofia, com vários
livros publicados e bem aplaudidos.
Dora cai repentinamente em si: “como ela fora ambiciosa, ao
contrário de mim”. Ela completara seus estudos, suficientes
para dar aulas em escolas e casar com Tomas, um talentoso
e requisitado marceneiro. Ao entrar no terraço ficou aliviada.
Era vivo, respirava natureza e disso Dora entendia.
Astrid rejeita o braço da enfermeira e pede o braço da amiga.
A passo de tartaruga dirige-se para a coleção de orquídeas,
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mas nada expressa. A angústia de Dora retorna. No dia
anterior haviam tomado chá e bolo como se nada houvesse
mudado. Hoje, Astrid estava imersa em um mundo envolvido
de brumas.
- “Será que ela sabe que está perdendo o juízo”?
Tentou ainda encontrar um ponto de contato, mas em vão.
Silenciosamente agradeceu a Deus por ter o privilegio de
ver orquídeas tão lindas! Deixou a amiga aos cuidados da
enfermeira, deu-lhe um beijo na testa e saiu. No carro, um
som estridente doía ainda: “Meus chinelos”! “Meus chinelos”!
Capítulo 2
A cada nova visita, sentada na poltrona florida, de tamanho
desproporcional às suas medidas avantajadas, as reflexões
de Dora transformavam-se em novos espaços vazios pedindo
por explicações. Ultimamente, uma delas , a mais insistente,
era sobre Deus, única resposta para aceitar porque sofria
tanto com o estado de demência da inseparável amiga. Do
fundo da memória desprendeu-se uma frase:
“ Se Deus é bom por que nos faz sofrer tanto?” dúvida já
expressa por Dostoievsky.
Astrid não seguia uma crença e negava todas enquanto
Dora, com fé, obedecia aos rituais e preceitos bíblicos. Os
pais da amiga eram russos, fugitivos da revolução de 1918,
ambos intelectuais. Filha única, falava perfeitamente o
russo, gostava de vodka e dançar à exaustão. Os pais de
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Dora emigraram da França para a Argélia atraídos pelo clima
ameno e as oportunidades oferecidas pelo governo francês.
O pai, gerente de contabilidade e a mãe cuidadora da família.
Enquanto Astrid crescia num lar liberto de convenções, Dora
crescia num lar recluso e silencioso. Astrid seguiu a carreira
acadêmica e Dora o magistério.
Os assuntos que Astrid discutia não eram os dela, mas o
prazer de ouvi-los era o mesmo que esquecer-se dos seus.
Capítulo 3
Hoje, Dora trouxe biscoitos com a intenção de reparti-los,
mas percebeu que não haveria conversa. Novamente sentada
na poltrona florida, imersa nas profundezas contraditórias da
dúvida, sobressaltou-a um pedido de perdão!
“Por que isso de repente”? Uma vaga sensação de dúvida
sobre a misericórdia de Deus instilava-se em seu espirito.
Precisava sair do quarto. Sem despedir-se, exaurida e
impotente perante tão grandes mistérios, dirigiu a caminho
de casa. Como um corte de lâmina afiado
perpassou fugitivo: “Não vou entender o mundo sem ela!
Astrid saberia explicar porque destas sensações. Ela sempre
sabia tudo”!
Decidiu encontrar as cartas escritas por Astrid para ela.
–“Lá talvez descubra alguma pista que me leve a entender
porque éramos tão amigas se tão diferentes uma da outra.”
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Capítulo 4
Lá fora, a primeira neve, por ser incipiente, colore de branco
os ainda galhos marrons. Alguns montinhos de neve, depois
de um tempo, caem para derreter-se em poças de água
gelada. A meteorologia prevê mais frio e nevoa intensa para o
final de semana.
Hoje, ao entrar no quarto superaquecido de Astrid,
encontrou-a sentada na “sua” poltrona florida, mais parecida
com um botão de rosa como o roupão que usava, da mesma
cor. Seus olhos de azul profundo brilhavam, uma xícara de
chá vazia na mesinha ao lado e os biscoitos que trouxera no
dia anterior no prato onde já faltavam alguns.
Astrid cumprimentou-a com um aceno de mão e lhe disse
que fazia tempo que não a via. Dora entendeu que ela a havia
convidado a sentar-se e oferecia chá e biscoitos. Dora não
contou que lá esteve todos os dias.
Forçou um sorriso pálido e respondeu que estivera ocupada
com o trabalho, a família, a casa. Só hoje conseguiu dar uma
escapada para visitá-la e que sim, aceitava chá e biscoitos.
“Que assunto abordar”? O resguardo para tal situação a
incomodava e decidiu informa-la sobre a meteorologia: do frio
esperado, da neve e vento. Levantou-se para verificar se ela
estava bem agasalhada, mostrou-lhe as galochas coloridas e
perguntou se não queria um par para ir passear no parque um
dia desses, que viria buscá-la, poderiam tomar um chocolate
quente e voltar. Com seu costumeiro sorriso maroto,
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confirmou o passeio. Para manter a conversa viva, Dora
perguntou se ela estava lendo e se gostaria que lhe trouxesse
o livro mais vendido do momento. Astrid aceitou a sugestão.
Aliviada, Dora encontrou o assunto que procurava. Começou
a contar a história. Astrid a ouvia atentamente indicando que
apreciava o conteúdo romântico de um homem e uma mulher,
cujo homem se apaixona por outra em um aeroporto. Viajam
para o mesmo lugar e fazem amor num quarto de hotel. A
história se passava nos Estados Unidos na época da guerra
do Vietnã. No final, ele volta para a primeira mulher, mas nada
mais dá certo na sua vida.
Dora não pôde continuar: a amiga cochilava! Tocou levemente
no seu braço, ela abriu os olhos e indagou se ela gostaria que
continuasse. Frente à sua impassibilidade, comeu o resto dos
biscoitos e lhe falou ao ouvido que terminaria a história outro
dia.
A caminho de casa, parou num bar.
-“ Há dias não me sinto tão bem”! Olhou pela janela e viu
um passarinho dando de comer para os seus filhotes e seu
pensamento voltou-se para a sua família.
O olhar de Dora continuou fixo no ninho de passarinho e
o café esfriou. Sentia alegria junto à família e seu lar. Ela
gostava de viver.
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Capítulo 5
Hoje Dora decidiu conversar com Lester e não subiu as
escadas para o quarto de Astrid. Encontrou-o na frente
de um copo de wisky que tomava em pequenos goles. As
cortinas listradas semicerradas, o sofá de veludo envelhecido
sobre um tapete “rapê, poltronas cobertas com tecido
de flores, móveis antigos sobre os quais se empilhavam
livros negligenciados, montes de papéis escritos e sobre
outros, mais livros entre máscaras africanas. Nas paredes,
reproduções de orquídeas e quadros de paisagens bucólicas.
Num canto, o busto em mármore de Sócrates circundado por
uma poltrona de leitura fortemente iluminada. O conjunto era
íntimo, confortável e cheirava a tabaco queimado.
Lester, era o simpático segundo marido de Astrid. Um inglês
de paletó xadrez e cachimbo eternamente apagado entre os
lábios, professor de Medicina aposentado.
A grande tristeza de Astrid foi a de não ter tido filhos. Dizia
ser feliz ao conviver com os filhos do marido e seus netos.
Dora observou que as plantas que ornavam as mesas
laterais da sala haviam sumido, ausente o antigo ar de sala
cuidada. Hoje era uma sala que abrigava um senhor de idade,
inconformado, sem saber o que fazer da sua vida de marido
de esposa ausente.
Dora pensou em falar de Astrid, mas, calmamente, predispôs-
se a ouvir. Lester lamentou a ausência dos filhos e amigos.
- Como recebê-los sem Astrid? A vida fugiu desta casa!
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Quanto tempo mais tudo isso vai durar? Dora sentiu um pesar
cortês e não respondeu. Sabiam que poderiam ser anos. Dora
arrepiou-se. “E se ele morrer antes dela”?
A noite caiu e a sala tornou-se tenebrosa.
Prometendo-se a fazer companhia a seu velho amigo,
suspirou e saiu, desta vez sentindo-se útil e participante
da doença de Astrid sem antes concluir que Lester está
necessitado de cuidados afetivos.
Dora ainda tinha um longo caminho a percorrer até chegar
em casa, a neblina começara a baixar, o jantar para a família
ainda por fazer.
Capítulo 6
No final de semana, Dora decidiu não sair de casa. Por uma
vez a informação meteorológica havia acertado: o tempo
piorou e, aproveitando a desculpa, permitiu-se voltar à sua
cozinha aos potes e cozidos, aos filhos, à horta e jardim e de
vez em quando espiar o marido assistindo ao jogo de golfe na
TV.
No domingo, antes de escurecer, desceu até o depósito à
procura das cartas. Não as achou e teve preguiça de procurá-
las. Lá embaixo fazia frio.
Percebeu-se inquieta.
- Amanhã volto para visitar Astrid, disse ao marido que
respondeu não ser razoável ir lá todos os dias. Retrucou que
era uma missão e pedia a Deus que a ajudasse a cumpri-la.
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O que não disse era que lá podia silenciosamente pensar
sobre si. Não julgou este sentimento nem ser uma traição ao
marido, à amiga ou a Deus para quem rezava todos os dias.
“Por que tantas indagações?” pensou com seus botões,
sentindo uma dor de cabeça crescente: “Amanhã sentarei na
“minha” poltrona e pensarei sobre isso”!
Foi dormir e dormiu bem!
Capítulo 7
O dia na casa de Dora começava cedo. A manhã prometia ser
ensolarada. Ao servir o café para a sua família, em mais uma
segunda feira normal, havia esquecido o assunto da noite
anterior; iniciou a viagem até a casa de Lester sem antes
passar no tintureiro e açougue.
Tinha a vaga sensação de ter esquecido alguma coisa.
Recuperou a dor de cabeça da véspera. Ela voltava sempre
que pensava em algo sem conseguir concluir. A casa dos
seus amigos estava com as cortinas da sala cerradas. A
empregada, de branco e preto, veio abrir a porta e Dora
imediatamente perguntou se algo havia acontecido.
- Não, não, Dra Astrid quis descer para fazer companhia ao
Doutor e pediu que eu preparasse o almoço para ambos. A
senhora fica?
- Mas porque as cortinas cerradas?
-Ah sim, a doutora não gosta de luz.
“Que tragédia, pensou baixinho: ela que amava a
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luminosidade pede para não ofuscá-la.”
- Sim, sim, gostaria muito de ficar para o almoço. Obrigada!”
Abriu cautelosamente a porta envidraçada do salão e ouviu
um grito de alegria ecoar até ela.
- “Quuuuuuerida! Há quanto tempo! Você me confina a esta
sala e à companhia deste amável senhor.”
“Meu Deus, exclamou Dora para si. Ela não reconhece o
marido ou, está ironizando o momento, sua especialidade.”
- Ele decidiu me convidar para almoçar, olhando
sedutoramente para Lester. Você me acompanha?
Dora fez um sinal afirmativo com o polegar. Nada importa
neste momento decidiu e, alegremente, sentou-se.
-Astrid, você está bem?
- Quem, eu? Por que a pergunta?
Embaraçada, Dora não soube responder de pronto.
- Todo mundo me olha de um jeito como se eu não estivesse
bem. Cochichando ao ouvido de Dora e, apontando o dedo
para Lester perguntou:
- ele também acha? Tem uma pessoa que fica comigo no
quarto, emendou, o tempo todo olhando para mim com o
mesmo olhar apreensivo do seu agora. Detesto que me olhem
com aquiescência como se eu estivesse louca. Detesto que
me peguem no braço como se eu fosse uma criança prestes
a rolar escada a baixo.
Provocativa, perguntou à amiga se também ela a considerava
doente. Jamais Dora ousaria lhe dizer que estava com
Alzeimer. Uma profunda tristeza vazia, a da perda, a alcançou.
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Retomou o monólogo falando sobre o final de semana,
programas de TV, escola dos filhos. Ela sentia-se bem por
estar ali, simplesmente presente, “ouvindo” o diálogo mudo
entre dois doentes. Um por solidão, outro por demência
progressiva.
Capítulo 8
Dora voltou no dia seguinte. Astrid estava no seu terraço
mexendo na terra, com suas grossas luvas, um chapéu de
abas e vestida com jeans e uma camiseta branca. Imortalizou
aquele momento.
“Ela está tão bem, ontem também, será que se enganaram
quanto ao diagnóstico?”
A enfermeira não estava por perto. Pairava a paz e nada havia
aparentemente mudado. Uma armadilha para quem, como
Dora, só sabia viver os fatos e a realidade.
- Astrid, começou Dora, dando-lhe um abraço próximo do
coração.
- Dora que bom que você veio, interrompeu Astrid.
“Eu sei que o meu diagnóstico é Alzeimer. Antes que tudo
se apague, você me daria meu anel de volta? Você gostava
do meu e eu do seu. Trocamos e dissemos que o anel
representava a nossa aliança. Preciso dele. Quando esfregá-lo
no meu dedo saberei que ainda estou por aqui. Entende?
Dora não pode impedir uma lágrima. Não sabia se estava
ofendida, se dolorosamente triste, ou claramente ciente que
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sua amiga estava partindo de perto dela.
- Claro, Astrid, o seu está em casa. Ontem amassei pão e o
tirei.
Abraçaram-se longamente e Dora chorou.
Saiu dali, sem fugir, mas com a certeza que tinha que ir
embora.
O anel simbolizava a amizade de jovens, os laços ligados por
uma vida pela frente. Ao romper o antigo contrato, ambas
haviam assumido os seus destinos. Ela, ao aceitar a troca,
rompeu um laço de dependência. No carro, olhou a sua lista
de supermercado e decidiu fazê-lo.
Capítulo 9
Dora não visitou a amiga por uns dias. Queria encontrar as
cartas e embrulhar o anel como um presente. Amarraria um
laço dourado. As cartas guardaria para sempre.
Cuidou de suas rosas e temperos. Pensou em seu marido e o
tempo que o deixou só, voltada para si, introspectiva.
Passou a tarde procurando as cartas. Fora a fiel depositária
dos sonhos, das ambições e angústias de sua amiga.
Encontrou-as na mesma caixa que continha o sapato que
compusera o seu primeiro vestido longo de formatura.
Sabia que Astrid a amava.
Voltando cuidadosamente as cartas lidas ao túmulo do
esquecimento, Dora repousou sua angústia no ordenamento
das coisas da vida.
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A cada final do dia sentava-se para tomar uma xícara de chá
quente.
Sua vida nada comparável à vida glamorosa da sua amiga,
resumia-se à cuidar de gente, bichos e plantas. Ao cuidar,
amava.
Capítulo 10
Hoje foi visitá-la. Encontrou, empalidecido, Lester que a
chamou com voz agoniada. Contou-lhe uma procissão
de dificuldades no trato com esposa, problemas a serem
resolvidos e, por fim, uma história de horror.
O médico lhe disse que o diagnóstico para Astrid não era
Alzeimer. Que, apesar dos sintomas parecidos, sua doença
foi causada por uma bactéria que se alojara no cérebro e o
destruía devastando a pessoa. Chama-se Jakob Creutzfeldt.
explica Lester.
“ Quer dizer que Astrid até na sua morte ficou ligada ao
especial, ao diferente. “
“Tenho que amparar Lester! Como?” Abraçou-o, deu-lhe uma
bebida forte.
Não lhe ocorreu nada a não ser calar-se e deixar destilar a
crua verdade para dentro do coração deles. “O médico me
garantiu que ela não sofre e não sofrerá pois terá a cada dia
menos memória. Ela vai nos deixar logo”!
“Quanto antes, melhor!” pensou Dora para logo em seguida
rechaçar a culpa por tal desejo.
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Não subiu para ver Astrid. No lugar, ficou bastante tempo
junto ao seu amigo, sentados no escritório submersos na
meia luz, o ambiente exalando cheiro de tabaco.
Ao fechar a porta atrás de si, a caminho da calçada, seu único
pensamento era dar uma parada no bar tomar um café com
bolo e observar se os passarinhos haviam feito seu ninho
para gestar novos filhotes. Voltou a pensar na misericórdia
de Deus que, se por um lado levava, de outro trazia a eterna
continuidade da vida. Os ovos estavam lá.
“Qual seria o pensamento de Astrid se a realidade fosse
inversa: ela morrendo?” Não soube responder.
Lágrimas de saudades molharam o guardanapo e com um
estranho alívio percebeu que não havia nada para indagar ou
entender. A morte não pede razão nem se desfoca perante a
dor.
Decidiu nunca mais duvidar da existência de Deus! Além
Dele, as estações do ano a guiavam neste seu périplo de
autoconhecimento. Vivia um momento de reflexão intensa e
transformação fervorosa.
Em casa relatou à família, em poucas palavras, o futuro de
sua amiga. Sentia-se bem em contar como passara a tarde
daquele dia.
Capítulo 11
Dora deixou de visitar a doente na hora da sua sesta. Hoje ela
esforçou-se para almoçar com Astrid e percebeu o quanto
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a mal já avançara. Ela segurava o garfo e brincava com a
comida. Esparramava-a no prato, voltava a juntá-la e assim
sucessivamente até que a enfermeira deu-lhe de comer na
boca. Pareceu à Dora que Astrid a havia reconhecido ao lhe
perguntar se lembrava das cores do deserto mas, percebeu
que ela não a ouvira e Dora respondeu para ninguém: - são as
cores que você escolheu para as paredes do seu jardim!
A enfermeira lhe confirmou que a doença havia afetado sua
audição.
Astrid levantou, com dificuldade, uma bengala na mão. Os
olhos embasados pelas lágrimas, Dora entendeu, naquele
momento, o que as separava.
Astrid não acreditava em destino, religião e Deus. Para ela,
nem a vida nem a morte faziam sentido! Nem o amor nem
a alegria. Acreditava no pensamento e razão. Na lógica e na
ciência. Ela, ao contrário amassava pão, seu marido gostava
de assistir futebol e os filhos, faziam bagunça: “Estou viva!
Estou deixando os domínios de Astrid.” Exclamou para si em
pensamento.
Ajudou a amiga a deitar-se na cama, leve como os
passarinhos fazendo o seu ninho, sentou na “sua” poltrona
florida e, vazia de qualquer reflexão preenchida com o
sentimento de liberdade, ficou até o sol desaparecer detrás
da grade do terraço levando as cores do deserto e da suas
infâncias. Por tempo sem medida, ficou olhando para aquela
criatura inerte, perdida em algum lugar desconhecidos para
os viventes. Ao sair, pairava a escuridão que desce quando
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não há vida impregnada nas paredes, portas e janelas de uma
casa. Era noite fechada quando chegou em sua casa.
Capítulo 12
Dora agradecia – escondida de Deus - o destino de Astrid.
Este lhe ofereceu a oportunidade de refletir a vida além da
cerca de sua pequena horta. Tinha certeza de que Conviviria
em paz com o mundo celeste e o mundo dos homens criando
para si um único universo, indivisível, sobre o qual reinava
Alguém que tudo comandava.
Seguia sua promessa de visitar Lester. A realidade prostrada
à sua vista, o havia tirado do torpor. As cortinas foram
abertas. As cores voltaram para o terraço. Havia flores no
vaso, a receita de biscoito de Astrid voltou a ser servida.
Entre o terminar da primavera e o outono, Astrid deixou de
falar, perdeu o controle de seus sentidos e movimentos, não
se alimentava. O seu fim, uma só agonia.
Um dia, as folhas amareladas já caídas no chão da entrada
da casa , seus olhos azuis pousaram sobre Dora que sentiu
um calafrio de corpo inteiro. Ela teve a sensação que eles
ainda a viam mas durou um piscar de olhos. Sem aviso, o
corpo de Astrid descontrolou-se, o rosto se contorceu caindo
desfalecida.
Uma injeção em seu braço fino como um graveto, prostrou-a.
Num relance absurdo, Dora lembrou da história de João e
Maria, João estendendo o osso de galinha para a malvada
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bruxa através das grades.
“Qual seria a prisão de Astrid”? Indagou-se.
Em frente ao seu café, no bar, olhou pela janela para averiguar
se os passarinhos ainda usavam o mesmo galho para
criar a sua “família”. Procurou, saiu para ver melhor, voltou
conformada que não estavam mais ali.
“Ou acharam um galho mais seguro ou morreram de frio e
fome.”
Nesta noite, Dora não preparou o jantar para a família. No
quarto chorou muito.
Capítulo 13
Dias depois , o telefone tocou e Astrid havia falecido. Dora
rezou. Subiu no seu carro mini couper verde, foi até a casa de
Lester. Chovia. A chuva chorava por ela. Na volta, não parou
no bar para tomar café e comer bolo.
c bettina lenci, dez 2018
Todos os direitos reservados.
Proibida a reprodução total ou parcial
projeto gráfico Ciro Girard
revisão Áurea Rampazzo
Bettina Lenci, nascida em 1945,
realizou-se tendo como
início profissional a história
da arte e a fotografia.
É uma empresária que descobriu
que lendo e escrevendo é possível
criar um mundo com um olhar
agudo sobre o cotidiano de todos nós.
Escreve regularmente
no seu blog Legado Vivo, onde se
encontram disponíveis esse e outros
livros de sua autoria.