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Cristina Ataíde
Exposição na Galeria Universidade
Casa-Museu Nogueira da Silva — Novembro 1996
I. Os fios
A extensão dos fios segue a direcção dos tempos perdidos. As vozes e os
olhares no espaço escoam-se nos círculos irregulares que se enredam;
como se os cabos pudessem enrolar-se a si mesmos, os grandes rolos
ocupando as periferias e o interior da cidade, desordenadamente.
Deslocam-se como serpentes, obedecem a leis insondáveis, rastejam,
navegam: são lixo, poluem ou gozam privilégios.
II. Os tempos
A objectualidade humana (inconclusiva) integra a memória das matérias e
as remanescências ínfimas de cada um; no todo, em unidade, viajando no
presente-actual e nos tempos dos antepassados. Os tempos trazem as
contradições, os novelos de cabos e as ideias que circunscrevem a
autorização do futuro. O passado responde como impulsionador e travão
do tempo mítico — aquele que subjuga a realidade cronológica. Devaneio,
efabulação ou misticismo, os três tempos simples, articulando-se em
relações combinatórias, subvertem a vida: confundem-na.
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III. Os círculos
A circularidade dos fios envolve-se em tempos, desenrolando as
conversas, as imagens e os sons das pessoas longínquas. Implica seres que
não existem, cujas vozes subsumam frases incompreensíveis; não tem
diâmetro certo; o seu diâmetro estende-se para além dos limites
previsíveis. O fluxo dos fios constitui formas estreitas que engordam com
o tempo de sobreposição, dobra e acontecimento. Sublimidade ou
minimalização, acertam-se em discursos ambíguos sobre a circularidade
dos corpos voltados sobre si. Os cinzentos derretem-se nos tempos.
IV. Os movimentos:
As imagens nos papéis gerem a sua autonomia, são de um lado e do outro.
Transparecem e não se deixam ocupar por outras formas. Os desenhos
recebem as suposições que o quotidiano obriga a limitar, condicionando-os
sem salvaguarda. Sabem o seu espaço, constituem os seus movimentos,
desenham-se de uns até aos outros e voltam a si. Depois descem do papel e
enredam-se no meio dos fios e dos rolos, no tempo. No dia em que os
desenhos se deixaram captar, os movimentos inverteram as posições e as
paredes da sala foram directamente queixar-se nos espaços certos para
saber que podia ser assim.
V. As imagens
Quase que sem duvidar, as definições do espaço comprometeram-se com a
singularidade dos percursos. Agora, só ficava a possibilidade de realizar os
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desenhos do tempo, pelos movimentos sinuosos, regulares ou imediatos:
não convinha olhar, senão os fios davam meia-volta e tornavam a rodar.
Enlaçavam-se muito certinhos para fugirem, porque afinal não seriam
precisos. Enfim, ficavam talvez as imagens — consecutivas ou
hipnagógicas —, porque isto de fios e tempo é suspeito; suspeito de existir
facilmente, mas a poder-ser em muitos sítios. Bastava ser ideia, descoberta
e tempestade sem fio.
VI. Os corpos
As histórias dos cabos, fios ou semelhantes imagens, tão diferentes e
colocadas, só acontecem se os corpos não duvidarem. É bem claro que os
corpos não se têm de mostrar. Não seria necessário, tornar-se-iam
redundância deselegante, porque eles já lá estavam! Sofreguidão e
domínio da vontade, eis que o tempo passa: o testemunho dos cinzentos
brilhando oleoso em plástico. A luz sobre eles desenha os contornos
fantasmáticos dos corpos. Ausência de corpos é sinónimo de
remitologização — terreno ou território — para relembrar as imagens das
pessoas que tocaram, acariciaram ou rasgaram com a navalha, o fio porque
ele precisava de caber ali. Os fios têm de ser à medida, para darem cabo
das inutilidades, então resolvem mudar de existência — afinal, querem ser,
pois usam a qualidade de serem belos, ou forças, ou energias.
Fátima Lambert
15 Outubro 1996