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Do Antropologia Interpretativo à Antropologio Critico 1

MICHAEL M. J. FISCHER

As antropologias criativas surgem em conjunturas historicas e em contextos nacionais especificos. Como se rem notado muitas vezes, DaO é por acaso que, por exemplo, a teorizaçao soctal na França (ou na Inglaterra do século dezenove) tem sida mais uni­versalista do que na Alemanha (ou na antropologia social britâ­niea clâssica). A teona social alemâ do sécuIo passado e DO inicia deste estava mais sinton izada corn particularidades histOricas (da i estabelecendo as bases que permitiram explorar a noçao de culturas no plural) . No Terceira Mundo, por razôes semelhantes às da Ale­manha, 0 pensamento social tem sida muitas Vf'zes historicista e dialético, situando-se rtiante de um Outra poderoso (Primeiro Mundo, imperialismo, dependénCia, etc.>. No entanto, esse con­texto nao signifiea, necessariamente, que nâo tenham surgida outres !)rablemas, mais internas e tâo contundentes para 0 . desenvolvi­mento de novas antrapologias.2

l E.<;te texto foi apresentado nos "Seminârias de Antropologia" . no.':i âias 16 e 23 de junbo de 1982, no Departamento de Ciéncias Socials, Unlversidade de Brasiila, durante a permanéncia do autor coma Pro­fessor Visitante financiado pela O:lmissâo Fulbright.

2 A discussao sobre a pensamento social no Terceira Munda (e. prin­cipalmente, os marxismos do Terceira Munda) foi exposta de modo envolvente }Xlr Abdullah Laroui , 1976. Consideremos, porém. as forças relativas das antropologias descnvolVidas na fndia, em Israel e no J apâo. Sobre 0 Brasil (Alemanha e Prança) vide Mariza G. S. Pei ­rano, 1981. Uma boa introduçâo à sociologia. intclectual da. Alemanl!u é a de Fritz Ringer, 1969. Sobre a contraste entre os estIbs [rallces e alemâo de pensamento social, vide, por exemplo, Norbert Elias, 1978. Sobre as origens do pen'iamento social nos Estados Urudos, \'icl ~ , pr1nclpal.mente, C. W. Mills, 1964. Ernst Becker, 1971; e Thomas Haskell , 1977.

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Pediram-me que ïalasse sobre 0 estilo de investigaçao antro­polagien nos Estaàos Unidos a que se tem chamado de "antropolo­gia interpretativa",:: principalmente, sobre 0 papel de Clifford Geertz e, em terceiro lugar, sobre como eu situa 0 meu proprio trabalho corn relaçao a esse estilo antropo16gico. "Antropologia in­terpretativa" é um rétula reeente (e talvez uma tendência subs­tantiva ) que corresponde a uma iniciativa aparentemente cristali­zad a na Universidade de Chicago nos an os 60 sob a liderança de David M. Schneider e Clifford Gcertz, mas que interessou ativa ­mente quase tado corpo docente.< Na época, tendia-se a chamar essa iniciativa de varias maneiras : antropologia "cultural" (em opo­siçào a <!social"), ou antropnlogi a Hs imbélica".:J

Simb6lica, cultural, interpretativa, todas pssas denominaçôes se reportam ao debate do século dezenove na Alemanha sobre 0 papel da Verstehen (compreensao) na metodologia das ciências sociais. A questao inicial era a jà eterna: ha, em principio, uma diferença entre os métodos das ciências naturais e os das ciênClftS humanas ou sociais? Fazia-se 0 esforço de combinar, através da noçao de Verstehen, as metas c:entiflcas de objetlvidade cern 0 reconheci­ment<> de que, pelo fata de os ho mens refletirem soore 0 que fazem (e agirem de acordo corn essas reflexoes), é dificil trata-Ios me­ramente como objetos. (0 fato de que existem padroes de compor­tamento CIle nao sac totalmente conscientes pode ser acomodado dentro desta formulaçao). Pode-se escolher à vontade os ances­trais relevantes no seio dessa perspectiva: Dilthey para quem é fHésofo das ciências sociais; Max Vi.Teber, para quem é soci610,go ou

3 Clifford Geertz lntitlÙOU sua. coleçâ'J de ensaios de 1973 "The Inter­pretation of Cultures" (traduçao portuguesa pela Zahar, 1978); Roy Wagner intitulou um texto introdm6rio corn algo semelhante, I nven­tion of Culture; P.U mesmo usei " Interpretive Anthropology" coma tituh de um artit::o-n.'s€nha em 1977 (Reviews in Anthropology) e ha agora uma coletâÏlea chamada I ntegration Social Science. A R eader, organizada por Paul Rabinow e '''illiam M. Sullivan.

4. Melford Splro, I..Joyd F allers, Nur Yalman, Ralph Nicl:.olas, Mekim Marriott, Raymond Smith, Milton Singer, Manning Nasll , Raymond Fogelson, Paul Friedrich, mais tarde Victor Turner e Terence Turner e, mais tarde ainda, Stanley J. Tambiah e Michael Silverstein e, alual­mente, Marshall Sahlins.

{j 0 principal curso para os e-3tudant.es de p6s-graduaçao, p'Jr exemplo, estava dividido (um periodo letivo cada) , segundo 0 esquema parso­mano, em "sistemas culturais", "sistemas sociais " e "sistemas psico-16gicos". David Schneider intitulou &eu livro de 1968 American Kinship:

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A Cultural Accoun t. Em Princeton foi criado um departamento menor composta de professores advindos de Chicago, Que se chamou Depar­tamento de Antropologia Shnb6lica. e que financiou uma série de monografias em antrop'Jlogia simb6llca. Mais tarde. David Schneider, Janet Dolgin e David Kemnitzcl' organizaram uma coletânea.

antrop610go; Karl Marx, para quem é marxista, Wilhelm Wundt, para quem é psicologo. Mas em todos os casos 0 problema geral . era de como captar de maneira objetiva os elementos inteleciùais motivadores e culturais que influenciam a açao social. A respost~ geral era conceber os homens camo agindo dentro de "mundos intersubjetivos socialmente constttuidos". Até melimo as experiên­cias subjetlvas sac amplamente mediadas pela llnguagem, pela par­ticipaçao social (as reaçôes dos outras) e par simbolos culturais. TaI P..lediaçao pOde dar-se em varios niveis: intençoes conscientes no nivel intelectual (ao quaI os f1l6sofos tendem a limitar-se) ' e também no inconsciente (camo Freud nos fez perceber) e ..aqueles esquemas dados socialmente a que cnamamos cultura. Na medida em que a comunlcaçiio entre , lndlvidilOS é compreendida (soore cujos significados existe acordo) ela é publlca, oojetlva e, pelo menas teoricamente, passivel de analise. Uma tal formulaçâo da · cultura e da teia de comurucaçao na quaI vivem os individuos apre­senta três implicaçfies imediatas : primeiro, afasta-se de todas as filosofias sociais enraizadas nas experiênclas do ego (por exemplo, o "cogita ergo sum" de Descartes), forçando a um métado empi­rlco e comparativo; segundo, afasta-se de teodas ,genétlcas da 80-ciedade que começanam corn as necessldades e desejos ·lndivlduals (Ista é, teonas biologicamente reduclonlstas , e nao lntrospectlvas) - os individuos sempre nascem em sociedade; terceiro, e mais importante para 0 meu obj etivo, a visiio de cultura como padroes de comunicaçao relatlvamente crlstalizados torna a noçao de cul­tu ra altarr.ente dinâmlca. Os lndlviduos mantêm d1ferentes posi­ç6es na sociedade, diferentes percepçoes, interesses, papéis e de suas negociaç6es e conflitos surge UID universo social plural no quaI podern cûexisUr e compeUr mult<>s pontas de vista opostas.

Este modo geral de formular a tarefa e 0 objeto das ciê:i.1cias sociai.s pocte ser remontado de varias maneiras a Vico no século dezesseis, ou aos rewricos dos tempos clâssicos,(l coma Hans-Georg Gadamer demonstra convincentemente. A contribuiçao critica dos séculos dezenove e l'lute tem .sido operacionalizar a abOrdagem geral e torna-Ia empirica. Podemos fazer dois Upos de observaçôes sobre essas contribuiçôes: uro·a, sobre os refinamentos da formula­çao metadol6gica; a outra, sobre seu contexta Ideol6glco ou hls­torieo.

G Hans-Georg Gadamer, Truth and Method. lt uma excelente intro­duçao e exploraçao dos problemas Que multo suscintamente resw:ni nos parâgrafos precedentes.

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Tomemos primeiro 0 metodologico e permitam-me selecionar quatro vultos que possam representar algumas das contribuiçôes basicas da antropologia para a operacionallzaçâo empirica. podemos começar cam Malinowski, nâo apenas par seu lema e insistência na busc a do "ponto de vista nativo", mas, mais importante e especifica­mente, por sua insistência nos textos nativos corn comentarios de t.rés ordens: traduçôes palavra-por-palavra, traduçôes livres cap­tan do 0 sentido e, depais, de maiar import3.ncia, comentarios in­cluindo gramâtica, redes semântlcas, alusôes culturais, etc, Uma outra figura, recenternente redescoberta e reabilitada no "salâo da fama" antropologico, é a francés Maurice Leenhardt, por sua ten­tativa de ultrapassar Malinowski, envolvendo os nativos em proce­dimentos de verificaçôes mùltiplas, discussao e elaboraçao de textos e descriç6es registra dos no trabalho etnografico. Ha du as raz6es para essa colaboraçâo corn os nativos: primelro, claro, para aumentar 0 potencial de abrangência e f1dedignidade etnogrà!icas; mas, segundo, para estabelecer um diâ.logo corn os nativos e estimula-los a re­fletir sobre a sua propria cultura, sistematizar, talvez introduzlr mudanças, alcançar uma mator consciência critica para eles e para o etn6grafo e seus leitores. Um tereelro eontrlbuinte de Importâneia metodol6glea foi Clifford Geertz nos anos 60. Geettz deu um passo eoneeitual para além da metodologia de Max We!5er. Este, ao ela­bol'ar sua noçao de Verstehen, disse que, natural~ente, queremos saber as motivaçôes e as intençôes dos agentes sociais cujo com­portamento desejamos descrever e expl1car, mas que a tarefa de entrar nas eabeças dos outros nao é metodologieamente pràtiea, senao mesmo impossivel. No entanto, 0 comportamento é suficien­temente regular para permitlr que um procedlmento preeàrio, de emergência, nos permita trabalhar, ou seja, a construçâo de mo­delos "coma se" aa "tipos ideais" Laseados no desempenho subjetivo do analista (Nacherleben) ou reeonstruçao (Naehbilden) de motl­vaçôes tipicas, aj ustadas a estruturas institucionais que reforçam tais motlvaçôes. (Assim, a anâlise de Weber sobre a Étiea Protes­tante ajustada a um estrato social especifico de uma conjuntura historica especifica, ou sua discussâo semelhante do tipo de per­sonalidade que tende a ser selecionada nas camadas mais baixas de uma burocracia). A. SChutz, aluno de Weber, lido par Geertz e depo:s por todos os alunos de pos-graduaçao de Chicago em meados da dceada de 60, tentou elaborar mail; detalhadamente a metodo­Jogia de Weber na eonstruçao de tipos ideais. Em importante tra­balho de 1966 sobre "Pessoa, Tempo e Conduta em Bali", Geertz .. 58

l mostrou os perigos de se confiar num procedimento introspectivo e reforçou a insistência antropologica de que a teoria social deve-se basear em etnografia empirica. Neste e em outras trabalhos pos­teriores Geertz demonstrou para os antrop610gos (Gadamer 0 faz de modo mais geral e sistemâtico) que a compreensao (Verstehen l nao esta. baseada na empatia ou em outras introspecçôes psicologicas, mas sim num processo de justaposiçao, de esquemas de referência nativas corn aqueles do analista, 0 que é, também, um processo de comunicaçao, Esta concepçâo da tarefa etnogrâfica (e antropolo­gica) chama a atençâo para expressôes idiomâticas, meios, modos, u::os fig-urativos e canais de comunicaçao, E, realmente, a década de 60 foi a épaca em que os antrop6logos buscaram ajuda e ins­piraçâo na Lingüistica.

Um ultimo vulto que poderia ser incluido, pOl' sua contribuiçào, de uma outra maneira, à ooeral!ionalizaçâo da Verstehen, é Ciaude Lévi-Strauss e as técnicas (mas nao a metafisica) do estruturalismo. Talvez inicialmente 0 estruturalismo tivesse sido pensado para tratar, especificamente, de restas fragmentarios de sistemas culturais: os indicios de que tala Lévi-Strauss de modo tao comovente em Tristes Tropicos, onde nao ha histOria nem outra maneira de compor um· sentido do todo. Naturalmente, 0 estruturalismo também se ajusta especialmente bem a "sociedades frias", onde se tenta reproduzir 0

sistema cultural e negar mudança. Quanta à sua aplicaçao a socie­dades mais quentes, 0 prôprio Lévi-Strauss deixou a questao em aberto. É verdade que ha processos frios em sociedades quentes, processos mîticos onde a alfabetizaçao jâ se desenvolveu. De fato, o meu estruturaUsta favorito no momento é Marcel D_etienne que trata de processos miticos na cultura grega de grande tstabilidade temporal. 0 valor dessa demonstraçâo é aumentado pela fata de ter sido feita em pIe na luz de muitos classicistas (diferentemente da situaçâo na América do Sul onde somente uns poucos criticos indigenistas conseguem discutir corn autoridade plena). De Qual­quer modo, existe uma convergéncia entre 0 estruturalismo e a concepçâo de uma intersubjetividade que constitui a cultura; ê àessa maneira que entendo 0, famoso dizer de Lévi-Strauss de que pouco importa se os mitos se .pensam atra\'és de sua mente ou se sua mente pensa através dos mitas. 0 crité rio de objetividade nessas ana lises estruturalistas é dado pela redundi ncia,

Permitam-se resumir essas cont ribuiçoes metodolôgicas : a preo­cupaçâo de Malinowski corn a forma e conteudo reais da compre­ensâo nativa, a de Maurice Leenhardt corn 0 esforço de colabora-

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çao. 0 despertar mutuo de consciência critica entre nativo e etno­grata e 0 acesso duplo ao produto da etnografia, a demonstraçao de Geertz (e de Gadamer ) de que na compreensao/etnografia a questâo é processo de comunicaçâo publieR que envolve sucessivas aproximaçôes e justaposiçoes de esquemas conceituais e a captaçâo de codigos estruturais, como postula Levi~Strauss.

Quero agora passar a um comentario sobre 0 contexto ideolo~ gico em que se deu a iniciativa chamada antropologia simbOlica e Interpretativa nos anos 60. Quero focalizar sobre Clifford Geertz por ser, provavelmente, 0 antropologo americano contemporâneo mais lido (fora e dentro da profissao). Sua visibllidade deve-se talvez ao tata de que durante anos ele foi 0 unico cientista social do Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Porem, de maior importância. é que a sua carreira parece quase um O:l cristalizaçâo tipica ideal de certos processos dos quais os p.nos 60 surgem como se fossem uma reprise dos an os 20. Multas vezes a ciência social toma 0 carâter de duplicaçâo ou repetiçâo; ha corn freqü~ncia um retorno a uma er&. anterior em buse a de textos inspiradores; a duplicaçiio ou repetiçiio nunca é exatamente isso, pois ha sempre uma nova faceta ou uma nova soluçao. Neste senti do, a historia nao é circular, mas espiralada.

Comecemos com a justaposiçâo de três "geraçôes" de intelectuais antes da sua segunda guerra mundial Paul Ricoeur referiu-se à geraçao do fim do século dezenove como a das "escolas da suspeita": Nietzsche atacando 0 Cristianismo coma uma mentalidade escra­vocrata, Marx atacando 0 utiEtarismo e, principalmente, a econo­mia clâssica do laissez faire como uma ideologia protetor'R da bur­guesia inglesa, Weber analisando a Ética Protestante como estando socialmente localizada num determinado estrato da sociedade e po­derosa nu ma dada conjuntura historica, e Freud desvelando as neuroses sexuais coma meios de controlar e reprimir, necessarios à cultura. Todos eles introduziram a atitude modern a de nao se deixar levar pela aparência das coisas e de olhar corn suspeita os grandiosos sistemas do seculo dezenove (Hegel, Spencer, Comte). Foi também a época em que a industriallzaçâo e a urbanizaçao criaram um ambie:1te social onde se sentia cada vez mais que 0 controle e a compreensâo escapavam ao individuo. Foi a época das teorias que caracterizavam a transiçâo da sociedade de Gem .. ei nschaft para Gesellschaft , de mecânica a orgânica , de status a contrato, de Dm holismo confortavel a um individualismo alienante. A geraçao que sucedeu às escolas . da suspeita é a chamada "Geraçao de 1905"

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que amadureceu nos anos 20 e 30: Robert Musil, Ludwig WIttgenstein, Walter Benj amin, os surrealistas. Foi a geraçâo que trouxe 0 "mo-') dernismo", que via as ordens esta veis de significado Odeologias sistemas grandiosos) coma artificiais e repressivas, que temiam qU~ as ideologias, <lem ataques de desatençao", permitissem 0 acûmulo de impérios, ou que se entrasse em guerras quase que por rotina e que, portanto, se aprazia em subverter as convençoes da norma­lidade, justapondo exotismos e fragmentas de realidade a flm de desafiar as pessoas. Foi uma geraçao de ensaistas que prapunham ser possivel ter apenas insights fragmentarios da ve,tdade. ",. ""

Ha uma espécie de paralelismo corn a ' situaçao dos "Estados Unidos dE:pois da segunda guerra. Vencedores da guena nos anos 50, havia ai um otimlsmo, um sentido de poder llimitado, de nao exisUr nada que 0 conhecimento e energla apropriados nao pudessem re­solve:::-. Foi a era do romantismo, aquela tentativa grandiosa de sintese de toda ciéncia social, que termir.ou numa interminavel (embora abrangente) geraçiio de classificaçôes. Foi também .o pe­riodo da teoria da modernizaçâo: sentia-se que os problemas de desenvolvimento do mundo podiam ser resolvidos, que havia mesmo uma seqüência regular nesse desenvolvimento e um ponta de par­tida para ca da pais se lançar na auta-sustentaçiio e crescimento Independente.

Na década de 60 essa visao de sistema foi atacada. Na antro­pologia houve um reforço mûtuo de dois desenvolvimentos corn ori­gens bem diferentes. Em primeiro lugar, estava a politica dos anos 60, a reaçâo contra a guerra no Vietnam, uma poUtica" de protesta, corn elementos modernistas, anarquistas; separadamente. deu-se na Universidade de Chicago 0 desenvolvimenta do nivel cultural do esquema parsonlano que, inevitavelmente, levou à quebra da con­cepçâo algo esta tica de sistema cultural. Assim que os alun os " de Parsons e seus amigos corneçaram a levar a sério a proposta deste de que 0 sistema cultural poderla ser estudado camo um assunto analiticamente separa do, desviou~se a atençâo para os processos de comunicaçâo que compôem a " cultura e que, de maneira alguma, sao estftticos ou cristallnos como parece implicito na rubrica "sis ~ tema de simbolos". A carreira de Geertz é slntamàtica: se se lê os ensaios em Interpretaçao das Culturas em ordem cronoI6g1ca, parece haver uma mudança na conceitualizaçâo de cuItura. A prin­cipio é comparada a um programa de computador, um sislema de informaçâo que desempenha um importante pape} no processo evo­lutivo; em meados da década de 60 ternos os ensaios sobre "Religiâo

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coma Sistema Cultural", "Ideologia coma Sistema Cultural", "Arte como Sistema Cultural", "Senso Comum coma Sistema Cultural" nos quais a noçao de "sistema de simbolos" é bastante enfatizada; nos anos 70, talvez ja corn "Deep Play", mas, sem duvida, em "Descriçao Densa", tem-se uma noçao mutto mais fiexivel e indetermtnada do pro cessa cOffi.unicativo. Tante é mais sofisticada em termos de tra­balhar 0 significado como, ao mesmo tempo, frustrantemente re­frataria à sistematizaçao. Os escritos de Geertz sobre a empreitada etnografiea comcçam a eeoar corn a "geraçao de 1905".

Foi Robert Musil quem argumentou que a conhec~mento su­perou a ideologia e que 56 seria possivel ter-se conhecjmento prag­matieo er:l pedaços. (Também Weber sustentou que a realldade é par demais complexa para a descriçao absolu ta, que se alcançaria a compreensâo sociologiea através de comparaçôes para problemas ou prop6sitos especificas). 0 papel do escritor, continua Musil, é ser poeta no sentido de evocar experiências imaginativamente. Também Geertz, em Islum Observed, fala do antrop610go coma poeta nesse mesmo sentido. Wittgenstein ensinou que a linguagem deve sel' entendida do modo como entendemos os jogos: muitas vezes a significado esta na maneira como as palavras sao \ usadas, em seu · contexto, e nao em alguma ilusao de denotaçôes . fixas. (Foi ele, t alias, que, em 1922,. reviu cam desdém a noçao de James Frazer segundo a quaI a religiâo primitiva poderia ser um erra intelectual). Assim coma para Geertz mais tarde, para Wittgenstein compre­ender a cultura era semelhante a se captar uma postura ou en­tender-se Ulua piada, dependendo-se de uma ampla margém de alusôes e associaçôes. Walter Benjamin disse que a linguagem era metaforica cm grande parte, que nao almejava ser verificâvel (coma as afirmaçôes cientificas, que representam um uso da linguagem especial e muito restrito), mas caracterizar a experlência e de conter profundos sedimentos de hist.6rla, de modo que 0 processo de compreender consistia em desfiar a significado, camada por camada. Também Geertz, em "Descriçao Densa", veria na tarefa do antrop610go 0 desfiar de -significados, associaçôes~ conexôes; em seu artigo mais recente (e bem menas feliz) sobre um bazar de Marrocos vê-se a ênfase em sin ais lingüisticos.7 Como Benjamin,

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o ensalo é a sua contribuiçao a um v01ume conjunto, Clifford Geertz, Hildred Geertz, Lawrence Rosen. Vide a interessante critica de Vin­cent Crapanzano, 1981a sobre esse ensaio, onde Crapanzano acha que Geertz perd eu de vista as diferenças entre as regras de uso de sig­nificado referencial (dai, as listas de nomes nisba ) e de signtflcado indéxico.

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Geertz observa que a ensaio é a forma apropriada; " coma Musil, argumenta que a teoria sistematica ou é impossÎvel ou vazia. Par v~zes, a eco do periodo anterior é dire ta :' a frase popularissima de Geertz - modelas de ·e modelos para - pa·ra se referir ao modo coma os simbolos surgem da realidade e a moldam é, naturalmente, a Nachbild e a Vorbild de Dilthey.

Geertz é um escritor extremamente divertido, informati\'o e mesmo inspirador. Os antrop6Iogos da minha geraçâo foram pOl' "ele apresentados ao problema de Verstehen e à tradiçâo da teoria social alema em suas fontes (e nao nas versôes expurgadas, via ·uma Ruth Benedict ou um Taleott Parsons>. A estétlca do insight fragmenta rio (tanto nos anos 20-30 coma, de nova, nos anos 60-70) é uma forma de critica salutar e atenta e tem um efeito renovador ao trazer de volta 0 prazer de explorar e descobrir.8 Mas, em lilttma anâlise, é insatisfaroria porque deixa de responder àquela obrlgaça~ para COrn 0 la do cientifico, sistematizante e generalizante da em­presa antropologica.

Quando Geertz chama a atençao para a natureza dos processos de comunicaçao ele gera uma ambigüidade: tanto a compreensao dentre osatores soelals coma a eompreensâo tr<lnseultural (0 texto etnografleo) sâo construidas de manelra semelhante; ~ntretanto , para fins etenUrieos, geralmente deve-se manté-las distintas. Tem havido reclamaçôes, por exemplo, sobre 0 ensaio "Deep Play", dizendo-se que ticou . oculto 0 processo de compor a descriçao: ele representa um conjunto de muitas brigas de galo? Ou en tao nos ensaios sobre pessoa ("Pessoa, Tempo e Conduta . . . " e "From the Native's Point of View"), todos os balineses, javaneses, marroquinos, europeus sao dessa maneira? hâ quanta tempo sao assim? camo é que chegaram a se diferen'ciar? (Vide, par exemplo, nos ultimos paragrafos de ''Pessoa, Tempo e Conduta", a descrlçâo atemporal das concepçôes balinesas de repente sendo questionadas corn a fi­gura de Sukarno>.

Por um lacto, sente-se que os trabalhos mais recentes de Geertz abandonaram as questôes, que sao tao importantts quanta criticas, dos limites ou fronteiras histéricas e sociais de dadas formas cul­turais. Existem questôes que ppdem e devem ser colocadas, coma fez Weber com a Ética Protestante, Benjamin corn TrauerspieIen ou' eom Baudelaire, ou Bakhtin cam 0 humaI' rabelesiano. Existcm simbolos e formas culturais que possuem maior força dentro de

8 SObre e. relaçao entre os surrealistas e antrop61ogos na França, vide James Clifford, 1981.

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uma formaçâo social especificaD e nao se deve descambar para uma posiçâo segundo a quaI 0 que quer que impressione a imaginaçao do etnografo tem igual utilidade para 0 texto etnogràfico, como "Descriçao Densa" parece sugerir. Realmente, qualquer forma de "descriçâo densa" ou micro-anâlise torn a-se trivial se nao for colocada dentro de esquemas macro-sociolôgicos e his tôricos mais abrangentes.10

Par outra la do, 0 que Geertz tem fette em ensaios como '·Des­criçâo Densa" e "Blurred Genres" é enfocar 0 modo como sao COl1S ­

truidos os textes etnogrâIicûs, uma questào de interesse cl'escente na antropologia contemporânea. Assim, 0 termo "Antropologia 1n­terpretativa" trouxe uma nova faceta substantiva para os velhos problemas de Verstehen, ao dar tanta atençao (senao mais ) aos textos criados pelos antropologos (por que acreditar neles, da; vem a sua autoridade) quanta à operaçâo dos processos culturais que sao descritos nesses textos.

Quero coneluir corn alguns comentarios breves sobre a geraçâo dos alunas de Geertz e, especificamente, sobre 0 meu proprio tra­balho. Se me permitem continuar corn 0 conceito de processo cir­cular ou espiralado de renovaçao na antropologia, talvE:z voltemos a um eerto fio de pensamento dos anos 30 que se recusou a abrlr mao da busea de esquernas macro-sociologicos e historicos e, ao mesmo tempo, manteve a preocupaçâo corn questôes humanistas de forma e contelido em comunicaçâo. Uma das minhas principal') fontes de "renovaçâo" esta no trabalho da Escola de Frankfurt, principalmente em Adorno e Benjamin,lI corn seu esforço explicita de sintetizar as investigaçôes de Weber, Marx e Freud, alëm da preocupaçao de Nietzsche corn a estética. (De fato, varias de meus artigos recentes têm subtitulas que os caracterizam coma tentativas

1) Realmente, a prôpria noçâo de "Deep Play" é de algo tâo impor­tante para os atores que, como mari posas atraidas pela luz, eles :;âo atraidos para além de qualquer grau de racionalidade. Vide, por exem­plo, 0 modo como eu sugeri 0 paradigma de Karbala e seu funcio­namento no Ira durante os nnos 70 e 0 modo como as lendas de Khomeini funeionaram no inieio do ams SO.

10 0 recente ensaio sobre 0 Bazar de Sefrou em Marrocos eontém, real­mente, algumas sugestôes sobre a transformaçao hist6riea; mas, rnes­mo ai, 0 também "marroquista" Crapanzano acha que as tentativas do ensaio de fazer uma espeeifieaçâo histOriea SM vastas generali­zaçôes nâ.o documentadas e mal integradas à. tese sobre a natureza atual do bazar (op. cit.).

l1 Um conhecimento um tanto supel'ficial da Eseola de Frankfurt foi disseminado entre os estudantes do New Left nos anos 60, prîncipal­mente através do trabalho de Herbert Marcuse.

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de "hermenêutica critica'·).I2 Outra fonte inspira dora semelhante para minha geraçao tem sido 0 trabalho da Escola Francesa dos A.nnales de historiadores, a quaI, muUo apropriadamente, tem-se aberto às contribuiçôes da antropologia.

A minha antropologia aspira a ser : (a) dinâmica, mais inte­ressada em mudança cultural e social do que em formas culturais coma fieras textos;13 (b) politicamente democratlca, no sentido de Leenhardt, de tentar produzir textos etnograficos que sejam ricos o suficiente para dizerem aIgu ma coisa para 0 pava descrito (e naD apenas para a cOl1r"mldade antrapologica ou 0 publico leiter oCidental) e terem bastante sentido para despertar 0 Se'H. interesse; (c) objetiva, no sentido de captar as formas "-piiblicasèe discurso que nae sejaI!l impressôes idiossincrâticas, mas que passam ser COll­firrnadas par outros observadores e participantes, levando, portanto, a atençao tanto para os modos de comunicaçao utiliza.dos pela cul­tu ra em Quest~o camo para as formas de construçao de texto que se apresentam ao observador.14

Em minha tese tente! começar corn problemas definidos pelos proprios iranianos, tomando coma tarefa antropolégica clarificar, delimitar e justapor comparativamente. Dentre os problemas que pareciam mais centrais estavam a religlao e sentimentos de per­seguiçao. Ao invés de começar corn uma definiçao de religiâo tirada de teorias antropolégicas, Hz 0 esforço de de·ixar que diversos atores iranianos definissem a problemâtica. Assim, por exemplo, planifi­cadores, politicos e académicos poderiam falar de religiao, colocando problemas de desenvolvimento; shiitas, judeus, zoroastrlanos e bahais podiam reclamar das demandas opressivas feitas sobre eles pela rdigiao dos outros, pelas repressivas tradiçôes milenares ou par clérigos ignorantes; e, no entanto, todos eIes, mesmo assim, afirmavam que, apesar do abuso, a religiâo era algo bom. Dando · um segundo exemplo, meu livro recente pretende ser suficientemente

l ~ "'.on Being Raised in the Middle East : amId Development, SOcializa­tl':~n, and the Socialization of Affect"; "Legal PostuIates in Flux: Law, Wit and Hierarehy in Iran"; "Symbolic Modes of COnduet: A Critical Hermeneutie Approaeh".

ni A partir da observaçao de · que, para se analisar a cultura é precisa capta-la em forma escrîta,' . surgîu a noçâo de que compreender a cultura era analogo a 1er um texto. Tanta Paul Ricoeur como Geertz elaboraram essa n0çâo. .

14 Um pequeno esforço de inovaçâo foi a minha dupla tntroduçâo à versâo original do livro reeentemente publicado, Iran: From Relfgiou.s Dispute to Revolution: uma "Introduçâo para Iranianos" e umn "In­troduçâo para Amerieanos". Aqueles pareceram gostar da idéla; estes (editores a fortiori) rej eitaram-na.

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Page 7: Michael Fischer - Da antropologia interpretativa à antropologia crítica

rico em detalhes e em argumentaçâo iranianos para interessar aos lei tores do Ira, nao apenas corn 0 proposito de receber d~les uma reaçao, mas também para tentar pôr d1ante deles um espelhd, para provo car um aumenta mutuo de cansciência critica. Na~uralmente, .

aD avaliar esses esforços, s6 po~so falar de 'minhas esperanças e aspir~çôes,

Vale a pena, talvez, mencionar uma outra area, que é 0 tipo de, antropologia que tentamos construir na ' Universidade de Rice. Naturalmente, nao posso afi rmar que 0 que acontece nos Estados Unidos é 0 que esta acontec€ndo em Rice. Contames com um grupo jovem e dinâmico que quer ex'plorar as abordagens da hermenêutiea critica a Que . me referi acimalli e aplica-Ias aos Estados Unidos, cumprindo a veLna promessa da antropologia de trazer seus ins­trm;nentos e capacidades de volta a casa. Um dos tôpicos que se prestam a continuas discussôes e reflexao sâo os novos modos de escrita etnografica, inclusive a natureza das velhas convenç6es rea­listas da etnografia,lC a natureza da auto rida de que deve ser trans­mltida num texto antropol6gico e a possibilidade de se utiliz.r convençôes de diàlogo. Por exemplo, Tyler, num trabalho em· que reanatisa as discussôes que ele pr6prio teve corn ~ informante sobre um r!tual, argumenta que a noçoo de um dialogo verdadeira­men'te colaborativo ' é uma ilusao em etnografia porque, em liltima analise, é um dos dois que tem .o lapis na mao. por ·outro lado, ·eu argumento q~e a dialogo (e multi-Iogo) é uma opçao viâvel" que nenhum dia logo é slmplesmente entre duas partes, mas que qual­quer discurso envolve uma terce ira composta de formas culturais, meios lingüîsticos, aquilo Que Gadamer charna de sensus communis

Hi Steven Tyler, que jâ foi wn importante explorador de. métodos for­mais em antropologia (viz., 0 volume que organizou, Cognitive .A nthro­pology) , mais reeentemente (1978) 1 escreveu uma critiea inquisitiva (e muitas vezes divertida) dos formalismos da antropologia llngills­tiea e cultural, propondo uma sensibilidade hermenêutica. Ele minis­tra eursos de Hermenêuti-:a e de Neurolingilistica. George Marcus, o ehefe d'J departamento, escreveu resenhas sobre novas modos de' eserita etnografica, dando CW'sos sobre isso e sobre a comunicaçao inter­cultural. Julie Taylor, que trabalhou no Brasil e na Argentina, esta. interessada em formas simb6licas, e da, par exemplo, wn curso sobre lIiSt6ria camo Processo Simb61ieo. Em 1983 teremos a presença de Tullio Maranhâo, que nos traz seu interesse em h ermenêutica e socio1ingüis~ tica, havendo traball1ado, principalmente, corn as abordagens de Ha­bermas e Labov num estudo de faiantes portugueses de Oabo Verde em Cambridge, Massachusetts.

le Vide resenha de George Marcus e Dick Cushman, 1982, também sua introduçao ao volume que organizou sobre estudos de elites (Un1ver~ sity of New Mexico Press, no prelo).

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(consenso, senso comum, em seu significado mais rico), isto é, que hA. sempre terceiros para corrigir um ou os dois interlocutores em assuntos de cultura,17 e que é uma tarefa etnogrâfiea bâsiea ex­plorar a margem de opiniôes em qualquer assunto e avaliar sua profundidade de apoio como um melo de se avaliar, também. qu ais sâo as opiniôes dominantes e por quanto tempo.

o esforço de desenvolver uma antropologia de sociedades com­plexas e, em particular nos Estados Unidos, ainda estâ em sua fase preliminar em Rice. Mareus esereveu uma série de artigos sobre a Ideologia do parentesco entre dinastias dos Negocios, explol'ando a noçao de que a natuf€za de instrumentos le gais, tais coma 0

Massachusetts Trust, e 0 papel de fiduciarios profissionais trans­formaram a compreensao de "familia" para aqueles envolvidos na dilicil tentativa de evitar a dissoluçâo d.s dinasti.s. Um dos re­sultados mais provocadores dessa pesquisa (baseada tantv em entre­vistas como em pesqulsa de arquivo) é a sugestao de que a étiea fiduciaria profissional (serviço desinteressado) representa um dos modelos chaves da ética do Establishment da América, pelo menos até os anos de Johnson, um Establishment composto de filhos dessas f.milias de neg6clos, cuja relaçâo corn a filantrolJla e 0 serviço publlco dlzla-se anàloga à do flduclàrio corn as fortunas de suas familias.

Minha contribuiçao aos nossos esforços americanistas tem sido até agora um curse exploratério sobre "CUltura Americana".1 ~ 0 esquema geral foi 0 de explorar até que ponto podemos compre­ender (ou alegamos que podemos) os Estados Unidos em termos de: (al excepcion.lldade (por exemplo, a idéia seiscentista de que

17 Vide também 0 recente trabalho de Vincent Crapa!lZano sobre esse me!:>lllo ponto, principalmente a introduçao a TUhami, 1981b e 198ft. Crapanzano baseia-se, prineipalmente, em Desire in the Novel, de Giraud e no trabalho de Lacan.

18 Parece-me que no Brasi! 0 esforço de se falar em uma "cultura bra­silelra" foi amplamente criticado ha alguns anos atras coma wna postura ideo16gica para descartar problemas de integraçao, etnicida.de, regionalismo, etc. Rouve um periodo semelhante em meados dcste sécul'J nos Estados Unidos, quando a americanizaçao era uma força ideol6gica. Desde os anos 60 e a nova celebraçâo da etnicidade, essa ideologizaçâ.o tcm-se diluido , e abriu-se a q~estao de até que pon~ existem simbolos nacionalmente operativos (V1Z., por exemplo, a noçaa de Robert Bellah sobre wna religiât:> civica). Desconiio que os ame­ricanos operam sempre em três niveis, pela menos: ha. u!ll c6dlga nacional publico, ha também os Jocais, sejam eles regionais. etnicos ou religiœos, e ha. os c6digos pessoais. Assim~ embora passa haver mua religiao civica, 0 pertencer a 19rejas especiflcas n:.uitas vezes traz con­sigo indices locais de status, que padern ou nao passar para wna escala nacional.

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Page 8: Michael Fischer - Da antropologia interpretativa à antropologia crítica

Deus criou especialmente a América, a idéia oitocentista de que a fronteira acabava corn a decadéncia européia, ou a noçao de que a riqueza natural da América do Norte queria dizer que a sociedade americana estaria sujelta a conflitos de status em vez de conflitos de classe no estilo europeu); (b) a noçâo de que quando a fron­telra americana se esgotar, a América ficarâ cada vez mais sujeita a tensôes sociais do mesmo tipo que na Europa (a Alnérica é uma Europa imatura); ou a noçao de que a América é a sociedade mais avançada (é a Europa que precisa alcançâ-la), principalmente, em termos de tecnologia moderna e comunicaçao e em termos de uma nova estrutura psicologica (a muito discutida tl'ansiçao de uma velha ética de trabalho protestante, orientada para 0 interior, con­trolada por sentimentos de culpa, para uma nova personalidade orientada para 0 cutro, narcisista, recompensada pOl' habilidades nas relaçôes interpessoais). Dentre os topicos tratados no curso estâo a politica simbôlica (pOl' exemplo, 0 movimento da Proibiçao visto como um esforço das velhas elites de cidadezinhas republi­canas de protestar contra a sua perda de poder para os novas grupos de imigrantes; a utilizaçâo de ritos publicos coma a Pa!'ada Tri­centenaria de Newburyport, Massachusetts, ou os . dramas da Re­conquista em Santa Fé, Novo México, negando, mas ao mesmo tempo, expondo conflitos sociais); os modos coma os intelectuais caracterizam a América vista coma refletindo caracterizaçôes mu­taveis da sociedade americana por intelectuais (historiadores, cien­tistas sociais, criticos literarios) camo indices ideo16gicos de rnu­dan ça (pOl' exemplo, 0 estudo de Michael Kammen sobre a revo­luçâa americana que se tornou progressivamente mais conservadora, Ou as mudanças peIi6dicas de opiniâo por parte dos historiadores, digamos, dos Progressistas aos Liberais de meados do século); a etnicidan.e em autobiografia e 0 debate sobre cultura de massa. Considera os dois ultimos t6picos especialmente gratificantes.

As recentes autobiografias étnicas revelarn Ulua tripla explo­raçao marcante da que vern a sel' etnicidade, ou, pela menas, coma ela é tl'ansmitida camo poderoso elemento de conscientizaçao. Em primeiro lugar, ha a que poderiamos charnar de afirmaçôes cogni­tivas: todas as ana lises sociologicas padrao da historia de grupos especificos, a contexto s6cio-politico, a necessidade de solidariedade em vârias formas. Muito mais interessantes sao as autobiografias recentes que exploram processos anâlogos aos dos sonhos, isto é, utllizando uro fluxa de imagens que operam de maneil'a diferente da linguagem cOmum ou do discul'sO racional. Assim coma quando

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urn paciente vai a uro psicanalista e Ihe conta os sonhos, ha urn processo de traduçâo de modos do imaginàrio para a forma verbal, traduçao essa que, muitas vezes, é apenas aproximativa e que pode trazer distorçôes e mudanças nao aleat6rias. Do mesmo modo, nessas autobiografias as ansiedades sao freqüentemente transmitidas pOl' melo de fragmentas de mi tas, costumes parcîalmente compreendidos, memôrias que nao formam um todo articulado (tal coma urn etno-' grafo à antiga tentaria apresentar), mas Que sao emocionaimente fortes e se repetem em situaçoes especificas.19 Em terceiro lugar, e~sas autobiografias também j.ogam corn processos seme~nt.eS- à transferência psicanalitica, onde 0 paciente se relaciona corn 0 outro camo 0 fez corn outra pessoa anteriormente, mas onde ele nao fornece nenhum texto verbal de suas ::tçôes (isto é, diferentementt;. de sonhos, onde exis te um texte, mesmo que distorcido) .20 Reconhe­cel' e explorar esses complexos componentes do comportamento étnico é a.lgo è.e que a sociologia nâo conseguiu dar conta; talvez. os instrumentas antropologicos que permitem distinguir entre usos indéxicos e linguagem referencial( iI') possam fornecer a impulso para esse tipo de estudo.:n "

19 Vide, por exemplo, 0 romance autobiogrâfico Warrior Woman, de Ma­xine Hong Kingston, um.a. sim-americana. .

2v Vide, par exemplo, Passage ta Ararat, de Michael J. ArIen, americano de ascend2ncia armênia.

(. ) N. T. - Utilizamos 0 neologismo indéxico, seguindo a forma, igualmente nova, em inglès (indeIical) para chamar a atençao para esse canceito relativamente recente na literatura antropolOgica. Ele e sua contra par­tida - 0 conceito de linguagem referenciaJ - têm sido trabalhadas. principalmente, par Pierce (Collecte(/, Papers of C. S. Pierce, org. de Charles Hartshorne e Paul Weiss, Harvard University Press, J932), Silverstein, citado neste artigo, Vincent Crapanzana. 1981C, também citado aqui. De Silverstein, citamas: "A funçao referencial da fala pOde sel' caracterizada com() sendo a comunicaçâo de proposiçôes .... , em alguns casos, sujeitas a verificaçâo de objetos e acontecimentos, em outras, tamadas camo representaçôes da verdade" (: 14), Trata-se, pois, daltuilo a que se referem os simbolos e equilo que eles denotam. Em Crapanzan(), temos que funça.o indéxica, do grego deixis (apontar, in­dicar) "refere-se a funcâo de pronomes pessoais, demonstrativos, artigos, certas' locuçôes adverbiaîs, tempo, indicadores honorificos e de status e outras traços léxicos e gramaticais que ligam wna elacuçao ao seu contexto" (: 127) . Refere-se, portanto, à funçâü pragmâtica da linguagem.

21 Michael Silverstein tem sido uma figura chave ao enfatizar para os antrop610gos as implicaçôes da distinçao entre linguagem referenciai e l1'5OS indéxicos. Vide, por exemplo, seu ensaio na col~tân~a de Keith Basso e Henry Selby, Meaning in Anthropology (Uruverslty of New Mexico Pre&<> 1976), onde ele desafia os antropôlogos (principalmente os simb6licos') que se tém voltado para a Lingüistica em busca de modelos metodol6gicos, que os lingüistas tratariam melhor daquilo que

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Num certo senti do importante, 0 estudo de cultura de massa remonta ao trabalho de Adorno, Benjamin e a Escala de Frankfurt. Estes colocaram questoes criticas de como a cuttura é produzlda e distribuida, até que ponta as platéias e os consumidores padern ser manipulados, até onde as formas de arte podem estimular ou em­botar a consciéncia. Na urgêllcia da preocupaçao corn 0 surgimento do fascismo e de controles totalitârios, suas criticas desc~nfiadas

tiveram força. Entretanto, muitas dos juizos que emitiram à luz de tempos posteriores devem ser descar tados; por exempla, que 0 jazz e a mûsica popular sac infantilizal1tes e meramente um meio de reduzir a consciência à passividade. 0 curso tenta tomar uma' série de componentes da moderna cultura de massa - filmes, es­porte, musica - e explorar ern que medida a mûsica de Elvis Presley refletia 0 ambiente sulista de brancos pObres do quaI ele veio, a rnusica de Sly s tone seguia 0 tom euforico e de pois deses­perado da camu ni da de negra dos anos 60, ou 0 rock dos anos 70 refletia as lutas entre expressôes criativas e a economia de mer­cado; ou, por que a ficçao arnericana quase n un ca usa coma vei­culo 0 corredor, enquanto que n a ficçâo européia encantra-se corn freqüência 0 esforço de carredores coma um excelente veiculo; 0

que hà no conj unto de imagens do baseball que tem apelo para a mente americana e por que a popularidade do baseball tem dimi­nuido em anos recentes (sera que as imagens pastorais de brizas primaveris, chuvas de maio e grama nova brotando sao incompa ­tiveis COrn astrodomos fechados, grama artificial e transmis3âo te­levisionada?) .

Em todos esses eSforços, tenta-se ir por detras da aparência da realidade até chegar a processos sociais sistemâtlcos e em COffi­

petiçao, explorar as formas de comunicaçâo em termos das quais as pessoas agem e fornecer um instrumento que possa levantar a auto-consciência critlca. Embora a formulaçao deste estilo de 1n­ve.stigaçao antropologica tenha surgi do de correntes histâricas es­pecificas â. América pos-Vietnam, as questôes têm fontes e ecos internacionais e significado perene. Sera de grande interesse ver coma elas sâo colocadas diferentemente em diferentes paises, quais sac as mais paroquiais e quais as de interesse mais amplamente colaborativo ou conflitivo.

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Traduçâo de ALCIDA RITA RAMOS

pOde ser visto camo as partes menas interessantes da cultura. Dois exemplos de utilizaçâo inovadora destes conceitos na antropologia sâo Crapanzano (nota 17) e G. Obeysekere, 1981.

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A Casa-Grande e 0 Sobrcido na Obra de Gilberto Freyre 1

L UIZ A. DE CASTRO SANTOS

UM ESCLARECI~lE.NTO, 1984

Casa Grande & Senzala completou e!11 1983 cinqüenta anos de serviços prestados ao leitor brasileiro. Ao todo, vinte e duas edlç5es no Brasil. Sobrados e Mocamoos fara seu cinqüentenario em 1986, precedido de inümeras ediçôes. Juntas, estas du as obras traçam a interpretaçao gilbertiana do passado escravista e senhorlal do Brasil. Sao obras irmas. A contribuiçao destes dois grandes ensaios d eve ser analisada em seu conjunto.

É a estes dois ensaios - talvez 0 filao mais l'ico da ob ra extra­ordinaria de Gilberto Freyre - que dedieo a maior parte do pre­sente trabalho. Aqui e ali, lanço mao de outras livras que sao parte do mesmo filao, ainda que naD revelem a mesma força, 0 mesmo viço das obras de 1933 e 1936. 0 cri té rio adotada foi a de examinar um dentre mui tos Gilber tas - aquele que estudau 0 Brasil senhorial e esera vocrata, que se debruçou sobre colonizadol'es e colonizados nos trépieos, sobre 0 ~istema de produçao da monocultura e do latifûndio, sobre a estrutura de dominac;ao patriarcal.

Mas antes de par ti r para ,a discussao de tais temas, gostaria de

fazer dois comentarios.

l Agradeço 0 apcio Hnanceiro do CNPq durante a elaboraçao deste ar­tigo. Agradeço também 0 estimulo que rccebi de nirios amtgos c professorcs, especialmente :o.1aria Helena de Castro Santos, Mariza G. S. peirano. LYClli'go Samos Filho e Tullio P. Maranhao no Brnsil . e Da\'jct Maybur;.· ·Lewis e Orlando Patterson n'Js Estados Unidos.

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