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BONITEZADE UM SONHO

Ensinar-e-aprender

com sentido

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E d i t o r a F e e v a l e

Novo Hamburgo - Rio Grande do Sul - Brasil2 0 0 3

Associação Pró-Ensino Superior em Novo Hamburgo/ASPEUR

Centro Universitário Feevale

Moacir Gadotti

BONITEZADE UM SONHO

Ensinar-e-aprender com sentido

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4 Moacir Gadotti

PRESIDENTE DA ASPEURBel. Francisco Assis Stürmer

REITOR DO CENTRO UNIVERSITÁRIO FEEVALEProf. Ms. Lauro Tischer

COORDENAÇÃO EDITORIALProf. Ms. Ramon Fernando da Cunha

REALIZAÇÃOPró-Reitoria de Ensino de GraduaçãoProf. Ms. Ramon Fernando da CunhaPró-Reitor

EDITORA FEEVALE- CoordenaçãoCelso Eduardo Stark- Editoração e Produção Gráfica, Apoio TécnicoJuliano da Silva

CAPA e EDITORAÇÃO ELETRÔNICACelso Eduardo Stark

REVISÃODo Autor

IMPRESSÃOGráfica Nova Prova

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Centro Universitário Feevale - RS/BrasilBibliotecária responsável: Gina Maria da Gama CRB 10/1478

© Desta edição: Editora Feevale

Tiragem: 5.000 exemplares

Distribuição gratuita.

CENTRO UNIVERSITÁRIO FEEVALECampus I: Av. Dr. Maurício Cardoso, 510 - CEP: 93510-250

Hamburgo Velho - Novo Hamburgo - RSCampus II: RS 239, 2755 - CEP: 93352-000 - Vila Nova - Novo Hamburgo - RS Fone: (0xx51) 586.8800 - Home Page: www.feevale.br

Gadotti, Moacir Boniteza de um sonho: ensinar-e-aprender com sentido / Moacir Gadotti. – Novo Hamburgo: Feevale, 2003. 80p. ; 21cm.

ISBN 85-86661-34-1

1. Educação 2. Professores – Formação I. Título.

CDU 371.13

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Ensinar-e-aprender com sentido

Em outubro de 2002, ao visitar o Instituto Paulo Freire

em São Paulo, recebemos, lisonjeados, das mãos do Profes-

sor Moacir Gadotti o original da obra “Boniteza de um so-

nho: ensinar-e-aprender com sentido” e com ele a autoriza-

ção para sua publicação.

O Centro Universitário Feevale é uma instituição que,

ao longo de sua história vem formando educadores. Nesse

período, temos empreendido cuidadosos esforços para que

em nossos bancos acadêmicos esses futuros educadores

possam, como propõe o Professor Moacir Gadotti nessa obra,

“aprender e ensinar com sentido para que o sonho que

embalam em suas mentes e em seus corações, o qual com-

partilhamos, possa tornar-se realidade”.

Através dessa publicação nos solidarizamos com esse

“tratado de sonhos e sentidos na perpetuação da boniteza

do ensinar-e-aprender” proposto por Moacir Gadotti, e

publicizamos, mais uma vez, nosso compromisso com a for-

mação permanente de professores que sejam capazes de

amar, de sonhar de ensinar e de transformar.

NOTA DO EDITOR

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6 Moacir Gadotti

Buscando atender ao desejo do autor em compartilhar

com um maior número de educadores possível sua mensa-

gem de amorosidade e esperança, resgatando o sentido de

ser professor, essa edição será distribuída aos docentes dos

diferentes níveis de ensino de nossa Instituição, a todos os

acadêmicos dos nossos cursos de licenciatura, além de ser

distribuídos exemplares às Secretarias Municipais de Educa-

ção do Vale dos Sinos.

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Ensinar-e-aprender com sentido

SUMÁRIO

1. Por que ser professor? ...................................... 9

2. Crise de identidade, crise de sentido ................ 19

3. Formação continuada do professor .................. 29

4. Ser professor na sociedade aprendente ............ 37

5. Aprender com emoção, ensinar com alegria ... 45

6. Educar para uma vida sustentável ................... 57

7. Ser professor, ser educador .............................. 65

Bibliografia ............................................................ 75

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1. Por que ser professor?

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AAAAA beleza existe em todo lugar. Depende do nossoolhar, da nossa sensibilidade; depende da nossa consciên-cia, do nosso trabalho e do nosso cuidado. A beleza existeporque o ser humano é capaz de sonhar.

Inspirei-me em Paulo Freire para escrever esse livro.Paulo Freire nos fala em sua Pedagogia da autonomia da“boniteza de ser gente”1 , da boniteza de ser professor: “en-sinar e aprender não podem dar-se fora da procura, fora daboniteza e da alegria”2 . Paulo Freire chama a atenção paraa essencialidade do componente estético da formação doeducador. Coloquei um título que fala de sonho e de sentidoque querem dizer a mesma coisa. “Sentido” quer dizer cami-nho não percorrido mas que se deseja percorrer, portanto,significa projeto, sonho, utopia. Aprender e ensinar com sen-tido é aprender e ensinar com um sonho na mente. A peda-gogia serve de guia para realizar esse sonho.

Paulo Freire, em 1980, logo após voltar de 16 anos deexílio, reuniu-se com um grande número de professores emBelo Horizonte, Estado de Minas Gerais. Falou-lhes de es-perança, de “sonho possível”, temendo por aqueles e aque-las que “pararem com a sua capacidade de sonhar, de in-ventar a sua coragem de denunciar e de anunciar”, aquelese aquelas que, “em lugar de visitar de vez em quando oamanhã, o futuro, pelo profundo engajamento com o hoje,com o aqui e com o agora, que em lugar desta viagemconstante ao amanhã, se atrelem a um passado de explora-ção e de rotina”3 .

Dezessete anos depois, em 1997, em seu último livro,lançado três semanas antes de falecer, ele se mantinha fiel àmesma linha de pensamento, reafirmando o sonho e a uto-

1 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 67.2 Idem, ibidem, p. 160.3 Paulo Freire, in Carlos R. Brandão (org.), O educador: vida e morte– escritos sobre uma espécie em perigo. São Paulo: Brasiliense, 1982,p. 101.

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pia diante da “malvadez neoliberal”, diante do “cinismo desua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e àutopia”4 . Denúncia de um lado, anúncio de outro: a sua“pedagogia da autonomia” frente à pedagogia neoliberal.

Lembrando os cinco anos da morte de Freire, nessepequeno livro5 , quero retomar o que ele disse e entender oseu significado no contexto de hoje. Paulo Freire nos falavada “boniteza” do sonho de ser professor de tantos jovensdesse planeta. Se o sonho puder ser sonhado por muitos6

deixará de ser um sonho e se tornará realidade.

A realidade, contudo, é muitas vezes bem diferentedo sonho. Muitos de meus alunos e alunas, seja na Peda-gogia, seja na Licenciatura, não pensam em se dedicar àssalas de aula. Muito revelam desinteresse em seguir a carrei-ra do magistério, mesmo estando num curso de formação deprofessores. Pesam muito nesse decisão as condições con-cretas do exercício da profissão. Preparam-se para ser pro-fessor e irão exercer outra profissão.

O brasileiro desvaloriza o professor. É o que se pode-ria deduzir de um dito que se tornou popular nas últimas

4 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 15.5 Estou tornando públicos os direitos autorais deste livro para que elepossa ser reproduzido parcial ou integralmente e impresso em qualquerformato, por qualquer pessoa ou instituição, desde que não seja vendidoa preço superior a R$ 1,00 (um real). Aproveito a oportunidade paraagradecer aos companheiros Paulo Roberto Padilha e Ângela Antunespelas preciosas sugestões que me ofereceram na revisão do texto originaldeste livro.6 E somos muitos professores no mundo: 50 milhões. Somos organizadose alguma coisa podemos fazer para mudar a ordem das coisas. Segundoa UNESCO (In Jacques Delors (org.), Educação: um tesouro a descobrir– Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educaçãopara o Século XXI. São Paulo: Cortez, 1998, p. 156),“a profissão deprofessor é uma das mais fortemente organizadas do mundo e asorganizações de professores podem desempenhar – e desempenham –um papel muito influente em vários domínios. A maior parte dos cercade cinqüenta milhões de professores que há no mundo estãosindicalizados ou julgam-se representados por sindicatos”.

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décadas no Brasil: “Quem sabe faz, quem não sabe ensi-na”. É sinistro. Essa destruição da imagem do professor cus-tará muito caro, dizia já em 1989, o jornalista LeonardoTrevisan7 : “Todos dizem que gostam muito dos professores,mas não chegam a incomodar-se muito com o fato de quehá tempos eles recebem um salário de fome. O salário é aparte mais visível de uma condição – da qual decorre umpapel social que se descaracterizou por completo... Só quemnão quer ver não percebe o sentimento de cansaço, de es-gotamento de expectativas de quem encarava com dignida-de o seu desempenho profissional”.

A situação vem se arrastando há anos. Tenho 41 anosde magistério e não tenho visto grandes melhorias. Ao con-trário, tenho ouvido muitas promessas. As melhorias existemaqui e acolá, mas são pontuais e localizadas – servemapenas de exemplo – são conjunturais e não estruturais,são provisórias, passageiras e não permanentes.Correspondem a uma política de governo e não a umapolítica pública de estado.

Por isso continuo me perguntando: “Por que sou pro-fessor?” É uma pergunta que ouço com freqüência tambémentre meus pares.

A resposta talvez possa ser encontrada numa mensa-gem deixada por um prisioneiro de campo de concentraçãonazista na qual, depois de viver todos os horrores da Guer-ra8 – “crianças envenenadas por médicos diplomados; re-cém-nascidos mortos por enfermeiras treinadas; mulheres ebebês fuzilados e queimados por graduados de colégios euniversidades” – ele pede aos professores que “ajudem seusalunos a tornarem-se humanos”, simplesmente humanos. Etermina: “ler, escrever e aritmética só são importantes parafazer nossas crianças mais humanas”.

7 Leonardo Trevisan, in O Estado de S. Paulo, 1 de julho de 1989, p.2.8 Essa mensagem está, na íntegra, na abertura de um pequeno e densolivro do educador e economista Ladislau Dowbor, Tecnologias doconhecimento: os desafios da educação. Petrópolis, Vozes, 2001.

“Quem

sabe

faz,

quem

não

sabe

ensina”.

É sinistro.

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Talvez esteja aí a chave para entender a crise quevivemos: perdemos o sentido do que fazemos, lutamos porsalário e melhores condições de trabalho sem esclarecer asociedade sobre a finalidade de nossa profissão, sem justifi-car porque estamos lutando.

O que me leva agora a escrever esse pequeno livro éjustamente esse imperativo histórico e existencial que meobriga a colocar a questão do sentido do que estou fazendo.Qual é o papel do educador, da escola, da educação? Oque um professor pode fazer, o que ele deve fazer, o que épossível fazer?

Em inúmeras conferências que tenho feito a professo-res, professoras, por este país e fora dele, além de constatarum grande mal-estar entre os docentes, misturado a de-cepções, irritação, impaciência, ceticismo, perplexidade,paradoxalmente, existe ainda muita esperança. A esperan-ça ainda alimenta essa difícil profissão. Há uma ânsia porentender melhor porque está tão difícil educar hoje, fazeraprender, ensinar, ânsia para saber o que fazer quando to-das as receitas governamentais já não conseguem respon-der. A maioria dessas professoras - elas são a quase totali-dade - com a diminuição drástica dos salários, com a des-valorização da profissão e a progressiva deterioração dasescolas – muitas delas têm hoje cara de presídio - procuramcada vez mais cursos e conferências, para buscar uma res-posta que não encontraram nem na sua formação inicial enem na sua prática atual.

Poucas são as vezes em que encontram resposta nes-ses cursos. Na sua maioria, ou encontram receitastecnocráticas que causam ainda maior frustração, ou en-contram profissionais da “pedagogia da ajuda” que encan-tam com suas belas e sedutoras palavras, fazem rir enormesplatéias numa catarse coletiva. E voltam vazios como entra-ram depois de assistirem ao show desses falsos pregadoresda palavra. Voltam com a mesma pergunta: “O que estoufazendo aqui?” – “Por quê não procuro outro trabalho?” –“Para que sofrer tanto?” – “Por quê, para que ser professor?”.

Qualé o papeldoeducador,daescola,daeducação?

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Se, de um lado, a transformação nas condições obje-tivas das nossas escolas não depende apenas da nossa atu-ação como profissionais da educação, de outro lado, creioque sem uma mudança na própria concepção da nossa pro-fissão ela não ocorrerá tão cedo. Enquanto não construir-mos um novo sentido para a nossa profissão, sentido esseque está ligado à própria função da escola na sociedadeaprendente, esse vazio, essa perplexidade, essa crise, deve-rão continuar.

Em sua essência, ser professor hoje, não é nem maisdifícil nem mais fácil do que era há algumas décadas atrás.É diferente. Diante da velocidade com que a informação sedesloca, envelhece e morre, diante de um mundo em cons-tante mudança, seu papel vem mudando, senão na essenci-al tarefa de educar, pelo menos na tarefa de ensinar, deconduzir a aprendizagem e na sua própria formação que setornou permanentemente necessária.

As novas tecnologias criaram novos espaços doconhecimento. Agora, além da escola, também a empre-sa, o espaço domiciliar e o espaço social tornaram-seeducativos. Cada dia mais pessoas estudam em casa poispodem, de lá, acessar o ciberespaço da formação e daaprendizagem a distância, buscar “fora” – a informa-ção disponível nas redes de computadores interligados –serviços que respondem às suas demandas de conhecimen-to. Por outro lado, a sociedade civil (ONGs, associações,sindicatos, igrejas...) está se fortalecendo, não apenas comoespaço de trabalho, mas também como espaço de difusão ede reconstrução de conhecimentos.

Na formação continuada necessita-se de maiorintegração entre os espaços sociais (domiciliar, escolar, em-presarial...) visando a preparar o aluno para viver melhorna sociedade do conhecimento. Como previa HerbertMcLuhan, na década de 609 , o planeta tornou-se a nossasala de aula e o nosso endereço. O ciberespaço rompeucom a idéia de tempo próprio para a aprendizagem. O es-paço da aprendizagem é aqui, em qualquer lugar; o tempode aprender é hoje e sempre.

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Hoje vale tudo para aprender. Isso vai além da“reciclagem” e da atualização de conhecimentos e muito maisalém da “assimilação” de conhecimentos. A sociedade doconhecimento é uma sociedade de múltiplas oportunidadesde aprendizagem. As conseqüências para a escola, parao professor e para a educação em geral são enormes: en-sinar a pensar; saber comunicar-se; saber pesquisar; ter ra-ciocínio lógico; fazer sínteses e elaborações teóricas; saberorganizar o seu próprio trabalho; ter disciplina para o traba-lho; ser independente e autônomo; saber articular o conhe-cimento com a prática; ser aprendiz autônomo e a distância.

Nesse contexto, o professor é muito mais um mediadordo conhecimento, diante do aluno que é o sujeito do suaprópria formação. O aluno precisa construir e reconstruirconhecimento a partir do que faz. Para isso o professor tam-bém precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz eapontar novos sentidos para o quefazer dos seus alunos. Eledeixará de ser um “lecionador”10 para ser um organizadordo conhecimento e da aprendizagem.

Em resumo, poderíamos dizer que o professor se tor-nou um aprendiz permanente, um construtor de sentidos,um cooperador, e, sobretudo, um organizador da apren-dizagem. Se falamos do professor de adultos e do professorde cursos a distância, esses papéis são ainda mais relevan-tes. De nada adiantará ensinar, se os alunos não consegui-rem organizar o seu trabalho, serem sujeitos ativos da apren-dizagem, auto-disciplinados, motivados.

“Ser professor”, não será “um ofício em risco deextinção”, pergunta-se Luiza Cortesão11 . Um certo professorestá em risco de extinção. O funcionário da eficácia e dacompetitividade pode existir mas terá se demitido da suafunção de professor. Diz ela que há hoje uma evidente con-tradição entre o professor em branco e preto, o professor

9 Herbert M. McLuhan, Os meios de comunicação como extensões dohomem. São Paulo, Cultrix, 1974.10 Ladislau Dowbor, A reprodução social: propostas para uma gestãodescentralizada. Petrópolis, Vozes, 1998.

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“monocultural”, bem formado, seguro, claro, paciente, tra-balhador e distribuidor de saberes, eficiente, exigente e oprofessor “intermulticultural” que não é um “daltônico cultu-ral”, que dá-se conta da heterogeneidade, capaz de investi-gar, de ser flexível e de recriar conteúdos e métodos, capazde identificar e analisar problemas de aprendizagem e deelaborar respostas às diferentes situações educativas. Um nãose pergunta porque ser professor. Simplesmente cumpre or-dens, currículos, programas, pedagogias. Outro questiona-se sobre seu papel. Um está centrado nos conteúdoscurriculares e outro no sentido do seu ofício. Sim, um certoprofessor está em risco de extinção. E isso é muito bom.

- O que é ser professor hoje?

- Ser professor hoje é viver intensamente o seu tempocom consciência e sensibilidade. Não se pode imaginarum futuro para a humanidade sem educadores. Os educa-dores, numa visão emancipadora, não só transformam ainformação em conhecimento e em consciência crítica, mastambém formam pessoas. Diante dos falsos pregadores dapalavra, dos marqueteiros, eles são os verdadeiros “aman-tes da sabedoria”, os filósofos de que nos falava Sócrates.Eles fazem fluir o saber - não o dado, a informação, o puroconhecimento - porque constróem sentido para a vidadas pessoas e para a humanidade e buscam, juntos, ummundo mais justo, mais produtivo e mais saudável paratodos. Por isso eles são imprescindíveis.

11 Luiza Coresão, Ser professor: um ofício em risco de extinção. SãoPaulo, Cortez/IPF, 2002.

Não sepode

imaginarum futuro

para ahumanidade

semeducadores.

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2. Crise de identidade, crise de Sentido

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O ofício de professor está, realmente, em risco deextinção?

Um velho professor está realmente desaparecendo eespero que nesse velho professor esteja nascendo um novoprofessor. Não é a profissão que está morrendo. É uma pro-fissão que está renascendo. O professor não está morrendo,sua função não está desaparecendo, mas ela está se trans-formando profundamente, adquirindo uma nova identida-de. E isso não é nada novo, pois cada geração de professo-res constitui sua própria identidade docente no contexto emque vive. Hoje o contexto é o próprio mundo globalizado. Oprofessor precisa hoje adequar sua função, ensinar, educarno mundo globalizado1 , até para transformar profundamenteo modelo de globalização dominante, essencialmente per-verso e excludente.

Cícero traduziu “paidéia” (formação integral do ho-mem) por “humanitas” (formação da/para a humanidade).Não há civilização sem professores. Não haverá uma novacivilização sem uma nova formação dos professores. Nãohá nação sem professores.

Escolher a profissão de professor não é escolher umaprofissão qualquer. Na maioria das vezes essa escolha se dápor intuição. Muitas professoras, quando perguntadas por-que escolheram essa profissão respondem: “porque gostode criança”. É uma resposta correta e significativa, mas elanão é levada em conta no seu processo de formação. Essamotivação é pouco trabalhada. Em geral, a sua formaçãolimita-se a aspectos técnico-pedagógicos e não ético-políti-cos, que seriam mais afinados com os motivos da sua esco-lha. Além disso, o aspecto profissional tem sido descuidadopor causa da confusão que é ainda freqüentemente feita entre

1 Ver Ângela Antunes, A leitura do mundo no contexto da planetarização:por uma pedagogia da sustentabilidade. São Paulo, FE-USP, 2002 (Tesede doutorado).

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o papel de mãe e de professora, sobretudo na educaçãoinfantil2 .

A docência, como aprendizagem da relação, estáligada a um profissional especial, um profissional do senti-do, numa era em que aprender é conviver com a incerteza.Daí a necessidade de se refletir hoje sobre o novo papel doprofessor, as novas exigências da profissão docente, princi-palmente da formação continuada do professor, daprofessora.

Antes de mais nada, para entender a crise de identida-de dessa profissão é preciso colocar em evidência as ca-racterísticas atuais da profissão docente. Estamos di-ante de uma profissão massificada, o que realça o grandealcance dessa profissão e sua importância estratégica. Comoo conhecimento da humanidade duplica em curto espaçode tempo, ele obsolece rapidamente, é extremamente mutável.Por isso, hoje não tem mais sentido a existência de um pro-fissional que se limita a reproduzir o conhecimento e a cultu-ra que outros desenvolveram. O professor hoje precisa serum profissional capaz de criar conhecimento.

Estamos também diante de uma profissão “genérica”(política). Não é um ofício específico pois o professor precisalutar contra a exclusão social, ser animador de grupos, or-ganizar o trabalho e a aprendizagem dele e dos alunos; suaprofissão tem relação com as estruturas sociais, com a co-munidade... enfim, ele é um profissional que precisa ter muitaautonomia e exercer muita liderança. Existem característicascomuns a qualquer docente independentemente da matériaque leciona, o que torna essa profissão muito homogênea,não importando o grau de ensino onde esteja trabalhando.A competência genérica da profissão está sobretudo em seusaber político-pedagógico.

2 Ver Paulo Freire, Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar.São Paulo, Olho D’Água, 1993.

O professorhojeprecisaser umprofissionalcapaz decriarconhecimento.

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Por isso, é preciso ter cuidado especial quando se falaem “especialista” na educação. É claro que existem saberese competências específicas, mas separá-las burocraticamenteé um equívoco que tem custado caro aos sistemas educaci-onais, tornando-os inflexíveis, apesar das declarações emcontrário. Como diz Mário Osório Marques3 , a especificidadeda formação do pedagogo “exige não se confunda ela coma formação de um especialista a mais, como se a questãofosse simplesmente a da divisão do trabalho e não, muitomais, a da articulação da ação comunitativa/coletiva. Mas,por outra parte, não se requer um generalista ousuperpedagogo a ser colocado num pedestal de autoridade,ou em posição de mando, nem mesmo na situação de sim-ples assessoria técnica. Não se trata de alguém detentor deum saber hierárquico”.

Uma terceira característica marcante dessa profissão:ela é constituída predominantemente de mulheres. Umagrande força numa época em que a mulher está exercendoum papel cada vez mais protagonista, inserido-se cada vezmais na vida social, política e econômica das sociedadesmais avançadas. A participação da mulher na sociedade éindicador de avanço social e de desenvolvimento humano.

Finalmente, não há como negar: somos profissionaisde baixa renda. Perdemos com isso. Mas, pensando numa“civilização do oprimido”, como costuma nos dizer JoséEustáquio Romão, esse profissional pode ter, por essa carac-terística, um potencial revolucionário que outras profissõesnão têm, já que é uma profissão voltada para a emancipa-ção das pessoas. A mudança vem “dos debaixo”, como sus-tentava Florestan Fernandes. Os “debaixo”, só tem a ga-nhar com a transformação. Por isso, têm uma grande capa-cidade para gestar a transformação.

Uma pesquisa de Eurize Caldas Pessanha4 mostra que

3 Mário Osório Marques, A formação do profissional da educação, Ijuí,Editora UNIJUÍ, 1992, p. 113.4 Eurize Caldas Pessanha, Ascensão e queda do professor, São Paulo,Cortez, 1994.

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a professora primária era uma categoria profissional “filiada”às “camadas médias” da população. Ela foi um “nicho ide-al para as mulheres dos estratos mais altos das camadasmédias urbanas por ser uma profissão situada do lado dotrabalho não-manual na divisão social do trabalho. No en-tanto, atualmente esses estratos parecem ter outras aspira-ções, e são os estratos mais baixos que desejam ter professo-res primários na família”, diz a professora Marli André, naapresentação do livro de Eurize Caldas Pessanha. Para EurizeCaldas Pessanha5 , “o trabalho de professor, na forma emque se apresenta hoje, é um trabalho não-manual, assalari-ado, num setor não-produtivo, embora socialmente útil, daatividade humana. Sendo necessário também lembrar o fatode ser assalariado, funcionário do Estado ou de um serviçoque, embora mantido por empresas privadas, é consideradoum serviço ‘público’ ”. É esse serviço público que coloca oprofessor em pé de igualdade, esteja ele no ensino superiorou no fundamental, no setor público ou no setor privado.

Parece que todos hoje estão de acordo quando se tratada necessidade de mudança. A maioria afirma que a pro-fissão docente deve mudar - sobretudo em função da com-plexidade da nova sociedade - mas não se diz como, nemporque e para onde devemos mudar. Daí, como diz Francis-co Imbernón6 , “não é de admirar que nos últimos temposnão apenas o professor, mas também as instituições educa-cionais passem uma sensação de desorientação que faz parteda confusão que envolve o futuro da escola e do grupoprofissional”. Onde há desorientação há falta de sentido. Asrespostas à crise são sempre na direção da mudança, oumelhor, da formação para a mudança. Mas esse não é umdiscurso novo7 .

5 Idem, p. 28.6 Francisco Imbernón. Formação docente e profissional: formar-se paraa mudança e a incerteza. São Paulo, Cortez, 2000, p. 109. O autor éprofessor da Universidade de Barcelona.7 Veja-se o livro do grande discípulo de John Dewey, William HeardKilpatrick (1876-1965) Educação para uma civilização em mudança.

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Há consenso quando se afirma que nossa profissãodeve abandonar a concepção predominante no século XIXde mera transmissão do saber escolar. O professor não podeser um mero executor do currículo oficial e a educaçãojá não é mais propriedade da escola, mas de toda a comu-nidade. O professor, a professora precisam assumir umapostura mais relacional, dialógica, cultural, contextual ecomunitária. Durante muito tempo a formação do professorera baseada em “conteúdos objetivos”. Hoje o domínio dosconteúdos de um saber específico (científico e pedagógico) éconsiderado tão importante quanto as atitudes (conteúdosatitudinais ou procedimentais).

A educação do futuro deverá se aproximar mais dos“aspectos éticos, coletivos, comunicativos, comportamentais,emocionais... todos eles necessários para se alcançar umaeducação democrática dos futuros cidadãos”8 . Isso implicanovos saberes9 , entre eles, saber planejar, saber organi-zar o currículo, saber pesquisa, estabelecer estratégias paraformar grupos, para resolver problemas, relacionar-se coma comunidade, exercer atividades sócio-antropológicas, etc.

Como a mudança nas pessoas é muito lenta, o novoprofissional que recebeu uma formação “atrasada”, centradano saber escolar, é tentado a desistir. Antes, a transmissãodo conhecimento era facilmente medida. Agora, como o pro-fessor não foi preparado para trabalhar com conteúdosatitudinais, ele desiste.

Essas mudanças essenciais para a formação inicial econtinuada da(o) professora(r) supõem uma nova culturaprofissional. O maior desafio desta profissão está na mu-dança de mentalidade que precisa ocorrer tanto no pro-fissional da educação quanto na sociedade e, principalmente,

8 Francisco Imbernón. Formação docente e profissional: formar-se paraa mudança e a incerteza. São Paulo, Cortez, 2000, p. 11.9 Veja-se Paulo Freire (Pedagogia da autonomia: saberes necessários àprática educativa), Jacques Delors, org. (Educação, um tesouro adescobrir) e Edgar Morin (Sete saberes necessários à educação dofuturo).

O

professor

não pode

ser um

mero

executor do

currículo

oficial...

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nos sistemas de ensino. A noção de qualidade precisa mu-dar profundamente: a competência profissional deve sermedida muito mais pela capacidade do docente estabelecerrelações com seus alunos e seus pares, pelo exercício daliderança profissional e pela atuação comunitária, do quena sua capacidade de “passar conteúdos”.

E uma nova cultura profissional implica uma redefiniçãodos sistemas de ensino e das instituições escolares. Masessa redefinição não virá de cima, do próprio sistema. Ele é,por essência, conservador. A mudança do sistema deve par-tir do professor e de uma nova concepção do seu papel. Daía importância estratégica de discutir hoje o novo pa-pel do professor. Daí a importância de uma redefiniçãoda profissão docente, de uma nova concepção do papeldo professor.

Nesse sentido, no contexto atual, podemos identificare confrontar duas concepções opostas da profissão docente:a concepção neoliberal e a concepção emancipadora. Aprimeira, amplamente dominante hoje, concebe o professorcomo um profissional lecionador, avaliado individualmentee isolado na profissão (visão individualista); a segunda con-sidera o docente como um profissional do sentido, umorganizador da aprendizagem (visão social), uma lideran-ça, um sujeito político.

- Por que falamos de uma concepção “emancipadora”?

- Porque o papel da educação, na concepção quedefendemos, é emancipar as pessoas, ou, como diz Francis-co Imbernón, “o objetivo da educação é ajudar a tornar aspessoas mais livres, menos dependentes do poder econômi-co, político e social. A profissão de ensinar tem essa obriga-ção intrínseca”10 .

Numa concepção emancipadora da educação, a pro-fissão docente tem um componente ético essencial. Suaespecificidade está no compromisso ético com a emancipa-

10 Francisco Imbernón. Formação docente e profissional: formar-se paraa mudança e a incerteza. São Paulo, Cortez, 2000, p. 27.

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ção das pessoas. Não é uma profissão meramente técnica.A competência do professor não se mede pela sua capaci-dade de ensinar – muito menos “lecionar” – mas pelas pos-sibilidades que constrói para que as pessoas possam apren-der, conviver e viverem melhor.

Para mim, Paulo Freire foi o protótipo desse professoremancipador. Basta dar uma olhada nas mensagens recebi-das no Instituto Paulo Freire, em São Paulo, logo depois desua morte, dia 2 de maio de 1997. Ali se fala de esperança,de projeto comum, de mundo melhor, de emoção, de soli-dariedade. É apaixonante reler essas mensagens. Ser educa-dor é despertar isso nas pessoas. Paulo Freire conseguiu to-car a alma das pessoas. Suas idéias poderão ter despertadocontrovérsias, mas não a sua pessoa. Muitas dessas mensa-gens dizem textualmente: “minha vida não seria a mesma seeu não tivesse lido a obra de Paulo Freire. O que ele escre-veu ficará no meu coração e na minha mente”. Essa relaçãoentre o cognitivo e o afetivo é muito forte na práxis dePaulo Freire e também naqueles que foram influenciados porele. Essa relação era muito forte também na sua obra. Elenão envolvia as pessoas emocionalmente só através de suastão encantadoras falas, mas também através de seus escritos.

As mensagens recebidas logo depois de sua morte re-velavam o impacto teórico e afetivo sobre a vida de tantosseres humanos de todas as partes do mundo. Essas manifes-tações terminavam sempre com o desejo de unir-se a outraspessoas e instituições para dar continuidade ao seu le-gado, ao seu compromisso, não o compromisso com osoprimidos deste ou daquele lugar, mas com os oprimidosde todo o mundo.

Para mim,Paulo

Freire foio protótipo

desseprofessor

emancipador.

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3. Formação continuada do professor

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A formação do profissional da educação está direta-mente relacionada com o enfoque, a perspectiva, a concep-ção mesma que se tem da sua formação e de suas funçõesatuais. Para nós, a formação continuada do professor deveser concebida como reflexão, pesquisa, ação, descoberta,organização, fundamentação, revisão e construção teóricae não como mera aprendizagem de novas técnicas, atuali-zação em novas receitas pedagógicas ou aprendizagem dasúltimas inovações tecnológicas.

A nova formação permanente, segundo essa concep-ção, inicia-se pela reflexão crítica sobre a prática. Examinaras teorias implícitas, estilos cognitivos, preconceitos (hierar-quia, sexismo, machismo, individualismo, intolerância, ex-clusão...). Como diz Paulo Freire “na formação permanentedos professores, o momento fundamental é o da reflexãocrítica sobre a prática”1 . E essa reflexão crítica não se limitaao seu cotidiano na sala de aula pois, como diz FranciscoImbernón a sua reflexão “atravessa as paredes da instituiçãopara analisar todo tipo de interesses subjacentes à educa-ção, à realidade social, com o objetivo concreto de obter aemancipação das pessoas”2 .

Nesse sentido, deve-se realçar a importância da trocade experiências entre pares, através de relatos de experiên-cias, oficinas, grupos de trabalho: “Quando os professoresaprendem juntos, cada um pode aprender com o outro. Issoos leva a compartilhar evidências, informação e a buscarsoluções. A partir daqui os problemas importantes das esco-las começam a ser enfrentados com a colaboração entretodos”3 .

Na formação continuada do professor, outro eixo im-portante é o da discussão do projeto político-pedagógico a

1 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa, São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 43.2 Francisco Imbernón. Formação docente e profissional: formar-se paraa mudança e a incerteza. São Paulo, Cortez, 2000, p. 40.3 Idem, p. 78.

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escola4 , a elaboração de projetos comuns de trabalho decada área de interesse do professor, frente a desafios, pro-blemas e necessidades de sua prática. É preciso formar-separa a cooperação. Como diz Francisco Imbernon5 “a co-laboração, mais que uma estratégia de gestão, é uma filoso-fia de trabalho”. Os sistemas de ensino investem na forma-ção individual (individualista?) e competitiva do professor,quando o mais importante é a formação para um projetocomum de trabalho, a formação política do professor.Mais do que uma formação técnica, a função do professornecessita de uma formação política para exercer com com-petência a sua profissão.

Em síntese, a nova formação do professor deve estarcentrada na escola sem ser unicamente escolar, sobre aspráticas escolares dos professores, desenvolver na práticaum paradigma colaborativo e cooperativo entre os pro-fissionais da educação. A nova formação do professor devebasear-se no diálogo e visar à redefinição de suas funções epapéis, à redefinição do sistema de ensino e à construçãocontinuada do projeto político-pedagógica da escola. Opróprio professor precisa construir também o seu projetopolítico-pedagógico.

Muito sofrimento da professora, do professor, poderiaser evitado se a sua formação inicial e continuada fosse ou-tra, se aprendesse menos técnicas e mais atitudes, hábitos,valores. Antes de se perguntar o que deve saber paraensinar, a professora deve se perguntar porque ensinar ecomo deve ser para ensinar. Muita dor poderia ser evi-tada se o professor, a professora, aprendessem a organizarmelhor o seu trabalho e o de seus alunos e alunas, se apren-dessem a sistematizar e avaliar mais dialogicamente, se ti-vessem aprendido a aprender de forma cooperativa: o indi-

4 Veja-se Paulo Roberto Padilha, Planejamento dialógico: como construiro projeto político-pdagógico da escola (São Paulo, Cortez/IP, 2001) eÂngela Antunes, Aceita um conselho? Como organizar o colegiadoescolar (São Paulo, Cortez/IPF, 2002).5 Op. cit., p 81.

É precisoformar-separa acooperação.

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vidualismo da profissão mata de ansiedade e angústia, levaao sofrimento e até ao martírio do professor compromissadoe à desistência daquele que perdeu a esperança.

Para evitar o martírio e a desistência é que os sistemasescolares e as escolas necessitam de uma ajuda externa, deuma assessoria pedagógica. Não para fazer o trabalho de-las. Minha experiência me mostrou que a assessoria deveapenas ajudar a escola a inovar. Nós não devemos “im-plantar” inovações de fora, por melhores e mais bem inten-cionados que sejam os “amigos da escola”. A escola é quedeve ser protagonista e não os assessores. Toda inovaçãoque vem de fora está fadada ao fracasso. Vejam-se os nu-merosos exemplos de “implantação” de inovações feitas pe-los sistemas de ensino, mera determinação exterior, artificiale separada dos contextos pessoais e institucionais em quetrabalham os profissionais da educação nas escolas.

A experiência do Instituto Paulo Freire nos mostrou, porexemplo, que o seu Projeto da Escola Cidadã, iniciado porPaulo Freire logo depois de haver deixado a Secretaria Mu-nicipal de Educação de São Paulo, em 1991, não pode ser“implantado” sob pena de fracassar6 . Todo professor é edeve ser, necessariamente, um mau “implantador” de idéiasdos outros. E é ótimo que assim seja, porque ele deve serautônomo, ele precisa assumir, construir e conquistar suaautonomia profissional. O que a assessoria externa podefazer é propor uma colaboração na identificação das neces-sidades e construir, com eles, as respostas a essas necessi-dades. Para isso, precisamos dispor de estratégias. Envol-ver a comunidade interna e externa da escola é essencialpara qualquer inovação.

O agente protagonista é o profissional da escola. Oassessor, como guia e mediador entre iguais, amigo crítico,“deveria intervir a partir das demandas dos professores oudas instituições educacionais com objetivo de auxiliar no

1 Para maiores informações sobre os projetos do Instituto Paulo Freireveja-se o site www.paulofreire.org.

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processo de resolver os problemas ou situações problemáti-cas profissionais que lhes são próprios”7 . Por isso, “a comu-nicação, o conhecimento da prática, a capacidade de ne-gociação, o conhecimento de técnicas de diagnóstico, deanálise de necessidades, o favorecimento da tomada de de-cisões e o conhecimento da informação, são temas-chavena assessoria”8 .

Pela legislação brasileira, hoje a formação continuadado professor em serviço é um direito. Contudo, para queesse direito seja exercido na prática, de fato, creio que sãonecessárias algumas pré-condições ou exigências mínimas;entre elas:

1ª direito a pelo menos 4 horas semanais de estudocom os colegas, não só com especialistas de fora, para re-fletirem sobre a sua própria prática, dividirem dúvidas e re-sultados obtidos;

2º possibilidade de freqüentar cursos seqüenciaisaprofundados em estudos regulares, sobretudo sobre o ensi-no das disciplinas ou campos do conhecimento de cadaprofessor;

3º acesso à bibliografia atualizada;

4º possibilidade de sistematizar sua experiência e es-crever sobre ela;

5º possibilidade de participar e expor sua experiênciaem congressos educacionais;

6º possibilidade de publicar a experiência sistema-tizada;

7º enfim, não só sistematizar e publicar suas reflexões,mas também colocar em rede essas reflexões, o que cadaprofessor, cada professora, cada escola está fazendo, por

7 Francisco Imbernón. Formação docente e profissional: formar-se paraa mudança e a incerteza. São Paulo, Cortez, 2000, p. 88.8 Idem, p. 94.

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exemplo, através de um site da secretaria de educação ouda própria escola.

A professora, o professor, podem ter um papel maisdecisivo na construção de um novo paradigmacivilizatório se entenderem de outra forma o seu papel nasociedade do conhecimento e educarem para a humanida-de. Eles e elas podem ter um poder como nunca tiveram nasociedade. E como o poder nunca é doado, mas é conquis-tado, as entidades de professores têm uma enorme respon-sabilidade nesse processo de nova formação inicial e conti-nuada dos profissionais da educação.

O mundo hoje é favorável às mudanças sonhadas poreducadores como Antonio Gramsci, que entendia o educa-dor como um intelectual organizador da cultura, Paulo Freire,que defendia o diálogo crítico como essência da educação eFlorestan Fernandes, que sustentava que a emancipação sópoderia vir a partir da organização “dos debaixo”. A novapedagogia para a educação da humanidade não é ape-nas uma pedagogia da resistência, mas, sobretudo, umapedagogia da esperança e da possibilidade.

Eles eelas podem

ter umpoder como

nuncativeram nasociedade.

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4. Ser professor na sociedade aprendente

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Em 2001 fiz uma enquete com os meus alunos daLicenciatura da Faculdade de Educação da USP perguntan-do quais seriam os saberes necessários à profissão docentehoje. Eis o que eles me responderam. Para ser professor énecessário: “ter uma concepção de educação; ter uma for-mação política, ética, isto é, ter compromisso; respeitar asdiferenças; ter uma formação continuada; ser tolerante di-ante de atitudes, posturas e conhecimentos diferentes; pre-parar-se para o erro e a incerteza; ter autonomia didático-pedagógica; ter domínio do saber específico que leciona;ser reflexivo e crítico; saber relacionar-se com os alunos; teruma formação geral, polivalente e transversal”. Enfim... fa-zer da profissão um projeto de vida.

Recentemente tem-se realçado o caráter “reflexivo” dafunção docente como algo muito novo. Todavia, não existenenhuma teoria da educação que não defenda expressa-mente a necessidade da reflexão na prática do professor. Porisso, falar de “professor reflexivo”1 , pode ser consideradocomo redundância. Para o educador não basta ser reflexivo.É preciso que ele dê sentido à reflexão. A reflexão é meio, éinstrumento para a melhoria do que é específico de sua pro-fissão que é construir sentido, impregnar de sentido cada atoda vida cotidiana, como a própria palavra latina “insignare”(marcar com um sinal), significa.

A reflexão deve, portanto, ser crítica. O professor nãopode ser reduzido a isto ou àquilo. Seu saber profissional, deexperiência feito, de reflexão, de pesquisa, de intervenção,deve ser visto numa certa totalidade e não reduzido a certascompetências técnico-profissionais. Educar é também arte,ciência, práxis. Realçar o caráter reflexivo do quefazereducativo do professor, pode ser relevante, na medida emque se contrapõe à corrente do pensamento pedagógicopragmatista e instrumental, mas pode ser limitativo, se esse

1 Donald Schön. Educando o profissional reflexivo. Porto Alegre: ArtMed,1998.

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caráter não for compreendido numa certa totalidade de sa-beres necessários à prática educativa.

Fala também muito hoje de competências profissio-nais do professor. Fala-se menos de saberes. Virou modafalar de “novas competências”2 ou do “enfoque por compe-tências”, que lembra um pouco o debate da década de 80entre “competência técnica” e “compromisso político”.

Como em toda moda, em toda ideologia, ela tem umfundamento. Por isso, é preciso buscar, nesse “senso co-mum”, o “bom senso”, como queria Antonio Gramsci. Épreciso reconhecer que o contexto atual coloca novos desa-fios para a escola, para o ensino, o professor, o aluno, etc3 .O professor precisa saber organizar o seu trabalho e orientaro do aluno a organizar o seu, saber trabalhar em equipe,participar da gestão da escola, envolver os pais, utilizar no-vas tecnologias, ser ético, continuar sua formação... masesses saberes não foram desde sempre os saberes necessári-os à prática educativa?

Paulo Freire preferia falar de “saberes” e não de com-petências, uma palavra associada à tradição utilitarista,tecnocrática, ao mundo da empresa, à economia, àcompetitividade (ao mundo do trabalho neoliberal), à efi-ciência, à racionalização, à avaliação... Por isso ele falade “saberes necessários à prática educativa” em seu últi-mo livro4 .

As profissões que dependem inteiramente da tecnologia(o torneiro mecânico, por exemplo) estão vendo suas “com-petências e habilidades” se transformarem rapidamente. O

2 Philippe Perrenoud, Construir as competências desde a escola, PostoAlegre, Artmed, 2002. Tradução do francês Construire des compétencesdès l’école. Paris, ESF, 1997.

3 Moacir Gadotti, Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre, Armed,2000.

4 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa. São Paulo, Paz e Terra, 1997.

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professor, para o exercício das suas funções não dependeexclusivamente da tecnologia. Nem tudo muda para elemudando a tecnologia que utilizar. No novo contexto deimpregnação da informação ele precisa continuar sua for-mação ao longo de toda a vida e “saber ser, saber aprender,saber conviver, saber fazer”, como diz a UNESCO5 . Masprecisa continuar, como sempre, “saber porque” está ensi-nando e o que está ensinando, precisa “saber pensar”6 ,necessita associar ensino, pesquisa e envolvimento comuni-tário. Pesquisar faz parte da própria “natureza da práticadocente”, como diz Paulo Freire: “Fala-se hoje, com insis-tência”, diz ele, “no professor pesquisador. No meu enten-der o que há de pesquisador no professor não é uma quali-dade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente àde ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a inda-gação, a busca, a pesquisa. O de que se precisa é que, emsua formação permanente, o professor se perceba e se assu-ma, porque professor, como pesquisador”7 .

Alguns confundem competência com habilidade, mascompetência não é habilidade: o professor pode ser compe-tente, ter conhecimentos profundos de uma determinada dis-ciplina e não ter habilidades práticas para o ensino, nãosaber ensinar. A educação não é só ciência, mas é tambémarte. O ato de educar é complexo. O êxito do ensino nãodepende tanto do conhecimento do professor, mas da suacapacidade de criar espaços de aprendizagem, vale dizer,“fazer aprender” e de seu projeto de vida de continuaraprendendo.

Nesse contexto devemos destacar as “competências devida” ou os “saberes de experiência feitos”, como costuma-

5 Jacques Delors (org.), Educação: um tesouro a descobrir – Relatóriopara a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para oSéculo XXI. São Paulo, Cortez, 1998.6 Pedro Demo, Saber pensar. São Paulo, Cortez/Instituto Paulo Freire,2000.7 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa. São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 32.

Oprofessor,

para oexercíciodas suas

funções nãodepende

exclusivamenteda

tecnologia.

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va dizer Freire. As competências de vida que não se enqua-dram nas competências dos campos profissionais específi-cos. A questão das competências está ligada ao tema comoaprendemos. Aprendemos atuando, empreendendo, agin-do. A ação gera saber, habilidade, conhecimento. Agindo,por exemplo, aprendemos técnicas e métodos sobre “comofazer”. E, muitas vezes, por não termos sido formados parareconhecer essas competências, não sabemos ensinar comofazemos, como chegamos a ter êxito no que fazemos.

Paulo Freire foi um mestre do respeito desse saber,dessas competências de vida. Para ele aprender era conhe-cer melhor o que já se sabe para poder ter acesso a novosconhecimentos. Essa não era apenas uma técnica pedagó-gica mas um ato pedagógico e uma concepção de vida queparte do acolhimento, com respeito, de um ser que conhecee quer aprender mais.

Há um movimento, sobretudo na Europa, para reco-nhecer (certificar) as competências das pessoas (sobretudoadultas) que não passaram pela certificação da escola. Qualo sentido do reconhecimento das competências de vida daspessoas?

Creio que essa certificação só faz sentido se não forburocrática, isto é, se valorizar a capacidade de aprenderdas pessoas. Reconhecer uma competência ou habilidadeestimula e motiva as pessoas a continuar aprendendo, a“pensar a sua prática para transformá-la”, como queriaFreire.

O surgimento desse debate em torno da certificaçãode todas as competências das pessoas não deve ser invali-dado pela possibilidade de controle social que traz em simesmo. Este debate também traz algo positivo, na medidaem que encarna o surgimento de uma nova sociedade, deuma sociedade essencialmente aprendente.

A sociedade contemporânea está marcada pela ques-tão do conhecimento. E não é por acaso. O conheci-mento tornou-se peça chave para entender a própria evolu-ção das estruturas sociais, políticas e econômicas de hoje.

A açãogera saber,habilidade,conhecimento.

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Fala-se muito hoje em sociedade do conhecimento, às vezescom impropriedade. Mais do que a era do conhecimento,devemos dizer que vivemos a era da informação, pois perce-bemos com mais facilidade a disseminação da informação ede dados, muito mais do que de conhecimentos. O acessoao conhecimento é ainda muito precário, sobretudo em so-ciedades com grande atraso educacional.

Como ser professor na sociedade aprendente?

Hoje as teorias do conhecimento na educação estãocentradas na aprendizagem, no ato de aprender, de conhecer.

- O que é conhecer?

Conhecer é construir categorias de pensamento, é “lero mundo e transformá-lo”, dizia Freire. Não é possível cons-truir categorias de pensamento como se elas existissem apriori, independentemente do sujeito que conhece. Ao co-nhecer, o sujeito do conhecimento reconstrói o que conhece.

- Como conhecer?

Só é possível conhecer quando se deseja, quando sequer, quando nos envolvemos profundamente com o queaprendemos. No aprendizado, gostar é mais importante doque criar hábitos de estudo, por exemplo. Hoje se dá maisimportância às metodologias da aprendizagem, às lingua-gens e às línguas estrangeiras, do que aos conteúdos. Atransversalidade e a transdisciplinaridade do conhecimentoé mais valorizada do que os conteúdos longitudinais docurrículo clássico.

Frente à disseminação e à generalização do conheci-mento, é necessário que a escola e o professor, a professora,façam uma seleção crítica da informação, pois há muito lixoe propaganda enganosa sendo veiculados. Não faltam, tam-bém na era da informação, encantadores da palavra paratirar algum proveito, seja econômico, seja religioso, sejaideológico.

Conhecer é importante porque a educação se fundano conhecimento e este na atividade humana. Para inovar é

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preciso conhecer. A atividade humana é intencional, nãoestá separada de um projeto. Conhecer não é só adaptar-seao mundo. É condição de sobrevivência do ser humano eda espécie.

Antes de conhecer o sujeito se interessa por... é “curi-oso”, é “esperançoso” (Freire). Daí a importância do traba-lho de “sedução” (Nietzsche) do professor, da professora,frente ao aluno, à aluna. Seduzir no sentido de encantarpela beleza e não como técnica de manipulação. Daí a ne-cessidade da motivação, do encantamento. Motivação quedeve vir de dentro do próprio aluno e não da propaganda. Épreciso mostrar que “aprender é gostoso, mas exige esfor-ço”, como dizia Paulo Freire no primeiro documento queencaminhou aos professores quando assumiu a Secretariade Educação do Município de São Paulo.

Certamente, para o professor ter êxito nessa sociedadeaprendente, o professor, a professora precisam ter clarezasobre o que é conhecer, como se conhece, o que conhecer,porque conhecer, mas um dos segredos do chamado “bomprofessor” é trabalhar com prazer, gostando do que se faz.A gente faz sempre bem o que gosta de fazer. Só é bemsucedido aquele ou aquele que faz o que gosta.

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5. Aprender com emoção, ensinar com alegria

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A educação é necessária para a sobrevivência do serhumano. Para que ele não precise inventar tudo de novo,necessita apropriar-se da cultura, do que a humanidade jáproduziu. Educar é também aproximar o ser humano do quea humanidade produziu. Se isso era importante no passado,hoje é ainda mais decisivo numa sociedade baseada noconhecimento.

O professor precisa saber, contudo, que é difícil para oaluno perceber essa relação entre o que ele está aprendendoe o legado da humanidade. O aluno que não perceber essarelação não verá sentido naquilo que está aprendendo enão aprenderá, resistirá à aprendizagem, será indiferente aoque o professor estiver ensinando. Ele só aprende quandoquer aprender e só quer aprender quando vê na aprendiza-gem algum sentido. Ele não aprende porque é “burrinho”.Ao contrário, às vezes, a maior prova de inteligência en-contra-se na recusa em aprender.

Aprender vem de “ad” (junto de alguém ou algo) e“praehendere” (tentar prender, agarrar, pegar). Aprendemosporque somos seres inacabados: as tartarugas nascem“sabendo” o que precisam. Nascem na praia sem a presen-ça da mãe. Mesmo assim, elas “sabem” que devem ir logopara o mar, caso contrário podem acabar na boca de al-gum predador. Os seres humanos, contudo, se abandona-dos, mesmo com alguns meses de vida, eles morreriam.Nascem frágeis. Se os pais não os alimentam, morrem.

Nós, seres humanos, não só somos seres inacabadose incompletos como temos consciência disso. Por isso, preci-samos aprender “com”. Aprendemos “com” porque precisa-mos do outro, fazemo-nos na relação com o outro, media-dos pelo mundo, pela realidade em que vivemos.

O que acontece conosco é que se o que aprendemosnão tem sentido, não atender alguma necessidade, não “apre-endemos”. O que aprendemos tem que “significar” paranós. Alguma coisa ou pessoa é significativa quando ela dei-xa de ser indiferente. Esquecemos o que aprendemos sem

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sentido, o que não pode ser usado. Guardar coisa inútil éburrice. “O corpo aprende para viver. É isso que dá sentidoao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possi-bilidades de poder.O corpo não aprende por aprender.Aprender por aprender é estupidez”1 .

Todo ser vivo aprende na interação com o seu contex-to: aprendizagem é relação com o contexto. Quem dá signi-ficado ao que aprendemos é o contexto. Por isso, para oeducador ensinar com qualidade, ele precisa dominar, alémdo texto, o com-texto, além de um conteúdo, o significadodo conteúdo que é dado pelo contexto social, político, eco-nômico... enfim, histórico do que ensina. Nesse sentido, todoeducador é também um historiador.

Nós, educadores, precisamos ter clareza do que éaprender, do que é “aprender a aprender”, para entender-mos melhor o ato de ensinar. Para nós, educadores, nãobasta saber como se constrói o conhecimento. Nós precisa-mos dominar outros saberes da nossa difícil tarefa de ensi-nar. Precisamos saber o que é ensinar, o que é aprender e,sobretudo, como aprender.

- O que é aprender?

Aprender não é acumular conhecimentos. Aprende-mos história não para acumular conhecimentos, datas, in-formações, mas para saber como os seres humanos fizerama história para fazermos história. O importante é aprender apensar (a realidade, não pensamentos), aprender a aprender.

É o sujeito que aprende através da sua experiência.Não é um coletivo que aprende. Mas é no coletivo que seaprende. Eu dialogo com a realidade, com autores, commeus pares, com a diferença. Meu texto, este texto que estouescrevendo agora, por exemplo, é resultado de um diálogo:diálogo com o contexto, com os educadores, presentes emdiversas palestras, com os autores que li, etc.

1 Rubem Alves, “Sobre moluscos e homens”, in Folha de S. Paulo, 17 defevereiro de 2002, p. 3.

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Aprende-se o que é significativo para o projeto de vidada pessoa. Aprende-se quando se tem um projeto de vida.Aprendemos a vida toda. Não há tempo próprio paraaprender.

E mais: é preciso tempo para aprender e parasedimentar informações. Não dá para injetar dados e infor-mações na cabeça de ninguém. Exige-se também disciplinae dedicação. Como diz Paulo Freire: “Quem ensina apren-de ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”2 .

Só aprendemos quando colocamos emoção no queaprendemos. Por isso é necessário ensinar com alegria3 .Nossas escolas continuam preocupadas em ensinar e nãoparam para pensar o que é ensinar, como se aprende, por-que se aprende. “Dar aulas” tem-se constituído na únicapreocupação da escola. Tudo se resume na “aula”. Precisa-mos parar para pensar a escola, pensar no que estamosfazendo. Pedro Demo acha inacreditável que a escola pros-siga meramente “dando aulas”, em vez de estar cuidandoda “aprendizagem de todos os estudantes”4 .

Um concurso para professores traça o perfil docandidato. Elabora questões. Define bibliografia. Define oprocesso de seleção: dá pesos diferentes (juízo de valor) àspartes da prova escrita, faz ou não entrevistas, considera ounão o “tempo de serviço”, a experiência, a prática, conside-ra ou não os títulos... Um concurso para professores define“o professor” que quer. Somos escolhidos.

E nós, professores, escolhemos também? Que sentidotem para nós nos submetermos ao processo de seleção?Queremos ser aprovados para quê? Há um projeto que nosmove? Ou nos submetemos passivamente ao “perfil” exigi-

“Quem

ensina

aprende

ao ensinar

e quem

aprende

ensina ao

aprender”

2 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa. São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 25.3 Georges Snyders, A alegria na escola. São Paulo, Manole, 1986.4 Pedro Demo, Conhecer & Aprender – Sabedoria dos limites e desafios.Porto Alegre, Artmed, 2001.

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do pelo concurso? Por que não definimos as característicasa serem valorizadas no processo de seleção? Por que nãodefinimos o processo de seleção? Com quem trabalhare-mos? Com quem construiremos um projeto de vida, de es-cola, de educação, de sociedade? O que esperam de nós,nossos alunos e alunas? Precisamos passar no “concursodo sentido” que tem o nosso fazer pedagógico. Precisamosusar estrategicamente os concursos públicos para professorpara viabilizar um projeto de vida, um sonho.

Emprego. O sistema trata o professor apenas comoum “vaga”? O sistema, ao abir um concurso está chaman-do para um emprego. E nós, estamos nos candidatando auma vaga, ou a um projeto de vida a ser realizado, auma sonho?

E, finalmente, conseguimos um “emprego”. E agora?É cada vez mais difícil manter-se no “emprego”, na profis-são, principalmente pelo desrespeito, pela indisciplina, pelodesinteresse e pela violência que contamina muitas de nos-sas escolas. Há muitos professores e professoras que se sen-tem infelizes na escola e principalmente na sala de aula.Falta interesse, falta disciplina, faltam objetivos claros, en-fim, falta sentido para o que ensinam. O aluno também nãovê sentido no que está aprendendo na escola. E vem a per-gunta desalentadora: “Para que estou estudando isso, pro-fessora?” - “Para que estudar?”.

Em muitas palestras que venho dando, uma pergunta,dita de diversas maneira, me chega à mesa: “O que devofazer?” “O que o senhor faria no meu lugar?”.

O aluno quer saber, mas ele não quer aprender, nãoquer aprender o que lhe é ensinado e nem como lhe é ensi-nado. E o conflito, o desinteresse, a indisciplina, a violêncianas escolas está crescendo. A escola ensina num paradigmae o aluno aprende num outro paradigma. O que fazer dian-te do paradoxo: o aluno quer saber, mas não queraprender?

A escola precisa estar atenta às mudanças profundasque o contexto midiático contemporâneo está provocando

E,finalmente,conseguimosum“emprego”.E agora?

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na cabeça de crianças e jovens. Em média, no mundo, umacriança passa 4 horas diárias em frente à televisão. No Bra-sil são 8 horas. Em média, no mundo, a criança passa 8horas diárias na escola. No Brasil são 4 horas. E mais: osprofessores passam mais tempo com as crianças do que ospais. Passamos muito tempo na escola, passamos muito tem-po diante da televisão.

A criança passa muito tempo sentada diante da televi-são porque sente prazer em ficar lá. O que o professor falanão exerce o mesmo fascínio da TV. “Cada vez mais as cri-anças chegam à escola transportando consigo a imagem deum mundo – real ou fictício – que ultrapassa em muito oslimites da família e da comunidade de vizinhos. As mensa-gens mais variadas – lúdicas, informativas, publicitárias –transmitidas pelos meios de comunicação social entram emconcorrência ou em contradição com o que as criançasaprendem na escola. Estas mensagens surgem sempre orga-nizadas em rápidas seqüências o que, em numerosas regi-ões do mundo, tem uma influência negativa sobre a capaci-dade de manter a atenção, por parte dos alunos e, portanto,sobre as relações na aula. Passando os alunos menos tempona escola do que diante da televisão, a seus olhos é grandeo contraste entre a gratificação instantânea oferecida pelosmeios de comunicação, que não lhes exige nenhum esforço,e o que lhes é exigido para alcançarem sucesso na escola.

Tendo assim perdido, em grande parte, a preeminên-cia que tinham na educação, professores e escola encon-tram-se confrontados com novas tarefas: fazer da escola umlugar mais atraente para os alunos e fornecer-lhes as chavesde uma compreensão verdadeira da sociedade da informa-ção. O professor deve estabelecer uma nova relação comquem está aprendendo, passar do papel de ‘solista’ ao de‘acompanhante’, tornando-se não mais alguém que trans-mite conhecimentos, mas aquele que ajuda os seus alunos aencontrar, organizar e gerir o saber, guiando, mas não mo-delando os espíritos, e demonstrando grande firmeza quantoaos valores fundamentais que devem orientar toda a vida”5 .Essas considerações do Relatório para a UNESCO da Co-

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missão Internacional sobre Educação para o Século XXI meparecem muito apropriadas para explicar as dificuldadesenfrentadas hoje pelos professores. São pistas para enfrentara questão: “O que devo fazer?” “O que o senhor faria nomeu lugar?”. Mas, é claro, elas não dão conta de toda acomplexa questão do “saber ensinar”.

Diante das dificuldades da prática docente, dodesencanto dos nossos alunos, muitos e muitas professorassão vítimas da “síndrome da desistência”6 . Ela é expressana exaustão emocional provocada pelo aumento da quanti-dade de trabalhos e pela despersonalização provocada pelasua baixa valorização social e reduzida realização pessoal.

São essas dificuldades que nos levam à pergunta desempre: por que ser professor hoje? Qual é sentido de serprofessor hoje? Para que estou ensinando? Como deve ser onovo professor?

Eis, em resumo, as respostas que tenho dado com maisfreqüência em minhas falas, considerando o contexto daglobalização e da “nova globalização”7 emergente, quevenho chamando de “planetarização”8 e a sociedade dainformação que prefiro chamar de sociedade aprendente.

1. O novo professor é um profissional do sen-tido. Diante dos novos espaços de formação (diversas mídias,ONGs, Internet, espaços públicos e privados, associações,empresas, sindicatos, partidos, parlamento...), o novo pro-fessor integra esses espaços e deixa de ser lecionador para

5 Jacques Delors (org.), Educação: um tesouro a descobrir – Relatóriopara a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para oSéculo XXI. São Paulo, Cortez, 1998, p.154-155.6 Ver pesquisa sobre saúde dos trabalhadores em educação da CNTE(Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação), Educação:carinho e trabalho – Burnout, a síndrome da desistência do educador,que pode levar à falência da educação. Brasília, CNTE, 1999. Essapesquisa foi o mais amplo levantamento já realizado a respeito daeducação em todo o mundo. Durante dois anos foram entrevistados 52mil professores e funcionários de escola em 1.440 unidades das redespúblicas estaduais, nos 27 estados do Brasil.

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ser um “gestor” 9 do conhecimento social (popular), o pro-fissional que seleciona a informação e dá/constrói sentidopara o conhecimento, um mediador do conhecimento.“Gestor” aqui significa construtor, organizador, mediador,coordenador. Não se confunde com “gerente” de umaempresa.

O novo profissional da educação precisa perguntar-se: por que aprender, para quê, contra quê, contra quem. Oprocesso de aprendizagem não é neutro. O importante éaprender a pensar, a pensar a realidade e não pensar pen-samentos já pensados. Mas a função do educador não aca-ba aí: é preciso pronunciar-se sobre essa realidade que deveser não apenas pensada, mas transformada.

Muitas vezes não vemos sentido no que estamos ensi-nando. E nossos alunos também não vêem sentido no queestão aprendendo. Numa época de incertezas, de perplexi-dades, de transição, esse profissional deve construir sentidocom seus alunos. O processo ensino/aprendizagem deve tersentido para o projeto de vida de ambos para que seja umprocesso verdadeiramente educativo. O grande mal-estar demuitos de nossos professores e de nossas escolas está no “vi-ver sem sentido” do que estão fazendo. O ato educativo estáessencialmente ligado ao viver com sentido, à impregnação desentido para nossas vidas.

2. O novo professor é um profissional queaprende em rede (ciberespaço da formação), sem hierar-quias, cooperativamente (saber organizar o seu próprio tra-balho). É um aprendiz permanente, um organizador do tra-

[...]o novo

professor[...] deixa

de serlecionador

para ser um“gestor” do

conhecimentosocial [...]

7 Milton Santos, Por uma outra globalização: do pensamento único àconsciência universal. São Paulo, Record, 2000.8 Ver Ângela Antunes, Leitura do mundo no contexto da planetarização:por uma pedagogia da sustentabilidade. São Paulo, Faculdade deEducação da Universidade de São Paulo, 2002 (Tese de doutorado) eMoacir Gadotti, Pedagogia da Terra. São Paulo, Peirópolis, 2001.9 Ladislau Dowbor, A reprodução social: propostas para uma gestãotransformadora. Petrópolis, Vozes, 1998.

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balho do aluno; consciente, mas também sensível. Ele des-perta o desejo de aprender para que o aluno seja autônomoe se torne sujeito da sua própria formação.

Por isso, o novo professor precisa desenvolver ha-bi l idades de colaboração ( t rabalho em grupo,interdisciplinaridade), de comunicação (saber falar, sedu-zir, escrever bem, ler muito), de pesquisa (explorar novashipóteses, duvidar, criticar) e de pensamento (saber tomardecisões).

O enfoque da formação do novo professor deve ser naautonomia e na participação, nas formas colaborativas deaprendizagem. Diz Paulo Freire: “O bom professor é o queconsegue, enquanto fala, trazer o aluno até a intimidade domovimento de seu pensamento. Sua aula é assim um desa-fio e não uma ‘cantiga de ninar’. Seus alunos cansam, nãodormem. Cansam porque acompanham as idas e vindas deseu pensamento, surpreendem suas pausas, suas dúvidas,suas incertezas”10 .

3. Ensinar é mobilizar o desejo de aprender.Mais importante do que saber é nunca perder a capacidadede aprender. “Saber é saborear”, diz Rubem Alves11 . Onovo profissional da educação deve romper o divórcio entrea vida escolar e o prazer.

Para ensinar são necessárias principalmente duascoisas:

a) gostar de aprender, ter prazer em ensinar, comoum jardineiro que cuida com emoção do seu jardim, desua roça;

b) amar o aprendente (criança, adolescente, adulto,idoso). Só aprendemos quando aquilo que aprendemos é“significativo” (Piaget) para nós e nos envolvemos profun-damente no que aprendemos.

10 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa, São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 96.

“[...]

Sua aula

é assim um

desafio e

não uma

‘cantiga de

ninar’.

[...]”

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O que aprendemos deve fazer parte do nosso pro-jeto de vida. É preciso gostar de ser professor (auto-esti-ma) para ensinar.

4. A ética é parte integrante da competênciado professor, do saber ser professor. Isso significa que umprofessor que não tem um sonho, uma utopia, não é com-prometido... não é competente, não é ético. Não se podeeducar sem um sonho. Ensinar por ensinar, mecanizar,deshumanizar o processo educativo é não ser ético. Apren-de-se ao longo de toda a vida, desde que tenhamos um proje-to de vida. Ética do “cuidado”12 , da “amorosidade” (Freire).

A razão competente deve ser uma razão “molhada deemoção” (Freire). O papel das emoções no processo deaprendizagem é decisivo: razão e emoção não são instânci-as separadas no ser que aprende (Wallon). A emoção é par-te do ato de conhecer.

Em alemão educar significa cuidar, acolher. Uma so-ciedade alucinada e ruidosa como a nossa não pode edu-car porque não pode cuidar, não pode acolher. Nela nãohá mais tempo para o “modo de ser cuidado”, para o en-contro, mas apenas para o “modo de ser trabalho” ou ex-ploração, nas expressões utilizadas por Leonardo Boff13 .

5. O novo professor é também um profissional doencantamento. Num mundo de desencanto e deagressividade crescentes, o novo professor tem um papelbiófilo. É um promotor da vida, do bem viver, educa para apaz e a sustentabilidade. Não podemos abrir mão de umaantiga lição: a educação é ao mesmo tempo ciência e arte.A arte é a “técnica da emoção” (Vygotski). O novo profissi-onal da educação é também um profissional que domina aarte de reencantar, de despertar nas pessoas a capacidadede engajar-se e mudar.

11 Rubem Alves, Conversas com quem gosta de ensinar. São Paulo,Cortez, 1981.12 Leonardo Boff, Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra.Petrópolis, Vozes, 1999.13 Idem, ibidem.

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6. Educar para uma vida saudável

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Três décadas de debates sobre “nosso futuro comum”deixaram algumas pegadas ecológicas, tanto no campo daeconomia, quanto no campo da ética, da política e da edu-cação, que podem nos indicar um caminho diante dos de-safios do Século XXI. A sustentabilidade tornou-se um temagerador preponderante neste início de milênio para pensarnão só o planeta mas também a educação; um tema porta-dor de um projeto social global e capaz de reeducar nossoolhar e todos os nossos sentidos, capaz de reacender a es-perança num futuro possível, com dignidade, para todos.

O cenário não é otimista: podemos destruir toda avida no planeta neste milênio que se inicia. Uma ação con-junta global é necessária, um movimento como grande obracivilizatória de todos é indispensável para realizarmos essaoutra globalização, essa planetarização, fundamentadaem outros princípios éticos que não os baseados na explora-ção econômica, na dominação política e na exclusão soci-al. O modo pelo qual vamos produzir nossa existência nestepequeno planeta, decidirá sobre a sua vida ou a sua morte,e a de todos os seus filhos e filhas.

Os paradigmas clássicos, fundados numa visãoindustrialista predatória, antropocêntrica e desenvolvimentista,estão se esgotando, não dando conta de explicar o momen-to presente e de responder às necessidades futuras. Necessi-tamos de um outro paradigma, fundado numa visão susten-tável do planeta Terra. O globalismo é essencialmente insus-tentável. Ele atende primeiro às necessidades do capital edepois às necessidades humanas. E muitas das necessida-des humanas a que ele atende, tornaram-se “humanas”apenas porque foram produzidas como tais para servi-rem ao capital.

Precisamos de uma “Pedagogia da Terra”, uma peda-gogia apropriada para esse momento de reconstruçãoparadigmática, apropriada à cultura da sustentabilidadee da paz. Ela vem se constituindo gradativamente, benefici-ando-se de muitas reflexões que ocorreram nas últimas dé-cadas, principalmente no interior do movimento ecológico.

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Ela se fundamenta num paradigma filosófico1 emergente naeducação que propõe um conjunto de saberes/valoresinterdependentes. Entre eles podemos destacar:

1º. Educar para pensar globalmente. Na era dainformação, diante da velocidade com que o conhecimentoé produzido e envelhece, não adianta acumular informa-ções. É preciso saber pensar. E pensar a realidade. Nãopensar pensamentos já pensados. Daí a necessidade derecolocarmos o tema do conhecimento, do saber aprender,do saber conhecer, das metodologias, da organização dotrabalho na escola.

2º. Educar os sentimentos. O ser humano é o úni-co ser vivente que se pergunta sobre o sentido de sua vida.Educar para sentir e ter sentido, para cuidar e cuidar-se,para viver com sentido cada instante da nossa vida. Somoshumanos porque sentimos e não apenas porque pensamos.Somos parte de um todo em construção e reconstrução.

3º. Ensinar a identidade terrena como condiçãohumana essencial. Nosso destino comum no planeta, com-partilhar com todos, sua vida no planeta. Nossa identidadeé ao mesmo tempo individual e cósmica. Educar para con-quistar um vínculo amoroso com a Terra, não para explorá-la, mas para amá-la.

4º. Formar para a consciência planetária. Com-preender que somos interdependentes. A Terra é uma só na-ção e nós, os terráqueos, os seus cidadãos. Não precisaría-mos de passaportes. Em nenhum lugar na Terra deveríamosnos considerar estrangeiros. Separar primeiro de terceiromundo, significa dividir o mundo para governá-lo a partirdos mais poderosos; essa é a divisão globalista entreglobalizadores e globalizados, o contrário do processo deplanetarização.

1 Entre os principais representantes desse paradigma podemos citar:Paulo Freire, Leonardo Boff, Sebastião Salgado, Boaventura de SousaSantos, Milton Santos, Aziz Ab’Sáber, Thomas Berry, Fritjop Capra, EdgarMorin.

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5º. Formar para a compreensão. Formar para aética do gênero humano, não para a ética instrumental eutilitária do mercado. Educar para comunicar-se. Não co-municar para explorar, para tirar proveito do outro, mas paracompreendê-lo melhor. A Pedagogia da Terra que defende-mos funda-se nesse novo paradigma ético e numa nova in-teligência do mundo. Inteligente não é aquele que sabe re-solver problemas (inteligência instrumental), mas aquele quetem um projeto de vida solidário. Por que é bela a diversida-de, porque é enriquecedora na possibilidade de criação denovas realidades e mais plenas. A solidariedade, como valore como necessidade humana, embeleza, humaniza e pro-move a vida.

6º. Educar para a simplicidade e para a quietu-de. Nossas vidas precisam ser guiadas por novos valores:simplicidade, austeridade, quietude, paz, saber escutar, sa-ber viver juntos, compartir, descobrir e fazer juntos. Precisa-mos escolher entre um mundo mais responsável frente à cul-tura dominante que é uma cultura de guerra, do ruído, decompetitividade sem solidariedade, e passar de uma respon-sabilidade diluída a uma ação concreta, praticando asustentabilidade na vida diária, na família, no trabalho, naescola, na rua. A simplicidade não se confunde com asimploriedade e a quietude não se confunde com a culturado silêncio. A simplicidade tem que ser voluntária como amudança de nossos hábitos de consumo, reduzindo nossasdemandas. A quietude é uma virtude, conquistada com apaz interior e não pelo silêncio imposto.

É claro, tudo isso supõe justiça e justiça supõe quetodas e todos tenham acesso à qualidade de vida. Seria cíni-co falar de redução de demandas de consumo, atacar oconsumismo, falar de consumismo aos que ainda não tive-ram acesso ao consumo básico. Não existe paz sem justiça.

Diante do possível extermínio do planeta, surgem al-ternativas numa cultura da paz e uma cultura dasustentabilidade. Sustentabilidade não tem a ver apenascom a biologia, a economia e a ecologia. Sustentabilidadetem a ver com a relação que mantemos conosco mesmos,

A quietudeé uma

virtude,conquistada

com a pazinterior enão pelosilêncio

imposto.

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com os outros e com a natureza. A pedagogia deveria co-meçar por ensinar sobretudo a ler o mundo, como nos dizPaulo Freire, o mundo que é o próprio universo, por que éele nosso primeiro educador. Essa primeira educação é umaeducação emocional que nos coloca diante do mistério douniverso, na intimidade com ele, produzindo a emoção denos sentirmos parte desse sagrado ser vivo e em evolu-ção permanente.

Não entendemos o universo como partes ou entida-des separadas, mas como um todo sagrado, misterioso, quenos desafia a cada momento de nossas vidas, em evolução,em expansão, em interação. Razão, emoção e intuição sãopartes desse processo, onde o próprio observador está impli-cado. O Paradigma-Terra é um paradigma civilizatório. Ecomo a cultura da sustentabilidade oferece uma nova per-cepção da Terra, considerando-a como uma única co-munidade de humanos, ela se torna básica para umacultura de paz.

O universo não está lá fora. Está dentro de nós. Estámuito próximo de nós. Um pequeno jardim, uma horta, umpedaço de terra, é um microcosmos de todo o mundo natu-ral. Nele encontramos formas de vida, recursos de vida, pro-cessos de vida. A partir dele podemos reconceitualizar nossocurrículo escolar. Ao construí-lo e ao cultivá-lo podemosaprender muitas coisas. As crianças o encaram como fontede tantos mistérios! Ele nos ensina os valores daemocionalidade com a Terra: a vida, a morte, a sobrevivên-cia, os valores da paciência, da perseverança, da criatividade,da adaptação, da transformação, da renovação.

Todas as nossas escolas podem transformar-se em jar-dins e professores-alunos, educadores-educandos, em jar-dineiros. O jardim nos ensina ideais democráticos: conexão,escolha, responsabilidade, decisão, iniciativa, igualdade,biodiversidade, cores, classes, etnicidade, e gênero.

Paulo Freire insistia na necessidade de reafirmar a es-tética como dimensão fundamental da tarefa de educar. OInstituto Paulo Freire vem dando continuidade e reinventando

Ouniversonão estálá fora.Estádentrode nós.

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esse sonho de Paulo Freire. Como me escreveu um dos seusdiretores pedagógicos, Paulo Roberto Padilha, que está con-cluindo sua tese de doutorado sobre esse tema, “a bonitezade ser professor está no fato de ser uma atividade desafiado-ra, cheia de cores, tempos e espaços diferentes. A vida doprofessor poderia ser dinâmica e bela se pudéssemos enchê-la de jardins, de sons, de imagens, de sentimentos... se pu-déssemos resgatar a beleza que temos em nós, seres huma-nos. Resgatar na sala de aula e na escola, a nossa humani-dade”. Concordo plenamente com ele.

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7. Ser professor, ser educador

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“Educadores, onde estarão?”, pergunta Rubem Alves.

E ele mesmo responde: “Em que covas terão se escon-dido? Professores, há aos milhares, mas professor é profis-são, não é algo que se define por dentro, por amor. Educa-dor, ao contrário, não é profissão, é vocação. E toda voca-ção nasce de um grande amor, de uma grande esperan-ça”1 . E continua: “Com o advento da indústria como pode-ria o artesão sobreviver? Foi transformado em operário desegunda classe, até morrer de desgosto e saudade. O mes-mo com os tropeiros, que dependiam das trilhas estreitas edas solidões, que morreram quando o asfalto e o automóvelchegaram. Destino igualmente triste teve o boticário, semrecursos para sobreviver num mundo de remédios prontos.Foi devorado no banquete antropofágico dasmultinacionais”2 .

Rubem Alves é um emérito escritor, psicanalista, edu-cador respeitado, mas é sobretudo um semeador de sonhose de idéias que dão a pensar. Foi assim que introduziu umaintrigante distinção entre ser professor e ser educador:“Com o advento do utilitarismo a pessoa passou a ser defi-nida pela sua produção; a identidade é engolida pela fun-ção. E isto se tornou tão arraigado que, quando alguém nospergunta o que somos, respondemos inevitavelmente dizen-do o que fazemos. Com essa revolução instaurou-se a pos-sibilidade de se gerenciar e administrar a personalidade, poisque aquilo que se faz e se produz, a função, é passível demedição, controle, racionalização. A pessoa praticamentedesaparece, reduzindo-se a um ponto imaginário em quevárias funções são amarradas. É isto que eu quero dizer aoafirmar que o nicho ecológico mudou. O educador, pelomenos o ideal que minha imaginação constrói, habita ummundo em que a interioridade faz uma diferença, em que as

1 Rubem Alves, in Carlos R. Brandão (org.), O educador: vida e morte– escritos sobre uma espécie em perigo. São Paulo, Brasiliense, 1982,p. 16.

2 Idem, ibidem.

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pessoas se definem por suas visões, paixões, esperanças ehorizontes utópicos. O professor ao contrário, é funcionáriode um mundo dominado pelo Estado e pelas empresas. Éuma entidade gerenciada, administrada segundo a sua ex-celência funcional, excelência esta que é sempre julgada apartir dos interesses do sistema. Freqüentemente o educadoré mau funcionário, porque o ritmo do mundo do educadornão segue o ritmo do mundo da instituições. Não é de seestranhar que Rousseau tenha se tornado obsoleto. Porque aeducação que ele contempla ocorre colada ao imprevisívelde uma experiência de vida ainda não gerenciada”3 . E con-clui mais a frente: “Talvez que um professor seja um funcio-nário das instituições... O educador, ao contrário é um fun-dador de mundos, mediador de esperanças, pastor de pro-jetos. Não sei como preparar o educador. Talvez que istonão seja nem necessário nem possível... É necessário acordá-lo. E aí aprenderemos que educadores não se extinguiramcomo tropeiros e caixeiros”4 .

As reações às provocações de Rubem Alves não sefizeram esperar. Suas teses geravam uma saudável polêmi-ca. O professor Jefferson Ildefonso da Silva sustenta que existeum “falso dilema” entre educador e professor. Esse dilema“se dilui e perde sua relevância ao se encarar a formação doeducador para além do âmbito pedagógico ou individualis-ta, para situá-lo na perspectiva de uma proposta e teoriapedagógica que incorpore o caráter político da prática pe-dagógica e sua dependência da práxis social global, ondese dá a luta hegemônica das classes”5 . Todo professor é,por função, educador. Para ele o educador é um intelectualdirigente, orgânico. Numa sociedade dividida, ele não éneutro. Numa perspectiva emancipadora, o educador é umintelectual orgânico das classes populares, a favor dos inte-resses das pessoas que necessitam de educação.

3 Idem, pp. 18-19.4 Idem, p. 28.5 Jefferson Ildefonso da Silva, Formação do educador e educação política,São Paulo, Cortez/Autores Associados, 1991, p. 13.

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Ensinar-e-aprender com sentido

Com ele, também concorda meu ex-aluno e amigo, aquem ensinei e, sobretudo, com quem muito aprendi e con-tinuo aprendendo, o professor Celso dos Santos Vasconcellospara o qual seria um contra-senso pensar que a classe do-minante se disponha a oferecer um ensino popular de qua-lidade que desvende as relações de dominação existentes nasociedade: “A escola para o povo só tem sentido numa novaforma de organizar a sociedade. Não é possível fazer umaescola para todos dentro de uma sociedade para alguns!Ou seja, a democratização da escola precisa ser acompa-nhada de um novo projeto social”6 . Formar para e pelacidadania não pode limitar-se a uma formação genérica parauma sociedade que não existe. Uma educação cidadãprecisa ser uma educação de classe.

Vasconcellos insiste na questão do sentido da fun-ção docente. Ele sustenta que os educadores não estãosabendo articular o “novo sentido” da sua profissão sobre-tudo em função de seu desgaste profissional. Ele sustentaque o que vai dar sentido à sua profissão é justamente “aesperança de poder construir uma realidade diferente e deque a escola pode contribuir para a concretização desta so-ciedade mais humana. O mesmo movimento que recuperao sentido do trabalho do professor é o que dá sentido aoestudo para o aluno. Estamos no mesmo barco; daí a im-portância de ver no aluno – e na comunidade – um aliado(e não um inimigo, como tem acontecido amiúde)”7 .Vasconcellos insiste na necessidade do professor “ganhar” oaluno para a “indispensável mudança que deve ocorrer: nãose trata mais de estudar simplesmente para poder garantir oseu lugarzinho no bonde da história; trata-se, isto sim, deestudar a fim de ganhar competência e ajudar a mudar orumo deste bonde, ou seja, ajudar a construir uma socieda-de onde haja lugar para todos!”8 e cita a seguir um artigo

6 Celso dos Santos Vasconcellos, Para onde vai o professor? Resgate doprofessor como sujeito de transformação, São Paulo, Editora Libertad,1995, p. 49.7 Idem, p. 52.8 Idem, ibidem.

O mesmomovimento

querecupera

o sentido dotrabalho

do professoré o que dá

sentidoao estudo

para oaluno.

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da Folha de S. Paulo, segundo o qual “o Brasil logo terá doistipos de pessoas: os que não comem, porque não têm o quecomer e os que não dormem, de medo dos que não comem”.

Diante desse quadro, o professor competente, profissi-onalmente, o professor “que sabe”, não pode ficar indife-rente. Porque ser comprometido, engajar-se, ser ético, fazparte da sua competência como professor. Como profissio-nal do sentido, sua profissão está ligada ao amor e à espe-rança. Ela não se extinguirá enquanto houver espaço para aconstrução da humanidade.

A esperança, para o professor, a professora, não éalgo vazio, de quem “espera” acontecer. Ao contrário, aesperança para o professor encontra sentido na sua pró-pria profissão, a de transformar pessoas, a de construir pes-soas, e alimentar, por sua vez, a esperança delas para queconsigam, por sua vez, construir uma realidade diferente,“mais humana, menos feia, menos malvada”, como costu-mava dizer Paulo Freire. Uma educação sem esperançanão é educação.

A educação, nesse sentido, confunde-se com proces-so de humanização. Respondendo à questão “como oprofessor pode tornar-se um intelectual na sociedade con-temporânea”, o geógrafo brasileiro Milton Santos, falecidono ano de 2001, respondeu: “Quando consideramos a his-tória possível e não apenas a história existente, passamos aacreditar que outro mundo é viável. E não há intelectual quetrabalhe sem idéia de futuro. Para ser digno do homem, qualseja, do homem visto como projeto, o trabalho intelectual eeducacional tem que ser fundado no futuro. É dessa for-ma que os professores podem tornar-se intelectuais:olhando o futuro”9 .

Pensar a educação do futuro e o futuro da humanida-de é pensar holisticamente, pensar a totalidade. E educar

9 Milton Santos, “O professor como intelectual na sociedadecontemporânea”. In Anais do IX ENDIPE- Encontro Nacional de Didáticae Prática de Ensino, vol. III, São Paulo, 1999, p. 14.

Umaeducaçãosemesperançanão éeducação.

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holisticamente é estimular o desenvolvimento integral do serhumano em sua totalidade pessoal - intelectual, emocio-nal, física - relacionada com a totalidade do mundo davida - os outros seres vivos, a comunidade, a sociedade - ea totalidade cósmica: a Terra, o universo. Educarholisticamente é entender o ser humano como um ser quetranscende, que ultrapassa todos os limites, “até o últimohorizonte”, como diz Leonardo Boff10 .

O professor precisa indagar-se constantemente sobreo sentido do que está fazendo. Se isso é fundamental paratodo ser humano, como ser que busca sentido o tempo todo,para toda e qualquer profissão, para o professor é tambémum dever profissional. Faz parte de seus saberes profissio-nais continuar indagando, junto com seus colegas e alunos,sobre o sentido do que estão fazendo na escola. Ele estásempre em processo de construção de sentido. Comodiz Celso Vasconcellos11 , “o sentido não está pronto em al-gum lugar esperando ser descoberto. O sentido não advémde uma esfera transcendente, nem da imanência do objetoou ainda de um simples jogo lógico-formal. É uma constru-ção do sujeito! Daí falarmos em produção. Quem vai pro-duzir é o sujeito, só que não de forma isolada, mas numcontexto histórico e coletivo (...). Ser professor, na acepçãomais genuína, é ser capaz de fazer o outro aprender, desen-volver-se criticamente. Como a aprendizagem é um proces-so ativo, não vai se dar, portanto, se não houver articulaçãoda proposta de trabalho com a existência do aluno; mastambém do professor, pois se não estiver acreditando, senão estiver vendo sentido naquilo, como poderá provocarno aluno o desejo de conhecer?”

Celso Vasconcellos insiste, em seu livro que o papel doprofessor é “educar através do ensino”12 . Ele pode apenas

10 Leonardo Boff, Tempo de transcendência: o ser humano como umprojeto infinito. São Paulo, Sextante, 2000.11 Celso Vasconcellos, Para onde vai o professor? Resgate do professorcomo sujeito de transformação. São Paulo, Libertad, 2001, pp. 51-52.12 Idem, p. 55.

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ensinar tabuada, mas só educa através do ensino quandoconstruir o sentido da tabuada junto com seu aprendiz, porque, como diz ele, ensinar vem do latim insignare, que sig-nifica “marcar com um sinal”, atuar na construção do signi-ficado do que fazemos. Tudo o que fazemos precisamos fa-zer com sentido, tudo o que estudamos tem que ter sentido.

Os dois maiores educadores do século passado, JohnDewey e Paulo Freire, cada um a seu modo, procuraramresponder a essa questão e centraram suas análises na rela-ção entre “educação e vida”, reagindo às pedagogiastecnicistas do seu tempo – tanto de esquerda quanto de di-reita – que só se preocupavam com métodos e técnicas.“Gostaria de ser lembrando como alguém que amou a vida”,disse Paulo Freire duas semanas antes de falecer. A educa-ção só tem sentido como vida. Ela é vida. A escola perdeuseu sentido de humanização quando ela virou mercadoria,quando deixar de ser o lugar onde a gente aprende a sergente, para tornar-se o lugar onde as crianças e os jovensvão para aprender a competir no mercado.

A educação, para ser transformadora, emancipadora,precisa estar centrada na vida, ao contrário da educaçãoneoliberal que está centrada na competividade sem solidari-edade. Para ser emancipadora a educação precisa conside-rar as pessoas, suas culturas, respeitar o modo de vida daspessoas, sua identidade. O ser humano é “incompleto einacabado” como diz Paulo Freire13 , em formaçãopermanente.

Por isso, hoje, o professor precisa mostrar que oneoliberalismo, com sua política de mercantilização daeducação, tornou a sua profissão descartável. É precisomostrar também que uma educação de qualidade para to-dos é inviável e contrária ao projeto político neoliberal capi-talista. É preciso fazer a análise crítica, social, econômica.

13 Paulo Freire, Educação e mudança. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979,p. 27.

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Mas tudo isso não basta. É preciso que a rigorosa análiseda situação não fique nela, mas aponte caminhos e nosindique como caminhar. Caso contrário, as análises socio-lógicas e políticas, por mais rigorosas e corretas que sejam,ajudam apenas para manter o imobilismo e a falta de pers-pectivas para o educador. Há que superar tanto o imobilismoquanto a prática do imediatismo tarefeiro e descomprometidocom um projeto amplo de socidade.

O poder do professor está tanto na sua capacidadede refletir criticamente sobre a realidade para transformá-laquanto na possibilidade de formar um grupo de compa-nheiros e companheiras para lutar por uma causa comum.Paulo Freire insistia que a escola transformadora era a “es-cola de companheirismo”, por isso sua pedagogia é umapedagogia do diálogo, das trocas, do encontro, das redessolidárias. “Companheiro” vem do latim e significa “aqueleque partilha o pão”. Trata-se portanto de uma postura radi-cal ao mesmo tempo crítica e solidária.

Às vezes somos apenas críticos e perdemos o afeto dosoutros por falta de companheirismo. Não haverá superaçãodas condições atuais do magistério sem um profundo senti-mento de companheirismo. Lutando sozinhos chegaremos ape-nas à frustração, ao desânimo, à lamúria. Daí o sentido pro-fundamente ético dessa profissão. No fundo, para enfrentar abarbárie neoliberal na educação vale ainda a tese de Marx deque “o próprio educador deve ser educado”, educado para aconstrução histórica de um sentido novo de seu papel.

Escrevi esse pequeno inspirado na Pedagogia da au-tonomia de Paulo Freire. Nesse seu último livro, ele traba-lhou principalmente a ética e a estética do ser professor: oque ele deve saber para ser professor, como ele deve serpara ser professor.

Paulo Freire sonhava com uma sociedade, um mundo,onde todos coubessem. A educação pode dar um passo nadireção deste outro mundo possível se ensinar as pessoascom um novo paradigma do conhecimento, com uma visãodo mundo onde todas as formas de conhecimento tenham

Lutandosozinhos

chegaremosapenas à

frustração,ao

desânimo,à lamúria.

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lugar, se dotar os seres humanos de generosidadeepistemológica, um pluralismo de idéias e concepçãoque se constitui na grande riqueza de saberes e conheci-mento da humanidade.

Creio que existe ainda na comunidade humana umaimensa reserva de altruismo e de solidariedade, um diqueque o educador precisa conhecer e potencializar para rom-per as barreiras do represamento. Educar é empoderar. Nãoé tanto ensinar quanto reencantar. Ou melhor, ensinar, nes-se contexto, é reencantar, despertar a capacidade de sonhar,despertar a crença de que é possível mudar o mundo. Essaprofissão, por isso, é insubstituível. Não podemos imaginarum futuro sem ela. Não podemos imaginar um futuro semprofessores. Nisso acredito nas palavras de Rubem Alves:“Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma formacontinuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a vero mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assimnão morre jamais...”14 .

A esta altura muitos leitores e leitoras estarão se per-guntando se eu não estaria idealizando a figura do profes-sor, ignorando totalmente a estrutura caótica imposta às re-des e sistemas de ensino pelo estado capitalista que acabaculpabilizando o próprio professor pelos fracassos da esco-la. O cenário não é otimista. Eu não poderia, de forma al-guma, ignorá-lo. Ao contrário, precisamos reacender o so-nho de ser professor com sentido, justamente para combateresse estado de coisas. Precisamos reafirmar o sonho justa-mente, como nos diz Paulo Freire, para fazer frente “à mal-vadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e asua recusa inflexível ao sonho e à utopia”15 . Sair do planoideal para a prática, não é abandonar o sonho para agir,mas agir em função dele, agir em função de um projeto devida e de escola, de cidade, de mundo possível, de plane-ta... um projeto de esperança.

14 Rubem Alves, em carta enviada a alguns amigos no final de 2001.15 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à práticaeducativa, São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 15.

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BIBLIOGRAFIA

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