Anais do simpsio
200 anos dos Contos Maravilhosos dos Irmos Grimm
Magias, encantamentos e metamorfoses
Fabulaes modernas e suas expresses no imaginrio
contemporneo
Comunicaes livres
Magali Moura
Delia Cambeiro
Organizadoras
200 anos dos Contos Maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio
Magias, encantamentos e metamorfoses
Fabulaes modernas e suas expresses no imaginrio
contemporneo
Comunicaes livres
Rio de Janeiro
APA-Rio
2013
Direitos Autorais 2013, dos Autores.
Associao de Professores do Estado do Rio de Janeiro
Rua do Passeio, 62, 1, andar - Centro
CEP 20021-290 Rio de Janeiro RJ
E-mail: [email protected]
CATALOGAO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B
S612 200 Anos dos Contos Maravilhosos dos Irmos Grimm (1. :2013 : Rio de
Janeiro)
Magias, encantamentos e metamorfoses: fabulaes modernas e
suas expresses no imaginrio contemporneo: comunicaes livres /
Magali Moura, Delia Cambeiro organizadoras. Rio de Janeiro : Apa-Rio, 2013.
100 p.
ISBN 978-85-65350-03-7
Acima do ttulo: Anais do simpsio.
1. Contos de fada Histria e crtica - Congressos. 2. Literatura fantstica - Histria e crtica - Congressos. 3. Grimm, Jacob, 1875-1867
- Crtica e interpretao - Congressos. 4. Grimm, Wilhelm, 1786-1859
Crtica e interpretao - Congressos. I. Moura, Magali dos Santos. II. Praa, Delia Cambeiro. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Letras. IV. Ttulo.
CDU 830-343.4 (063)
Simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses. Fabulaes
modernas e suas expresses no imaginrio contemporneo
Realizado entre os dias 08 e 12 de outubro de 2012 no
Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
Comisso Organizadora
Magali Moura Delia Cambeiro Patrcia D. Maas Roberta Stanke Ebal Bolacio
Comisso Cientfica
Marcus Mazzari Maria Cristina Batalha lvaro Bragana Karin Volobuef
rgos financiadores
CAPES FAPERJ DAAD Goethe Institut-Rio Apa-Rio Programa de Ps-graduao em Letras / Uerj Sub-Reitoria de Pesquisa SR2 / Uerj
SUMRIO 7 Apresentao
Magali Moura Delia Cambeiro
11 Fabular, iludir, encantar: aspectos da fabulao pica na obra de
Robert Musil
rica Gonalves de Castro
25 Herder, os Contos dos Grimm e a Volkspoesie
Orlando Marcondes Ferreira Neto
37 Mitologia japonesa e os Irmos Grimm: entrecruzamentos (in)esperados na literatura miditica
Janete Oliveira
57 Convergncia entre o desejo e a lei: uma leitura do conto A protegida de Maria
Jos Carlos de Lima Neto
67 Chapeuzinho vermelho: uma potica da voz atravs dos sculos
Catharina Helena Salviatto Depieri
81 O sequestro dos contos de fadas na formao do indivduo. Contribuies das obras de Grimm e de suas (re)leituras formao dos indivduos na atualidade
Patrick da Silva Dias
93 O Pequeno Polegar de Charles Perrault: pontos de referncia com a vida burguesa e o fenmeno da trapaa justificada
Bruna Cardoso Brasil de Souza
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
7
Apresentao
presente volume rene a seleo de trabalhos apresentados
como comunicaes livres no simpsio em comemorao
aos 200 anos da primeira edio dos contos de fadas
populares coletados pelos Irmo Grimm e intitulada de Contos maravilhosos para
crianas e para o lar (Kinder- und Hausmrchen).
Falar da importncia de Jacob e de Wilhelm Grimm implica retomar
instantes essenciais para a cultura literria do Ocidente, isso porque, como j
assinalado, em 1812, veio a lume a primeira edio do primeiro volume da
coletnea de narrativas elaborada pelos Grimm. O trabalho da dupla se
estendeu at o ano de 1815 e a obra foi publicada de acordo com o esprito
romntico de resgate das origens e saberes populares. Configura-se como a
mais conhecida antologia de contos de fadas e de lendas j realizada na
cultura ocidental, reunindo cerca de 210 narrativas plenas de magia e
encantamento. A tarefa de colecionar histrias e canes populares, que
corriam o risco de carem no esquecimento, j havia sido empreendida cerca de
um sculo antes por Perrault na Frana e, alguns anos antes, por Herder,
Goethe, Brentano e Arnim na Alemanha. Cerca de um sculo depois, foi
realizada no Brasil por Slvio Romero, Cmara Cascudo e Mrio de Andrade.
A antologia dos Grimm, sem dvida, marca a passagem de um
discurso sinetado exclusivamente pela oralidade para uma cristalizao no
discurso literrio, o que abriu caminho criao de novas fbulas, ou melhor,
de uma nova forma de fabulao, os chamados contos artsticos
(Kunstmrchen) dos romnticos. Autores tais como Novalis, Hoffmann, Tieck,
Goethe, Andersen e Collodi adentraram no terreno do maravilhoso e fantstico
e contriburam para o incremento dessa forma de narrativa por meio de suas
imaginaes, o que, anos mais tarde e de forma distinta, tambm contribuiu
para o desenvolvimento do chamado realismo mgico.
O
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
8
Atravs da iniciativa dos Irmos Grimm, figuras/personagens tais
como Senhora Holle, Gata Borralheira, Bela Adormecida, Rapunzel,
Chapeuzinho Vermelho e Branca de Neve, entre outras, romperam as fronteiras
do mundo germnico e se propagaram por solo europeu, alm de singrarem os
mares alcanando o Novo Mundo. Com isso, abriu-se a possibilidade de
dilogo e, por consequncia, formou-se uma das bases para os estudos
comparativos entre as lendas populares de diversos povos, mostrando
semelhanas e diferenas, que auxiliam no entendimento do substrato
antropolgico e psicolgico que permeia tais estrias. Um marco do que se
vem afirmando so as obras de Vladimir Propp e de Bruno Bettelheim,
que procuraram, no mbito da teoria literria e da psicanlise, adentrar no
terreno aberto pela iniciativa dos Grimm e, por conseguinte, discutir a forma
estrutural dessas narrativas, atingindo, de forma mais ampla, a prpria essncia
humana. Inegavelmente, estrias sem tempo nem lugar aparecem e ressurgem
no imaginrio de distintos povos, revelando possibilidades de serem
estabelecidos laos de parentesco e de incrementao dos estudos interculturais.
Com esta seleo, em conjunto com o volume que rene as palestras do
simpsio, Magias, encantamentos e metamorfoses. Fabulaes modernas e suas expresses
no imaginrio contemporneo, almeja-se propiciar e alargar um frum de debates
acerca de temas que, com frequncia, so relegados a um segundo plano
em nome do que se considera alta literatura. A literatura que d voz s
personagens encantadas, quer seja atravs das falas de deuses esquecidos h
milnios ou de tramas que se destinam ao pblico infanto-juvenil, no pode ser
mais classificada como menor; muito pelo contrrio, ela tem de ser
considerada a fora capaz de revelar os arqutipos da essncia humana e
ensinar a arte esquecida de encantar. Arte de encantar que nos leva a
exercitar a capacidade imaginativa, matriz e engenho de novas formas de estar
e de interagir com/no mundo.
Cabe ainda salientar que o evento se consagrou como o segundo
encontro do Grupo de Pesquisa Literatura, arte e filosofia na poca de
Goethe e como o segundo evento da Associao Goethe do Brasil.
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
9
ttulo de encerramento, gostaramos de agradecer tanto aos
participantes do evento quanto s instituies que possibilitaram a realizao
do simpsio: CAPES (Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior), FAPERJ (Fundao de Amparo Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro), Instituto Goethe - Rio, DAAD (Servio Alemo de Intercmbio
Acadmico), Apa-Rio (Associao de Professores de Alemo do Rio de
Janeiro), Sub-Reitoria de Pesquisa da UERJ e Programa de Ps-Graduao em
Letras da UERJ. Gostaramos tambm de reconhecer o apoio recebido do
Instituto de Letras da UERJ em cujas instalaes se realizou o evento.
Magali Moura
Delia Cambeiro
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
10
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
11
Fabular, iludir, encantar: aspectos da fabulao pica na obra de Robert Musil
rica Gonalves de Castro
FFLCH /USP
Introduo
fabulao pica uma questo central na potica musiliana, e
que se faz notar tanto no extenso e inacabado romance O homem
sem qualidades quanto em narrativas mais breves. O presente
trabalho procura explorar alguns aspectos da concepo de pica na obra de
Robert Musil a partir de sua relao ambivalente com o gnero dos contos de
fadas. Ao mesmo tempo em que se mostrava atento ao perigo de, na
modernidade, a narrativa tradicional se transformar em um instrumento de
alienao, um artifcio com o qual as amas-de-leite j acalmavam as
criancinhas, como se pode ler em uma passagem capital de O Homem sem
Qualidades, Musil tambm reivindicava o poder de encantamento da fabulao,
que deveria ser preservado mesmo diante da exigncia de atualiz-la luz das
contingncias da histria.
A dificuldade de encontrar um fio pico que atribua sentido seja
narrativa seja prpria existncia, o tema comum s obras que sero
abordadas aqui. De incio, ser mostrado como Musil desenvolve, no romance
O Homem sem qualidades, a ideia de uma fabulao pica que pode se converter
em alienao. A seguir, veremos como essa mesma questo trabalhada em
duas narrativas breves de Obra pstuma publicada em vida, contos de fadas para
adultos, que deixam o leitor suspenso entre o encantamento e o despertar
crtico.
A
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
12
Fabular e iludir
O conflito do Homem sem qualidades Ulrich ter perdido o sentido pico
primitivo de sua vida, aquela ordem simples que consta de poder-se dizer:
depois de isso acontecer, aconteceu aquilo! (MUSIL, 1996, p. 689). No
romance, o protagonista finalmente consegue formular tal reflexo no captulo
No caminho de casa (Heimweg), o penltimo da primeira parte da obra1, aps
mais de seiscentas pginas tentando transformar-se em algum importante
(bedeutend) ou em um homem com qualidades. Ulrich, no entanto, fracassa em
sua tarefa, pois se sente como se tivesse nascido com um talento para o qual
no havia objetivo no presente (idem, p. 79).
Subjacente a essa percepo da personagem est a ideia da discrepncia
entre linguagem e vida interior, tornada ainda mais aguda na modernidade,
quando as relaes e os fenmenos atingem um tal nvel de complexidade, que
qualquer esforo de traduzi-los em linguagem ou de narr-los ser
necessariamente precrio. Uma narrao que se pretende fechada e plena de
sentido, portanto, se revela um engodo 2 porque forja uma causalidade:
[...] isso que o romance utilizou artificialmente [...] o leitor sente-se confortvel,
e isso seria difcil de entender se esse eterno artifcio da obra pica, com o qual
j as amas-de-leite acalmam as criancinhas, esse eficiente encurtamento em
perspectiva da razo, j no fizesse parte da prpria vida. No relacionamento
com si mesmos, a maioria dos homens so contadores de histrias. [...] a
impresso de que suas vidas tm um curso protege-os de alguma forma no
caos. (MUSIL, 1996, p. 689).
Tal passagem poderia dar a entender que o carter alienador da fabulao
pica tem origem nos contos de fadas. Ainda que o termo Mrchen no aparea
em nenhum momento desse captulo, no h dvida que aqui Musil faz aluso
1 Musil publicou o romance em duas partes, em 1930 e em 1932. Estava tentando concluir a terceira e ltima parte quando faleceu, em 1942. 2 Diz uma passagem central do ensaio de ADORNO sobre o narrador contemporneo: Se o romance quiser permanecer fiel sua herana realista e dizer como realmente as coisas so, ento ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na produo do engodo. ( 2003: 57).
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
13
a essa modalidade pica com a qual somos iniciados no mundo da literatura.
preciso, contudo, observar que a afirmao de que a pica um artifcio leva
em conta o momento histrico em que o autor escreve, nas primeiras dcadas
do sculo XX, quando esse encurtamento em perspectiva da razo no se
restringe apenas literatura, podendo ser observado em todos os mbitos da
vida emprica. No se trata, pois, da crtica de um gnero literrio especfico,
mas da postura que ele representa, sua revelia uma postura de objetividade,
em que seria possvel uma ntida distino entre o sujeito e o mundo e que
no se adapta mais a um contexto que j no oferece a ordem e o sentido
existentes no mundo antigo. Como aponta LUKCS na Teoria do romance, a
modernidade uma era para a qual a totalidade da vida no mais dada de
modo evidente, para a qual a imanncia do sentido vida tornou-se
problemtica (2000, p. 55). nesse sentido que Musil reivindica uma narrao
que faa jus s contradies da realidade e arrebatadora multiplicidade da
vida (idem), em vez de reduzi-la a uma nica e simplificadora dimenso.
Agora tocamos mais de perto na questo dos contos de fadas. A relao
com a leitura comea na infncia, com essas narrativas que, apesar de contarem
com uma estrutura e um desfecho j conhecidos, prendem a ateno do leitor
at o fim. Essa relao passiva com a leitura, contudo, pode resultar em um
anestesiamento do intelecto. Segundo Musil, seria preciso repensar a relao do
sujeito moderno com a leitura, com o intuito de reestrutur-la, mas nunca
extingui-la3.
De um modo geral, a obra potica de Musil se notabiliza por uma tenso
constante entre o desejo de narrar e a reserva crtica em relao a esse anseio.
GLANDER (2005, p. 165) observa que essa tenso transforma o leitor em um
colaborador [Mitarbeiter], uma vez que a construo do sentido tambm
depender dele. Assim, ao lado da recusa em simular uma realidade que seria
agradvel ao leitor, permanece a fascinao pelo ato de fabular. Ainda seguindo
3 Nos Dirios de Musil, possvel localizar quando essa preocupao comea a ganhar forma em seu pensamento. Em dezembro de 1920, ele toma notas a partir da leitura de um artigo intitulado Das Publikum als Autor, que havia sido recm-publicado no peridico vienense Neue Freie Presse. Depois de resumir o contedo do artigo (escrito por Alice Schalek), ele endossa a concluso da autora, de que o grande pblico que l no o faz movido por uma tenso intelectual ou curiosidade; na verdade, essa pblico seria acometido por uma evoluo de sentimentos que provocaria um relaxamento ou uma massagem no intelecto (MUSIL, 1978, p. 516)
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
14
com GLANDER, essa leitura fcil e rotineira que Musil combate
reiteradamente (idem). Veremos mais adiante que essa experincia de leitura
inaugural e nostlgica ser belamente retratada no conto O Melro.
conhecido o papel fundamental da narrao na constituio da
identidade. Em seu estudo Tempo e narratva, RICUR (1984) demonstra que a
identidade se concebe como operao narrativa; ou seja, o sujeito se conhece a
partir do que conta e do que contam a respeito dele. Mas como a narrao pode
dar conta de atribuir uma identidade ao sujeito moderno, se ela se dispuser a
reproduzir o ritmo desordenado dos eventos e a fragilidade desse mesmo
sujeito em relao ao mundo que o cerca? A perda do o fio narrativo da
prpria vida, questo central de O Homem sem qualidades, a representao literal
condio existencial moderna.
Fabular e encantar
Vimos em que medida fabular e iludir se relacionam; cabe agora
contemplar a questo do encantamento. Uma narrativa infantil, que em geral
tambm de carter maravilhoso, dotada de caractersticas que por si s
provocam encantamento: animais que falam, criaturas com poderes
sobrenaturais que intervm nos destinos humanos, uma luta contra um inimigo
poderoso, mas que termina com a justa vitria do mais fraco. De acordo com
TODOROV, ainda que nessas narrativas a introduo do elemento
maravilhoso no cause estranhamento nem nas personagens envolvidas nem
no leitor em potencial, elas conservam o poder de encantar, pelo fato de
explorarem a realidade universal de maneira quase totalizante (1977, p. 63). Nos
contos maravilhosos, o sentido fechado, no havendo a necessidade de se
refletir para alm do que narrado.
Em seu conhecido ensaio O Narrador, Walter BENJAMIN afirma que
o conto de fadas o primeiro conselheiro das crianas: Esse conto sabia dar
um bom conselho, quando ele era difcil de obter (1985, p. 215), escreve o
crtico alemo nesse ensaio que tem como um dos eixos centrais a relao entre
a capacidade de narrar e a de dar conselhos, pois a fonte do narrador a
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
15
experincia transmitida de pessoa a pessoa ao longo dos tempos. Contudo, o
teor dessa experincia se transforma consideravelmente na idade moderna4.
O narrador moderno no pode mais recorrer ao mito, ele se encontra to
desorientado quanto seus leitores. A obra de Musil uma das que adotam de
forma mais radical essa desorientao como matria. preciso reiterar, porm,
que esse posicionamento crtico no anula o encantamento que a experincia
com a literatura deve supor. O sentido da leitura como uma experincia
inaugural, um momento de descobrimento e de construo de um sentido no
se perde nessa reviso do conceito de pica proposta por Musil. Muito pelo
contrrio, ao se tornar mera repetio que a literatura corre o risco de perder
a capacidade de proporcionar esse estado potico. O encantamento, contudo,
no deve significar alheamento. A literatura sempre ser, para ele, um abrigo
no caos (1996, p. 689), mas um abrigo temporrio, que tem como funo nos
devolver, enriquecidos, a esse mesmo caos, para melhor enfrent-lo.
Em algumas narrativas de Obra pstuma publicada em vida5, a condensao
da forma breve permite a Musil representar, de diversas maneiras, a tenso entre
a ingenuidade infantil e o olhar adestrado do adulto. A ironia presente no
ttulo da coletnea j d pistas de que o estilo da obra foge do convencional. O
autor deixa claro na Introduo ao volume que no se trata de uma reunio de
escritos inditos, que teriam lugar em seu futuro esplio, mas sim da
reimpresso de antigos trabalhos, com o claro intuito de garantir algum sustento
material ao autor, que se encontrava em srias dificuldades financeiras, sem
conseguir concluir seu romance. Assim, subliminar ideia, embutida no ttulo,
de uma espoliao da prpria literatura - tornada moeda de troca a fim de
garantir sua prpria sobrevivncia -, surge a questo do sentido, e no s daquilo
que est sendo narrado, mas tambm o da prpria literatura, diante das
premncias da vida real.
Abordemos mais de perto aqui as narrativas Histria infantil e O
Melro. A primeira se encontra na terceira das quatro sees em que o volume
4 Diz BENJAMIN: [...] nunca houve experincias mais radicalmente desmoralizadas que a experincia da estratgica pela guerra de trincheiras, a experincia econmica pela inflao, a experincia do corpo pela guerra de material e a experincia tica pelos governantes. (1985, p. 198). 5 A traduo brasileira optou pelo ttulo O Melro e outras histrias de Obra pstuma publicada em vida, dando assim destaque principal narrativa da coletnea.
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
16
se subdivide, e a que mais se aproxima de um estilo prprio ao dos contos de
fadas, por contarem com animais falantes e situaes que se localizam entre as
categorias do estranho e do maravilhoso6. As semelhanas, porm, se
restringem a esses dados, pois h sempre uma perspectiva crtica que se impe,
como j se depreende do ttulo da seo: Histrias que no so. Ora, histrias
precisam de heris, de ao, de clmax, comeo, meio e fim. Tais caractersticas
se desenvolvem de modo difuso nessas narrativas, de modo que o conflito gira
em torno da pergunta pelo sentido do narrado. Antes de nos determos nas duas
histrias, vale destacar o modo pelo qual o narrador apresenta o heri pouco
convencional da primeira narrativa desse grupo, O Gigante SOGOAP:
Quando o heri dessa pequena narrativa e, de fato, ele era um heri! arregaava as
mangas, deixava mostra dois braos to finos quanto o som de uma caixinha de msica.
(MUSIL, 1996, p. 79).
A caracterizao, longe de idealizar a figura apresentada, ndice da
distncia que o narrador musiliano toma das convenes do gnero Mrchen.
Ele no pretende iludir seus leitores. Ser justamente a debilidade fsica do
heri que o faz apelar para o gigante, que nessa narrativa no ser uma
figura tpica dos contos maravilhosos, mas to somente um nibus, do qual o
heri faz uso para compensar sua fragilidade. Sentado no andar superior do
veculo, ele sente como se o restante do mundo estivesse submetido a ele7. O
herosmo depende, portanto, do progresso e da tcnica, que alm de serem
fatores externos ao indivduo, podem ser explicados racionalmente. No
necessria muita imaginao [...] basta um pensamento lgico. Pois se verdade,
como dizem, que a roupa faz o homem, por que no o faria tambm um
nibus? (idem, p. 81). A literalidade das situaes outro recurso de que o
narrador lana mo para destacar a distncia de um mundo encantado, em que
a ordem sempre pode ser restabelecida. Uma frmula recorrente nos finais dos
contos de fadas diz: Se no morreram, vivem felizes at hoje. A histria do
gigante Sogoap segue o mesmo padro, mas em uma perspectiva mais prxima
6 Baseio-me aqui na distino estabelecida por TODOROV: no estranho, as leis da realidade podem explicar os fennemos descritos; j no maravilhoso, novas leis so admitidas para a explicao dos fenmenos (1977, p. 41). 7 SOGOAP seria uma sigla para Sociedade Geral de nibus e Atletas Populares, na traduo brasileira. No original, AGOAG: Allgemein-geschtzte-Omnibus-Athleten-Gesellschaft.
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
17
da vida prtica: Sonhava em possuir um passe de longo percurso. E se o
conseguiu, e no morreu, nem foi esmagado ou atropelado, nem caiu do nibus,
nem est num manicmio, decerto continua at hoje viajando com esse passe
(idem).
Nas narrativas que contam com figuras dos animais, esses no surgem
enquanto alegorias dos seres humanos, como na fbula tradicional de Esopo;
sua funo , antes, evidenciar a falta de sentido da situao representada e
causar estranhamento nos envolvidos com suas falas. Em Histria infantil,
cabe a um coelho a funo de desestabilizar a narrao, causando espanto e
medo nos trs homens que pretendiam ca-lo. Aqui, na verdade, o eterno
artifcio da obra pica j comeara a ser rompido desde as primeiras linhas,
quando o narrador joga com a expectativa do leitor adulto que, diferentemente
de uma criana, no se sente confortvel com o que l.
O senhor Piff, o senhor Paff e o senhor Puff saram juntos para caar. E porque
era outono, nada crescia nos campos; nada alm de terra que, de to escalavrada
pelo arado, sujava de marrom os canos de suas botas. Terra era s o que havia
e, at onde a vista alcanava, no se enxergava outra coisa seno ondas marrons
e tranqilas; sobre a crista de uma dessas ondas podia-se divisar por vezes uma
cruz de pedra, uma imagem de santo ou um caminho deserto; de resto, era a
mais pura solido. (MUSIL, 1996, p. 95).
A frase que abre a narrativa pode at dar a ideia (ou a iluso) de que se
trata de um conto de fadas. Mas o que vem a seguir j lana uma dvida ao
leitor: a descrio no to idlica como de hbito nesses contos: solido,
outono, sensao de vazio, a cor que predomina o marrom, tudo contrasta
com o jogo ldico dos nomes das personagens. A monotonia do cenrio ser
quebrada pelo aparecimento do coelho falante que, por sua vez, no joga
conversa fora: ele capaz predizer o futuro e como cada um dos caadores vai
morrer.
Os trs homens rejeitam as predies apelando a argumentos racionais.
Como o coelho desaparece repentinamente, eles tm a chance de questionar se
aquilo aconteceu de fato, se no teia sido uma alucinao coletiva. Aos poucos,
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
18
o acontecido se desvanece, como um sonho que sonhamos acordados, porque
o que os trs haviam ouvido e visto no pode ser um segredo, nem portanto
um milagre, quando muito uma iluso (idem, 99). A dificuldade de atribuir um
sentido racional ao que vivenciaram, aliado ao medo de que as predies
pudessem ser verdadeiras tm de ser remediados de alguma forma. Eles buscam
na prpria experincia uma explicao razovel:
O fato que hoje ns bebemos muita aguardente, e de estmago vazio; isso
no coisa que um caador deva fazer.
verdade disseram os trs, e comearam a entoar uma alegre cano sobre
caadas que falava do verde, e atiraram pedras num gato que, no ligando
proibio, atravessava ladino o campo para apanhar uns ovos de coelho; os
caadores, agora, j no temiam mais o coelho.
Porm, essa ltima parte da histria no to afianvel quanto o restante dela,
pois h pessoas que afirmam que os coelhos s pem ovos durante a Pscoa.
(MUSIL, 1996, p. 99).
O narrador no permite que o sentido unvoco se estabelea. Sua ironia,
ainda que no seja percebida pelas personagens, no escapa ao leitor, que
percebe a introduo de um elemento que abala o carter supostamente
afianvel do acontecido. Aqui, a preocupao de desconstruir um sentido
que seria o esperado pode at assumir uma feio mais ldica, mas no menos
comprometida com a ideia de desmascarar uma ordem e de subverter a
expectativa do leitor.
O grande tema que perpassa as narrativas de Obra pstuma publicada em vida
abordado de forma mais evidente em O Melro. Aqui, as personagens
envolvidas sequer tm um nome so identificadas apenas como Aum e
Adois. O ttulo pode dar a impresso de que o pssaro ser o protagonista
mas, logo nas primeiras linhas, vemos que esse papel caber a Adois. H um
jogo entre a impessoalidade das designaes das personagens e o teor ntimo
do que ser narrado, o que atribui desorientao e angstia de Adois uma
certa trivialidade.
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
19
Este assume a voz narrativa um firme propsito: Quero contar-lhe
minhas histrias para descobrir se so verdadeiras (MUSIL, 1996, p. 108). E
assim ele conta ao amigo trs episdios que vivera; na verdade, trs momentos
distintos de fragilidade emocional, cujo nico nexo que admite reconhecer est
no fato de o melro lhe ter aparecido em todas elas. Adois pressente que o
pssaro apenas o primeiro indcio de uma relao mais profunda entre as
experincias, e nem mesmo o fato de este lhe dirigir a palavra o incomoda. Aqui,
o carter maravilhoso de um pssaro que fala se dilui diante da pergunta mais
geral pelo motivo de seu estado existencial naqueles momentos.
Chama ateno uma afirmao de Adois: h anos que no posso trocar
impresses com nenhum outro homem (idem). Logo saberemos que o
narrador esteve na guerra e que fora atingido por uma flecha area como o
fora o prprio Musil. No contato, ainda que breve, com a morte, ele encontra
o pssaro pela segunda vez, que vem a seu encontro sempre que ele se sente
ameaado, proporcionando-lhe, por instantes, alguma paz. Na figura de Adois
se convertem os dois plos da fabulao pica a alienao e o encantamento.
Ele quer experimentar a verdade ao narrar, mas, medida que o faz, tambm
deixa transparecer um certo encantamento pelo vivido, pela impossibilidade de
encerrar, na linguagem, a intensidade de uma experincia: Em momentos
assim nos sentimos naturalmente predispostos a acreditar no sobrenatural;
como se tivssemos passado nossa infncia num mundo encantado. (MUSIL,
1996, p. 106).
E assim, quanto mais se aproxima de um sentido, mais Adois levado a
perceber a histria humana como movimento sem sentido. Paradoxalmente,
essa insuficincia que resguarda o encantamento da fabulao, j que esta no
ser mais a concretizao ou a representao de um sentido pleno, mas to
somente uma via de acesso a ele.
Valeria recorrer mais uma vez ao ensaio de BENJAMIN, mencionando
agora conhecida formulao sobre o romance: a origem deste o indivduo
isolado, que no pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupaes [...]
Escrever um romance significa levar o incomensurvel a seus ltimos limites.
(BENJAMIN, 1985, p. 201).
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
20
Eis a situao do narrador de O Melro, ao buscar sua verdade, depara-
se com limites que vo muito alm da possibilidade ou no de ter ouvido um
pssaro falar. O contato mais prximo que tem com o melro e, por conseguinte,
com a possibilidade de atingir um sentido, acontece em uma esfera onrica; a
clareza se d apenas de modo fugaz, como a flecha area que o atinge na
trincheira.
- E sabe como se deu? No como um pressentimento terrvel, mas sim como
uma felicidade at ento jamais esperada! [...] Naquele instante, ao perceber
que eu era o nico a ouvir o canto sutil, algo dentro de mim veio tona para
lhe opor resistncia: um raio de vida, to infinita quanto aquele que a morte
enviava do cu. No estou inventado tudo isso, estou apenas procurando
descrev-lo da forma mais simples possvel; [...] no h dvida de que, em
certa medida, tudo ocorreu como num sonho, quando imaginamos falar com
toda clareza, enquanto as palavras brotam confusas. (MUSIL, 1997, p. 111).
Mesmo sem a certeza da existncia do melro, Adois exalta a experincia
que este lhe proporciona, de suspenso do tempo, de uma clareza jamais
vivida e que, a certa altura, ele compara a um encontro com Deus. Sem a
cumplicidade com a natureza e com o mito, Adois experimenta a
transcendncia que possvel dentro dos limites que seu mundo o impe.
Fabular, iludir, encantar
Percebemos melhor agora como tais narrativas se constituem como
contos de fadas para adultos: elas conservam seu vis educativo e formador,
mas, em vez de recorrerem ao mito, buscam suas fontes nas foras annimas
atuantes no mundo moderno.
No primeiro exemplo, a histria infantil fornece um modelo no qual o
maravilhoso e o lgico se chocam, para que surja uma nova situao narrativa,
cujo sentido permanece em aberto. A introduo de um elemento maravilhoso
como um coelho falante instaura uma situao de estranhamento que deveria
atingir o homem comum em tambm em outras situaes, inclusive as mais
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
21
corriqueiras. O sentido no depende do enredamento dos acontecimentos num
fio narrativo, mas sim da motivao individual do leitor, que levado a
encarar a narrao sem o apoio de leis e ideias pr-estabelecidas, tal como o fez
Adois, devidamente inspirado pelo reencontro com seu quarto de leitura na
infncia:
Reencontrei tambm o cmodo que, h mais de trinta anos, havia sido meu quarto
de criana [..] haviam-no deixado como era, quando eu me sentava mesa de pinho,
sob a luz do candeeiro. Passava muitas horas do dia ali sentado, lendo, como uma
criana que no consegue alcanar os ps do cho. Que nossa cabea penda para
os lados ou que no se erga por nada, a isso estamos acostumados, pois temos algo
slido sobre os ps; mas a infncia, bom, a infncia significa no ter qualquer
segurana por nenhum dos dois lados e sentar-se diante de um livro como se
navegssemos pelo espao numa pequenina folha de papel. O que eu estou
tentando lhe dizer que eu no conseguia verdadeiramente tocar o cho sobre a
mesa (MUSIL, 1996, p. 117).
O homem adulto percebe que no se encontra em estgio muito distante
do infantil. Percorrendo as pginas de sua infncia, reconhecendo as marcas de
seus dedos infantis, os rabiscos a lpis, o sujeito recupera um pouco de sua
identidade. : Assim que mergulhava em suas pginas, apoderava-me de seu
contedo, como um navegante que enfrenta todos os riscos (idem). A analogia
entre a disposio de um sujeito em busca de si mesmo e o mar tambm se faz
notar no ensaio de BENJAMIN: o romancista, o indivduo solitrio, percorre
o mar sem objetivo nenhum, atravessando-o sem terra vista8. Ele ainda
est procura de um abrigo no caos, pois no se sente parte da realidade que
o circunda.
8 No sentido da poesia pica, a existncia um mar. No h nada mais pico que o mar. Naturalmente, podemos relacionar-nos com o mar de diferentes formas. Podemos, por exemplo, deitar na praia, ouvir as ondas o colher moluscos arremessados na areia. o que faz o poeta pico. Mas tambm podemos percorrer o mar. Com muitos objetivos, e sem objetivo nenhum. Podemos fazer uma travessia martima e cruzar o oceano, sem terra vista, vendo unicamente o cu e o mar. o que faz o romancista. (BENJAMIN, 1985, p. 54).
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
22
Retomando agora a Histria infantil, vemos que esta pode ter seu ttulo
justificado pelo fato de que aqueles personagens adultos, diante da
impossibilidade de atribuir sentido a uma experincia inslita, preferem agir
como crianas diante de um episdio maravilhoso que lhes contado:
recorrendo emergncia do mito que, na idade moderna, reduzido condio
de um estado de embriaguez. Por outro lado, se o heri dos contos de fadas,
em plena comunho com as foras da natureza, estava em condies de vencer
um desafio ou uma injustia9; o sujeito moderno j no consegue mais fazer-
se de tolo diante do mito (BENJAMIN, 1985, p. 215), porque se v diante de
um inimigo muito mais poderoso, e que no assume uma forma nica, pois
estende-se por toda a multiplicidade dos fenmenos. A narrao dessa luta
inglria e j fadada ao fracasso no pode acontecer de outra forma que no a
de uma pergunta sem resposta.
Soubesse eu o sentido, certamente no teria por que lhe contar. como
ouvir um sussurro ou um simples murmrio, sem saber distingui-los! (MUSIL,
1997, p. 119): as ltimas palavras de Adois no pretendem encerrar seu relato.
Os ouvintes /leitores que se esforcem para distinguir murmrios de sussurros.
assim que a literatura pode desempenhar dignamente seu papel de ama-de-
leite para adultos desorientados e procura de um abrigo, ainda que
temporrio, no caos.
Referncias bibliogrficas
ADORNO, Theodor W. Posio do narrador no romance contemporneo,
in: Notas de Literatura I. Trad. Jorge Almeida. So Paulo, Duas Cidades
/34, 2003, pp. 55-63.
BENJAMIN, Walter. O Narrador. Consideraes sobre a obra de Nikolai
Leskov. . in : _______. Magia, tcnica, arte e poltica. Obras escolhidas I. Trad.
Srgio Paulo Rouanet. So Paulo, Brasiliense 1985, pp. 197-221.
9 A esse respeito, ver o prefcio de GRIMM (2012, pp. 26-27).
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
23
GLANDER, Kordula. Leben, wie man liest. Strukturen der Er fahrung erzhlter
Wirklichkeit in Musils Roman Der Mann ohne Eigenschaften . St. Ingberg,
Rhrig Universittsverlag, 2005.
GRIMM, J. & W. Prefcio , in : ______. Contos maravilhosos infantis e domtiscos.
Traduo: C. Rhrig. So Paulo, Cosac&Naif, 2012.
LUKCS, Georg. Teoria do Romance. Trad. Jos Marcos M. de Macedo. So
Paulo, Duas Cidades /34 2000.
MUSIL, Robert. O homem sem qualidades. Trad. Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio
de Janeiro, Nova Fronteira 2006.
____________. O Melro e outras histrias de Obra pstuma publicada em vida. Trad.
Nicolino Simone Neto. So Paulo, Nova Alexandria, 1996.
____________. Tagebcher. Org. Adolf Fris. Reinbeck b. Hamburg, Rowohlt
1978.
RICUR, Paul. Temps et rcit II. Paris, Seuil, 1984.
TODOROV, Tzvetan. Introduo literatura fantstica. Lisboa, Moraes, 1977.
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
24
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
25
Herder, os Contos dos Grimm e a Volkspoesie10
Orlando Marcondes Ferreira Neto11
m 1812 foram publicados pela primeira vez os Kinder- und
Hausmrchen (Contos maravilhosos infantis e domsticos), coleo de
contos de fadas que desfrutou de imensa popularidade durante e
aps o sculo XIX (GRIMM, 2004).
Ao contrrio de que geralmente se cr, os Contos no foram dirigidos desde
o princpio a um pblico infantil, mas participaram de um amplo projeto
filolgico (MAHONEY, 2004, p. 183) que envolvia estudos lingusticos, de
histria do direito e, posteriormente, o monumental plano do Dicionrio Alemo
(Deutsches Wrterbuch). Coletados da tradio oral, os Contos expressavam a
inteno dos Grimm de estudar aspectos do que denominavam Volkspoesie, ou
poesia popular, que para eles era reveladora do carter do povo alemo (Idem,
p. 178). Segundo o historiador Peter Burke, o projeto dos Contos dos Grimm
manifestao de uma tendncia presente na cultura alem desde a dcada de
1770 e que ser uma das preocupaes centrais da intelectualidade europeia no
sculo XIX, a compreenso do povo (BURKE, 1978, p. 31-49). Este foco nos
estudos da cultura popular, na poca inovador, tambm manifesta o desejo da
construo de uma identidade nacional germnica (Idem).
Considerando estes aspectos, nosso objetivo neste artigo situar algumas
implicaes sociais e culturais do conceito de Volkspoesie formulado por Herder
na poca do Sturm und Drang,12 e outros conceitos a ele associados, sabendo de
10 Este breve artigo trata de temas abordados em um pr-projeto de pesquisa para o Doutorado em Teoria da Histria. 11 Mestre em Histria pela UNICAMP. 12 Tempestade e mpeto (ou impulso) a traduo corrente em portugus. Tradicionalmente, o Sturm und Drang tratado como pr-romantismo pela crtica literria. ROSENFELD (1965, p. 7) um exemplo. Preferimos pensar o evento como primeiro momento do romantismo alemo em formao.
E
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
26
sua importncia para a compreenso adequada do projeto dos Contos dos
Grimm.
Como a maioria dos jovens alemes13 envolvidos no ambiente cultural do
Sturm und Drang, Herder era oriundo de uma famlia de classe mdia pietista,14
um jovem pastor luterano profundamente envolvido com estudos estticos e
literrios. Em Koenigsberg teve aulas com Kant e tornou-se prximo do
telogo J. G. Hamann, amizade que marcaria profundamente sua trajetria
intelectual. Em 1769 Herder viajou a Paris. Chegando l, contudo, no
conseguiu o almejado acesso aos sales dos filsofos. Tudo em Paris lhe
pareceu artificialmente requintado e ftil (BERLIN, 2001, p. 39). Escreveria
mais tarde em sua Filosofia da Histria sobre as grandes cidades, esses abismos
que drenam as foras vitais da humanidade (Herder, 1950, p. 77). No havia
identificao possvel entre ele, o jovem pastor provinciano, a vida alegre e
agitada da grande metrpole e os produtos culturais deste meio (BERLIN,
2001, p. 37-38).15 De Paris, Herder se dirige a Estrasburgo, onde ocorre seu
famoso encontro com Goethe. Ambos publicam em 1773 uma coletnea de
textos intitulada Von deutscher Art und Kunst (Da arte e do carter alemo),16 na qual
enunciam as bases estticas do Sturm und Drang, movimento fundador do
romantismo alemo.
O Sturm und Drang tradicionalmente considerado pela crtica como um
movimento literrio irracionalista, no que se salienta sua atuao contra o
13 Utilizamos no texto as palavras Alemanha e alemo por razes de convenincia, sabendo que eles no exprimem a complexidade das divises polticas do territrio que hoje designamos como Alemanha. 14 Segundo BERLIN (2001, p. 36-37) o pietismo um ramo do Luteranismo e consiste no estudo cuidadoso da Bblia e num respeito profundo pela relao pessoal do homem com Deus. Logo, havia uma nfase na vida espiritual, desprezo pelo conhecimento, desprezo pelo ritual e pela forma, desprezo pela pompa e cerimnia, e uma nfase grandiosa sobre a relao pessoal da alma humana individual sofredora com o Criador. O pietismo floresceu depois da derrota alem na Guerra dos 30 anos, em 1648. 15 Em sua Filosofia da Histria, HERDER (1950, p. 77, 105) afirma que a cultura medieval e provinciana mais virtuosa que a da Europa moderna e cosmopolita. Neste contexto as cidades so locais de dissoluo moral. 16 Esta publicao fundamental para o Sturm und Drang, na medida em que enuncia o programa esttico do movimento. composto por dois textos de Herder, Auszug aus einem Briefwechsel ber Ossian und die Lieder alter Vlker (Extrato da correspondncia sobre Ossian e as canes dos povos antigos), e Shakespeare; Von deutscher Baukunst. D. M. Ervini a Steinbach (Sobre a arquitetura alem), de Goethe; Versuch ber die gothische Baukunst, (Ensaio sobre arquitetura gtica), de Paolo Frisi; e Deutsche Geschichte (Histria alem), por Justus Mser (HERDER, 2011).
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
27
Iluminismo e a influncia francesa na Alemanha (ROSENFELD, 1965, p. 7).
Como afirmou Isaiah Berlin, havia entre os romnticos alemes de formao
pietista um grande ressentimento em relao ao predomnio do Iluminismo
francfono (BERLIN, 2001, p.37-38), que estimulou o carter essencial do
Sturm und Drang como movimento de revolta contra a Ilustrao. Ainda segundo
BERLIN (Idem), este sentimento tem razes profundas na sociedade alem,
sendo decorrente, a princpio, da derrota na Guerra dos Trinta Anos em 1648,
que deixou o pas devastado e empobrecido, ocasionando sua fragmentao
poltica e inferioridade cultural diante da Frana.17
Norbert Elias salienta outros aspectos da sociedade alem que se
evidenciam necessrios para compreender aspectos essenciais do Sturm und
Drang. Na Alemanha, afirma, ao menos at meados do sculo XIX, no havia o
grau de mobilidade social que caracterizava, por exemplo, a sociedade francesa
do sculo XVIII, na qual um burgus abastado podia ascender nobreza
(ELIAS, 1990, p. 38). Na Alemanha, pelo contrrio, alm da ausncia de
mobilidade social, havia uma rgida separao entre as classes (Idem). Alm
disso, esta ciso social se manifestava na questo da partilha do poder na
Alemanha; enquanto a nobreza detinha o poder, a burguesia era totalmente
excluda da poltica (Idem, p. 33, p. 43-44)
desta burguesia que surge a intelligentsia de classe mdia que dar origem
ao Sturm und Drang (Idem, p. 25). So indivduos que ocupam cargos
burocrticos, religiosos e educacionais, que muitas vezes servem aos prncipes
e nobreza, e que se veem enredados e eventualmente humilhados pelas
relaes de patronato e dependncia que caracterizam a sociedade do Antigo
Regime (Idem). Neste sentido, a posio dos Strmer und Drnger contra o
Iluminismo tambm expressa, ao menos tangencialmente, um posicionamento
crtico em relao nobreza alem, ao ter como alvo a tradio cultural
francfila que ela partilhava. Como afirma Goethe em suas memrias,
17 Talvez Berlin tenha exagerado um pouco em sua proposio de que o Romantismo produto da sensibilidade nacional ferida, do sentimento de impotncia cultural e do ressentimento alemo diante da vitria francesa. Contudo, no possvel deixar de considerar o papel do sentimento antifrancs no romantismo, visto que ele permaneceu no sculo XIX, a princpio em funo da ocupao francesa durante as guerras napolenicas. (A este respeito cf. BERLIN, 2001, p. 38; ELIAS, 1990, p. 29).
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
28
[...] em Estrasburgo, na fronteira francesa, libertamo-nos imediatamente do
esprito dos franceses. Descobrimos que seu estilo de vida era regulamentado e
aristocrtico demais, fria sua poesia, destrutiva sua crtica literria, e abstrusa e
insatisfatria sua filosofia (Goethe, citado em ELIAS, 1990, p. 35).
preciso pensar tambm em como estes jovens intelectuais e poetas
percebem as crticas que a Ilustrao realiza a respeito dos mais variados
aspectos da cultura germnica. O que a Ilustrao declara a seu respeito? Que
sua lngua era rude, sua literatura inexistente (ELIAS, 1990, p. 30-32), que sua
arquitetura era brbara; que seus costumes eram fundados em preconceitos, sua
religio era um corolrio de supersties e sua histria uma poca de trevas.
Mauvillon, por exemplo, afirma em 1740 em suas Lettres Franoises et
Germaniques, a respeito da lngua alem, que uma lngua (...) semibrbara, que
se fraciona em tantos dialetos diferentes como a Alemanha tem provncias.
(Idem, p. 31). Sua cultura lhe parece tosca e atrasada, assim como sua literatura:
Milton, Boileau, Pope, Racine, Tasso, Molire e praticamente todos os poetas
importantes foram traduzidos na maioria das lnguas europeias (...) os poetas
alemes, na maior parte, so apenas tradutores (Idem, p. 39).18
Todo o passado germnico, sobretudo a Idade Mdia tambm sofriam um
processo de detrao fundado na dicotomia iluminista entre as luzes e as trevas.
O Iluminismo estabelecia uma rgida distino entre a verdade (atributo da
filosofia e da cincia) e a mentira, reconhecida no campo que hoje
denominaramos do imaginrio, que comportava as religiosidades e crenas, os
mitos e as tradies populares. Voltaire se refere a tudo que emana do povo,19
incluindo as fbulas, como falsidade: se a histria a narrao dos fatos
considerados verdadeiros, (...) [a] fbula [ a] narrao de fatos considerados
falsos (VOLTAIRE, 1973, p. 188, p. 209-210); e toda narrativa que no
18 Deve-se notar que o prprio Frederico II partilhava dessa opinio (ELIAS, 1990, p. 32-33). 19 O povo, segundo o verbete homnimo da Enciclopdia, formado pelos pobres, pelos trabalhadores assalariados, pelos que trabalham pela nao, mas que no a constituem como a burguesia e a nobreza (A ENCICLOPDIA, 1974, p. 151-153). Para VOLTAIRE (1973, p. 294) o povo a canalha ou a populao mais vil. Na perspectiva da Ilustrao (exceto para Rousseau,
bem verdade) o povo jamais seria fonte de conhecimento, de verdade, de saber, como seria depois para o Romantismo, pelo contrrio, a zona de treva na qual se manifestam os demnios do iluminismo: o erro, o preconceito e a superstio. Cf. verbetes Preconceito e Superstio (Idem, p. 294, p. 292-294 e 274-276).
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
29
comportasse fatos verdadeiros deveria ser inserida na histria das opinies
e das tolices (Idem, p. 188, p. 210). A este respeito ele acrescenta que:
[...] as fbulas dos povos primitivos foram mais tarde grosseiramente imitadas
por povos [germnicos] rudes e sem imaginao (...) Ai deles, coitados, povos
ignorados e ignorantes, que nunca conheceram uma arte agradvel ou til, que
at o nome de geometria desconheciam, como podiam afirmar que inventaram
fosse o que fosse? Pois se nem descobrir novas verdades, nem mentir com
habilidade souberam? (Idem, p. 188).
Cobra um esforo imaginativo de nossa parte compreender a dimenso do
mal-estar sentido pela parcela dos alemes que no se conformavam com a
imposio oficial da cultura Francesa e do Iluminismo na Alemanha. medida
que a burguesia alem toma conscincia de si como classe (ELIAS, 1990, p. 37,
47), processo que se acentua na segunda metade do sculo XVIII, ela percebe
cada vez mais a distncia que se impe entre seu estilo de vida e valores e os da
aristocracia de corte (Idem, p. 46-47). Da surge sua necessidade de afirmao
de uma cultura prpria que pudesse fazer frente Ilustrao (Idem). Esse
sentimento e esta necessidade afloram no movimento Sturm und Drang na
dcada de 1770. Ele expressa o esforo consciente de um grupo de jovens
intelectuais para fazer frente detrao do mundo germnico pelas Luzes,
defendendo aspectos culturais que consideram caractersticos da
germanidade (Idem, p. 35).20
A tarefa que Herder assume neste momento elaborar um arcabouo
terico e conceitual capaz de enfrentar as acusaes da Ilustrao. Este seria
expresso em obras de carter abertamente provocativo, uma verdadeira
literatura de combate, no sentido em que assumiu um vis abertamente anti-
iluminista. Num segundo momento, esta base terica desempenharia um
importante papel, fornecendo instrumentos para os romnticos (como os
20 No certo, contudo, julgar que Herder tenha rompido com a Ilustrao em todos os sentidos. Alm do universo luterano, ele foi formado no contexto das Luzes e expressa portanto contradies inerentes a este movimento cultural. Ele opera sua crtica partindo do instrumental terico oferecido pelo Iluminismo, mesmo quando volta as armas tericas da Ilustrao contra ela. Um exemplo quando acusa ironicamente os crticos de Shakespeare de serem preconceituosos, e por isso de terem uma viso caricatural deste autor (Herder, 2008, p. 3-4).
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
30
irmos Grimm), procederem a pesquisas que conscientemente obravam pela
definio do carter nacional alemo, atuando pela formao do que seria vivido
e pensado socialmente, desde ento, como o ser realmente alemo (Idem, p.
49-50).
O campo de luta escolhido por Herder o da filosofia, da crtica literria
e da literatura. Toda discusso a respeito do povo e do carter alemo em sua
obra ser realizada tendo como ponto focal temas de cunho esttico. Em sua
Filosofia da Histria21 de 1774, Herder mantm este direcionamento. Seu objetivo
nesta obra fundar uma teoria da histria que pudesse fazer frente concepo
de histria da Ilustrao, fundada na ideia de progresso da razo. Ainda que
opere com uma base terica e conceitual legada pelas Luzes, Herder a perverte
e a coloca a servio de sua concepo da histria fundada num conceito novo
e particular de cultura. A concepo da histria de Herder, ao invs de ser a de
uma trajetria linear do progresso da razo, fundada na crena na existncia de
verdades universais e necessrias, tende ao relativismo.22
Herder salienta a presena, na histria, de uma multiplicidade de grupos
humanos, cada um com seus valores, costumes e crenas e culturas (os hebreus,
os egpcios, os gregos, os romanos, os germanos, a Europa medieval e a Europa
Moderna). Cada grupo uma unidade orgnica que nasce, vive e morre. O que
bom para um grupo no para outro, no existem critrios universais que
permitam julgar um bem universal, que serviria para todos. No h verdades
que, sendo conhecidas, possam se somar como um grande quebra-cabea,
estabelecendo o real, como os iluministas pensavam. O que bom para um
grego, pode no ser como geralmente no , afirma Herder bom para o
homem moderno. No existe, por exemplo, como concebiam os iluministas,
uma felicidade universal que ns, sabendo quais so as necessidades humanas
fundamentais, poderamos realizar. Cada poca radicalmente diferente da
outra, cada poca possui necessidades especficas e uma ideia diferente do que
a felicidade. Da a sua acusao de que o Sculo das Luzes estava radicalmente
21. O ttulo original desta obra Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung der Menschheit/Uma outra filosofia da histria para a formao (educao) da humanidade (HERDER, 1950). Por razes de praticidade, neste artigo nos referimos a esta obra como Filosofia da histria. 22 Apesar dele ter rompido com o universalismo das Luzes, no sustentamos que Herder seja um relativista. A este respeito cf. BERLIN (1991, p. 69-83).
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
31
equivocado ao se compreender como momento pleno de realizao da razo,
na qual as grandes verdades humanas estariam sendo reveladas. Para Herder,
este era um dos maiores equvocos da Ilustrao.23
Em seu ensaio sobre Shakespeare no qual defende o autor ingls das
crticas de iluministas como Voltaire,24 HERDER (2008) procede na mesma
direo. Voltaire no teria compreendido o teatro shakespeariano por acreditar
que as regras expostas na Potica de Aristteles deveriam servir como critrio
universal para julgamento da arte dramtica. Segundo Herder, porm,
Aristteles no havia definido nenhuma regra universal, ele havia apenas
estudado o teatro grego, as peas de Sfocles e de outros autores trgicos,
descrevendo suas regras. Os teatros grego e shakespeariano no foram
institudos intencionalmente, segundo um plano pr-estabelecido por algum
terico, mas surgiram na histria naturalmente, como uma planta, de solos
culturais diferentes. Este solo cultural no qual germinam as obras de arte
pensado por Herder como sendo constitudo pelo que denomina preconceitos
nacionais: a histria, a tradio, os costumes, a religio, o esprito da poca,
do povo, da emoo, do idioma (Idem, p.25-26). Por se harmonizar com estas
condies, o teatro grego e o shakespeariano, por mais diferentes que sejam
entre si, foram ambos, segundo Herder, uma instituio nacional, a
expresso mais elevada do carter nacional desse[s] povo[s] (Idem, p.22).
Para Herder, a ambio dos franceses de transplantar o teatro grego para
o sculo XVIII jamais poderia dar origem a uma planta saudvel (Idem, p. 15,
21). O teatro francs e aqui Herder acusa Corneille, Racine e Voltaire (Idem,
p. 16) seria ento mera macaquice, efgie, imitao sem alma do
teatro grego; uma grotesca caricatura:
No tragdia sofocliana. uma efgie que se assemelha externamente ao drama
grego; mas a efgie no possui esprito, vida, natureza, verdade ou seja, todos
23 Trata-se neste pargrafo de um resumo sucinto das ideias centrais da obra Uma outra filosofia da histria para a educao da humanidade. (HERDER, 1950). 24 VOLTAIRE (1973, p. 39) afirmou numa de suas Cartas Inglesas que o teatro shakespeariano era sem a menor chama do bom gosto e sem o menor conhecimento das regras, e que Shakespeare teria criado farsas monstruosas, chamadas tragdias.
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
32
os elementos que nos comovem; o propsito trgico e a realizao deste
propsito. (Idem, p. 15, 21).
Portanto, de um modo muito diferente dos iluministas, Herder atribui
valor extremo a elementos culturais em sua esttica.25 Mais do que isso, ele
funda a prpria viso historicista que privilegia o contexto histrico na
compreenso da arte (ou de qualquer artefato cultural), que para ns parece
comum, mas que era radicalmente diferente da viso que predominava na
esttica do sculo XVIII. Voltaire jamais avaliaria uma obra de arte por sua
adequao s condies cultuais que lhe deram origem. Ele ficaria horrorizado
com a afirmao de Herder de que os preconceitos nacionais (ou seja, o
campo do imaginrio e das crenas) pudessem ser a baliza para a avaliao de
uma obra de arte, ou de qualquer coisa que fosse (Idem, p. 25). Para Voltaire, a
arte deveria, assim como a filosofia, exprimir verdades a respeito do ser humano
e no preconceitos.26
Assim sendo, Herder realiza um deslocamento importante no que
concerne aos critrios normativos para avaliao das obras de arte. No sero
mais critrios estticos com pretenses universalistas, como era o caso do
Iluminismo mas sua afinidade com condies culturais especficas e com um
processo histrico orgnico, compreendido em sua individualidade. O teatro
shakespeariano, por exemplo, cresceu em um solo e nele frutificou da que
advm o seu valor. O teatro francs, pelo contrrio, considerado artificial por
Herder justamente por no ter, segundo ele, esta afinidade cultural com um
solo, formulado segundo regras acadmicas, tericas, frias, portanto,
destitudo de vida. As canes, a literatura, a religio, os contos populares, ou
25 O prprio conceito de cultura, alis, j se apresenta neste texto de Herder investido de um carter moderno (antropolgico, diramos hoje), dirigido a uma compreenso propriamente cultural dos teatros grego e shakespeariano. Ele aprofundar esta perspectiva em sua Filosofia da histria (HERDER, 1950). 26 Herder, ao investir ousadamente contra a Ilustrao, subverte o significado de um dos seus conceitos mais caros, o preconceito (defendendo, de modo irnico o termo que Voltaire e seus pares mais execram), ao mesmo tempo em que oferece uma base terica radicalmente nova para pensar as criaes humanas, fundada na cultura. HERDER (1950, p. 59) mantm esta estratgia na Filosofia da Histria de 1774, na qual ele sustenta, num registro irnico e provocativo, que o preconceito aceitvel em sua poca, porque traz a felicidade. Nesta obra ele tambm faz referncia ao preconceito til, ao preconceito belo, e aos bons costumes, inclusive preconceitos (Idem, p. 31, 57, 97).
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
33
qualquer manifestao cultural assumem valor supremo para ele, portanto, na
medida em que surgem espontaneamente possuem esprito, vida, natureza
[e] verdade (Idem, p. 22). a isso que Herder se refere quando afirma que a
obra de Shakespeare natural ou est de acordo com a natureza.
Da o sumo valor atribudo por Herder e seus seguidores romnticos s
tradies populares de criao annima e imemorial, como os contos de fadas
e canes populares, a todo tipo de manifestao espontnea da cultura
popular.27 Herder denomina estas criaes Volkspoesie (poesia popular). O
conceito foi utilizado em 1772 para denominar os Cantos de Ossian, no ensaio
publicado juntamente com o artigo Shakespeare: Auszug aus einem Briefwechsel ber
Ossian und die Lieder alter Vlker (Extrato da correspondncia sobre Ossian e as canes
dos povos antigos, HERDER, 2011; NISBET, 2009, p. 15-16). Segundo ele, a
Volkspoesie consiste em textos que sobrevivem na oralidade ou textos de autores
que expressam profundamente a cultura na qual foram gerados, como Ossian,
Shakespeare, Homero e os profetas do Velho Testamento (Idem, p. 16).28
O conceito herderiano de Volkspoesie foi adotado posteriormente, no incio
do sculo XIX, pelos poetas Clemens Brentano e Achin von Arnin, que o
definiram, de modo semelhante ao de Herder, como um processo de criao
espontnea, natural e orgnico, que surge do povo no decorrer da histria
(LAMPART, 2004, p. 177-178).29 A influncia exercida por Herder sobre os
irmos Grimm se revela sobretudo nos seus textos produzidos no comeo do
sculo XIX,30 quando se associam ao grupo de Brentano e von Arnin num
projeto de coleta e publicao de contos populares (Idem). Brentano que j
havia realizado um projeto semelhante, a coleo de canes populares Des
Knaben Wunderhorn (A cornucpia mgica do menino, 1805-1808) solicitou o auxlio
dos Grimm para a coleta de contos tendo em vista uma nova publicao
27 Da Herder considerar a linguagem como a criao suprema da cultura (ROSENFELD, 1965, p. 16). 28 Segundo as teses de Herder e de Hamann que sustentam o valor da espontaneidade e naturalidade na arte, a tradio oral valorizada, em detrimento do texto (Idem). 29 A influncia que Herder exerceu sobre os irmos Grimm, portanto, deve ser avaliada considerando o debate que estabelecem com o crculo de Brentano. A este respeito cf. LAMPART (2008, p. 177-178; ZIPES, 2002, p. 31). 30 Principalmente a coletnea de ensaios Altdeutsche Wlder (Antigas florestas alems) publicado entre 1812 e 1816. Segundo ZIPES (2002, p. 68), o prprio ttulo desta coleo de textos dos Grimm sintomtico de seu interesse por Herder, por se remeter ao ensaio Kritische Wlder, (Florestas crticas), publicado por Herder em 1761.
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
34
(ZIPES, 2002, p. 26). Os Grimm se associaram a ele, mas em 1808 se desligaram
do projeto (Idem, p. 30). Alm do desinteresse de Brentano, que se voltou para
outras atividades, sabemos que ocorreram uma srie de divergncias entre ele e
os Grimm a respeito da fidelidade que, para estes, deveria ser observada na
transcrio dos relatos orais (Idem). Brentano defendia sua liberdade, como
poeta e editor, de realizar alteraes estilsticas e at mesmo de acrescentar
passagens s narrativas originais, enquanto os Grimm sustentavam que os
contos deveriam ser o mais fiis o possvel oralidade (LAMPART, 2004, p.
177-178). Os contos coletados pelos Grimm passam ento a integrar seu
prprio projeto dos Contos maravilhosos infantis e domsticos (ZIPES, 2002, p. 30).
O fato da concepo dos Contos dos irmos Grimm se delinear justamente
a partir de sua divergncia com Brentano revelador de um carter essencial de
seu projeto. Segundo LAMPART (2004, p. 177-178), a recusa dos Grimm em
interferir nos relatos, seu apego fidelidade s narrativas orais, se sustenta em
sua compreenso filolgica dos contos de fadas como Volkspoesie. Na medida
em que para os irmos Grimm era impossvel a recriao, na Europa moderna,
das condies histricas que permitiram a formao dos contos de fadas como
criao coletiva do povo, toda interferncia do editor nos relatos seria um
impedimento para que o texto pudesse manter seu carter de Volkspoesie; os
contos se tornariam mera criao moderna, deixando de ser expresso do
passado coletivo alemo (Idem).31
O grande sucesso desfrutado pelos dos Contos dos irmos Grimm,
especialmente a partir da segunda edio em 1819, aponta para o fato de que a
viso de Herder e dos Grimm a respeito da arte como expresso da nova
viso romntica da sociedade, da histria e da nacionalidade estava se
tornando dominante na Alemanha naquele momento. Como realizao cultural
emblemtica deste momento histrico, os contos abrem uma srie de
possibilidades para a reflexo a respeito do romantismo. Assim como a obra de
Herder, os Contos oferecem um acesso para a reflexo sobre os dilemas
vivenciados pela burguesia alem ascendente no incio do sculo XIX o desejo
31 Sabe-se que nas edies posteriores os Grimm fizeram cada vez mais concesses sua idia original de fidelidade aos relatos orais, interferindo e adaptando os relatos. Porm, isso no afeta nossa argumentao, visto que tratamos de sua inteno inicial no projeto dos Contos (LAMPART, 2004, p. 184).
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
35
de afirmao de seus valores, viso de mundo e modos de vida assim como
para o problema, que percorre todo o sculo XIX, da definio da identidade
cultural alem.
Referncias bibliogrficas
A ENCICLOPDIA. Trad. Lisboa: Ed. Estampa, 1974.
BERLIN, Isaiah. The roots of Romanticism. Trad. Princeton: Princeton University
Press, 2001.
_____. Limites da utopia: captulos da histria das ideias. Trad. So Paulo: Cia. Das
Letras, 1991.
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. Trad. So Paulo: Cia. Das
Letras, 1989.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma histria dos costumes. Trad. Rio de
Janeiro: Zahar, 1990.
GRIMM, J.L.C e W.C. Grimms fairy tales. Trad. Londres: CRW, 2004.
HERDER. Johann Gottfried. Filosofa de la historia para la educacin de La
humanidad. Trad. Buenos Aires: Nova, 1950.
______. Shakespeare. Trad. Princeton: Princeton University Press, 2008.
______. Von deutscher Art und Kunst. Toronto: University of Toronto, 2011
LAMPART, Fabian. The Turn to History and the Volk: Brentano, Arnim, and
the Grimm Brothers. In: MAHONEY, Dennis. The Literature of German
Romanticism, vol 8. Nova York: Candem, House, 2004.
MOORE, Gregory. Introduction. In: HERDER, Shakespeare. Trad. Princeton:
Princeton University Press, 2008.
NISBET, H. B. Introduction. In: German Aesthetic and Literary Criticism:
Winckelmann, Lessing, Hamann, Herder, Schiller and Goethe. Cambridge:
Cambridge University Press, 2009.
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
36
ROSENFELD, Anatol. Introduo. In: ______. Autores pr-romnticos alemes.
So Paulo: Herder, 1965.
VOLTAIRE. Cartas Inglesas; Dicionrio Filosfico. In: Os Pensadores. So
Paulo, Abril, 1973.
ZIPES, Jack. The Brothers Grimm: From Enchanted Forests to the Modern World. Nova
Yorque: Palgrave Macmillan, 2002.
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
37
Mitologia japonesa e os Irmos Grimm.
Entrecruzamentos (in)esperados na literatura miditica
Janete Oliveira
PUC-RIO
o ano de 2012 completam-se 200 anos da publicao do livro
Contos para as crianas e para a famlia (Kinder und Hausmrchen)
na Alemanha pelos irmos Grimm, inaugura-se ento uma
sequncia de leituras e releituras do que chamamos contos de fadas. Ao
contrrio do mito, o conto de fadas no visa dar um sentido ao mundo em que
se vive e sim aliar o elemento mgico, manter o inexplicvel como personagem
e agente de mudanas dentro da narrativa fantstica. Uma fico que no se
prope como realidade mas que deseja permanecer como elemento de sonho e
irrealidade. Em seu livro, A Psicanlise dos Contos de Fadas, Bettelheim
diferenciaria o mito e o conto de fadas da seguinte maneira:
No existem apenas semelhanas essenciais entre os mitos e os contos de fadas;
h tambm diferenas inerentes. Embora as mesmas figuras exemplares e
situaes se encontrem em ambos, e acontecimentos igualmente miraculosos
ocorram nos dois, h uma diferena crucial na maneira como so comunicados.
Colocado de forma simples, o sentimento dominante que um mito transmite :
isto absolutamente singular; no poderia acontecer com nenhuma outra
pessoa, ou em qualquer outro quadro; os acontecimentos so grandiosos,
inspiram admirao e no poderiam possivelmente acontecer a um mortal
comum como voc ou eu. A razo no tanto que os eventos sejam miraculosos,
mas porque so descritos assim. Em contraste, embora as situaes nos contos
de fada sejam com frequncia inusitadas e improvveis, so apresentadas como
N
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
38
comuns, algo que poderia acontecer a voc ou a mim ou pessoa do lado quando
estivesse caminhando na floresta. Mesmo os mais notveis encontros so
relatados de maneira casual e cotidiana. Uma diferena ainda mais significativa
entre estas duas espcies de estria o final, que nos mitos quase sempre
trgico, enquanto sempre feliz nos contos. (BETTLELHEIM, 2002, p. 47)
A antiga separao mito e logos tem a sua fronteira esmaecida pela falncia
desse ltimo enquanto lugar seguro e livre de incertezas. H ento uma procura
por uma nova referncia que na fico se constitui no sonho, na magia, na
sombra. O antigo mito que organizava o mundo se transmutou em uma outra
experincia humana transpassada pelo mgico, pelo fantstico. No se pode
recuperar a aura da narrativa mtica grega pois o mundo de certa forma j possui
um sentido distanciado da lgica passada, mas com as novas tecnologias e o
real sendo testado a todo momento, essa narrativa propositora de sentido
transcodifica-se em metfora a qual aparece nas fices contemporneas em
vrias mdias entrecortadas por referncias interculturais inimaginveis nos
tempos gregos. Essa fico tem atrado cada vez mais o imaginrio no apenas
infanto-juvenil, mas tambm adulto.
As an art form of widely acclaimed autonomous caliber, anime has consistently come into
fruitful collusion with themes, images and symbols (archetypes included) associated with the
fairy tale tradition. This phrase does not, it must be emphasized, allude to stories that literally
feature fairies but rather denotes, in keeping with contemporany scholarship in the field, stories
where a prominent place is accorded to otherworldly phenomena, where the boundary between
reality and fantasy is boldly and even grotesquely transgressed, and where the capriciousness of
human destinies is repeatedly exposed - it is no coincidence, after all, that the word fairy is
derived from the Latin fatum, or fate. (CAVALLARO, 2011,p.1)32
32 Como uma forma de arte de calibre autnomo largamente aclamada, o anime tem consistentemente entrado em frutfera coliso com temas, imagens e smbolos (arqutipos includos) associados com a tradio dos contos de fada. Essa frase no, isso deve ser enfatizado, alude a histrias que literalmente dispem sobre fadas mas sim denota em consonncia com a erudio contempornea na rea, histrias onde o lugar de destaque concedido aos fenmenos sobrenaturais onde o limite entre realidade e fantasia corajosamente e mesmo grotescamente transgredido e onde o capricho dos destinos humanos repetidamente exposto e no coincidncia , no final das contas, que a palavra 'fada' seja derivada do Latim fatum, ou 'destino'.(traduo livre da autora)
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
39
Nesse imaginrio de fbulas contemporneas, tem-se destacado a fico
japonesa disseminada atravs, principalmente, das animaes para TV e cinema.
O que surpreende como construes culturais to distintas possam
harmonizar imagens/contedos que metaforizem significativamente para
ocidente e oriente. O autor Junichiro Tanizaki ressalta essas diferenas entre os
dois lados:
A que se deve tanta diferena? Creio que ns, os orientais, buscamos satisfao
no ambiente que nos cerca, ou seja, tendemos a nos resignar com a situao em
que nos encontramos. No nos queixamos do escuro, mas resignamo-nos com
ele como algo inevitvel. E se na claridade deficiente, imergimos na sombra e
descobrimos a beleza que lhe inerente. (TANIZAKI, 2007, p. 48)
Mas a recorrncia ou referenciamento narrativas ou produtos
miditicos japoneses levanta a questo sobre se essas diferenas entre Ocidente
e Oriente so to irreconciliveis como se apresentam em sua aparncia. As
tnues e no to aparentes afinidades e tambm no to frequentemente
estudadas entre as literaturas de Oriente e Ocidente podem ser harmonizadas
pela imaginao tomando como parmetro a anlise de Armstrong.
Outra caracterstica peculiar da mente humana a capacidade de ter ideias e
experincias que no podemos explicar racionalmente. Possumos imaginao,
uma faculdade que nos permite pensar a respeito de coisas que no se situam no
presente imediato e que, quando aas concebemos, no tem existncia objetiva.
A imaginao a faculdade que produz a religio e a mitologia. (ARMSTRONG,
2005, p. 8)
Esse imaginrio poderia, atravs das metforas que emergem de uma
mitologia ressuscitada, ser a ferramenta de aproximao entre os dois lados.
Comeando principalmente pelas atuais releituras e novas abordagens do conto
de fadas na contemporaneidade que parecem misturar-se com uma fico
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
40
originada na mitologia japonesa. No entanto, mito e contos de fada, como bem
notado por Bettelheim possuem diferenas.
Na antiguidade, os mitos eram as narrativas que conferiam sentido
realidade de ento, atribuindo uma experincia simblica que era transmitida
oralmente atravs das geraes dentro de uma concepo cclica do tempo.
Com a narrativa, a inovao semntica consiste na inveno de uma intriga que
, ela tambm uma obra de sntese: virtude da intriga, objetivos, causas, acasos,
so reunidos sob a unidade temporal de uma ao total e completa. esta a
sntese do heterogneo que aproxima a narrativa da metfora. Nos dois casos o
novo - o ainda no dito, o indito - surge na linguagem: aqui a metfora viva,
isto , uma nova pertinncia na predicao, ali uma intriga fingida , isto uma
nova congruncia no agenciamento dos incidentes.(RICOUER, 1994, p. 9)
Narrar daria ordem ao caos percebido no mundo, geraria concordncia
a partir das discordncias. O fatos so ordenados de acordo com uma
determinada lgica, funciona como um processo consolador dando uma iluso
de ordem que, a priori, inexiste. O ato de narrar aparece ento como maneira
de se orientar no mundo, de organizar o seu caos visando imprimir-lhe sentido.
No caso que pretendemos analisar do entrecruzamento de referncias
entre a animao de 1997 do diretor japons Hayao Miyazaki, Princesa Mononoke
(Mononoke Hime) e o filme dirigido por Rupert Sanders de 2012 Branca de Neve
e o Caador (Snow White and the Huntsman), o mito de imaginrio ligado criaes
baseadas no mundo natural de carter explicativo confunde-se com o conto de
fadas de imaginrio fantasioso ligado criaes baseadas no mundo humano de
carter ldico-educativo.
No caso da mitologia japonesa, a relao estabelecida e firmada na
antiguidade entre o homem e a natureza permeia diversas dimenses da
sociedade, tendo alguns valores como harmonia, transitoriedade,
impermanncia, forte sentimento grupal, hierarquia atuando como norteadores
da cultura nipnica. Isso acontece porque considerando que, desde a fixao de
residncia dos povos os quais constituram o que hoje chamamos de Japo no
arquiplago h mais de 10.000 anos atrs no perodo denominado de Jomon, a
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
41
percepo de que os fenmenos naturais estavam intimamente ligados no s
ao dia-a-dia, mas tambm sobrevivncia est fortemente incorporada ao
imaginrio japons. Desde o sculo X, a poesia, em primeiro lugar, assimilou
esse imaginrio e, mesmo com o contato com as influncias ocidentais, a
herana do tempo mtico continua transparecendo. Essa mitologia aparece pela
primeira vez no Kojiki(Registro dos fatos antigos, sculo VIII) encomendado
por ordem da corte imperial para explicar a criao do pas e justificar a origem
divina do imperador. No entanto, o Kojiki no cria o tempo, algo que lhe pr-
existente e corrobora a concepo temporal tambm presente na China Antiga
que comeou a exercer grande influncia na produo artstica e de
conhecimento no Japo a partir do sculo 6.
Segundo o historiador de literatura japonesa Shuichi Kato, ao contrrio
dos gregos, o tempo chins no estava interessado no movimento dos astros,
mas sim na sociedade humana e o entendimento de uma viso histrica cclica,
pois alguns fatos como guerras se repetiam juntamente com a aceitao de um
tempo em linha reta e a compreenso de que h acontecimentos que no se
repetem. E embora no se considere um comeo e um fim para a histria, todas
as coisas encontravam o seu fim, logo o momento = agora adquire um
significado.
Por tudo o que foi citado, o pas com uma localizao geogrfica que
propicia quatro estaes bem demarcadas por mudanas da paisagem natural
notveis, associou a cada mudana natural uma significao narrativa baseada
em suas experincias e mitologias prprias. Sofrendo influncia tambm da
vizinha China, o pas do sol nascente possui uma peculiar configurao na sua
temporalidade conforme assinala Kato:
Dessa maneira, na cultura japonesa, coexistiam trs modos de tempo diferentes.
Ou seja, uma linha reta sem comeo e sem fim = tempo histrico; o movimento
cclico sem comeo e sem fim = tempo cotidiano; e o tempo universal da vida,
que tem comeo e fim. E todos os trs tempos se voltam para a nfase de viver
o agora. (KATO, 2012, p.53)
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
42
Como j mencionamos, a nfase no agora que no necessariamente
curto, possibilita uma distenso considervel no tempo que determinado por
elementos outros da linguagem que no especificamente o verbo. Assim, o jogo
entre passado e presente serve para flexibilizar o agora como se
presentificando e tornando mais vvido ao leitor e combinando-se na linguagem
e procura-se causar um efeito esttico de se estar prximo ou distante da cena
descrita.
Como consequncia, a mitologia japonesa atualiza-se continuamente
uma vez que o passado/acontecimentos passados retornam ciclicamente
acompanhando as tradies a cada estao do ano. Logo toda a mitologia
permanece atual. O Brasil que possui uma ruptura mitolgica e o mundo
ocidental experienciador de uma aparente quebra entre mito e logos, tm
encontrado, em termos de cultura de massa, na animao japonesa uma
referncia a uma mitologia atravessada por uma influncia ocidental que em
alguns momentos assimilada como contos de fada quando se prope a ser
uma mitologia atualizada do prprio Japo.
Essa releitura por alguns da mitologia japonesa baseada em
animismo/shintosmo como conto de fadas no ocidente deve-se a uma
metaforizao eficiente de um mundo de sombra que parece ser no ocidente o
outro inexistente, mgico, inexplicvel, enquanto que para o oriente a
sombra criada em todo o lugar que se converte em beleza. (...), ns, os orientais,
criamos sombras em qualquer lugar e, em seguida, a beleza. (TANIZAKI, 2007, p. 46)
Esse jogo de luz ocidental das fadas que encontra a sombra oriental dos
espritos/deuses pode revelar metforas (in)esperadamente produtivas sobre
afinidades e/ou diferenas trazidas cena pela transposio literria para outras
mdias.
As metforas que emergem das obras tanto literrias como
cinematogrficas esto incorporadas neste nosso objeto de estudo na medida
em que nos propomos a utilizar a viso metaforolgica de Hans Blumenberg
da ligao fundamental da metfora com a linguagem e o mito, esse visto como
uma reocupao do espao criado no corte entre mito e logos, pretensamente
implementado pela racionalidade moderna.
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
43
Especificamente no caso da linguagem japonesa que j iminentemente
visual, temos uma narratividade que emerge como um lugar rico de sentidos, de
um descolamento da racionalidade e ao mesmo tempo conectada uma
temporalidade especfica e realidade, ou seja, um lugar perfeito para o
nascimento da metfora. O cinema ento aparece como um parceiro perfeito
para a traduo desse universo principalmente o literrio que cada vez mais vem
ocupando outros meios de disseminao.
Foi-se o tempo em que a literatura estava circunscrita apenas esfera da
pena e do papel. Com o desenvolvimento das novas tecnologias de informao,
uma tendncia iniciada j pelo cinema toma corpo e forma: a literatura levada
ao leitor por outras mdias sejam elas de udio ou vdeo. Atualmente pode-se
acess-la atravs de audiolivros e outras formas de fruio do texto literrio
comparecem na contemporaneidade perante ao leitor. Essa tendncia de
migrao para campos miditicos outros alm do textual comea a partir do
teatro e do cinema e posteriormente tambm a TV. So inmeros os exemplos
de obras literrias que foram parar nas grandes telas do cinema ou do teatro.
Percebe-se que os meios de comunicao de massa principalmente TV e
cinema tm se apropriado do texto literrio no s para se aproximar da
chamada cultura erudita, mas tambm para aproxim-la da cultura de massa
atravs do consumo. Consumo de livros, de tickets de bilheteria e de
propagandas veiculadas nos comerciais. A literatura midiatizada no s
massifica/populariza mas ao mesmo tempo tenta mercantiliz-la. Dizemos
tenta porque a forma de apropriao dos textos pelos meios de comunicao
diferenciada at mesmo pelas peculiaridades de cada veculo e de quem o
dirige/gerencia, sobre isso Ismail Xavier comenta:
A interao entre as mdias tornou mais difcil recusar o direito do cineasta
interpretao livre do romance ou pea de teatro, e admite-se at que ele pode
inverter determinados efeitos, propor outra forma de entender certas passagens,
alterar a hierarquia dos valores e redefinir o sentido da experincia das
personagens. A fidelidade ao original deixa de ser o critrio maior de juzo crtico,
valendo mais a apreciao do filme como nova experincia que deve ter sua
Magali Moura & Delia Cambeiro (Org.)
44
forma, e os sentidos nela implicados, julgados em seu prprio direito. (XAVIER,
2003, p. 61)
Ou seja, desde que o cinema (e mesmo a TV) apropriou-se do texto
literrio transformando-o em imagem cinematogrfica, a marca autoral deixa-
se notar. Atravs da perspectiva escolhida, opta-se por mostrar determinada
narrativa intermediada por uma determinada trama, enredo que tem se
distanciado cada vez mais de uma fidelidade completa ao texto original e, at
mesmo por isso, ser praticamente impossvel pelas idiossincrasias de cada
veculo. Sobre isso, Xavier acrescenta:
Tais observaes, ao destacar equivalncias entre as palavras e as imagens, ou
entre o ritmo musical e o de um texto escrito, entre a tonalidade de um
enunciado verbal e a de uma fotografia, colocam-se no terreno do que
chamamos de estilo. Tomam o que especfico ao literrio (as propriedades
sensveis do texto, sua forma) e procuram sua traduo no que especfico ao
cinema (fotografia, ritmo da montagem, trilha sonora, composio das figuras
visveis das personagens). (XAVIER, 2003, p. 63)
Na perspectiva contempornea, essas abordagens interartes combinam a
literatura com outras formas de arte em uma leitura intersemitica de sentido
de duas narrativas as quais se interceptam e interseccionam reestruturando
antigas metforas e construindo novos inputs de sentido. Nesse contexto,
encontramos nas narrativas japonesas um campo muito frtil para esse tipo de
articulao. Isso porque por questes constitutivas da prpria escrita ideogrfica
oriental, a visualidade da literatura um dos seus aspectos mais notveis.
Em relao ao cinema, no Japo, essa tendncia antiga e manifesta
desde 1921, com o filme Jasei no in baseado na obra de Akinari Ueda, Ugetsu
Monogatari seguido posteriormente de adaptaes de outros clssicos. A marca
autoral de diretores como Akira Kurosawa, Takeshi Miike, Koreeda Hirokazu, entre
outros, passam a ser paulatinamente percebidas. No seguir uma obra risca
significa tambm deixar a obra aberta (utilizando o termo cunhado por
Humberto Eco) s interpretaes ou a um direcionamento prprio do perfil do
200 anos dos Contos maravilhosos dos Irmos Grimm
Anais do simpsio Magias, encantamentos e metamorfoses"
45
diretor/adaptador e que escolhe qual a estratgia narrativa que ir por em
prtica para posicionar o texto imageticamente.
Trata-se, no caso da literatura, de um esforo para adaptar-se aos novos tempos,
caracterizados pela proliferao de narrativas, disponibilizadas pelo mercado
cultural, nos mais diferentes suportes. Proliferao esta que se constitui no
interior de uma ampla rede em que os bens simblicos circulam, de maneira
descentrada, desfazendo-se antigas hierarquias, ao mesmo tempo em que o
mercado, seguindo a lgica comercial, cria segmentaes de acordo com o tipo
de pblico a que o produto se destina. Textos e imagens deslizam de um suporte
para o outro, intensificando-se o intercmbio entre os diferentes meios, o que
ocasiona mudana de significado dos objetos que se deslocam, exigindo
mudanas nos protocolos de leitura. (FIGUEIREDO, 2010, p. 62)
Essa tendncia se intensifica na di