Movimentos sociais, gênero e protestos: um balanço da literatura em três paíseslatino-americanos
Eduardo Moreira da Silva1
Clarisse Paradis2
ResumoO artigo parte do paradoxo da redução expressiva da participação juvenil nas eleições e a simultânea elevação dapresença desse segmento em passeatas, piquetes e protestos para examinar como as/os participantes dos canaisinstitucionais de política para as mulheres na Argentina, Brasil e Chile atuam, combinando interações com o Estado eformas de protesto e ação direta. O texto estrutura-se em três partes. Na primeira, descreve-se as interaçõescolaborativas com o Estado. Na segunda realiza-se uma revisão das ações de protesto nos três países selecionados. Naterceira parte propõe-se uma análise sistêmica dos processos políticos e deliberativos na região para se captar asrelações estabelecidas entre os atores do Estado e da sociedade civil, em relação à área temática de políticas públicasdestinadas a assegurar condições de cidadania para as mulheres na região.
Palavras-chave: Movimentos feministas e de mulheres; protestos; repertórios de interação; América Latina
1. Introdução
A literatura de movimentos sociais buscou teorizar, de maneiras diversas, a relação entre
esses atores e o Estado. Enquanto uma visão bipolarizada predominou em muitos estudos – focada
nas relações contenciosas entre ambos e que, acabaram por produzir uma visão bastante homogênea
desses atores – uma parte dos estudos buscou considerar mais a fundo essa relação, a partir do
exame dos espaços de participação política, das redes de movimentos sociais, dos projetos políticos
em disputa na América Latina (Abers; von Büllow, 2011; Alvarez et all, 2014; Dagnino; Olvera;
Panfichi, 2006).
Abers e von Büllow (2011), identificaram diferentes formas de interação entre movimentos
sociais e Estado, que justificam novas abordagens para teoria de movimentos sociais – os últimos
buscam influenciar as políticas públicas, demandam e contribuem com diferentes espaços
participativos, além da incorporação de militantes no aparato estatal, fazendo com que o trânsito
entre sociedade civil e sociedade política seja mais frequente e complexo do que a literatura
precedente tratou.
Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) criticam a separação radical entre a sociedade civil e
1 Residente Pós-Doutoral no Departamento de Ciência Política da UFMG. Email:
Doutoranda no Departamento de Ciência Política da UFMG. Email: [email protected]
sociedade política, a primeira entendida como homogênea e virtuosa e a última como “encarnação
de todo o mal”. Nesse sentido, os autores problematizam como não é possível pensar a sociedade
civil, nem o Estado como atores unificados, mas heterogêneos, permeados por diferentes projetos
políticos e envoltos por disputas no seu interior. Alvarez et all (2014), apontam que, na América
Latina, as lutas político-culturais (cultural-political struggles) são empreendidas por duas formas –
pela proliferação da participação no chamado “terceiro setor” e em programas governamentais e
pelo aumento da visibilidade de uma forma de ação coletiva menos “civilizada” e mais
confrontacional. Os movimentos sociais utilizariam múltiplas estratégias e práticas caracterizadas
por ambas as formas de ação, a depender do momento.
Por sua vez, o trabalho de Abers, Serafim e Tatagiba (2014) se insere no contexto desses
estudos e buscou compreender as interações entre sociedade e Estado em três áreas específicas de
políticas públicas no Governo Lula – política urbana, desenvolvimento agrário e segurança pública.
O argumento delas é que novas formas de interação surgiram, decorrentes da presença de militantes
no aparato estatal, em associação com o histórico dessa interação em cada setor de política pública,
bem como a própria heterogeneidade do Estado brasileiro.
Para tal, as autoras reformulam o conceito de repertório, com objetivo de ampliar o foco
para além da ação contenciosa dos movimentos, tal como formulado por McAdam; Tilly e Tarrow
(2004), como formas culturalmente codificadas pelas quais as pessoas interagem em políticas de
conflito (p.16), ou ainda as formas pelas quais as pessoas se engajam em uma ação coletiva. Nesse
sentido, as autoras desenvolvem a ideia de “repertórios de interação”, que também servem para
apreender relações colaborativas entre sociedade e Estado (Abers, Serafim e Tatagiba, 2014). Essa
nova noção permite “[...] incorporar a diversidade de estratégias usadas pelos movimentos sociais
brasileiros e examinar como estas têm sido usadas, combinadas e transformadas” (Abers, Serafim e
Tatagiba, 2014, p.332).
Quatro rotinas de interação foram identificadas, a partir da análise do caso brasileiro: (1)
Protestos e ação direta – mesmo quando há colaboração com o Estado e este é visto como aliado, os
movimentos organizam protestos, mas os inserem dentro do ciclo de negociação; (2) Participação
institucionalizada – interação que ocorre nos canais de participação institucionalizados como o
orçamento participativo, os conselhos de políticas públicas e as conferências; (3) Política de
proximidade – quando há contatos pessoais entre atores de movimentos e do Estado, facilitados pela
ampliação de ligações entre o Executivo e esses movimentos, própria de governos de esquerda; (4)
Ocupação de cargos na burocracia – quando militantes ou pessoas muito próximas tornam-se
funcionários do Estado e facilitam conexões entre ambas esferas.
No presente trabalho, pretende-se verificar se existem tendências semelhantes para se pensar
o setor de política para as mulheres, ou seja, a relação entre movimentos feministas e Estado e quais
as semelhanças e diferenças entre a experiência brasileira e a argentina e chilena. Para tal,
utilizaremos três variáveis: 1) eleição de mulheres Presidentas; 2) existência de mecanismos
institucionais de mulheres3; 3) presença ou não de mecanismos de participação da sociedade
vinculados aos mecanismos institucionais de mulheres.
Entre formas colaborativas e contenciosas de relação com o Estado, estão portanto os
protestos, que podem ser caracterizados pela relação estabelecida pelos participantes entre a sua
insatisfação e uma rejeição explícita aos sistemas políticos, aos partidos políticos tradicionais e,
ainda, à outras formas convencionais de organização. Dentre elas, alguns movimentos sociais e
sindicais marcados pela hierarquia e/ou relação com o Estado (Bringel, 2013, p.21). Diagnóstico
semelhante está presente em autores que sustentam a existência de uma crise da representação
política na contemporaneidade (Almeida, 2011, Silva, 2013, Sintomer, 2010).
Alguns estudos indicam a tendência mais expressiva de redução da participação juvenil nos
canais convencionais de participação política, via partidos e eleições. Isto é, tal fenômeno teria
razões geracionais (Borba e Ribeiro, 2015). Ao mesmo tempo, observa-se uma elevação expressiva
do envolvimento dos jovens em passeatas, piquetes, protestos etc (Blais, 2012, Ribeiro e Borba,
2011).
Os protestos mais recentes podem ser caracterizados como um “novo tipo de ação política
viral, rizomática e difusa(...)” composta por “repertórios mais mediáticos e performáticos” (Bringel,
2013, p.19, destaques nossos). É possível encontrar tendências semelhantes adotadas por analistas
que tem se proposto a entender os mecanismos que levaram à ocorrência de uma “geopolítica da
indignação global”, que tem se expressado em diferentes ações de protesto, em contextos tão
variados como a América do Norte, a Europa e a América Latina (Bringel, 2013; Valerian, 2013;
Miranda; Rosenkranz, 2011; Polanco; Silva, 2013).
Os contornos atuais das formas de ação conteciosas também fazem parte das estratégias e
3Os MIMs podem ser entendidos como órgãos do poder executivo do Estado, responsáveis pela implementação
das políticas de igualdade de gênero. Variam de formato em cada país e nível federativo, podendo ser ministérios,secretárias, coordenadorias, institutos, conselhos, entre outros. Para uma análise desses órgãos em 16 países da AméricaLatina, ver: PARADIS (2013).
repertórios dos movimentos de mulheres e feminista e impactam os modos de interação entre esses
movimentos e o Estado. Nesse sentido, nos debruçaremos mais profundamente na literatura sobre
protestos, buscando identificar os ciclos de protestos em cada um dos países em questão e, por fim,
examinar como o campo feminista (Alvarez, 2014) tem construído combinações que reúnem tanto
ações colaborativas, quanto ações confrontacionais com o Estado e a partir de quais repertórios de
interação.
2. Repertórios de interação entre feminismo e Estado: o caso do Brasil, Argentina e Chile
A relação entre o feminismo e o Estado fez parte de um debate exaustivo, mas não esgotado,
com contribuições do Norte (Htun; Weldon; 2010; Kantola, 2006; Lovenduski, 2005; Mazur, 2002;
Orloff; 1996) e Sul Global (Rai, 2003; Sardemberg, Costa, 2006; Alvarez, 1990; Chávez, Quiroz,
Mokrani; 2010; Guzmán, 2001) e a partir de diferentes correntes do feminismo (Paradis, 2013).
Visões mais colaborativas e mais repulsivas permearam as avaliações sobre as estratégias dos
movimentos feministas vis-à-vis o Estado e, na América Latina, essas visões estiveram em
constante disputa, nos diferentes períodos históricos do feminismo (Matos, Paradis; 2013).
Fugindo de uma visão binária e maniqueísta, Matos e Paradis (2014) sugerem uma nova
síntese feminista do Estado – que leve em conta a complexidade das relações entre sociedade e
Estado, que perceba e monitore as traduções políticas que o Estado dá para a demanda dos
movimentos feministas; que leve em consideração os diferentes grupos de mulheres e como elas são
atingidas pelas ações estatais de maneira diferente e que avalie como os mecanismos institucionais
de mulheres buscam e, com qual sucesso, despatriarcalizar o Estado. A partir dessa via, será
possível pensar os repertórios de interação entre movimento feminista e Estado, utilizando-se de
três variáveis utilizaremos três variáveis: 1) eleição de mulheres Presidentas; 2) existência de
mecanismos institucionais de mulheres; 3) presença ou não de mecanismos de participação da
sociedade vinculados aos mecanismos institucionais de mulheres.
1.1 Eleição de mulheres Presidentas
Na história democrática da América Latina, apenas dez mulheres exerceram o cargo de
presidente (Global Gender Gap Index, 2011). Segundo Ángeles, Ramil e Espinosa (2012), a eleição
delas aconteceu em duas etapas. A primeira foi marcada pelo acesso de mulheres que tinham
vínculos familiares com políticos ou em conjunturas de forte instabilidade política (como Isabelita
Perón, que assumiu o cargo após a morte de seu esposo, Juán Perón, em 1974). A segunda etapa foi
marcada pela eleição de quatro presidentes desde 2006: Michelle Bachelet (2006-2010/ 2014-) no
Chile, Cristina Kirchner (2007-2015) na Argentina, Laura Chinchilla (2010-2014) na Costa Rica e
Dilma Rousseff (2011-2014/ 2015-) no Brasil.
É evidente que as mulheres, como grupo social, não são homogêneas, nem compartilham os
mesmos interesses, vontades, perspectivas e aspirações. Portanto, existem vários exemplos de
presidentas que não despenderam esforços para perseguir uma agenda feminista e de gênero e,
muitas vezes, sequer uma agenda que possa ser considerada feminina. Por outro lado, a eleição das
presidentas tem um teor simbólico inegável, que pode contribuir para que haja uma pressão maior
da sociedade e dos movimentos organizados por uma atenção especial às demandas feministas e
das/para as mulheres.
A experiência chilena, com a primeira eleição da Presidenta Bachelet, demonstra que a
combinação de uma mulher chefe de Estado, que prioriza a agenda feminista e de gênero pode gerar
um amplo comprometimento com a igualdade de gênero. Uma de suas primeiras preocupações foi
tornar paritário o seu gabinete4. Há certo consenso de que a eleição da líder chilena teve um impacto
significativo na vida das mulheres de toda a região. Conforme argumenta Marcela Tobar (2009), a
eleição de Bachelet “inflamou interesse sem precedente pelo desenvolvimento do papel político das
mulheres e das relações de gênero no país. Sua eleição foi indubitavelmente um marco histórico”
(Tobar, 2009, p.21).
Ainda segundo a autora, vários foram os exemplos de suporte retórico e simbólico do seu
comprometimento pessoal com a igualdade de oportunidades para as mulheres. Para se ter uma
ideia, no seu primeiro discurso anual para o Congresso, ela utilizou a palavra “mulher” 36 vezes,
incluindo a citação de duas feministas históricas do país (Tobar, 2009). No que se refere ao suporte
político ao mecanismo institucional de mulheres do Chile, o Servicio Nacional de la Mujer
(SERNAM), Ángeles, Ramil e Espinosa (2012) afirmam que durante o mandato da presidenta
chilena o MIM obteve significativo aumento em seu orçamento.
A eleição de Dilma Rousseff no Brasil, para o seu primeiro mandato, também teve
repercussão importante. Já no seu discurso de posse, Dilma afirmou o compromisso com as
mulheres5:
4De certo modo, essa não foi uma política exclusiva do seu governo, por ser mulher. Daniel Ortega, na
Nicarágua, e Evo Morales, no segundo mandato na Bolívia, também o fizeram (Htun; Piscopo, 2010). 5
No entanto, a palavra mulher aparece dez vezes, contra 36 de Bachelet.
“E sei que meu mandato deve incluir a tradução mais generosa desta ousadia do votopopular que, após levar à Presidência um homem do povo, um trabalhador, decide convocaruma mulher para dirigir os destinos do país. Venho para abrir portas para que muitas outrasmulheres também possam, no futuro, ser presidentas; e para que – no dia de hoje – todas asmulheres brasileiras sintam o orgulho e a alegria de ser mulher. Não venho para enaltecer aminha biografia; mas para glorificar a vida de cada mulher brasileira. Meu compromissosupremo – eu reitero – é honrar as mulheres, proteger os mais frágeis e governar paratodos! (Brasil, 2011).
Apesar de não ter instalado um gabinete paritário, indicou muitas mulheres no primeiro
mandato, inclusive para o “núcleo duro” do governo. Sobre o suporte político do governo Dilma à
Secretaria de Política para as Mulheres (SPM) – merece destaque a indicação, pela primeira vez, de
uma Ministra com reconhecida trajetória feminista, além do aumento de quase 18% no orçamento
da SPM, de 2010 para 2011(SPM, 2011).
Além disso, um episódio que, a princípio, ameaçou a SPM, acabou por reforçá-la. Logo no
primeiro ano do governo Dilma, na preparação de sua primeira reforma ministerial, a opinião
pública veiculou amplamente a intenção do governo de criar um Ministério de Direitos Humanos,
que agregaria as pastas de mulheres, raça, sexualidade, criança/adolescente, idosos, deficientes,
entre outros. Com isso, a SPM perderia poder na hierarquia governamental, ao passar de uma
secretaria com status de Ministério para um órgão no interior de um Ministério. Alguns movimentos
se mobilizaram, lançando notas de repúdio a essa possibilidade (Marcha Mundial das Mulheres,
2011). Em dezembro de 2011, durante a 3ª Conferência Nacional de Política para as Mulheres, a
Presidenta Dilma reverteu essa intenção. A polêmica serviu para que ela reafirmasse o seu
compromisso de manutenção da Secretaria e, também, com a própria agenda feminista e de gênero.
Cristina Kirchner, por sua vez, foi a primeira mulher a se reeleger na América Latina, com a
maior votação entre todos os presidentes dos 28 anos de democracia no país (Carta Capital, 2011).
De acordo com Ángeles, Ramil e Espinosa (2012), dentre os avanços do seu governo estão o
reconhecimento do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo e a lei de proteção integral para
prevenir, sancionar e erradicar a violência contra as mulheres. No entanto, essas leis parecem ter se
beneficiado em maior medida do grande número de mulheres no legislativo, já que o país é um dos
que tem maior representação política feminina na região.
Ainda segundo as autoras, as políticas públicas de gênero, durante o governo da presidenta
são marcadas pela “descontinuidade, falta de financiamento e ambigüidade na definição de
equidade” (Ángeles; Ramil; Espinosa, 2012, p.128) O MIM argentino – Consejo Nacional de las
Mujeres –, como veremos, além de estar no mais baixo nível hierárquico do governo, possui um dos
menores orçamentos de todos os MIMs latino-americanos. No entanto, segundo relatório do país
para o XI Conferência Regional sobre a Mulher na América Latina e Caribe, de 2008 para 2009, o
CNM teve um aumento de pouco mais de 20% no orçamento e também de pessoal (Argentina,
2010). Além disso, em 2010 foi criada, no âmbito da estrutura do CNM, a unidade de coordenação
nacional para prevenção, assistência e erradicação da violência contra as mulheres, com status de
subsecretaria (Argentina, 2010).
1.2 Existência de Mecanismos Institucionais de Mulheres
Na América Latina, apesar de as primeiras instituições voltadas para a promoção de
programas, políticas e ações para as mulheres terem sido criadas desde a década de 40 (Paradis,
2013), somente na década de 80 que se dá a emergência de boa parte dos mecanismos institucionais
de mulheres da região, principalmente fruto das Conferências Mundiais das Mulheres e de seus
respectivos Planos de Ação, e do processo crescente de redemocratização dos países, após longos
períodos de ditadura militar, conflitos armados e guerra civil.
Dentre as principais características dos mecanismos institucionais de mulheres, estão:(1) a
interlocução com a sociedade civil, principalmente pela interação com os movimentos e
organizações de mulheres; (2) a tentativa de sensibilizar e capacitar funcionários públicos sobre as
questões de gênero, (3) a adoção da transversalidade de gênero como uma estratégia para exercer
poder e atingir seus objetivos centrais; (4) a constante luta para manter sua existência e aumentar
sua capacidade técnica, orçamentária e política.
No Brasil, Chile e Argentina o formato e força dos mecanismos institucionais de mulheres
varia muito, conforme quadro abaixo:
Quadro 1: Perfil dos mecanismos institucionais de mulheres no Chile, Brasil e Argentina
PaísMecanismos
Institucionais deMulheres (MIMs)
NívelHierárquico
(1)
EstruturaLocal
Nº funcionários% do
orçamentogeral
Orçamento doMIM por
mulher (US$)
ChileServicio Nacional de la
Mujer1 Sim Acima de 500 0,02 a 0,07% 4,00 a 7,00
BrasilSecretaria de Política
para as Mulheres1 Não 100 a 300
0,001 a0,01%
0,50 a 0,99
Argentina
Consejo Nacional de lasMujeres
3 Não Até 500,001 a0,01%
0,10 a 0,29
Fonte: Paradis (2013).
(1)De acordo com tipologia produzida pela CEPAL os MIMs variam segundo seu nível hierárquico, medido a partir dacategoria da/o titular, bem como a categoria do próprio mecanismo. Sendo assim, os MIMs latino-americanosdistinguem-se entre três níveis hierárquicos: (1) Ministério ou entidade cujo titular tem status ministerial; (2) Entidadevinculada à Presidência ou Mecanismo cujo titular é diretamente responsável perante a Presidência; (3) Entidadesdependentes de um Ministério (subsecretarias, institutos, conselhos e outras instituições) (CEPAL, 2010).
O MIM chileno é um dos mais fortes de todos latinoamericanos, do ponto de vista da sua
estrutura burocrática e orçamentária. A Secretaria de Política para as Mulheres do Brasil está no
mais alto nível hierárquico, mas recebe uma parcela muito pequena do orçamento geral e não conta
com qualquer tipo de estrutura local própria da Secretaria, apesar de fornecer apoio orçamentário
para várias das estruturas subnacionais de política para as mulheres (Bohn, 2010). O Consejo
Nacional de las Mujeres é o mais deficitário, está no terceiro escalão e tem uma capacidade técnica
e orçamentária muito pequena (uma das piores estruturas de todos os MIMs latinoamericanos).
1.3 Presença ou não de mecanismos de participação da sociedade vinculados aos mecanismos
institucionais de mulheres.
Uma das principais características dos mecanismos institucionais de mulheres MIMs é a
possibilidade de interlocução com os movimentos sociais. Byrne et all (1996) consideram a relação
entre mecanismos e sociedade civil uma estratégia adotada pelos MIMs para influenciar as políticas
e estratégias de planejamento dos governos. Há também um conjunto de fatores que determinam o
relativo “sucesso” ou “fracasso” dessa relação. Ela pode ser beneficiada quando os canais formais
de influência na tomada de decisão não impõem perda de autonomia para os movimentos, quando
as organizações de mulheres não têm uma visão de aversão ao Estado e suas instituições, e quando a
agenda dos mecanismos institucionais de mulheres não difere radicalmente da agenda de (pelo
menos alguns) movimentos e organizações, de modo a ser viável tal cooperação (Byrne et all,
1996).
Na contramão da maioria dos países da América Latina, o Consejo Nacional de las Mujeres
argentino não conta com nenhum canal formal de participação dos movimentos e organizações
sociais (Paradis, 2013). Como afirmam Matos e Paradis (2013), de acordo com militantes
entrevistadas6, o Consejo não proporciona diálogo verdadeiro com os movimentos e foi perdendo
gradualmente poder, prestígio e recursos.
6Essas entrevistas foram feitas no âmbito da pesquisa “Mulheres e Políticas Públicas na América Latina:
Desafios à Democracia na Região” realizada em duas etapas entre 2010 e 2013 pelo Núcleo de Estudos e Pesquisassobre a Mulher (NEPEM) (Matos, Paradis, 2013).
No Chile, o “Consejo de la Sociedad Civil” é vinculado ao Servicio Nacional de la Mujer e
composto por órgãos do governo, movimentos e organizações da sociedade civil, de prerrogativa
consultiva. Além do Conselho, o Sernam prevê três outros tipos de participação cidadã: (1)
consultas públicas, através de enquetes virtuais, encontros entre atrizes governamentais e não
governamentais e pesquisas de informação; (2) disponibilidade de informações relevantes, através
do sistema integral de informação e atenção cidadã (SIAC); (3) prestação de contas pública sobre
sua gestão, políticas, programa e execução orçamentária (Chile, 2010).
No Brasil, o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM) foi criado em 1985 e
funcionou como o primeiro mecanismo institucional de mulheres do país, vinculado ao Ministério
da Justiça. Com a criação da Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), em 2003, o papel e
escopo de atuação do CNDM foi alterado, passando de órgão responsável por formular políticas,
para ter com uma de suas funções prioritárias o monitoramento das políticas de igualdade para as
mulheres (Brasil, 2008). O conselho brasileiro é um dos únicos conselhos de mulheres de caráter
deliberativo na América Latina.
Além disso, outro mecanismo de participação são as Conferências de Políticas para as
Mulheres, que envolveram em torno de 200 mil mulheres em cada uma das suas três edições (2004,
2007 e 2011), realizadas a partir de conferências municipais, estaduais e nacional, em todas as
Unidades da Federação do país, contando com a participação de inúmeras e diversificadas
organizações e movimentos da sociedade civil, além de gestores/as municipais e estaduais,
pesquisadores e observadores externos. O resultado das Conferências foi o lançamento de três
planos nacionais de política para as mulheres.
Conforme Matos e Paradis (2013), de acordo com entrevistadas brasileiras de vários
movimentos, partidos e organizações internacionais, há uma visão quase unânime da existência de
estreita relação entre os movimentos e a SPM. Conforme nos mostra Bohn (2003), outra forma de
interlocução é a destinação de pelo menos 2/3 do seu orçamento para o financiamento de projetos
que visem avançar o status das mulheres, apresentados tanto pela sociedade civil, quanto por atores
estatais (prefeituras, secretarias estaduais, etc).
Conforme nos mostram Abers, Serafim e Tatagiba (2014), os protestos e ações diretas
podem ser parte dos repertórios de interação, utilizados como parte das negociações entre
movimentos e atores estatais. Esses tipos de protestos, convivem com um processo continuado e
frequente de ações contenciosas, nos moldes tradicionais do confronto político. Na seção seguinte,
analisaremos o estado dos protestos nos três países em questão e localizaremos os movimentos
feministas e de mulheres no conjunto dessas ações.
3. Protestos na América Latina: Argentina, Brasil e Chile.
Nas últimas décadas, uma das marcas expressivas da sociologia dos movimentos sociais foi
a busca pela produção de respostas multidimensionais capazes de indicar como, quando e por que
surgem os movimentos sociais (Bringel, 2013, p.17, Tarrow, 2009). Com base nesta distinção
analítica, interpelamos a literatura recente sobre a participação política na Argentina, no Brasil e no
Chile, com foco na identificação de ações de protesto. Estas abrangem um espectro mais amplo da
sociedade, para além dos movimentos sociais e redes de mobilização, pois constituem um
“transbordamento societário7” nos termos colocados por Bringel (2013). Como mencionado acima,
o propósito é verificar se os cidadãos, os movimentos de mulheres e feministas têm buscado
combinar diferentes repertórios de ação política, capazes de abarcar tanto interações de confronto
com o Estado, quanto ações colaborativas com ele (Tarrow, 2009; Abers, Serafim e Tatagiba, 2014).
Ao se analisar o quando, como e porque surgiram alguns protestos na América Latina,
sustenta-se a existência de “ciclos de confrontos” na região (Bringel, 2013,Tarrow, 2009, Tatagiba,
2014). De um lado, há singularidades nos protestos mais recentes e, ainda, especificidades do atual
contexto social, político e econômico de cada país. Esses elementos poderiam levar ao equívoco de
se isolar determinados contextos históricos e/ou estabelecer paralelos precipitados. Por outro lado,
seria importante também não cair no extremo oposto da “sedução da novidade” (Bringel, 2013,
p.24). Em outros termos, nos três países selecionados é possível identificar ciclos de ações
coletivas, desde a luta pela democratização dos regimes até os dias mais recentes. Essa tendência à
persistência de ações de confronto e conflito pode ser observada no gráfico 1:
Gráfico 1: Localização por país segundo volume de conflitos e radicalização
7 A expressão é assim definida pelo autor: “(...)quando na difusão de setores mais mobilizados e organizados a
setores menos mobilizados e organizados, os grupos iniciadores acabam absolutamente ultrapassados”(Bringel, 2013, p.17).
Fonte: Pnud apud Polanco; Silva, 2013, p.441.
Os dados são provenientes de um estudo do PNUD realizado em 2011. Portanto, não
incluem os protestos mais recentes, que poderiam mudar a posição dos países, tanto no que se refere
ao volume dos conflitos, quanto à radicalização. Os três países podem ser caracterizados por um
elevado grau de conflito e, também, pela radicalização (destaca-se o Chile).
O mesmo estudo do PNUD sugeriu uma categorização dos conflitos. São eles: 1) conflitos
por reprodução social; 2) conflitos institucionais; 3) conflitos culturais. O primeiro está relacionado
às demandas por melhores condições de vida por parte de grupos que buscam posições mais
elevadas na estrutura social. Neste sentido, lutam por direitos e condições de se levar uma vida
digna. O segundo grupo refere-se ao funcionamento institucional ou à carência de instituições
capazes de processar os conflitos. Neste caso, a conflitualidade é derivada da necessidade de
promoção de melhorias na institucionalidade e nos procedimentos de gestão administrativa, na
prestação de serviços públicos e, ainda, na legitimidade das autoridades públicas. O terceiro grupo
está relacionado à interação entre diversos tipos de representações, imaginários e sistema de valores
presentes na sociedade. Embora seja uma dimensão menos frequente, apresentam um alto impacto
devido ao elevado crescimento da importância da cultura e das “sociedades interdependentes”
(Polanco; Silva, 2013, p. 442). O quadro 1, a seguir, nos permite identificar a distribuição de cada
uma das categorias em 17 países latinoamericanos.
Quadro 1: Porcentagem de conflitualidade por campo de conflito,por País e por orientação ideológica.
Fonte: Pnud apud Polanco; Silva, 2013, p.442.
Observa-se tendências mais próximas entre o Brasil e o Chile, nos quais o percentual de
conflitos na primeira categoria é mais expressivo (63% e 61%, respectivamente). Apesar da
Argentina também apresentar como taxa mais expressiva os conflitos de reprodução social, o
percentual de conflitualidade cultural apresenta valores duas vezes superiores aos outros dois
países. Por outro lado, enquanto Brasil e Argentina são caracterizados pelo nacionalismo popular e
pelo reformismo prático, o Chile é marcado pela modernização conservadora. As lutas e
mobilizações feministas podem se localizar nas três categorias, veja-se o caso da superação do
patriarcado, que prevê transformações culturais.
Se transitarmos das pesquisas de percepção mais gerais para uma descrição mais específica
dos confrontos (protestos) na região teríamos, esquematicamente, o seguinte desenho dos ciclos de
confronto. Na Argentina, as mães da praça de meio foram atuantes na luta contra a ditadura e na
defesa dos direitos humanos. Posteriormente, na crise econômica em 2001, desencadeou-se um
conjunto de ações de protesto, sendo de destaque a ação dos movimentos das/os trabalhadoras/os
desocupadas/os, constituindo por uma “multiplicidade de movimentos (piqueteiras, trabalhadoras de
empresas recuperadas, assembleístas, campesinas, indígenas e feministas) ” (Di Marco, 2010, p.63).
No Chile, as mobilizações contra a ditatura também foram expressivas (Mira, 2006). Desde
2006, um conjunto de estudantes secundaristas e, posteriormente, universitários têm se mobilizado e
ocupado as ruas do país em busca de reformas no sistema de ensino. Em 2011, outro conjunto de
atores se somaram aos estudantes e tomaram as ruas de 25 cidades no país (Mira, 2011, p.191). A
cobertura dos protestos foi acompanhada por aproximadamente 1,2 milhão de pessoas (Miranda;
RosenKranz, 2011).
No Brasil, é possível localizar três diferentes ciclos de confrontos: Diretas já, em 1984; Fora
Collor, em 1992; Jornadas de Junho de 2013. Desde então, assiste-se à um conjunto variado de
ações de protesto no Brasil, no qual foi realizada a copa do mundo de futebol no ano de 2014.
Durante a realização da copa das confederações, exatamente um ano antes da copa, a população
brasileira tomou as ruas em ações de protesto contra a forma de realização de obras e/ou
procedimentos realizados ao evento (Tatagiba, 2014; Bringel, 2013). Segue-se, então, a análise de
cada um dos casos.
2.1 Argentina
Os movimentos de mulheres e feministas na Argentina podem ser caracterizados por três
tendências gerais. A primeira, refere-se à presença e atuação em movimentos de direitos humanos
(mães e avós). A segunda é a das ações coletivas dos setores populares, sobretudo, nos períodos
caracterizados pelo ajuste fiscal e crise econômica e, ainda, das mulheres envolvidas nos
movimentos feministas presentes tanto no Estado quanto na sociedade. A terceira é a presença de
mulheres das classes médias da população que estejam envolvidas com a políticas para mulheres
e/ou o movimento feminista (Di Marco, 2010; Miranda e Rosenkraz, 2011; Gajardo, 2014).
As conferências mundiais, tal como a promovida pelas Nações Unidas em Beijim (1995) e
também aquelas promovidas pela CEPAL (1994), foram importantes catalisadores da realização de
encontros periódicos e sistemáticos dos movimentos de mulheres e feministas lationamericanos. Por
esta razão, foram se consolidando e fortalecendo pautas e causas a serem defendidas e promovidas
pelo próprio Estado. Este, por sua vez, passou a atuar mais ativamente no processo de promoção de
políticas de proteção e promoção às mulheres, tanto no que diz respeito ao enfrentamento à pobreza,
quanto à equidade de gênero (Alvarez, 2000; Di Marco, 2010).
Os protestos realizados na Argentina em 2001, em decorrência da crise econômica (política,
posteriormente) enfrentada naquele momento foi um fator decisivo para a integração de agendas
dos seguintes movimentos: movimento feminista argentino; o feminismo popular; e o movimento
de mulheres8.
O movimento de luta contra a violência sexual em defesa do aborto e do livre exercício dos
direitos sexuais das mulheres foi um momento de inflexão na transformação da causa feminista na
Argentina. Di Marco (2010) descreve o modo como se configuram as articulações dos movimentos
feministas em prol do direito ao aborto. Desde a redemocratização do pais, foram constituídos
fóruns e comissões para a discussão sobre a temática. Nos anos 1990, com a realização do Encontro
Feminista Lationoamericano e do Caribe, realizado em São Bernardo, diferentes grupos envolvidos
com a questão passaram a somar esforços para a constituição de uma agenda comum em defesa do
tema (Di Marco, 2010).
Em 1991, foi constituído o Fórum pelos direitos reprodutivos e, em 1993, realizou-se uma
campanha com a participação 13 países e mulheres provenientes de organizações políticas,
feministas, lésbicas e de vários grupos estudantis. Desde então, passaram a denominar-se
Coordenação pelos direitos ao Aborto. Em 1994 organizou-se o grupo Mujeres Autoconvocadas
para Decidir en Libertad (Madel), formada por cem organizações políticas e sociais. No entanto,
ainda faltava a presença das feministas populares, de acordo com a análise da autora (Di Marco,
2010, p.57-8).
O ano de 2001 foi uma inflexão no movimento em dois sentidos. Em primeiro lugar, o
feminismo, que em anteriores lutas tinha passado a se acionar em aliança com as mulheres de
organizações políticas, por meio de campanhas de divulgação com o lobby, se articulava agora com
as mulheres populares. Em segundo lugar, o movimento passou à uma fase propositiva, com a
plataforma das lutas anteriores, mas com o acréscimo da experiência conquistada pelas militantes
feministas em suas lutas (Di Marco, 2010, p.59).
8 Cabe esclarecer a distinção aqui estabelecida. A categoria mais geral seria a terceira, que incluí o conjunto de
atores e atrizes envolvidas com os movimentos sociais que lutam pelos direitos das mulheres. A segunda categoria, a dofeminismo engloba ação de atores estratégicos, presentes no Estado e na sociedade, que identificam uma desigualdadeestrutural de gênero, por meio da qual são construídas socialmente e transmitidas por meio das gerações, as construçõessociais, estigmas e mecanismos de reprodução das desigualdades entre homens e mulheres. A principal diferença dessacategoria, em relação à primeira, é o fato a defesa dos direitos das mulheres não implica, necessariamente, naconstituição de uma postura de luta contra a reprodução daquelas desigualdades, reproduzidas, sobretudo, pelaperpetuação do patriarcado. A terceira categoria, por sua vez, é oriunda das lutas e denúncias das mulheres feministascontra a pobreza e a desigualdade. Trata-se, portanto, de uma “subcategoria” da primeira, mas que se distingue daquelapor apresentar especificidades em relação à feministas das classes médias, por exemplo.
Sugere-se a passagem do movimento feminista popular ao que a autora denomina pueblo
feminista9. Tal processo teria se dado em função das respostas governamentais realizadas aos
movimentos de trabalhadoras/es desocupadas/os. Isto porque foi possível se observar uma resposta
institucional às demandas (programas de transferência de renda e subsídios para a realização de
pequenos empreendimentos). Os movimentos, por sua vez, utilizaram estes recursos para aumentar
o número de membros e aprofundar a mobilização. Alguns dirigentes do movimento passaram a
ocupar postos no governo da época. No entanto, os movimentos não puderem gerar uma cadeia de
equivalências e começaram a se fragmentar, desmobilizar e transformar suas alianças. Finalmente
se impôs a lógica da diferença, fundamental à constituição do povo (Di Marco, 2010, p.61).
As demandas por trabalho e subsídios por parte dos movimentos foram absorvidas em parte
(e deficientemente) pelo Estado e perderam seu potencial de construção de um povo, no sentido
outorgado por Laclau à esta categoria. Isto porque a sociedade passa a ser vista como um sistema
em constante expansão, no qual qualquer necessidade social seria satisfeita diferenciadamente, não
havendo condições para se criar uma fronteira externa, capaz de viabilizar a criação de um povo (Di
Marco, 2010, p.62). Tais consequências foram possíveis porque o populismo permite a formação
antagônica e, ao mesmo tempo, a unificação de diversas demandas em um sistema estável de
significação que permite a consolidação das equivalências (Di Marco, 2010, p.62).
De forma similar, embora por outras razões, outros países latino-americanos têm assistido à
ações de protesto e ação direta. Ao se observar a ação das/os “piqueteiras/os” na Argentina, que
surgiu da incapacidade inicial das instituições políticas de processarem o conflito político por meio
dos canais tradicionais de participação (Ribeiro; Borba, 2011). Suas demandas, no entanto,
passaram a obter respostas do Estado com o passar do tempo. Percebe-se, portanto, importantes
contribuições das ações de protesto, por meio da qual foi possível promover mudanças no âmbito
societário e Estatal.
2.2 Brasil
Uma interessante análise dos ciclos de confronto no Brasil - 1984, 1992 e 2013 – foi
realizada por Luciana Tatagiba (2014). O objetivo principal da autora é demonstrar a forma que a
mobilização assumiu e seu como, tendo como referência três eixos analíticos: i) a construção
9No contexto argentino, a articulação do discurso feminista com mulheres de outros movimentos sociais
possibilitou que a identidade heterogênea de “mulheres” fosse se construindo a partir de um adversário comum – forçastradicionais e patriarcais – gerando uma identidade política comum, que pode ser identificada nessa categoria de“pueblo feminista”, retomando esse conceito a partir dos desenvolvimentos de Laclau (Di Marco, 2011).
simbólica dos protestos; ii) a infraestrutura de mobilização; iii) e as performances confrontacionais
(2014, p.37). Buscou-se identificar quais seriam as inovações e continuidades dos protestos de
2013, em relação às campanhas de 1992 e 1984. Por outro lado, investigou-se também o que essas
diferenças nos revelam sobre os avanços e os desafios da democracia brasileira hoje (Tatagiba,
2014, p.37).
O argumento central da autora é o de que haveria semelhanças entre as Jornadas de Junho e
os ciclos de protestos precedentes. No entanto, existem diferenças expressivas que conformam uma
“nova configuração entre política institucional e contestatória forjada, por sua vez, no rastro de
profundas mudanças nos padrões de interação entre movimentos sociais, Estado e partidos ao longo
desses últimos 30 anos” (Tatagiba, 2014, p.39).
É importante mencionar algumas conclusões apresentadas. A primeira relaciona-se aos
elementos de continuidades das Jornadas de Junho, especialmente, no que “se refere à construção
simbólica dos protestos e às performances confrontacionais” (Tatagiba, 2014, p.56). Por outro lado,
a lógica “Cada pessoa um cartaz”, presente em 2013, pode ser vista como a expressão mais direta
da crise do modelo de representação contemporâneo. A incapacidade das elites de produzir diálogos
e dar respostas às demandas atua como agravante da crise.
Ao mesmo tempo, as mobilizações indicam o desejo expresso pela juventude de intervir
nesse cenário e promover mudanças. As mobilizações interpelaram, de forma enfática, os ganhos
produzidos por diversos militantes dos movimentos populares e sociais, que se propuseram a
apostar nas reformas por dentro do estado por meio das regras do jogo democrático. Os jovens nas
ruas não fizeram parte desse processo de acordo, portanto, não se sentem por eles constrangidos.
Além da questão geracional, é importante considerar também a complexidade do associativismo
brasileiro recente (Tatagiba, 2014).
Alvarez (2014) contribui no esclarecimento daquela complexidade ao entrevistar várias
lideranças feministas atuantes nos protestos de 2013. No quadro interpretativo proposto, os
feminismos são enquadrados como campos discursivos de ação, considerados como “muito mais do
que meros aglomerados de organizações voltadas para uma determinada problemática; eles abarcam
uma vasta gama de atoras/es individuais e coletivos de lugares sociais, culturais e políticos”
(Alvarez, 2014, p.18). Sendo assim, tais campos se articulam de modo formal e informal, por meio
de “redes-político-comunicativas – ou melhor, teias e malhas – reticuladas. Ou seja, as atoras/es que
neles circulam se entrelaçam em malhas costuradas por cruzamentos entre pessoas, práticas, ideias e
discursos” (Doimo apud Alvarez, 2014, p.18).
O modelo analítico apresenta um rico potencial de análise do momento atual do campo
feminista e da política. Isto porque a emergência e ocorrência reiterada de protestos, piquetes e
ações de confronto tem viabilizado uma pluralização das integrantes desse processo de mobilização
e atuação política. As referidas teias conectam não apenas grupos, estruturas e ONGs, mas também
indivíduos e agrupamentos menos formalizados, localizados em diversos espaços da sociedade
civil.
Sugere-se repensar a trajetória e as mudanças dos feminismos brasileiros, marcados por três
momentos. O primeiro deles emerge no contexto de luta contra a ditadura nos anos 1970, quando se
constitui o movimento no singular. O segundo é característico do período de democratização e
emergência do neoliberalismo, no qual se vê uma pluralização dos feminismos e a constituição de
um pensamento mainstream de gênero. O terceiro, já nos anos 2000, é caracterizado pela
heterogeneidade e multiplicação dos feminismos (Alvarez, 2014).
No contexto da “maré rosa” na América Latina, desde a eleição de Hugo Chaves em 1998,
intensificaram-se as ações da “sociedade não cívica” ou o “outro” da sociedade civil neoliberal
(Alvarez, 2014, p.33). As expressões mais concretas desses movimentos se deram nas
manifestações “altermundistas e no Fórum Social Mundial” e demarcam o chamado terceiro
momento do campo feminista latino-americano contemporâneo. Esse retorno às ruas foi liderado
pelos movimentos autonomistas, anarquistas, neo-leninistas e troskystas, com interseções de
diversos setores do campo feminista, em especial com o chamado “feminismo jovem” (Alvarez,
2014, p.33).
Trata-se de movimentos tão heterogêneos e plurais10 responsáveis pela promoção de
mudanças no campo feminista e, ainda, pelas inter-relações estabelecidas com setores cada vez mais
amplos da sociedade, em especial, a “não cívica” (Alvarez, 2014, p.34). A maior parte das
entrevistadas expressou a intenção de que os feminismos estejam novamente nas ruas, constituindo-
se como uma ameaça de novo, de forma real. Uma tendência observada é a multiplicação de
feminismos populares na cidade e no campo, além da popularização do feminismo entre os
estudantes. Nesse sentido, há semelhanças com o processo descrito por Di Marco (2010) em relação
10 As entrevistadas ouvidas por Alvarez podem ser identificadas a partir detrês posições autoidentitárias: 1)
feministas jovens; 2) feministas e ponto; 3) “anarcas” ou anticapitalistas ou negras ou queer (Alvarez, 2014, p.34).
ao caso Argentino e a constituição do pueblo feminista. É provável, ainda, uma aproximação com o
caso chileno que se verá a seguir, na medida em que os estudantes também protagonizaram as ações
de protestos variadas naquele país.
2.3 Chile
O caso chileno apresenta algumas peculiaridades em relação aos dois países anteriormente
analisados. Em primeiro lugar, é importante destacar o crescimento econômico expressivo do país,
que atingiu taxas medias próximas de 5,1 % no período de 20 anos (Mira S, 2011, p.187), bem
superiores aos outros dois países. A despeito disto, há uma expressiva desigualdade no país.
Por ter sido caracterizado por um processo de modernização conservadora, aspectos
políticos relacionados à transição inacabada para democracia se tornaram persistentes no país,
indicando uma incapacidade de realizar reformas (Morlino apud Miranda; RosenKranz, 2011).
Constituiu-se, em decorrência, a acumulação de um mal-estar11 e despolitização no país entre 1990
e 2011(Miranda; Rosenkranz; 2011). Processo similar à “onda de indignação global” destacado por
outros autores, reforçado pela crise de representatividade política em um contexto local
insistentemente pós-ditatorial (Gajardo, 2014).
O ano de 2011 foi marcado por um conjunto de protestos no país, que atingiu mais de 26
cidades e levaram às ruas aproximadamente 80 mil pessoas, números mais expressivos que aqueles
encontrados durante a luta contra a ditatura (Miranda; Rosenkranz, 2011, p.188). A cobertura pela
imprensa chegou a ser acompanhada por 1,2 milhões de expectadores.
A compreensão dos protestos chilenos tem sido interpretada, de uma perspectiva mais
institucionalista, a partir de existência de crise de governabilidade no país (Polanco; Silva, 2013).
Sustenta-se o argumento de que o Chile seria um caso particular na América Latina de “transição
inconclusa”. Isto porque o processo político chileno dos últimos 20 anos estaria orientado por um
processo de modernização voltado, prioritariamente, para prolongar o modelo de desenvolvimento
e, ainda, a lógica de transição para a democracia vigente desde os fins dos anos 1980 (Polanco;
Silva, 2013).
Por um lado, tal característica promoveu uma adaptação às normas previamente vigentes, o
que teria como consequência baixos níveis de ruptura institucional e política. Por outro lado, os
11 Captado por meio da taxa de suicídio e consumidores de antidepressivos no país, com base em fontes oficiais
do ministério da saúde.
atores políticos centrais desse processo apresentaram pequena capacidade de enfrentar o desafio de
realizar reformas necessárias à democratização do sistema (Polanco; Silva, 2013).
Pesquisas realizadas pelo latinobarômetro indicam que a maioria da população chilena
responde ter poucas ou nenhuma expectativa de que os políticos ofereçam soluções aos problemas
públicos. De forma complementar, há uma tendência à perda de expectativas a respeito da
capacidade de os políticos oferecerem soluções frente às demandas sociais (Polanco; Silva, 2013).
A análise dos percentuais de não identificação com a clivagem esquerda e direita, desde
1990, passa de 26% a 47% da população no governo de Eduardo Frei Ruiz Tagle. Durante algum
tempo, analistas interpretaram este dado como sinal de apatia e despolitização da sociedade civil.
Recentemente, no entanto, constatou-se o desenvolvimento, desde 1990, de redes de confiança e
organizações sociais com capacidade relativamente autônoma de ação, que tem resistido às relações
de poder decorrentes do processo de transição (Polanco; Silva, 2013, p.449).
Dois casos de movimentos visualizados desde 1990 – estudantil e mapuche – podem ser
vistos como a expressão, intensidade e orientações políticas daqueles processos organizativos. Os
autores concluem sugerindo uma forma de governabilidade na qual o governo possa incluir a
oposição à priori, considerando-se tantos os atores sociais quanto os grupos de interesse com poder
de veto. Isto se daria tanto no que se refere ao desenho das políticas públicas destinadas à oposição
social com poder de veto, quanto uma forma de construção de acordos formais ou informais, que
sejam legítimos e eficientes no longo prazo (Polanco; Silva, 2013).
Pesquisas realizadas por Miranda e Rosenkranz (2011), em 2009 e 2011, indicam um
elevado crescimento do apoio da população (40% a 59%) às ações de protestos realizadas pelos
estudantes. Além do crescimento do apoio, a cobertura da mídia aumentou expressivamente, tendo
alcançado seu pico máximo na primeira semana de maio e duas semanas do meio de agosto, com o
percentual de cobertura superior a 50% e 60% respectivamente. À elevação na cobertura, associa-se
uma expressiva ampliação no acompanhamento dos expectadores, que passaram de 1,2 milhão de
pessoas em agosto. Tais informações sugerem um nível de politização da sociedade raras vezes
observado no país.
Em relação aos movimentos feministas, as mobilizações podem ser vistas como resultado
de uma alteração nas “estruturas de oportunidades políticas”, compreendidas como alterações nas
condições sociais, econômicas e políticas que promovem incentivos para que os atores sociais
pudessem se mobilizar em torno de causas comuns e promover ações de confronto (Mora; Rios,
2009)12.
As autoras demonstram que o cenário social, econômico e político do Chile, ao fim da
primeira década do século XXI, não foi favorável à constituição de um movimento feminista com
base na política da representação. Isto é, um movimento organizado em torno da identidade, que
fosse capaz de unificar toda a pluralidade dos movimentos de mulheres em uma ação política
comum. No entanto, isto não prejudicou a conformação de alianças em torno de assuntos
específicos de gênero. Se por um lado, não se observa um conjunto de ações diretas de denúncia e
de protesto especificamente ligados aos movimentos feministas, por outro, assiste-se à emergência
de um conjunto plural de estratégias de ação e debate em torno das causas feministas (Mora e Rios,
2009).
O ativismo feminista no Chile, durante a primeira década do século XXI, tem promovidos
debates e gerado grandes mobilizações em torno de temas como o divórcio, a violência
intrafamiliar, os direitos reprodutivos e a participação política. Essas lutas podem ser vistas menos
como uma luta pela conquista de direitos específicos para as mulheres e, muito mais, como um
questionamento das desigualdades de gênero. Por meio de ações diretas ou indiretas, tais
mobilizações têm sido capazes de promover transformações no “poder simbólico das mulheres”,
assim como uma certa “normalização de sua presença na esfera pública (no trabalho remunerado e
na política, por exemplo) ” (Mora; Rios, 2009, p.136).
Demonstra-se que os efeitos das políticas adotadas pelos governos chilenos podem ser
tomados como um caso paradigmático no contexto latino-americano. Isto porque foram empregadas
diferentes estratégias de ajuste social, compreendidos como a implementação de programas sociais
para viabilizar a direção e implementação dos ajustes econômicos. Em conjunto, essas medidas
contribuíram para alterar as bases socioculturais da mobilização política (Alvarez et al apud, Mora;
12 O movimento feminista chileno constituiu-se no início do século XX, entre os anos 1920 e 1930, em
decorrência na transformação nas estruturas de oportunidades da época. Por um lado, observou-se uma elevação naslutas sociais em prol da democratização da sociedade, o que criou condições para as ações de mobilização pública e,principalmente, gerou as condições favoráveis para a constituição de pontes de comunicação entre os movimentos maisgerais e os feministas. Por outro lado, ocorreu um realinhamento entre as alianças político partidárias que tambémpromoveram a possibilidade de elos de conexão entre os segmentos progressistas da sociedade e da política (Mora eRios, 2009). Embora o foco das primeiras mobilizações fossem os direitos de cidadania, em particular o direito aosufrágio, os movimentos feministas se organizavam também em prol da justiça social, das condições de saúde eeducação, dentre outras (Mora e Rios, 2009).
Rios, 2009, p.140). Umas das consequências desse processo foi a conformação de barreiras para a
política da representação desses movimentos na cena pública.
Os movimentos feministas chilenos tornaram-se, então, fragmentados em decorrência de
dois acontecimentos históricos. O primeiro, é o retorno da democracia e a consolidação da disputa
política partidária, que provou uma desmobilização dos atores sociais antes unidos e ativos na luta
contra a ditadura. O segundo refere-se ao predomínio de políticas de cunho neoliberal no chile
durante os anos 90, que foi incisivo no processo de “individualização” dos direitos, na afirmação da
lógica de mercado, inclusive, na conformação dos direitos de cidadania. O resultado da combinação
desses dois fatos foi a fragmentação dos movimentos de mulheres e feministas. Tal fragmentação
pode ser vista, então, como o reflexo da nova divisão em torno da ordem econômica e social.
(Mora; Rios, 2009).
A despeito da fragmentação supramencionada, o novo cenário não resultou no
desaparecimento de um campo de ação feminista. Os canais de divulgação da agenda feminista têm
sido realizados por meio da produção cultural e científica, pela emergência de meios de
comunicação de novo tipo e, ainda, pela conformação de uma grande variedade de pequenos
coletivos dispersos pelo país. Somados, esses acontecimentos demonstram a vitalidade dos
movimentos feministas atuantes no país. O grande desafio, portanto, não seria tanto a busca pela
conformação de um movimento feminista no singular, capaz de atuar pela via da representação
política13 para alcançar suas lutas, mas sim a consolidação de formas efetivas de coalizão política
como estratégia paralela de ação social. Tal estratégia de ação teria sido possível e viável no
governo Bachelet 2006-2010 (Mora; Rios, 2009).
Mas quais seriam as características fundamentais dessa política de coalizão? A referência
das autoras para fundamentar essa ideia é a obra de Judith Butler. Com base na experiência chilena
elas afirmam ser possível indicar que a fragilidade dos movimento de mulheres durante as décadas
dos anos 1990 e 2000 expressa a “fragilidade da identidade política” que os sustentaram em outros
momentos da história do país (Mora e Rios, 2009, p.141). Ancoradas no pensamento de Butler, elas
afirmam que a política da representação exprime algumas diferenças de poder, a depender do
predomínio da noção de “unidade” ou de “diálogo” no movimento. É plausível, e até mesmo mais
13 A representação política é concebida aqui tanto como um processo por meio do qual os movimentos de
mulheres conformam suas estratégias de ação social em torno de uma identidade comum, quanto uma forma de ação política e institucional.
provável, que aquilo que seja concebido como diálogo por um grupo seja entendido como exclusão
por outro grupo ou por muitos outros (Mira; Rios, 2009, p.141).
Frente às dificuldades de constituição de estratégias de ação pela via da identidade dos
movimentos de mulheres, sugere-se a necessidade de se repensar a representação política e
substituí-la pela política da coalizão. Esta não se organizaria em torno da categoria “mulheres”, mas
pressuporia “uma série de encontros dialógicos nos quais mulheres de posições diversas articulam
distintas identidades dentro do marco de uma coalizão emergente”(Butler apud Mora; Rios, 2009,
p.141).
Dado o contexto de fragmentação do movimento de mulheres chileno, a promoção e
realização de encontros dialógicos entre “mulheres diferentemente posicionadas em torno de
assuntos específicos de gênero” podem ser uma boa forma de articulação das lutas e causas dos
movimentos feministas e de mulheres (Mora; Rios, 2009, p.141). Com a eleição de Michelle
Bachelet em 2006, o tema da igualdade de gênero foi adotado como um dos eixos centrais do seu
governo.
É sabido que a multiplicidade de vozes e discursos dos movimentos de mulheres e
feministas na América Latina constituiu um obstáculo para a “integração” das estratégias de ação
dos movimentos (Alvarez, 2000; Pinto, 2003; Mora; Rios, 2009). Gajardo (2014) realiza uma
interessante análise dos discursos proferidos por lideranças dos “feminismos de cor”, a partir da
perspectiva da teoria feminista pos/de/anticolonial. Seu objetivo é questionar as possibilidades e
obstáculos para emergência de um “feminismo mapuche” no Chile (Gajardo, 2014, p.304). A autora
analisa um conjunto de interpelações realizadas pelas feministas “mupache” ao feminismo “branco”
no Chile.
Trata-se de uma questão polêmica, uma vez que alguns autores sustentam a inexistência da
questão do gênero para os povos Mapuche. Mais do que isto, chegam a afirmar que as organizações
de mulheres, ao falar de gênero, provocariam apenas a divisão do povo Mapuche (Richards e
Painemal apud Garjardo, 2014, p.312). De forma similar, outra pesquisadora das mulheres mapuche
feministas afirma que “las mujeres dirigentas no tenían espacio para el feminismo, porque debían
representar a un pueblo” (Millapan apud Gajardo, 2014, p.312).
Frente a pluralidade de vozes e discursos das mulheres mapuche reunidos por Gajardo
(2014), explicitam-se silêncios e contradições como parte de uma “tradición (chicana, negra,
muçulmana, latino-americana), cuyo linaje es feminista” (Gajardo, 2014, p.317). Tais contradições
nos mostram que afirmação da política de coalizão poderia ser, realmente, uma estratégia de ação
em torno de temas que afetam as mulheres de uma perspectiva mais ampliada. Sobretudo,
considerando-se as possibilidades de interação entre o Estado e a sociedade no Chile, tal como
descritas na seção dois acima.
4.Ações colaborativas e ações de confronto: um balanço das experiências
A análise dos protestos nos três países nos mostraram especificidades e semelhanças entre os
casos estudados. Em todos os três países foi possível constatar a existência de ações expressivas de
ação direta e protestos realizados por grupos plurais e heterogêneos. Em comum entre eles, destaca-
se a participação expressiva dos jovens e estudantes, o que sinaliza para uma importante
transformação, pois tais ações indicam o desejo desse segmento da população em promover
mudanças no mundo em que vivem. De acordo com as rotinas de interação entre sociedade e
Estado, identificadas por Abers, Serafim e Tatagiba (2014), é possível verificá-las em relação à área
temática de políticas públicas destinadas a assegurar condições de cidadania para as mulheres.
Na Argentina, a interação entre sociedade e Estado no âmbito das demandas feministas não
parecem ser centralizadas no Consejo Nacional de las Mujeres, prejudicada por sua estrutura
deficitária, pela falta da participação institucionalizada (já que faltam canais formais de participação
da sociedade), bem como falta da política de proximidade (como afirma Di Marco (2011), o
Consejo foi liderado por mulheres próximas do feminismo até 1995, quando passou a ter um perfil
mais tradicional).
Os protestos dos movimentos de mulheres na Argentina indicam a existência de uma
combinação de estratégias de ação e rotinas de interação sugeridas por Abers, Serafim e Tatagiba
(2014) para o caso brasileiro. Destaca-se, neste caso, a passagem de militantes dos movimentos das
trabalhadoras/es desocupadas/os que passaram a ocupar postos no governo, portanto, identifica-se a
rotina ocupação de cargos na burocracia. Isto indica a possibilidade de promoção de ações
colaborativas com os movimentos, o que ficou expresso no processo de obtenção de recursos
governamentais capazes de potencializar os protestos e ação direta, embora a consequência
posterior tenha sido um arrefecimento de tais práticas. Possivelmente, tal proximidade com os
governos e, principalmente, o modelo populista predominante no governo sugere ainda a presença
política de proximidade.
A presença significativa de mulheres deputadas, beneficiadas pela lei de cotas, faz com que
as rotinas de interação passem mais pelo legislativo, do que pelo executivo. Além disso, os
“Encuentros Nacionales de Mujeres”, que acontecem anualmente desde 1986, formam um espaço
privilegiado de conformação de agendas comuns e de demonstração do ativismo das mulheres no
país (Di Marco, 2011) e foram radicalizando suas demandas, ao articular uma gama ampla de
setores de mulheres – desde as organizadas nos movimentos populares, até militantes tradicionais
dos movimentos feministas, constituindo sem dúvida, um campo mais autonomista, sem que isso
signifique total aversão ao Estado14.
As análises dos protestos, no caso brasileiro, sugerem um mosaico complexo e
diversificado. Por um lado, há semelhanças com os dois outros casos, se observamos a baixa
credibilidade dos políticos e das instituições políticas dentre os manifestantes, o que sinaliza a
confirmação da crise da representação na contemporaneidade (IBOPE, 2013). Soma-se a isto, a
rejeição à presença dos partidos, sindicados e movimentos mais organizados dentre os
manifestantes. O predomínio de jovens é outro dado consensual indicado pela literatura (Bringel,
2013, Tatagiba, 2014).
As quatro rotinas identificadas por Abers, Serafim e Tatagiba (2014) são verificadas no
Brasil. As edições das Conferências de Política para as Mulheres e a reformulação do CNDM
conformam um espaço de interação amplo e importante para construção de agendas comuns entre
sociedade e Estado, além de contribuir para que a SPM ganhe legitimidade no interior das relações
de poder internas do Estado heterogêneo. A política de proximidade é facilitada a partir da
incorporação de número expressivo de feministas nas secretarias (além da própria ministra). Outra
forma de interação não prevista pelas autoras é o financiamento de projetos advindos da sociedade
civil (que no caso da SPM, correspondeu em 2005 a quase 10.000 milhões de reais, porém diminui
para menos do que 5.000 milhões em 2008, mas que ainda assim é significativo (Bohn, 2010).
Nesse contexto, Cecilia Sardenberg e Ana Alice Alcântara Costa (2010), identificaram a
emergência de um feminismo estatal participativo no Brasil, facilitado pelo crescimento do ativismo
e da articulação de movimentos feministas e de mulheres, da ascensão do Partido dos Trabalhadores
(PT) e seu comprometimento com formas participativas de governo, e como resposta à persistência
do sistema político patriarcal, que faz com que a representação das mulheres nos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário seja baixa. Nesse sentido, na falta de apoio de mulheres nestes
espaços, uma via importante de consolidação de avanços seria no âmbito da SPM, a partir da
14Como afirma Di Marco (2011), a influência institucionalizada nos poderes do Estado é parte das estratégias da
nova identidade popular forjada nesses Encuentros, a qual a autora denomina como “pueblo feminista”.
construção de políticas públicas.
Em relação à ação das feministas jovens dentro do movimento, dada a ampliação da inter-
relação do grupo com outros segmentos da sociedade, é possível pensar na presença de alguns
integrantes em processos conferencistas, tanto na área da juventude quanto das mulheres. Na
primeira, há um desenho de realização de conferências livres, realizadas em escolas, universidades
e outros espaços não institucionalizados que podem favorecer a presença de grupos com tendências
mais autonomistas como é caso das diversas “colorações” do movimento.
No caso do Chile, a eleição da Bachelet impactou a interação entre sociedade e Estado no
âmbito das políticas para as mulheres. A existência de participação institucionalizada é favorecida
pelo conselho e pelo Sernam, um dos mecanismos institucionais de mulheres mais estruturados do
ponto de vista técnico e orçamentário, o que sugere a presença da rotina de ocupação de cargos na
burocracia. Se nos anos 90, as contradições entre as feministas que atuavam nas instituições
políticas e aquelas pertencentes a grupos autônomos foram latentes, no século XXI a polarização
deu lugar à diversidade e fragmentação, ainda com necessidade de diálogo e inclusão política
(Tobar, 2009). Essa fragmentação, segundo Tobar (2009), prejudicou o suporte político e maiores
avanços do governo Bachelet, em prol da igualdade de gênero. Parte significativa do movimento se
mantém avessa às formas de colaboração com o Estado.
Os protestos no caso chileno têm sido vistos como um processo de politização do mal-estar
ou uma reação à incapacidade do sistema político de processar as demandas a ele dirigidas pela
sociedade. Indica, ainda, uma pluralização do associativismo, com predomínio da ação dos jovens,
mobilizados por novas ações em rede, mas com um aumento expressivo do apoio de amplos setores
da população às ações de protestos dos estudantes. Além disto, outras/os atrizes/ores tomaram o
espaço público do país, indicando o mesmo processo de transbordamento societário sugerido por
Bringel (2013) em relação ao caso brasileiro.
O movimento feminista chileno, na atualidade, é marcado pelo processo de pluralização
similar aos casos argentino e brasileiro. Destaca-se a discussão das feministas mupaches e a
afirmação dos campos discursivos pós/de/anticoloniais expressos nas vozes das feministas
indígenas, afroamericanas, muçulmanas dentre outras. Embora a análise de Gajardo (2014) indique
um arrefecimento das ações diretas e de protesto dos movimentos feministas, Tobar (2009) aponta
que os segmentos das “feministas jovens”, identificadas também caso brasileiro, emergiram no
último periodo, com grande participação no encontro nacional de feministas em 2005. Ademais, as
autoras sugerem uma pluralização dos discursos feministas, similar ao caso brasileiro e,
principalmente, sua difusão nos campos científicos e universitários.
5. Considerações finais
Realizou-se no artigo uma abordagem exploratória da literatura sobre os protestos na
Argentina, no Brasil e no Chile. Esses países foram selecionados com base na combinação de três
variáveis: 1) eleição de mulheres presidentas; 2) existência de Mecanismos Institucionais de
Mulheres; 3) presença de formas participativas ligadas aos mecanismos institucionais de mulheres.
Buscou-se investigar o seguinte problema de pesquisa: as/os participantes dos canais institucionais
de participação de mulheres atuam exclusivamente por esta via, ou combinam diferentes
estratégicas de ação política incluindo os protestos? Orientado por este questionamento, realizou-se
uma descrição dos processos presentes em cada uma das três variáveis nos países selecionados.
Constatou-se a existência dos mecanismos e das formas de participação nos três países, sendo o
Chile aquele que possui as melhores condições infraestruturais para o funcionamento do MIMs.
Na seção três foram identificados e descritas as ações de protestos na América Latina, com
foco nos três países. A presença de indicadores socioeconômico semelhantes e tradições culturais
partilhadas em função do passado colonial permitem as condições de comparabilidade entre
Argentina, Brasil e Chile. De outro lado, é possível destacar diferenças nos seguintes aspectos: 1)
questões contextuais e especificidades do processo de transição para a democracia; 2) infraestrutura
institucional política e econômica; 3) tradição associativa local; 4) temas e tipos específicos de
conflitualidade. Interpelou-se a literatura sobre a participação política na região para se descrever
como, quando e por que surgiram os protestos.
As análises sugerem uma tendência semelhante de combinação das quatros rotinas de
interação entre a sociedade e o Estado: 1) protestos e ação direta; 2) participação institucionalizada;
3) política de proximidade; 4) ocupação de cargos na burocracia. Ressalta-se a necessidade de
realizar novas pesquisas para uma apreensão mais específica das quatros rotinas em cada país, uma
vez que a análise por meio de dados secundários aqui realizada apresenta limitações para captar
especificidades de cada país.
A despeito disso, foi possível concluir que na Argentina prevaleceram as rotinas 1, 3 e 4,
pois os protestos foram fundamentais para conformação do pueblo feminista, dado que as feministas
conseguiram integrar agendas em torno de temas centrais. O governo convidou lideranças dos
movimentos de desocupadas/os a ocupar cargos na burocracia, o que reforçou a ação dos
movimentos (1), mas é possível que as fragilidades do Consejo Nacional de las Mujeres
comprometam a rotina (2).
O Brasil foi caraterizado pela presença das quatro rotinas nas políticas para mulheres.
Destaca-se a importâncias das “feministas jovens”, integrantes dos protestos de 2013, na renovação
da agenda feminista e seu possível envolvimento nas conferências de juventude e de mulheres.
O Chile apresenta as melhores condições para a formulação de políticas para as mulheres,
pois possuiu o maior corpo técnico e de funcionários, o maior valor percentual de recursos e,
durante a gestão de Bachelet (2006-2010), o gabinete foi composto com o princípio da equidade de
gênero. Tal condição sugere boas condições para a presença das rotinas 2, 3 e 4. Os protestos
massivos realizados no país desde 2006, com o protagonismo dos estudantes, pode indicar a
presença de tendência semelhante à brasileira, com destaque para as feministas jovens. No entanto,
a literatura analisada indica uma menor visibilidade das ações de protestos feministas no país, com
uma consequente pluralização dos campos de atuação dos feminismos, por meio de encontros
científicos e universitários, presença na mídia, proposta de transformação cultural das “mulheres de
cor”.
As pesquisas futuras poderiam ser incrementadas por duas perspectivas analíticas
recentemente utilizadas e que apresentam um rico potencial para captar as múltiplas formas de
atuação das feministas na região. A primeira delas é perspectiva dos sistemas deliberativos proposta
por Mansbrigde e Parkinson (2012), pois sugere-se a estratégia analítica de pensar de forma
integrada as relações entre as diferentes arenas deliberativas presentes no sistema político. Tal
enfoque, permite observar a agenda feminista no âmbito do Executivo, do Legislativo, das
instituições participativas e, ainda, da mobilização societária (formal e/ou informal). Com base
neste enfoque, Silva e Ribeiro (2014) aplicaram recentemente as técnicas provenientes do campo da
Análise de Redes Sociais (ARS) para analisar o subsistema dos conselhos de políticas de Belo
Horizonte. Os resultados alcançados sugerem um rico potencial para captar o transito dos atores
entre as diferentes estratégias de atuação política das mulheres nos três países selecionados.
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