Transcript
Page 1: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

1

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO

DAS CRIANÇAS ACERCA DE CIENTISTAS

Renata Rosenthal1

Daisy de Brito Rezende1,2

Resumo: Os brinquedos estão permeados de estereótipos: as bonecas, dadas às meninas, estimulam o cuidado; os jogos

de montar voltados aos meninos favorecem o desenvolvimento do raciocínio. Aqueles referentes à lógica, mecânica,

eletrônica ou química são socialmente apontados como “de meninos”. Na escola, a professora é a alfabetizadora, mas se

aprende Física com o professor; há 46% de professoras no ensino técnico, e, no infantil, 98%3. Nesse contexto, o

objetivo deste estudo é o de desvelar as visões das crianças sobre cientistas, no que se refere a estereótipos de gênero.

Foi feita uma breve exposição para 63 alunos do 6º ano de uma escola municipal de São Paulo sobre a trajetória de

Rosalind Franklin e suas contribuições à Ciência, omitindo seu nome e gênero. Falou-se da vida de uma “pessoa

cientista” e, em seguida, pediu-se aos alunos que a desenhassem. A maioria das crianças participantes (72%) desenhou

cientistas homens, vários deles com estereótipos característicos, e, ainda, 9% destas representaram mulheres como

assistentes do cientista. Estes dados mostram que são necessárias intervenções precoces em nosso sistema educacional

que contribuam para a quebra de estereótipos e incentivem meninas a ingressarem em carreiras científicas,

possivelmente levando à modificação da situação verificada em 2015, no Brasil, onde apenas 33,1%4 dos graduados em

áreas científicas eram mulheres.

Palavras-chave: gênero, ciência, mulheres, cientistas, estereótipos.

Introdução

A história do acesso das mulheres ao estudo é marcada por uma grande dificuldade em relação ao

ingresso nas escolas e universidades. Elas foram proibidas de estudar desde a criação das universidades

europeias, no século XI, até o fim do século XIX. Nessa época, suas atividades concentravam-se em casa.

Cozinha, costura, trabalhos domésticos, manuais, cuidados com crianças eram algumas das atividades

permitidas e, portanto, “aceitas” pela sociedade.

Com a industrialização, a Educação ganha importância, uma vez que era necessário qualificar e

especializar os assalariados que fariam parte desse sistema. Assim, cursos de formação de professores,

surgidos na Europa no século XVIII, fortaleceram-se no Brasil nas chamadas Escolas Normais, que eram

cursos de segundo grau. Na década de 1970, as Escolas Normais foram substituídas pelos cursos técnicos de

Magistério e, nos anos 1990, a legislação indica que os cursos de formação de professores para o 1o Ciclo do

Ensino Fundamental passem a ser de Ensino Superior em Faculdades de Educação ou Escolas Normais

Superiores.

1Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. 2Instituto de Química, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. 3Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/plano-nacional-de-formacao-de-professores/censo-do-professor>. Acesso em:

07 jun. 2017. 4UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION (UNESCO). Unesco

Science Report: Towards 2030. UNESCO Publishing, 2015. Disponível em:

<http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002354/235406e.pdf>. Acesso em: 20 maio 2017.

Page 2: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

2

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

À medida que passou a haver a demanda por professores generalistas, estabeleceu-se que a profissão

de professor poderia ser de interesse das mulheres, já que elas estavam associadas a todas as funções

relacionadas ao ensino de crianças. Assim, as mulheres passaram a ser admitidas nas Escolas Normais.

Também havia um interesse do governo em reduzir custos nessa ampliação das ofertas em ensino e, se a

mulher era vista como “naturalmente” cuidadora ou professora, como uma vocação nata, era de se esperar,

então, que ela nem cobrasse por isso. Ou cobrasse muito menos do que um homem (Rabelo; Martins, 2010).

A partir do momento em que a profissão de professor é feminizada, passa a ter baixo prestígio social.

Quando se inaugurou em São Paulo a seção feminina da Escola Normal, segundo alguns

historiadores, esta foi primeiramente destinada às jovens de poucos recursos e às órfãs sem

dote, às quais era interdito os sonhos de um bom casamento, dado que este se apoiava

necessariamente em bases econômicas. Sendo difícil casar-se, precisavam essas moças,

para não ser um peso para a sociedade, conseguir um meio de subsistência proporcionado

por uma profissão digna, de acordo com o ideal feminino e que não atentasse contra os

costumes herdados dos portugueses de aprisionar a mulher no lar e só valorizá-la como

esposa e mãe. Portanto, ser professora representava um prolongamento das funções

domésticas e instruir e educar crianças, sob o mascaramento da missão e da vocação

inerentes às mulheres, significava uma maneira aceitável de sobrevivência, na qual a

conotação negativa do trabalho remunerado feminino esvaía-se perante a nobreza do

magistério (ALMEIDA, 1996, p. 74 citada por RABELO; MARTINS, 2010, p. 6172).

Com o passar dos anos, os homens que ingressavam nas áreas da Educação tinham mais autoridade,

chegando a cargos maiores como coordenações, direções e lideranças, ou mesmo se tornavam professores do

Ensino Médio, Técnico e Profissional, enquanto as mulheres eram mantidas no Ensino Infantil e

Fundamental.

Há uma construção estabelecida do que seria uma “profissão de mulher” aceita pela sociedade. Uma

vez que as mulheres eram condicionadas a cuidar da casa, das pessoas, de seus familiares ou mesmo de seus

alunos e do ensino de maneira geral, mesmo havendo possibilidade de sua admissão em qualquer curso

superior, a grande maioria continuava a optar por campos associados à condição feminina, como

Enfermagem, Psicologia e Serviço Social.

O “cuidado com o outro” tem sido traduzido como uma característica mais emocional do que

racional. Isso possivelmente leva a outras classificações do que é abrigado socialmente como “de mulher” ou

“de homem” e, por isso, conduz as mulheres a determinadas áreas e não a outras. Essa ideia define o que

chamamos de estereótipo de gênero.

Os estereótipos estão relacionados a classificações segundo estruturas, culturas e contextos sociais.

Bardin (1977, p. 51) define o conceito como “a ideia que temos de” ou “a imagem que surge

espontaneamente, logo que se trate de”.

É a representação de um objeto (coisas, pessoas, ideias) [...], partilhada pelos

membros de um grupo social [...]. Estrutura cognitiva e não inata (submetida à

influência do meio cultural, da experiência pessoal, de instâncias e de influências

privilegiadas como as comunicações de massa), o estereótipo, no entanto, mergulha

Page 3: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

3

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

suas raízes no afetivo e no emocional, porque está ligado ao preconceito por ele

racionalizado, justificado ou engendrado (BARDIN, 1977, p. 51).

Ao longo de todo o processo que acaba atraindo as mulheres para essas áreas que envolvem o

construído no plano social como “emocional” e “humano”, há o inverso também: os campos que a sociedade

enxerga como “feitos para homens” ou “racionais”, como as Ciências Exatas (Matemática, Física, Química)

e Engenharia que são, até hoje, predominantemente ocupados por homens.

Os dados do censo 2007 do INEP – MEC5 (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais

Anísio Teixeira do Ministério da Educação) mostram que, no Brasil, as mulheres são maioria no Ensino

Infantil e, à medida que se avança para o Ensino Médio e a Educação Profissional, elas ficam cada vez

menos presentes (Figura 1). Outro estudo6 mostra a relação entre os números de mulheres e homens

ingressantes em determinados campos em 2012, no Brasil (Tabela 1). É importante notar que hoje, anos

depois da entrada delas nas universidades, a situação ainda é praticamente a mesma: maioria de mulheres nos

cursos de Pedagogia, Enfermagem e Serviço Social e maioria de homens nos cursos de Engenharias e outras

Ciências Exatas.

A UNESCO (2015) divulgou uma tabela com a porcentagem de mulheres graduadas em todas as

áreas de conhecimento, por país, em 2013 ou anos próximos. No Brasil (vide Tabela 2), só 33,1% dos

cientistas formados em áreas como Ciências da Natureza (Física, Química e Biologia), Matemática,

Computação e Estatística são mulheres. Já as áreas da Saúde e bem-estar têm 77,1% de mulheres.

Figura 1: Professoras(es) da Educação Básica – Brasil – 2007. Extraído de:

<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=14153-coletiva-

censo-superior-2012&Itemid=30192>. Acesso em: 01 jun. 2017.

Cursos com mais

matrículas do

Número

de

Cursos com mais

matrículas do gênero

Número

de

5Disponível em: <http://download.inep.gov.br/download/censo/2009/Estudo_Professor_1.pdf>. Acesso em: 26 maio

2017. 6Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=14153-coletiva-

censo-superior-2012&Itemid=30192>. Acesso em: 26 maio 2017.

Page 4: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

4

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

gênero feminino matrículas masculino matrículas

Pedagogia 556.283 Engenharia Civil 143.868

Enfermagem 198.872 Ciência da computação 108.874

Serviço social 157.242 Engenharia de produção 90.266

Gestão de

pessoas/ Recursos

humanos

135.067 Engenharia mecânica 75.938

Psicologia 131.786 Formação de professor de

educação física 71.293

Fisioterapia 81.982 Engenharia elétrica 67.303

Farmácia 72.342 Gestão logística 61.054

Tabela 1: Cursos com maiores números de matrículas de graduação por gênero – Brasil – 2012.

Ano Ciências Engenharia Agricultura Saúde e

bem-estar

Brasil 2012 33,1 29,5 42,3 77,1

Tabela 2: Mulheres graduadas em quatro campos de conhecimento (%) em 2012, UNESCO (2015).

Imaginemos a situação de uma criança que faz parte de uma família tradicional heterossexual, em

que sua mãe é responsável por todas as tarefas do lar7, além do trabalho que faz fora de casa. Durante seu

crescimento a concepção da criança é a de que todas as atividades familiares e domésticas são

responsabilidades de uma mulher que, no caso, é sua mãe. Ao chegar na escola, depara-se apenas com

professoras mulheres no Ensino Infantil e Fundamental. Inclusive, nessa faixa etária, há muitas crianças que

costumam chamar a professora de “tia”, o que sugere proximidade com aquela que é responsável por cuidar

de seus alunos, quase como parte da família, uma tia, alguém que faria isso por amor e não por ofício e, por

consequência, evidencia a desvalorização da profissão de professora de Ensino Infantil e Fundamental.

Ensinar é profissão que envolve certa tarefa, certa militância, certa especificidade

no seu cumprimento enquanto ser tia é viver uma relação de parentesco. Ser

professora implica assumir uma profissão enquanto não se é tia por profissão.

Pode-se ser tio ou tia geograficamente ou afetivamente distante dos sobrinhos, mas

não se pode ser autenticamente professora, mesmo num trabalho a longa distância,

“longe” dos alunos (FREIRE, 1994, p. 11).

A criança possivelmente está inserida, ainda, em uma cultura que privilegia bonecas como presentes

para meninas e jogos mecânicos ou eletrônicos para os meninos. Assim, meninas são estimuladas, desde

cedo, ao cuidado com o outro e à maternidade, brincando com bonecas; enquanto os meninos são incitados

aos jogos eletrônicos ou de montagens, desenvolvendo raciocínio e lógica, habilidades diretamente

relacionadas às áreas científicas.

7Segundo dados do trabalho de Londa Schienbinger (2001), a partir de um estudo de 1993 feito pelo Families and Work

Institute of New York, as mulheres fazem 81% do trabalho na cozinha, 78% da limpeza, 87% das compras da família e

63% dos pagamentos de contas, em famílias cujo casal heterossexual trabalha fora do lar.

Page 5: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

5

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

À medida que aquela criança, agora adolescente, avança para o Ensino Médio, a quantidade de

professoras mulheres vai diminuindo, sobretudo nas áreas das Ciências, como se infere dos dados (Figura 1 e

Tabela 2). Os meios de comunicação em geral – mídia, filmes, livros, séries, aulas e outros materiais – quase

não citam mulheres cientistas. Muitas vezes quando as citam, são mulheres estereotipadas: pouco sociáveis e

esquisitas. Isso sem falar nas várias que são omitidas da História da Ciência, por terem suas contribuições

excluídas. Ou seja, além da baixa representatividade de mulheres nessas áreas, as poucas que existem são,

frequentemente, menosprezadas. Como essa criança poderá entender a Ciência como um lugar de todos?

Uma pesquisa (Cvencek; Meltzoff; Greenwald, 2011) sobre estereótipos de gênero e Matemática em

que se investigaram 247 crianças norte-americanas entre 6 e 10 anos de idade (126 meninas e 121 meninos)

mostrou que há uma associação implícita das crianças com sua identidade de gênero, feminina ou masculina,

e entre sua identidade de gênero e a Matemática. Ou seja, muito antes de as crianças evidenciarem

desempenhos diferentes na Matemática, ou pensarem em seus interesses pela área, já entendem o saber

matemático como “só para meninos”. Os resultados desse estudo confirmaram que, a partir do segundo ano

do Ensino Fundamental, as crianças acreditam que Matemática é para meninos e, ainda, meninos do Ensino

Fundamental identificam-se mais fortemente com Matemática do que as meninas.

O que está por trás desses estereótipos também se relaciona à imagem que se tem sobre as Ciências

Exatas e os cientistas. O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos e o Ministério da Ciência, Tecnologia e

Inovação fizeram um estudo8 a respeito da percepção pública da Ciência e Tecnologia (C&T) no Brasil em

que se obtiveram dados acerca do interesse, acesso à informação, conhecimento, comportamentos, hábitos e

atitudes das pessoas em relação à C&T, distribuídos entre homens e mulheres.

Uma das questões abordadas nessa pesquisa relacionava-se à imagem que se tem de cientistas: a

maioria acha que são “pessoas inteligentes que fazem coisas úteis à humanidade” (52,3%), “pessoas comuns

com treinamento especial” (12,7%) ou “pessoas que se interessam por temas distantes da realidade das

pessoas” (10,3%). Há ainda uma parcela menor (3,3%) que acha que são “pessoas excêntricas de fala

complicada”, entre outras percepções identificadas.

Outro questionamento feito foi se há alguma instituição que se dedique a fazer pesquisas científicas

no Brasil: 87,6% das pessoas não lembram. No caso da pergunta: “Você se lembra do nome de algum

cientista brasileiro importante?”, 93,3% responderam “não”. Esses dados apontam para um distanciamento

entre a(o) cientista e a população geral.

Também há um conjunto de características construído em nossa cultura, história e sociedade – ser

inteligente, gostar de estudar, ser “excêntrico”, ser racional - que é atribuído às pessoas das áreas científicas.

No caso das mulheres, ainda há a série de estereótipos estabelecidos apresentados, entre os quais de que elas

não são racionais ou capazes o suficiente para estarem na área científica.

8Disponível em: <http://percepcaocti.cgee.org.br/faca-sua-analise>. Acesso em: 10 maio 2017.

Page 6: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

6

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

A partir deste cenário, o presente trabalho objetivou identificar e analisar os estereótipos que as

crianças têm sobre as(os) cientistas.

Metodologia

O trabalho foi realizado em três salas de sexto ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal

de São Paulo. O total de alunos participantes, somando as três turmas, foi de 63 crianças. A pesquisa foi

realizada durante um evento que estava sendo promovido na escola com diversas atividades sobre questões

de gênero, visibilidade e protagonismo das mulheres.

Primeiramente, apresentou-se a vida e a trajetória científica de Rosalind Franklin, primeira cientista a

visualizar uma proposta para a estrutura do DNA, uma das muitas mulheres praticamente excluídas e

omitidas da história. Falou-se às crianças de seu gosto pela Ciência, sobre como foi sua vida como cientista,

contando tudo aos alunos sem mencionar seu gênero. Em seguida, pediu-se a eles que desenhassem essa

pessoa como a imaginavam e que representassem suas características de acordo com a imagem que eles têm

sobre a profissão de cientista. Não foi dada qualquer pista sobre seu gênero; em tudo o que foi contado sobre

Rosalind buscou-se utilizar uma linguagem neutra, evitando artigos e identificando-a como “pessoa

cientista”. Após os desenhos terem sido elaborados e entregues, foi feita uma última breve apresentação

contando que se tratava de Rosalind Franklin, seguida de uma exposição sobre outras mulheres cientistas

importantes.

A análise desta pesquisa foi feita na perspectiva histórico-cultural da psicologia no estudo de

desenhos elaborados por crianças. Entende-se o processo do desenho infantil como fortemente relacionado

aos contextos sociais em que elas vivem. Natividade, Coutinho e Zanella (2008, p. 11) dizem que “pode-se

compreender que o desenho, por se tratar de uma forma de linguagem, tem papel importante [...] na

criatividade e expressão das emoções”. As autoras ainda acrescentam que

Falar sobre desenho infantil requer também que se reflita sobre linguagem,

imaginação, percepção, memória, emoção, significação, ou seja, compreender os

processos psicológicos envolvidos/constituídos no processo de desenhar e que não

podem ser analisados de forma isolada, visto serem interdependentes. Ademais, o

modo como estes processos se desenvolvem e se objetivam varia em razão das

condições sociais e culturais historicamente produzidas e particularmente

apropriadas em razão dos lugares sociais que cada pessoa ocupa na trama das

relações cotidianas das quais ativamente participa (Natividade; Coutinho; Zanella,

2008, p. 11).

Vigotski (1998) explica como se dá o desenvolvimento dos simbolismos presentes nos desenhos

feitos por crianças de diferentes faixas etárias e apresenta a inter-relação entre o desenho da criança e aquilo

que ela conhece em seu contexto social.

Inicialmente a criança desenha de memória. Se pedirmos para ela desenhar sua

mãe, que está sentada diante dela, ou algum outro objeto que esteja perto dela, a

Page 7: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

7

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

criança desenhará sem sequer olhar para o original; ou seja, as crianças não

desenham o que vêem, mas sim o que conhecem (VIGOTSKI, 1998, p. 148).

Resultados e discussão

A grande maioria (72%) dos alunos desenhou cientistas homens caracterizados por alguns

estereótipos como jaleco, óculos, ambiente de laboratório ou fisionomia de “louco”; algumas crianças

desenharam cientistas mulheres (19%) e, outras, um cientista sem gênero definido (9%). Há de se ressaltar

que algumas das crianças que representaram cientistas homens, desenharam mulheres como assistentes deles

(9%).

Muitas crianças incluíram balões de fala que tentavam representar a visão que elas têm do contexto

de muito estudo e trabalho, nos quais essas(es) cientistas estão incluídos, como “sou inteligente”, “quero

café”, ou mesmo sinais de que se tratava de ambientes que eles entendem como científicos, com vidrarias de

laboratório, cálculos anotados e experimentos. Houve casos de estudantes que desenharam cientistas

pesquisando DNA de familiares, fazendo referência a um programa de televisão que busca a paternidade de

crianças utilizando exames de DNA. Alguns dos desenhos feitos pelos alunos são apresentados em quatro

grupos diferentes (Figuras 2, 3, 4 e 5).

Page 8: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

8

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Figura 2: Exemplos de desenhos elaborados pelos alunos, nos quais o cientista é um homem com fisionomia

“brava”, “séria”, “agressiva” ou “louca”, de jaleco, em ambiente de laboratório, com objetos nas

mãos que indicam experimentos.

Figura 3: Exemplos de desenhos elaborados pelos alunos, nos quais a cientista é mulher, em que se mantêm

alguns dos estereótipos que eles têm sobre cientistas.

Page 9: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

9

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Figura 4: Exemplos de desenhos elaborados pelos alunos nos quais as mulheres são assistentes do cientista.

No caso da primeira ilustração (da esquerda para a direita), está escrito nos bolsos dos jalecos

“assistente” e “chefe”. Na segunda figura, a criança relatou que se tratava do mesmo caso. Na

terceira, a criança havia feito como no primeiro, mas depois que foi apresentada “a resposta”, ela

pediu o desenho, destacou o homem, riscou o “assistente” do bolso da moça e o entregou

novamente. Vale salientar a sexualização do corpo das assistentes: todas com saias curtas e com

certa sensualidade.

Figura 5: Exemplos de desenhos elaborados pelos alunos nos quais o cientista não tem gênero definido.

Nesses casos foi perguntado: “você pensou se o cientista era um homem ou uma mulher?”.

Durante a apresentação após a atividade, algumas alunas mostraram-se bastante indignadas por não

terem pensado que se tratava de uma mulher e por saberem que Rosalind foi injustiçada em seu trabalho uma

vez que, embora seus resultados tenham sido utilizados para a proposição da estrutura do DNA, seu nome foi

omitido dos créditos do trabalho publicado. Além disso, sofreu uma constante desvalorização e sua

capacidade e inteligência eram minimizadas 9.

9A reportagem a seguir conta algumas das histórias descobertas a partir de cartas encontradas, que mostram a

desvalorização diária que Rosalind Franklin sofria em seu próprio grupo de trabalho, sendo chamada até de fumaça de

bruxaria por seus colegas. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/807079-carta-revela-desprezo-por-

rosalind-franklin-mae-do-dna.shtml>. Acesso em: 09 jun. 2017.

Page 10: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

10

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Também foram feitas discussões sobre outras mulheres cientistas, que investigaram diversas

temáticas em diferentes épocas. Apesar das várias atividades que estavam sendo desenvolvidas na escola

durante o evento sobre questões de gênero, a grande maioria das crianças teve dificuldade de imaginar que

pudesse existir uma mulher cientista. Boa parte das que representaram mulheres disse ter “desconfiado” que

seria uma mulher, por conta do evento. Este resultado indica que a representação espontânea de uma mulher

cientista poderia ser inferior aos 19% verificados neste estudo.

Conclusão

Pode-se constatar a presença de estereótipos de gênero em relação à profissão de cientista, pois a

maioria das crianças participantes da pesquisa imaginou que a pessoa em questão era um homem. Os

resultados da pesquisa apontam para um conjunto de características que possivelmente faça parte da

profissão científica. Essa atribuição do que é “profissão de mulher” é uma discussão que, segundo Michelle

Perrot (2005), vem de funções que se estabelecem socialmente como ditas “naturais”, maternais e

domésticas, construindo modelos de mulher que são compatíveis com profissões como enfermeira, assistente

social, professora, costureira, secretária, mas não com profissões como engenheira, matemática, física e

química, dentre outras.

É necessário promover atividades que contribuam para a quebra de estereótipos e incentivem

meninas a ingressarem nas carreiras científicas. Caso os meios de comunicação de massa e os livros falassem

de mulheres cientistas, contando suas histórias, as meninas teriam modelos de mulheres cientistas em que se

poderiam espelhar.

É imprescindível que todos tenham conhecimento sobre as muitas mulheres que contribuíram para a

construção da Ciência, campo que seria aproximado das pessoas se mostrado como essencial à sobrevivência

humana. Ou seja, trata-se de uma questão ainda mais ampla que nos sugere o desenvolvimento de atividades

semelhantes em outras escolas.

Referências

BRASIL, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Ministério da

Educação (MEC), 2007. Censo do professor. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/plano-nacional-de-

formacao-de-professores/censo-do-professor>. Acesso em: 07 jun. 2017.

______, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Ministério da

Educação (MEC), 2007. Estudo exploratório sobre o professor brasileiro com base nos resultados do

Censo Escolar da Educação Básica. Disponível em:

<http://download.inep.gov.br/download/censo/2009/Estudo_Professor_1.pdf>. Acesso em: 26 maio 2017.

______, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Ministério da

Educação (MEC), 2012. Censo da Educação Superior. Disponível em:

<http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=14153-coletiva-censo-

superior-2012&Itemid=30192>. Acesso em: 6 jun. 2017.

Page 11: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

11

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

______, Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

(MCTI), 2015. Pesquisa sobre a Percepção Pública da Ciência e Tecnologia no Brasil. Disponível em:

<http://percepcaocti.cgee.org.br>. Acesso em: 10 maio 2017.

CVENCEK, D.; MELTZOFF, A. N.; GREENWALD, A. G. Math–Gender Stereotypes in Elementary School

Children. Child Development, University of Washington, 2011. Disponível em:

<http://ilabs.washington.edu/sites/default/files/11Cvencek_Meltzoff_Greenwald_Gender_Math_Gender_Ster

eotypes_2011.pdf>. Acesso em: 30 maio 2017.

FREIRE, P. Professora sim, tia não: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Editora Olho d´Água, 1994.

MIOTO, R. Carta revela desprezo por Rosalind Franklin, "mãe do DNA". Folha de São Paulo, São

Paulo, 2010. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ciencia/807079-carta-revela-desprezo-por-

rosalind-franklin-mae-do-dna.shtml>. Acesso em: 09 jun. 2017.

NATIVIDADE, M. R. da; COUTINHO, M. C.; ZANELLA, A. V. Desenho na pesquisa com crianças:

análise na perspectiva histórico-cultural. Contextos Clínicos, São Leopoldo, v. 1, n. 1, p. 9-18, jun. 2008.

Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-

34822008000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 29 maio 2017.

PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005.

RABELO, A. O.; MARTINS, A. M. A mulher no magistério brasileiro: um histórico sobre a feminização do

Magistério. Anais. Congresso luso-brasileiro de História da Educação, Uberlândia, 2010. Disponível em:

<http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/556AmandaO.Rabelo.pdf>. Acesso em: 25 maio 2017.

SCHIENBINGER, L. O feminismo mudou a ciência? Trad. Raul Fiker. Bauru: EDUSC, 2001.

UNITED NATIONS EDUCATIONAL, SCIENTIFIC AND CULTURAL ORGANIZATION (UNESCO).

Unesco Science Report: Towards 2030. UNESCO Publishing, 2015.

VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.

São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Women in science: a study of children stereotypes concerning gender

Astract: Toys usually vehiculate stereotypes. While girls receive dolls which stimulate care, boys handle

mainly with assembling toys, which favor reasoning development. Additionally, those involving logic,

mechanics, electronics and chemistry are socially assigned as being "for boys". At school, the alphabetizing

process is frequently conducted by a female teacher, while Physics, for instance, is taught by male teachers.

In Brazilian technical education, women represent 46% of educators, although this number rises to 98% in

children's education1.

Therefore, given the role of children’s education in propagating gender stereotypes, it is highly relevant to

investigate how elementary school age kids picture scientists. After a brief exposition about Rosalind

Franklin’s trajectory that omitted her name and gender, 63 students were asked to draw this “scientist

person”. Remarkably, 72% of the students depicted male scientists and 9% sketched a woman as the research

assistant.

These results reflect the already propagated gender stereotypes and suggest the importance of the early

interventions in the education system contributing to minimize such bias and to stimulate girls to pursue

scientific careers. Such intervention might increase the number of female undergraduate students in scientific

areas, an important agenda in our country, considering that women are only 33.1%4 of the laureate in this

area in Brazil, in 2015.

Page 12: MULHERES CIENTISTAS: UM ESTUDO SOBRE OS ESTEREÓTIPOS …€¦ · 1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis,

12

Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Keywords: gender, science, women, scientists, stereotypes.


Recommended