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Athenea Digital - 15(1): 225-247 (marzo 2015) -ENSAYOS- ISSN: 157-!4"
NA##A$I%ASDASIN&'IAS: *O+ODE*OSS,%E*A#AAS./E$I%AO+ON$E*O#'NEA
NARRATIVESFROMINFAMIES: ALITTLEOFPOSSIBILITYFORTHECONTEMPORARY
SUBJECTIVATION
Tania Mara Galli Fonseca*; Luis Artur Costa**; Carlos Antnio
Cardoso Filho*; Leonardo Martins Costa Garavelo* ***
*Universidade Federal do Rio Grande do Sul; **Universidade Federal de Pelotas;
***UniRier; tfonsecavia!rs"net
i3toria eitorial #e3men
Recibido: 15-07-214
Aceptado: 21-02-2015
O que pode a psicologia social ao somar em seu corpo metodolgico e concetualalgumas estratgias indas das artes poticas! O que pode a psicologia social se
somamos narratias "ccionais aos nossos trabal#os e pesquisas com as idas in$a-mes que $oram trancadas e esquecidas nos antigos #osp%cios e #ospitais psiqui&tri-cos! 'ste artigo apresenta tr(s perspetias sobre os potenciais adindos da #ibridi-)a*+o entre a psicologia social e as narratias "ccionais: a escrita "ccional paraalm do di)%el, para alm do u%)o e para alm dos sil(ncios produ)idos nos espa-*os de $ec#amento disciplinar. /ropomos aqui um ensaio concetual que eplore aspotencias epressias da "c*+o para $a)er emergir noas isibilidades poss%eis so-bre estas esquecidas idas in$ames. om estas $erramentas conceituais ao redor dotrabal#o biogra$em&tico e da pot(ncia da escrita "ccional, podemos ultrapassar osil(ncio produ)ido pelos muros do antigo ospital /siqui&trico 3+o /edro comnossas pesquisas.
*ala6ra3 la8earratiasic*+o6iogra$eman$8mia9estemun#o
A63trat
9e;or3arratiesiction6iograp#eman$am9estimon
;#at can social psc#olog do b adding to its oen and in$amous lies. ;it# t#ese concep-tual tools, to
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duraa com dramaticidade a robusta $ac#ada neocl&ssica. 3uas lin#as simples mas alti-
as se lan*aam ao #ori)onte com emp&"a. 9anta circunspec*+o eidenciaa o alor
dos saberes e poderes daqueles que se enoleram na empresa de constru*+o daquele
gigante: os not&eis ciili)ados burgueses, a sacra igrea em toda sua compai+o e a
nascente ci(ncia alienista com sua autoridade de erdade. rae como um pesado
acorde diante de um asto sil(ncio, por onde retumba e marca sua dramaticidade.
O el#o osp%cio passara desde ent+o por mLltiplas trans$orma*Kes e re$ormas,
mesmo com tantas andan*as e aria*Kes ns sent%amos o peso daquelas noas ci(ncias
do 'stado em todo o esplendor da sua autoridade no in%cio do sculo MM. Aan*&a-
mos passo a passo pelo gramado nos aproimando daquele $ssil de um proeto de ci-
dade per$eitamente goernada Eoucault, 1N74G1N7F: progresso, ci(ncia e caridade uni-
dos pela #umanidade. @as a que pre*o iemos a uni+o destas erdades e bondades!Pantos negros pobres tin#am sido tranca"ados por comodidade! Pantas m+es sol-
teiras $oram internadas para eitar esc8ndalos ainda maiores! Q medida que nos apro-
im&amos, as rugas e cicatri)es oriundas de suas batal#as contra a barb&rie se torna-
am mais is%eis: manc#as escuras de in"ltra*Kes que espal#aam umidade e amole-
ciam a carne da pedra, pequenas plantas e musgos que rompiam a retid+o das $ormas
neocl&ssicas com a organicidade decadente dos seres in$eriores, os rasgos agudos na
$ac#ada que es$acelaam a pel%cula ciili)ada deselando a nude) dos tiolos antigos. A
cada passo que d&amos em sua dire*+o nos aperceb%amos mais da aura de cansa*o
que permeaa aquela edi"ca*+o. @as a maior eid(ncia de que o antigo proeto de ci-ilidade cient%"ca cedera e implodira sobre o peso de sua graidade n+o estaa na $a-
c#ada do prdio, mas sim no seu interior: no grande pail#+o que albergara o 3eri*o
3om&tico com suas paredes de l%mpidos a)uleos brancos, #oe #aia a con$us+o de co-
res da O"cina de riatiidade com suas tintas, papeis, caaletes e uma astid+o de
obras elaboradas pelos usu&rios do /3/. C&, as lin#as simtricas que #aiam estriado
aquele espa*o EJeleu)e e ua>ari, 1N0G1NN7F em segmentariedades conc(ntricas, bi-
n&rias e #ier&rquicas EJeleu)e e ua>ari, 1N0G1NNHF $oram embaral#adas pela m+o li-
re da pintura, da escrita e de bordados. Ali a degrada*+o do el#o #osp%cio e de seus
saberes possibilitou que outra organi)a*+o brotasse, e muitas $oram as idas que bus-caram guarida naquelas cores.
nestigamos seus espa*os, suas o)es, seus modos de ier e trabal#ar. Respira-
mos seus odores Lmidos, conersamos com suas idas impregnadas. os Lltimos qua-
tro anos passamos a nos debru*ar sobre os rastros de idas e obras que duraram na
O"cina de riatiidade. 9endo como eio conceitual e metodolgico o conceito de bio-
gra$ema de Roland 6art#es, nosso problema constitu%a-se em como di)er uma ida in-
$ame da qual encontr&amos, ao lado do montante de obras epressias produ)idas
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pela mesma, apenas re$er(ncias nos arquios de prontu&rios mdicos, redigidos de $or-
ma lacDnica e eclusiamente centrados nas mani$esta*Kes sintomatolgicas dos suei-
tos institucionali)ados. 9endo em m+os as obras epressias dos $requentadores da
O"cina e os prontu&rios mdicos, pudemos perceber e demonstrar o alto teor epressi-
o das re$eridas obras bem como o seu total despre)o por parte do ol#ar mdico psi-
quiatri)ado, leando-nos a pensar a O"cina como um lugar estrangeiro no seio do pr-
prio #ospital.
este Outro do #ospital, neste seu duplo, colado e ao mesmo tempo separado,
em $ormando-se, durante mais de 20 anos, um outro Arquio, imenso por sua proli$e-
ra*+o di&ria e grandioso em seu nLmero de aproimadamente 100.000 obras arquia-
das. /ortanto, em busca dos sil(ncios e dos restos de idas in$ames, submetidas ao re-
gime de longa interna*+o, pudemos, a par de ordenar as cole*Kes do Arquio, remeeras matrias esquecidas e, lu) do dia, des"ar algumas possibilidades de irmos di)er o
que $oram tais idas, o que poderiam ter sido e o que ainda n+o $oram nem ser+o. 'n-
contrar um modo de di)er que estiesse altura dos impercept%eis e sutis elementos
destas idas $ragmentadas, condu)iu-nos a dispensar uma aten*+o especial aos nossos
prprios modos de escreer que, desta e) e por causa desta situa*+o, conocaam
#ibridi)a*+o do estilo acad(mico-cienti"cista com o potico e romanesco. /ersegu%a-
mos, desta $eita, tambm um Outro, desta e) o da Academia, inserindo no prprio dis-
curso acad(mico algo para alm de seus tradicionais c8nones. onstituiu-se neste ca-
min#o uma estil%stica da pesquisa, eigindo do pesquisador mais do que sua capacida-de de compreens+o e eplica*+o, uma e) que da sua prpria implica*+o e acopla-
mento com o obeto pesquisado que se produ)ir+o resultados tanto sobre o mundo
perspectiado quanto daquilo que seus prprios corpos podem e suportam ir a pen-
sar. /ensamento e ida, pesquisa e ida encontram-se, ent+o, intrincados em uma rede
de resson8ncias cuos resultados +o para alm da inen*+o de mundos: re$erem-se,
agora, tambm aos cuidados de si e autopoiese do prprio pesquisador e pesquisado.
+o se trata, pois, de um passado embalsamado cua atualidade seria sinDni-
mo de intemporal. oge da concep*+o apologtica e repetitia e $ora a narra-
tia de uma ida como intensidade, ou sea, desde o ir-a-ser de suas pot(nci-
as. S essa atualidade intensia que em designar as ressurg(ncias de elemen-
tos ocultos, esquecidos diria /roust, recalcados diria reud, do passado no
presente. Eonseca, 2011, p. 20HF
9rata-se, agora, de produ)ir a #istria do presente a partir do trauma, ou sea, da-
quilo que, por ter sido grande demais para os sueitos que o eperimentaram, impediu-
os de di)(-lo ou represent&-lo e cuos restos a di)er acabou #istoricamente sendo locu-
pletado, por Teplica*KesU $oradas pelas m+os dos poderes V cient%"cos e ur%dicos -
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guiados por alores de uma moral #igienista, de controle, restauratia e normali)ado-
ra. Acreditamos que, em nossa tare$a de ensino e pesquisa, pudssemos ainda ir a in-
tensi"car o prprio processo de transmiss+o s gera*Kes oens de uma outra #istria
social, de um Outro da #istria, agora narrada em primeira pessoa e despoada de bri-
l#antes e narc%sicos #ero%smos. Agora, damos-l#e o nome de testemun#os, conside-
rando-as como a tomada da palara que em eatamente causar "ssuras e desios na-
quilo que as camadas temporais do arquio contemplam.
@ergul#ar o arquio na )ona cin)enta do testemun#o implica recon#ecer n+o ser
poss%el contar a #istria das in$8mias a partir de uma pretens+o totali)ante e unit&ria.
Ali, nos testemun#os, naquele cin)a-escuro de uma linguagem titubeante e gaga, emi-
tida desde um grande demais para ser representado simbolicamente, coeistem restos
a di)er, restos a lembrar e con#ecer que, n+o tendo sido amais narrados e descritos,ainda a)em embrul#ados e apertados nas palaras-cad&er que os pronunciaram e os
")eram cair, quando & ca%dos pela desra)+o e seu so$rimento, pela primeira e).
O problema que transersali)a nosso ensaio $or*a-nos cr%tica $rente aos modos
como temos sido goernados Eobetos in$ames e not&eis pesquisadoresF: os limites da-
quilo que podemos er e di)er. ostar%amos de contrapor nosso arquio da di$eren*a
com o estabelecido arquio imel das erdades sociais, cient%"cas e ur%dicas. +o se
trata da instala*+o de tribunais da erdade, uma e) que n+o estamos moidos pela
moral do ulgamento e por acreditarmos serem parciais nossas contribui*Kes tanto
quanto o s+o e $oram aquelas que, um dia, se reali)aram como senten*a aui)adora e
implac&el. Aqui, n+o se trata mais da erdade e sim de sua crise, n+o se trata mais da
#istria contada, sabida e arquiada, mas sim de sua reescritura a partir de outros pon-
tos de ista delirantes. +o "camos imobili)ados nas pro$unde)as de um arquio dos
saberes passados e consagrados: pro$anamos o arquio sagrado das escrituras ao retor-
nar super$%cie contempor8nea: nosso presente mais do que aquilo que nele se atua-
li)ou e e$etuou, sendo, pois, um reseratrio de irtuais que podem ser atiados na di-
re*+o de noas composi*Kes e noas paisagens, aquele tempo n+o-reconciliado E/el-
bart, 1NNF.Agora, o pesquisador da /sicologia 3ocial, mesmo n+o sendo #istoriador, ai em-
bren#ar-se na problem&tica dos arquios da #istria da in$8mia, $a)endo-os con$ron-
tar-se com os testemun#os de seus sobreientes. 'le prprio tornar-se-& testemun#a
de testemun#as, sendo sua prpria pesquisa um dispositio para $a)er $alar e dar a er
aquilo que "cou entalado em muitas gargantas. este sentido, o prprio mundo que
passa a ser perspectiado tanto como produ*+o quanto lugar de produ*+oB o prprio
mundo considerado como $&brica e $abricante e a linguagem que l#e d& sentido, o
este eatamente nos limites daquilo que o regime discursio enuncia e nomeia. Aqui,
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nos interessa incluir a quest+o da insu"ci(ncia da prpria linguagem e seu $racasso di-
ante daquilo que gestado pelo tempo do acontecimento catastr"co e $ora dos tril#os
da reta ra)+o. +o sendo #istoriadores, tampouco ornalistas e reprteres, queremos,
no entanto, ensear uma eperi(ncia de constituirmo-nos como corpos-de-passagem
para o inomin&el e para o inenarr&el. +o sendo escritores, cineastas ou pintores,
gostar%amos de nos aproimar das artes de di)er o abeto, desta arte de di)er o que
grande demais para ser dito, aproimando nossa produ*+o acad(mica daquela eperi-
menta*+o prpria a uma cogni*+o que considera a ra)+o como sendo da ordem do sen-
s%el, da inen*+o.
'stes restos - da #istria e dos sueitos -, tambm concernem aos restos do pesqui-
sador e de seus modos de epress+o, pois este deer& estar altura para ir a di)er o
n+o-dito. /esquisador e pesquisado se unem, assim, se des$a)em a si mesmos, porquerenunciam ao lugar da representa*+o, renunciam ao lugar dos c8nones. A narratia se
ole produ*+o de uma #eterotopia Eoucault, 2001F: constitui*+o de um territrio
estran#o, que nos permite islumbrar o absurdo que sustenta a obiedade, o etraordi-
n&rio que permeia o banal, a crueldade que ban#a as mel#ores inten*Kes de sala*+o.
Jeste modo, a produ*+o biogra$em&tica de idas in$ames nos lea a romper com os
sistemas de aceitabilidade igentes Eoucault, 1N7F. arramos a contrapelo o indi)%el
com as $or*as poticas da "c*+o e da terra arrasada dos espa*os de produ*+o da in$8-
mia.
Weamos, ent+o, tr(s problemati)a*Kes desta pr&tica de narrar idas in$ames. /en-
saremos nos limites e ultrapassagens da linguagem e das narratias diante do trauma e
da morte com 6enamin e 6lanc#ot. Pestionaremos a autoridade do u%)o retomando
a positiidade do $also com as preensKes de ;#ite#ead e as articula*Kes de Catour a
produ)irem narratias-coisas. Acompan#aremos o percurso que costura narratia e in-
$8mia na biogra$em&tica. 9r(s tape*arias conceituais que compKem o campo problem&-
tico que nos permite a quest+o $undamental de nosso trabal#o: o que podem as escri-
tas in$ames!
Narrati8aC eF>eriGnia e morte: a e3rita o trama3altano o iz?8el
A narratia o local da eperi(ncia no discurso. O narrador aquele que ainda capa)
de transmitir a eperi(ncia, pois aquilo que conta deria tanto de suas eperi(ncias
quanto do que l#e $oi relatado. Atras da narratia deparamo-nos com o mais pri-
mo e com o mais distante, com a eperi(ncia de nosso cotidiano e com os ensinamen-
tos da tradi*+o. A eperi(ncia, tal como concebida por ;alter 6enamin E1NN4F, n+o
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se re$ere a qualquer i(ncia de um sueito indiidual, constitui antes uma eperi(ncia
coletia, comum. Xma i(ncia que s obtm sentido porque integra-se em um modo
de ida que & est& dado e organi)ado, e que at recentemente con"gurou-se pela auto-
ridade da tradi*+o. 9emos, contudo, cada e) menos eperi(ncias, para n+o di)er que a
perdemos completamente. Ao mesmo tempo que nossa ida enc#e-se de in$orma*+o,
n+o temos uma eperi(ncia sequer. A eperi(ncia comum tornou-se priada. S o sol-
dado que olta da guerra sem nada para contar, ou o sueito que diante da torrente de
not%cias logo esquece.
'nquanto #aia eperi(ncia a narratia ainda podia dar consel#os. O consel#o
n+o tin#a a $un*+o nem de ser uma eplica*+o, nem um direcionamento, deeria antes
estabelecer uma continuidade, permitir que a #istria contada pudesse prosseguir. O
romance, por sua e), n+o aconsel#a, pois n+o constitui mais uma narratia, encontra-se por completo no 8mbito da eperi(ncia priada e indiidual. O relato psicolgico
um dos aspectos essenciais do romance, pois o leitor dee ser condu)ido, dee encon-
trar uma #istria com obeto, com resolu*+o e, acima de tudo, com eplica*Kes. o ro-
mance o indi%duo encontra seu sentido, que n+o o mesmo da eperi(ncia, apartado
do comum e submetido a uma ordem de signi"ca*+o & dada. Algo similar acontece
com a #istoriogra"a, cuos acontecimentos #istricos que narra s+o submetidos a cau-
sas e eplica*Kes, e con$ormam-se a um ordem teleolgica maior: o progresso.
A narratia $unda-se na autoridade da tradi*+o, pois a garantia da continuidade
dos costumes e do modo de ida que permite decidir quais i(ncias s+o eperi(ncias,
quais delas podem destacar-se do $undo opaco da eist(ncia. 'ntretanto, o erdadeiro
$undamento da autoridade a morte, dado que as coisas s+o limitadas, uma e) que
eentualmente encontram seu "m, que deemos dar-l#es continuidade, e o prprio
"m dee se tornar um acontecimento. S a di$eren*a entre o #omem medieal, que
morria em sua prpria cama V no mesmo quarto em que seus ancestrais ieram e
morreram V, e o #omem moderno, que morre no #ospital, morte quase anDnima, na
cama e no quarto de ningum. A morte esquecida, assim como as eperi(ncias coti-
dianas e as noticias que n+o narram mais o $abuloso, o distante e o incomum, mas ape-nas o banal e o irreleante.
A tradi*+o, e a prpria morte, n+o podem mais constituir o $undamento para a
narratia. omo ent+o podemos pensar, e $a)er, uma noa narratia! 9ale) o tra*o es-
sencial da narratia estea n+o na autoridade, mas em sua aus(ncia de eplica*Kes. O
cronista o narrador da #istria, que ao abandonar o progresso, a ordem e toda a tele-
ologia, Tnarra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e pequenosU E6ena-
min, 1NN4, p. 22IF Aus(ncia de distin*+o, grandes e pequenos acontecimentos, um ao
lado do outro. Ao n+o dar eplica*Kes a narratia abre o espa*o para a ambiguidade,
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para a coeist(ncia da contradi*+o e da di$eren*a. 9anto o romance quanto a #istria
teleolgica assumem a eist(ncia de um mundo Lnico, que comporta apenas uma ma-
neira de contar a erdade, que dee tra*ar sua rede de causalidades at o in%cio dos
tempos. O narrador, ou o cronista, narra algo que eperienciou ou que l#e $oi relatado,
e que, contudo, n+o uma mera representa*+o ou descri*+o de uma obetiidade. A
narratia toma a eperi(ncia e a elea a um status maior do que a prpria ida daquele
que a ieu, pois a coloca no 8mbito de uma eperi(ncia comum cua continuidade
mantm-se #& gera*Kes, e cua noidade encontra seu lugar entre o con#ecido e #abi-
tual. Xma e) tendo perdido essa continuidade, na ambiguidade que podemos encon-
trar um noo espa*o para a narratia. Ao abrir m+o de um sentido un%oco, a narratia
recoloca a eperi(ncia iida em um 8mbito que n+o a restringe mais a uma indiidua-
lidade psicolgica nem a uma ordem teleolgica: a eperi(ncia retomada pela incer-
te)a e pela indetermina*+o que l#e inerente e permitiu a eorges 6ataille E1N44G1NN2F
identi"candar a mesma crise apontada por 6enamin, di)endo que a prpria eperi(n-
cia a autoridade, em sua iman(ncia.
@aurice 6lanc#ot E1NHNG2010F problemati)a a rela*+o entre narratia e romance
de $orma similar a ;alter 6enamin E1NN4F. Pando a o) narratia de um TeuU, de
uma primeira pessoa que a princ%pio designa o prprio autor, trans$ormada para o
TeleU, essa terceira pessoa adquire dois papis distintos no romance. A princ%pio, a nar-
ratia em terceira pessoa designa uma obetiidade, pois o autor coloca-se $ora da ei-
d(ncia de sua prpria eperi(ncia, narra $atos que l#e s+o eternos. O TeleU garante asepara*+o entre o dentro e o $ora, um ponto de ista eterior que obsera uma #istria
sem nela interir: perspectia da prpria T#istriaU e is+o do leitor, que ao situar-se
nesse ponto de antagem pode ser a testemun#a e o ui) dos $atos.
nersamente, a terceira pessoa pode designar tambm o aspecto subetio dos
personagens que compKem a noela. 3e a narratia em primeira pessoa pode constituir
o dom%nio em que o TeuU priado do autor eposto, direta ou indiretamente, ao se
utili)ar a terceira pessoa a subetiidade do autor colocada em segundo plano, dando
espa*o para que os egos de seus personagens possam ser epostos em suas idas indi-iduais. ada uma dessas idas pode ser obserada e analisada independentemente da
subetiidade daquele que escree.
A narratia em terceira pessoa, contudo, re$ere-se a muito mais que uma mera
trans$orma*+o no modo, essencialmente burgu(s, de narrar #istrias priadas e inti-
mas repletas de acontecimentos em que nada acontece. A terceira pessoa aponta para
uma impessoalidade ainda mais pro$unda, para uma neutralidade prpria linguagem
que a $a) escapar de toda $orma de reela*+o ou obscuridade. /ara 6lanc#ot
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E1NHNG2010F a narratia o espa*o da neutralidade, onde nada a"rmado e, ao mesmo
tempo, nada pode ser negado.
Pando $alamos sobre algo, o obeto de nosso enunciado desaparece. Ao di)er T&r -oreU ou TgatoU, nossa palara n+o contm nem um, nem outro. Aquilo que perdemos
ao pronunciar a palara nos restitu%do atras do sentido. A &rore desapareceu, mas
agora tem seu signi"cado, a sua representa*+o. A linguagem opera ent+o um ogo de
substitui*+o e redistribui*+o. /erdemos as coisas, mas gan#amos as palaras. 3e o sen-
tido poss%el porque de algum modo pode eistir uma rela*+o entre coisas e pala-
ras, que em certa medida o mundo pode ser mapeado, e cuo ogo de correspond(nci-
as constitui aquilo que c#amamos de con#ecimento ou erdade.
3e a palara torna a coisa ausente, o $a) por uma insu"ci(ncia. Ao di)er T&roreU
perdemos a &rore em toda a sua multiplicidade, em toda a diersidade de perspectias
e signi"cados que l#e podem ser atribu%dos. /odemos utili)ar mais e mais palaras
para tentar descre(-la eaustiamente, mas alguma coisa sempre escapar&. Yorge Cuis
6orges E1N72F conta a #istria de unes, que um dia, aps um acidente, gan#ou uma
memria absoluta. Jaquele momento em diante nada mais seria esquecido, tornando a
linguagem uma eperi(ncia imposs%el. /ois, para unes, o gato que iu de man#+ e o
gato que iu de tarde n+o pode ser o mesmo gato. 9udo mudou. 3eria necess&rio que
eistisse uma palara para cada coisa, a cada instante. Apontar para um obeto e dar-
l#e um nome, um nLmero, um par. 9omar uma coisa por outra. S a linguagem em seu
uso mais primordial e primitio, anterior ao prprio pensamento. Ao mesmo tempo,
unes arru%na toda possibilidade de linguagem e pensamento. T3uspeito, entretanto,
que n+o era muito capa) de pensar. /ensar esquecer di$eren*as, generali)ar, abs-
trair. o abarrotado mundo de unes n+o #aia sen+o pormenores, quase imediatos.U
E6orges, 1N72, pp. 124-125F A linguagem, e tambm o pensamento, precisa do esqueci-
mento, pois opera por generali)a*Kes, e torna todos os gatos o mesmo gato, todas as
&rores a mesma &rore. & um ecesso de coisas, e nos $altam as palaras para de-
sign&-las todas.
6lanc#ot E1NHNG2010F, entretanto, propKe-nos o inerso: s+o as coisas que $altams palaras, #& sempre um ecesso de linguagem. A partir da leitura que Russel $a) de
;i>genstein, toda linguagem tem um limite, eiste sempre algo que n+o pode ser dito
e sobre o qual dee-se calar. @as essa linguagem pode ser retomada por uma lingua-
gem de n%el superior que pode $alar o que a primeira n+o podia, e que por sua e)
tambm ter& algo de indi)%el. /ode-se repetir esse moimento at o in"nito. O essen-
cial que sempre eiste um ponto cego na linguagem, um Outro indi)%el. O que apre-
senta-se ai% n+o a incapacidade de nomear, mas ustamente que a linguagem pode $a-
lar de sua prpria aus(ncia. /ois o que $a) com que a linguagem ultrapasse as coisas
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ustamente a capacidade de dizer a ausncia. A coisa sempre presente e s eiste na
medida em que se d& nessa presen*a. Xma coisa n+o pode atestar sobre sua prpria au-
s(ncia. @as se o espa*o a)io na parede, o quadro que $alta, a disposi*+o de obetos em
uma sala que apenas nos mostram tudo o que ali $alta! Ainda #& presen*a, pois uma
aus(ncia signi"catia, um conunto que eiste ao redor de uma carta roubada, ausen-
te mas ainda organi)adora das rela*Kes.
A aus(ncia de que $ala 6lanc#ot E1N4NG1NN7B 1N5NG2005F mais pro$unda, ou me-
l#or, sem pro$undidade alguma. S a aus(ncia da coisa que n+o pode ser retomada por
nen#um signi"cado ou ordena*+o. A palara perde a coisa, mas ao situarmo-nos nessa
perda, sem tentar restitu%-la ao dom%nio do sentido, deparamo-nos com a ambiguidade
e o paradoo. A rela*+o de sentido ainda uma rela*+o de poder, n+o muito di$erente
do trabal#o que trans$orma o mundo. Ao construir uma mesa o artes+o dee primeironegar a &rore, dee mat&-la. S uma rela*+o dialtica, onde a &rore e sua nega*+o t(m
sua s%ntese no obeto constru%do pelo trabal#o do #omem, a mesa. O sentido opera a
mesma s%ntese, pois resole a contradi*+o entre a coisa designada e sua aus(ncia. Ao
abrir m+o da s%ntese, o que #& uma pura contradi*+o sem resolu*+o. @ais precisa-
mente, a palara torna-se di$eren*a, multiplicidade, abrindo-se em todas as dire*Kes ao
mesmo tempo, & que n+o precisa mais ser submeter a um entendimento, compreen-
s+o, ordem ou sentido Lnico. S o neutro, espa*o que abandona toda a identidade, que
n+o possui mais critrio comum capa) de comparar ou organi)ar o que l#e #abita,
onde a palara abre-se para a rela*+o da pura di$eren*a.
3e em ;alter 6enamin E1NN4F a narratia deria sua autoridade da morte, da ne-
cessidade de dar continuidade ao que desaparece, em @aurice 6lanc#ot E1N4NG1NN7B
1N5NG2005F a narratia tambm encontra sua possibilidade na morte, mas de uma mor-
te que & se situa completamente $ora do dom%nio da possibilidade. A linguagem cons-
titui-se $undamentalmente como aus(ncia, que prom da rela*+o Lnica que estabelece
com a morte. a rela*+o dialtica, como imos, a morte ainda um ato de poder, a
a*+o trans$ormadora do #omem sobre o mundo, que precisa destruir para criar. @orte
enquanto pot(ncia. 'ncontramos algo similar em 6enamin, que ao buscar uma morteLnica e pessoal, ao ins da morte anDnima, a morte de qualquer um, ainda a toma
como um poder, como algo que pode ser apropriado e tornado seu, uma pot(ncia.
S porque tudo pode morrer que podemos $alar de sua aus(ncia. A palara sem-
pre um assassinato di$erido, uma senten*a de morte. 'ssa morte, contudo, n+o permite
mais que uma continuidade sea estabelecida, nem que uma ida sea indiiduali)ada.
A morte, para 6lanc#ot E1N4NG1NN7F, tudo aquilo com o qual n+o podemos nos relaci-
onar. A morte imposs%el, a prpria impossibilidade. @esmo no suic%dio a morte
nos escapa, pois aquele que morre desaparece, n+o #& mais uma presen*a capa) de
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Narrati8a3 a3 inoo e >o33?8el >ara a 36@eti8aBo ontem>or=nea
morrer. o momento eato em que morremos a morte nos escapa. A morte nos torna
incapa)es de morrer, pois n+o #& mais um ns, nem mesmo um eu. A morte nunca
minha. Pando a palara abandona-se sua prpria aus(ncia, quando abandona todo
o poder do sentido, abre-se para a impot(ncia da morte, para esse espa*o onde n+o
mais poss%el agir, nem n+o-agir. A ambiguidade da aus(ncia muito mais pro$unda
que uma multiplicidade de sentidos ou polissemia, a ambiguidade da prpria morte,
da incapacidade tanto de escol#er quanto de n+o-escol#er.
3e a eperi(ncia tornou-se imposs%el, pois n+o temos mais a seguran*a de uma
tradi*+o, nem a continuidade perante a morte, como podemos, noamente, narrar!
6enamin nos apontou o camin#o da ambiguidade, de uma narratia sem eplica*Kes,
aberta ao acontecimento. 6lanc#ot E1N5NG2005F, por sua e), estabelece uma noa rela-
*+o com a morte, a rela*+o de uma n+o-rela*+o, o que permite reconstituir a narratian+o como Trelato do acontecimento, mas o prprio acontecimento, o acesso a esse
acontecimento, o lugar aonde ele c#amado para acontecer, acontecimento ainda por
ir e cuo poder de atra*+o permite que a narratia possa esperar, tambm ela, reali-
)ar-se.U Ep. F 3e a narratia n+o pode se restringir ao $ormato dos romances e noelas
burguesas porque n+o representa mais nada, n+o $ala nem de uma intimidade, nem
de uma realidade, mas constitui um puro acontecimento, desdobra o tempo em duas
dire*Kes simultaneamente: o que nunca aconteceu e o que sempre $oi. Pando o ui)
declara o acusado como assassino, tudo muda, e tudo permanece igual. A partir daque-
le instante ele sempre $oi, e sempre ser& um assassino, apesar de antes disso nunca tero sido. EJeleu)e Z ua>ari, 1N0G1NN5F Juas ordens temporais se encontram, coeis-
tem e amais se resolem. A narratia o espa*o dessa ambiguidade.
9oda ambiguidade em da ambiguidade do tempo que aqui se introdu), e que
permite di)er e eperimentar que a imagem $ascinante da eperi(ncia est&,
em certo momento, presente, ao passo que essa eperi(ncia n+o pertence a
nen#um presente, e at destri o presente em que parece introdu)ir-se.
E6lanc#ot, 1N5NG2005, p. 12F.
O desastre que tudo trans$orma, sem nada mudar, o que ainda ai acontecer eque & acontece desde tempos imemoriais. E6lanc#ot, 1N0G1NN0F A narratia em nossa
eperi(ncia contempor8nea pode se dar apenas nesse espa*o do desastre e do aconte-
cimento, ao abrir-se para o imposs%el da morte de uma eperi(ncia que autori)a a si
mesma, ao lear-se ao seu limite, enquanto eperi(ncia do prprio limite. arratia do
desastre e da in$8mia que nos permite ampliar a pot(ncia da escrita di)er menoridades,
porcarias para as quais n+o se inentou palara ou l%ngua.
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Narrati8aC >reen3He3 e 8ia: a e3rita o el?rio 3altanoo @?zo
Je maneira algo di$erentemente, mas n+o oposta, a 6lanc#ot e 6enaminB illes Jeleu-)e, 6runo Catour e Al$red ort# ;#ite#ead n+o centram a rela*+o do sentido na au-
s(ncia do obeto ou em uma rela*+o dialtica entre palara e coisa, ainda que tambm
se pautem pela tica da abertura das pot(ncias epressias ao lirar-nos da graidade
do u%)o. estes autores n+o eiste uma di$eren*a substancial entre o unierso simbli-
co da linguagem e o mundo material dos entes: ambos s+o paradoalmente constitu%-
dos na iman(ncia mundana. A diis+o destes mundos costuma substanciali)ar as coi-
sas na matria Eres etensa cartesianaF e desmateriali)ar a realidade das palaras em
um unierso transcendente Eres cogitans cartesianaF, mas tais proposi*Kes se esquecem
que antes de bi$urcar a nature)a em dois mundos podemos uni-las na iman(ncia daa*+o: coisas, palaras, conceitos e obetos eistem em nosso mundo como a*Kes, acon-
tecimentos, eentos, processos, rela*Kes, etc. illes Jeleu)e, por eemplo, em seu r%-
tica e cl%nica E1NN7F e na obra Cgica do sentido E1NHNG1N75F, ao re$erir-se a Antonin
Artaud e Ce
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Narrati8a3 a3 inoo e >o33?8el >ara a 36@eti8aBo ontem>or=nea
@as esses atos de re$er(ncia est+o tanto mais assegurados quanto con"am,
n+o apenas na semel#an*a, mas em uma srie regulada de trans$orma*Kes,
transmuta*Kes e transla*Kes. Xma coisa pode durar mais e ser leada mais
longe, com maior rapide), se continuar a so$rer trans$orma*Kes a cada etapadesta longa cadeia ECatour, 2001, p. 74F.
+o #& um abismo entre a mente e o mundo que transposto pela re$er(ncia ou
pelo $enDmeno. 9emos apenas um mundo que circula articulado de di$erentes modos
trans$ormando a um s tempo sueitos e obetos pelas estratgias de trans$orma*+o-
articula*+o entre eles. /ara mel#or compreender esta concep*+o da linguagem como
mundo e n+o como comunica*+o, e da eperi(ncia como ontologia e n+o como episte-
mologia, podemos sacar m+o, como Catour E2001F, do conceito de preens+o de Al$red
ort# ;#ite#ead E1N2NG1N5HF. A preens+o uma opera*+o, a um s tempo, ontolgicae epist(mica. 'm um unierso-eento em constante processo de cria*+o, a preens+o
um encontro de a*Kes que constitui uma rela*+o a qual, por sua e), pode constituir
um ente EsueitoGsuperetoF: o TeuU nada mais que uma dire*+o etorial nestes senti-
res que os tornam sentires de mim, sentires dos sentires que agora denomino meus. A
preens+o um quantum de eperi(ncia, um sentir, tanto o eu Esentir-se, sentir re\ei-
o em dobraF quanto o mundo mesmo s+o um mar de gotas eperienciais concretas
Eonto-epist(micasF. 9ais preensKes proocam acontecimentos Eeentos-mundoF os
quais seguem sries de aria*Kes: estas sries de aria*Kes s+o as [ocasiKes atuais[
E;#ite#ead, 1N2NG1N5HF, equialentes ao que denominamos ulgarmente [obetos[. Osentes do mundo s+o, portanto, n+o subst8ncias mas sim sries de preensKes EsentiresF.
As ocasiKes atuais Tson gotas de eperiencia, compleas e interdependientesU E;#i-
te#ead, 1N2NG1N5H, p. I7F. 9al concep*+o nos permite ultrapassar o abismo entre coisa e
eperi(ncia, entre palara e obeto, indo muito alm da concep*+o simplista de repre-
senta*+o como correspond(ncia de analogia.
/artindo deste unierso conceitual, emos que enquanto o sentir cartesiano Ea e-
peri(ncia sens%el em JescartesF o Tme parece queU Eme parece que ou*o um ru%do,
por eemploF, em ;#ite#ead o sentir o TU da ontologia e n+o mais mera apar(ncia.
O mundo processo, processo sentir, e entender uma $orma espec%"ca de sentir,que tambm ser E;#ite#ead, 1N2NG1N5H, p. 21IF. Jeste modo, constituir narratias do
mundo trans$ormar a ele e a ns mesmos. Assim, constitu%mos nossos obetos e ns
mesmos, tecendo uma rede de arti$%cios especulatios que tomam ou n+o corpo em
resson8ncias, preensKes que adquirem a consist(ncia de neos, erigindo uma srie de
ocasiKes atuais a partir dos deires potenciais do mundo EirtualF.
/ara ;#ite#ead, as irtualidades tambm $a)em parte do ser, da ontologia, posto
que aqui [ser[ tudo aquilo que age na produ*+o de preensKes, na inen*+o de ser:
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T'sto es una eempli"cacin del princ%pio categorial de que el caracter meta$%sico ge-
neral de ser una entidad es ]ser un determinante en el deenir de actualidadesU E;#i-
te#ead, 1N2NG1N5H, p. I4F. Assim, tecendo preensKes de corpos, rg+os, personagens e
tudo mais que #& no mundo, constitu%mos o mundo mesmo, em aria*Kes de si, em um
deir de cria*+o do qual participamos a cada instante com cada gesto. Assim amos,
gerando noas rela*Kes no mundo que noas rela*Kes s+o em ns. omplei"camos a
trama de ns mesmos e do mundo. 3omos, de certo modo, a "c*+o do mundo que nos
escree em ns e conosco. 'stas a"rma*Kes de mundo se d+o atras de proposi*Kes-
mundo: para ;#ite#ead proposi*Kes s+o seres #%bridos entre preensKes indicatias
Edesigna*+oF e conceituais Esigni"cadosF, os quais nos possibilitam a articula*+o com o
mundo Econsciente e inconscienteF. /roposi*Kes s+o a"rma*Kes noGsobre o mundo as
quais s+o necessariamente erdadeiras ou $alsas, se submetem ao u%)o ao se disporem
a uma rela*+o com a atualidade do mundo, suas $ormas constitu%das. o entanto, no
que se re$ere s irtualidades tal submiss+o ao u%)o n+o se aplica: ;#ite#ead denomi -
na como [/otenciais[ E1N2NG1N5HF ao unierso das singularidades EpreensKesF que ultra-
passam as [ocasiKes atuais[ Eo atualF, mas que seguem agindo sobre estas EeistemF.
ossas narratias a"rmam um territrio transersal entre o atual e o irtual que
estabelece uma rela*+o Lnica com o u%)o: se podemos aplicar a categoria u%)o s coi-
sas delimitadas pelos condicionamentos da atualidade, por outro lado a $alsidade das
mesmas n+o incorre em n+o eist(ncia, em negatiidade, em nega*+o da proposi*+o.
este unierso onto-epist(mico se admite o sentido do $also, sua positiidade ontol-gica. Assim, se l#es a"rmo que agora estou $a)endo compras no supermercado, l#es
estou di)endo algo $also. Jeste modo, o $also eiste. Jo mesmo modo, se l#es a"rmo
algo absurdo como [eu, que escuto o som &spero e grae que acompan#a cada ama-
n#ecer[, posso di)er que ningum escuta aman#eceres, mas mesmo assim posso a"r-
mar a eist(ncia de sentido nesta $rase Eos nebulosos sentidos do non-senseF, posto que
independente de sua rela*+o com os supostos re$erentes ela se articula em nossas pre-
ensKes. Ao diminuirmos a import8ncia do u%)o em nossas narratias, ns intensi"ca-
mos nossa capacidade de nos articularmos com o irtual, com os potenciais, e nos tor-
namos mais capa)es para escreer sobre as sutile)as e singularidades dos restos deida in$8mia.
;#ite#ead nos c#ama a aten*+o para o $ato de que a eist(ncia de erdade e $alsi-
dade di$ere em muito da eist(ncia de um metau%)o que nos lee a pre$erir uma sobre
a outra: isso seria a morali)a*+o da $alsidade e da erdade. A pre$er(ncia dos lgicos
pelas proposi*Kes Epotenciais de atuali)a*+oF erdadeiras morali)ou a lgica e obscure-
ceu as possibilidades Epot(nciasF das proposi*Kes com tal restri*+o moral: T/ero en el
mundo real es m&s importante que una proposicin sea interesante que no sea erda-
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deraU E;#ite#ead, 1N2NG1N5H, p. I51F. A submiss+o das proposi*Kes ao u%)o $e) com
que n+o pudssemos er o alor de cria*+o do $also para alm da morali)a*+o do u%)o
com a pre$er(ncia pelo erdadeiro. omo podemos ent+o retomar a realidade do $also
para produ)ir noas isibilidades e outras possibilidades do di)er! Xma das maneiras
mais e"cientes utili)ar-se da "c*+o lire das amarras da erossimil#an*a: utili)amo-
nos da "c*+o que n+o se ( como representa*+o de um re$erente erdadeiro:
'n la literatura imaginatia esta incitacin ^do u%)o morali)ante_ resulta
in#ibida por el conteto general, aLn por la $orma disposicin del libro
material. A eces #asta #a una $orma de palabras designada para in#ibir la
$ormacin de un sentir de uicio, tal como ]en otro tiempo` E;#ite#ead,
1N2NG1N5H, p. I52F.
/artimos da ontologia acima para deslocar nosso bom senso e etraasar modosde ida in$ames que $oram etremamente limitados por uma iol(ncia estatal. iccio-
namos narratias-malditas que incrementam a compleidade e singularidade de nossa
preens+o-mundo pelo encontro delirante com a loucura.
Narrati8a3C te3temnho e 6iogra
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&on3eaC $ania +o3taC i3 &ilhoC +arlo3 e ara8eloC eonaro
*+o de con#ecimento ao eaminar nos arquios de internamento do ospital eral e
da 6astil#a TS uma antologia de eist(ncias. Widas de algumas lin#as ou de algumas
p&ginas, desenturas e aenturas sem nome, untadas em um pun#ado de palaras. Wi-
das brees, encontradas por acaso em liros ou documentosU Eoucault, 200H, p. 1NNF.
iet)sc#e nos $a) atentar ao ecesso de #istria pelo qual a sociedade de modo ge-
ral tem passado, uma #istria que est& ligada ao modo como os acontecimentos s+o
contados pelos encedores como coronis, padres, pr%ncipes, pol%ticos, celebridades.
Jeemos buscar os acontecimentos sub-rept%cios, os sussurros, das idas marginali)a-
das que passariam sem deiar est%gios mas que, ao cru)arem com o poder, produ)i-
ram algum registro, deiaram algum rastro, um ulto. TO que as arranca da noite em
que elas teriam podido, e tale) sempre deido, permanecer o encontro com o poder:
sem esse c#oque, nen#uma palara, sem dLida, estaria mais ali para lembrar seu $ugi-dio traeto. Eoucault, 200H, p. 207F. 9rata-se de escreer uma biogra"a de uma ida es-
quecida, que passa pelas $restas dos discursos estabelecidos. O arquio e testemun#o
podem epressar, portanto, pot(ncias de esquecimento e de memria, de discurso e de
sil(ncio: T'ntre memria obsessia da tradi*+o, que con#ece apenas o & dito, e a de-
masiada desenoltura do esquecimento, que se entrega unicamente ao nunca dito, o
arquio o n+o dito ou o indi)%el inscrito em cada dito, pelo $ato de ter sido enuncia-
do, o $ragmento de memria que se esquece toda e) no ato de di)er ]eu` EAgamben,
1NNG200, p. 145F. 3eria por demais inocente, deiar de epressar as arapucas do u%)o
de erdade que nos enolem sutilmente neste ogo. O arquio nos toma pelo claustro-$bico ecesso: uma srie de aus(ncias ressonantes ondulam o acontecimento, ar pesa-
do pela satura*+o de popula*Kes de $ungos, tra*as e p. em sempre tudo \ui, os pes-
quisadores n+o s+o poetas ou anos sens%eis e puros.
Pis tambm que essas personagens $ossem elas prprias obscurasB que nada
as predispusesse a um clar+o qualquer, que n+o $ossem dotadas de nen#uma
dessas grande)as estabelecidas e recon#ecidas V as do nascimento, da $ortu-
na, da santidade, do #ero%smo ou do g(nioB que pertencessem a esses mil#a-
res de eist(ncias destinadas a passar sem deiar rastro. Eoucault, 200H, p.
20HF.
'scutemos, pois, a escrita de 3olange on*ales Cuciano E3olF, $requentadora da
O"cina de riatiidade do ospital /siqui&trico 3+o /edro e do Ateli( de 'scrita. um
dos nossos encontros 3ol escreeu:
/or que insistir em querer eplicar o que te $oi negado por mais de 40 anos!
neguin#a, ai por mim, eu bem i que semanas atr&s mais uma e) tentas-
te abrir a porta para que aquele ser que estuda e se enole no mundo psi-
quiatral, ele n+o igiou, abreiou o curto tempo de espa*o o qual oc( o$ere-
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ceu pra mais uma e) abrir a porta de teu prprio ser interiori)ado o qual s
tu con#ece, mas que #& anos tenta compartil#ar com outros seres ou tale) o
Lnico ser capa) de te o$erecer ou te dar a c#ance de abrir a tua porta e con-
id&-lo a tomar ca$ eperimental, c#a)in#o eperimental e interiori)al oupor que n+o se banquetear eperimentalmente o interiori)ar oculto o qual os
seres eternos teimam em n+o se dar conta de que est+o com culos escuros
e n+o atinam tir&-los para que possam adentrar em tua casa indiidual Pe
n+o $a) parte desse condom%nio que os rodeia. ECuciano, 2014, p. I4F.
3ol n+o do tipo de paciente que silencia $rente s gritarias de um Tmundo psiqui-
atralU. 3olange usa a escrita como libera*+o de $or*as criatias que a #abitam nela. A
potente escritora teria sido apenas mais uma iente a eistir nesse mund+o a$ora. /o-
rm, 3ol, como c#amada, em algum momento de sua ida cru)ou com o poder. Jeste
cru)amento com o poder psiqui&trico, ela gan#a um nLmero e um prontu&rio. Xm re-
gistro. Receitas, doses, c#&s e ca$s. O que l#e teria sido negado por esse 40 anos! 3ol
mais uma ida real submetida aos regimes disciplinares cotidianos. 'la testemun#a as
entran#as das institui*Kes manicomiais, $a) delas, poesia como uma respira*+o. 3ol
adora a cor rosa. S uma das suas pre$eridas. +o um rosa comum. S um tipo de rosa
singular que ilumina aquelas espcies de espa*os onde proli$era musgo de tempos cro-
ni"cados. Os tons de sua escrita epressam um estilo de composi*+o tetual delirante.
T9e dar a c#ance de abrir a porta e conid&-lo a tomar um ca$ eperimental, c#a)in#o
eperimental ou por que n+o se banquetear eperimentalmente o interiori)ar ocultoU
ECuciano, 2014, p. I4F. 'm suas escrituras e posicionamentos micropol%ticos, uma es-
treita rela*+o entre corpo e sil(ncio, entre epress+o, cria*+o e testemun#o. 3uas escri-
turas in$ames saltam gritos de sil(ncio
os espa*os de abandono #& corpos que o$erecem um testemun#o de sua re-
sist(ncia silenciosa. A eperi(ncia-limite de um corpo que, no maior abando-
no, nasce in"nitamente, constitui uma intensa eperi(ncia de sentido. 'ssa
condi*+odepresen*a de um corpo singular ai condu)ir, simultaneamente, a
um pensamento sobre o corpo como acontecimento e a um pensamento so-
bre o acontecimento do testemun#o de um corpo silencioso que resiste EWile-la, 2010 p. 20F.
Ainda que se estea entregue eperi(ncia de escreer, o que se escree , pratica-
mente, o rumores de uma mude). o entanto, num impens&el sil(ncio na escrita
que est& sua pot(ncia a$etia, e assim sendo, sua pot(ncia de proocar outras inen-
*Kes poss%eis cuas leituras podem ir a e$etuar uma a*+o micropol%tica ou uma sutil
ontade de escritura. A ontade de escreer pode ir a ser uma a*+o micropol%tica.
T'screer encarar a impossibilidade de escreer, , como o cu, ser mudo, Tser eco
apenas da mude)UB mas escreer nomear o sil(ncio, escreer impedindo-se de es-
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creerU E6lanc#ot, 1N4NG1NN7, p. I2F. Xma a*+o micropol%tica enole um agenciamento
no campo relacional e, portanto, social, e no mais das e)es, n+o poss%el silenciar. ',
ao mesmo tempo, num sil(ncio io que poss%el agir. Agir pela $or*a do prprio
deseo e assim n+o se deiar goernar pe*as palaras institucionais que obrigaram si-
l(ncios.
Xm pesquisador $rente a tais a$etos sente-se subtra%do. 3ua pele parece se disten-
der abrindo outros planos de composi*+o numa )ona entre mundos. 'ntre corpos: um
encontro. 'scree ;al 3alom+o: Tagora, entre o meu ser e o ser al#eio, a lin#a de
$ronteira se rompeuU E3alom+o, 1NNH, p. 21F. S neste ponto que escreemos. omo es-
cree Jeleu)e E200F, um narrador nadador que compKe com a onda buscando a $or*a
plena no entre ele e o mar. 'ntre ida e escrita, um modo de pesquisar passa a erter
intensia e intempestiamente. A escrita biogra$em&tica E6art#es, 1N77B 1N71G2005F see$etua nessa )ona de con\u(ncia entre sueito e mundo. ria planos de composi*+o e
consist(ncia a"rmando um constante processo de desterritoriali)a*+o e reterritoriali-
)a*+o. Xm biogra$ema enole encontros com $ragmentos de uma ida, tramas esque-
cidas de #istrias sub-rept%cias. Rac#a as palaras nos leando a pensar outro modo de
escrita, sea ela biogr&"ca, um caso, uma pesquisa. /roblemati)a o modo como escuta-
mos, escreemos e inentamos uma ida. &, pois, uma certa micropol%tica contida
nesses modos de narrar uma ida: escritas com uma ida sempre escapa. Xma ida n+o
encontrada como se encontra uma subst8ncia concreta, mas sim $abulada. A"rma-
mos, ent+o, aquilo que poder%amos c#amar de um ensaio eperimental que \erta comuma escrita na espreita daquilo que n+o se (. Xm teto como passagem. 6ree iagem
que n+o se escora em lgicas racionais, ginga $rente a erdades discursias e se es$or*a
para n+o cair nas armadil#as da moral ou do u%)o cuo campo de possibilidades narra-
tias prooca ustamente a escrita de uma ida a partir de suas imprecisKes, seus $rag-
mentos, seus detal#es aparentemente insigni"cantes, suas intensidades e a$ectos. Ji)
respeito a como o outro se presenti"ca em ns. omo o corpo absore as passagens,
deires e multiplicidades imanentes ao encontro. Algo como escreer agenciamentos
tornando poss%el ao corpo percorrer a enseada louca do esp%rito, onde "c*+o e reali-
dade se conugam. Acontecimento que pode criar a escrita de uma ida.
a obra de Roland 6art#es, n+o se encontra um conceito de biogra$ema pronto e
acabado, mas sim, um modo de opera*+o conceitual e metodolgica, um conceito ope-
rador de um certo modo de escreer, um modo de rela*+o da escritura e com uma ida.
Xma ida esburacada, em suma, como /roust soube escreer a sua na sua
obra, ou ent+o um "lme moda antiga, de que est& ausente toda palara e
cua aga de imagens Eesse \umenorationis em que tale) consista o lado
porco da escrituraF entrecortada, moda de solu*os salutares, pelo negro
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apenas escrito do intert%tulo, pela interrup*+o desenolta de outro signi"can-
te E6art#es, 1N71G2005, p. MWF.
A no*+o de biogra$ema aparece em liros como Roland Barthes por Roland BarthesE1N77F e Sade, Fourier e o!olaE1N71G2005F. o primeiro, 6art#es escree com sua pr-
pria ida, um teto composto por sries de $ragmentos, onde o autor n+o escree so-
mente em primeira pessoa, como seria de se supor, mas sim escree usando a terceira
pessoa do singular.A leitura do liro acontece de $orma distra%da, dispersa, pra)erosa.
6art#es escree passagens de sua ida, detal#es, inten*Kes, $ragmentos, pequene)as.
Assim, ao e$etiar esta opera*+o com a escrita, a"rma a pot(ncia intempestia da ida
pulsante em sua eist(ncia. 'scrita tornada eperi(ncia. +o se trata simplesmente de
uma autobiogra"a, ou biogra"a, e sim um inspiradora eperimenta*+o. Wariando e-
pressKes e acontecimentos de sua prpria ida. omo escree ;al 3alom+o:
'u nasci num canto num canto qualquer duma cidade pequena $ui pequeno
qualquer duma cidade pequena $ui pequeno depois nasci de noo numa cida-
de maior depois nasci de noo numa cidade maior de um modo completa-
mente dierso EF n+o me con#e*o como tendo nascido s num Lnico canto
num Lnico s lugar E3alom+o, 1NI, p. 141F.
O poema segue: Tirando uma pessoa que ai ariando seu localU. ' assim numa
escrita biogra$em&tica. 'la produ) e a"rma tais aria*Kes da escrita e leitura de nossas
idas. o pre$&cio do liro T3ade, ourier e CoolaU, 6art#es escree:3e eu $osse escritor, & morto, como gostaria que a min#a ida se redu)isse,
pelo cuidados de um bigra$o amigo e desenolto, a alguns pormenores, a al-
guns gostos, a algumas in\eKes, digamos: Tbiogra$emasU, cua distin*+o e
mobilidade poderiam iaar $ora de qualquer destino e ir a tocar, maneira
dos &tomos epicurianos, algum corpo $uturo, prometido mesma dispers+o.
E6art#es, 1N71G2005, p. MWF.
'scrita e eperi(ncia nos encontros com uma ida. /ensamos uma escrita biogra-
$em&tica situada longe do deseo de escreer atras de uma cronologia e de seus sig-
nos not&eis de poder identit&rio: TO biogra$ema eclode na rela*+o que estabelecemoscom aquele sobre o qual escreemos, um testemun#o do detal#e e do minLsculoU
Eosta, 2012, p. 12F. Je modo geral, no sentido maior e #egemDnico, uma biogra"a
escrita seguindo padrKes de erdade, cronologia e #istria "os. 6asta obserar algu-
mas biogra"as tidas como ]best-sellers` e eremos que o autor pretende di)er como
aconteceu a ida daquele que ele escree. +o nos "liamos a essa no*+o, pelo contr&-
rio. Je acordo com ran*ois Josse, To biogra$ema surge numa slida rela*+o com o de-
saparecimento, com a morteB remete a um tipo de arte da memria EF a eoca*+o pos-
s%el do outro que & n+o eiste.U EJosse, 200N, p. I0HF. 9rata-se pois de um eerc%cio de
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escrita que gan#a $Dlego entre seus descamin#os e pot(ncias, suas inspira*Kes e $racas-
sos. 3opro de sentidos na dire*+o de uma produ*+o narratia que enola a eperi(n-
cia tal como $oi iida e a eperi(ncia de escre(-la, compondo um teto como passa-
gem, uma paisagem ao ento. '$etua uma opera*+o sens%el do pensamento: a narrati -
a se tornando a prpria eperi(ncia. T'screer tateando, suspendendo a aide). 'pe-
rimentar ir perambulando, de posse de um instinto rptil que & sulcando o pensamen-
to, en$eiti*ando-o com seu modo coleante de eistirU E/reciosa, 2010, p. 25F .'s$arrapa-
do narrador toca seus limites, eperi(ncia de escrita onde permuta continuamente as
impossibilidades da escrita. 'star no instante, senti-lo passar, cont%nuos instantes que
passam. Jeir e eperi(ncia na escrita acontecem como uma passagem: um teto que
passa e que pode compor ou n+o com outras o)es e corpos, mas que n+o cessa de se-
guir di$erenciando-se medida que se l(. A prpria palara escol#ida carrega em si, de
uma $orma ou de outra, a intensidade iida no instante. Ta)er ibrar sequ(ncias,
abrir a palara para intensidades interiores inauditas, em resumo, um uso intensio, a-
signi"cante da l%nguaU EJeleu)e e ua>ari, 1N77, p. I4F.
Roland 6art#es tambm cita os biogra$emas no liro TA 8mara laraU.esse, o
autor epressa seu deseo de escreer sobre $otogra"a: Tgosto de certos tra*os biogr&"-
cos que, na ida de um escritor, me encantam tanto quanto certas $otogra"asB c#amei
esses tra*os de Tbiogra$emasUB a otogra"a tem com a istria a mesma rela*+o que o
biogra$ema com a biogra"a.U E6art#es, 1N4, p. 51F. a esteira do deseo bart#esiano,
tomemos a $otogra"a como Tuma agita*+o interior, uma $esta, um trabal#o tambm, apress+o do indi)%el que quer se di)erU E6art#es, 1N4, p. I5F.
'screer uma ida atentando s sutile)as imanentes ao seu espa*o-tempo buscan-
do epressar o indi)%el que quer se di)er, sendo o escritor como aquele que est& unto,
que $a) passagem, gesto de eperimentar o acontecimento, de costurar palara por pa-
lara na super$%cie do teto. 'screer a"rma a eperi(ncia, o gesto, intensidade e geo-
gra"a. A"rma uma )ona de incerte)a entre presen*aGaus(ncia, escritorGescrituraGleitor.
O bigra$o-arquiista costura com sries de erdades $r&geis. Xm gesto tico. TO gesto
do autor mani$esta-se na obra qual d& ida, como uma presen*a incongruente e es-tran#aU EAgamben, 200H, p. NHF. Stica que lea o escritor a abandonar a #egemonia da
]$orma-#omem` e embarcar entre deires minorit&rios, inumanos e plurais. 'screer T
desertar do eu, essa $orma #egemDnica, personalgica, edipiana, neurtica, esse estado
doentio que a literatura insiste em perpetuar-seU E/elbart, 2000, p. 71F. Pando encon-
tramos uma ida colocada margem, encontramos a prpria margem em ns, quantos
discursos #ierarqui)antes s+o acometidos diariamente, quantas idas s+o diagnostica-
das in$ames e indignas ao con%io social e que, portanto, deem ser enclausuradas e
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esquecidas. /retende-se aqui uma escritura menor, que naega pelas brec#as e se $a)
estrangeira ao discurso #egemDnico, sea ele psiqui&trico, religioso ou moral.
9& bom V S isso a% 9ranque a porta e n+o deiem que iolem, que leem dequalquer maneira teus pertences enigm&ticos o qual com certe)a capa) de
serir como primeiro passo da eolu*+o de seres incapa)es em capa)es de
adentrar o nosso re$Lgio subterr8neo de tesouros ps%quicos com o qual pode
$a)er a di$eren*a, a grande di$eren*a de adentrar e des$rutar dos saberes ini-
magin&eis e inacredit&eis os quais nem por um segundo se quer ocupou
sua menteB seres que n+o se d+o conta das muitas idas descartadas e negli-
genciadas por oc(s mesmos que ocupam o mesmo posto de resgatadores de
seres de mentes que parecem ser dani"cadasB pena que muitas e)es oc(s,
muitos ou alguns, s+o os dani"cadoresB e se n+o s+o, por enquanto at esse
momento, 14:42 do dia 22G0HG11, t+o pouco conseguiram ser os c#aeiroscompetentes capa)es de resgatar a c#ae quebrada, ou recuperar a c#ae per-
dida, dessas tantas portas que precisam ser abertasB o tempo t& se esgotando,
pois & come*ou a contagem regressia e, in$eli)mente, a muito tempo ECuci-
ano, 2014, p. I5F.
J gi3a errante e onl3Bo
Xma conclus+o n+o signi"ca di)er "nali)a*+o. 3abemos que desse ponto a que c#ega-
mos, & se desdobram outras pregas em nosso #ori)onte eperimental. Re$ere-se a umdi)er cartogr&"co, a um registro das passagens em tempo real, mesmo que se conside-
re que esse tempo real corresponda ao ponto denso e espesso dos len*is de todo um
passado. A eperi(ncia desse di)er ecede a delimita*+o de obetos, de coisas e estados
de coisas, n+o se con"gurando em contornos precisos e atemporais. Pem canta nela,
a o) do tempo epressa em corpos-de-passagem, o) que sempre ir& ecoar como in-
teren*+o atmos$rica, catalisando instantes de passagem e acontecimentos disrupti-
os componentes do incessante murmLrio que enole e impregna as $ormas is%eis e
di)%eis & institu%das. esse ponto, a eperi(ncia narratia elide o que usualmente
c#amamos de autor solipsista, tornando-se dispositio de Tacesso ao plano comparti-
l#ado da eperi(nciaU, como nos mostra 3%lia 9edesco E201I, p. I00F. A dire*+o capta-
tia e epressia dos acontecimentos que \uem nos processos da ida e das i(ncias
passa a ser guiada por um ethosque altera pela iners+o o prprio sentido tradicional
do mtodo Emet"-hdosF, sendo que ao ser pensado como hdos-met", conerte-se em
Taposta na eperimenta*+o do pensamento V um mtodo n+o para ser aplicado, mas
para ser eperimentadoU E9edesco, 201I, p. I01F. A narratiidade comporta uma pol%ti-
ca, epressa Tuma posi*+o que tomamos quando, em rela*+o ao mundo e si mesmo, de-
"nimos uma $orma de epress+o do que se passa, do que aconteceU E/assos e 6enei-
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des, 200N, p. 151F. @uda-se o modo de di)er, con$ere-se palara um outro regime de
di)ibilidade, ela rac#ada e liberada das prisKes dos signi"cados eistentes, abre-se em
noas coneKes sint&ticas, e$etua-se como abertura para o n+o-di)%el dos discursos i-
gentes, esparge respingos que nossos ouidos, nossas bocas e ol#os amais ousaram
eperimentar. essa abordagem, o narrar institui-se como agenciamento coletio de
enuncia*+o.
O comum, agora, di) respeito a essa eperi(ncia coletia em que qualquer um
nela se engaa ou em que estamos engaados pelo que em ns impessoal.
@esmo quando iido, enunciado, protagoni)ado por uma singularidade , a
narratia n+o remete a um sueito E/assos Z 6eneides, 200N, p. 1HF.
O que podem ent+o as narratias "ccionais para a /sicologia 3ocial que se debru-
*a sobre os restos de idas dos in$ames macerados pela m&quina disciplinar! /odeapresentar noas possibilidades que reertam os destro*os de idas n+o ditas em noas
pot(ncias do di)er. +o apenas para as idas & a muito islumbradas sobre a lu) da in-
$8mia, mas tambm para os modos de eist(ncia dos antes clebres pesquisadores e
pro"ssionais da psicologia que tanto & $alaram para $a)er calar aos incautos e indDmi-
tos. A pro$ana*+o da sacralidade cient%"ca pela "c*+o um eerc%cio constante de
reinen*+o da in$8mia em ns mesmos: uma pr&tica #eterotpica Eoucault, 2001F, uma
eperimenta*+o de cuidado de si Eoucault, 2004F que acontecimentali)a Eoucault,
1N7F a [ns[ e a [eles[ em um s gesto.
#e
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Jeleu)e, illes E1NHNG1N75F. gica do Sentido. 3+o /aulo: 'd. /erspectia 3.A..
Jeleu)e, illes E1NN7F. r8tica e cl8nica. 3+o /aulo: 'd. I4.Jeleu)e, illes E200F. 0n 7edio de Spinoza.6uenos Aires: actus.
Jeleu)e, illes Z ua>ari, li E1N77F. 9a:a* por uma literatura menor. Rio deYaneiro: mago.
Jeleu)e, illes Z ua>ari, li E1N0G1NN5F. 7il #lat;s. ari, li E1N0G1NN7F. 7il #lat;s, +ol. 5. Rio de Yaneiro: 'd. I4.
Josse, ran*ois E200NF. ' Desa2o Biogr"2co. 0scre+er uma +ida. 3+o /aulo: 'ditora daX3/.
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oucault, @ic#el E2004F. A tica do cuidado de si como pr&tica da liberdade. 'm @anoel6arros da @ota EOrg.F, Ditos 0scritos < Ctica, Seualidade, #ol8tica. Rio de
Yaneiro: orense Xniersit&ria.
oucault, @ic#el E200HF. 'm: @ota, @anoel 6arros da EOrg.F. Ditos e 0scritos o ntempesti+a* da utilidade edes+antagem da histria para a +ida. Rio de Yaneiro: Relume Jumar&.
/assos, 'duardo Z 6eneides, Regina E200NF. /or uma pol%tica da narratiidade. 'm'duardo /assos, Wirg%nia fastrup Z Ciliana 'sccia EOrgs.F, #istas do m4todo
da cartogra2a. #es(uisa-inter+en%>o e produ%>o de su/eti+idade Epp. 150-171F./orto Alegre: 'd. 3ulina.
/elbart, /eter /al E1NNF. ' tempo n>o-reconciliado. 3+o /aulo: /erspectiaGapesp.
/elbart, /eter /alE2000F. A mara de ecos. 3+o /aulo: 'ditora I4.
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9edesco, 3%lia E201IF. A entreista na pesquisa cartogr&"ca. A eperiencia do di)er.Fractal, Re+. #sicol., @5E2F, 2NN-I22.
Wilela, 'ugenia E2010F. Silncios ang8+eis* corpo, resistncia e testemunho nos espa%os
contemporneos de a/andono. /orto: 'di*Kes A$rontamento.;#ite#ead, Al$red ort# E1N2NG1N5HF. #roceso ! realidad. 6uenos Aires: Cosada.
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