NOTAS SOBRE AS FUNÇÕES DA CATEGORIA LIBERDADE NO ROMATISMO LITERÁRIO BRASILEIRO DAS DÉCADAS DE 1840, 1850, 1860 E NO
MODERNISMO LITERÁRIO DA DÉCADA DE 1920
Gabriela TheophiloMestranda do PPGHIS – UFRJ/Bolsista FAPERJ
Como poucos, eu conheci as lutas e as tempestades. Como poucos eu amei a palavra Liberdade e por ela briguei.
Oswald de Andrade.
Os periódicos literários, de caráter marcadamente programático, que circularam
em diversas regiões do Brasil ao longo da segunda década do século XX foram
fundamentais para a divulgação, a discussão e a delimitação de propostas modernistas,
principalmente entre jovens letrados que tiveram contato com os debates das
vanguardas européias do período.
Essas revistas foram utilizadas, principalmente, como espaços de discussão, em
que se disputava em torno de definições de literatura modernista. Sendo assim, os
escritores lançavam preceptivas literárias que eram prontamente comentadas,
corroboradas ou censuradas pelos outros artífices do movimento. Alguns argumentos,
objetivos, estratégias de escrita e de apresentação de programas foram recorrentes, no
entanto, em todas as revistas e entre os diversos escritores. Uma dessas constantes, por
exemplo, foi a busca de um nacionalismo literário que se apresentava quase como um
dever cívico, como se nota nas palavras de Sérgio Milliet e na apresentação da revista
Verde: “o sentimento nacionalista na arte é mais do que útil, é indispensável,
imprescindível”; (TERRA ROXA E OUTRAS TERRAS, n° 7, p. 3) “abrasileirar o
Brasil – é o nosso risco. P`ra isso é que a Verde nasceu. Por isso é que a Verde vai
viver. E por isso, ainda, é que a Verde vai morrer”. (VERDE, n° 1, p. 9)
Dentre as estratégias de escrita e de apresentação de programas nas revistas, uma
das mais notáveis e recorrentes foi a comparação do programa nacionalista modernista
com os programas de certo romantismo literário, especialmente com o chamado
romantismo indianista. As referências de comparação são, claro, os escritos deixados
por Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias e José de Alencar, principalmente. No
entanto, em conjunto, pouco importa esse referencial, na medida em que se percebe uma
apropriação e uma reinvenção desse romantismo, de modo que ele sirva como
facilitador da exposição das preceptivas modernistas. Há um romantismo deglutido,
para usar a metáfora de Oswald de Andrade, e reinventado como alteridade, ou seja,
como um outro a partir do qual o modernismo, tanto por aproximação como por
negação, pôde se configurar e apresentar-se ao público.
As comparações por negação ou distanciamento são mais constantes na Revista
de Antropofagia, devido às representações do índio. O índio do outro romântico, então,
era dado como mítico, de modo que o índio do modernismo se produzisse como mais
verdadeiro: “O neo-indianismo de hoje abandonou todo o romantismo indianista para
chegar ao puro realismo indianista, com a preocupação máxima de desidilisar, de
despopeisar os nossos índios e olhá-los como são ou deveriam ter sido antes da
catequese e da conquista1. (REVISTA DE ANTROPOFAGIA, n° 8, 2° D) Também nas
palavras de Oswaldo Costa essa perspectiva fica clara: “a antropofagia não é um
decalque romântico do índio. Ela arrancou do bravo tupy das ficções literárias a camisa
dos sentimentos portugueses e as missangas da catequese. Botou ele novamente nu,
como convinha. (...) A antropofagia nada tem que ver com o romantismo indianista.”
(REVISTA DE ANTROPOFAGIA, n° 9. 2° D)
Nem só a partir de negações e distanciamentos, porém, essa alteridade se
configurava. Rubens de Moraes, por exemplo, escreveu na Klaxon que “o que nos
importa é traduzir a nossa épocha e a nossa personalidade”. Sendo assim, de acordo com
o escritor, ser moderno “não quer absolutamente dizer que condemnamos os clássicos,
românticos, parnasianos e todos os passadistas”. Olavo Bilac, Castro Alves, Gonçalves
Dias foram, portanto, para Rubens de Moraes, grandes poetas, na medida em que
souberam traduzir sua época: “Escreveram obras românticas e parnasianas na epocha do
romantismo e do parnasianismo. Foram modernos! Bravo!”. (KLAXON, n° 5, p. 9) Já
Mario de Andrade, na Estética, em Carta aberta a Alberto de Oliveira critica “os
imitadores da França” que, de acordo com ele, “reagiram contra a forma relativamente
desleixada dos românticos”. Segundo Andrade, a obra deixada pelos românticos “é de
função social, religiosa, sexual, nacional. E só pode ser assim a arte de um país que
principia”. E remata: “Arte de ação. O romantismo agiu errado, mas agiu.”.
(ESTÉTICA, n° 3, p. 333) A comparação mais vivaz e eloquente talvez seja, entretanto, a
estabelecida por Motta Filho na Terra Roxa e outras terras:
E hoje que a modernidade domina, penso no que podemos fazer para que o Brasil possa largar de vez a mamadeira cômoda de leite importado da Europa! Essa, aliás, foi a preocupação louvável do Romantismo. Magalhães veio e gritou contra a França e o extrangeirismo. Procuraram mesmo os literatos dessa estirpe illustre reagir contra a grammática enrolada e enjoada de Sá Miranda e Gil Vicente. Descuidaram-
1ATHAYDE, Tristão de. Sobre a antropofagia. In: Revista de Antropofagia, 2° dentição, número 8, 1929.
na em affectação e o próprio Gonçalves Dias prestimoso no tratar do fraseado clássico protestava em favor das construcções rebeldes do brasileirismo ingênuo. (...) A obra política de nossa independência foi obra do Romantismo que creava individualidades e portanto, creava pátrias. (...) Ora, o nacionalismo constitue programma essencial de todos os povos livres. Não o crearam por capricho, mas o aceitaram como uma fatalidade. Cresceu no Romantismo. E se repete agora, brilhantemente! (TERRA ROXA E OUTRAS TERRAS, n° 2)
Nacionalismo que se repete. De fato, quando se compara os textos
programáticos do romantismo com as revistas modernistas percebem-se diversas
convergências. A luta contra o classicismo2, a recusa a modelos previamente
estabelecidos, a preconização da experiência em detrimento da erudição, certo
antilusitanismo, exaltação da natureza e do índio como “legítimo tipo nacional” são
algumas delas. Os artífices de ambos os movimentos procuraram legitimar sua busca
pela “independência cultural” a partir da construção literária de representações do
passado colonial com base em narrativas dos séculos XVI, XVII e XVIII,
principalmente.
Os escritores modernistas, além de Freud, Nietzsche, Proudhon, Marx, entre
outros, também consumiram a literatura produzida no Brasil ao longo do século XIX,
talvez mesmo em função dessa convergência de interesses. Manuel Bandeira,
Guilhermino César e Cassiano Ricardo produziram, inclusive, estudos acadêmicos sobre
o romantismo.3 “Sou romântico? Concedo”, perguntava e respondia a si mesmo
Bandeira no poema Sextilhas românticas. (1993, p. 193)
No que concerne às representações do passado colonial, acima mencionadas, há
algumas tópicas recorrentes nos textos programáticos escritos por Gonçalves Dias, José
de Alencar e Gonçalves de Magalhães que foram constantemente ativadas nas revistas
modernistas. Essas tópicas exerceram funções diversas nos dois momentos, é claro, e
foram informadas por perspectivas epistemológicas também diversas, como será visto
adiante, com ênfase na questão da liberdade. Os argumentos utilizados, no entanto,
foram muito similares.
Gonçalves de Magalhães, por exemplo, no ensaio Sobre a história da litteratura
do Brasil, de 1836, ativa alguns desses argumentos que serão largamente apropriados na
literatura produzida posteriormente e que farão parte do conjunto de argumentos
2 No caso do romantismo a luta era contra a temática pagã clássica e não contra a forma, é claro.3 CESAR, Guilhermino. Historiadores e críticos do romantismo, 1A contribuição européia: crítica e história literária. São Paulo: EDUSP, 1978.BANDEIRA, Manuel. A poética de Gonçalves Dias. Academia Brasileira de Letras: Conferências (1948); BANDEIRA, Manuel. Gonçalves Dias: esboço biográfico. Poesia e Prosa. 2 Vol. Rio de Janeiro: Aguilar, 1958. RICARDO, Cassiano. Gonçalves Dias e o indianismo. In: COUTINHO, Afrânio. (org). A literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1968, Vol. 3.
nacionalistas presentes nas revistas modernistas da década de 1920. No ensaio de
Magalhães, Portugal figura como um país cuja burocracia seria composta por homens
ignorantes, ineficientes e mal intencionados: “O Brasil descoberto em 1500, jazeo 3
séculos esmagado debaixo da cadeira de ferro, em que se recostava um governador
colonial com todo o peso de sua insufficiência e de sua imbecilidade. Misquinhas
intenções políticas, por não avançar outra cousa(...)”. Povoado e administrado por
pessoas desse tipo, a “nação nascente” era, então, “baseada sobre todos os gêneros de
vícios e crimes”. Sendo assim, segundo Magalhães, entre índios - perseguidos “com
ferro e fogo” - e portugueses, a barbárie recairia sobre os últimos. Baseando-se na
autoridade do jesuíta Simão de Vasconcellos, afirma: “da barbaridade de taes homens,
traça-nos um Vasconcellos um quadro, quando diz: ‘os portuguezes, qua alli estavam
(...) viviam ao modo de gentios; e os gentios com o exemplo destes iam fazendo menos
conceito da lei dos Christãos (...)”. (1836, p. 138-139-140)
A categoria “liberdade” assume no ensaio de Magalhães uma importância
central. Os negros, por exemplo, são amaldiçoados porque não são livres e, nesse
sentido, a escravidão, além de ser “tão contraria ao desenvolvimento da industria, e das
artes” é, também, “tão perniciosa à moral”. (1836, p. 141) As ciências, a poesia e as
artes são, segundo Magalhães, “filhas da liberdade”, e por isso fogem do “paiz
amaldiçoado onde a escravidão rasteja, e só com a liberdade habitar podem”. (1836, p.
142-143) Sendo assim, também a submissão de um país a outro só pode ser prejudicial.
No Brasil, portanto, as idéias teriam começado a se desenvolver com o fim do domínio
português: “tu [Brasil] afastaste do teu collo a mão extranha, que te suffocava, respira
livremente (...) cultiva as sciencias, as artes, as lettras, a industria, e combate tudo que
entreva-las pode”. (1836, p. 146) A poesia do Brasil, entretanto, para Magalhães, ainda
não havia se tornado, como deveria – e como ele mesmo estava tentando fazer -, uma
“indígena civilizada”. Ela ainda era “uma grega, vestida à francesa, e à portugueza, e
climatizada no Brasil”. (1836, p. 146) Deste modo, o que dava realce a alguns dos
poetas “brasileiros” era, segundo o escritor, não o uso de classicismos, e sim “outro
gênero de bellezas naturaes, não colhidas nos livros, mas que só a Pátria lhes inspirara”.
(1836, p. 147)
Não por acaso esse texto é considerado, juntamente com o Résumé de l’histoire
littéraire du Portugal, suivi du résumé de l’histoire littéraire du Brésil4, de Ferdinand
4 Publicado em Paris, em 1826. A tradução para o português (apenas dos capítulos relativos à literatura brasileira) foi realizada em 1968, por Guilhermino Cesar.
Denis, fundador do romantismo literário brasileiro. Os trechos acima destacados são
estratégicos, já que apresentam algumas tópicas que aparecem recorrentemente em
textos de Gonçalves Dias e José de Alencar e aparecerão, posteriormente, reelaboradas
nos periódicos modernistas.
De acordo com Dias, por exemplo, os reis de Portugal, com “os olhos sempre
cravados no oriente”, teriam deixado por muito tempo o Brasil “a mercê dos seus
deportados e aventureiros”. É por isso que, segundo ele, as primeiras páginas da história
do Brasil estariam “alastradas de sangue, mas de sangue innocente, vilmente
derramado”. Os “aventureiros” e “deportados” agiriam unicamente pela cobiça, “cobica
infrene, insaciável, que não bastavam fartar os fructos de uma terra virgem, a producção
abundantissima do mais fértil clima do universo, as mais abundantes minas de metaes e
pedras preciosas”. E continua, incisivo: “era por cobiça que os governadores vinhão a
estas terras tão remotas onde nenhuma glória os esperava (...) era por cobiça que os
próprios missionários deixavão a frisa e a orla das roupetas nestas florestas sem
caminho, porque tantas privações passavão, porque soffrerão tantos martyrios.
(GUANABARA, 1850)
Alencar, por sua vez, assim escreve na primeira das Cartas sobre a
Confederação dos Tamoios: “o resto do tempo leio; mas não leio no livro dos homens, e
sim no livro da natureza, onde todos os dias encontro um novo pensamento, uma nova
creação”. (1856, p. 12) Essa passagem lembra muito o último trecho aqui destacado do
ensaio de Magalhães. A sugestão da observação da natureza em detrimento do recurso
aos livros, que poderiam vir a modelar a arte a ser produzida, já se encontrava, assim, no
Resumo de Denis: “nessas belas paragens, tão favorecidas pela natureza, o pensamento
deve alargar-se como o espetáculo que se lhe oferece (...) não procurando outro guia que
não a observação”. (1968, p. 31)
Segundo Couto de Barros e Antônio de Alcântara Machado, escrevendo para a
revista Terra Roxa e outras terras em 1926, os estrangeiros contemporâneos que
vinham ou habitavam o Brasil constituíam “uma gente que quer enriquecer. Mais nada.”
Para os escritores, então, o Brasil fora “dessa gente” sempre “mansa vítima”. De acordo
com eles “o brasileiro, ainda indefinido, do século XVI, não aceitava os ensinamentos
cristãos devido ao feio exemplo que lhe davam os europeus, ávidos de dinheiro e
volúpia.” Eles protestam, então, contra o “desaforo que já dura quatro séculos”, já que,
três séculos depois, o país continuava a receber “aos milhares, cavalheiros da mesma
estofa”: “chegam aqui sem tostão, ficam milionários, dão maus exemplos aos indígenas,
e depois cospem na tijela com que se empanturraram”. (TERRA ROXA E OUTRAS
TERRAS, n° 2, capa) Paulo Prado, por sua vez, no quinto número da mesma revista,
também em 1926, ao comentar a entrega de uma carta de José de Anchieta ao Museu
Paulista, não se furta de dizer que se aquele fosse um museu de arte, ele aconselharia
aos modernistas que “fugissem delle como da peste”. Segundo Prado, os “Templos da
arte” são “perigosos e funestos”, de modo que sua entrada deveria ser proibida aos
menores de quarenta anos, “idade já serena em que não se sabe mais imitar”. Para os
moços, portanto, “a lição” estava “no dia radioso de lá fora”. (TERRA ROXA E
OUTRAS TERRAS, n° 5, capa) Em 1927, Henrique de Resende, em artigo cujo tema
era a recepção da revista Verde, de Cataguazes, pelo público, aproveita para fazer uma
exortação a seus leitores: “urge começar tudo de novo. Ao público incumbe esquecer o
que já aprendeu. Esquecer, sobretudo, os clássicos.” (VERDE, n° 2, p. 7)
Não se deixar aprisionar pelos modelos canônicos foi, portanto, uma questão
extremamente importante tanto para os escritores românticos como para os modernistas.
Um escritor deveria, portanto, “buscar a inspiração” tanto para os temas quanto para a
forma de sua literatura “nas fontes da nacionalidade”, e não nos livros. As fontes da
nacionalidade escolhidas foram, prioritariamente, o índio e a natureza. Na verdade, os
conceitos de “índio”, “natureza” e “liberdade” se confundiam, e configuravam a trilogia
fundamental para a formulação de representações do passado colonial com o objetivo de
conquistar e justificar a independência cultural. O objetivo dos escritores dos dois
movimentos literários foi libertar o Brasil do que eles entendiam como sendo as amarras
culturais européias. No entanto, as circunstâncias sociais e históricas em que eles se
articularam foram bem diferentes.
As ligações entre iluminismo e romantismo já foram largamente comentadas e
estudadas. Diz-se, mais especificamente, que as críticas estabelecidas por Jean Jacques
Rousseau aos ideais iluministas - como o ideal de civilização em contínuo progresso –
e, também, à sociedade burguesa nos moldes da Revolução Francesa, foram apropriadas
pelos escritores que articularam o conhecido Sturn und Drang, movimento artístico-
literário tido como marco do romantismo europeu. Considerando-se de modo muito
breve, o Sturn und Drang foi articulado por jovens letrados da Prússia, cujas críticas se
dirigiram à corte de Frederico II, tida por eles como artificial porque tomara o ideal
francês de civilização como modelo. Os escritores do Sturn und Drang, entre eles o
jovem Goethe, Herder e Schiller, opuseram, então, à zivilisation francesa, o conceito de
Kultur. Esse conceito incluía uma busca de raízes nacionais. Nesse sentido, o projeto de
Kultur valorizou a cultura popular e a história nacional. Na medida em que se
conformou em oposição ao iluminismo francês, o Sturn und Drang, como o próprio
nome sugere (Tormento e ímpeto) é, portanto, normalmente caracterizado por seus
aspectos de “pessimismo”, “irracionalismo” e “ilusão”. O romantismo alemão, num
sentido geral, difundiu tanto discussões em torno da estética, da subjetividade do artista,
e de categorias como “natureza”, “originalidade” e “gênio”, quanto àquelas que
associavam homem, território e cultura, sendo que essa última, em todas as suas
expressões, foi elevada, então, a manifestação do espírito nacional. Em oposição ao
cosmopolitismo iluminista, conformou-se o nacionalismo. Esse romantismo nacionalista
iria, posteriormente, desenvolver-se também em França, especialmente após a queda de
Napoleão.
No Brasil, os escritores do chamado romantismo indianista apropriaram-se de
modo muito particular destas discussões que configuraram o romantismo europeu.
No já citado Resumo, de Ferdinand Denis, ressoa, claramente, a crítica rousseauniana à
civilização. Nesse texto o índio, por exemplo, é valorizado por sua liberdade e por sua
proximidade com a natureza. Nesse sentido, o poeta não poderia buscar a inspiração, o
“pensamento primitivo”, nas “hordas que a civilização destruiu lentamente, as quais ocultam as
desgraças da raça americana nas plagas a que foram confinadas”. Somente penetrando-se nos
seio das florestas, interrogando-se as nações livres, deixando o pensamento se alargar com o
espetáculo oferecido, enfim, deixando-se arrebatar por “essa natureza, muito favorável ao
desenvolvimento do gênio”, é que o brasileiro estaria apto a produzir uma literatura original.
(1968, p. 32-33) Denis, portanto, associa a civilização à decadência, à destruição e à
artificialidade. No Resumo, as cidades também se associam à civilização, à qual se opõe a
natureza associada, por sua vez, à liberdade, que deve guiar um povo jovem. (1968, p. 30)
As preceptivas de Denis, principalmente aquelas que pretendem nortear a
produção de uma literatura nacional, foram largamente apropriadas pelos artífices do
romantismo literário brasileiro. Embora Denis não desvalorize, de todo, os primeiros
exploradores que teriam, “corajosamente”, penetrado no “âmago das florestas virgens,
enfrentando audaciosamente animais desconhecidos, visitando nações que poderiam
destruí-los” ressalta, entretanto, que eles “não ambicionavam senão o ouro”. (1968, p.
32) O argumento que atesta a cobiça dos conquistadores também será, como se viu,
largamente utilizado pelos românticos, conformando, porém, um antilusitanismo
estratégico - que funcionaria no sentido de legitimar a independência política e cultural
da nação – antilusitanismo que não chega a ser acionado pelo viajante francês.
Não se pode negar, portanto, a importância do Resumo da história literária do
Brasil para o romantismo brasileiro. Há, no entanto, algumas importantes diferenças a
serem explicitadas. Os artífices do romantismo brasileiro, diferentemente de Denis,
estiveram envolvidos (ainda que isto não determine completamente seus escritos) num
projeto político oficial de fundação da nação.
Diferentemente dos escritores europeus, entre os artífices do romantismo
literário brasileiro importava, sobretudo, fazer com o que Brasil pudesse figurar como
uma civilização entre as nações européias, para estar à altura delas. Sendo assim, o
romantismo brasileiro foi, segundo Bernardo Ricupero, “um romantismo de meios, que
proclama, como o europeu, a especificidade de suas sociedades nacionais, mas que
pretende, ao fim do caminho, encontrar a civilização européia”. (2004, p. XXVII-
XXVIII)
Não houve, portanto, entre os indianistas brasileiros, críticas diretas à
civilização. Encontram-se críticas e denúncias diretas e, por vezes, agressivas, aos
crimes da colonização portuguesa com relação, por exemplo, aos indígenas. Afinal,
tornava-se premente a construção de um passado de colonização opressora que pudesse
legitimar a necessidade de se fundar a nação e, claro de se assegurar a monarquia. Para
estes escritores as práticas civilizatórias eram, então, opostamente às idéias expostas por
Denis, a cura dos males impostos pelo domínio português. Deve-se lembrar, nesse
ínterim, que eles debateram as políticas indigenistas que lhes foram contemporâneas e
que a discussão acerca da possibilidade de integrar o índio à sociedade perpassava,
justamente, por seu potencial de civilidade. Pode-se, inclusive, traçar um paralelo entre
as práticas dos missionários católicos no período colonial e o aspecto pragmático dos
textos desses autores, no que diz respeito aos índios. Enquanto para aqueles se tratava
de incorporar (hierarquicamente) – através da conversão - os índios ao Império
português (concebido enquanto corpo cristão), para estes tratava-se de integrá-los
(também hierarquicamente) à civilização, através da catequese. No entanto, às
categorias cristãs definidoras da humanidade5 são adicionadas outras, derivadas de uma
razão iluminista, que definem o homem liberal cristão e civilizado, tais como
“liberdade”, “propriedade” e “religiosidade”. (TURIN, 2009, p. 23)
5Princípio de não contradição e as três potências da alma: memória, vontade e entendimento. Ver: NÓBREGA, Manuel da. Diálogo sobre a conversão do gentio. In: LEITE, Serafim. Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil. São Paulo: Comissão do IV centenário da cidade de São Paulo, 1954, vol II, p. 317 à 345.
Já é sabido o esforço empregado ao longo do século XIX, principalmente a partir
do Segundo Reinado, para a escrita de uma História Nacional. Tornada projeto oficial a
partir da Fundação Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, a construção de
um passado que representasse uma nacionalidade essencial, atemporal e ahistórica e no
qual pudesse ser inscrito o telos de uma nação independente e de uma monarquia
triunfante tornava-se necessária na medida em que possibilitaria a inclusão do Brasil no
“concerto das nações”, a partir da demonstração da“ marcha sucessora da civilização da
Terra de Santa Cruz”, segundo palavras de Raimundo José da Cunha Matos. (Apud.
KODAMA, 2009) Neste sentido, tornava-se urgente a reunião de vestígios e
documentos que prestassem a esta construção, função que ficara a cargo,
principalmente, dos membros do IHGB. Os letrados envolvidos nestas discussões, para
poderem afirmar a nação brasileira e sua individualidade e, desse modo, inseri-la numa
história universal das civilizações, incumbiram-se da missão de reunir estes vestígios e
escrever este passado, tendo em vista que a civilização tornara-se objeto e sujeito, por
excelência, da História, enquanto a barbárie estaria associada à sua ausência.
As artes e a literatura que, na concepção romântica, se desenvolvem a partir de
uma origem determinada, associadas a um território (cuja unidade também se pretende
ahistórica) e rumam, inexoravelmente, à adequação completa ou à manifestação plena
do espírito nacional, precisavam ter, portanto, do mesmo modo, suas origens
perscrutadas e sua história escrita. Não por acaso, Gonçalves de Magalhães conferia
importância a seu ensaio na medida em que a literatura seria, segundo ele, o reflexo
progressivo da inteligência de um povo e única representante de seu caráter na
posteridade. Sendo assim, o objetivo principal do ensaio seria, de acordo com
Magalhães, “conservar os momumentos de nossa glória para as raças futuras, a fim de
que não nos exprobem nosso desmazelo e de bárbaros não nos accusem”. (1836 p. 137)
Na apresentação da revista Guanabara, da qual participou Gonçalves Dias, esse
objetivo também fica claro: “A nossa litteratura terá as bases monumentaes que este
paiz proporciona, terá o seu cunho de nacionalidade (...); então será maior o catálogo
dos mortos, que é o índice dos monumentos da glória, os quadros do passado, os pontos
luminosos da história”. O elogio à civilização surge em seguida: “O país que deu ao
mundo Durão e Caldas (...) promette alguma cousa mais, quando o tempo for mais
apreciado que o ouro, e o homem se considerar como a primeira alavanca da civilisação,
como motor de todo impulso progressivo”. (1850)
Os escritos de Magalhães e Dias sugerem que o modelo de civilização a que se
almejava era, de fato, o francês. O antilusitanismo, enquanto argumento nacionalista,
ganhava mais força se associado à exaltação da civilização francesa. Basta lembrar as
conseqüências da invasão de Portugal por Napoleão. Sendo assim, Magalhães afirma
que “hoje o Brasil é filho da civilização franceza (...) eis aqui como o Brasil deixou de
ser colônia, e a cathegoria de Reino Irmão foi elevado. Sem a Revolução Franceza, que
tanto esclareceo os povos, este passo tão cedo não se daria.” Para o escritor o Brasil
estava, então, “olhando para a França”, de modo que não iria retrogradar, “tomando esta
grande mestre por guia”. (1836 p. 150-151) Não se deve esquecer, no entanto, que estes
escritores ocupavam uma posição delicada na hierarquia social do Império e dependiam,
em grande medida, do mecenato e da proteção do Imperador - de ascendência
portuguesa – para continuar escrevendo. Sendo assim, tanto os duros ataques aos
portugueses quanto às eventuais críticas às políticas da monarquia eram, algumas vezes,
acompanhados de argumentos conciliadores que procuravam, de certo modo, amenizar
o combate inicial.
Quais seriam, finalmente, as ligações entre índio, história, civilização e
liberdade?
Como já foi dito, para figurar no “concerto das nações”, o Brasil teria que ter
uma literatura com caráter próprio e uma História. Pode-se dizer que no romantismo
indianista brasileiro o “eu” romântico se converte no Estado-indivíduo de Ranke. Para
Ranke a harmonia verdadeira estaria calcada na autonomia de cada nacionalidade,
expressa nos Estados (levando-se em consideração que, para o historiador, as
nacionalidades são individualidades, com características imanentes e particulares).
(1979, p. 180) Considerando a literatura como representante da nacionalidade, (a partir
da incorporação das discussões de Herder para a disciplina histórica), Ranke afirma,
então, que “união de todas [as literaturas] há de basear-se na autonomia de cada uma.
Nada deve impedir que entrem em contato; o que não se deve querer é o predomínio
esmagador de uma sobre as outras. O mesmo acontece com os Estados, as nações.”
(1979, p. 180)
Se o meio físico, de acordo com a teoria da época, conformava o caráter de um
povo, o índio, enquanto habitante original da América, e quase parte da natureza,
representava, assim a nação em sua forma mais genuína. Sendo assim, ele deveria ser
matéria-prima da história e da literatura. Conhecer os costumes indígenas era, portanto,
conhecer a nação. No entanto, na medida em que a intenção era alcançar um modelo
determinado de civilização, como foi exposto acima, as representações do índio então
produzidas por esses escritores foram estabelecidas no sentido de projetar em seus
costumes virtudes consideradas civilizadas. Essa projeção fica clara nos textos
etnográficos de Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias e, também, nas notas
explicativas que José de Alencar adicionava a seus romances. Desse modo, a alteridade
indígena servia como símbolo da singularidade de uma monarquia nos trópicos. No
entanto, para que a cultura brasileira alcançasse a verdadeira liberdade, o índio (tanto o
“histórico” quanto o contemporâneo, como sugerem os textos de Dias e Magalhães)
teria, portanto, que ser trazido à civilização.
Desde meados do século XIX, como se sabe, as pesquisas e investimentos
(intelectuais e monetários) nas áreas técnica e tecnológica e, também, no campo das
ciências vinham crescendo e dando resultados. Num primeiro momento, todos os
avanços, especialmente nas áreas de transporte, comunicação e produção de energia,
pareceram ser uma prova do domínio do homem sobre a natureza e da perfectibilidade
humana. O progresso inexorável do homem e da civilização parecia, então, um dado
seguro. O início do século XX foi, portanto, marcado pela (cada vez mais) rápida
ascensão de novas tecnologias, que se tornaram motivo recorrente de admiração,
curiosidade e espanto. Entretanto, logo nos primeiros decênios do novo século,
eclodiram eventos de grande repercussão política e social, como a Primeira Guerra
Mundial, a Revolução Russa e, pouco depois, a ascensão de regimes fascistas na Itália e
na Alemanha. Esses eventos, associados à crise epistemológica no campo das ciências,
com a perda de uma noção última de verdade, teriam abalado a crença num futuro
previsível e garantido de liberdade e harmonia entre homens e nações. Esse novo
panorama mundial levou diversos intelectuais europeus a detectarem uma “crise na
cultura”. De modo geral, eles interpretaram o “advento da modernidade” como algo
marcado por um declínio de códigos morais e de valores tidos como fundamentais da
cultura (entre eles, virtude, razão, coexistência pacífica dos Estados, liberdade e
humanidade). Esse “colapso de códigos” tradicionais, portanto, associado ao
predomínio da técnica e de valores democráticos, bem como a violência dos eventos
acima citados, fez com que esses intelectuais se engajassem, então, numa luta de
resistência ao que entendiam como sendo os “males da modernidade”. Entre esses
homens rondava uma apreensão de que se estivesse vivendo uma crise definitiva, que
poderia levar a Europa de volta à barbárie. (DAMAS, 2008, p. 71-86)
Nas primeiras décadas do século XX houve, então, um número expressivo de
livros publicados na Europa cuja temática central era a crise e a decadência do
Ocidente. Sendo assim, a tópica da decadência e palavras como “declínio” e “mal-estar”
foram recorrentes em textos, livros e conferências de intelectuais como Johan Huizinga,
Oswald Spengler, Paul Valéry, Sigmund Freud, Ortega y Gasset, entre outros.6 É claro
que há diferenças e particularidades importantes nas interpretações desses autores, que
não serão apreciadas aqui. Porém, além da tópica referida, algumas semelhanças podem
ser observadas. Nesses textos, por exemplo, a civilização aparecia não como um estágio
a que toda a humanidade chegaria e que tendia à perfeição, mas como uma construção
cultural, engendrada pelo homem que, desse modo, teria como responsabilidade mantê-
la e preservá-la. (DAMAS, 2008, p. 83) Vê-se, então, um anseio conservador daquilo
que esses escritores entendiam como a forma autêntica de compreensão e organização
da realidade. Essa forma autêntica estaria em consonância com o estatuto normativo de
categorias como “natureza” (no sentido de natureza humana) e “tradição”. Em
contraposição, estaria a forma artificial de compreensão e organização do mundo, na
qual esses valores normativos eram substituídos pela fragmentação e pela contingência.
(GUMBRECHT, 1999, p. 441)
No entanto, nem só críticas suscitaram essas transformações. Em movimentos
artístico-literários como o Futurismo e o Surrealismo, por exemplo, houve uma
euforização desses novos códigos interpretativos e de conduta e, também, das novas
experiências com o mundo sensível impostas pelos modernos meios técnicos.
Os artífices do modernismo brasileiro, por sua vez, apropriaram-se de forma
muito particular tanto da tópica da decadência do Ocidente (considerando-se ocidente
como cultura européia) quanto das discussões levadas a cabo por Marinetti e Andre
Breton, principalmente. A palavra futurismo foi comumente usada para designar o que
era considerado novo nas artes e na literatura antes da Semana de Arte Moderna.
Posteriormente, em decorrência das ligações de Marinetti com o regime fascista na
Itália, seus argumentos passaram a ser rejeitados pela maior parte dos modernistas. Já
com o Surrealismo o diálogo estabelecido por esses escritores foi mais intenso,
principalmente, na medida em que eles eram grandes admiradores da psicanálise e
leitores constantes de Freud.
6 Respectivamente: Nas Sombras do amanhã (1935), A decadência do Ocidente (1919), La Crise de l’esprit (1919), Mal-estar na civilização (1930) e Rebellion de las massas (1930).
Para os modernistas importava, sobretudo, libertar a cultura brasileira das
amarras impostas pela “cultura européia caindo de podre”. (REVISTA DE
ANTROPOFAGIA, n° 5, 2° D) No que concerne aos aspectos estéticos, mais
especificamente, dever-se-ia libertar a literatura brasileira do “pesado jugo de outras
literaturas”, como disse Henrique de Resende para a Verde. Segundo o escritor a
“reação brasileira” (leia-se o modernismo) nascera de um “remorso”: “o remorso de
havermos imitado, copiado e decalcado sem precisão, durante tantos anos (...) de entre
os muitos bens que nos trouxe o modernismo, sobressai, é certo, a liberdade com que
sonhávamos. Daí o abandonarmos tudo que pudesse nos subjugar o espírito, como são
os cânones de toda a espécie” (VERDE, n° 1, p. 10)
A Europa produzida nos textos modernistas, entretanto, não representava apenas
o lugar de onde se importava e se copiava modelos estéticos e literários. A Europa
representava todo um modelo cultural e moral em decadência, que lutava para preservar
um passado e uma tradição que após Freud, Nietzsche e Marx, já não poderia mais
vigorar. A Europa representava, principalmente, uma civilização artificial, que impusera
grilhões morais e padrões de comportamento dos quais urgia desvencilhar-se
urgentemente. Nesse sentido, ocorre uma inversão dos modelos europeus de
autenticidade e artificialidade. O autêntico estaria justamente no fragmento, na
multiplicidade, na liberação das pulsões freudianas: “Klaxon sabe que a natureza existe.
Mas sabe que o moto lyrico, produtor da obra de arte, é uma lente transformadora e
mesmo deformadora da realidade”. (KLAXON p. 2 n° 1)
O modelo de civilização européia, para esses escritores, impusera o “recalque”
do que havia de mais autêntico na cultura brasileira. Nesse sentido, segundo
interpretação de Cristiana Facchinetti, Oswald de Andrade, com sua teoria da
antropofagia, preconizou o corpo-fragmento em detrimento do corpo narcísico e
inteiriço, colonizado nos ditames de uma verdade única e transcendente, único passível
de identidade, cópia e imitação. Apenas um corpo-fragmento, que estivesse em
permanente reinvenção de si mesmo, sem se deixar conformar por padrões intelectuais,
morais e estéticos, daria oportunidade para fazer emergir constantemente o novo.7
(2002, p. 4)
O conceito de liberdade, para Oswald de Andrade (e para seus parceiros da
Revista de Antropofagia)8 estava conformado por leituras particulares de Freud,
Nietzsche e Marx, principalmente. O primeiro porque anunciara a civilização como
colonizadora e inibidora das pulsões humanas9 e os últimos por terem alertado ao
“perigo metafísico”. Perigo este que segundo o pseudônimo Freuderico, na Revista de
Antropofagia, fez do “homem paleolítico um cristão de chupeta, um maometano, um
budista, enfim, um sabiozinho carregado de doenças”. (REVISTA DE
ANTROPOGAGIA, n° 1, 2° D) No caso de Andrade, também havia forte influência de
uma literatura considerada anarquista como Kierkegaard e Proudhon. (ANDRADE,
1990, p. 80)
Segundo Tristão de Athayde, em passagem já citada anteriormente, o indianismo
modernista tinha a preocupação máxima de “olhar os índios como deveriam ter sido
antes da catequese e da conquista.” (REVISTA DE ANTROPOFAGIA, n° 8, 2° D) O
índio, então, de acordo com os escritores da Revista de Antropofagia, deveria ser
considerado o “nosso modelo” porque “não tinha recalcamentos” e seria o “legítimo
tipo nacional”, porque representava “a revolta do instinto brabo da terra”. Para
Acquilles Vivacqua era um equívoco negar ao índio o “verdadeiro padrão de brasileiro,
só por julgar que o brasileiro é o indivíduo-civilização que formou a nossa história e não
7 Esse homem dilacerado, segundo Facchinetti, aparece também na figura do herói Macunaíma, de Mario de Andrade. De acordo com ela, Macunaíma é “o retrato trágico do homem sem qualidade, sem qualquer referência de saber”. Posteriomente, Andrade, já engajado em causas sociais coletivas veria sua personagem, inclusive com um certo horror: “se foi escrito divertidamente, a releitura do livro me principiou doendo fundo em seguida. Hoje ele me parece uma sátira perversa.” (FACCHINETTI, 2003) O ideal de contraditoriedade também aparece na apresentação de Klaxon: “Klaxon cogita principalmente de arte. Mas quer representar a década de 1920 em diante. Por isso é polymorpho, omnipresente, inquieto, comico, irritante, contraditório, invejado, insultado, feliz. (KLAXON, n° 1 p. 3)8 A referência para a análise da representação do índio no modernismo será a Revista de Antropofagia, (liderada por Oswald de Andrade) onde esse elemento é mais abundante e mais explícito. No entanto, de modo geral, os escritores que se engajaram na criação do modernismo, eram grandes leitores de Freud e da psicanálise em geral. Textos sobre psicanálise e referências a Freud aparecem de forma recorrente em textos de Mario de Andrade, por exemplo. Vê-se referências a conceitos freudianos ainda em Manuel Bandeira, Antonio de Alcântara Machado, Sergio Milliet etc. 9 Freud, em O mal-estar na civilização (1930), afirma que os homens renunciaram aos seus instintos em nome do bem-estar coletivo, o que geraria esse “mal-estar”. No entanto, caso a civilização lhe oferecesse elementos compensatórios que justificassem essa perda de liberdade, isso traria benefícios ao homem, já que impediria a ativação dos instintos de agressão e de auto-destruição. Freud afirmava que a cultura estava falhando nessa tarefa compensatória. Acreditava, porém, que, ainda assim, a civilização tinha que ser defendida contra o indivíduo. (DAMAS, 2008, p. 79) No momento de publicação das revistas modernistas esse livro ainda não existia. Mesmo assim, pode-se inferir que, a partir da leitura de textos de Freud publicados durante a década de 1920, os modernistas estabeleceram uma interpretação muito particular.
o homem físico integrado à terra”. (REVISTA DE ANTROPOFAGIA n° 6 e n°7, 2° D)
O selvagem, de acordo com Oswaldo Costa, salvaria a cultura brasileira do “preconceito
racionalista” de que se envenenara o ocidente. (REVISTA DE ANTROPOFAGIA, n° 9,
2° D). Segundo artigo publicado em A Gazeta, de São Paulo, e reproduzido na Revista
de Antropofagia “a civilização não passa de um amontoado de fórmulas e exterioridades
para disfarçar os mesmos instintos que o índio não se envergonha de ostentar
livremente, o que tanto vale dizer que a civilização se baseia exclusivamente na
hypocrisia” (REVISTA DE ANTROPOFAGIA n° 15, 2° D)
O índio produzido nas revistas modernistas, num sentido geral, e,
principalmente, na Revista de Antropofagia, era o homem-natureza, sem recalcamentos
Era um homem de sentimentos, desejos e pulsões libertos, não-colonizados. O índio
modernista traz, também, o elemento dionisíaco, tal como teorizado por Nietzsche. Para
Nietzsche, (de modo muito simplificado, claro) o estado dionisíaco é capaz de libertar o
homem do consolo metafísico trazido por Apolo e, assim, o reconciliar com a natureza.
Para se chegar a esse estado, no entanto, é necessário livrar-se de princípios morais,
num completo abandono de sim mesmo. A ordem apolínea, que faz serventia ao
aparente, é apenas aquilo que se tenta colocar - ou que ser quer ver – no lugar do caos
existencial e da verdadeira condição do homem, perplexo com sua mortalidade.
(TOLEDO, 2008, p. 16-17) Segundo Nietzsche a “finalidade mais íntima de uma
cultura orientada para a aparência e a mesma só pode ser, com feito, o encobrimento da
verdade”. (Apud. TOLEDO, 2008, p. 17)
Os escritores modernistas criaram o homem-natureza, instintivo e dionisíaco,
freudiano e nietzscheano, em oposição ao indivíduo-civilização. Tendo como modelo
este homem, o brasileiro conseguiria, enfim, libertar a si mesmo, seu pensamento e sua
cultura das amarras e recalques impostos por anos de colonização e de imitação do
modelo ocidental.
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TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. Tese apresentada ao programa de pós-graduação em história social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009.