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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13

th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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O CORPO DIANTE DA IMAGEM: DE LOUISE BOURGEOIS ÀS

BONECAS ANATÔMICAS

Silvia Ferreira Lima1

Resumo: Utilizando o anacronismo das imagens de Didi-Huberman, comparamos uma

obra de Louise Bourgeois com as bonecas anatômicas do século XIX, bem como o conceito de histeria de Charcot.

Palavras-chave: anacronismo das imagens - histeria -arte contemporânea

Tratar da imagem do corpo tem sido assunto nas artes visuais desde sempre.

Ainda que o desenvolvimento de novas tecnologias usadas na medicina tenha ajudado a

modificar a produção imagética nas obras de arte.

Se no período em que Leonardo da Vinci produziu, já era curioso participar de

sessões de anatomia a fim de desenhar o interior do corpo humano com mais precisão_

ação partilhada por ele e outros artistas notáveis como Michelangelo_; atualmente

ampliar a visão para além do visível tem sido uma busca constante, graças aos aparatos

tecnológicos que aprofundam o alcance do olhar.

Não é preciso muito tempo _ o tempo de uma indagação _ para perceber que o

historiador da arte, em cada um de seus gestos, por humilde ou complexo ou

rotineiro que seja, não cessa de operar escolhas filosóficas (DIDI-HUBERMAN. 2013,13).

Concordando com as palavras de Didi-Huberman, assumimos nossa escolha

filosófica. Desta maneira, apresentamos a visão contemporânea de uma cartografia de

esgotamento, nas palavras de Pelbart, uma vez que perscrutamos, ou ainda, rasgamos as

imagens procurando identificar o que existe por trás delas. O que está certamente ligado

ao momento de suas produções, mas também nos passam uma visão do corpo da mulher

fornecida pela arte.

1 IA/ Universidade Estadual de Campinas SP Brasil

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Assim, as imagens escolhidas_ como: algumas obras de Louise Bourgeois,

fotografias das histéricas do Salpêtriére e fotografias das bonecas de cera anatômicas,

tal como constam no catálogo da exposição Le corps en morceaux, ocorrida em 1990,

no Musée d´Orsay, Paris_ apesar de terem sido produzidas em épocas diferentes e sob

estilos diferentes, possuem uma relação imagética na qual se destacam algumas

semelhanças. E nos levam a pensar a respeito da relação cultural estabelecida com o

corpo da mulher.

As imagens não devem sua eficácia apenas à transmissão de saberes _visíveis,

legíveis ou invisíveis_, mas que sua eficácia, ao contrário, atua constantemente

nos entrelaçamentos ou mesmo no imbróglio de saberes transmitidos e

deslocados, de não-saberes produzidos e transformados. Ela exige, pois, um

olhar que não se aproximaria apenas para discernir e reconhecer, para nomear

a qualquer preço o que percebe _ mas que primeiramente se afastaria um

pouco e se absteria de clarificar tudo de imediato (DIDI-HUBERMAN, G.2013,23).

Muito já foi dito a respeito de Louise Bourgeois. Afinal, ela passou o século XX

produzindo obras de destaque, de surrealistas a conceptualistas. Sua primeira exposição

individual, provavelmente, ocorreu em 1945, aos trinta e três anos, na Bertha Schaefer

Gallery em Nova York, ou quando elaborou uma de suas esculturas mais antigas para o

MoMA em 1951, ou ainda quando mostrou suas esculturas experimentais de látex,

juntamente com trabalhos de Bruce Nauman e Eva Hesse em 1966.

Nasceu em 24 de dezembro de 1911 em Paris. Casou-se com um americano

historiador da arte e passou a maior parte da vida nos Estados Unidos, porém afirmou

que todos os seus temas foram inspirados na infância.

Sabe-se que sua vida como escultora deve ter começado quando manipulou sua

primeira escultura de pão ainda criança, ou quando trabalhou como tapeceira na

tecelagem da família na França. Já foram feitas publicações, críticas, entrevistas e teses

sobre a artista e seu trabalho. Mas “o âmago de seu impulso original deve ser

encontrado, caso exista, em seu próprio trabalho. Assim, o artista deve dizer o que

sente...” (BERNADAC & OBRIST, 2000,15). E as obras de Bourgeois dizem muito.

Neste caso, destacamos sua relação com a psicanálise e com a noção de histeria.

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Em 1993, apresentou Cella (Arco da Histeria) na Bienal de Veneza.

Referindo-se aos estudos de Jean-Martin Charcot, que ficou famoso por sua

pesquisa acerca da histeria e que etimologicamente está ligado ao sistema

reprodutivo feminino (a palavra é derivada do grego hystera, significando

útero), os sintomas foram entendidos por ocorrerem principalmente nas mulheres (MORRIS, 2007,43).

Esse trabalho da autora teve várias versões com as quais trabalhou. Seu título

demonstra sua referência e seu conhecimento de psicanálise. Pois foi a partir dos

estudos de Charcot que Freud começou a elaborar sua teoria, escrevendo seus primeiros

trabalhos sobre a histeria feminina. Mas mesmo que o título da escultura fosse

desconhecido e que sua referência não fosse assumida pela artista, se compararmos a

imagem de suas obras com as fotografias das histéricas estudadas por Charcot,

evidenciamos características comuns, como podemos conferir.

Não podemos nos contentar em nos reportar à autoridade dos textos _ ou à

pesquisa das ‘fontes’ escritas _ se quisermos apreender algo da eficácia das

imagens: pois esta é feita de empréstimos, é verdade, mas também de interrupções praticadas na ordem do discurso (DIDI-HUBERMAN, 2013,28).

BOURGEOIS, Louise. Arch o f Hysteria

Bronze e plat ina

83,8 x 101,6 x 58,4 cm

Tate Modern Londres out/2007

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BROUILLET, André. Uma aula clínica na Salpêtrière, óleo sobre tela, 1887, Paris, Museu de História da Medicina

Em ambas as imagens aparece uma torsão do corpo feminino, uma das

características observadas por Charcot, além de paralisia ou sensibilidade excessiva em

determinadas partes do corpo. No livro Invenção da histeria de Georges Didi-

Huberman, que estuda as imagens fotográficas do hospital Salpêtriére, uma delas fica

ainda mais semelhante à escultura de Bourgeois, embora também pareça mais trágica,

pois uma senhora, aparentemente idosa, encontra-se com o corpo distorcido e

cadavérico, como a escultura da autora, que, no entanto, é bonita apesar de se identificar

no corpo pendurado falta de gordura e até mesmo dificuldade na identificação dos seios.

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Fotografia de mulher de cera Sapêtriére, Paris, séc XIX

A imagem mostra um dos procedimentos museológicos da doença, que era

moldar em cera um caso que também era fotografado (DIDI-HUBERMAN,2015,58).

Esta figura trágica apresenta semelhanças com a escultura de Louise: pelo brilho, pelo

corpo feminino torcido e pela falta de gordura corporal.

No plano filosófico, não é o nada que avança e rói tudo, mas nós que, ao

nascermos, passamos do familiar ao inquietante, do colocado ao deslocado, o

próprio nascimento sendo concebido como queda, exposição ao inseguro.

Enfim, o nada designaria a incongruência entre os chegados ao mundo e as

condições de chegada. O nascimento seria uma espécie de aborto, exposição

ao não-dado, visita no inquietante, donde a necessidade de estar rodeado de

promessas que, obviamente, não podem sustentar-se (PELBART, 2013,150).

Utilizando as palavras de Pelbart, justificamos o atual interesse em se observar

uma imagem trágica. Afinal, apesar da histeria não ser uma causa de morte das

pacientes, o abandono, a falta de cuidado e de alimentação, com certeza encarregava-se

do final das internas. E essa imagem mostra o molde do estado final de uma paciente.

Peter Pal Pelbart, analisando o nihilismo nietchziano, explica que esta visão vem

desde o cristianismo com a crença da continuação da vida em outro plano e o

sofrimento nesta existência como etapa necessária para atingir o paraíso. Logo, a visão

de alguém morrendo traz mais expectativa de vida do que a visão de um ser humano

nascendo. Talvez, isso explique o interesse artístico contemporâneo pelas figuras

trágicas. Daí, o tempo que Didi-Huberman dedicou analisando a iconografia fotográfica

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do Salpêtriére. E também a intensidade de expressão do Arch of Hysteria de Louise

Bourgeois.

Além disso, gostaríamos de comparar com as bonecas de cera anatômica_ um

dos capítulos do catálogo da exposição Le corps en morceaux_ que apareceram no

século XIX em shows públicos, nos quais se abriam os corpos das mulheres tão

detalhadamente produzidos, retirando seus órgãos e explorando suas partes internas.

Observamos que todas as bonecas eram muito detalhadas e bonitas, com expressões de

prazer e sedução para a plateia. Na maioria dos casos, todas estavam grávidas, talvez

pela curiosidade que a geração da vida sempre forneceu ao ser humano.

Charles Baudelaire escreveu o artigo Moralidade do Brinquedo sobre estas

bonecas, evidenciando a curiosidade e o prazer que estes shows ofereciam, fazendo com

que adultos se sentissem criança novamente, diante de seus brinquedos. Apesar de o

catálogo da exposição Le corps em morceaux afirmar que se tratava de shows

exclusivamente para adultos. São palavras de Baudelaire:

A maior parte dos pequenos quer sobretudo ver a alma, alguns após certo

tempo, outros logo de início. É mais ou menos rápida invasão desse desejo que

faz a maior ou menor longevidade do brinquedo. Não sinto coragem de

censurar esta mania infantil: é uma primeira tendência metafísica

(BAUDELAIRE, 1995,495).

Podemos até mesmo imaginar que o ato de abrir o brinquedo para conhecer do

que ele é feito, sempre foi uma curiosidade infantil; porém acreditamos que Baudelaire

trata dos shows que eram frequentes neste momento. Assim, as bonecas de cera

incitavam a imaginação do público, enquanto o mestre de cerimônias as abria como

num ritual maçônico. “Creio que geralmente as crianças agem sobre seus brinquedos, ou

seja, que sua escolha é dirigida por disposições e desejo, vagos, é verdade, não

formulados, mas muito reais” (BAUDELAIRE, 1995,494).

Mostramos na sequência uma das imagens destas bonecas que foi encontrada no

catálogo do Musée d´Orsay em fotografias em preto e branco, porém está no livro

Nudez de Agamben, colorida, conforme colocamos a seguir:

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SUSINI, Clemente. Vênus Anatômica

Museu de História Natural do Grã-duque de Toscana In

AGAMBEN, G. Nudez. 2015,115

Vemos que o corpo feminino parece torcido ou oferecido num caso de histeria à

procura de amor e de atenção, conforme dito por Freud e comentado por Didi-

Huberman:

A histérica, de certo modo, fomenta o desejo do Outro. Mas o alucina, ata o conhecimento do

desejo ao próprio desejo de reconhecimento e se ilude naturalmente (captação neurótica) quanto

ao sentido do desejo do outro. Assim, permanece amarrada às redes da enfatuação, da lei do

coração, do narcisismo, porque toda sua estratégia especula com hipóteses imaginárias (DIDI-HUBERMAN, G.2015,233).

Nascida em Paris em 1911, Louise Bourgeois foi criada por pais que dirigiam

um negócio de restauração de tapeçarias. Aluna talentosa, ela também ajudou na oficina

desenhando elementos faltantes nas cenas retratadas nas tapeçarias. Durante esse tempo,

seu pai teve um caso com Sadie Gordon Richmond, a tutora inglesa que morava na casa

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da família. Esta traição profundamente preocupante e, em última instância, a traição

definitiva, permaneceu uma memória vívida para Bourgeois pelo resto de sua vida. Mais

tarde, ela estudaria matemática antes de voltar-se para a arte.

Conheceu Robert Goldwater, um historiador de arte americano, em Paris;

casaram-se e mudaram para Nova York em 1938. O casal criou três filhos.

Primeiramente, Bourgeois concentrou-se na pintura e na gravura, voltando-se

para a escultura apenas na década de 1940. No entanto, na década de 1950 e início dos

anos 1960, houve lacunas em sua produção quando ela se imergiu na psicanálise. Então,

em 1964, para uma exposição após um longo hiato, Bourgeois apresentou esculturas de

gesso estranhas e de forma orgânica que contrastavam dramaticamente com as peças de

madeira totêmica que ela exibira anteriormente. Mas alternando entre formas, materiais

e escala, e virando entre figuração e abstração tornou-se uma parte básica da visão de

Bourgeois, mesmo que ela continuamente investigasse os mesmos temas: a solidão, o

ciúme, a raiva e o medo.

A abordagem idiossincrática de Bourgeois encontrou pouca admiração nos anos

em que as questões formais dominavam o pensamento do mundo da arte. Mas, nos anos

70 e 80, o foco mudou para o exame de vários tipos de imagens e conteúdo. Em 1982,

aos 70 anos, Bourgeois finalmente ocupou o palco central com uma retrospectiva no

Museu de Arte Moderna de Nova York. Depois disso, ela estava cheia de nova

confiança e avançou, criando aranhas monumentais, "Células" de tamanho generoso,

figuras evocativas que muitas vezes pendiam de fios e uma variedade de obras de tecido

decoradas com suas roupas antigas. Enquanto isso, ela constantemente fazia desenhos

em papel, dia e noite, e também retornava à gravura. A arte era sua ferramenta para

lidar; era um exorcismo. Como disse: "A arte é uma garantia de sanidade". Bourgeois

morreu em Nova York em 2010, com 98 anos, deixando um exemplo instigante de

dedicação à arte mesmo com idade avançada.

https://www.moma.org/explore/collection/lb/about/biography

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Há em todo historiador um desejo (um desejo absolutamente justificado) de

empatia; pode chegar às vezes à obsessão, à coerção psíquica, até mesmo a um

delírio borgiano. Tal desejo nomeia ao mesmo tempo o indispensável e o

impensável da história. O indispensável, pois só se pode compreender o

passado, no sentido literal do termo “compreender”; entregando -se a uma

espécie de enlace matrimonial: penetrar no passado e fundir-se nele, em suma,

sentir que o esposamos para possui-lo inteiramente, quando nós mesmos

somos, nesse ato, possuídos por ele: abocanhados, enlaçados, até mesmo paralisados (DIDI-HUBERMAN, G. 2013,49).

Valorizando o passado, enquanto o relacionamos com a arte contemporânea,

pesquisamos sobre o museu de cera bem como sobre a época em que viveu Charles

Baudelaire. Logo, é interessante saber que o museu de cera, ou como é conhecido

atualmente, Museu Tusseau, abriu em Londres em 1835, exibindo cabeças humanas e

outras figuras de cera.

Já, no século XVIII, as bonecas de cera anatômica eram expostas em cabines de

curiosidade ou mesmo em museus juntamente com as obras de arte. No século XIX,

foram criados os primeiros museus de história natural, que exibiam suas peças

independente de sua raça ou sexo. O que somente se tornou critério de classificação um

tempo mais tarde.

Em 1776, o médico Curtius abriu em Paris uma exposição de mesas históricas

ou A Caverna dos Grandes Ladrões, que mais tarde deu origem ao Quarto dos

Horrores. Sua sobrinha conhecida mais tarde por Mme Tusseau começou a fazer

modelos de cera das cabeças guilhotinadas após a Revolução Francesa. Mas os modelos

de cera já eram realizados em 1777, com a criação do primeiro museu de história natural

em Florença. A Vênus Anatômica de Susini foi uma destas obras (Le corps en

morceaux, 53).

De qualquer modo, quando lemos a biografia de Charles Baudelaire, sabemos

que foi contemporâneo destes espetáculos de cera, uma vez que nasceu em 1821 e

faleceu em 1867. Sua citação no artigo Moralidade do Brinquedo é também citada por

Didi-Huberman, quando trata do aprofundamento do olhar. E para Walter Benjamin,

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Baudelaire foi o grande percursor da modernidade na arte. O que volta a nossa

colocação inicial do aprofundamento do olhar na contemporaneidade.

O corpo que eu tenho, corpo-objeto, é o alvo do modelo biomédico, o qual,

auxiliado pelo sucesso das novas tecnologias de visualização médica, contribui

para a desincorporação da subjetividade e para a virtualização e objetivação da corporeidade, tornando obsoleto o corpo (ORTEGA, F.2008,63).

Esta abertura e visualização interna do corpo são características presentes na

atualidade e de forma cada vez mais intensa, como: bodybuilding, tatuagens, piercings,

regimes e excessiva preocupação com a forma corporal. O corpo é mais importante do

que o sujeito. O olhar médico penetra o corpo buscando desvelar seus segredos, desce

em sua profundidade. Enquanto isso, a análise da vida e da doença é unicamente

possível a partir da morte, que se apresenta como verdade da vida. A morte deve prestar

contas da vida e da doença e o doente é responsabilizado pelos seus problemas de saúde

(ORTEGA, F. 2008, 100-101).

Peter Pal Pelbart explica estas características da arte contemporânea ao mesmo

tempo em que explica o nihilismo.

Do ponto de vista psicológico, é a tomada de poder do ressentimento; do ponto

de vista biológico, a decadência; do ponto de vista religioso, o cristianis mo; e

do ponto de vista filosófico, o niilis mo (PELBART, 2014,149).

Desta maneira, o vazio do sujeito e a supervalorização do corpo, o vazio

contemporâneo teve origem no sofrimento religioso católico e foi retomado por

Nietchze com o nihilismo. Mas Pelbart vê uma saída, ou uma esperança para este

esvaziamento contemporâneo, cujas imagens artísticas retomam.

Trata-se de construir esse caminho que leve ao lugar da Apropriação da

Metafísica, para apenas então pensar em percorrer as possibilidades e a

conveniência de um ult rapassamento. O u ltrapassamento não pode dar-se sem

que se entre na essência do niilismo (PELBART, 2014, 145).

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Logo, para o autor, o esvaziamento da arte contemporânea, de que a abertura e

invasão dos corpos são exemplos, fazem parte do questionamento que o homem

contemporâneo faz dos valores nos quais foi erigida sua sociedade e que, no entanto,

não parecem mais justificados ou adequados diante de tanta injustiça e discriminação de

sexo, cor, etnia, opção sexual. Mas Pelbart acredita que esta insatisfação é positiva

enquanto leva o ser humano a buscar novas possibilidades, novos caminhos, mais

justos, mais adequados às necessidades de cada um e dos grupos.

É preciso que os valores supremos desmoronem de vez, sem retê-los, não para

que outros possam substitui-los, mas para que se possa engendrar valores a

partir de um outro elemento, como dito anteriormente, e não a partir da

negatividade ou do ressentimento (PELBART, 2014,141).

Pelbart, estudioso de Deleuze, compartilha de suas crenças de que a arte abre

novas possibilidades, novas expectativas, oferece novas opções para os seres humanos.

Conforme observamos nos trabalhos de Louise Bourgeois, ou nas fotografias do

Sapêtriére, ou bonecas de cera anatômica. Em que a necessidade de expandir o olhar

para dentro do corpo, nestes casos, femininos, nos leve a pensar qual o melhor lugar

para a mulher atualmente.

Para isso, antes de tudo, é necessário aprofundar o esvaziamento, na busca de

valores que a mulher busca dentro de si e dos outros. Encerramos, portanto, retomando

que a morte é uma verdade da vida; porém a vida lhe é complementar, assim como a

expectativa de se escolher entre procriar ou não procriar. Buscando sempre novas

alternativas.

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 1ª ed.,2015.

BAUDELAIRE, Charles. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995

BERNADAC, Marie-Laure. Louise Bourgeois. Paris, Flammarion, 1995.

BERNADAC, Marie-Laure & OBRIST, Hans-Ulrich. Louise Bourgeois : destruição do pai

reconstrução do pai _ escritos e entrevistas 1923-97. São Paulo, Cosac & Naify, 2000.

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DIDI-HUBERMAN, Georges. Invenção da histeria: Charcot e a iconografia fotográfica da

Salpêtrière. Rio de Janeiro, Contraponto, 1ª ed., 2015.

_____________________ . Diante da Imagem. São Paulo, Editora 34, 1ª ed., 2013.

MORRIS, Francis. Louise Bourgeois. New York, Rizzoli, 2008.

ORTEGA, Francisco. O Corpo Incerto. Rio de Janeiro, Garamond, 2008.

PELBART, Peter Pal. O Avesso do Niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo, n-1, 1ª ed., 2013.

Catálogo Le corps em morceaux. Paris, Musée d´Orsay, 5 fev- 3 jun 1990.

https://www.moma.org/explore/collection/lb/about/biography

https://www.moma.org/collection_lb/browse_results.php?object_id=130224

http://mercerieambulante.typepad.com/.a/6a011168cfe7b3970c0134897c2c10970c-

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The body in front of the image: from Louise Bourgeois to the anatomical dolls

Abstract: Using Didi-Huberman's anachronism of images, we compare a Louise

Bourgeois´ art work with the anatomical dolls of the 19th century, as well as the concept of Charcot's hysteria.

Keywords : Anachronism of images. Contemporary art. Hysteria.


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