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  • O direito ao mistrio - parte 1

    Hoje dia de eleies presidenciais e a Reforma completa 493 anos de existncia. Mas

    no vou falar sobre nenhum dos dois assuntos, muito embora o de hoje tenha alguma

    relao com o segundo tema. Ontem noite minha esposa me mostrou um artigo que

    recebeu por e-mail, e ns o lemos juntos. Fiquei suficientemente impressionado para

    dedicar a ele esta breve anlise. O texto de W. Gary Crampton, est

    disponvel neste endereo e seu ttulo uma interrogao: A Bblia contm paradoxo?.

    um pdf de apenas cinco pginas. Recomendo aos interessados que o leiam, de

    preferncia antes de prosseguir com a leitura deste meu post, para que possam aprovar

    ou condenar minha anlise com propriedade. Contudo, no acho justo exigir de meus

    leitores que leiam dois textos, uma vez que vieram aqui esperando ler no mximo um.

    Por isso, na medida do possvel, esforar-me-ei para transmitir de modo fidedigno e

    completo os pontos essenciais do artigo em questo.

    Crampton d incio ao artigo citando e endossando a distino feita por Kenneth

    Kantzer entre paradoxos retricos e paradoxos lgicos. A existncia da primeira classe

    de paradoxos na Bblia ponto pacfico, mas Crampton dedica o restante do artigo a

    refutar a ideia da existncia de paradoxos do segundo tipo no texto sagrado. Ele se

    queixa, a respeito de declaraes em contrrio, de que "mui frequentemente tais

    comentrios so ouvidos dentro do campo da ortodoxia", citando como exemplos

    telogos reformados de renome como Edwin Palmer, J. I. Packer e Cornelius Van Til. E

    lana ento seu primeiro argumento: "Deus nos fala em tal linguagem? Ele o autor do

    paradoxo lgico? No, diz o apstolo Paulo, 'Deus no o autor de confuso' (1

    Corntios 14.33)."

    Aqui Crampton cometeu seu primeiro deslize, e de no pouca importncia. O texto de

    onde foi retirada a citao do apstolo no fala de confuso lgica, e sim de confuso

    litrgica. Paulo est dando instrues para combater a desordem no culto, evitando a

    balbrdia decorrente do uso desenfreado do dom de lnguas, profecias e interpretaes

    que se instalara na igreja de Corinto. Paulo ensina que devem falar um de cada vez, e

    que "Os espritos dos profetas esto sujeitos aos prprios profetas; porque Deus no de

    confuso e sim de paz". Extrair da uma lio sobre a existncia ou no de elementos

  • obscuros nas obras de Deus em geral (e de paradoxos lgicos nas Escrituras em

    particular) desprezar uma das regras fundamentais da hermenutica, que a ateno

    ao contexto. Crampton comeou, pois, dando ensejo a dvidas sobre sua capacidade

    como exegeta.

    O argumento seguinte do autor consiste em dizer, endossando uma afirmao de

    Gordon Clark, que puramente subjetiva a opinio de que determinada questo um

    paradoxo. Ele afirma, por exemplo, que a tenso entre a soberania de Deus e a

    responsabilidade do homem, que parece paradoxal a vrios telogos reformados, no

    parece assim a John Gerstner, que escreveu: "Ns no vemos por que impossvel para

    Deus predestinar que um ato acontea por meio da escolha deliberada de indivduos

    especficos". Devemos recordar que nenhum dos telogos at agora criticados por

    Crampton, que so todos calvinistas, nega que tal coisa seja possvel a Deus. Apenas

    negam compreender como Deus faz isso, o que no a mesma coisa. Se Gerstner ou

    outro qualquer acredita ter a soluo para o enigma (sei que Clark, por exemplo,

    acreditava), no vejo problema algum. Mas vou descrever uma situao pela qual

    certamente muitos leitores j passaram: algum prope uma questo difcil - pode ser

    uma charada numa roda de amigos ou uma questo numa lista de exerccios na escola -

    que deixa todos os presentes quebrando a cabea, at que chega algum e anuncia que a

    soluo, na verdade, muito fcil e no oferece dificuldade alguma. Em alguns casos

    esse de fato o caso, e os outros, depois de ouvir a soluo, ficam tentando descobrir

    como no pensaram nela antes. Mas em muitos outros casos a soluo proposta apenas

    evidencia aos demais presentes que seu autor no chegou a compreender bem a natureza

    do problema.

    Quem garante que no esse o caso de Gerstner ou Clark? A nica maneira de

    solucionar a dvida seria expor as solues disponveis e coloc-las em debate. Mas

    Crampton no faz isso, pois no esse seu objetivo. Ele no est interessado em provar

    que as solues racionais existem (o que seria a nica maneira vlida de mostrar que

    no h paradoxos lgicos na Bblia), e sim em condenar de antemo os que, por uma

    razo qualquer, no se satisfazem com as solues existentes. Parece-me um

    procedimento flagrantemente injusto. De qualquer forma, se Crampton julga subjetiva a

    afirmao de que algo um paradoxo, respondo trazendo luz o corolrio dessa

    afirmao: a negao de que algo um paradoxo tambm subjetiva, ao menos at que

  • a candidata a soluo seja trazida ao debate. No h objetividade alguma enquanto a

    conversa ficar no ", sim" contra o "no , no". E se o assunto debatvel - como

    parece que , j que estamos falando da validade de solues racionais para um possvel

    paradoxo - porque no to subjetivo assim.

    Logo depois de citar Gerstner, nosso autor prossegue dizendo que o assunto da

    soberania divina e da responsabilidade humana tambm no era um paradoxo para os

    telogos de Westminster, e passa a citar o trecho da Confisso que diz que "Deus, desde

    toda a eternidade, pelo muito sbio e santo conselho de sua prpria vontade, ordenou

    livre e inalteravelmente tudo quanto acontece, porm de modo que nem Deus o autor

    do pecado, nem violentada a vontade da criatura, nem tirada a liberdade ou

    contingncia das causas secundrias, antes estabelecidas". No difcil perceber, no

    entanto, que essa passagem se limita a afirmar essa verdade, nada declarando sobre se

    os meios de sua concretizao so ou no compreensveis mente humana. Para

    demonstrar o que diz, Crampton faz referncia a outra parte da Confisso: "A doutrina

    pode ser um 'alto mistrio' (isto , difcil de plena compreenso), mas no de forma

    alguma paradoxal (isto , impossvel de ser reconciliada), diz Westminster (III, 8)".

    Porm, Crampton s cita pequenos trechos da seo 8 do captulo III, que no bastam

    para informar o leitor sobre o contedo desse trecho, de modo que o transcrevo aqui

    integralmente:

    "A doutrina deste alto mistrio de predestinao deve ser tratada com especial prudncia

    e cuidado, a fim de que os homens, atendendo vontade de Deus, revelada em sua

    Palavra, e prestando obedincia a ela, possam, pela evidncia de sua vocao eficaz,

    certificar-se de sua eterna eleio. Assim, a todos os que sinceramente obedecem ao

    Evangelho, esta doutrina fornece motivo de louvor, reverncia e admirao para com

    Deus, bem como de humildade, diligncia e abundante consolao."

    Em qual parte da seo acima Crampton encontrou a prova de que os telogos de

    Westminster no viam paradoxo nessa questo reconhecidamente complicada? Parece

    que em parte alguma, pois ele se viu obrigado a complementar o contedo da Confisso

    com uma sentena de sua prpria lavra, nos seguintes termos: "Isso certamente no seria

    possvel com qualquer doutrina que no possa ser reconciliada pela mente do homem".

    A Confisso nao diz isso em lugar nenhum, evidentemente. Crampton quem cr na

  • impossibilidade de tratar "com especial prudncia e cuidado"alguma coisa que extrapola

    os limites de sua razo. Os telogos de Westminster no s no dizem nada sobre esse

    assunto, mas tambm do mostras de pensar de maneira diversa, j que, entre as

    referncias bblicas apontadas por eles em apoio ao contedo da seo 8 do captulo III,

    existem duas que falam claramente acerca dos limites da mente humana: "Quem s tu,

    homem, para discutires com Deus? Porventura, pode o objeto perguntar quele que o

    fez: por que me fizeste assim?" (Romanos 9.20) e "As coisas encobertas pertencem ao

    Senhor nosso Deus; porm as reveladas nos pertencem, a ns e a nossos filhos, para

    sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei" (Deuteronmio 29.29).

    desnecessrio dizer que no citada nenhuma passagem bblica sobre a importncia

    de uma compreenso racional exaustiva das doutrinas reveladas nas Escrituras. Os

    telogos de Westminster quiseram dizer o que disseram: com relao ao assunto da

    predestinao, importa ao crente antes de tudo certificar-se de sua prpria eleio e ver

    nessa doutrina motivo de louvor, reverncia, admirao, humildade, diligncia e

    consolo. O resto inveno da cabea de Crampton, que, alm de mau exegeta, acaba

    de demonstrar que tambm no bom leitor, j que no capaz de distinguir entre seu

    prprio modo de raciocinar e o dos autores do documento histrico que tem diante dos

    olhos. Se ele precisa entender absolutamente tudo sobre a predestinao antes de dar

    louvores a Deus, se essa compreenso se lhe afigura um requisito para tributar a Deus

    aquilo que a Confisso prescreve como dever de todo crente, pior para ele. Os telogos

    de Westminster deram sinais de no precisar disso para ter uma atitude correta diante de

    Deus.

    At aqui analisei apenas os seis pargrafos iniciais do texto de Crampton. O restante

    fica para um post futuro, que dever ser publicado to logo eu tenha tempo de escrev-

    lo. Apenas adianto que ainda no cheguei ao fundo do problema.

    O direito ao mistrio - parte 2

    H duas coisas que eu poderia ter dito no post anterior e acabei me esquecendo, mas que

    ainda d tempo de dizer, embora sejam meros detalhes. A primeira a respeito do

  • versculo citado por Crampton, que diz que Deus no Deus de confuso - e portanto,

    segundo ele, no h paradoxos lgicos na Bblia. J demonstrei que se trata de uma

    pssima exegese. Faltou dizer que a primeira vez que vi essa passagem bblica sendo

    usada fora de seu contexto foi numa brochura da Sociedade Torre de Vigia, a

    organizao das testemunhas de Jeov, que o usava para atacar a doutrina da Trindade,

    sob a mesmssima acusao de ser racionalmente incompreensvel. Por a se v no s

    em que nvel se situa a qualidade da exegese de Crampton, mas tambm que esse

    versculo parece ter um histrico de usos racionalistas indevidos. A segunda coisa que

    o autor afirmou que a expresso "alto mistrio", encontrada na Confisso de F de

    Westminster, significa apenas que um assunto acerca do qual difcil adquirir plena

    compreenso, mas no impossvel. Contudo, ele no forneceu nenhum argumento para

    justificar essa concluso, e isso basta para me convencer de que sua declarao se baseia

    to somente em seus preconceitos teolgicos. Dito isso, vamos em frente, analisando o

    restante do artigo.

    Crampton prossegue defendendo a posio de Clark, segundo a qual"depender de [...]

    paradoxos [...] destri tanto a revelao como a teologia e nos deixa na completa

    ignorncia". Ele cita declaraes de telogos da assim chamada neo-ortodoxia, como

    Karl Barth e Emil Brunner, para os quais as Escrituras necessariamente contm

    inmeras contradies porque Deus no pode se revelar de modo proposicional, e

    portanto a Bblia no pode ser a Palavra de Deus, e tampouco pode ser infalvel.

    Segundo Crampton, a neo-ortodoxia proclama ainda que "a contradio a marca

    registrada da verdade religiosa" e que o agnosticismo teolgico o resultado de tudo

    isso. A consequncia, de acordo com o autor, o divrcio entre a f e a razo, o

    abandono da ideia agostiniana de que a lgica, por ser divinamente ordenada, deveria

    ser confiantemente usada pelo homem. Sem essa concepo, "o homem nunca poderia

    conhecer verdadeiramente coisa alguma", pois nenhuma proposio tem significado se

    no invalidar as proposies que a contradizem. Sem a lgica, diz ele, "No princpio

    criou Deus os cus e a terra" e "No princpio no criou Deus os cus e a terra"

    significam rigorosamente a mesma coisa.

    Entre os criticados esto o filsofo calvinista holands Herman Dooyeweerd e toda a

    escola de Amsterd, para os quais h "um limite entre Deus, como Legislador, e o

    homem, como recipiente. As leis da lgica existem somente do lado humano do

  • limite." E Crampton descreve as consequncias dessa posio: "Se esse limite

    dooyeweerdiano realmente existe, Deus no pode revelar nada s suas criaturas e o

    homem no pode conhecer nada sobre Deus, incluindo a noo do limite". Um pouco

    adiante, o autor transcreve com satisfao as posies de Carl Henry, para quem "a

    insistncia sobre um abismo lgico [...] no pode escapar de uma reduo ao

    ceticismo" e"as questes que se levantam nos crculos ortodoxos sobre se a Bblia

    contm paradoxo lgico, sobre o grande divrcio entre a lgica de Deus e a mera

    lgica humana, e assim por diante, so o resultado da epistemologia dialtica da neo-

    ortodoxia".

    Convm fazer uma pausa e tecer algumas observaes antes de prosseguir com a

    exposio do arrazoado de Crampton. O mais importante a dizer que tudo o que foi

    dito constitui uma mudana de assunto. fcil notar que o argumento sobre a

    importncia da validade da lgica, em especial do princpio da no-contradio,

    apenas o velho argumento de Aristteles contra os sofistas adaptado ao contexto e

    linguagem da exegese bblica reformada. E o argumento de Aristteles foi bem

    empregado, pois ele estava lidando com cticos absolutos que no viam valor algum na

    lgica. Porm, o caso dos telogos criticados por Crampton evidentemente diverso. O

    ponto em discusso no se podemos ou no ler na Bblia que "o Senhor bom" e

    entender que Deus mau. Quaisquer que sejam as razes que levam um telogo

    reformado a defender a possibilidade da existncia de paradoxos lgicos nas Escrituras

    (e pretendo mostrar algumas dessas razes adiante), elas no exigem que a lgica no

    valha nada, nem que toda afirmao bblica possa ser substituda por seu contrrio, e

    muito menos que fazer isso seja o objetivo de algum. Nada disso vem ao caso, de

    modo que no se justificam as predies apocalpticas sobre o fim do conhecimento

    humano que abundam nesse artigo.

    O uso do argumento aristotlico equivocado, mas essa aplicao diz algo sobre o

    modo de raciocinar de Crampton, de modo que no devo perder a oportunidade de

    analisar um pouco melhor esse ponto. Se ele no percebe o que expliquei no pargrafo

    anterior e se apropria do argumento de Aristteles sem pensar duas vezes, porque

    considera sua situao diante de calvinistas como Palmer, Packer, Van Til e

    Dooyeweerd exatamente anloga do estagirita diante dos cticos gregos. E pensa

    assim porque considera que s h duas posies possveis diante da lgica: ou seu reino

  • se estende inclume sobre todos os assuntos, inclusive os divinos, ou no vale

    absolutamente nada em domnio algum da realidade. Em outras palavras, Crampton

    padece daquela doena intelectual demasiado comum entre os modernos, a qual os torna

    incapazes de compreender qualquer coisa que no seja um "tudo" ou um "nada". Para

    eles no h excees, restries, ressalvas ou casos particulares, nem qualquer

    posicionamento intermedirio entre a adeso entusistica e a condenao irrestrita a

    algo. Essa insensibilidade s nuances sempre algo triste de se ver.

    (J que toquei no assunto da filosofia, convm observar, de passagem, que o tratamento

    dado a Dooyeweerd foi bastante injusto. Eu mesmo no tenho muita simpatia pela ideia

    dooyeweerdiana do limite, mas a descrio que o autor faz dela absolutamente

    caricatural. O argumento bom contra Kant, mas no contra o holands, assim como o

    argumento de Aristteles era bom contra os sofistas de Atenas, mas no contra os

    telogos calvinistas. Crampton visivelmente no tem grande talento filosfico e vive de

    fazer associaes pueris e sem sentido.)

    Isso nos leva a outro aspecto importante da argumentao de Crampton: essa

    insensibilidade tem como consequncia direta a incapacidade de dissociar os telogos

    reformados conservadores (ou ortodoxos, como os chama) dos neo-ortodoxos, que so a

    contraparte ps-moderna do liberalismo teolgico racionalista clssico. Crampton sabe

    que os conservadores atribuem Bblia o status de infalvel Palavra de Deus, que

    aceitam o carter proposicional da revelao bblica, de modo que no podem aceitar

    nenhuma forma de agnosticismo, e tampouco idolatram a contradio e o paradoxo

    como se fossem valiosos em si mesmos. Ainda assim, como vimos, ele atribui a

    aceitao do paradoxo nas Escrituras por parte desses telogos a uma influncia

    da "epistemologia dialtica da neo-ortodoxia". Convm que busquemos entender as

    razes da plausibilidade de tal associao aos olhos do autor. Mas para isso precisamos

    fazer um breve retrospecto e analisar novamente, sob um novo ngulo, as declaraes

    de Crampton a respeito da Confisso de F de Westminster feitas no incio do artigo.

    Agora que j foi denunciado o modo de raciocnio "tudo ou nada" de Crampton,

    podemos entender melhor a razo que o levou a olhar para a Confisso e ver seu prprio

    rosto ali refletido, a despeito do que esta realmente dizia. Ele inferiu que a doutrina

    bblica da predestinao deveria ser totalmente abarcvel pela mente humana a partir da

  • recomendao de que ela"deve ser tratada com especial prudncia e cuidado" por

    homens que buscam "a vontade de Deus [como] revelada em sua Palavra". Para

    Crampton, em outras palavras, se a doutrina em questo foi revelada por Deus, e se

    podemos trat-la com prudncia e cuidado, deve ser porque ela totalmente

    compreensvel mente humana. Agora estamos em condies de entender melhor

    esse non sequitur: segundo Crampton, se algo no compreensvel em sua totalidade,

    s pode ser porque toda afirmao equivalente ao seu contrrio e as leis da lgica no

    valem nada. Uma vez que sequer lhe passou pela cabea a hiptese de que uma doutrina

    pode ser compreendida em parte, ou at certo ponto, mas no de todo, sua obtusidade o

    levou a inferir, segundo as leis de sua lgica particular, algo que no estava no texto da

    Confisso. Tampouco lhe ocorreu que a impossibilidade de se abarcar plenamente essa

    doutrina justamente a razo que levou os autores da Confisso a recomendar "especial

    prudncia e cuidado" com relao ao assunto.

    A importncia desse equvoco no pode ser menosprezada nesta altura da discusso, e

    por isso que eu trouxe de volta o contedo da Confisso neste ponto. Pois a acusao de

    Crampton de que os telogos conservadores devem sua aceitao do paradoxo neo-

    ortodoxia requer, dentre outras coisas, um fundamento histrico. Crampton precisa

    sustentar que no havia indcios de tal coisa no meio reformado conservador antes do

    advento da teologia neo-ortodoxa. Assim, ele pode ocupar confortavelmente sua posio

    de defensor da autntica tradio reformada contra as inovaes herticas do sculo XX.

    Porm, se for provado que era diverso do seu o esprito dos telogos puritanos do sculo

    XVII, anteriores no s neo-ortodoxia, mas at ao iluminismo e ao liberalismo

    teolgico, suas afirmaes perdero de imediato toda credibilidade, e ele aparecer

    como o verdadeiro inovador. Nesse caso, teremos boa razo para sair em busca das

    fontes esprias onde ele foi buscar sua prpria inovao. Visto que indiquei no primeiro

    post, com base na Confisso, evidncias de que a situao exatamente essa,

    encarregar-me-ei dessa tarefa no prximo post, em meio a outras consideraes.

  • O direito ao mistrio - parte 3

    Demonstrei no primeiro post desta srie que o pensamento de W. Gary Crampton no

    que diz respeito s potencialidades da mente humana para a compreenso dos assuntos

    divinos no encontra apoio entre os puritanos que redigiram a Confisso de F de

    Westminster, ao contrrio do que pensa o prprio. E terminei a segunda

    postagem mostrando que esse fato bastaria para lanar por terra sua acusao de que

    declaraes do mesmo teor feitas por eminentes telogos calvinistas conservadores do

    sculo XX se devem influncia da neo-ortodoxia. Mas, antes de passar ao prximo

    ponto, no devo perder a oportunidade de fazer um trabalho um pouco melhor e mostrar

    o que tinha a dizer a respeito o prprio Joo Calvino, um sujeito cujas opinies, por

    motivos bvios, devem ser levadas em conta quando o assunto o calvinismo. Seja

    notado que a primeira sentena do trecho a seguir, extrado do comentrio sobre a

    Epstola aos Romanos composto pelo reformador, se parece muito com aquelas

    declaraes de telogos reformados do sculo XX que Crampton cita no incio de seu

    artigo: "Toda verdade proclamada referente a Cristo completamente paradoxal pelo

    prisma do juzo humano. Entretanto, o nosso dever prosseguir em nossa rota. Cristo

    no deve ser suprimido s porque para muitos ele no passa de pedra de ofensa e

    rocha de escndalo. Ao mesmo tempo que Ele prova ser destruio para os mpios, em

    contrapartida Ele ser sempre ressurreio para os fiis." O trecho seguinte, retirado

    das Institutas, esclarece qual deve ser, na opinio de Calvino, a correta atitude diante de

    mistrios como o da predestinao, explicando tambm que a razo disso reside na

    limitao da mente humana:

    "A primeira coisa que se lembrem de que, quando querem saber os segredos da

    predestinao, penetram no santurio da sabedoria divina, no qual todo aquele que

    entra com ousadia no encontra como satisfazer sua curiosidade e mete-se num

    labirinto do qual no pode sair. Porque no justo que, daquilo em que o Senhor

    desejou que fosse oculto em si e acessvel somente ao entendimento divino, o homem se

    meta a falar sem temor algum, nem que revolva e esquadrinhe desde a eternidade

    mesma a majestade e grandeza da sabedoria divina, que Ele quis que adorssemos, e

    no que a compreendssemos, a fim de ser para ns dessa maneira admirvel. [...] Nem

    nos envergonhemos em at este ponto submeter o entendimento sabedoria imensa de

  • Deus, que em Seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas coisas que nem dado, nem

    lcito saber, douta a ignorncia, e a avidez de conhecimento, uma espcie de

    loucura."

    A essncia do pensamento de Calvino em questes como o valor da lgica humana para

    os assuntos divinos e a ausncia de paradoxos nas Escrituras foi muito bem resumida

    por Edward Dowey Jr. em The KnowledgeofGod in Calvin'sTheology: "Calvino, pois,

    estava plenamente convencido de que havia alto grau de claridade e

    compreensibilidade nos temas individuais da Bblia, mas estava, tambm, to submisso

    ante o mistrio divino a ponto de preferir criar uma teologia contendo muitas

    inconsistncias de lgica, ao invs de optar por um todo racionalmente coerente. [...]

    Claridade de temas individuais, incompreensibilidade de suas interrelaes - essa a

    marca registrada da teologia de Calvino."

    Espero que esteja claro que no transcrevo essas citaes por julgar inadmissvel que

    um calvinista discorde de Calvino. Eu mesmo discordo de vez em quando. Tudo o que

    pretendo mostrar aqui que as declaraes a respeito dos paradoxos lgicos nas

    Escrituras, que tanto escandalizam Crampton e os que pensam como ele, no devem

    nada neo-ortodoxia, nem a nenhuma outra corrente moderna, e sim esto de acordo

    com o mais puro esprito do calvinismo, conforme manifestado desde seus primrdios.

    Quem quiser discordar de Calvino tem todo o direito de faz-lo, desde que no atribua

    prpria posio um acordo com a tradio reformada que no existe.

    Uma vez constatado que esse acordo no existe, resta comentar sob outros pontos de

    vista o desacordo que existe. At aqui demonstrei a falsidade histrica das

    reivindicaes de Crampton, mas h outros aspectos sob os quais seu posicionamento

    pode ser criticado. Um deles se encontra na ltima sentena do artigo, onde dito

    que "qualquer tropeo nessa rea conduzir (no mnimo) a uma queda no absurdo neo-

    ortodoxo". Ele se refere, naturalmente, admisso da existncia de paradoxos lgicos

    na Bblia. Mas, j que estamos falando de paradoxos lgicos, convm observar que essa

    declarao negada por outra feita pelo prprio Crampton em outra parte do artigo.

    Depois de afirmar que essa admisso equivale a "sustentar, pelo menos implicitamente,

    uma viso muito baixa da infalvel Palavra de Deus", ele se apressa em

    acrescentar: "Esse declarao no deve de forma alguma ser entendida como uma

  • difamao contra o Dr. Palmer, o Dr. Packer e o Dr. Van Til, todos os quais sustentam

    uma viso elevada da inspirao bblica". Se isso verdade, s pode ser porque esses

    senhores no caram no "absurdo neo-ortodoxo", que, como afirma o autor adiante, o

    mnimo que pode acontecer a algum disposto a admitir o que eles admitem. Essa

    contradio pode parecer de pouca importncia, mas na verdade um indcio de um

    fenmeno muito relevante: entre os que atribuem uma importncia excessiva razo,

    no nada raro constatar que a qualidade de seu raciocnio e a preciso de suas

    declaraes no so exatamente o que seria de se esperar.

    Na verdade, h uma falha lgica muito mais sria em toda a estrutura do artigo, a qual j

    foi indicada acima, mas convm explicit-la e desenvolv-la agora. Ela se encontra,

    uma vez mais, na prpria associao entre a teologia neo-ortodoxa e a teologia

    conservadora dos antagonistas de Crampton acima citados. Como vimos, nenhum

    esforo foi feito no sentido de estabelecer uma relao de parentesco histrico entre as

    duas correntes. O autor espera nos convencer da influncia daquela sobre esta apenas

    pela enumerao de semelhanas de contedo. Trata-se, sem dvida, de um

    procedimento insuficiente. Mas Crampton vai alm: visto que se dirige a calvinistas

    conservadores (que, como tais, so naturalmente antipticos neo-ortodoxia), est certo

    de que qualquer semelhana apontada ser entendida como sintoma de que algo no vai

    bem em certos segmentos do mundo teolgico reformado. Nisso reside o valor retrico

    de tudo quanto dito no artigo acerca da neo-ortodoxia. Contudo, h razes pelas quais

    esse valor retrico no possui um valor lgico equivalente.

    Antes que essas razes sejam expostas, necessrio compreender que estamos falando

    apenas do lado ofensivo do artigo, ou seja, o lado que ataca a posio do oponente, e

    no do que defende a legitimidade de sua prpria posio. importante, contudo, que

    prestemos alguma ateno ao que dito num sentido mais positivo e propositivo. A

    essncia da tese de Crampton, que agostiniana e que ele parece ter assimilado via

    Clark, que "a lgica um atributo do prprio Deus", uma ideia que ele abstrai de

    versculos bblicos que associam Deus e Cristo verdade, sabedoria e ao

    conhecimento, alm de recorrer pela terceira vez malfadada tentativa de provar seu

    argumento por meio de 1 Corntios 14.22 (o versculo sobre o"Deus de confuso", que

    ele cita trs vezes ao todo, sempre no mesmo sentido equivocado). Contudo, nenhum

    desses textos fala explicitamente da razo, e muito menos da lgica. natural esperar

  • que o componente racional e lgico esteja includo na verdade, sabedoria e

    conhecimento divinos, mas esses versculos no so de nenhuma ajuda quando a

    questo saber se a lgica humana pode apreender integralmente os pensamentos

    divinos e as verdades espirituais mais profundas, ou mesmo se o aspecto lgico e

    racional est em primeiro plano na sabedoria divina e no conhecimento que podemos

    obter de Deus. Parece-me que a resposta forosamente negativa, pois considero essa

    ideia uma influncia deletria da filosofia grega sobre o pensamento cristo. E, aos que

    gostam de salientar que Cristo o Logos, respondo que no nego que haja alguma

    semelhana com o conceito grego, mas considero convincente a tese exposta por F. F.

    Bruce em seu comentrio ao Evangelho segundo Joo, de acordo com a qual o uso do

    termo grego naquela obra pode ser explicado inteiramente dentro do ambiente judaico,

    no sendo necessrio supor que Joo reconhecesse (ou mesmo conhecesse) o conceito

    dos filsofos gregos ou fosse por eles influenciado. Seja como for, o fundamento

    proposto por Crampton para sua tese absolutamente insuficiente.

    Devo esclarecer que, embora eu no me oponha ideia de que a coerncia lgica seja

    um atributo divino, nem por isso concordo com Crampton quanto s consequncias que

    ele extrai, quer da asseverao, quer da negao dessa tese. O que se v aqui o mesmo

    que j apontei no post anterior, a saber, a incapacidade de sequer conceber posies

    intermedirias. o caso do comentrio do autor sobre a discusso gerada por Isaas

    55.3-9: que significa a declarao bblica de que os pensamentos de Deus so mais altos

    que os nossos? Crampton critica a tese de que a passagem afirma uma total diferena

    entre a mente divina e a humana, e pensa com isso firmar como inevitvel sua posio

    de que "a diferena entre os pensamentos de Deus e os pensamentos do homem de

    grau, no de tipo". Mas por que seriam essas as nicas alternativas disponveis? Por que

    os pensamentos de Deus no poderiam ter algo em comum com os nossos - o suficiente

    para tornar vlidos muitos destes ltimos - e ao mesmo tempo transcend-los

    infinitamente em qualidade, e no apenas em grau?

    Em suma, Crampton busca estabelecer sua posio como bvia a partir da crtica de

    uma mera caricatura da posio alternativa. Some-se a isso a imensa superficialidade de

    sua exegese, e o resultado uma absoluta insuficincia argumentativa na justificao de

    suas teses. Uma vez constatado esse fato, abre-se a possibilidade de que os elementos

    centrais de seu pensamento padeam do mesmo defeito que ele supe enxergar em seus

  • antagonistas: a influncia de alguma corrente de ideias que pouco ou nada tem de

    autenticamente crist e bblica. Explorarei melhor esse ponto no prximo post, que

    dever tambm ser o ltimo desta srie.

    O direito ao mistrio - parte 4

    Nos posts anteriores critiquei as teses de Crampton do ponto de vista lgico e histrico,

    apontando a superficialidade com que l seus antagonistas e tambm demonstrando a

    inconsistncia dos argumentos com que pretende construir sua prpria alternativa.

    Terminei o ltimo post apontando como plausvel a hiptese de que o autor deve

    elementos importantes de seu pensamento a uma fonte essencialmente antibblica.

    Contudo, no apontei nenhuma evidncia positiva disso, e tampouco abordei a questo

    de um ponto de vista teolgico. o que pretendo fazer nesta ltima postagem.

    Como vimos, boa parte do argumento de Crampton consiste em apontar semelhanas

    entre as declaraes de seus antagonistas conservadores e as de telogos neo-ortodoxos.

    Sendo assim, ele no poder reclamar se eu adotar o mesmo procedimento e disser com

    o que se parecem seus louvores razo. Parecem-se com os de todos os descendentes do

    cartesianismo e do iluminismo, incluindo-se a os racionalistas do sculo XVII, os

    enciclopedistas do XVIII, os positivistas e telogos liberais do XIX, os materialistas

    darwinistas, comunistas e outros cientificistas do sculo XX. Se Voltaire, Marx, T. H.

    Huxley, Kardec, Lnin, Russell, Bultmann, Sagan ou Dawkins lessem a Confisso de F

    de Westminster e o artigo de Crampton, sem dvida veriam nesse contraste uma

    evidncia do "progresso" do calvinismo ao longo dos sculos em direo s luzes da

    razo. Todos eles repeliam (ou repelem) horrorizados a mera ideia de que algo na

    realidade pudesse exceder os limites de nossa razo, pondo-se logo a tecer

    consideraes alarmadas sobre os perigos do "irracionalismo".

    No meu desejo, de forma alguma, tomar partido num debate entre racionalistas e

    irracionalistas. Inclusive tenho um post, que recomendo aos interessados nessa

    pendenga, no qual acuso ambos de serem farinha do mesmo saco. J li racionalistas

  • cientificistas e tambm j li irracionalistas ps-modernos, e em parte por isso que sei

    que ambos so igualmente perniciosos, e que no se pode evitar um pecado caindo em

    outro. Crampton, porm, no sabe disso, e acabou por cair no mesmo dualismo que

    acomete o mundo: elegeu um dos erros como o vilo e se encaminhou para o erro

    oposto como se fosse o heri. E seu heri, concorde ele ou no com o nome que lhe

    dou, o racionalismo. Trata-se, devo dizer, de um velho conhecido meu. Encontrei-o

    ainda na adolescncia, e o Departamento de Fsica que frequentei por cinco anos em

    nada me incentivou a abandon-lo. O racionalismo foi a minha tentao intelectual at

    os vinte anos, e por isso que conheo de perto, de dentro, o perigo espiritual que ele

    representa. E tambm por isso que no pude ficar em silncio ao me deparar com um

    racionalismo com roupagens de teologia calvinista conservadora.

    Como argumento contra a associao feita por Crampton entre calvinistas e neo-

    ortodoxos, citar semelhanas entre as concepes do autor e as de eminentes pensadores

    racionalistas, dentro ou fora da igreja, resposta suficiente. Mas preciso ir alm e

    demonstrar que minha associao no falaciosa como a dele. Para isso, nada melhor

    que explorar os efeitos dessa mentalidade no prprio texto de Crampton. Na ltima

    pgina, antes de apresentar sua concluso, o autor enumera os "trs obstculos

    insuperveis" propostos por Robert Reymond para quem sustenta a existncia de

    paradoxos lgicos nas Escrituras. O primeiro o da suposta subjetividade da afirmao

    dos paradoxos, obstculo que j superei noprimeiro post. Os outros dois esto

    intimamente ligados e so bastante reveladores.

    Segundo o autor, o problema com a afirmao de que as contradies bblicas so

    apenas aparentes que "se nenhuma quantidade de estudo ou reflexo pode remover a

    contradio, no h meios disponveis para distinguir essa contradio 'aparente' de

    uma contradio real". Crampton pergunta: "Como, ento, o homem sabe se est

    abraando uma contradio real (a qual, se encontrada na Bblia [...], reduziria a

    Escritura ao mesmo nvel do contraditrio Alcoro do islamismo) ou uma contradio

    aparente?" Esse foi o segundo obstculo. O terceiro trata da afirmao de que a verdade

    pode estar em declaraes mutuamente irreconciliveis. Quem cr nisso "abandonou

    toda possibilidade de detectar uma falsidade real". Qualquer coisa que contradiga

    algum ensino das Escrituras poderia ser aceita como apenas mais uma contradio

    aparente. Nesse caso, Crampton conclui, "a exclusividade do cristianismo como a nica

  • religio verdadeira revelada morrer a morte de milhares de qualificaes".

    Tenho vrias coisas a dizer sobre esse argumento bicfalo. A primeira que todas as

    razes levantadas contra a ideia da contradio aparente apenas desenvolvem suas

    supostas consequncias, mas de modo algum tornam implausvel sua realidade. Para

    ilustrar o que digo, retomarei o exemplo da conciliao entre a predestinao e a

    liberdade humana. Suponhamos que haja uma soluo racionalmente impecvel para o

    impasse, e que o homem mais inteligente e bem preparado que j houve ou haver

    pudesse chegar a ela se a perseguisse com todas as foras durante mil anos. Nesse caso,

    claro que todos os esforos dariam em nada. Isso mostra que Crampton tem razo ao

    dizer que, na prtica, no possvel distinguir logicamente uma contradio real de uma

    aparente, e por isso mesmo que no fiz nenhuma tentativa nesse sentido. Mas tambm

    mostra que no h nada de inverossmil na suposio de que algumas verdades podem

    ser, na prtica, inapreensveis pela razo humana, ainda que no o sejam em teoria. Por

    isso, para defender a existncia de mistrios, no necessrio negar que a coerncia

    lgica seja um atributo divino, nem afirmar que "nenhuma quantidade de estudo ou

    reflexo pode remover a contradio". Talvez alguma quantidade seja suficiente, mas

    no praticvel para ns. E Crampton no levantou uma nica objeo vlida a essa

    possibilidade.

    Deve ser observado que, tambm nesse contexto, a predio do fim apocalptico da

    teologia bblica no se justifica. Ao aceitar a existncia de mistrios nas Escrituras,

    Calvino, os telogos de Westminster e os citados por Crampton no pretendiam

    promover - e no promoveram - uma debandada geral dos domnios da razo. Ao

    contrrio, a asseverao de um mistrio s aceita depois de completado o rduo

    trabalho da exegese bblica, no qual, sem dvida, a razo toma parte, assistida pelo

    Esprito Santo. Para afirmar que a dupla natureza de Cristo um mistrio, foi necessrio

    ler atentamente a Bblia e constatar que tanto a divindade quanto a humanidade de

    Cristo so ali claramente ensinadas, e ento constatar os impasses a que isso leva. Da

    mesma forma, a doutrina da Trindade foi inferida a partir da constatao exegtica de

    que o Pai, o Filho e o Esprito so distintos entre si, que cada um deles Deus e que s

    h um Deus. depois de constatados os fatos, e no antes, que algum pode tentar

    explicar o que v nas Escrituras e, no conseguindo, declarar que o assunto um

    mistrio. assim que, contrariando os medos de Crampton, a razo sempre teve seu

  • papel assegurado, sem exageros, na tradio reformada.

    Alis, o medo do colapso da racionalidade face ao mistrio um dos vrios pontos que

    Crampton e os racionalistas seculares tm em comum. Um dos principais motivos que

    levam os cientificistas a rejeitar a priori o design inteligente, por exemplo, claramente

    anlogo: eles temem que, com a admisso da insuficincia das leis naturais, todos os

    cientistas do mundo interrompam suas pesquisas e experimentos e passem a atribuir

    todos os eventos a alguma inescrutvel inteligncia superior. Trata-se de um absurdo,

    evidentemente, mas o poder paralisante que o medo exerce sobre a razo no diminui

    em nada quando o apavorado em questo um racionalista.

    O medo, na verdade, nos levar diretamente ao corao do problema. O maior medo de

    Crampton que a abdicao da razo destrua o prprio fundamento da superioridade da

    f bblica. Ao admitir que h na doutrina crist fatos que nossa razo no pode abarcar,

    perderemos o direito de apontar para as contradies de outros sistemas religiosos como

    provas de sua falsidade. Sem esse que o grande argumento de muitos apologetas - a

    Bblia no se contradiz, mas todo o resto sim - resta apenas um relativismo e uma

    equivalncia de todas as religies, e perdemos a prpria justificativa para sermos

    cristos.

    Minha experincia pessoal no corresponde a nada disso. Tornei-me cristo porque

    Deus me regenerou, tirou meu corao de pedra e me deu um corao de carne, aplicou

    a mim o valor expiatrio da obra de Cristo, capacitou-me a desejar a reconciliao com

    Deus e a ter f em Cristo como nico mediador da nova aliana. E continuo a ser cristo

    porque Deus tem levado minha f a perseverar, de modo a completar a obra iniciada,

    conforme sua promessa, e porque o Esprito Santo testifica com meu esprito que sou

    filho de Deus e abre meus olhos para a compreenso das verdades reveladas nas

    Escrituras. O caso de Crampton, ao que parece, bem diferente do meu: ele se tornou

    cristo porque o Esprito deu satisfaes impecveis sua razo, a qual ento se dobrou

    diante da evidncia. E s continuar a ser cristo at o dia em que sua razo, como

    rbitro soberano, detectar na Bblia alguma contradio (real ou aparente, pois ambas

    so indistinguveis) e o Esprito no for capaz de lhe dar uma explicao convincente

    para tamanho disparate.

  • No pargrafo anterior, descrevi minha experincia com Deus em termos calvinistas e

    bblicos no apenas porque tais termos de fato descrevem com perfeio o cerne dessa

    experincia, mas tambm para evidenciar o contraste com as declaraes de Crampton

    sobre os motivos pelos quais se deve ser cristo. O grande problema com o

    racionalismo, teolgico ou no, est bem ilustrado aqui: o autor no mais descreve a

    razo de sua esperana com base na experincia concreta da graa de Deus, e sim a

    partir da robustez do esquema terico e racional que foi capaz de erigir. esse o

    resultado natural da crena no domnio absoluto da razo: o olhar desviado de Cristo e

    sua misericrdia para questes secundrias.

    O terceiro perigo tambm decorre do medo, e tambm est exposto acima: a suposta

    vulnerabilidade da doutrina crist frente a doutrinas concorrentes como resultado da

    admisso de paradoxos na Bblia. Quanto a isso, observo, em primeiro lugar, que a

    reduo do valor de uma doutrina coerncia racional de suas construes tericas em

    si um critrio bastante deficiente que s poderia mesmo brotar da cabea de um

    racionalista. O valor de uma doutrina se mede tambm pelo tipo de homem que ela

    produz. E esse fato, dentre muitas outras coisas, torna perfeitamente possvel comparar

    duas religies (ou dois sistemas quaisquer), ainda que haja contradies (reais ou

    aparentes) em ambas. Mesmo a comparao racional possvel, no entanto, pois o tipo,

    o lugar e o efeito das inconsistncias lgicas varia muito entre as diversas doutrinas.

    Acima de tudo, porm, necessrio ter em mente a doutrina bblica e reformada da

    depravao total, da qual um dos corolrios que ningum jamais se tornou ou se

    tornar cristo pela persuaso racional, e sim apenas pela operao regeneradora do

    Esprito nos coraes.

    A propsito, inconcebvel para mim que um telogo reformado se aventure a discorrer

    sobre o assunto da justificao racional da f bblica sem tocar no tema importantssimo

    do papel do pecado enquanto obscurecedor da inteligncia humana, especialmente em

    assuntos diretamente relacionados a Deus e salvao, que uma das nfases

    primordiais da doutrina reformada sobre a cognoscibilidade de Deus. Crampton, no

    entanto, faz justamente isso. Se sua argumentao j deficiente frente constatao da

    finitude humana em contraste com a infinitude divina, torna-se ainda mais reprovvel

    quando lembramos que essa finitude est corrompida pelo pecado e que, como nos

    lembra Calvino nas Institutas, ningum pode obter um conhecimento autntico de Deus

  • ou das Escrituras sem a iluminao do Esprito de Deus e sem a santificao

    correspondente. Esse mais um exemplo das nfases erradas a que o racionalismo leva.

    Termino aqui esta srie sobre o artigo de Crampton e sobre o racionalismo

    pseudocalvinista ali exposto. Se eu fosse um incrdulo racionalista insatisfeito e tivesse

    meu primeiro contato com o calvinismo atravs de Crampton, provavelmente teria me

    aborrecido e repelido de imediato a f reformada, desanimado com a perspectiva de

    trocar um racionalismo secular por um religioso. Felizmente conheci a doutrina

    reformada por outros meios, e graas a isso posso avaliar a extenso do desservio

    prestado pelo autor (e por quantos porventura pensem como ele) doutrina bblica. Esse

    procedimento incentiva os crentes a depositar sua confiana na prpria razo, e no na

    obra consumada de Cristo; e a buscar segurana na coerncia racional, e no nas

    promessas de Cristo. Talvez seja por isso mesmo que Deus no nos deu respostas

    exaustivas, quer nas Escrituras, quer na revelao geral: Ele no deseja que nos

    recusemos a reconhecer nossas limitaes tambm nessa rea, e muito menos que lhe

    imponhamos condies para permanecer firmes na adorao bblica, ao invs de

    humildemente solicitar sua graa para permanecermos. De modo que devemos aceitar

    de Cristo o que quer que Ele deseje nos dar, sejam explicaes racionais, sejam indcios

    a partir dos quais podemos chegar a respostas logicamente vlidas, sejam mistrios nos

    quais s podemos crer.

    De qualquer modo, estou feliz e grato a Deus porque ele me curou do racionalismo que

    outrora foi parte de mim. Meu desejo que outros cristos reformados tambm venham

    a perceber que h alguns mistrios entre os cus e a terra, apesar do que sonha a v

    filosofia de W. Gary Crampton.

    *******

    Adendo: No deixem de ler o texto da Norma, minha esposa, sobre um tema

    relacionado a este, envolvendo Calvino e Chesterton, nem o posicionamentodo pastor

    Augustus Nicodemus Lopes, um dos maiores telogos calvinistas do pas. No mesmo

    post, alis, h um extenso e muito esclarecedor comentrio do pastor Hermisten Maia,

    grande estudioso de Calvino, acerca das posies do reformador sobre o assunto. Os

  • trechos que citei de Calvino na terceira parte esto todos ali, embora no

    necessariamente na mesma traduo.