26 REUNIO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA Dilemas da (Des)Igualdade na Diversidade
01 a 04/06/2008 - Porto Seguro BA MESA REDONDA Coordenao de Helosa Pontes O Ensino da Antropologia em Portugal: textos e contextos
Ricardo Vieira CIID-IPLeiria
(Centro de Investigao Identidades e Diversidades do Instituto Politcnico de Leiria)
Portugal [email protected]
Resumo
Ao nvel da graduao, apresentar-se- um olhar reflexivo sobre a antropologia leccionada em Lisboa, a partir dos anos 70/80, no ISCSP (Instituto Superior de Cincias Sociais e Polticas), essencialmente uma antropologia cultural assente na experincia da formao de quadros tcnicos que iam trabalhar para as colnias africanas; FCSH-UNL (Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa), uma antropologia essencialmente estruturalista, com base na obra de Claude Lvi-Strauss; ISCTE (Instituto de Cincias do Trabalho e da Empresa), uma antropologia social desenvolvida particularmente a partir da escola anglo-saxnica; e em Coimbra, uma antropologia bio-scio-cultural desenvolvida na Faculdade de Cincias. Para alm da evoluo destas licenciaturas e dos objectos e mtodos privilegiados ao longo de duas dcadas, analisar-se- tambm a insero da disciplina de antropologia em outros cursos de cincias sociais e na educao, em particular na formao de professores. Ao nvel da formao ps-graduada, apresentar-se-o algumas ideias sobre a antropologia moderna desenvolvida hoje em torno do estudo da(s) identidade(s) sociais, culturais, pessoais, dos estudos urbanos, do patrimnio cultural e da educao inter e multicultural.
O ENSINO DA ANTROPOLOGIA EM PORTUGAL: TEXTOS E CONTEXTOS
Ricardo Vieira CIID-IPLeiria
(Centro de Investigao Identidades e Diversidades do Instituto Politcnico de Leiria)
Portugal [email protected]
1. Contextos da Emergncia do Ensino da Antropologia em Portugal nos ps 25 de Abril, aps a chamada revoluo dos cravos1, que em Portugal a
antropologia, enquanto curso superior, licenciatura (graduao) ganha maior relevo e
desenvolvimento. Antes, j existira, enquanto curso para o treinamento de
administradores para as colnias portuguesas onde se chegara concluso de que o
governo dos outros deveria passar no pela violncia fsica mas, essencialmente, pelo
conhecimento da organizao social e poltica do outro, o indgena de Angola,
Moambique, Guin, Timor, etc. Era este o grande objectivo dessa escola designada de
ISCSPU Instituto Superior de Cincias Sociais e Poltica Ultramarina onde no s se
ensinava antropologia como, tambm, administrao pblica e outras matrias.
Depois do 25 de Abril de 1974, e em contexto de descolonizao, esta escola veio a
deixar o Ultramarina e a passar a chamar-se, simplesmente, ISCSP - Instituto Superior
de Cincias Sociais e Polticas onde ainda hoje se ensina antropologia, sociologia,
administrao pblica, relaes internacionais, servio social, etc.
Depois desta nfase no poltico, essencialmente africano, e com a influncia dos
estudos e de autores anglo-saxnicos, a antropologia enquanto licenciatura seguiu de
perto a escola americana e os estudos culturalistas que foi introduzindo nos seus planos
de estudo. Nesta escola, todos os cursos tinham, de incio, o primeiro e segundo anos de
graduao comuns, contendo todos eles cadeiras e matrias de antropologia cultural.
Nos finais da dcada de 70, uma nova escola de Cincias Sociais emergia em
1 Excluimos desta breve anlise a antropologia que, quer em Coimbra quer no Porto, j existia ligada biologia humana.
Portugal sob a influncia da escola Francesa Les Annalles trazida para Portugal pelo
saudoso Professor Magalhes Godinho que havia trabalhado em Paris com Fernand
Braudel e outros autores da Histria das Mentalidades. Essa nova escola a FCSH-UNL
Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Sob a
influncia desse pensamento multi e interdisciplinar francs, a primeira licenciatura
(graduao), embora tivesse matrias de antropologia, sociologia e histria, chamava-se
Licenciatura em Cincias Humanas e Sociais. Passados dois ou trs anos veio a extinguir-
se e a dar origem aos cursos separados de Antropologia, este coordenado pelo Professor
Augusto Mesquitela Lima, tambm ele com experincia e trabalho de campo em frica,
Sociologia e Histria.
Esta escola a FCSH-UL ao nvel da Antropologia, foi fortemente marcada
pelo pensamento estruturalista de Claude Lvi-Strauss. A sua obra era praticamente toda
analisada nas diferentes cadeiras.
No incio dos anos 80 surgia, tambm em Lisboa, a 3. escola a graduar
antroplogos: o ISCTE Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa que
nascera como uma Escola de Gesto, onde a Sociologia emergiu primeiro como
Cincias do Trabalho e logo a seguir a antropologia se desenvolveu como Antropologia
Social. Esta, ao contrrio da da FCSH-UNL, foi fortemente marcada pela Antropologia
Britnica de Cambridge e Oxford, com forte orientao terica do Professor Raul Iturra e
seus Mestres Jack Goody e Meyer Fortes, entre outros.
No Incio da dcada de 90, em Coimbra, nascia a 4. licenciatura em Antropologia
de Portugal. A herana dos estudos biolgicos marcou at ao momento esta graduao
como um hbrido de matrias da biologia e da antropologia cultural e social. De tal modo
assim que a graduao est inserida na Faculdade de Cincias da Universidade de
Coimbra e no na Faculdade de Letras e funciona, justamente, junto do Museu de
Antropologia.
No pretendendo fazer deste texto uma histria da antropologia em Portugal2,
mas, to s, apontar algumas das linhas orientadoras do seu desenvolvimento como
disciplina autnoma dentro das Cincias Sociais e Humanas, desenvolveria, de seguida,
2 At porque muitos outros o fizeram j de forma muito mais organizada. Recomenda-se a obra de Pina Cabral, Contextos da Antropologia, Lisboa: Dfel.
algumas ideias da aplicabilidade destas graduaes e do saber antropolgico no s
noutras licenciaturas, que no de antropologia, e tambm no ensino secundrio.
Em particular, gostava de deixar um apontamento mais alongado sobre o
desenvolvimento da antropologia da educao, seja com este nome especfico, seja com o
nome de Antropologia Social e/ou Cultural ao servio da Educao e do Ensino.
2. A Antropologia ensinada noutras graduaes
A antropologia parece estar um pouco na moda em Portugal nas dcada de 80/90
e entra como disciplina obrigatria ou optativa em graduaes como Geografia, Histria,
Arquitectura, Servio Social, Relaes Internacionais, Psicologia, Cincias Polticas,
Turismo, Medicina, Enfermagem, Psiquiatria e na Formao de Professores e
Educadores.
Tambm no Ensino Secundrio ganha espao no plano de estudos da variante de
Jornalismo e Turismo e leccionada inicialmente por gegrafos, por filsofos e
historiadores, por falta de graduados suficientes em Antropologia, no incio da dcada de
80. Actualmente no existe mais n ensino secundrio.
Os Cursos do Magistrio Primrio, que preparavam profissionais para serem
professores do ensino primrio e para serem educadores de infncia, passaram a integrar
uma disciplina de Antropologia Cultural como forma de relativizar o pensamento dos
futuros Educadores e Professores e para darem ferramentas tericas para construir pontes
inter/multiculturais entre o mundo cultural rural to marcado na poca em Portugal e a
cultura legtima do Estado. A Bblia antropolgica dos Magistrios, usada por
professores que naquela poca raramente eram antroplogos, era a traduo brasileira, em
3 tomos, da obra de Merville Herskovits (Man and His Works).
Extintas as escolas do Magistrio Primrio, que concediam apenas diplomas de
cursos mdios, nasceram as actuais ESEs Escolas Superiores de Educao - por volta
de 1985, que passaram a integrar em todos os cursos de formao de professores,
Antropologia Cultural, numas, precedida de Introduo s Cincias Sociais, e scio-
antropologia noutras, dependendo do quadro de formadores e correntes cientfico-
pedaggicas vigentes.
O corpo docente das emergentes Escolas Superiores de Educao foi alimentado,
basicamente por todo o pas, por professores que haviam feito os seus mestrados em
Cincias da Educao, financiados por um projecto do Banco de Portugal, ora no Estados
Unidos da Amrica, na Universidade de Boston, ora em Frana, na Universidade de
Bordus. Os que fizeram as suas especializaes em Anlise Social da Educao ou em
Metodologia dos Estudos Sociais so, provavelmente, os docentes que esto na origem
das disciplinas de Anlise Social da Educao, Sociologia da Educao e Antropologia
da Educao dos currculos de formao das ESEs. Nalgumas escolas surgiu mesmo a
disciplina de Scio-Antropologia, como o caso de Castelo Branco, leccionada por Lus
Costa. Na ESE de Setbal foi criada a disciplina de Antropologia da Educao, que
funcionou pela primeira vez no ano lectivo de 1988/89, e cuja coordenao tem sido
assegurada por Lus Souta, tambm ele Mestre em Cincias da Educao3 pela
Universidade de Bston. Na ESE de Leiria surgiu a Antropologia da Educao como
disciplina optativa dos cursos de Formao de Professores para o 1 Ciclo e de
Educadores de Infncia, em 1992, sob proposta de Ricardo Vieira4.
Outras Escolas Superiores de Educao e Universidades pblicas e privadas,
embora no tendo especificamente Antropologia da Educao nos seus currculos,
acabam por ter algumas disciplinas viradas para a questo da educao e diversidade
cultural que, inevitavelmente, no podem/devem perder a experincia da Antropologia
nessas matrias5.
3. A Antropologia da Educao em Portugal
3 Lus Souta, Professor Coordenador da ESE de Setbal, , no entanto, licenciado em Antropologia e, actualmente, est a concluir o seu doutoramento em Antropologia da Educao no ISCTE. 4 Ricardo Vieira, sem qualquer grau em Cincias da Educao, desde muito cedo que orientou a Antropologia (licenciatura) para a questo da educao e da diversidade cultural e para a legitimao da Antropologia da Educao (tese de mestrado e de doutoramento) sob a orientao do Doutor Raul Iturra, Professor Catedrtico do ISCTE. 5 Ver a este propsito a obra Nos Bastidores da Formao: Contributo para o Conhecimento da Situao Actual da Formao de Adultos para a Diversidade em Portugal, de Carlinda Leite, Rosa Madeira, Rosa Nunes e Rui Trindade, coordenada por Luza Corteso (Corteso, 2000). O trabalho de Carlos Cardoso, professor da Escola Superior de Educao de Lisboa, notvel sobre a questo da escola e das propostas inter/multiculturais.
No incio dos anos 80, a Licenciatura em Antropologia da Faculdade de Cincias
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa tinha uma cadeira optativa de
Antropologia da Educao6 leccionada pelo professor Viegas Tavares, que acumulava a
docncia com a de quadro superior no Ministrio da Educao.
Num artigo de 1985, Manuel Jos Alves Viegas Tavares resumia assim a
Antropologia da Educao:A Antropologia da Educao analisa as relaes
escola/comunidade e as suas implicaes no processo de enculturao dos jovens.
Aplicando os mtodos de pesquisa e anlise de cincias afins, mas centrando-se sempre
no mtodo etnogrfico de observao participante na anlise dos processos
educacionais, visa contribuir para a soluo de problemas da prtica e da poltica
educativa (Tavares, 1985: 53). Viegas Tavares veio a fazer o seu doutoramento sobre o
insucesso escolar e as minorias tnicas em Portugal7.
Paralelamente, Jorge Crespo desenvolvia tambm uma cadeira optativa de
Antropologia do Jogo. De resto, como ele prprio diz, Nas sociedades tradicionais, os
jogos integravam-se no complexo de cerimnias cclicas atravs das quais as crianas e
os jovens se apropriavam da cultura das suas comunidades. Em particular, nos ciclos do
Inverno e da Primavera, destacam-se os jogos que constituam experincias
fundamentais da morte e da vida, no processo cclico de reestruturao do mundo.
Nestes casos, o jogo um dos elementos mais importante na formao das
personalidades, no domnio das relaes com os outros, espao e tempo da liberdade
favorvel inovao e transformao da realidade (Crespo, 1999: 7).
Terminada a minha licenciatura, e depois de 2 anos a ensinar Geografia e
Antropologia no Ensino Secundrio8, vim a ingressar na Escola Superior de Educao de
6 No ano lectivo de 1983/84 eu prprio fui seu aluno e desenvolvi para avaliao final um pequeno trabalho de pesquisa etnogrfica numa escola de Lisboa com o financiamento do Ministrio da Educao (cf. currculo vitae que integra estas provas de agregao). 7 TAVARES, Manuel Viegas (1998). O insucesso escolar e as minorias tnicas em Portugal: uma abordagem antropolgica da educao, Lisboa: Piaget. 8 Na rea de Estudos Humansticos, ramo de Jornalismo e Turismo, o Ensino Secundrio os alunos tinham, obrigatoriamente, de cursar Antropologia. O programa e o manual mais divulgado era, na altura, da autoria de Augusto Mesquitela Lima, Benito Martinez e Joo Lopes Filho. Os professores de Antropologia Cultural, do 10 ano, no tinham habilitao prpria nem formao especfica em Antropologia, tendo sido na sua generalidade, os professores de Geografia, encarregues de a leccionar o que nem sempre fazem com gosto, mas apenas por necessidade de complemento de horrio, pois o nmero de aulas de Antropologia no chega para formar um horrio lectivo normal de 22 horas (Souta, 1982: 52).
Leiria9 que tinha iniciado a sua funo docente h apenas um ano. Todos os cursos de
ento10, incluam nos seus curricula a disciplina de Introduo s Cincias Sociais, no 1
semestre, sendo que os cursos de Educadores de Infncia e Professores do 1 Ciclo do
Ensino Bsico tinham, depois, no 1 semestre do 2 ano, Antropologia Cultural. Fui
convidado a construir o programa de Antropologia Cultural e fi-lo, em 1987, com uma 2
parte que, depois das noes operatrias bsicas da Antropologia Geral e das Cincias
Sociais, apontava para o estudo do processo educativo embora, na altura, no tivesse
formao suficiente para ir alm do Culturismo Americano e da escola de cultura e
personalidade. Os livros obrigatrios de ento, lembro-me, era o clebre Padres de
Cultura de Ruth Benedict e os conflitos e Geraes de Margaret Mead.
inegavelmente, a Raul Iturra que se deve o boom do desenvolvimento da
Antropologia da Educao em Portugal. Em 1987 Raul Iturra dava o grande pontap de
sada com o trabalho de campo com observao participante, iniciado em VilaRuiva, com
Filipe Reis, Pulo Raposo, Nuno Porto e Berta Nunes. Aproveitavam o tempo livre que a
escola concedia s crianas para fazerem actividades com elas a fim de compreender as
suas representaes sociais e conhecimento local. Assim, brincavam famlia, ao
hospital, doena, etc.. Compravam cadernos, papel e lpis e faziam com as crianas os
trabalhos de casa. Iturra, atravs da metodologia das genealogias, levava os alunos a
pensar a sua histria, o patrimnio dos pais, terras, os animais etc11. (cf. Iturra e Reis,
1990 e Iturra, 2000). Dessa investigao foram publicados, na coleco A Aprendizagem
Para Alm da Escola, os seguintes livros: Fugirs Escola Para Trabalhar a Terra:
Ensaios de Antropologia Social Sobre o Insucesso Escolar de Raul Iturra (1990a); A
Construo Social do Insucesso Escolar: Memria e Aprendizagem em Vila Ruiva de
Raul Iturra (1990b); O Corpo, a Razo, o Corao: A Construo Social da Sexualidade
em Vila Ruiva de Nuno Porto (Porto; 1991); Corpos, Arados e Romarias: Entre a F e a
Entretanto, a disciplina de Antropologia Cultural desapareceu com a nova reforma curricular, tendo deixado de ser leccionada em 1993/94(Santos e Seixas, 1997: 116). 9 No ano lectivo de 1987/88 10 poucos na altura: Formao de Professores para o 1 Ciclo, Educadores de Infncia, Professores do 2 Ciclo do Ensino Bsico, variante de Portugus/Francs. 11 Ver entrevista dada por Raul Iturra em 1999 a Ana Levy Aires, Ana Felisbela Lavado e Paula Godinho para a revista Arquivos da Memria do Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa da Universidade Nova de Lisboa, n. 6/7.
Razo em Vila Ruiva de Paulo Raposo (Raposo, 1991); Educao, Ensino e
Crescimento: O Jogo Infantil e a Aprendizagem do Clculo Econmico em Vila Ruiva de
Filipe Reis (Reis, 1991); O Saber Mdico do Povo de Berta Nunes (Nunes, 1997).
Vieram a juntar-se a estas publicaes a Escola e Aprendizagem para o Trabalho
num Pas da (Semi)periferia Europeia de Stephen Stoer e Helena Arajo (Stoer e Arajo,
1992); e Entre a Escola e o Lar: O Curriculum e os Saberes da Infncia de Ricardo
Vieira (Vieira, 1992).
4. Investigao e Ensino da Antropologia da Educao no ISCTE, Lisboa
Este objectivo de entender a racionalidade reprodutiva tem-me levado da Antropologia Econmica Antropologia da Educao, passando, pelo meio, por criar, em conjunto com uma equipa que angariei enquanto colaborava na fundao do departamento do ISCTE, uma Antropologia Urbana, uma Antropologia do Turismo, Antropologia da Sexualidade, Antropologia do Gnero. [] Eu queria entender a racionalidade daquelas estratgias reprodutivas. Isso levou-me, por insistncia de Paulo Raposo, que fez comigo trabalho de campo, ou o Filipe Reis, ou o Nuno Porto, a meter-me por uma ideia feliz daquela equipa: como a epistemologia do lar, a epistemologia dos seres humanos, atravs do que que pensam e como pensam as crianas acerca do que acontece na sua casa. Ento, inventmos os ATL, os tempos livres, e, a partir das brincadeiras e jogos passmos a analisar, comemos a brincar com as crianas. As crianas vem o mundo atravs dos olhos dos adultos, porque a criana no tem ainda conceitos, trata mal os conceitos. [] As crianas entendem o mundo da forma que os pais o entendem, tanto assim que os inimigos dos pais, as crianas no entendem porqu mas so tambm seus inimigos12.
A criana no o domnio de ningum, do domnio dela prpria. A cultura est dividida em duas partes: a dos adultos e a da infncia, s que ningum d por isso13
A Antropologia da Educao, em termos de investigao, emergiu no ISCTE,
como disse, pela mo de Raul Iturra que assim foi progredindo da Antropologia
12 Extracto de entrevista dada por Raul Iturra em 1999 a Ana Levy Aires, Ana Felisbela Lavado e Paula Godinho para a revista Arquivos da Memria do Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa da Universidade Nova de Lisboa, n. 6/7, p. 129. 13 Entrevista dada por Raul Iturra aos cadernos de Educao de Infncia, n. 62, Abril/Maio/Junho de 2002, p. 4.
Econmica para o estudo da aprendizagem e transmisso cultural para alm da escola e
para o estudo da mente cultural e da epistemologia da criana (Iturra, passim).
A leccionao em cadeira autnoma viria a acontecer no ISTE, pela primeira vez,
no ano lectivo de 1994/95, mas foi precedida de muita investigao financiada pelo INIC
e pela FCT e de muito debate no pas e no estrangeiro.
A propsito da primeira obra da coleco A Aprendizagem Para Alm da Escola,
Pedro Silva, numa recenso bibliogrfica da obra atrs citada de Stoer e Arajo (Stoer e
Arajo, 1992), includa na mesma, diz que o primeiro livro (Iturra, 1990a), um conjunto
de ensaios, corresponde ao espraiar do pensamento terico do autor na perspectiva da
afirmao de uma Antropologia da Educao. Trata-se de um pensamento radical,
elaborado numa linguagem no hermtica, que se debrua sobre a complexa relao
entre o saber letrado (da escola) e a mente cultural (rural) (Silva, 1994: 186).
J antes, no trabalho de campo em VilaTuxe, em 1970 e em 1974, Raul Iturra
reconhece14 que, ao estudar o grupo domstico, se comeou a interessar como se aprendia
a calcular na rua, no jogo, na economia domstica etc.. As suas filhas comearam a ir
escola em VilaTuxe onde falavam galego. Em casa as lnguas eram o Castelhano e o
Ingls. E toda esta diversidade levava Iturra a pensar nas descontinuidades entre a casa e
a escola. Embora a pesquisa a realizada fosse centrada na vida econmica, a ideia da
aprendizagem para alm da escola foi emergindo e viria a despertar o seu interesse pela
Antropologia da Educao. Percebeu que as crianas eram educadas pela interaco
dentro do grupo onde vivem (cf. Iturra, 1997 e 2001).
A partir dos finais da dcada de 80, incio de 90, Raul Iturra e a sua equipa de
investigao iniciaram um conjunto de seminrios fechados sobre Antropologia da
Educao, volta de temas como o insucesso escolar, a transgresso e a aprendizagem, a
etnopsicanlise, o jogo e a aprendizagem, a oralidade e a escrita na aprendizagem, etc.,
em Portugal (Lisboa, Porto, Albergaria dos Doze, Alfndega da F, etc.) e em Frana
(Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales e no Collge de France) com a
participao de Maurice Godelier, Marie Elizabeth Handman, Franoise Zonabend, Pierre
Bourdieu, Monique de Saint Martin, Franois Bonvin e Bernard Lahire.
14 Dados apurados em entrevista com Raul Iturra, em 23 de Julho de 2004.
Na recenso da obra O Saber das Crianas (Iturra, 1996), Lus Souta, professor
de Antropologia da Educao na Escola Superior de Educao de Setbal15, considera os
cinco autores dos textos que compem este livro (Raul Iturra, Amlia Frazo Moreira,
Filipe Reis, Paulo Raposo, Ricardo Vieira) como uma equipa pioneira que lanou em
Portugal a Antropologia da Educao. Comparando-a com os trabalhos de Antropologia
da Educao americana que se tem preocupado com o sistema formal, diz que O Saber
das Crianas trilha outros caminhos, no em torno de problemas mas na procura
das virtualidades e potencialidades das crianas para aprenderem e entenderem o real.
A sua pesquisa faz-se por isso a montante do sistema educativo, procurando
compreender os mecanismos da aprendizagem informal, num processo que conduz
naturalmente ao reconhecimento e valorizao desses saberes. (Souta, 1997a: 353).
As pesquisas de Telmo Caria sobre culturas de escola e culturas profissionais,
bem como sobre o mtodo etnogrfico (Caria, 1994, 2000, 2003), e a de Amlia Frazo
Moreira sobre as classificaes das crianas apreendidas do mundo adulto (Frazo-
Moreira, 1994 e sobre etnobotnica (Frazo-Moreira, 2003), ambas orientadas por Raul
Iturra e conducentes aos seus doutoramentos j terminados, engrossam a latitude da
Antropologia da Educao que este tem feito desenvolver em Portugal.
Assumindo essa conscincia e essa responsabilidade, Raul Iturra diz na
Introduo ao livro O Saber das Crianas:
Uma parte do grupo que comigo trabalha decidiu escrever sobre o saber das crianas.
Sob a minha orientao, ao longo do tempo; e hoje sob a minha coordenao, queramos
definir processos e actividades que permitam ao leitor entender o dito saber. Comeo por
abordar uma forma particular de interaco entre ascendente e descendente: aquela
atravs da qual um grupo social contextualiza ou quer contextualizar, a emotividade do
mais novo para assegurar a reproduo, isto , a continuidade histrica das pessoas
sobre a terra [].
Amlia Frazo-Moreira [] analisa o processo de interaco que no interior de um
grupo domstico, (de uma aldeia de Trs-os-Montes), transmite saberes e contra saberes
15 Lus Souta tem dado um contibuto notvel ao desenvolvimento da educao multicultural e da antropologia da educao em Portugal (1991, 1992, 1993, 1997a e 1997b).
atravs das tarefas que constituem o trabalho domstico (nutrio, arranjo domstico,
nas conversas sobre os amores e a afectividade, etc.). []
Filipe Reis [] analisa a forma como a escola introduz as crianas na cultura escrita, a
partir de uma experincia de terreno, numa aldeia da serra da Estrela. []
Paulo Raposo [] regressou comigo Beira Alta e observou os comportamentos rituais
dos pequenos, colectando dados a partir dos quais foi capaz de concluir que o real
representado e manipulado pela pequenada que estamos a estudar a.
Ricardo Vieira [] procura explicar como o adulto de hoje resultado do jovem e da
criana que antigamente foi; esta anlise feita por meio de entrevistas e anlises de
histrias de vida de professores do ensino Bsico (Iturra, 1996:10 e 11).
A disciplina de Antropologia da Educao tem-se mantido como optativa para as
licenciaturas de Antropologia Social, Sociologia e Psicologia Social, e tem sido
coordenada por Raul Iturra e leccionada por este, por Filipe Reis e por Paulo Raposo, ora
em colaborao conjunta, ora separadamente em termos de docncia. De ano para ano, h
algumas alteraes pontuais em termos da ordem e da natureza das temticas abordadas
mas, grosso modo, todos os programas abrangem o processo educativo na escola e fora
da escola.
Para alm da disciplina que integra como optativa os currculos das licenciaturas
do ISCTE j mencionadas, de assinalar, como corolrio de uma basta investigao e
prtica de ensino no ISCTE, a criao do primeiro mestrado em Portugal de Antropologia
da Educao (2003-2005), coordenado por Raul Iturra, e com a colaborao de docentes
internos (Paulo Raposo e Miguel Vale de Almeida do Departamento de Antropologia
Social do ISCTE) e externos (Amlia Frazo-Moreira da Universidade Nova de Lisboa,
Darlinda Moreira da Universidade Aberta, Lus Souta da ESE de Setbal, Telmo Caria da
UTAD, Ricardo Vieira da ESE de Leiria e Jos Catarino da ESE de Setbal).
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