Associação Nacional dos Programas de Pós-‐Graduação em Comunicação
XXV Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 7 a 10 de junho de 2016
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O INCONSCIENTE ÓTICO E A AURA ENVIESADA1 OPTICAL UNCONSCIOUS AND SKEWED AURA
Fabio Henrique Ciquini 2 Norval Baitello Junior3
Resumo: Este artigo analisa criticamente a formulação do conceito de inconsciente ótico desenvolvida por Walter Benjamin em paralelo ao conceito freudiano de inconsciente (Unbewusste). Segundo o filósofo, há uma capacidade de a câmera fotográfica operar como amplificador perceptivo e, sob esse escopo, nossa proposta analítica busca compreender essa possibilidade de atuação do inconsciente ótico, que revelaria imagens subjacentes em camadas mais profundas e deflagraria um tipo de experiência aurática enviesada. Para tal exercício, elegemos o trabalho do artista alemão Michael Wolf, que fotografa imagens do site google street view e, diante das análises, sugerimos que a série em questão e o modo como é articulada no site podem deflagrar uma modalidade aurática tortuosa, captada por meio do inconsciente ótico.
Palavras-Chave: Imagem. Inconsciente ótico. Aura.
Abstract: This article critically reviews the concept of optical unconscious developed by Walter Benjamin in parallel to Freud’s concept of unconscious (Unbewusste). According to the philosopher, there is an ability of camera working as an amplifier of perception, and, under this scope our analytical proposal seeks to comprehend the possibility of optical unconscious, which would review underlying images in deep layers and possibly triggers a skewed auratic’s experience. For this analysis, we selected the artwork from German’s photographer Michael Wolf, who photographs images from google street view’s site and, on the analysis, we suggest that this serie and the way it is articulated on the site can trigger an specie of skewed/oblique aura, captured through optical unconscious.
Keywords: Image. Optical unconscious. Aura
1. Introdução “Michel sabia que o fotógrafo age sempre como uma permutação de sua
maneira pessoal de ver o mundo por outra qual a câmara lhe impõe, insidiosa” (Julio Cortázar, As babas do diabo)
1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cultura do XXV Encontro Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016. 2 Doutorando bolsista pelo CNPq no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP, pesquisador vinculado ao CISC (Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia). 3 Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Livre de Berlim. Professor titular do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.
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“Por que esperar mais?” Essa é a pergunta que o escritor e fotógrafo amador Roberto Michel
- personagem de Julio Cortázar no conto As babas do diabo - se faz depois de um tempo
observando um casal no parque e em meio à indecisão de fotografar ou não a cena. Ele não
mais espera: enquadra, seleciona uma abertura para a objetiva e fotografa displicentemente.
De forma proposital ou imotivadamente como o fez Michel, o ato de fotografar na
atualidade se dá em larga escala e em grande parte do globo. De cerimoniais importantes com
chefes de Estado, até a mais trivial das atividades cotidianas, a prática é rotineira e se instaura
como fenômeno referencial para diagnósticos da contemporaneidade na cultura e
comunicação.
Já é de amplo conhecimento que, na atualidade, vivemos em meio a um excesso de
imagens, sejam elas estáticas ou em movimento. Além de mídias tradicionais como a tevê,
jornais e revistas, o aprimoramento da internet e o advento de aparatos como smartphones e
tablets elevou exponencialmente a quantidade de imagens a que somos submetidos
diariamente, de tal sorte que, autores importantes da teoria da mídia como o alemão Dietmar
Kamper vaticinou o “padecimento dos olhos”, um cansaço oftálmico gerado pelo excesso.
A amplificação desse cenário hipertrófico das imagens está diretamente associada ao
desenvolvimento da fotografia e do cinema no século XIX, mecanismos capazes de
reprodução técnica da imagem e da sua exibição em sequência, respectivamente. Com o
advento dessas tecnologias, sabemos, altera-se a forma de percepção e uso da imagem: antes
seu uso/percepção estava principalmente ligado a um padrão mítico, de culto e artístico,
geradores e gerados por e nos ambientes primordiais do mito, do culto e da arte em suas
respectivas eras históricas. Com o desenvolvimento de técnicas de reprodução da imagem em
escala ampla, ocorre o que Walter Benjamin – no seu clássico ensaio A obra de arte na era
da reprodutibilidade técnica – denomina de perda da aura. A essência desse novo ambiente,
portanto, passa a ser desauratizada, da ordem da reprodutibilidade e repetição e com intensa
utilização pelos aparatos midiáticos, geradores de um novo valor, o valor de exposição4.
4 Curiosamente a contrapelo do pensamento benjaminiano, proliferaram nas últimas décadas as teorias da imagem focadas no suporte das imagens e na técnica que as produz, ao invés de considerar o ambiente que elas criam e seu impacto sobre a cultura, sobre o imaginário e sobre a sociabilidade. Assim, classificações como imagem técnica, imagem fotográfica, imagem gráfica, imagem cinematográfica, óleo sobre tela, acrílico sobre tela, imagens em écrans, imagens em papel, imagens projetadas, pouco definem a natureza das imagens e seu potencial de impacto sobre o comportamento humano. O suporte é um facilitador da capilaridade de uma
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De certa forma, a reprodução técnica da imagem está articulada à Revolução
Industrial Mecânica, responsável pela alteração da produção manufatureira que
paulatinamente cede espaço à fabricação de produtos em série. Esta alteração impacta
diretamente a sociedade, pois além da transformação produtiva industrial, altera-se a
percepção espaço-temporal da sociedade, que passa ser ditada pelo ritmo cada vez mais veloz
das máquinas. Vincular, portanto, a Revolução Industrial Mecânica, o desenvolvimento da
fotografia e do cinema e a alteração perceptiva-sensorial da sociedade faz-se necessário tendo
em vista o cenário hipersaturado de veiculação de imagens existente na atualidade auxiliado
certamente pelo desenvolvimento de diferentes suportes da imagem.
No início do século XX, dessa forma, a disseminação da imagem pelos suportes
fotográficos e cinematográficos tornam-se de uso cada vez mais amplo, e atendem
principalmente as demandas técnico-científica, documentação da realidade artísticas - como
se observa em movimentos da vanguarda histórica como o dadaísmo e o construtivismo, e em
cineastas como Eisenstein e Vertov. Há, nesse sentido, um paralelo importante destacado por
Benjamin em relação ao cinema (a fragmentação sequencial de imagens) à percepção
temporal no ambiente urbano, que também se torna acelerada. Para o pensador alemão, se por
um lado há perda da aura da imagem proporcionada pela sua reprodução, por outro, a
fotografia possibilita o registro de fragmentos singulares que emergem na imagem. Por meio
da mecânica e da objetiva da câmara captam-se pequenos lastros simbólicos antes invisíveis a
olho nu, e, a essa habilidade instrumental, Benjamin propõe a ideia de inconsciente ótico,
conceito central para o desenvolvimento desse artigo.
Em meio à aceleração temporal instaurada pela modernidade, a fotografia poderia
operar como interruptora do fluxo de fatos cotidianos, represando-os e chamando atenção
para os detalhes da cena tal qual uma lente expandida, uma lupa que fisga fragmentos de
maneira inconsciente e os trazem à superfície da foto. Tal façanha, veremos, é importante no
sentido de revelar, afirma Benjamin (2013) a aparência “sem nome” das coisas
imagem enquanto a imagem mesma é aquilo que se constrói na passagem entre o suporte, o olho sob a atuação do inconsciente ótico.
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(namenloseErscheinung), e valorizar os detritos e lapsos, como o faz a psicanálise freudiana
cujo conceito de inconsciente (Unbewusste) é análogo à apreciação benjaminiana5.
Como corpus analítico de nossa leitura, elegemos duas imagens da série street view- a
serie of unfortunate events, do fotógrafo alemão Michael Wolf, representativas sob nosso
ponto de vista, pois são fotos produzidas a partir de outras fotos do site google street view.
Nessa série, o artista utiliza a fotografia como uma espécie de ferramenta arqueológica,
esquadrinhando e fotografando imagens do site -por meio do monitor - e buscando recuperar
rastros que na foto matriz não se mostravam, mas lá estavam. Diante do objeto, analisamos a
atuação ambivalente da fotografia na contemporaneidade: se por uma lado ela é aparato
técnico diretamente responsável pelo crescimento exponencial de número de imagens e pela
crise da visibilidade, pois atua como um dos mais disseminados meio técnico de reprodução,
por outro, ela poderia operar, por meio do inconsciente ótico, como elemento amplificador
que traz visibilidade a pequenos lastros contidos na imagem, ampliando de certa forma a
percepção sensorial - analogamente ao que ocorre com a personagem Michel, de Cortázar – e
deflagrando uma espécie de modalidade aurática enviesada e tortuosa, já que distinta da aura
tradicional atribuída às imagens de culto6.
2. Modernidade e fotografia
Consoante ao diapasão científico e racional do século XIX há o desenvolvimento da
fotografia como técnica químico-óptica capaz de fixar a realidade cotidiana, gerando certo
5 A palavra ‘inconsciente” (Unbewusste) possui em Freud um sentido específico, de “instância ou sistema constituído por conteúdos recalcados que escapam às outras instâncias” (ROUDINESCO, 1998, p.375). A expressão “inconsciente pulsional” (Triebunbewusste) não aparece em Freud. Merece também menção a componente regressiva e arcaica do inconsciente, estudada por Freud desde a sua Interpretação dos sonhos. Esta natureza arqueológica exige um método de abordagem também específico, de chegar aos conteúdos soterrados e de difícil acesso, nesse sentido, um paralelo com o método de Michael Wolf parece plausível. 6 Compreendemos neste trabalho a imagem em seu sentido antropológico e cultural, nesse sentido, ela possui diferentes modulações em distintas épocas que se hibridizam. Imagem mítica, imagem de culto, imagem artística e midiática são possibilidades dessas tonalidades da imagem, que ora expressam sua “presença mágica, seu caráter representativo ou de simulação” (KAMPER, 2002 p.7). Um exemplo sobre a manifestação aurática na imagem de culto reside na imagem de Verônica de Roma, a vera icona: “ela é exatamente aquela trama singular de espaço e de tempo que se oferece a ele (cristão de Roma) num espaço tramado, num poder de distância: pois lhe é habitualmente invisível, retirada, como sabemos, num dos quatro pilares da basílica; e, quando se procede a uma de suas raras exposições solenes, a Verônica ainda se furta aos olhos do crente, apresentada de longe, quase invisível – e portanto sempre recuada, sempre mais longínqua” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.152).
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estranhamento inicial, pois a técnica se configura como um novo modo de percepção
sensorial cotidiana, opositiva - em um primeiro momento - à pintura e aos modos manuais de
produção da imagem. Evidencia-se, segundo autores como Rouillé (2009), Pedro Souza
(2004) e Kossoy (2001) que a fotografia encarnava a dinâmica de representação da sociedade
industrial nascente, pois como filha da moderna urbanidade parisiense do século XIX,
legitima valores e práticas imbuídos de espírito racionalista organizador e se constitui como
instrumental inequívoco de representação da realidade, operando, portanto em consonância
com o espírito da época.
Essa atuação rigidamente definida, no entanto, não ocorre como planejado pelos
racionalistas modernos e, logo em sua gênese, a fotografia possibilita outras manifestações
além de seu estatuto instrumental e objetivo, abrem-se perspectivas mais subjetivas,
proporcionando oposição entre arte e ciência, ofício e criação:
O antagonismo entre o procedimento de Daguerre e o de Bayard (Hippolyte), entre o metal e o papel, em breve fomentará os defensores do nítido e os adeptos do indefinido dos contornos; os partidários do negativo de vidro e os calotipistas; os artistas e as “pessoas do ofício” [...] e também entre as instituições. Daguerre é sustentado por Arago, da Academia das Ciências; e Bayard, por Raoul-Rochette, da Academia de Belas Artes. (ROUILLÉ, 2009, p.30)
A fotografia, dessa forma, é vetor de tensionamento entre cultura subjetiva e objetiva
e, mesmo quando há exclusivamente esta última intenção, ela se configura de maneira
ambivalente, manifestando também se caráter subjetivo. Nesse sentido, a despeito de terem
sido produzidas com escopo racionalista, as cronofotografias7 de Étienne-Jules Marey que
registram movimentos corporais sequenciais de aves, cavalos e humanos, são exemplos dessa
ambivalência entre objetividade e subjetividade, pois, além de exibirem a dinâmica de
movimento fracionada, elas tornam visíveis lapsos de espaço tempo captados de forma
imotivada.
3. Nos espaços lacunares, os inconscientes
7 Sistema fotográfico desenvolvido pelo cientista e fotógrafo francês Étienne-Jules Marey na década de 1880 que consistia de uma “metralhadora fotográfica” capaz de registrar 12 frames por segundo em uma mesma fotografia. Com a invenção, Marey estudou a dinâmica e a fisiologia de movimento de humanos e animais como cavalos, cães, pássaros etc.
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Além das séries cronofotográficas de Marey, que proporcionam visibilidade à ações e
movimentos imperceptíveis a olho nu, outros fotógrafos e homens de ciência se interessam
por essa temporalidade intersticial instaurada pela fotografia. No campo da medicina, por
exemplo, anomalias e excrescências corporais eram descritas na literatura médica por meio
de fotografias em close, produzidas, segundo Roillé (2009), por médicos nos estúdios
fotográficos dos próprios hospitais onde trabalhavam. No sanatório francês Salpêtrière,
fotografavam-se pacientes epilépticos e histéricos do psiquiatra Jean-Martin Charcot em
plena crise a fim de se verificar e classificar contorções corporais e expressões características
ocasionadas pelas doenças8
Nota-se que a técnica fotográfica – inicialmente servindo à ciência e a razão - se
caracteriza como uma lente expandida, capaz de flagrar detalhes, embalsamar o tempo, opera
como um vetor de novos modos de percepção do mundo, segundo Benjamin “capaz de
destacar coisas que antes passavam despercebidas no vasto fluxo do mundo perceptível,
tornando possível analisá-las” (2012, p.78). O filósofo em Pequena história da fotografia
afirma que, “apesar de toda a perícia do fotógrafo e de todo o planejamento na postura de seu
modelo” (2012, p.100) há uma fagulha que pode brotar da imagem de forma não planejada, e
isso se dá pela natureza da câmera.
A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui um espaço preenchido pela ação consciente do homem por um espaço que ele preenche agindo inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que de modo grosseiro, mas nada percebemos de sua postura na fração de segundo em que ele dá um passo. A fotografia torna-a acessível, através dos seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional9 (BENJAMIN, 2012, p.100 e 101)
A analogia instaurada pelo autor é provocativa, pois ao alinhar o conceito de
inconsciente ótico com o inconsciente descrito por Sigmund Freud, há a sugestão de que
tanto o olhar da câmera, em suas versões cinematográfica e fotográfica, quanto o olhar
clínico da psicoterapia poderiam atuar como mecanismos de adensamento de nossa
8 Georges Didi-Huberman afirma em Invention de l’hystérie (1982)- publicado em português em 2015 - que os registros fotográficos das pacientes histéricas da clínica Salpêtrière são teatralizações nas quais a patologia coloca-se como espetáculo, como simulacro. 9 Em Lagache (2001, p.235) os autores definem o inconsciente como “representações das pulsões”, isto torna a expressão benjaminiana explicativa (e de certa forma, redundante), mas não incorreta.
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capacidade perceptiva. Na década de 1930, Benjamin passa a dedicar especial atenção ao
cinema e a fotografia como fenômenos comunicacionais da modernidade instauradores de
novas percepções estéticas. Além do texto Pequena história da fotografia, o notável ensaio A
obra de arte na era da reprodutibilidade técnica (1935) oferece vasto material para discussão
sobre impactos perceptivos estéticos do cinema e fotografia, que pode “acentuar certos
aspectos do original acessíveis à objetiva [...] mas não acessíveis ao olhar humano”
(BENJAMIN, 2012, p. 182). Na primeira versão do texto10 há a analogia entre o inconsciente
ótico e inconsciente.
O cinema enriqueceu o nosso mundo perceptível com métodos que podem ser esclarecidos pela teoria freudiana. Há cinquenta anos não se prestava atenção a lapsos durante uma conversa. Seria considerado muito raro que um mero lapso no meio de uma conversação comum e corrente tivesse algum significado profundo. Desde a psicopatologia da vida cotidiana isso mudou. Esse texto foi capaz de destacar coisas que antes passavam despercebidas no vasto fluxo de mundo perceptível, tornando possível analisá-las. De modo semelhante, o cinema ampliou em toda a sua extensão a percepção do mundo perceptível e agora também do mundo acústico [...] por meio de grandes planos, do foco em detalhes ocultos nos objetos familiares e da investigação de ambientes comuns graças à direção genial da câmera, o filme amplia a visão sobre as coerções que regem o nosso cotidiano [...] então torna-se evidente que a natureza que fala à câmera é diferente daquela que se expõe aos nossos olhos, sobretudo porque o espaço no qual o indivíduo age conscientemente é substituído por outro no qual a ação é inconsciente [...] ela (a câmera) nos abre pela primeira vez o inconsciente óptico, do mesmo modo que a psicanálise nos revelou a experiência do inconsciente pulsional (BENJAMIN, 2012, p.27 e 28).
Sobre o inconsciente (Unbewusste), Freud afirma que trata-se de uma representação
ou elemento psíquico que não percebemos, no entanto, está incubado na consciência e, em
determinados momentos como os sonhos e atos falhos esses detritos psíquicos veem à tona
cruzando a fronteira da inconsciência. A descoberta do inconsciente revoluciona a ciência no
início do século XX, pois desaloja “a consciência de seu lugar de centro, alterando assim o
privilégio conferido aos pensamentos conscientes” (BARATTO, 2009, p.75).
10 Segundo Detlev Schöttker (2012) a primeira versão do texto traz mais claramente o modo de reflexão benjaminiano entre inconsciente ótico e inconsciente pulsional. Na segunda versão, foi retirado um parágrafo da primeira que versa sobre a personagem do Mickey Mouse e sua presença no imaginário coletivo: “O cinema abriu uma cisão na antiga verdade de Heráclito, para quem o mundo dos homens acordados é comum, enquanto é privado o mundo dos que dormem. E o fez menos pela descrição do mundo onírico do que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camundongo Mickey, que hoje percorre o mundo inteiro” (2012, p. 201).
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A despeito dessa morada inconsciente, as representações psíquicas que lá residem não
estão adormecidas e não são necessariamente fracas, podem se expressar ativa e
vigorosamente, como nos casos de pacientes histéricos analisados por Freud
Umas das características mais marcantes da mente histérica é o fato de ser dominada por representações inconscientes. Se uma mulher histérica vomita, ela pode estar fazendo-o em consequência da ideia que esteja grávida. Entretanto, ela não está ciente dessa ideia, ainda que tal ideia possa, por meio de um dos procedimentos técnicos da psicanálise ser facilmente detectada em sua mente e tornada consciente para ela. Quando a histérica executa os tremores e os gestos que caracterizam seu “ataque” ela nem sequer tem uma concepção consciente das ações pretendidas [...] a análise consegue comprovar que a histérica estava representando seu papel na reprodução dramática de um incidente do seu passado, cuja lembrança esteve ativa e inconsciente durante o ataque (FREUD, 2004, p.83 )
Ao analogizar esses conceitos, Benjamin o faz por meio da teoria psicanalítica de
Freud, que por sua vez também havia elaborado um comparativo entre atividades psíquicas
(consciente e inconsciente) e a fotografia. Freud (1912), afirma que “o primeiro estágio da
fotografia é o negativo; cada imagem fotográfica tem de passar pelo processo negativo, e só
alguns desses negativos, que foram aprovados, são admitidos ao processo positivo, que afinal
termina na imagem fotográfica”. Dessa forma, o inconsciente estaria para o negativo –
recalcado, negado, porém ativo – e o consciente estaria para o positivo, as imagens que
efetivamente são percebidas e estão presentes em nossa consciência.
O eixo comparativo proposto por Benjamin, apesar de sui generis, não é inédito à
época, pois, como assinala Hansen (2012), teóricos do cinema como Jean Epstein e Béla
Balázs utilizam-se de analogias psíquicas e fisionômicas a fim de “ler” e conceituar o cinema
da época. Ainda de acordo com a autora, possivelmente um ensaio de Kracauer tenha
exercido influência direta sobre o conceito benjaminiano, pois refletia sobre um “momento
libertado da tirania humana” no momento da captação fotográfica. O pioneiro no processo da
calotipia Henry Fox Talbot, também enunciava na década de 1840 que uma das causas do
“encanto da fotografia” consistia em desvelar detalhes que “haviam passado totalmente
despercebidos” (TALBUT apud SCHÖTTKER, 2012, p.78).
Posterior a analogia conceitual de Benjamin, outros estudos abordaram a ideia, - seja
discordando da apreciação como o faz Rosalind Krauss (1993) que o questiona em termos
lógicos e afirma sua estranha peculiaridade - analisando-o psicanaliticamente, Dionisio
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(2015), seja, derivando-o transversalmente para distintas perspectivas teóricas em operações
metodológicas singulares. Nesse escopo, Silveira (2006) estabelece a noção de “inconsciente
ótico metropolitano” a fim de investigar visualidades instauradas pela/na cidade de Porto
Alegre. Bebendo na fonte freudiana, o francês Jacques Rancière enuncia o conceito de
inconsciente estético que “mantém relações de cumplicidade e de conflito com o inconsciente
freudiano” (RANCIÈRE, 2009, p.43) e cuja residência está no espaço entre a ciência positiva
e a crença popular.
4. Ato falho e o inconsciente ótico
Ao propor a teoria psicanalítica, Freud afirma que o indício de vivacidade e
dinamismo do inconsciente não emergem apenas por meio das manifestações patológicas,
mas também fazem-se presentes em indivíduos sadios. Para o autor, os atos falhos como o
esquecimento de nome próprios, palavras estrangeiras e de fala - lapsus linguae - são
manifestações claras das irrupções inconscientes. A respeito do esquecimento de nomes
próprios, ele afirma que não há apenas o esquecimento, mas junto a ele a lembrança
equivocada de outros nomes. Em uma viagem que realizara da Croácia para Bósnia e
Herzegovina, Freud conversa com um desconhecido e pergunta se ele já havia visitado a
cidade de Orvieto e visto os famosos afrescos cujo artista ele não recorda o nome, mas lhe
brotam na mente imediatamente os nomes de outros pintores:
En vez del nombre que buscaba – Signorelli – acudieron a mi memoria los de otros dos pintores – Botticelli e Boltraffio – que rechace en seguida como erróneos. Cuando el verdadeiro nombre me fué comunicado por un testigo de mi olvido, lo reconecí en e acto y sin vacilación alguna11 (FREUD, 1943, p.2)
Naturalmente, devido a natureza deste trabalho, não há como detalharmos as hipóteses
sugeridas por Freud sobre o fato. Nos interessa aqui, compreender que o procedimento
analítico do psiquiatra sobre o evento é isolá-lo e olhá-lo “com uma lupa” para a verificação,
de certa forma, tal qual o procedimento de imersão que a câmera realiza sobre o objeto 11 Tradução livre: “Em vez do nome que buscava – Signorelli – vieram à memoria os nomes de outros pintores – Botticelli e Boltraffio – que imediatamente os reconheci como errôneos. Quando o verdadeiro nome me foi comunicado por uma testemunha do meu esquecimento, o reconheci imediatamente, sem qualquer dúvida.
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descrito na metáfora benjaminiana. Dessa forma, esse aprofundamento permite apreender o
que não está perceptível a olho nu e é imotivadamente captado pelos mecanismos ópticos e
mecânicos do equipamento fotográfico, permitindo um exame meticuloso que amplia as
possibilidades de compreensão do fenômeno.
Esses fragmentos de imagem petrificados e ampliados são comparáveis àqueles lapsos
que o analista retira do contínuo de ideias nas sessões de análise junto ao paciente. Câmera e
analista trabalham na seleção de detritos, garimpando-os e destacando sua importância.
Rouanet analisa a importância do conceito de lapso e sua analogia com o instante
fotográfico.
O lapso é um detrito psíquico, cujo valor cognitivo passaria despercebido se o analista não o extraisse do continuum que o envolve e em que ele é mudo. O isqueiro é um mero fragmento do universo das mercadorias, condenado à obsolescência e ao desaparecimento: a câmara se instala no intervalo entre a mão e o metal, e ao desvendar o lado invisível do gesto, desvenda o lado invisível do objeto, que se salva. Nos dois casos o continuum que aprisionava o objeto se imobiliza, e o instante, cativo de historicidade viciosa, é liberado (ROUANET, 1990, p.13).
Os lapsos, característicos do ato falho, configuram-se como ações ditas/não ditas onde
se verificam relações psíquicas recalcadas. Ele chama atenção pois o foco se volta para o
“acidentalmente” proferido, aquilo que não é deliberadamente declarado, que em meio ao
fluxo é fisgado. O ato falho torna visível relações psíquicas, é transgressão de uma ordem, a
manifestação do inconsciente “imbricação de uma vontade e de uma contra-vontade”
(FREUD apud ROUANET, 1990, p.38) tal qual é a mais planejada das fotografias, pois nela
reside uma faísca do acaso pronta para ser fogo ardente.
A coagulação de um resquício em meio ao fluxo, em ambas situações, permite ao
analista/fotógrafo investigar um fragmento, que, a partir de seu descascamento
fenomenológico extraem-se outras dinâmicas e visibilidades. O ato falho:
Isola e ao mesmo tempo torna analisáveis coisas que antes flutuavam, despercebidas, no vasto fluxo das percepções. Isolar e analisar: é uma atenção que secciona, interrompendo o fluxo. Uma atenção tão fina, que capta em suas malhas o mais imperceptível dos objetos. É a atenção do particular, comum a Freud e a Benjamin (ROUANET, 1990, p.36)
A captura desse algo intersticial que emerge às camadas superficiais da imagem era
justamente o objetivo exploratório dos experimentos fotográficos de Marey ou das imagens
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dos pacientes histéricos de Charcot, que buscavam proporcionar visibilidade e legitimar
importância a esse(s) elemento(s) intervalare(s), resgatar fragmentos em meio ao continuum,
tal qual Freud realizou analisando lapsos e formulando o conceito de ato falho, indicador
importante da ordem do inconsciente.
5. As imagens e o choque
No célebre texto A obra de arte.. , alguns dos pontos analisados por Benjamin são o
choque como estigma da vida moderna, a multiplicação dos mecanismos de reprodutibilidade
da imagem e a consequente decadência da aura – que explicaremos adiante -, gerada
principalmente pela fotografia e cinema. Neste último, o choque se dá pela imposição de uma
sequencialidade imagética que detona sensações no espectador a todo momento. Dessa
forma, essa constante colisão de imagens possui relação com o processo de industrialização à
época, cujo elemento principal estava delineado pela linha de montagem e produção seriada
sequencial. Diante desse processo, Benjamin descreve a experiência do choque como
essencial para a vida urbana: “No filme, a percepção sob a forma de choque (Schockformiges)
se impõe como princípio formal. Aquilo que determina o ritmo de produção na esteira rolante
está subjacente ao ritmo da receptividade, no filme” (BENJAMIN, 1994, p.125). Em
oposição, portanto, à obra de arte tradicional que necessitava de uma contemplação
individualizada do observador e em sua demanda própria de tempo, o cinema impõe
visibilidade autoritária e seccionada. A cada fracionamento da imagem, um choque distinto
que demanda do observador uma atenção constante e sempre disponível, caso contrário sua
percepção equivoca-se. “De fato, a associação de ideias dos que veem as imagens é
interrompida pela sucessão delas. Aí está o efeito de choque do cinema, que, como qualquer
choque, exige maior esforço de atenção” (BENJAMIN, 2012, p.30).
Grande parte das experiências estético-perceptivas da modernidade pautam-se pelo
choque, e o cinema, constata Benjamin, é revelador dessas violentas tensões do nosso tempo,
pois traz em sua dimensão ótica a dominação tátil do choque verificada na linha de
montagem - pela rápida e sequencial produção - e também na cidade, onde a população se
acotovela nas passagens. Desta feita, uma de suas possíveis consequências é a instauração de
um processo crescente de anestesia: se comparássemos hipoteticamente meados do século
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XIX e seu final, verificaríamos que os ritmos intensos de produção do início do período eram
insuficientes em seu desfecho; o automóvel antes considerado veloz, tornou-se lento; as
imagens do cinema metralhadas em sequência já não afetavam os espectadores como antes. A
generalização do choque, dessa forma, delineou uma crise perceptiva que se desenhou pelo
mecanismo de hiperestimulação, consequência direta dos aparatos reprodutores de imagem,
sobretudo o cinema e a fotografia cada vez mais presentes e rotineiros na cultura.
O conceito de choque, no entanto, traz uma ambiguidade dialética benjaminiana
característica: da mesma forma que o choque de imagens fragmentadas do cinema pode
deturpar a percepção estética sensorial pelo excesso, ele atua como impulso – quando sob a
forma do recurso da montagem e enquadramento, por exemplo – para novas percepções e,
acreditamos, para a recuperação de fragmentos e lapsos que podem deflagrar uma tipologia
aurática oblíqua. Ao trabalhar sagazmente o recurso da montagem, o cineasta justapõem
imagens, que, no conjunto da cena, atuam como elementos singulares capazes de engendrar
novas percepções, evocar experiências e recuperar detritos.
[...] O enquadramento e a montagem teriam uma função terapêutica semelhante à de
outros procedimentos [...] destinados a ativar camadas de memória inconsciente sepultadas na
estruturas reificadas da subjetividade” (HANSEN, 2012, p.235).
No que tange ao excesso de imagens e sua veloz sequencialidade, sabe-se que quanto
mais imagens circulam, mais complexificada torna-se sua apreensão, pois nosso olhar
encontra-se constantemente distraído em meio ao grande fluxo. As imagens – antes
internalizadas como experiências perceptíveis – passam agora no ritmo cada vez mais
galopante e veloz da modernidade e chocam cada vez menos. No alvorecer do século XX,
com o aprimoramento das máquinas de reprodução técnica da imagem, especialmente a
fotográfica, constatou-se uma hipertrofia reprodutiva da imagem, cuja consequência é uma
percepção distraída e o agravamento da já diagnosticada crise da visibilidade.
6. Da visibilidade à invisibilidade
A fotografia adentra o século XX como um dos principais meios técnicos de
reprodução da imagem. Como assinalamos, a consequência imediata é o aumento
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exponencial na sua quantidade e o modo como são apreendidas: se antes da fotografia e do
cinema as imagens artísticas eram ponto privilegiado de apreciação estética, com o advento
da fotografia, o olhar se divide entre as várias imagens que concorrem entre si buscando a
atenção do olhar.
Anteriormente à produção técnica de imagens, as imagens e objetos empregados na
arte, possuiam, segundo Benjamin, uma aura que seria “uma aparição única de uma distância,
por mais próxima que estivesse” (BENJAMIN, 2012, p.14). Essa “aparição única” é onde
justamente reside sua autenticidade, a originalidade e inacessibilidade é o seu “aqui-e-agora”
(Idem, p.21). Com o advento dos mecanismos de reprodução da imagem o objeto artístico se
torna disponível “por meio de sua cópia ou reprodução” (idem, p.16) e passa a melhor
atender ao anseio da modernidade de “chegar o mais perto possível do objeto por meio de sua
imagem”, há a desvalorização do seu aqui-e-agora e substituição do chamado valor de culto
pelo valor de exposição.
Na esteira de acontecimentos pós reprodutibilidade técnica da imagem, cuja demanda
da substituição do objeto pela sua imagem aumenta vertiginosamente, Dietmar Kamper
(2006) diagnostica a necessidade, cada vez mais preemente, que temos das imagens, pois,
com elas nos protegemos da morte, sobrevivemos in effigie e fazemos sofrer nossos olhos
As artes da visão desaparecem cada vez mais, tanto aquelas oriundas de um desejo involuntário, caracterizadas como sonhos, visões e alucinações, quanto estas provenientes de uma percepção visual voluntária, do olhar detetivesco à multiplamente filtrada observação científica. Os olhos não acompanham; seja pela abundância de imagens, seja pela acelerada aparição e desaparição das coisas. A imaginação, na Idade Média ainda pura paixão (passion), na modernidade, inversamente, a atividade principal de um sujeito cujos olhos iluminam, naufraga por isso no padecimento (Leiden). A órbita ocular dos companheiros de espaço (Raumgenossen) tornou-se estúpida. Quase tudo passa por ela, mas ela não mais se detém ou não retém mais nada (KAMPER, 2006, p.117)
O padecimento dos olhos vaticinado por Kamper tem entre suas causas o excesso de
imagens causado pelo incremento do valor de exposição. Nesse sentido, naturalmente, a
apreensão estética-sensorial de imagens torna-se distraída, em meio a esse crescente turbilhão
imagético, “decresce nossa capacidade humana de enxergá-las” (BAITELLO, 2005, p.96),
além do que, com o “triunfo do olho sobre os outros sentidos humanos” (KAMPER apud
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BAITELLO 2005, p.87), há a redução de outras sensorialidades tão importantes para os
processo de comunicação, como a audição, o tato e olfato.
Seguindo os rastros das proposições dialéticas de Benjamin, propomo-nos a investigar
a ação do inconsciente ótico e sua capacidade de revelar detritos inconsumidos e imagens
subjacentes em camadas mais profundas; nos espaços entre.
Como corpus analítico para esta investigação, temos o trabalho desenvolvido pelo
fotógrafo alemão Michael Wolf, realizado por meio do Google Street View, e que sera
apresentado a seguir.
7. Fotos de fotos e a obliquidade da aura
O projeto Google Street View está em andamento desde 2008, e objetiva o
mapeamento do mundo por meio de fotografias. Num primeiro momento, buscou-se a
cartografia pelas ruas de cidade e lugarejos no mundo todo, entretanto, expandiu-se o
conceito do projeto que passou a mapear pontos turísticos como o Grand Canyon e a Torre
Eifell, desertos e até mesmo o fundo de oceanos. A captura de imagens consiste em equipar,
um carro, um barco, uma bicicleta, uma motoneve, um mergulhador ou até mesmo um
camelo com um aparato que comporta nove câmeras ou quinze câmeras fotográficas em uma
espécie de tripé que fica aproximadamente dois metros acima do veículo ou de quem o
carrega. Dessa maneira, percorrem-se ruas, avenidas, estradas, passagens, vales, ou seja,
quaisquer lugares onde se possa entrar e, à medida que se locomove, as câmeras fotografam
automaticamente os ambientes, registrando imagens que, depois de reunidas em software, são
adicionadas ao site e exibem os lugares estereoscopicamente, criando a ilusão de três
dimensões. É possível, portanto, por meio das imagens no site, estar em um beco de Nova
York nas falésias da ilha de Sardenha ou no ambiente subaquático de Galápagos. Nesse ambiente, artistas contemporâneos estão vasculhando entre bilhões de imagens
e produzindo obras fotográficas singulares. As peças artísticas produzidas são fotos de fotos,
o que em si não é novidade, já que desde o início do processo fotográfico no século XIX,
daguerreotipistas produziam a partir de outras imagens e artistas como Christian Boltanski,
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Éric Rondepierre e Michal Rovner entre outros no século passado produziram trabalhos
artísticos significativos tendo como matéria prima outras fotografias.
Dentre esses artistas contemporâneos, Michael Wolf e Doug Rickard são alguns que
produziram fotos sentados em frente à tela do computador: eles acessam o site, buscam por
imagens inusitadas flagradas pela câmara automática do google e as fotografam,
reenquadrando e procurando detalhes específicos nas imagens. Wolf, por exemplo, produziu
a série street view percorrendo virtualmente as ruas de Paris por mais de 600 horas em frente
ao computador. Dessa série ampla, há trabalhos específicos como a series of unfortunate
events e street view paris, cujas sequências de imagens foram expostas em importantes
museus europeus e nos Estados Unidos.
É importante salientar que no processo de trabalho de Wolf, parte-se de fotografias
produzida completamente de modo autômato pelas câmeras do google, e, a partir delas, o
fotógrafo reenquadra buscando elementos singulares e produz novas imagens.
Michael Wolf. A series of unfortunate events Michael Wolf. A series of unfortunate events
Tal qual como faz a personagem do escritor Julio Cortázar, ao ampliar a fotografia
revelada, Wolf, após escolher a imagem que fotografará, realiza um escaneamento
meticuloso em busca de fragmentos singulares em meio aos registros aleatórios das
câmeras12. Nesse empreendimento, o artista, também por meio da câmara que opera como
uma espécie de lupa, registra flagrantes de situações como na fotografia à esquerda, onde há
12 Michael aborda seu modo de trabalho em entrevista concedida ao British Journal of Photography e disponibilizada no site http://vimeo.com/20667709 .
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duas pessoas caídas no chão ou, como à direita, o registro de uma imagem que funciona
como um espelho. A foto à esquerda, inclusive, recebeu uma menção honrosa no prestigiado
concurso de fotojornalismo promovido pela fundação World Press Photo em 2011,
suscitando fortes críticas pelo fato de o fotógrafo não ter registrado a cena propriamente, mas
sim sua imagem. A questão da vinculação fotografia e realidade, no entanto, não é ponto que
nos interessa neste artigo, mas sim a capacidade de a câmera trazer à tona fragmentos e
lapsos entrelaçados na imagem por meio do inconsciente ótico. Nesse sentido mesmo de
espaçamento tramado, tem-se, como assinalamos, que a aura é “uma trama singular de
espaço e tempo”, e, ao se fisgar um lapso contido na imagem - um pequeno fio de meada - a
aura pode emergir, chegando sem pedir licença e nos tomando: manifestando proximamente
algo distante. Na imagem à direita, há uma espécie de escopofilia narcísica presente: a
imagem literalmente também nos olha, uma ação quiasmática, ela “nos devora” (BAITELLO,
2005) e é este um ponto característico da aura, que possui “um poder do olhar, atribuído ao
próprio olhado pelo olhante: isto me olha” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p.148), nas palavras
de Benjamin, a experiência de “sentir a aura de uma coisa é conferir-lhe o poder de levantar
os olhos” (BENJAMIN,1994, p. 137). A aura apreendida nos objetos analisados não se
estabelece como na imagem de culto ou na imagem artística tradicional, em que o modo de
percepção é essencialmente imanente, mas sim configura-se obliquamente, de maneira
enviesada, ela nos olha de soslaio e muito rapidamente, já que brota – por meio do
inconsciente ótico - em meio a um oceano de imagens sequenciais e reprodutíveis cujo
principal valor atribuído é o de exposição. Nesse sentido, a montagem da série fotográfica
disposta no site se plasma pela fragmentação explicitada entre as imagens: não há uma
sequencialidade linear que sugira uma narrativa especificada de um fato, mas sim o choque,
uma intermitência que fortalece e contribui para a evocação de lapsos específicos que se
desenham como possíveis centelhas auráticas em cada uma das imagens.
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Printscreen do site www.photomichaelwolf.com. Acesso em dezembro de 2015.
7. Considerações finais
Gostaríamos de enfatizar que utilização do termo aura presente em nossa reflexão
orienta-se como caminho metafórico, um pensar por imagens análogo ao que o pensador
alemão realizava. O emprego da palavra aura, portanto, não deve ser compreendido nem
como uso saudosista do conceito, nem como tentativa de uma aplicação funcionalista na
imageria contemporânea, mas sim de uma analogia à Benjamin tendo como macroambiente a
cultura e a imagem em seu sentido antropológico.
Como mecanismo de convocação dessa aura enviesada está a metáfora conceitual de
inconsciente ótico desenvolvida por Walter Benjamin nos anos 1930 e que ainda hoje
instaura polêmicas: trata-se de uma “pérola conceitual?” (SILVEIRA, 2006) ou de um
“deslize teórico?” (SCHÖTTKER, 2012). Para além da ortodoxia conceitual, nossa proposta
analítica não se dá no sentido de definir restritivamente a apreciação, mas sim de vislumbrar
uma possibilidade de atuação do inconsciente ótico como amplificador perceptivo e
deflagrador de uma experiência aurática oblíqua, em meio aos diagnósticos de excesso
imagético e crise da visibilidade.
Naturalmente, nesse breve exercício analítico torna-se complexo um profundo
cotejamento entre o inconsciente ótico e inconsciente freudiano (Unbewusste), mas,
reforçamos que as analogias conceituais, tal qual a mencionada, são figuras recorrentes no
pensamento imagético benjaminiano, observador cuidadoso das movimentações dialéticas da
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cultura. Rouanet (1990), nesse sentido, mostra-se importante em nosso estudo, pois não
psicologiza Benjamin, mas sim desdobra perspectivas freudianas contidas na obra do filósofo
alemão, como a noção de coagulação de fluxos cotidianos, o congelar e isolar fatos que
ocorre na fotografia e que também se faz presente na terapia analítica freudiana. A analogia
entre os inconscientes instaura uma reflexão sobre as possibilidades emancipadoras das
inovações técnicas na produção de imagem (objetivas, planos, enquadramento e montagem)
do inconsciente ótico, e as inúmeras perspectivas de redenção do inconsciente (unbewusste),
sendo que ambos seriam constantemente contaminados um pelo outro e estariam em fluxo de
combinações distintas entre si. Esse encharcamento entre eles permite um movimento
dialético, e, isso se corrobora, pois, antes mesmo de inovações técnicas mais significativas no
cinema e na fotografia, Benjamin já aborda a ideia de que algo está lá na imagem, falando de
uma “aparência sem nome (Namenlose Erscheinung) das coisas, de mundos da imagem
(bildwelten) que habitam as menores coisas e que se revelariam àqueles capazes de lê-las”
(HANSEN, 2012, p.231). Portanto, dessa maneira, os lapsos estão lá em uma região brumada
e ora correponderiam a uma dimensão de inconsciente ótico, ora a do inconsciente
(unbewusste).
Como exemplo de nossa reflexão, empregamos o trabalho do fotógrafo alemão
Michael Wolf que seleciona imagens no site google street view, balizando áreas específicas
nestas a fim de ampliar detalhes recônditos, superando assim o aspecto imanente da imagem,
pois trabalha arqueologicamente esquadrinhando áreas em busca de possíveis detritos
capazes de irromper em singularidades, em centelhas auráticas enviesadas. Nesse “método”
adotado pelo artista, portanto, há entrelaçamento entre os conceitos de aura e de inconsciente
ótico, já que os mecanismos técnicos da câmera – tanto a do google quanto a do fotógrafo -
os esquemas de montagem e enquadramento empregados pelo artista podem fisgar lapsos
contidos na imagem e, nessa trama, um pequeno fio da meada tende a se manifestar
proximamente e olhará, mesmo que de soslaio e velozmente, para espectador, fazendo
emergir a luz e uma aura tangencial.
Sob esse escopo, vislumbramos que essa modulação aurática pode se apresentar
também em meio aos ambientes excessivos de imagem, de maneira tortuosa e oblíqua, sendo
captada pelo inconsciente ótico e delineando uma modalidade específica do conceito. Não se
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trata de um saudosismo pela imagem em sua modalidade de culto ou artística, mas sim de
compreender que, sendo a imagem um complexo cultural com camadas profundas, a imagem
prevalecente na contemporaneidade em sua face eminentemente midiática contém todas as
outras (a imagem artística, de culto e mítica) que se encharcam e se hibridizam também entre
si. Não há como estabelecer uma secessão definitiva entre as inflexões imagéticas, mas sim
mirar este fenômeno em sua complexidade antropológica e cultural e, já que, como afirma
Bystrina (1994) não há morte na cultura, é possível que a atuação do inconsciente ótico
deflagre um tipo enviesado e tortuoso de aura emergindo em um movimento anadiômeno nos
espaços entre da imagem.
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