Universidade de So Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Histria
Programa de Ps Graduao em Histria Social
MARIA JLIA MANO PIRES NEVES
O Peru l o Brasil: o mundo luso-americano na imprensa e na
poltica peruana 1808-1822
Verso Corrigida
So Paulo
2014
Universidade de So Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas
Departamento de Histria
Programa de Ps Graduao em Histria Social
MARIA JLIA MANO PIRES NEVES
o Peru l o Brasil: o mundo luso-americano na imprensa e na
poltica peruana 1808-1822
Verso Corrigida
So Paulo
2014
2
MARIA JLIA MANO PIRES NEVES
O Peru l o Brasil: o mundo luso-americano na imprensa e na
poltica peruana (1808-1822)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria Social do Departamento de Histria da
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da
Universidade de So Paulo, realizada sob orientao do
Prof. Dr. Joo Paulo G. Pimenta para obteno do Ttulo
de Mestre em Histria.
Verso Corrigida
So Paulo
2014
3
Aos meus pais, a quem devo tudo o que sou.
Ariam, companheiro nesta e noutras estradas da vida.
4
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa contou com financiamento da Fundao de Amparo Pesquisa
do Estado de So Paulo (Fapesp) durante dois anos e por um perodo de dois meses
recebeu apoio da Bolsa de Estgio de Pesquisa no Exterior, concedida pela mesma
instituio.
O Estgio de pesquisa foi realizado em duas visitas Lima, totalizando 3
meses de investigao, durante os quais fui cordialmente recebida por pesquisadores
peruanos aos quais sou muito grata: Carlos Contreras, Claudia Rosas Lauro e, em
especial, Scarlett O'Phelan Godoy, que carinhosamente me auxiliou durante minhas
viagens a Lima e me proporcionou o frutfero contato com outros pesquisadores.
Agradeo tambm ao diretor da Bibioteca Nacional del Per, Ramn Mujica e aos
funcionrios da Hemeroteca da Biblioteca Nacional del Per, em especial a Manolo
Ramos Zegara, quem permitiu meu acesso hemeroteca mesmo durante um inventrio,
o que foi imprescindvel para a concluso da leitura das fontes. No Instituto Riva-
Agero, agradeo ao diretor Jos de la Puente Brunke, que proporcionou-me um
encontro com os pesquisadores do Grupo Bicentenrio/PUCP, uma portunidade valiosa
de debater o meu trabalho. Tambm no Archivo Nacional del Per e no Archivo
Historico de Lmites sou grata aos funcionrios que me ajudaram a aproveitar da melhor
maneira o tempo dedicado ao levantamento de fontes.
As crticas e sugestes ao trabalho apresentadas por Vctor Peralta Ruiz e
Ceclia Helena de Salles Oliveira na realizao do exame de qualificao foram muito
importantes para o desenvolvimento da pesquisa. Os agradeo pela generosa
contribuio.
5
Agradeo aos colegas do grupo de orientandos do Prof. Dr. Joo Paulo
Pimenta pelas sugestes e crticas ao meu trabalho. Recordarei sempre com carinho das
nossas conversas sobre as desventuras da vida dedicada pesquisa. Agradeo a
Cristiane Camacho dos Santos, Ana Cludia Fernandes, Jaqueline Loureno, Camilla
Farah, Ed Levati, Oscar Castro, Rafael Fanni e Carlos Bastos, a quem agradeo
especialmente pela ajuda no planejamento de minha viagem de pesquisa ao Peru.
Sou imensamente grata ao meu orientador, Joo Paulo Pimenta, por acreditar em
minha pesquisa anos atrs, quando iniciamos um trabalho ainda na graduao. Agradeo
pelo verdadeiro trabalho de orientao realizado durante todos esses anos de caminhada
na pesquisa, em especial, agradeo pelo apoio to fundamental na etapa final do
mestrado.
Agradeo a todos os amigos, que de diversas formas me apoiaram nesses anos
dedicados ao estudo. queles que conheo desde a infncia e que me acompanharam
neste crescimento pessoal e profissional, que compreenderam minha ausncia, mas
tambm exigiram minha presena, quando era isso que eu mais precisava; s amizades
que fiz durante a graduao em Histria e que renovaram, por diversas vezes, a paixo
pelo ofcio de historiadora, apesar das inmeras dificuldades que encontramos. Sou
muito grata tambm aos novos amigos, que fizeram da minha viagem de pesquisa ao
Peru uma experincia de vida valorosa, como pesquisadora e tambm no mbito
pessoal, sintam-se responsveis por essa pontinha de saudades que sempre sentirei do
Peru.
No h como expressar a gratido pelo apoio da minha famlia nos anos
dedicados pesquisa e sobretudo, por acreditarem nos meus sonhos e compartilharem
deles. Agradeo a minha me, Lisabete, meu porto seguro e minha inspirao; ao meu
pai, Csar, que plantou em mim a curiosidade, a vontade de saber o porqu, aqui est
6
um fruto; ao meu irmo, Lauro, um exemplo de dedicao, espero que finalmente
descubra porque eu perdi tantas tardes ensolaradas. Agradeo tambm s minhas avs,
presena doce em todos os momentos da minha vida.
Agradeo ao Ariam, companheiro de histrias: na vida e na profisso. Obrigada
pela dedicao e apoio e por me fazer constantemente em um mundo melhor.
7
RESUMO
Tomando como ponto de partida a insero dos processos de independncia
luso e hispano-americanos como parte de uma mesma conjuntura revolucionria
mundial, a presente pesquisa aborda as trocas de experincias polticas entre o Vice-
Reino do Peru e a Amrica Portuguesa no contexto mencionado. Investiga-se a leitura
do mundo luso-americano na imprensa e na poltica hispano-peruana entre os anos de
1808 e 1822, aventando a possibilidade de que o compartilhamento de experincias
polticas entre o Vice-Reino do Peru e a Amrica portuguesa possa ter influenciado as
percepes, os projetos e as reaes desses espaos diante da crise do Antigo Regime na
Amrica.
Palavras-chave: Brasil; Vice-Reino do Peru; imprensa; independncia; sculo XIX.
8
ABSTRACT
The present research approaches the exchanges of political experiences between
the Vice-Reign of Peru and the Portuguese America during their independence
processes, starting from the assumption that they were part of the same world
revolutionary conjuncture. The Vice-Reign of Peru and the Portuguese America are
seen in relation to their reciprocal determination in this context, focusing on the reading
of the Luso-American world in the Peruvian press and politics between 1808 and 1822.
It seeks to understand how the sharing of experiences between the Vice-Reign of Peru
and the Portuguese America influenced the perceptions, the projections, and the
reactions of these spaces towards the crisis of the Ancient Regimen in the Portuguese
America.
Key-words: Brazil; Vice-Reign of Peru; press; independence; XIX century.
9
SUMRIO
INTRODUO 10
CAPTULO 1
A abertura da crise na Europa e na Amrica (1808-1810) 27
CAPTULO 2
Da abertura das Cortes derrota de Napoleo (1810-1814) 64
CAPTULO 3
Do aprofundamento da crise s independncias (1814-1822) 82
CONSIDERAES FINAIS 119
ANEXOS 124
REFERNCIAS 127
10
INTRODUO
Por muito tempo, os processos de independncia da Amrica ibrica, ocorridos
no incio do sculo XIX, foram tratados dando-se nfase aos resultados distintos de cada
parte; isto , do ponto de vista dos Estados nacionais deles resultantes. Na historiografia
uma clivagem bsica frequentemente se apresentou: de um lado o Brasil, com a suposta
preservao da integridade territorial da antiga Amrica portuguesa, a manuteno do
governo monrquico e da escravido; de outro, a Amrica hispnica, caracterizada por
uma desagregao territorial, da qual teria resultado o surgimento de diversos pases e a
adoo do republicanismo como forma de governo.
J nas primeiras abordagens historiogrficas \acerca da independncia do
Brasil, escritas no prprio sculo XIX, essa distino foi destacada e interpretada como
evidncia de uma pretensa superioridade do caso brasileiro em relao aos demais, por
conta de sua transio poltica aparentemente pacfica.1 Ganhando diversas nuances e
usos ao longo do tempo, essa distino permaneceu arraigada na historiografia sobre o
tema. Interpretaes nesse sentido tomaram os processos de independncia luso e
hispano-americano em separado e como profundamente diversos entre si.2
A peculiaridade da soluo poltica encontrada para a independncia do Brasil a
permanncia da monarquia sob a dinastia Bragana suscitou um dos debates mais
1 No sculo XIX, a argumentao da superioridade brasileira tendo por base esta abordagem foi realizada
de maneira exemplar por Francisco A. de VARNHAGEN. Histria geral do Brasil. 10 ed. Belo
Horizonte/So Paulo, Itatiaia/EDUSP, 1981. Outras importantes interpretaes que enfatizariam as
diferenas entre as independncias do Brasil e da Amrica hispnica seriam as de Oliveira LIMA. D.
Joo VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 3. Ed., 1996; J. P. Calgeras. Formao histrica do Brasil.
Braslia: Senado Federal, Conselho Editorial, 2009; Caio Prado Jr. Evoluo poltica do Brasil: colnia e
imprio. 21 ed, So Paulo: Brasiliense, 2007; Raimundo Faoro. Os donos do poder: formao do
patronato poltico brasileiro. 3 ed. rev. So Paulo: Globo, 2009 e Srgio Buarque de HOLANDA. A
herana colonial: sua desagregao. Histria Geral da Civilizao Brasileira, vol 3. So Paulo: Difuso
Europia do Livro, 1960, para mencionarmos apenas algumas clssicas. 2Um balano da historiografia brasileira a respeito da independncia foi elaborada por Wilma P. COSTA.
A Independncia na historiografia brasileira. In: stvan JANCS (org.). Independncia: histria e
historiografia. So Paulo: Hucitec/FAPESP, 2005.
11
fundamentais para a historiografia brasileira. De acordo com Wilma Peres Costa, a
questo fulcral para uma linhagem de historiadores que se debruaram sobre a
construo do Estado e da nao brasileiros foi a das permanncias/rupturas em relao
ao passado colonial. Costa reconhece que o resultado da Independncia do Brasil
revelou-se de difcil compreenso para os estudiosos do tema e muitas abordagens
acabaram por reforar as continuidades entre o passado colonial e a formao do Estado
Nacional, por vezes diminuindo o carter revolucionrio da Independncia. Entretanto,
sob as aparentes continuidades encontram-se importantes rupturas: mesmo em se
tratando de elementos de continuidade supostamente mais evidentes como, por
exemplo, a manuteno do governo monrquico, tratava-se, na realidade, de uma
entidade poltica distinta da anterior, uma vez que se convertera em monarquia
constitucional.3
s interpretaes historiogrficas mais recentes sobre a Independncia do
Brasil coube, portanto, enfrentar duas questes, entre tantas outras que poderiam ser
enumeradas: a da compreenso das supostas continuidades como um objeto de anlise e
interpretao, evitando abord-las como um pressuposto; e a da desconstruo do
raciocnio teleolgico, segundo o qual a Independncia seria decorrncia natural do
processo de colonizao. Ao revisar tais pressupostos de anlise, os pesquisadores
abriram sendas como a da investigao do papel que exerceram as novas formas de
sociabilidade surgidas em finais do sculo XVIII e maturadas em meio (e ao mesmo
tempo como consequncia delas) s feies especficas que a crise do Antigo Regime
adquiriu na Amrica portuguesa, levantando pontos fundamentais no estudo da cultura
poltica gestada poca da Independncia e posterior formao do Estado Nacional.
Pesquisas recentes j parecem utilizar essas preocupaes como ponto de partida, alm
3 W. COSTA. A Independncia na historiografia brasileira. Cit., p. 55.
12
de avanarem na compreenso do movimento como parte de uma conjuntura
internacional, concebendo a Amrica ibrica das independncias como pertencente a
uma mesma unidade histrica.4
Esta pesquisa prope uma abordagem semelhante: defende-se o tratamento dos
processos de independncia ibero-americanos como parte de uma mesma conjuntura;
alm disso, pressupe a necessidade de se analisar matizes pouco conhecidas dessa
conjuntura, isto , relaes recprocas algumas intensas e fundamentais que
aproximaram seus diferentes quadrantes, desencorajando, portanto, anlises
segmentadas ou isoladas dentro deste espao.5
Em se tratando do perodo da crise do Antigo Regime, indispensvel
compreender que as reas espanholas e portuguesas da Amrica foram organizadas
durante mais de trs sculos sob a gide de monarquias catlicas. Desde o incio da
colonizao, houve um forte empenho em estabelecer na Amrica diversos mecanismos
de reproduo e tambm de adaptao dos valores monrquicos europeus, como
forma de legitimao e manuteno do poder no Ultramar. Nas palavras de Marco
4 Esforos preliminares neste sentido foram realizados por: Jos RIBEIRO JR. O Brasil monrquico em
face das repblicas americanas. In: C. G. MOTA (org.) Brasil em perspectiva. 19ed. Rio de Janeiro,
Bertrand, 1990; Nelson W. SODR. As razes da independncia. 2 Ed. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 1969. Elaboraes mais recentes do tema aparecem em: Tlio HALPERN DONGHI. Historia
da Amrica Latina 3. Reforma y disolucin de los Imperios Ibricos, 1750-1850. Madrid: Alianza, 1985;
I. JANCS. A Construo dos Estados Nacionais na Amrica Latina. Apontamentos para o estudo do
Imprio como Projeto. In: Jos R. do A. Lapa e T. Szmrecsnyi. (org.) Histria Econmica da
Independncia do Imprio. So Paulo: Hucitec, 1996; Joo Paulo PIMENTA. O Brasil e a Amrica
Espanhola, 1808-1822, So Paulo: FFLCH-USP, 2003; Jeremy ADELMAN Sovereignity and
Revolution in the Iberian Atlantic. Princeton & Oxford, Princeton University Press, 2006; Stefan H.
RINKE. Las revoluciones en Amrica Latina: las vas a la independencia, 1760-1830. Mxico, D.F.: El
Colgio de Mxico, 2011. 5 So exemplos dessa abordagem: Joo Paulo PIMENTA. O Brasil e a Amrica Espanhola, 1808-1822,
So Paulo: FFLCH-USP, 2003; J. P. PIMENTA. La poltica hispanoamericana y la crisis del Imperio
portugus: vocabulario poltico y coyuntura. Em: Brasil y las independencias de Hispanoamrica.
Castell de la Plana: Universitat Jaume I, 2007; Joo Paulo PIMENTA. Tempos e espaos das
independncias: a insero do Brasil no mundo ocidental (c. 1780 c. 1830). Tese de livre docncia, So
Paulo, FFLCH/USP, 2012; Camilla Farah Ferreira ALVES. Na Amrica dos imprios: a leitura do Brasil
pela imprensa peridica da Nova Espanha no contexto das independncias (1808-1822). Relatrio para
exame de qualificao, So Paulo, FFLCH/USP, 2013; Carlos A. C. BASTOS. No limiar dos imprios:
projetos, circulaes e experincias na fronteira entre a Capitania do Rio Negro e a Provncia de
Maynas (c.1780-c.1820). Tese de doutorado. So Paulo: FFLCH/USP, 2013; Ana Claudia FERNANDES.
Revoluo em pauta: o debate Correo del Orinoco Correio Braziliense (1817-1820). Dissertao de
mestrado. So Paulo: FFLCH-USP, 2010.
13
Antonio Landavazo, o rei da Espanha era o portador del capital simblico de la
monarquia6 e, por isso, deveria se fazer presente em todas as partes do Imprio, seja na
pennsula, seja na Amrica. As festas rgias, por exemplo, eram uma forma do rei se
fazer simbolicamente presente com todo seu virtuosismo e poder e assim garantir a
adeso popular ao imaginrio da monarquia, ainda que estivesse distante. Nessa
construo os vice-reis tinham papel fundamental, e eram recebidos na Amrica com
grandes festas nas cerimnias pblicas. Nas palavras de Elliot: el virrey iba a ser en la
prctica el alter ego de un soberano por fuerza absentista y el vivo reflejo de la realeza
en un pas distante.7 A comunicao entre metrpole e domnios coloniais era uma das
questes fundamentais para as monarquias ibricas, e se revelaria ainda mais
desafiadora em momentos de crise como o incio do sculo XIX.8
O rei da Espanha representava no s a fuso de todas as partes do Imprio,
mas tambm a atemporalidade da monarquia, atravs de sua linhagem. Esse princpio
foi apropriado tambm no Vice-Reino do Peru, onde ao longo dos sculos XVII e XVIII
foram sendo elaboradas imagens que reuniam, em uma s linhagem, os imperadores
incas e os reis espanhis, como uma forma de associar ao passado indgena os valores e
o imaginrio monrquico defendidos pela Espanha.9 Portanto, quando das crises
6 Marco Antonio LANDAVAZO. La mascara de Fernando VII. Discurso e imaginarios monrquicos en
una poca de crisis. Nueva Espaa (1808-1822). Mxico: El Colegio de Mxico, Universidad
Michoacana de San Nicols de Hidalgo, El Colegio de Michoacn, 2001, p. 27. 7 J. ELLIOTT. Rey y Patria en el Mundo Hispnico. In: Victor MNGUEZ y Manuel CHUST (eds.). El
Imperio Sublevado. Monarqua y Naciones en Espaa e Hispanoamrica. Madrid, Consejo Superior de
Investigaciones Cientficas, 2004. p.25. 8 Ver tambm: John H. ELLIOTT. Imperios del Mundo Atlntico. Espaa y Gran Bretaa en Amrica,
1492-1830. Madrid: Taurus, 2006. p. 200; Especificamente sobre o Peru: Karine PRRISTAT. Lima fte
ses rois (XVIe.-XVIIIe. Sicles): hispanit et amricanit dans les crmonies royales. Paris: LHarmattan,
2002. 9 As primeiras imagens da linhagem dos imperadores incas enviadas Espanha datam do sculo XVI.
Efgies de los emperadores incas y de sus sucesores los reyes de Espaa de autoria desconhecida e
data aproximadamente de 1750. Depois das rebelies indgenas da dcada de 1780 foram proibidas
quaisquer representaes dos antigos imperadores incas. Alfonso R. GUTIRREZ de CEBALLOS. Las
series icnicas pintadas de los emperadores Incas en el siglo XVIII y su continuidad en la Monarqua
hispnica. In: MNGUEZ (eds.). Visiones de la monarqua hispnica. Castell de la Plana: Publicacions
de la Universitat Jaume I, D.I., 2007. p. 176-186.
14
imperiais, seja nas contestaes de fins do XVIII, seja nos processos de independncia,
seria muito difcil desvencilhar-se dos valores agregados a essa tradio monrquica.
O Vice-Reino do Peru ocupou por muito tempo posio de grande importncia
no mundo colonial espanhol, tanto do ponto de vista econmico, baseado, sobretudo, na
explorao da prata das minas de Potos, como do ponto de vista da lealdade poltica de
sua numerosa aristocracia. Lima era a sede da alta burocracia do Vice-Reino e tambm
dessa aristocracia. De acordo com Flores Galindo, a "capital de los virreyes" contava
com a elite mais numerosa e importante da Amrica espanhola, onde, durante o perodo
colonial, foram outorgados 411 ttulos nobreza, seguidos de longe pelos 234 outorgados
em Cuba e Santo Domingo.
Lima contava com uma populao de cerca de 64 mil habitantes no incio do
sculo XIX, dos quais cerca de 28% eram espanhis peninsulares e criollos, grupo que
representava apenas 12% do total da populao do Vice-Reino, indicando, portanto, a
concentrao dos espanhis na costa.10
Por outro lado, os ndios constituam mais da
metade da populao do Vice-Reino do Peru, enquanto os mestios eram pouco mais de
20%. Esta composio social conferia uma preocupao constante s elites, sobretudo
aps as rebelies indgenas da dcada de 1780.
As reformas empreendidas pela Espanha em finais do sculo XVIII subtraram
do domnio do Vice-Reino as importantes minas de Potos, incorporadas ao ento
recm-criado (1776) Vice-Reino do Rio da Prata. A liberdade de comrcio e a crescente
importncia dos portos do Atlntico no comrcio com a metrpole acabaram por
prejudicar os comerciantes monopolistas de Lima, ainda que a prata continuasse a ser
10
Alberto FLORES GALINDO. Aristocracia y plebe. Lima, 1760-1830: estructura de clases y sociedad
colonial. Lima, Mosca Azul, 1984; Tambm A. MARTNEZ y M. CHUST (Eds.) Una independencia,
muchos caminos. El caso de Bolvia (1808-1820).Castell de la Plana: Universitat Jaume I, 2008. p.49 e
segs.
15
representativa para a economia de toda a Amrica espanhola.11
A respeito do impacto
dessa reformulao, Scarlett O'Phelan afirma que "el Virreinato del Per que encontr
Jos Fernando de Abascal a su llegada, en 1806, era un espacio mutilado".12
Desde meados do XVIII, as monarquias ibricas j buscavam reverter sua
posio desfavorvel dentro do cenrio europeu e, inspiradas pelas ideias ilustradas,
empreenderam reformas poltico-administrativas que resultaram em fomento
produo, diversificao e exportao dos gneros coloniais, recrudescimento dos
sistemas de tributao e modificaes poltico-administrativas tanto em reas
peninsulares como americanas. Vrias destas medidas aumentaram as tenses nas
colnias e se mostraram insuficientes para reverter a delicada situao dos imprios
ibricos na Europa.13
Na Amrica Portuguesa esse perodo foi marcado por duas manifestaes
relacionadas, em alguma medida, a mudanas impostas pelas reformas ilustradas: a
Inconfidncia Mineira, que comeou a ser planejada em 1788 e foi desmantelada no ano
seguinte, e a Conjurao Baiana, de 1798.14
No mesmo perodo, manifestaes de
11
Christine HNEFELDT. Trasfondo socioeconmico: un anlisis sobre los albores de la independencia
y las particularidades econmicas y sociales andinas de finales de XVIII y principios de XIX. In:
Enrique AYALA MORA (coord.) Historia de Amrica Andina. Quito: Universidad Andina Simon
Bolivar, 2003. p. 30-34; Alberto FLORES G. La Crisis de la Independencia: El Per y Latinoamrica.
In: A. FLORES G. (comp.). Independencia y Revolucin. Cit. p. 7-16; Alfonso QUIROZ. Estructura
Econmica y Desarrollos Regionales de la Clase Dominante, 1821-1850. In: FLORES G. (comp.).
Independencia y Revolucin. cit. Tomo 2. p. 201-205. 12
Scarlett OPHELAN. "El Per de Abascal: entre la Constitucin de Cdiz, la Lima fidelista y la
reformulacin del espacio virreinal". Em: M. CHUST e I. FRASQUET (eds.) La patria no se hizo sola.
Las revoluciones de las independencias iberoamericanas. Madrid: Slex ediciones, 2012. p.215. 13
T. HALPERN. Historia da Amrica Latina 3. Reforma y disolucin de los Imperios Ibricos , 1750-
1850. Madrid: Alianza, 1985.; Miguel ARTOLA. La Burguesa Revolucionaria (1808-1874). Madrid:
Alianza Editorial, 1980, 7 ed.; Fernando A. NOVAIS. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema
colonial (1777-1808). 4ed., So Paulo: Hucitec, 1986; Franois-Xavier GUERRA. Modernidad e
Independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispnicas. Mxico: MAPFRE, FCE, 2000; Fedrica
MORELLI. "La redefinicin de las relaciones imperiales: en torno a la relacin reformas
dieciochescas/independencia en Amrica". Nuevo Mundo, Mundos Nuevos (on-line), 2008. Acesso em:
http://nuevomundo.revues.org/index32942.html; Sobre o impacto da perda dos domnios coloniais nos
anos finais do Antigo Regime espanhol ver: Josep FONTANA. "La crisis colonial en la crisis del Antiguo
Rgimen espaol". In: A. FLORES G. (comp.). Independencia y Revolucin 1780-1840. Tomo 1. Lima:
Instituto Nacional de Cultura, 1987. 14
. JANCS. "A seduo da liberdade: cotidiano e contestao poltica no final do sculo XVIII". In: F.
NOVAIS (dir.). Histria da vida privada no Brasil. So Paulo, Cia. das Letras, 1997, V.I; Kenneth
16
descontentamento, que de muitas maneiras se relacionam com as Reformas
Bourbnicas, eclodiram na Amrica espanhola, como a Revolta dos Comuneros, em
1781, em Nova Granada, e as rebelies de Tupac Amaru e Tupac Catari, no Vice-Reino
do Peru, entre 1780 e 1783.15
Estes movimentos so muito diferentes entre si quanto s
suas motivaes imediatas, a origem social dos envolvidos e a violncia empregada
pelos manifestantes e pelas autoridades encarregadas da represso; entretanto, todos
revelam uma mesma crise enfrentada pelas monarquias ibricas, e so permeados por
valores tradicionais, por isso no levaram derrubada da ordem monrquica naquele
momento.
A rebelio de Tupac Amaru at hoje alvo de intensos debates historiogrficos,
inclusive no tocante a sua relao com o posterior processo de independncia, sendo um
dos temas mais discutidos pela historiografia peruana.16
Para os propsitos desta
pesquisa, mais do que o evento em si, interessa considerar a repercusso do movimento
na dinmica poltica e social do Vice-Reino nos anos seguintes, especialmente durante o
processo de independncia. O temor de uma nova rebelio indgena tornou-se questo
fundamental no Peru, sendo elemento que ajuda a entender a persistncia do forte
realismo na regio e tambm algumas das vicissitudes da subsequente formao do
Estado e da nao peruanos.17
MAXWELL. A Devassa da Devassa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. (Estudos Brasileiros, v. 22); Joo
P. FURTADO. O Manto da Penlope: Histria, Mito e Memria da Inconfidncia Mineira, 1788-1789.
So Paulo: Companhia das Letras, 2002. 15
T. HALPERIN. Histria da Amrica Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. p. 37-50; C. WALKER.
Smoldering Ashes. Cuzco and the creation of republican Peru 1780-1840. Durhan: Duke University
Press, 1999, p. 12-15. OPHELAN G. La gran rebelin en los Andes: de Tpac Amaru a Tpac Catari.
Cuzco: CBC, 1995. 16
WALKER, Smoldering Ashes. Cit. p. 16-54. Tambm discutem este tema: John LYNCH. Las
Revoluciones Hispanoamericanas, 1808-1826. Barcelona: Ariel, 1985; Scarlett O'PHELAN GODOY. "El
mito de la 'independencia concedida': los programas polticos del siglo XVIII y del temprano XIX en el
Alto Per (1730-1814). In: FLORES G. Independencia y revolucin, Tomo 2. cit. Para um esboo crtico
da historiografia peruana da independncia, vide: Carlos CONTRERAS. "La independencia del Per.
Balance de la historiografa contempornea". In: CHUST y SERRANO. (Eds.) Debates sobre las
independencias iberoamericanas. Madrid: Iberoamericana, 2007. 17
WALKER. Smoldering Ashes. Cit. e T. HALPERIN. Histria da Amrica Latina. Cit.
17
Os movimentos de contestao luso e hispano-americanos de finais do sculo
XVIII se constituram em espectros a pairar sobre a cabea das elites que, anos depois,
teriam papel ativo e dirigente nos respectivos processos de independncia. Quando
foram debelados pelas autoridades realistas da poca, o foram por meio de punies
rigorosas, pblicas e violentas a alguns de seus principais implicados, como nos casos
de Tiradentes, Tupac Amaru e dos quatro inconfidentes da Bahia, igualmente
supliciados; revelando o medo de tais autoridades de que outros sditos seguissem tais
exemplos. J nas primeiras dcadas do sculo XIX, em meio a ambientes sociais
instveis e cada vez mais politizados, o medo dos que se empenhavam na manuteno
da ordem tradicional seria de que aquela histria recente oferecesse heris inspiradores
para manifestaes ainda mais radicais, o que era favorecido pela conjuntura
revolucionria mundial.18
Ainda que as reformas bourbnicas tenham sofrido questionamentos e suscitado
descontentamentos entre diversos setores da sociedade hispano-peruana, inclusive por
conta do prejuzo de alguns dos interesses da elite espanhola, no foram capazes nem
isso almejavam de abalar a identidade monrquica, que coexistiu com diversas outras
identidades. Os hispano-peruanos mantiveram e at mesmo fortaleceram sua identidade
como reino, e assim atuariam durante boa parte da crise da monarquia espanhola,
quando mantiveram seu fidelismo poltico, configurando-se como bastio da legalidade
na Amrica.19
Assim, ambientes ilustrados do mundo atlntico, inclusive coloniais, tiveram
sua disposio un acervo de nuevas referencias ideas, imaginarios, smbolos,
experiencias constitucionales que podrn utilizar, a veces de manera diferente o
18
J. P. PIMENTA. O Brasil e a Amrica Espanhola. Cit., p. 19. 19
Vctor PERALTA RUIZ. La independencia y la cultura poltica peruana (1808-1821). IEP-Instituto de
Estudios Peruanos: Lima, 2010. P.111-112.
18
combinarlas con otras aportaciones20
. Esses novos referenciais seriam mobilizados
diante da crise instaurada em Portugal e na Espanha a partir de 1807 e 1808,
desencadeando reaes variadas em cada uma das monarquias ibricas e,
consequentemente, em suas respectivas colnias. Franois-Xavier Guerra demonstra
que a apropriao desses novos referenciais disponveis resultaram na persistncia de
um forte tradicionalismo no imaginrio social e nas referncias polticas do mundo
hispnico.21
A trajetria do Vice-Reino do Peru durante as guerras de independncia foi,
nesse sentido, interpretada por muitos historiadores como exemplar da fora do discurso
legitimista, por tratar-se do ltimo bastio do realismo espanhol a cair na Amrica do
sul.
A historiografia peruana, posteriormente, seria marcada por um intenso debate
que abarcava as causas da persistente fidelidade do Peru Espanha e as formas pelas
quais a independncia ali se processou. Esse debate pode ser sintetizado em torno da
questo: teria sido a independncia concedida, ou seja, imposta pelo exrcito libertador
liderado por San Martn; ou teria sido o resultado de uma conjugao de foras
populares, isto , grupos de indgenas e seus descendentes?22
A esse respeito, o trabalho
de Scarlett O'Phelan Godoy pode ser considerado um dos pontos de inflexo, ao
elaborar uma crtica consistente ao mito da independncia concedida, buscando a
compreenso da particularidade do arranjo social do Vice-Reino do Peru e da atuao
de diversos grupos diante da crise do Antigo Regime na Amrica.23
Mais recentemente,
20
F-Xavier GUERRA. Modernidad e Independencias. Ensayos sobre las revoluciones hispnicas.
Mxico: MAPFRE, FCE, 2000. Cit. P.35 21
Idbem. Imaginrios e valores de 1808. Cit. p.149-175. 22
Balanos a respeito da historiografia da independencia do Peru podem ser vistos em: Gustavo Montoya.
"Narrativas histricas en conflicto". Em: La Independencia del Per y el Fantasma de la Revolucin.
Lima: Instituto de Estudios Peruanos, 2002.; Carlos Contreras. "La independencia del Per. Balance de la
historiografa contempornea". In: CHUST y SERRANO. (Eds.) Debates sobre las independencias
iberoamericanas. Madrid: Iberoamericana, 2007. 23
Scarlett O'PHELAN. "El mito de la 'independencia concedida': los programas polticos del siglo XVIII
y del temprano XIX en el Alto Per (1730-1814). Em: FLORES G. Independencia y Revolucin 1780-
1840. Tomo 2. Lima: Instituto Nacional de Cultura, 1987.
19
a historiografia peruana ou sobre o Peru tem contribudo com estudos a respeito de
culturas polticas locais nos anos da luta pela (e contra) a independncia, trazendo tona
a diversidade de opinies que circulavam no Vice-Reino, sobretudo na capital, e a
variedade de atores sociais envolvidos naquele processo.24
interessante notar que de forma semelhante ao que ocorreu com a
historiografia da independncia do Brasil, tambm no Peru certo movimento
revisionista sublinhou o carter revolucionrio da independncia. Desse modo,
significativo que, tanto em uma quanto em outra historiografia, tenha havido e ainda
haja uma tradicional nfase no carter conservador de suas respectivas
independncias, como se estas tivessem sido excees no panorama geral ibero-
americano; e fazem-no sem atentar para o caso semelhante que um pas oferece ao
outro. Por isso, seus revisionismos historiogrficos tiveram e tem at hoje que se
empenhar em demonstrar que, a despeito de tal conservadorismo, ambas as
independncias foram revolucionrias.25
Por que tais historiografias no dialogam entre
si, ou fazem-no muito pouco? Por que Brasil e Peru continuam sendo interpretados pela
tica de tradies cuja histria mostra justamente no serem seus objetos primordiais
to singulares assim?
Notcias sobre o Brasil chegavam ao Peru (e vice-versa) levadas por pessoas que
faziam rotas martimas e terrestres, por meio de jornais, testemunhas oculares de
acontecimentos, ou receptores e difusores de informaes e boatos. No entanto, at o
24
Vctor PERALTA RUIZ. La independencia y la cultura poltica peruana (1808-1821). IEP-Instituto de
Estudios Peruanos: Lima, 2010; Claudia ROSAS LAURO. Del trono a la guillotina. El impacto de la
Revolucin Francesa en el Per (1789-1808). Lima: IFEA, Embajada de Francia, Pontificia Universidad
Catlica del Per, 2006. 25
Carlos CONTRERAS. "La independencia del Per. Balance de la historiografa contempornea". In:
CHUST y SERRANO (Eds.) Debates sobre las independencias iberoamericanas. cit.; G. MONTOYA.
"Narrativas histricas en conflicto". In: La Independencia del Per y el Fantasma de la Revolucin. Cit.
p. 21-57 e 113; Elas Jos PALTI. Revisin y Revolucin. Rupturas y Continuidades en la Historia y en la
Historiografia. (HMex, LVIII: 3, 2009).
20
momento poucos estudos parecem ter se detido sobre a questo26
. Esta uma lacuna
historiogrfica para cuja superao parcial pretende-se oferecer aqui uma contribuio.
Trata-se, em ltima instncia, de uma tentativa de conferir concretude a determinaes
de um processo sobre o outro, de modo que o contexto geral das independncias, hoje
amplamente reconhecido pela historiografia, tenha matizes e nuances que at o
momento estas interpretaes pouco lhe deram.
Esta pesquisa prope uma considerao dos processos de independncia da
Amrica portuguesa e do Vice-Reino do Peru como integrantes de uma mesma
conjuntura no continente americano e no mbito mundial, e tambm como espaos
dotados de uma srie de elementos de relao e de determinao recproca. A circulao
de exemplos, ideias e paradigmas, alm de contatos fsicos efetivos estabelecidos entre
estes espaos coloniais ibero-americanos, ganharam espao em trabalhos recentes, em
busca da superao dos estudos circunscritos exclusivamente as fronteiras nacionais,
inexistentes naquele momento.
O conhecimento dos acontecimentos da vizinhana continental mostrou-se
progressivamente um assunto presente na imprensa e na poltica de ambas as regies. A
Amrica portuguesa e o Vice-Reino do Peru, especificamente, figuraram como dois dos
centros irradiadores de princpios monrquicos tradicionais em meio ao avano da crise
do Antigo Regime na Amrica. Aqui, lana-se um olhar sobre as relaes estabelecidas
entre estes domnios coloniais ibricos, que compartilhavam do interesse pela
manuteno da integridade das monarquias ibricas e da defesa dos princpios de
legitimidade, francamente abalados a partir da crise deflagrada com a invaso francesa
pennsula. Investiga-se a presena, no Vice-Reino do Peru, de informaes sobre
26
Um trabalho que trata especificamente dos contatos na fronteira entre Brasil e Peru o de Carlos A. C.
BASTOS. No limiar dos imprios: projetos, circulaes e experincias na fronteira entre a Capitania do
Rio Negro e a Provncia de Maynas. Cit. A existncia destas relaes na fronteira refora a proposio
geral da presente pesquisa e devem, portanto, ser consideradas como complemento necessrio s relaes
polticas aqui abordadas.
21
acontecimentos que tinham lugar na vizinha Amrica Portuguesa, por meio de notcias,
informaes e boatos dela provenientes.
A questo de fundo aqui colocada a noo de experincia, como elaborada
por Reinhart Koselleck27
e que pode ser interpretada em uma dupla e simultnea
perspectiva: o conhecimento de uma realidade passada que ainda se desdobra
ativamente no presente neste caso, a realidade da Amrica portuguesa no Vice-Reino
do Peru e a vivncia dos desdobramentos concretos dessa realidade. Vale-se, para
tanto, da elaborao de Joo Paulo G. Pimenta, segundo a qual, juntas, tais dimenses
histricas criariam um laboratrio de ensinamentos, imposies, exemplos, paradigmas,
ameaas ou inspiraes que acabariam por determinar, em alguma medida, uma parcela
das alternativas de futuro que a crise das monarquias portuguesa e hispnica abriria para
o Brasil e para o Peru, respectiva e simultaneamente. 28
O uso da categoria "experincia" permite avanar em relao constatao
desses impactos, decorrentes de uma aproximao que no era restrita ao campo do
contato efetivo estabelecido nas fronteiras e nas relaes comerciais mas que
tambm se dava pela circulao de ideias e discursos polticos, conforme se pretende
observar no presente trabalho.
Para tanto, as fontes para essa pesquisa so registros impressos no Vice-Reino
do Peru durante os processos de Independncia, e que revelam as formas como alguns
de seus protagonistas articularam, por meio de linguagens eminentemente polticas,
interpretaes e opinies sobre o que acontecia a sua volta, materializando, sob a forma
de discursos, aquilo que viria a constituir uma "experincia" dos acontecimentos
27
Reinhart KOSELLECK. "Espao de Experincia" e "Horizonte de Expectativa": duas categorias
histricas. In: Futuro Passado. Contribuio semntica dos tempos histricos. Rio de Janeiro:
Contraponto/PUC-RIO, 2006. 28
Esta leitura apresentada em duas obras: J. P. PIMENTA. O Brasil e a Amrica Espanhola. Cit.; e J. P.
Pimenta. Tempos e espaos das independncias: a insero do Brasil no mundo ocidental (c.1780 -
c.1830). So Paulo: FFLCH/USP, 2012.
22
contemporneos.29
Uma vez que se trabalha exclusivamente com suportes escritos, as
consideraes gerais de Pocock acerca das linguagens e dos discursos polticos
fornecem importantes advertncias quanto aos cuidados necessrios na anlise de
discursos dessa natureza.30
Pesquisas recentes sobre o mundo ibero-americano so
inspiradores exemplos da relevncia de se estudar o incio do sculo XIX a partir da
chave da histria intelectual31
e da anlise dos vocabulrios polticos32
, perspectiva
compartilhada pelo presente trabalho.
A pesquisa documental fundamentou-se nas publicaes da imprensa peridica
hispano-peruana entre os anos de 1808 e 1822, propondo um recorte cujo enfoque o
perodo entre a repercusso na Amrica do golpe sofrido pelas monarquias ibricas a
partir das invases napolenicas e a declarao formal de independncia do Peru, em
1821, e do Brasil, em 1822. Seguindo a periodizao proposta possvel acompanhar
formas pelas quais autoridades e membros da elite do Vice-Reino ofereceram respostas
crise da monarquia espanhola, baseados, em um primeiro momento, no repertrio
oferecido pelas tradies hispnicas, mas que incorporaram, ao longo dos processos de
inedependncia, contedos e reflexes do liberalismo hispnico e de todo um novo
29
J. P. PIMENTA. O Brasil e a Amrica Espanhola. Cit. p. 26. 30
A pertinncia da aproximao entre os referenciais terico-metodolgicos da Histria dos Conceitos, tal
qual elaborada por R. KOSELLECK, e da Histria das linguagens polticas, formulada por J. G. A.
POCOCK. Linguagens do Iderio Poltico, So Paulo: Edusp, 2003, argumentada por Melvin
RITCHER. Reconstructing the History of Political Languages: Pocock, Skinner, and the Geschichtliche
Grundbegriffe. History and Theory, vol. 29, n 1 (feb/1990), Blackewll Publishing for Wesleyan
Universisty. p. 38-70. http://www.jstor.org/stable/2505203 31
No mbito do mundo ibrico, o projeto Iberconceptos, apresenta uma proposta de histria conceitual
comparativa. Javier Fernndez Sebastin (dir.), Diccionario poltico y social del mundo iberoamericano.
La era de las revoluciones, 1750-1850, Iberconceptos I, Fundacin Carolina, Sociedad Estatal de
Conmemoraciones Culturales, Centro de Estudios Polticos y Constitucionales, Madrid, 2009. Para outros
detalhes sobre a organizao do dicionrio conferir a introduo de J. Sebastin: Hacia una histora
Atlntica de los conceptos polticos, pp 25-45. Elias PALT. El tiempo de la poltica. El siglo XIX
reconsiderado. Buenos Aires: Siglo XXI editores, 2007. 32
J. P. PIMENTA. La poltica hispanoamericana y la crisis del Imperio portugus: vocabulario poltico y coyuntura. Cit.; Ana Claudia FERNANDES. Revoluo em pauta: o debate Correo del Orinoco
Correio Braziliense. Cit.; Marco Morel. Independencia no papel. MOREL, Marco. Independncia no papel: a imprensa peridica. Texto originalmente publicado em I. JANCS (org.) Independncia: histria
e historiografia. So Paulo: Hucitec/FAPESP, 2005. (Disponvel no endereo eletrnico:
http://www.ceo.historia.uff.br/c.php?c=artigo&cod=19, acessado em 12/01/2013).
23
contedo de experincias oferecidas pelas diversas alternativas polticas surgidas
durante este mesmo processo.
Nesse sentido, Elias Palt aponta que a opinio pblica, em processo de
construo no incio do sculo XIX, converter-se-ia em fundamento de legitimidade
aps o rompimento de parmetros polticos tradicionais. Trata-se de um momento em
que o debate poltico ganha corpo, conferindo significativa importncia incipiente
imprensa peridica, que se converteu, em alguns momentos, em campo de batalha entre
posies polticas divergentes e se beneficiou da ampliao dos espaos de
sociabilidade em finais do sculo XVIII e incio do XIX.
As mudanas da cultura poltica na Amrica, de maneira geral, e especialmente
em Lima, comearam com a criao dos primeiros cafs e livrarias, espaos pblicos
onde eram discutidos assuntos do cotidiano, mas tambm obras literrias, polticas e,
cada vez mais, eram debatidos os contedos dos peridicos. Estes espaos
multiplicaram-se em decorrncia da poltica ilustrada, empreendida pelas reformas de
meados do sculo XVIII. No caso peruano experincias como a da tertlia Sociedad de
Amantes del Pas, criada em 1790, conseguiram ultrapassar o limite do espao privado
em que se encerravam; neste caso, com a publicao do peridico Mercurio Peruano.
Lanado em janeiro de 1791, sob a proteo do Vice-Rei Gil de Taboada y Lemos, o
Mercurio Peruano chegou a atingir 400 assinantes e tinha como marca a defesa da
autoridade vicerreinal. Publicado com o objetivo de fomentar a ilustrao, o peridico
inevitavelmente abriu espao tambm para a discusso de assuntos polticos, ainda que
o tema fosse formalmente proibido.33
33
O Mercrio Peruano foi publicado de 1791 a 1795, quando encerrou-se tambm o governo do Vice-Rei
Gil de Taboada, dissolvendo um contexto ilustrado que permitira um breve desenvolvimento do espao
pblico em Lima. PERALTA R. En defensa de la autoridad: poltica y cultura bajo el gobierno del virrey
Abascal. Peru, 1806-1816. Madrid: CESIC, 2003.Cit. p.30-37.
24
Para este trabalho, foi realizada a leitura extensiva de todos os peridicos
publicados em Lima entre os anos de 1808 e 1822 e que encontraram-se disponveis em
trs repositrios principais: a Coleccin Documental de la Independencia del Peru34
,
encontrada na Biblioteca Victor Cvita, do Memorial da Amrica Latina, em So Paulo;
a Hemeroteca da Biblioteca Nacional del Per; e a coleo de peridicos disponvel no
Instituto Riva-Agero, vinculado Pontificia Universidad Catlica del Per. Foram
utilizados tambm os trs volumes da Gaceta del Gobierno de Lima editados em 1971,
e que constituem um acervo pessoal.
A Coleccin Documental de la Independencia del Peru foi publicada entre os
anos de 1971 e 1976, no marco das comemoraes do sesquicentenrio da
Independncia do Peru. Para sua publicao, foram selecionados pela Comisso
Nacional do Sesquicentenrio peridicos, correspondncias oficiais e privadas, relatos
de viagens, documentos sobre rebelies, informaes acerca da participao do Peru nas
Cortes de Cdiz, entre outros documentos, e que totalizam 81 tomos. Trata-se de um
extenso repertrio, do qual foram analisados os volumes referentes Documentacin
Oficial Espaola, que rene correspondncias dos vice-reis e de outras autoridades
hispano-peruanas, e os trs volumes dedicados aos Periodicos, onde esto as edies de
El Triunfo de la nacin, El Peruano, El Satlite del Peruano, Los Andes Libres e El Sol
del Per.35
A pesquisa documental nos arquivos peruanos foi realizada em duas etapas,
onde foram recolhidos os demais peridicos analisados: A los fieles habitantes del Per,
Abeja Espaola, La Abeja Republicana, El Americano, El Anti-Argos, El Aprendiz,
Argos Constitucional, El Brujo, Clamor de la Verdad, El Cometa, Correo Mercantil
34
Coleccin Documental de la Independencia del Per. Lima: Comisin Nacional del Sesquicentenario de la Independencia del Per. 1971-1976. Disponvel na Biblioteca Victor Cvita, Memorial da Amrica
Latina. 35
Ver lista em anexo.
25
poltico y literrio, Diario de Lima, El Depositario, El Espaol Libre, Gaceta del
Gobierno de Lima, La Geringa, Imparcial, El Investigador, El Investigador Resusitado,
El Loquero, El Loro, Minerva Peruana, Noticias de Lima, El Nuevo Depositrio, El
Peruano Liberal, El Republicano, El Semanrio, Tribuno de la Republica Peruana, El
Tribuno del Pueblo e Verdadero peruano.36
No total, foram recolhidos e analisados 35
ttulos diferentes. Com base nessa documentao, constatou-se que os acontecimentos
do Brasil e a poltica portuguesa, de maneira geral, eram dignos de nota embora no
muito numerosa - na imprensa peruana do perodo, e certamente contriburam na
construo de alternativas polticas diante da crise das monarquias ibricas.
Alm das publicaes peridicas, foi utilizada como fonte auxiliar a Memoria
de Gobierno del Virrey Abascal, editada em 1944 por Vicente Rodrguez Casado e Jos
Antonio Calderon Quijano.37
Trata-se de uma fonte inestimvel para conhecer o
pensamento poltico de Jos Fernando de Abascal y Souza, Vice-Rei do Peru entre 1806
e 1816, anos de profunda agitao na Amrica do sul hispnica, e quando, em meio a
diversas alternativas polticas que se apresentavam, o Vice-Reino constituiu-se em
bastio do legalismo espanhol; o que se atribui, em parte, atuao desse personagem38
.
Escrita ao final de seu perodo de governo, a Memoria foi dividida em duas partes, nas
quais Abascal apresentava ao seu sucessor, Joaquin de la Pezuela, seus feitos durante os
dez anos frente ao governo. Do prprio carter de uma memria de governo espera-se
que nela sejam valorizados os feitos de quem as narra; no caso em questo, somam-se as
caractersticas pessoais desse Vice-Rei, de elaborada retrica e clara viso acerca dos
acontecimentos polticos de seu tempo; dentre eles, a mudana da famlia real
36
Ver lista em anexo 37
Jos Fernando de ABASCAL. Memoria de Gobierno. Edicin de Vicente Rodrguez Casado y Jos
Caldern Quijano. Sevilla: Escuela de Estudios Hispanoamericanos, 1944. 38
Victo PERALTA RUIZ. En defensa de la autoridad: poltica y cultura bajo el
gobierno del virrey Abascal. Peru, 1806-1816. Madrid: CESIC, 2003; A. MARTNEZ y M. CHUST
(Eds.) Una independencia, muchos caminos. El caso de Bolvia (1808-1820).Castell de la Plana:
Universitat Jaume I, 2008.
26
portuguesa para o Brasil, captulo que encerra o primeiro volume da obra.39
Ainda sobre
os documentos utilizados na pesquisa, esclarece-se que as fontes foram transcritas
preservando o idioma e a grafia original e que ao longo do trabalho optou-se por adotar
o termo "Brasil", assim como era utilizado nas fontes, o que no implica desconsiderar
que o Brasil ainda no existia como Estado Nacional.
A dissertao est organizada em trs captulos, que correspondem a um
recorte cronolgico baseado nos pontos de inflexo dos processos de independncia
ibero-americanos e, de maneira especfica, do Peru e do Brasil. O primeiro captulo,
"Abertura da crise na Europa e na Amrica (1808-1810)", trata dos acontecimentos
precipitados pelas invases napolenicas na pennsula ibrica e das consequncias
imediatas que a crise deflagrada na pennsula provocou na Amrica ibrica de maneira
geral, e no Vice-Reino do Peru e no Brasil em particular. As primeiras referncias ao
mundo luso-americano so identificadas na incipiente imprensa peruana, dedicadas,
sobretudo, s notcias da guerra peninsular.
O segundo captulo desenvolve-se no recorte "Da abertura das Cortes na
Espanha derrota de Napoleo (1811-1814)", passando pela elaborao da Constituio
de Cdiz em 1812, e pelo amadurecimento da cultura poltica no Peru, influenciada pelo
decreto de liberdade de imprensa. Finalmente, o ponto de inflexo foi a derrota de
Napoleo Bonaparte e o retorno de Fernando VII ao trono da Espanha.
O captulo 3, "Do aprofundamento da crise s independncias (1815-1822)",
observam-se os impactos da restaurao de Fernando VII na Espanha peninsular e na
Amrica, do que decorre uma radicalizao dos posicionamentos polticos na Amrica.
Na Amrica hispnica, o avano dos patriotas colocaria em xeque a permanncia do
39
"Traslacion de la familia real de Portugal al Brasil". Em: Jos Fernando de ABASCAL. Memoria de
Gobierno. Edicin de Vicente Rodrguez Casado y Jos Caldern Quijano. Sevilla: Escuela de Estudios
Hispanoamericanos, 1944.
27
Peru como bastio da legalidade, enquanto a monarquia portuguesa tambm enfrentaria
contestaes contundentes. O absolutismo sofreu um novo golpe no mundo ibrico com
uma nova experincia constitucional na Espanha, em 1820, ano em que o mundo luso-
americano passaria por um movimento semelhante, a Revoluo Liberal do Porto. O
captulo encerra-se com a proclamao de independncia do Peru, em 1821, e a do
Brasil, em 1822, os ltimos territrios da Amrica do sul ibrica a tornarem-se
independentes.
CAPTULO 1
A ABERTURA DA CRISE NA EUROPA E NA AMRICA (1808-1810)
No son estos tiempos como los pasados, en que la voz de la
razn era desatendida, despreciados todos los derechos de los
que nacian en Amrica (...) Yo hablo en una poca toda
distinta...Parece que somos otros hombres: pudiera creerse
que habamos mudado de lugar.40
Diario Secreto de Lima, 01/02/1811.
Em muitos sentidos, os novos tempos a que Lpez Aldana, editor do Dirio
Secreto de Lima, refere-se em artigo escrito em 1811, haviam sido iniciados alguns anos
antes. Na Frana poder-se-ia identific-los Revoluo Francesa; no mundo ibero-
americano, foram bruscamente abertos pela invaso napolenica na Pennsula Ibrica,
em 1807. Os eventos franceses colocaram disposio un acervo de nuevas referencias
40
Diario Secreto de Lima, nm. 1, viernes 1de febrero de 1811, reproduzido en la Gazeta Extraordinaria
de Buenos Ayres, martes 21 de mayo de 1811. Citado por: Jelle Chassin. Lima, sus lites y la opinin
durante los ltimos tiempos de la colonia. In: GUERRA, F-Xavier & LMPERIRE (et al.). Los
espacios pblicos en Iberoamrica. Mxico: FCE, 1998. p.249
28
ideas, imaginarios, smbolos, experiencias constitucionales que podrn utilizar, a
veces de manera diferente o combinarlas con otras aportaciones41
. Novos referenciais
que seriam mobilizados diante da crise instaurada na Espanha e em Portugal pelas
invases napolenicas em 1807, desencadeando reaes variadas em cada uma das
monarquias ibricas e, consequentemente, em suas respectivas colnias.
As invases napolenicas na pennsula ibrica transformaram profundamente
as alianas polticas vigentes na Europa, provocando importantes mudanas tambm no
jogo poltico e diplomtico na Amrica. As alianas mostraram-se complexas,
contraditrias e movidas pela urgncia das circunstncias, mais do que por afinidades
polticas que estivessem bem estabelecidas ou por objetivos comuns a longo prazo. Se,
por um lado, o inimigo dos regimes monrquicos estava bem definido, personificado em
Napoleo Bonaparte, por outro, determinar nesse novo contexto quem eram os novos
aliados apresentava-se como uma tarefa difcil. A redefinio das alianas
internacionais despertaria suspeitas e desconfianas entre os portugueses e espanhis de
ambos os lados do atlntico42
. Perceber a fluidez das opinies e das leituras do mundo
que estavam ao alcance dos homens que viveram no mundo atlntico no incio do sculo
XIX parte fundamental de qualquer tentativa de compreenso do processo que
culminou com as independncias ibero-americanas e uma nova organizao de foras
entre os pases americanos e os europeus.
Liderada por Napoleo Bonaparte, a onda expansionista francesa do incio do
sculo XIX havia colocado Espanha e Portugal em seus planos de conquista. A
declarao do Bloqueio Continental Gr-Bretanha em 1806 indicara que as
alternativas de "sobrevivncia" dos pases ibricos haviam se reduzido aliana com
41
F-Xavier GUERRA. Modernidad e Independencias. Cit. P.35 42
Marcela TERNAVASIO. El trono vacante en disputa. Carlota Joaquina de Borbn en el nuevo
escenario interimperial, 1808-1814. Artculo 20/10, apresentado em conferncia na UNIFESP, fev/2014.
29
uma ou outra das potncias beligerantes.43
A fim de discorrer sobre as consequncias
desastrosas do expansionismo francs sobre a pennsula ibrica, o Vice-rei do Peru entre
os anos de 1806 e 1816, Jos Fernando de Abascal y Souza, retomou em sua Memoria
de Gobierno o que se passara no Imprio Espanhol nos anos imediatamente anteriores a
tal acontecimento:
Obstruidos los conductos de la correspondencia de Europa con el impedimento
de la guerra con la Nacin Britnica, y los funestos combates, de nuestras
Esquadras, se pasaban muchos meses sin adquirir en estos remotos domnios
noticia alguna directa relativa al Estado y situacin poltica de nuestra
Peninsula y mucho menos en materias de Oficio.44
Os eventos aos quais Abascal fazia aluso integravam o que se convencionou
chamar de "Era Napolenica"; mais especificamente, o vice-rei do Peru refere-se s
disputas imperiais entre Gr-Bretanha e Frana. Um dos enfrentamentos entre as foras
britnicas e as frotas aliadas da Espanha e da Frana ocorrera na conhecida Batalha de
Trafalgar em 20 de outubro de 1805, cujo resultado foi a vitria dos britnicos.
Napoleo utilizou-se ento de outra estratgia contra o poderio naval britnico: a
declarao de um Bloqueio Continental, em 1806, atitude que afetaria de maneira
substancial a relao das metrpoles ibricas com seus domnios de ultramar,
fundamentada no comrcio martimo. Da mesma maneira, impactava as comunicaes
43
A percepo de que no haviam alternativas alm de uma aliana com a Frana ou com a Gr-Bretanha
fica depreende-se de comentrios como o seguinte, extrado da Minerva peruana, de 5 de setembro de
1808. Em uma crtica aos mtodos dos franceses em relaes s outras naes, afirmam: "se sabe
positivamente que esta potencia [Dinamarca], despues de haber pesado los males que podian resultarle de
un rompimento con Inglaterra y con Francia, habia creido que la alianza con la ultima era preferible (...)". 44
"Proclamacin de Fernando 7" Em: Jos Fernando de ABASCAL. Memoria de Gobierno. Edicin de
Vicente Rodrguez Casado y Jos Caldern Quijano. Sevilla: Escuela de Estudios Hispanoamericanos,
1944, p.425.
30
entre Europa e Amrica, o que se revelaria de fundamental importncia no contexto de
crise que estava por se abrir.45
No ano de 1807 a Frana assinou dois tratados que versavam diretamente sobre
o destino dos pases ibricos. O tratado de Tilsit foi assinado secretamente com a Rssia
e a Prssia no incio de julho de 1807 e tinha por objetivo ampliar o bloqueio comercial
Gr-Bretanha, alm disso, o tratado tambm previa em uma de suas clusulas a
extino das dinastias Bragana e Bourbon. O Tratado de Fontainebleau, assinado com
a Espanha em 27 de outubro daquele mesmo ano estabelecia a diviso do territrio e
possesses portuguesas entre Frana e Espanha, em troca da permisso da passagem das
tropas francesas pelo territrio espanhol, a fim de conquistar Portugal. O Tratado de
Fontainebleau pode ser compreendido, dentre outros modos, como uma tentativa da
Espanha manter-se protegida do expansionismo francs, o que logo se mostraria
equivocado.46
Na Espanha, o tratado assinado com a Frana seria rompido no incio de 1808
e, aps a invaso francesa, a Coroa acabaria nas mos de Jos Bonaparte, irmo de
Napoleo. Em Portugal, a aliana travada com a Gr-Bretanha em outubro de 1807
permitiu que, diante da ameaa iminente de uma invaso francesa, a famlia real fosse
transferida para a sua mais importante colnia, o Brasil, para onde partiu em 29 de
novembro de 1807. Aps a invaso napolenica na pennsula ibrica, as antigas alianas
teriam de, inevitavelmente, serem reformuladas. A aliana entre Portugal e Gr-
45
Josep FONTANA. La crisis del antiguo rgimen (1808-1833). 4.ed. Barcelona, Crtica, 1992, p.13;
tambm Miguel ARTOLA. La burguesa revolucionaria (1808-1874). Madrid, Alianza, 1990, p.17-18;
Valentim ALEXANDRE. Os sentidos do imprio: questo nacional e questo colonial na crise do Antigo
Regime portugus. Porto Afrontamento, 1993, p.167-180; D. A. G. WADDEL. A poltica internacional e
a independncia da Amrica latina. Em: Leslie BETHELL (org.). Histria da Amrica Latina. So
Paulo/Braslia, Edusp/Imprensa Oficial do Estado/Funag, 2001 (v.III, Da independncia at 1870),
p.232; Manuel Chust y Ivana Frasquet. "La lucha de los imprios (1756-1808)" Em: Tiempos de
revolucion. Comprender las independencias iberoamericanas. Madrid: Fundacin Mapfre, Taurus,
2013.p.81 46
Josep FONTANA. La crisis del antiguo rgimen (1808-1833). 4.ed. Barcelona, Crtica, 1992; Miguel
ARTOLA. La burguesa revolucionaria (1808-1874). Madrid, Alianza, 1990.
31
Bretanha foi consolidada, enquanto a Espanha declararia guerra a sua antiga aliada, a
Frana.47
As notcias sobre tais eventos chegariam ao Caribe e a Nova Espanha em cerca
de dois meses. Em outras regies, como o Vice-Reino do Peru, as notcias tardavam
muito mais, podendo levar de trs a cinco meses, a depender da regio. Esta
complexidade do fluxo de informao entre a metrpole e as colnias teria influncia
importante nos desdobramentos da crise que se aproximava. A defasagem da chegada
das informaes, provenientes de diversos meios e, portanto, nem sempre seguras,
colocavam os hispano e luso-americanos diante da difcil tarefa de compreender e dar
algum sentido a todos aqueles acontecimentos em ritmos desiguais de parte a parte, o
que implicava a possibilidade de criao de emaranhados confusos de boatos e
informaes, que provocaram um vazio de poder sem precedentes na histria das
monarquias europeias48
.
Enquanto as tropas francesas cruzavam o territrio da Espanha, sob o pretexto
da invaso de Portugal, uma crise atingia a famlia real espanhola: o enfrentamento
entre o prncipe de Astrias, herdeiro do trono da Espanha, e o ministro do rei Carlos
IV, Manuel de Godoy. Este conflito desembocou no Motim de Aranjuez, em 19 de
maro de 1808, que precipitara a queda de Godoy e a abdicao de Carlos IV em nome
de seu primognito, doravante, Fernando VII.49
De acordo com Miguel Artola, o Motim
de Aranjuez e a posterior chegada de Fernando VII ao trono foi resultado da poltica
47
Andra SLEMIAN e Joo PIMENTA. A corte e o mundo: uma histria do ano em que a famlia real
portuguesa chegou ao Brasil. So Paulo: Alameda, 2008; Miguel ARTOLA. La burguesa revolucionaria
(1808-1874). Madrid, Alianza, 1990. Maria de Lourdes V. LYRA. A Utopia do Poderoso Imprio. Rio de
Janeiro: Sette Letras, 1994; Iara Lis SOUZA. Ptria Coroada: o Brasil como corpo poltico autnomo:
1780-1831. So Paulo: Editora UNESP, 1998.
48
Marcela TERNAVASIO. El trono vacante en disputa. Carlota Joaquina de Borbn en el nuevo
escenario interimperial, 1808-1814. Artculo 20/10, apresentado em conferncia na UNIFESP, fev/2014.
p.4. 49
PERALTA R. La independencia y la cultura poltica peruana. Cit., p.24
32
pessoal articulada pelo Prncipe de Astrias, que lograria tambm o afastamento de
Godoy do poder.50
O novo rei da Espanha encontraria, entretanto, nos planos franceses seu maior
revs. Fernando VII chegou em Bayona, na Frana, em 22 de abril de 1808 com o
objetivo de ser reconhecido por Napoleo como o rei da Espanha, mas foi obrigado a
abdicar o trono em nome de seu pai poucos dias depois, em 1 de maio. Apenas cinco
dias depois Carlos IV faria nova abdicao, agora em favor de Napoleo Bonaparte,
episdio conhecido como Abdicaes de Bayona.51
Decepcionados com a postura do rei Carlos IV, acusado de, juntamente com o
seu ministro Godoy, favorecimento dos interesses da Frana, os espanhis peninsulares
e americanos logo converteriam Fernando VII no rei "desejado" para enfrentar aquele
momento de crise e como a esperana de renovao da Corte Espanhola. 52
A lenincia
da Suprema Junta de Governo, presidida pelo infante don Antonio, diante da tomada do
poder pelos franceses levaria a uma reao popular, que rechaaria a presena francesa
desde o incio. Constituiram-se em diversas partes da Espanha juntas de governos, que
justificavam sua existncia como depositrias do poder de Fernando VII, a fim de evitar
o vazio de poder.53
Essas notcias demoraram meses para chegar ao Vice-Reino do Peru, tempo
suficiente para grandes mudanas nesta conjuntura poltica e que obrigavam, em ltima
50
ARTOLA. La burguesa revolucionaria. Cit., p.41. LANDAVAZO. La mascara de Fernando VII. cit.,
p.46 51
PERALTA R. La independencia y la cultura poltica peruana. Cit., p.24; LANDAVAZO. La mascara
de Fernando VII. cit., p.48; GUERRA. Modernidad e independencias. Cit. 52
Em um cenrio que Landavazo qualifica de "caos administrativo", os episdios de Bayona resumem
uma srie de abdicaes: Fernando VII abdica em nome de seu pai, Carlos IV, este em nome de Napoleo
Bonaparte, que, finalmente, entrega a Coroa a seu irmo, Jos Bonaparte, no final de maio de 1808.
LANDAVAZO. La mascara de Fernando VII. cit.p.41-46 e GUERRA. Modernidad e independencias.
Cit.p.118-119. 53
LANDAVAZO. La mascara de Fernando VII. cit., p.48 e segs; PERALTA R. La independencia y la
cultura poltica peruana. Cit., p.24; PERALTA R. En defensa de la autoridad: poltica y cultura bajo el
gobierno del virrey Abascal. Peru, 1806-1816. Madrid: CESIC, 2003, p.26 e segs; ARTOLA. La
burguesa revolucionaria. Cit.
33
instncia, as autoridades da Amrica agissem sobre um terreno incerto, em um momento
em que muitas vezes no era possvel esperar pela chegada de notcias seguras. A
comunicao do Vice-Reino do Peru com a Espanha era particularmente difcil, j que
as embarcaes que traziam as informaes necessariamente faziam escala em algum
outro ponto da Amrica. Os caminhos mais frequentes pelos quais as notcias chegavam
ao Peru eram a Nova Espanha e o Chile, no Pacfico, e o Rio da Prata; sendo que em
muitas ocasies as embarcaes faziam escala no Rio de Janeiro. 54
O fluxo de notcias da Europa para a Amrica passa a ser questo fundamental
para a gesto da crise e, consequentemente, para a diversidade de respostas a ela,
impondo s autoridades hispano-americanas a necessidade de reagirem a notcias de
eventos peninsulares que muitas das vezes eram j superados.55
As informaes sobre o
incio da crise da monarquia hispnica o motim de Aranjuez, abdicao de Carlos IV e
proclamao de Fernando VII como novo monarca chegaram em 13 de agosto de
1808, portanto, cerca de 4 meses depois dos eventos. As informaes acerca da
abdicao de Fernando VII, seu cativeiro em Bayona e a entrega da Coroa a Jos
Bonaparte, tardaram outros 4 meses para serem conhecidas em Lima e levaram Abascal
a apressar o juramento de lealdade a Fernando VII, dadas as novas circunstncias.56
Tais dificuldades decorrentes da morosidade da comunicao seriam
posteriormente interpretadas por Abascal nos seguintes termos:
Por la misma razn eran confusas inexactas y equivocas las [noticias] que se
tenian de la memorable causa del Escorial, la de los antecedentes y
consiguiente la abdicacin del Seor Don Carlos 4(...) En este estado pues
de obscuridad llegaron esta Capital las ordenes y Cedulas expedidas en la
54
SLEMIAN e PIMENTA. A corte e o mundo. Cit. P.133 e segs. Os autores apresentam um panorama do
tempo para a chegada das notcias da Europa na Amrica. 55
J. P. PIMENTA. Tempos e espaos das independencias. Cit. p. 147-149. 56
PERALTA R. La independencia y la cultura poltica peruana. Cit. p.89-90.
34
forma de estilo para la proclamacin del Joven Soberano, y quando en virtud
de mis ordenes todo se dispona a executarlo con la solemnidade que siempre
se ha acostumbrado sorprendieron el acto nuevos Oficios, nuevas ordenes y
Cedulas recomendando eficasmente el reconocimiento del intruso Regente
Joaquin Murat.57
A postura pblica de Abascal diante desses acontecimentos seria de grande
cautela. Baseado na sua percepo de que as notcias que recebia poderiam no ser
verdadeiras, Abascal recorreria quilo que tinha de seguro em suas mos: a tradio.
Teria agido, segundo seu relato, de acordo com o que "siempre se h acostumbrado" e
procederia ao juramento de lealdade a Fernando VII como legtimo rei da Espanha, em
outubro de 1808.
Foi inserida nesse quadro que a incipiente imprensa do Vice-reino do Peru logo
se debruaria sobre os acontecimentos de sua metrpole, buscando, mais do que
noticiar, produzir uma interpretao a seu respeito. No ano de 1808, quando comeam a
chegar Amrica as primeiras e confusas informaes sobre a invaso napolenica na
pennsula ibrica, o Vice-Reino do Peru contava somente com um peridico, de carter
oficial: a Minerva Peruana. J nesses primeiros meses em que as novas notcias dos
incidentes da metrpole comearam a chegar Amrica, elas converteram-se em
assunto fundamental e frequente da imprensa hispano-americana, que doravante se
empenharia em transmiti-las, analis-las e, se possvel, convert-las em subsdio para
lutas polticas cada vez mais complexas, em muitos casos a luta era pelos valores
fundamentais da monarquia hispnica.
57
ABASCAL. Memoria de Gobierno, cit, p.436. A conspirao de "El Escorial" refere-se s denncias
que Godoy fez contra o Prncipe de Astrias e que acabariam por precipitar o Motim de Aranjuez.
PERALTA R. La independencia y la cultura poltica peruana. Cit. p.24. As informaes a que Abascal se
refere chegaram ao Peru em 07 de outubro, atravs das cartas enviadas pelo comissrio da Junta de
Sevilla, Goyeneche. Peralta, p.104
35
As primeiras menes ao que se passava naquela mesma poca, no mundo
lusoamericano aparecem na imprensa peridica do Peru em setembro de 1808. A
Minerva Peruana publicou em 5 de setembro um trecho da declarao de Lord
Hawkesbury, um homem de Estado da Gr-Bretanha, na qual diz
que al gobierno [britnico] no le queda duda ninguna sobre las disposiciones
secretas del tratado de Tilsit; pero los ministros no pueden ni deben indicar el
conducto por donde ha llegado su noticia, porque de l contrario se cerraria
para siempre la puerta estas comunicaciones utiles, y peligraria la vida de las
personas quienes las debemos en esta ocasion. Fuera de que, aun suponiendo
que las noticias dadas los ministros no fuesen exctas, las proposiciones que
los enemigos hicieron a Portugal debieron sacarles de toda Duda.58
As notcias das abdicaes de Bayona e do cativeiro do rei ainda no haviam
chegado ao Peru no momento em que a Minerva Peruana reproduziu a informao
acima, conhecia-se naquele momento somente o desenrolar do Motim de Aranjuez
(19/maro/1808). Nota-se no excerto citado a dificuldade em se garantir a veracidade
das notcias divulgadas, no s na Amrica, mas pelos prprios britnicos, que,
supostamente, tinham um acesso muito mais fcil e direto a tais acontecimentos.
J ciente do cativeiro do rei e da declarao de guerra Frana, a Minerva
Peruana publicou em novembro de 1808 uma verso a respeito dos sucessos da
metrpole, escrita por " El amigo de la razn y de la verdad en Lima", em que dizia:
La Espaa vio derrivar su real casa en Etruria, Napoles y Portugal, y supo
posponer su justo resentimiento la paz y a la traquilidad de sus pueblos. Fiel y
generosa con su aliado, aunque vendida por un favorito inepto y perverso,
prodigaba el oro de sus Americas, sacrificaba su exercito y su marina al tiempo
58
Minerva Peruana, n40, 05/09/1808.
36
mismo que en Tilsit y en Paris se forjaban sus grillos. No hace aun seis meses
que besaba aquella misma mano que trataba de oprimirla, y abrian al mismo
tiempo los espaoles a las tropas francesas su metropoli, sus fortalezas y sus
hogares; mas ahora los deguellan en aquellos mismos umbrales adonde se les
brindo con la hospitalidad mas sincera.59
Comeava a delinear-se uma opinio a respeito dos personagens envolvidos: os
Bourbons so apresentados como vtimas de sua prpria fidelidade e generosidade, no
s na Espanha, mas tambm no reino da Etruria, Npoles e Portugal, que tiveram seus
monarcas da famlia Bourbon subjugados por Bonaparte. Portugal e Espanha
mantiveram vnculos por meio de casamentos dinsticos em diversas oportunidades,
prtica que seria reiterada nesse momento de crise que se inaugurava.60
A famlia real
teria sido vtima ainda de outro traidor, o "favorito inepto e perverso", referindo-se ao
ministro Manuel de Godoy, sobre o qual o imaginrio popular acabaria por descarregar
parte da culpa pela penosa situao da monarquia61
.
El amigo de la razn escreve de posse das informaes sobre os eventos que se
seguiram ao Motim de Aranjuez; entretanto, so ignoradas as diversas intrigas que
tiveram lugar no interior da Corte de Carlos IV nos ltimos meses e que haviam levado
Fernando ao trono. Um reinado que duraria muito pouco. El amigo de la razn
menciona ento a traio final de Napoleo, que "Se abusa de la franqueza de un Rey
que habia jurado unanime la nacion, y en quien fundaba sus esperanzas, su felicidad y
su gloria. Se le atrae engaosamente fuera del reino, se detiene, se acusa y se violenta.
Es este el premio que merece la Espaa?" 62
59
Minerva Peruana, n50, 02/11/1808. 60
M. TERNAVASIO. El trono vacante. Cit. 61
LANDAVAZO. La mascara de Fernando VII. cit. p.43 e segs. Godoy era odiado por boa parte da
populao, sobretudo pela preferncia quase cega que o rei Carlos IV e a rainha Maria Lusa tinham por
ele, ademais, os desastres militares dos ltimos anos haviam reforado sua impopularidade. 62
Minerva Peruana, n50, 02/11/1808.
37
No episdio conhecido como abdicaes de Bayona, Fernando VII foi
obrigado a abdicar o trono e a Espanha teria como novo rei Jos Bonaparte,
configurando um perodo considerado como de "acefalia" da monarquia espanhola.63
Decepcionados com a postura do rei Carlos IV, acusado de, juntamente com o seu
ministro Godoy, favorecimento dos interesses da Frana, os espanhis peninsulares e
americanos logo converteriam Fernando VII em rei "desejado" para enfrentar aquele
momento de crise e em esperana de renovao da Corte Espanhola.
Explicitada essa situao, "El amigo de la razn" declarava: "la nacin esta
organizada; y reunida no respira sino el dio y el honor: impaciente solo anhela al
combate; y uno mismo es el grito universal: viva FERNANDO: viva la religin y la
patria.". Declaraes semelhantes foram publicadas em outras partes da Amrica, como,
por exemplo, no Vice-Reino da Nova Espanha pelo informe "Conjuracin de Bonaparte
y Don Manuel Godoy contra la Monarquia espanhola", em que Godoy considerado
ainda mais perverso que o prprio Bonaparte.64
A declarao de guerra contra a Frana sucedida por previses otimistas
acerca da vitria iminente dos aliados. A maneira como El Amigo de la Razn manifesta
a sua esperana forte, a ponto de transmitir a sensao que a vitria se trata de um
evento j concreto:
Ya el bravo Cataln triunfa de esas tropas mercenrias que le oprimian: Cadiz
aprisiona su esquadra: las Andalucias estan libres: Madrid va vengar la
63
Em um cenrio que Landavazo qualifica de "caos administrativo", os episdios de Bayona resumem
uma srie de abdicaes: Fernando VII abdica em nome de seu pai, Carlos IV, este em nome de Napoleo
Bonaparte, que, finalmente, entrega a Coroa a seu irmo, Jos Bonaparte, no final de maio de 1808.
LANDAVAZO. La mascara de Fernando VII. cit., p.41-46 e GUERRA. Modernidad e independencias.
p.118-119. 64
LANDAVAZO. La mascara de Fernando VII. cit., p. 54.
38
sangre de sus hermanos; tiembla el perverso Murat; y Portugal sublevado no
ofrece al tirano Junot sino la retirada la muerte.65
Uma aproximao entre os destinos de Portugal e Espanha em meio invaso
francesa comea a desenhar-se, ainda que restrita ao fato de estarem diante de um
inimigo comum, e ignorando uma possvel culpa da Espanha quanto sorte de Portugal,
uma vez que fora to vtima quanto este. Tal argumento parece fundamental: a
monarquia espanhola eximida de qualquer tipo de culpa pela terrvel situao em que
se encontrava, porque fora vtima das artimanhas de Bonaparte e de Godoy. O rei Carlos
IV fora vtima de sua desmedida confiana em seu ministro, e Fernando VII, vtima de
sua bondade; j Portugal, que at h pouco tempo era inimigo da Espanha, passa a ser
visto como aliado.
Em 5 de novembro a Minerva Peruana publicou um "Extracto del Boletn de
Londres", em que a aliana entre Gr-Bretanha e Portugal, somente sugerida na citada
declarao de Hawkesbury, fora ento explicitada:
el parlamento y camara de los comunes se juntaron para deliberar sobre las
medidas que debian tomar para libertar de este peso la nacion portuguesa,
vengar si pudiese la persona de su prncipe ofendido y la de sus fieles vasallos,
y manifestar al continente de Europa qual era la gran parte que la nacion
portuguesa ocupaba en el corazon de la gran Bretaa (...) Pero por grande que
sea la ofensa hecha esta nacion aliada, no l es tanto como la misma
Inglaterra.66
De acordo com o "Boletn de Londres, ora publicado e lido no vice-reino do
Peru, a defesa de Portugal passara a ser parte importante da poltica inglesa, empenhada
65
Minerva Peruana, n50, 02/11/1808.
66
Minerva Peruana, n52, 5/11/1808
39
no s em libertar do jugo francs a nao aliada, como tambm em buscar vingana ao
que considerava ofensas ao prncipe e a seus fiis vassalos portugueses. A solidariedade
demonstrada diante da difcil situao tambm de Portugal, no oculta, entretanto, que a
Gr-Bretanha agia, a rigor, em defesa de seus prprios interesses e contra a ofensa por
ela sofrida. Tratava-se de uma declarao de guerra Frana e que colocaria Espanha,
Portugal e Gr-Bretanha como aliados diante desse inimigo comum. Digno de ser
republicado no peridico do Vice-Reino do Peru, os argumentos utilizados pelo excerto
eram fundamentados na defesa da legitimidade e da soberania de Portugal e Gr-
Bretanha. A aliana da Espanha com a Gr-Bretanha, tmida e receosa, tornava tal
declarao de defesa extensvel tambm a ela.
Muitas das notcias a respeito da metrpole chegavam primeiro aos portos do
Atlntico antes de alcanarem os do Pacfico. Essa rota que ligava os portos americanos
passava principalmente pelo Rio de Janeiro e depois as embarcaes seguiam para o
Pacfico pelo Estreito de Magalhes, para finalmente chegar ao Chile e ao Vice-Reino
do Peru. Assim, a "via del Janeyro", importante rota de comrcio do Brasil (e da
Europa) com o Rio da Prata permitia o contato com vrias regies da Amrica
espanhola, sendo que esta comunicao estratgica ganharia ainda mais importncia
com a transferncia da Corte portuguesa para o Brasil.67
possvel acompanhar o
caminho que as notcias percorriam at chegarem em Lima atravs da imprensa
peridica, que costumava indicar este trajeto. Em notcia publicada pela Minerva
Peruana em 26 de novembro de 1808 encontra-se a trajetria de uma informao:
"Noticias venidas al Janeiro por una embarcacion que arribo all de La Madera en fines
de Septiembre, precedente de Londres en 52 dias de navegacin" e, finalmente, foram
67
Srgio VILLALOBOS. Comercio y contrabando en el Ro de la Plata y Chile 1700-1811. 4.ed.
Buenos Aires, Eudeba, 1986; Alice P. CANABRAVA. O comrcio portugus no Rio da Prata (1580-
1640). Belo Horizonte/So Paulo, Itatiaia/Edusp, 1986.
40
divulgadas em "Buenos Aires 15 de octubre"68
, para s ento alcanar Lima, revelando
que o tempo aproximado para que uma notcia de Londres chegasse ao Vice-Reino do
Peru era cerca de 4 meses. A embarcao mencionada transportava a seguinte
informao: "Los espaoles y portugueses, reunidos han depuesto aquel rencor que
entre ambos tenian, y mutuamente se les ve tratar de hermanos". Em relao Gr-
Bretanha reconhece-se: "En esta ocasin se han mostrado los ingleses con la mayor
bizarria: se han ofrecido la Espaa por todo y viendo que las caxas de esta estn
exhaustas de fondos la auxilan con dinero". 69
Esta meno faz aluso a um possvel
rancor (rencor) existente entre Portugal e Espanha, mas que havia sido superado, pelo
menos momentaneamente, e permite assim entender que a aliana entre Portugal e
Espanha, estabelecida por meio da Gr-Bretanha, constituia-se sobre bases frgeis.
Apresentado o complexo jogo que definiu a inimiga Frana napolenica e
os aliados Gr-Bretanha e Portugal da Espanha nesse contexto de crise da primeira
dcada do sculo XIX, a Minerva Peruana passaria a publicar notcias da guerra na
pennsula, com particular nfase na movimentao das tropas aliadas e seus sucessos.
Estas notcias so marcadas por um forte otimismo, que reiteradamente apresenta a
vitria definitiva sobre a Frana como iminente. Informaes sobre o mundo portugus
aparecem frequentemente e seguem essa mesma tendncia, como por exemplo, em: "Por
partes dirigidas esta suprema junta [de Sevilla] con fecha de I de junio (...) es de
esperar mas pronto la total desorganizacin del exercito Frances en Portugal" e o trecho
continua informando que: "En dicho dia se juro solemnemente en la Villa de Fuente de
Cantos nuestro amado monarca Fernando septimo."70
. O interesse em tais notcias
justifica-se, entre outros motivos que sero discutidos adiante, justamente porque agora
Portugal e Espanha compartilham a condio de vtima de um mesmo inimigo:
68
Minerva Peruana, n 62 29/11/1808. 69
Minerva Peruana, n62, 29/11/1808. 70
Minerva Peruana, n52, 05/11/1808. (Sevilla 4 de junio).
41
Napoleon el velo que cubria tu criminal perfdia se descubri [y] el mistrio que
ocultaba tu hipocresia gigante se declar: ya se h visto con la claridad del
mediodia, que no tiene limites ni respeta leyes, tu ambicin hipcrita y
miserable. Esta es la mvil de tus contnuos enredos esta quien siempre te hace
mentir; mientes para engaar, engaas para mandar, mandas para robar, robas
para reynar, y reinas para exterminar. As lo has hecho em Roma, Npoles, en
Alemania, en Prusia, en Italia, en Etruria, en Olanda, en Portugal, y en Espaa.71
O trecho refora a caracterizao de Bonaparte como a personificao de todos
os males das monarquias ibricas e recorre ao argumento de que ele teria atuado
deliberadamente para enganar as naes conquistadas. Tal operao ideolgica era
fundamental para a manuteno da lealdade monarquia hispnica, evitando
cuidadosamente que ela fosse manchada pela antiga aliana com a Frana napolenica.
Outra questo seria equacionar a relao estabelecida com os novos aliados Portugal e
Gr-Bretanha.
A partir dos ltimos acontecimentos europeus, evidenciou-se que a Amrica de
colonizao ibrica era tambm parte integrante daquele mundo atlntico que fora
incrivelmente estreitado no incio do sculo XIX. A percepo, at aquele momento
difusa, de que se tratava de um tempo novo foi transformada ento em uma verdadeira
experincia dessa realidade, conforme se pode depreender da afirmao de Lopez
Aldana, citada na abertura do captulo. No caso portugus, no se fez necessrio lidar
com a questo que se mostrou fulcral para o futuro dos territrios hispnicos: a busca
urgente de um governo que substitusse, ainda que provisoriamente, a legitimidade
histrica rompida com o cativeiro do rei. No entanto, as implicaes das invases
napolenicas no foram menos complexas no Imprio portugus, onde o avano francs
71
Minerva Peruana, n52, 05/11/1808. (Suplemento al diario de Valencia del lunes 6 de junio de 1808)
42
levou transferncia da famlia real para a Amrica, em uma tentativa de manuteno
da integridade monrquica, o que mudou no s o centro do Imprio, mas tambm a
poltica de Estado portuguesa72
.
A esquadra inglesa que trazia ao Brasil a famlia real portuguesa chegou a
Salvador em 22 de janeiro de 1808 e, finalmente, as primeiras embarcaes atracaram
no Rio de Janeiro em 08 de maro daquele ano. O estabelecimento do novo centro do
Imprio Portugus no Rio de Janeiro exigiu a execuo de uma srie de mudanas
imediatas necessrias para a viabilidade da instalao do poder imperial em solo
americano. A Abertura dos portos, a criao de novos rgos administrativos e a criao
da imprensa rgia foram algumas das primeiras medidas tomadas pelo prncipe regente
D. Joo com vistas a garantir a integridade do Imprio portugus e a defesa contra os
princpios revolucionrios franceses.73
A Corte estabeleceu-se em um continente que estaria, a princpio, distante da
revoluo que tomava a Europa e seria, portanto, um espao adequado para o
fortalecimento e a expanso dos ideais monrquicos tradicionais, condio da qual
deveriam gozar tanto a Amrica portuguesa quanto a espanhola. A despeito do
distanciamento geogrfico do epicentro revolucionrio, os acontecimentos na Amrica
precocemente revelariam que ela no estava alis, nunca estivera completamente
isolada do contexto que atingia os imprios ibricos de maneira geral.
Alm de questes prticas acerca da instalao da Corte no Brasil, o
conhecimento do que se passava na vizinhana tambm converter-se-ia em uma
preocupao de primeira ordem na tarefa de manuteno do realismo, de maneira que a
72
Valentim ALEXANDRE. Os Sentidos do Imprio. Questo nacional e questo colonial na crise do
Antigo Regime Portugus. Porto: Afrontamento, 1993; GUERRA. "Dos aos cruciales", Cit. 73
Um dos clssicos a este respeito : Oliveira LIMA. D. Joo VI no Brasil. cit. Obra posterior,
igualmente importante: Maria Odila L. S. DIAS. A interiorizao da metrpole e outros estudos. So
Paulo: Alameda, 2005. Para uma interpretao recente: Andra SLEMIAN e Jo
Recommended