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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO – FAHUD

PPGE – MESTRADO EM EDUCAÇÃO

SAMUEL ROCHA DE OLIVEIRA

O PROCESSO EDUCACIONAL DA CULTURA

INDÍGENA TICUNA NA REGIÃO DO ALTO SOLIMÕES

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2012

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SAMUEL ROCHA DE OLIVEIRA

O PROCESSO EDUCACIONAL DA CULTURA

INDÍGENA TICUNA NA REGIÃO DO ALTO SOLIMÕES

Dissertação apresentada como exigência parcial, ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Metodista de São Paulo, da Faculdade de Humanidades e Direito – FAHUD, para a obtenção do titulo de Mestre em Educação. Orientação: Profa. Dra. Zeila de Brito Fabri Demartini,

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2012

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A dissertação de mestrado sob o título “O processo educacional da cultura

indígena Ticuna na região do Alto Solimões”, elaborada por Samuel Rocha de

Oliveira foi apresentada e aprovada em 22 de agosto de 2012, perante banca

examinadora composta por Profa. Dra Zeila de Brito Fabri Demartini

(Presidente/UMESP), Prof. Dr. Luiz Jean Lauand (Titular/UMESP) e Profa. Ana

Maria de Melo Negrão (Titular/UNISAL).

__________________________________________

Profa. Dra Zeila de Brito Fabri Demartini

Orientadora e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Profa. Dra. Roseli Fischmann

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação – Mestrado em Educação

Área de Concentração: Educação

Linha de Pesquisa: Formação de Educadores

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Dedico este trabalho aos meus pais:

Ivan Nunes de Oliveira e Idete Rocha de Oliveira que me deram o dom mais precioso do universo,

A VIDA, mas não se contentando em nos presentear com ela, ensinaram-nos a vivê-la,

com dignidade, revestindo nossa existência de amor, carinho e dedicação. Fazemos de nossas conquistas um instrumento de gratidão. A vocês

que muitas vezes deixaram de realizar os próprios sonhos para que pudéssemos realizar

os nossos, não apenas 'muito obrigado', mas um pedido de amor: Ajudem-nos mais uma vez a

acreditar que podemos caminhar sozinhos.

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AGRADECIMENTOS

Senhor, quão grande é o nosso dilema! Na Tua presença seria melhor nos calarmos,

mas o amor inflama os nossos corações e nos constrange a falar. Se fôssemos

manter silêncio, as próprias pedras clamariam; mas, se abrimos a boca, que

devemos dizer? Ensina-nos, ó Deus, que tu não tens necessidade de nada. Se nada

é necessário a Ti, então também ninguém é necessário, e este ninguém nos inclui.

Tu nos buscaste, embora não tenha necessidade de nós. Nós te buscamos porque

precisamos de Ti, pois em Ti vivemos, nos movemos e existimos.

Senhor tenho que falar de Ti, para que não ofenda com meu silêncio a geração de

Teus filhos. Tu escolheste as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias e

as coisas fracas para confundir as fortes. Ó Senhor, não me desampare. Que eu

passe a mostrar a Tua força e o Teu poder a todos que nesta geração vierem a Ti.

Que a fé nos sustente onde a razão nos falha e assim, pensaremos porque cremos,

e não para que creiamos.

Sou grato a Ti Senhor, pela Francielis, companheira que me deste, nos momentos

que me encontrava pusilânime, ela com sua sabedoria me encorajou e me motivou a

perseguir na caminhada. Agradeço também, por ser agraciado por Ti com benção

especial, com as minhas filhas Samara e Sara, que são para mim prova do Teu

amor e fidelidade para comigo.

Sou grato a Ti Senhor pela oportunidade a mim concedida de receber o apoio da

CAPES – Modalidade I – sem o qual a realização deste trabalho não teria sido

possível.

Agradeço-Te ainda pela inteligência concedida à minha orientadora Prof. Dra. Zeila

de Brito Fabri Demartini, e pela missão que deste aos docentes: Prof. Dra. Marília

Dura, Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto, Prof. Dr. Décio Azevedo Marques de Saes,

Profa. Dra. Graça Graúna (indígena Potiguara/RN), Profa. Dra. Roseli Fischmann,

Profa. Dra. Maria Leila Alves, Prof. Dr. Jean Lauand e também ao saudoso Prof. Dr.

Danilo Di Mano, que de uma forma magnífica nos fizeram ficar mais próximos do

conhecimento e neste conhecimento pudemos avançar com toda a esperança e

confiança, por todos os anos vindouros. Amém!

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Ninguém liberta ninguém,

ninguém se liberta sozinho:

os homens se libertam em comunhão”

Paulo Freire (1977, p. 27).

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RESUMO

Esse trabalho busca analisar o sistema educacional na tribo Ticuna, localizada na região do Alto Solimões, estado do Amazonas, onde estou há 21 anos em contato permanente com os índios Ticuna. Com o passar dos anos tenho observado que a cada dia, e de forma mais intensa, a manutenção de sua cultura vem sofrendo com o processo de influência da cultura não índia. Nesse trabalho realiza-se um levantamento histórico referente à possível existência de duas correntes educacionais entre os professores Ticuna. Uma considera importante um ensino bilíngue, o estudo dos mitos e costumes para preservação da cultura; a outra acredita que é inócuo estudar os mitos e outros aspectos culturais, que podem ser apreendidos no dia a dia, defendem que os índios precisam de uma educação igual a dos não indígenas, para competir no mercado em condições de igualdade. Inicialmente propõe-se uma busca histórica sobre o processo educacional relacionado à cultura Ticuna fora da escola, procurando verificar as relações entre o que é transmitido pela escola e o que se evidencia no cotidiano Ticuna. Em seguida, realiza-se uma análise de como se processa a educação implantada no meio Ticuna sob o título ―Educação Indígena‖. Destacam-se os fatores que influenciaram a fundação da escola, sua localização e aspectos relacionados ao meio físico, econômico, social e cultural, bem como, o ambiente humano e de aprendizagem, dados esses que subsidiam o objetivo proposto para este trabalho. Procura-se verificar se a educação desenvolvida na escola indígena cumpre o papel de estar constantemente buscando alternativas para uma educação que seja apropriada à sobrevivência da cultura Ticuna, uma educação adequada à realidade cultural. A pesquisa baseia-se em levantamento de dados através de documentos, como também em entrevistas com lideranças, professores e idosos da Tribo Ticuna; também na observação direta, com anotações feitas em caderno de campo. O processo de assimilação e influência da cultura não índia predomina na região do Alto Solimões e tem ―esmagado‖ a cultura Ticuna, fazendo com que muitos já não queiram mais pescar, caçar ou viver como produtores ou coletores. É necessário buscar alternativas educacionais para a escola indígena Ticuna, em uma educação que seja apropriada para a sobrevivência de sua cultura e ao mesmo tempo minimize o preconceito enfrentado por esse povo. As lideranças e professores Ticuna esperam que a escola ajude na preservação e valorização de sua cultura. O prejuízo causado à educação cultural dos índios Ticuna é grande, a maioria dos jovens e crianças não são conhecedores dos significados dos rituais religiosos, mitos, lendas e crenças. Muitas vezes sabem até realizar o ritual, mas parece mais uma imitação de gestos, que se desvincula do seu real sentido. Espera-se que ao final dessa pesquisa sejamos capazes de utilizar o material desenvolvido para reflexão e que ela talvez possa servir como ponto de partida para os professores Ticuna na elaboração de diretrizes e desenvolvimento de um novo paradigma educacional que valorize mais a cultura.

Palavras-Chave: Etnia Ticuna; Educação; Repasse Cultural; Assimilação cultural;

Escola indígena.

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ABSTRACT

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................11 1 TICUNA: UM POVO NO ALTO SOLIMÕES...........................................................20 1.1 O TERRITÓRIO TICUNA.....................................................................................23 1.2 O RELAÇÃO COM OS NÃO INDÍGENAS...........................................................26 2 PRÁTICAS NO COTIDIANO TICUNA: A EDUCAÇÃO NÃO FORMAL DOS TICUNA.....................................................................................................................29 2.1 O CASAMENTO – AS METADES EXOGAMICAS..............................................36 2.2 O NASCIMENTO.................................................................................................39 2.3 A MORTE.............................................................................................................39 3 SISTEMA EDUCACIONAL: EDUCAÇÃO INDÍGENA E EDUCAÇÃO PARA OS ÍNDIOS.......................................................................................................................41 3.1 A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL: ALGUMAS OBSERVAÇÕES........................................................................................................42 3.2 EDUCAÇÃO PARA ÍNDIOS, IMPLANTAÇÃO DA ESCOLA................................47 3.3 A ESCOLA NA COMUNIDADE INDÍGENA DE UMARIAÇU I ............................51 3.3.1 A Situação da Escola.......................................................................................53 3.3.2 Pessoal, Instalações, Equipamentos Material Didático e Verbas que a Escola Dispõe........................................................................................................................53 3.3.3 A População Alvo da Escola.............................................................................55 3.3.4 O Currículo em Função da Necessidade dos Alunos......................................55 3.3.5 Projetos Desenvolvidos.....................................................................................55 3.3.6 Conselho Escolar..............................................................................................56 3.3.7 A Situação da Merenda.....................................................................................56 3.3.8 Deficiências Detectadas na Escola...................................................................59 3.3.9 Etno Educação Indígena...................................................................................60 3.4 EDUCAÇÃO INDÍGENA: APRENDIZAGEM TICUNA........................................62

4 A EDUCAÇÃO NO OLHAR DO INDIGENA...........................................................79 4.1 EDUCAÇÃO PARA SE TORNAR ―CIVILIZADO‖................................................85 4.2 AS MUDANÇAS OCORRIDAS NA EDUCAÇÃO DA ALDEIA.............................87 4.3 O CONTATO COM OS OUTRO: VENCENDO O PRECONCEITO.....................89 4.4 FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS NO ALTO SOLIMÕES.............91

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CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................94 REFERÊNCIAS........................................................................................................102 APÊNDICES.............................................................................................................106 APÊNDICE A – Roteiro das Entrevistas...................................................................106 APÊNDICE B – Entrevistas......................................................................................107

LISTA DE SIGLAS

BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

CEB – Câmara de Educação Básica

CETAM – Centro de Treinamento Profissional

CGTT – Conselho Geral das Tribos Ticuna

CONSED – Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação

CNE – Conselho Nacional de Educação

FUNAI - Fundação Nacional do Índio

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IDAM – Instituto de Desenvolvimento do Amazonas

LDB – Lei de Diretrizes e Base da Educação

LDBEN – Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional

MEC – Ministério de Educação e Cultura

NEIs. – Núcleo de Educação Indígena

OGPTB – Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngues

ONGs – Organizações não Governamentais

OSPTAS – Organização de Saúde do Povo Ticuna do Alto Solimões

RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas

SEMED – Secretaria Municipal de Educação

SPI – Sistema de Proteção ao Índio

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TCC – Trabalho de Conclusão de Curso

UNDIME – União dos Dirigentes Municipais de Educação

UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Caixa Econômica em Belém do Solimões............................................... 23

Figura 2 – Eware I e II (Território Ticuna)..................................................................24

Figura 3 – Inscrição no muro do Comando de Fronteira do Alto Solimões CFSOL 8º BIS........................................................................................................25 Figura 4 – Casa Ticuna..............................................................................................28

Figura 5 – Pinturas artísticas dos Ticuna...................................................................30

Figura 6 – Peixe Cozido.............................................................................................31

Figura 7 – Peixe moqueado.......................................................................................31

Figura 8 – Preparo da Farinha de mandioca.............................................................31

Figura 9 – Ajuri Ticuna (mutirão)...............................................................................33

Figura 10 – Cestos, tipitis e peneiras para o trabalho diário.....................................34

Figura 11 – Privada encontrada em comunidade indígena.......................................52

Figura 12 – Escola o‘i Tchürüne................................................................................53

Figura 13 – Fachada da Escola o‘i Tchürüne............................................................53

Figura 14 – Adubando a horta escolar......................................................................57

Figura 15 – Plantação de hortaliças na escola..........................................................57

Figura 16 – Plantação de hortaliças na escola..........................................................58

Figura 17 – Plantação de coqueiros na escola..........................................................59

Figura 18 – Pintura dos deuses Yo‘i e Ipi...................................................................66

Figura 19 – Desenho do Curupira..............................................................................73

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho é o resultado de uma pesquisa participante, articulada

com as fundamentações teóricas e metodológicas das disciplinas do Mestrado em

Educação da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), e com apoio da

CAPES, através do projeto de pesquisa ―O Processo Educacional da Cultura

Indígena Ticuna na Região do Alto Solimões‖.

Meu primeiro contato com povos indígenas ocorreu no município de Lábrea

no Estado do Amazonas, Alto Rio Purus, no ano de 1983. Recém-chegado de São

Paulo, minha Cidade Natal, com apenas seis anos de idade, na companhia de meus

pais, conheci os índios Apurinã e Palmaris. Sentia uma admiração pelos indígenas e,

ao mesmo tempo, certo medo desse contato, e isto provavelmente havia sido gerado

pela visão equivocada, geralmente veiculada pela mídia, sobre esses povos.

Passados alguns anos, tive o privilégio de residir na cidade de Eirunepé,

localizada à margem direita do Rio Juruá, onde conheci os índios Kulina que

habitam nas cabeceiras do Rio Eiru, afluente do Rio Juruá. Essa aproximação foi

marcante ao extremo e me deu outra visão da realidade vivenciada entre os povos

indígenas.

Posteriormente, no dia 20 de maio de 1990, cheguei à cidade de Tabatinga,

região do alto Solimões, onde fixei moradia e ali passei a ter contato permanente

com os índios Ticuna que em sua origem autodenominam-se a Nação magüta,

termo que literalmente significa ―gente pescada‖ com vara de pescar por Yo‘i, herói

mitológico dos Ticuna. As experiências têm sido marcantes, e desde então, convivo

com os Ticuna.

Ao longo de 21 anos através do cotidiano nas Aldeias Ticuna, com o

desenvolvimento de projetos sociais e da realização de centenas de viagens para

essas aldeias, tenho observado um povo possuidor de cultura peculiar, sobretudo,

atraente, porém, ainda carente de um olhar mais refinado por parte de estudiosos e

pesquisadores, principalmente, no que se refere ao campo pedagógico.

Mesmo convivendo com os índios Ticuna, o interesse pelo debate e

pesquisas acadêmicas no campo educativo indígena surgiu na ocasião da minha

graduação em Pedagogia. Isto motivou para que realizasse praticamente todos os

estágios nas aldeias Ticuna de Umariaçu I e II. Na ocasião colocamos em prática um

projeto de intervenção articulado à disciplina de Educação Ambiental na

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Universidade Estadual do Amazonas - UEA, o projeto consistia na implantação de

uma horta escolar. A elaboração do projeto ocorreu após perceber que a merenda

oferecida para os alunos naquela ocasião era de má qualidade. Esse projeto foi

desenvolvido em parceria com os alunos da 3ª e 4ª séries da escola O’t Thürune,

com o apoio do CETAM. O projeto objetivava o fornecimento de uma merenda

escolar balanceada para uma melhor nutrição de crianças que muitas vezes só

tinham uma única refeição por dia, a merenda oferecida na Escola.

O mais marcante sem dúvida foi um projeto relacionado aos mitos e lendas do

povo Ticuna. Fizemos um levantamento para detectar o nível de conhecimento dos

alunos a respeito da mitologia Ticuna e suas crenças. Constatamos que era

necessário a realização de pesquisa pelos alunos, principalmente através de

conversas e consulta aos mais antigos da tribo, para que fossem resgatados

conhecimentos que se tornaram obsoletos ao longo do tempo. Assim obtivemos

êxito no levantamento e na organização de material sobre a mitologia e crenças

Ticuna. O projeto também incluía a representação dos mitos através de pinturas.

Foram realizadas oficinas e exposição de pinturas retratando os mitos e o resultado

foi um sucesso. Os Ticuna têm talento especial na arte de pintar e conseguem

realizar uma representação incrível através dos desenhos.

A cada aproximação do universo Ticuna, com os estágios e projetos

realizados na aldeia de Umariaçu I e II, reforçava ainda mais o desejo de conhecer

de forma mais profunda a cultura do povo Ticuna, além de ser extremamente

necessário para a elaboração do meu TCC – Trabalho de Conclusão de Curso na

graduação em Pedagogia, construído a partir de diversas entrevistas com

professores Ticuna e lideranças da aldeia, e também, através de minhas

observações anotadas em caderno de campo, sem, contudo, ignorar o material que

alguns pesquisadores já haviam elaborado sobre aspectos relevantes da cultura

Ticuna.

O tema desta pesquisa ―O Processo Educacional da Cultura Indígena Ticuna

na Região do Alto Solimões‖, surgiu da estreita relação com o debate acadêmico

que há algum tempo se evidencia na Amazônia em torno da escola e da educação

indígena; também em decorrência do contato direto que tenho com membros da

etnia Ticuna há 21 anos, adicionando ao processo a ideia de buscar um modelo

educativo participativo, no qual as comunidades indígenas participem do diálogo

com o MEC e das propostas para solução das dificuldades e problemas

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evidenciados nessas comunidades.

Neste contexto e em meio às conversas informais com professores Ticuna,

observei que havia diferentes posturas pedagógicas e formas de pensar evidentes

no ambiente escolar, no que se refere à maneira ideal para implantação de uma

educação que liberte, e que esteja acima dos pré-conceitos aos quais os indígenas

são submetidos e que, ao mesmo tempo, possa garantir a preservação e

manutenção de sua cultura.

Este trabalho busca analisar o sistema educacional na tribo Ticuna. Para

tanto, foi realizado um levantamento referente à possível existência de duas

correntes educacionais entre os professores Ticuna. Uma das correntes considera

importante um ensino bilíngue, o estudo dos mitos e costumes para preservação da

cultura; a outra também é bilíngue, porém, acredita que é inócuo estudar os mitos e

aspectos culturais e defende que os índios precisam de uma educação igual à dos

não indígenas ―civilizados‖, para que seja garantida a ascensão social e também

para competir no mercado em condições de igualdade, minimizando o preconceito

que sofrem. Identificamos diferentes posturas e práticas pedagógicas que podem

auxiliar ou dificultar o repasse cultural da etnia Ticuna através da escola.

Esse trabalho exigiu inicialmente a realização de um levantamento histórico

da educação tradicional da Tribo Ticuna. Em seguida, a realização de análise para

conhecer melhor como se processa a educação implantada no meio Ticuna sob o

título Educação Indígena. Durante essas fases são destacados os fatores que

influenciaram a fundação da escola, sua localização e aspectos relacionados ao

meio físico, econômico, social e cultural, bem como o ambiente humano e de

aprendizagem. Esses dados fornecem subsídios para atingir o objetivo proposto

para este trabalho que se destina analisar o processo da educação na Tribo Ticuna.

A intenção é verificar se a educação desenvolvida na escola indígena cumpre o

papel de estar constantemente buscando alternativas para uma educação que seja

apropriada à sobrevivência da cultura Ticuna e adequada à realidade cultural.

Através da experiência com os índios Ticuna tenho observado que a

manutenção de sua cultura vem sofrendo a cada dia de forma mais intensa, com o

processo de assimilação da cultura não índia. Esse processo é retratado por

Brandão (1995) quando afirma: ―Sabemos que ninguém escapa à educação‖, por

isso, o povo Ticuna com toda certeza possui uma forma própria e singular de

educação. Brandão (1995, p. 8), deixa evidente através da carta dos índios aos

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brancos que ofereciam a escola dos brancos a seus jovens indígenas. A carta

divulgada por Benjamin Franklin relatava que os indígenas estavam convencidos

que os senhores não indígenas desejavam o bem para eles e agradeceram de todo

o coração pela oferta para que seus filhos fossem educados no conhecimento dos

não indígenas. Entretanto, mencionaram que aqueles que têm sabedoria

reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo

assim, disseram que não queriam ofender os brancos ao mostrar que a ideia deles

de educação não era a mesma que a dos não indígenas.

O relato de Brandão (1995) segue com a afirmação de que muitos dos

bravos guerreiros indígenas que foram formados nas escolas da cidade e

aprenderam toda ciência dos brancos, quando voltavam para o meio indígena, eram

maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a

fome. Não sabiam como caçar, nem matar o inimigo ou construir uma cabana, e

falavam a língua materna muito mal. Eles não serviam para a vida na floresta, nem

serviam como hábeis guerreiros, caçadores ou mesmo como conselheiros. Os

indígenas do relato agradeceram a proposta dos ―brancos‖ para que indígenas

estudassem nas escolas, e relataram que mesmo sem poder aceitar, para mostrar

sua imensa gratidão, sugeriram aos brancos que enviassem alguns dos seus jovens

para convivência na comunidade indígena, para ensinar-lhes tudo o que eles sabiam

e assim eles se tornariam verdadeiros homens.

Neste sentido, alguns indígenas em conversas informais relataram que a

esperança que eles depositam na escola escoa-se mediante a desvalorização de

sua cultura e o que realmente está na moda é mudar para conseguirem sobreviver,

mesmo que o preço a ser pago seja a perda da identidade cultural. O processo de

assimilação cultural que é imposto pela cultura não índia e predominante, tem

―esmagado sua cultura Ticuna‖. Muitos já não querem mais pescar, caçar, já não

vivem mais como produtores ou coletores e sim, como consumidores.

A escolha de um método que em linhas gerais predominasse foi importante.

Embora sejam utilizados em vários pressupostos do método etnográfico e também

da pesquisa quantitativa, esta pesquisa é de cunho qualitativo.

Na metodologia são utilizados pressupostos do método etnográfico, descrito

por Bertaux (2010), que fala sobre a coexistência de fenômenos dentro de uma

sociedade, como é o caso das correntes educacionais observadas nas comunidades

da tribo Ticuna.

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Pelo termo ―perspectiva etnossociologica‖ designamos um tipo de pesquisa empírica apoiada na pesquisa de campo e nos estudos de caso, que se inspira na tradição etnográfica nas suas técnicas de observação, mas que constrói seus objetos pela referencia a problemas sociais. (p. 23, grifos do autor).

Buscamos uma ou algumas possíveis explicações ao problema das posturas

educacionais de professores Ticuna, que a nosso ver, a priori parece de ordem

social e talvez seja potencializado pela multiculturalidade existente na região do Alto

Solimões.

Para tanto, é necessário um breve diagnóstico situacional das escolas

envolvidas na pesquisa. Também é preciso recorrer às informações sobre educação

escolar que são organizadas a partir de dados obtidos no setor de Educação da

FUNAI, às informações obtidas no contato direto com o cotidiano indígena e

construídas a partir de depoimentos de lideranças indígenas e às informações

etnográficas já registradas, como as pesquisas de Nimuendaju (1977), Oliveira Filho

(1988) Viveiros de Castro (2002). É necessário ainda a utilização de trabalhos que

retratam as relações socioculturais como os de Demartini (2003) e Martins (2009) e

estudos como os de Meliá (1979), Monte (2000) e Godoy (2011), cujo foco direciona-

se às relações entre cultura indígena e escola, que são de fundamental importância

para que possamos atingir o objetivo deste trabalho.

Neste sentido, observamos que alguns autores têm se interessado por

fenômenos observados em comunidades indígenas e vêm realizando pesquisas

sobre o seu cotidiano, seus aspectos sociológicos e educacionais. Nesta pesquisa

recorremos a eles, além de utilizar o material coletado na participação da I

Conferência Regional do Alto Solimões e Javari, que tratou de questões

educacionais e a autonomia indígena.

Para Meliá (1979) a escola na aldeia não pode ser vista de maneira simplória

como uma mera representação do estado impondo ideologias sobre os povos

indígenas. O que é importante para essa autora são as relações interétnicas e as

instituições através das quais se constituem como experiências dinâmicas onde a

agência das partes envolvidas possibilita desdobramentos criativos e inesperados,

desafiando-nos com novos problemas.

A magia da escrita se burocratiza quando ela entra na escola, e escola é quase sempre o espaço do Estado e das instituições que o representam. O lugar físico, social e político que tem a escola na aldeia confunde-se facilmente com o lugar que ocupa o Estado nesse povo. (p. 11).

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O contexto demonstra que a partir da década 1970, surgiram movimentos

envolvendo lideranças indígenas de diferentes grupos étnicos que reivindicavam a

educação escolar como direito e se organizaram para definir os rumos da educação

em suas comunidades. Essa informação reportou-me a I Conferência Regional do

Alto Solimões e Javari, organizada pelo MEC em maio de 2009, onde presenciei as

discussões e palestras realizadas para uma melhoria da educação indígena. O cerne

da proposta do MEC era a estabelecer um diálogo para possível implantação de

uma política educacional pautada em pressupostos da Etnoeducação. Na ocasião

estavam presentes representantes de diversos movimentos indígenas, lideranças e

caciques da região que lutam para melhoria na Educação escolar em suas

comunidades.

Monte (2000) aborda o assunto no contexto latino americano, relacionando-o

à educação e sociedades indígenas no Brasil.

Como parte das reformas educativas latino-americanas, um novo paradigma para a educação das sociedades indígenas está sendo construído em substituição ao condenado modelo de escola como veículo de interação e assimilação lingüística e cultural. Tem sido conceituando na América Hispânica de Educação intercultural Bilíngüe (EIB), ou Etnoeducação, enquanto no Brasil é conhecida como Educação Escolar Indígena (EEI). Nas últimas décadas, um repertório de modificações políticas significativas vem acompanhando essas formulações, traduzidas em novas bases jurídicas e institucionais. É direito coletivo e dever de Estado inscrito nas Constituições Federais de legislações educacionais específicas. (p. 99).

Temos observado que a Etnoeducação é uma tendência, uma nova

experiência no campo educacional indígena. Essa forma de educação passa a lidar

com etnias de forma mais presente e particular, ou seja, as comunidades indígenas

que têm uma cultura similar, no que se refere à proximidade da língua, costumes,

hábitos etc. Passam então a ter uma educação participativa e voltada para sua

realidade.

Oliveira Filho (1988) vê a ideia com pessimismo e contesta, afirmando que é

preciso prestar atenção às formas como as instituições aparentemente externas são

internalizadas pelos povos indígenas. Analisa como um grupo étnico com elementos

vivos e atuantes de sua própria organização social e de sua cosmologia, se adapta,

tenta resistir à dominação e reinterpreta a ação do Estado.

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As ações do índio são sempre vistas e interpretadas de acordo com as representações e interesses de grupos sociais que com eles compartilham a mesma situação histórica, para apreender a constituição desse campo é necessário remeter-se à situação histórica precedente e captar como os índios estiveram plenamente inseridos na situação de domínio dos seringalistas, tratados como atores efetivos, decodificando os significados tradicionais que atribuíram aos eventos que viveram, bem como acompanhando as novas significações e os cursos de ações alternativas que constituíram. (p. 88).

Pode ser mais uma forma de tratar os diferentes grupos étnicos de forma

igual, e de forma sutil minar cada vez mais o seu legado cultural. O tema relacionado

a diferentes culturas é complexo e muito mais quando envolve a escola, e

principalmente, no contexto indígena, não é simples de tratar. Neste sentido,

Demartini (2003) ressalta que:

Tratar de questões relacionadas à cultura não é tarefa fácil; e parece-me mais difícil quando o tema proposto é culturas escolares [...] Se pensarmos na realidade que vivemos hoje, já seria difícil responder a essas questões, mesmo sabendo que a temática mais ampla da cultura tem sido objeto de investigação mais intenso da vida educacional. Os significados atribuídos à escola e ao conhecimento escolar por ela produzido têm sido objeto de muitas discussões e controvérsias. Filósofos da atualidade refletem sobre a crise profunda que afeta a cultura e discordam sobre as finalidades da escola para o homem no mundo atual e sobre as práticas nelas observadas, quando pensam nas demandas destes novos tempos e nesta sociedade e cultura cada vez mais globalizada. (p.135-136).

Os povos indígenas Ticuna convivem com diversas culturas e possuem

diferentes posturas na escola. Sobre as diferenças culturais observamos também em

de Martins (2009) em seu livro ―A fronteira‖ no qual expõe resultados de pesquisas

desenvolvidas nos últimos trinta anos, em diferentes pontos da região amazônica

colocando um ingrediente interessante no encontro de etnias.

A fronteira, segundo Martins (2009), é o espaço próprio do encontro de

sociedades e culturas entre si diferentes, a sociedade indígena e a sociedade dita

―civilizada‖, mas também as várias e substancialmente diferentes facções da

sociedade de brancos e mestiços que somos. Esse autor é importante no sentido de

confirmar o que observo na região da tríplice fronteira, onde vivem a maior parte dos

índios Ticuna, os quais muitas vezes deixam seu habitat natural, a comunidade

indígena, e buscam uma aventura na cidade. Alguns procuram trabalho, outros vão

estudar na cidade. Certa vez, inclusive, um amigo indígena me falou: ―Samuel,

quero mandar meu filho pra teu (sic) casa, pra se ‗civilizar‘, estudar na escola de

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Tabatinga‖. Esse fato se repete com muita frequência na região. Muitos não são

considerados essencialmente não indígenas quando estão na cidade e ao mesmo

tempo quando estão na aldeia são vistos como alguém que é ―civilizado‖, por terem

assimilado traços culturais dos não indígenas; chegam até a ser vistos com

desconfiança por alguns parentes indígenas. Ficam, segundo esse autor, na

fronteira étnica, ou seja, acabam sem ―identidade étnica‖, não são nem de lá (aldeia)

e nem de cá (cidade), acabam ficando na fronteira.

As diferentes posturas pedagógicas observadas entre professores Ticuna

podem residir exatamente no fato observado acima. Mas para que seja confirmado

ou negado faz-se necessário ir a campo investigar através das entrevistas para

saber se tal fato realmente procede ou se esta observação está equivocada.

A presente pesquisa está organizada em quatro capítulos: no primeiro,

abordamos o histórico do povo Ticuna; observando a origem do povo, fazemos

menção ao nome ―Ticuna‖ atribuído a essa etnia provavelmente por índios

Omáguas. Discorremos brevemente sobre a constante luta indígena pela

autoafirmação e afirmação de seu território. São observados também a disposição e

o número de comunidades Ticuna dentro do território magüta. Neste capítulo

abordamos, ainda, o início da relação com os não indígenas, chamados comumente

de ―civilizados‖, sendo que este aspecto é de fundamental importância na

contextualização e posterior compreensão das correntes educacionais.

No segundo capítulo, apresentamos as práticas observadas no cotidiano

Ticuna, a educação não formal, que envolvem: o uso da língua Ticuna, o trabalho, a

roça, a caça, a pesca, a alimentação, as festas, a arte, as pinturas, o nascimento, as

relações interétnicas, o casamento e a morte. Essas práticas constituem uma

ferramenta pedagógica importante para a dinamização e manutenção da cultura

Ticuna em constante contato com outros povos.

No terceiro capítulo a abordagem é referente ao sistema educacional, no qual

é discutida a Educação Indígena e a Educação para os índios. Apresentamos os

marcos legais que regulamentam os direitos dos povos indígenas, apresentando um

histórico da Educação no Brasil, cujo discurso oficial é a preservação cultural.

Evidenciamos a Educação Ticuna que através de mitos e lendas tem a finalidade

visível de proporcionar uma educação que garanta sua autoafirmação frente a outros

povos e preservação do legado cultural existente. É necessário abordar neste

capítulo o termo ―civilizado‖, comumente usado na região: a educação para se tornar

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―civilizado‖, ou seja, a ação de se deslocar das comunidades indígenas para estudar

na cidade.

O quarto capítulo, traz a educação no olhar do indígena e procura demonstrar

o que é educação para o Ticuna, o que ele espera da escola e como o professor

―possuidor‖ de possíveis recursos pedagógicos pode facilitar ou dificultar o resgate e

a ―manutenção‖ cultural nas comunidades Ticuna através da escola. Esse capítulo

aborda de maneira breve aspectos do curso de formação de professores indígenas

na região do alto Solimões. Cabe ainda mencionar que é difícil falar de educação na

ótica do indígena, mostrando qual é a melhor maneira de lidar com a diversidade

sociocultural e o mundo pós-moderno e globalizado, mas este capítulo, além de

fundamentado nas entrevistas, apresenta a experiência que tenho com os índios

Ticuna na região do Alto Solimões.

A princípio, podemos afirmar que o modelo necessário de educação para a

escola indígena deveria ser um que constantemente desenvolvesse alternativas

para uma educação apropriada à sobrevivência da cultura Ticuna, uma educação

adequada à sua realidade cultural e mais que isso, que eles fossem os mentores de

tal educação, pois segundo Comênio (1976, p.104), ―não é necessário

consequentemente introduzir nada no homem a partir do exterior, mas apenas fazer

germinar as coisas das quais ele contém os germens em si mesmo...‖. Neste sentido

buscamos tecer este trabalho de forma que seja proveitoso tanto a pesquisadores e

professores Ticuna e que de alguma maneira possa servir como possível fonte para

reflexão.

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1 TICUNA: UM POVO NO ALTO SOLIMÕES

Para a compreensão do contexto cultural, social e educacional do povo

Ticuna é necessária a realização de uma viagem panorâmica sobre a história desse

povo. Essa viagem será possível através de escritos etnográficos já existentes, e

pelo convívio e observação que tenho realizado na cultura levando em consideração

fatores que influenciam a cultura Ticuna no processo de assimilação da cultura não

índia chamada de Aculturação por alguns antropólogos.

Os Ticuna, nome pelo qual são conhecidos, não é uma autodenominação que

tem origem em seus ancestrais, mas são assim denominados por tribos vizinhas do

tronco linguístico Tupi, provavelmente os índios Omáguas, tribo com quem lutavam

pela posse do mesmo território. O termo “Tikuna” significa em Tupi ―nariz preto‖ faz

referência ao uso cultural de pinturas no rosto expressando filiação clânica que são

feitas com a tintura encontrada no jenipapo. Já os índios Ticuna, originalmente

autodenominavam-se a nação magüta, termo que literalmente significa ―gente

pescada‖ com vara de pescar por Yo‘i, herói mitológico dos Ticuna. Esse fato foi

observado pelo antropólogo alemão Kurt Nimuendaju (1977) que registrou os

primeiros contatos com os primeiros missionários e militares que entraram em

contato com os Ticuna por volta do século XVII.

Segundo relatos, em sua origem os Ticuna sempre foram índios de terra

firme, ocupando um extenso território no alto dos igarapés que deságuam no Rio

Solimões, mas que com o passar dos anos foram se deslocando cada vez mais, e a

partir do final do séc. XVIII, foram em direção ao grande Rio Solimões. Esse

processo teve início com o desaparecimento gradativo de seus inimigos rivais, os

Omágua (também chamados de Cambeba), tribo guerreira que dominava as

margens do Rio Solimões.

Mantêm estas tribos, por uma e por outra margem do rio, contínuas guerras com os povos vizinhos que, pelo lado do sul, são, entre outros, os Curina tão numerosos, que não apenas se defendem, pelo lado do rio, da grande quantidade das Águas, como também sustentam armas, ao mesmo tempo, contra as demais nações que por via terrestre os atacam constantemente. Pelo lado norte os Omáguas têm como inimigos os Tikunas que, de acordo com boas informações, não são inferiores aos Curina nem em número nem em brio, já que também sustentam guerras com os inimigos que têm terra adentro. (ACUÑA, 1994, p. 51).

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Os Ticuna são citados pela primeira vez, de acordo com Oliveira Filho (1988)

pelo etnólogo alemão Kurt Nimuendaju, que em 1929 fez sua primeira viagem ao

alto Solimões e observou que estes tinham como inimigos os Omáguas, moradores

da margem esquerda do rio Solimões. Os Ticuna, que já fugiam das agressões

deste povo, refugiando-se nos altos dos igarapés e afluentes da margem esquerda

do Solimões, fazem o mesmo com a chegada dos espanhóis, em especial Francisco

Orellana e suas expedições, que desciam o rio Solimões.

Os primeiros contatos com os brancos datam do final do século XVII, quando jesuítas espanhóis, vindos do Peru e liderados pelo Padre Samuel Fritz, criaram diversos aldeamentos missionários às margens do rio Solimões. Essa foi à origem das futuras vilas e cidades da região, como São Paulo de Olivença, Amaturá, Fonte Boa e Tefé. Tais missões foram dirigidas principalmente para os Omáguas, que dominavam as margens e as ilhas do Solimões, impressionando fortemente os viajantes e cronistas coloniais pelo seu volume demográfico, potencial militar e pujança econômica. Os registros da época falam em muitos outros povos (como os Miranha ou os Içá, Xumana, Passe, Júri, entre outros, dados como extintos já na primeira metade do século XIX pelos naturalistas viajantes), que foram aldeados juntamente com os Omáguas e os Ticuna, dando lugar a uma população ribeirinha mestiça. (p. 280).

O fato de serem "índios na região da fronteira" determinava um intenso círculo

de trocas por um longo período, envolvendo não somente trocas comerciais com

grupos indígenas da Colômbia e do Peru, mas principalmente, de produtos de

grande valor simbólico e de conhecimentos ligados ao xamanismo, prática muito

valorizada nas culturas indígenas.

A partir do ano de 1970, os deslocamentos deram lugar a um grande

processo de ―urbanização‖ causado pela busca dos aldeamentos mais bem

estruturados com escolas e postos de saúde, e paralelamente, segundo Oliveira

Filho (1988), ―pelo chamado do Irmão José (brasileiro), que, dizendo-se dotado de

‗visão celestial divina‘, passou a colocar cruzes nos aldeamentos, prometendo que

salvaria aqueles que ali se reunissem e cumprissem os mandamentos da ‗cruzada

apostólica‘ ‖.

O fator histórico de ocupação e exploração do território Ticuna fez com que

houvesse grandes movimentos de deslocamento e de concentração populacional a

partir do século XVIII. Segundo Oliveira Filho (1988) no final do século XIX, a

expansão da exploração da seringa na região do Alto Solimões, e o lucro adquirido

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com o trabalho em seringais, fez-se evidente o processo de dissolução das malocas

tradicionais, tendo havido a transferência dos indígenas para as margens do

Solimões em detrimento dos interesses da empresa seringalista.

Como em todas as aldeias, povoados e tribos brasileiras os índios Ticuna

inicialmente mantiveram-se fiéis às suas culturas, vivendo em malocas clânicas, no

entanto, através do contato intenso com os não índios esse aspecto cultural acabou

desaparecendo, sendo preservadas ainda, a língua, algumas tradições, a cultura do

cultivo da macaxeira, da banana e coleta de frutas para sua subsistência.

Atualmente devido à inserção do homem não índio, as políticas públicas

existentes, bem como o crescimento das cidades na região do Alto Solimões,

verifica-se um processo de perda da identidade indígena Ticuna. É possível

constatar grande fluxo migratório para as cidades, visando à compra de produtos

industrializados. Há, ainda, o fato de muitos saírem de suas aldeias e mudar-se para

as cidades, intensificando, assim, o processo de miscigenação.

O governo federal e, sobretudo, o governo estadual do Amazonas ajudam

ainda mais neste processo de saída das terras tradicionalmente ocupadas. Estes,

através de sua Autarquia Previdenciária concedem benefícios, sem observar os

procedimentos previstos na legislação; como também não criam condições que

melhorem a vida nas comunidades indígenas. A saúde e educação são prestadas

de forma precária com péssima qualidade, devido à distância, à falta de estrutura

física e equipamentos e também à falta de pessoas com formação necessária para

um atendimento básico de qualidade, tanto na área da saúde como na educação. Há

localidades que distam vários dias de viagem em canoas das cidades mais

próximas, assim, ocorrendo enfermidades graves e há grande probabilidade da

ocorrência de óbitos devido à falta de recursos.

O governo estadual, em vez de fomentar a cultura e manutenção das

tradições Ticuna, promove a introdução de elementos estranhos à cultura indígena,

que fazem parte do contexto social dos não índios e do cotidiano das cidades,

tornando cada vez mais as aldeias parecidas com pequenas cidades. Como

exemplo, vale mencionar a aldeia de Belém do Solimões, distante 80 km de

Tabatinga. Essa aldeia mais parece uma pequena cidade. Na figura 1, a seguir, é

possível observar um comércio no qual funciona a Caixa Econômica. As ruas estão

asfaltadas, todavia, não há saúde, ocorrem inúmeros falecimentos de índios, não há

segurança, estando os índios abandonados à própria sorte.

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Figura 1 - Caixa Econômica em Belém do Solimões

Fonte: Arquivo pessoal - 2012

O povo Ticuna do Alto Solimões está atualmente dividido em mais de 120

comunidades, que são distribuídas desde a calha do Rio Solimões até o alto dos

igarapés, e estão próximos a nove diferentes municípios: Benjamin Constant,

Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amatura, Santo Antonio do Içá, Jutaí, Fonte Boa,

Tonantins, Beruri. Em alguns desses municípios a população indígena constitui mais

da metade da população total de zona rural.

1.1 O TERRITÓRIO TICUNA

O território Ticuna do Eware localiza-se na Meso-Região do Alto Solimões

Amazonas, a aproximadamente 1500 km de Manaus, capital do estado do

Amazonas. A região é um espaço de confluência das fronteiras políticas dos três

países: Brasil, Colômbia e Peru. Este fenômeno faz que o atual território Ticuna

pertença a três nações diferentes, porém, os Ticuna ao mesmo tempo em que

reafirmam sua identidade étnica, também se adaptam às diferentes identidades

culturais.

Faz-se necessário esclarecer que na Meso-região do Alto Solimões, segundo

classificação do IBGE, existem sete populações com hierarquia de cidade: município

de Amaturá, Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Santo Antonio de Içá, São Paulo

de Olivença, Tabatinga e Tonantins. Essas cidades constituem-se centros

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administrativos e comerciais e sedes dos municípios que levam o mesmo nome. As

povoações restantes são formadas por comunidades indígenas (das etnias

presentes na região: Ticuna, Cocama, Cambeba, Marubos, Matis e outras) ou

populações ribeirinhas. O foco deste trabalho, como já mencionado, configura-se

sobre o processo educacional construído principalmente com o auxílio de lideranças

e professores das comunidades Ticuna de Umariuaçu I e II e Belém do Solimões

que cuja localização está dentro dos limites do território Ticuna Eware, conforme

demonstra a figura 2.

Figura 2 – Eware I e II (Território Ticuna)

Fonte: I Conferência de Educação Indígena na Região do Alto Sol 2009 – adaptado pelo autor.

A nação Ticuna pode ser considerada como a maior população indígena da

Amazônia Brasileira. Segundo dados do ISA (2011) os Ticuna possuem

aproximadamente 36.377 (Funasa, 2009) parentes indígenas no Brasil, 6982

parentes indígenas vivem no Peru (INEI, 2007) e 8000 parentes na Colômbia

(GOURLARD, 2011). Situados na região de fronteira do Brasil com a Colômbia e o

Peru, a população total estimada é de aproximadamente 51.359 indivíduos.

O território Ticuna, além de ser uma ampla região dividida pelas fronteiras

políticas do Brasil, Colômbia e Peru, caracteriza-se por uma população multiétnica.

Região do

Alto Solimões

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Os Ticuna mantêm contato com outros grupos indígenas como os Yagua, Cocana,

Huitoto, Cambeba, Kulina e com os ―brancos‖ e ―mestiços‖ que formam a população

da Tríplice Fronteira, na Região do Alto Solimões.

O caráter multiétnico dessa região, somado à diversidade determinada pelos

diferentes contextos das nações vizinhas, Peru e Colômbia, faz do cenário social um

espaço propício para conflitos interétnicos manifestados através de constantes

disputas por liderança em nível local e regional marcado pela apropriação de

recursos diversos disponíveis na região.

A figura 3, através da inscrição no muro do Comando de Fronteira do Alto

Solimões CFSOL8º BIS, expressa a ideia de que a cidade de Tabatinga é apenas o

começo do Brasil, o que em outra perspectiva seria os confins de nosso Brasil.

Figura 3 – Inscrição no muro do Comando de Fronteira do Alto Solimões CFSOL 8º BIS

Fonte: Arquivo pessoal - 2012

Esse é um cenário de fronteiras políticas, diversidade étnica e conflitos

sociais, onde os Ticuna constantemente reafirmam o sentido de sua identidade e ao

mesmo tempo introduzem em sua cultura diferentes identidades que contribuem

para o estabelecimento de diferenças intra-étnicas, ou seja, diferenças dentro da

própria cultura Ticuna que se expressam na vida cotidiana por representações

ideológicas e lutas pelo poder, na esfera política, o que consequentemente garante

elevado prestígio social e até econômico.

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1.2 A RELAÇÃO COM OS NÃO INDÍGENAS

Os primeiros relatos da relação dos índios Ticuna com os não indígenas na

região do Alto Solimões que estão registrados em pesquisas de cunho etnográfico,

tiveram início no século XVII, com jesuítas espanhóis e portugueses. Os estudos de

Curt Nimuendaju, cuja publicação em 1930 teve início com o texto ―Besuch bei den

Tukuna-Indianem‖, uma produção de caráter etnográfico sobre os Ticuna. Depois

desse texto, Nimuendaju dedicou-se a escrever a obra ―The Tukuna‖ (1952), onde

apresenta resultados do convívio com os Ticuna. Nesta obra, o autor descreve a

cultura dos Ticuna, sua história, suas formas de subsistência, sua arte, sua

organização social e sua religião.

Seguindo os caminhos percorridos por Kurt Nimuendaju, o antropólogo

Cardoso de Oliveira (1972) passou também a investigar os Ticuna, explorando o

processo de contato entre índios e brancos na região. De igual maneira, Oliveira

Filho (1988), ao término dos anos 1980, analisou as mudanças sociais e o processo

de dominação por parte de não índios e resistência dos índios Ticuna.

Os Tikuna atravessaram, desde o século XVII, diversos processos de contato. Entre os séculos XVII e XVIII, alguns segmentos da população sofreram um processo de redução forçada por parte de jesuítas espanhóis e portugueses (no século XVII) e missionários carmelitas portugueses (no século S. XVIII), que fundaram aldeias e vilas. No século XIX, a região se tornou um importante centro de exploração de recursos naturais, sobretudo de pescado, extração de madeira e coro de animais. Os comerciantes intercambiavam esses produtos com os Tikuna e com outras etnias por objetos manufaturados. Em finais do século XIX, durante o apogeu da exploração e comercialização da borracha, chegaram pessoas do nordeste de Brasil que compraram dos governos locais os títulos de propriedade das terras tradicionalmente ocupadas pelos Tikuna e começaram a utilizá-los como mão-de-obra. Para isso destruíram as malocas e dispersaram os membros de cada clã, impondo outro padrão de moradia e de organização social que lhes permitiu dominá-los mais facilmente. Os Tikuna sofreram um processo de dominação por parte de patrões seringalistas até os anos de 1960, quando um conjunto de mudanças em nível nacional e local e a atuação de diversos agentes coadjuvaram na perda de poder daqueles. O que facilitou o processo de organização e luta que os Tikuna iniciaram nos anos de 1970 em prol da conquista do direito a terra, saúde e educação escolar diferenciada e bilíngüe. (PALADINO, 2010, p.160).

O texto nos leva a entender que o processo de mudanças em aspectos

culturais não começou agora, mas desde o séc. XVII. Hoje os Ticuna convivem com

o que restou de sua cultura e lutam para que o pouco do legado cultural permaneça

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vivo em suas memórias. Para isso eles, apesar de inúmeras dificuldades, se unem

formando organizações e conselhos sobre os quais trataremos mais adiante.

Desde o descobrimento do Brasil os índios são ―direcionados‖ a realizar

mudanças significativas em detrimento de sua cultura. A cultura predominante

transmite a ideia de ser mais ―avançada‖ e de maior facilidade para o viver diário.

Alguns indígenas têm acreditado que a cultura predominante pode facilitar muitas

coisas e até ser melhor que a sua posição social. Isso se deve à dificuldade que eles

têm de viver isolados do mundo ocidental e não possuir como premissa maior a

lógica do capitalismo. A integração conduz o indígena a abrir mão de aspectos

culturais em detrimento da cultura não índia. Segundo Sanche (1999), os índios,

além de sofrerem perdas irreparáveis, ainda são vistos de forma preconceituosa.

Esse primeiro contato é o inicio de um longo período de relações amistosas e conflituosas marcadas pelo saque e pilhagem das riquezas da terra brasilis pelos europeus principal protagonista dessa história é o elemento português e a principal vitima o índio, que alem de ter invadidas suas terras, saqueado seus bens e violentadas suas mulheres, ainda ganhou a fama de ―burro‖ e preguiçoso, sem nenhum respeito à sua tradição, organização social e crenças (p. 48).

Hoje podemos observar o grande conflito que é viver em uma comunidade

indígena que distante mais de dez horas canoa com um motor rabeta, da cidade de

Tabatinga, ao mesmo tempo em que lutam pela sobrevivência da cultura tentando

garantir o necessário para sobrevivência no dia a dia, estão sendo bombardeados

pela ideologia da classe média que é veiculada através dos principais meios de

comunicação em massa.

Não é muito diferente do que ocorria por ocasião do período colonial: uma

imposição de uma cultura sobre a outra, com um discurso de melhoria e progresso,

e com isso, a cultura indígena vai deixando lentamente de existir. Só mudou o

cenário.

Na figura 4, a seguir, podemos visualizar duas casas: uma, nos moldes da

cultura Ticuna, erguida a partir de esteios e barrotes fixados no chão, com assoalho

de pachiúba (tipo de palmeira) e madeiras retiradas da floresta com o auxilio de uma

moto serra, em geral as paredes de madeira ficam extremamente rústicas e sem

pintura alguma que, em seguida é coberto com palhas e fica pronta para o uso; na

mesma figura observa-se outra casa também sobre esteios e barrotes, porém com

aparência de casa típica dos não índios ribeirinhos, com as madeiras da parede

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beneficiadas em serraria, com táboas mais lisas, pintadas e com cobertura feita com

telhas de zinco.

Figura 4 – Casa Ticuna

Fonte: Arquivo pessoal – 2012

Essa casa possui uma caixa d‘água que por ocasião da chuvas os indigenas

coletam água para beber. Possui também uma antena parabólica que no período da

noite quando o gerador da comunidade é ligado, possibilita o acompanhamento de

programação televisiva. Isso se constitui um dos maiores lazeres para os Ticuna

daquela comunidade, e assim, vão lutando e mesclando o primitivo com o novo, a

fim de não banir definitivamente aspectos herdados de sua cultura.

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2 PRÁTICAS NO COTIDIANO TICUNA: A EDUCAÇÃO NÃO FORMAL

Para abordar as práticas, é interessante começar pela língua, sem a qual as

relações interpessoais na convivência Ticuna tornam-se impossíveis. A língua

Ticuna é utilizada por mais de 50.000 indígenas que se distribuem em comunidades

por três países: Brasil, Peru e Colômbia. No lado brasileiro, o número de

comunidades ultrapassa 120, distribuídas em diversas áreas localizadas em

municípios da região do Alto Solimões, dentre eles estão Benjamin Constant,

Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antonio do Içá, Jutaí, Fonte Boa,

Tonantins, Beruri. A maior parte das aldeias encontra-se nas proximidades do rio

Solimões. Sua língua materna é o Ticuna, ―uma língua tonal, isolada única na

linguística‖. Segundo Soares (2001), é dominada apenas por membros dessa etnia e

apresenta complexidades em sua fonologia e em sua sintaxe. Tem sido

sistematicamente defendida pelo uso cotidiano nas aldeias em especial, pelas

mulheres junto às crianças.

Nas aldeias que se encontram na Região do Alto Solimões, do lado brasileiro,

o uso intensivo da língua Ticuna não chega a ser ameaçado pela convivência com

outros povos. Essa preservação só ocorre quando os pais que convivem com outros

povos ou na cidade, têm uma atitude de valorização, fazendo sempre uso da língua

e incentivando os filhos Ticuna. Já quando não se tem essa preocupação pela

valorização da língua, e a língua usada no cotidiano pelos pais com seus filhos deixa

de ser a Ticuna e cede lugar ao português ou espanhol, o Ticuna acaba sendo

prejudicado. Isso é difícil ocorrer, porém, há alguns casos de crianças escolarizadas

na cidade de Tabatinga que não conseguem se comunicar com seus parentes em

língua Ticuna. O Ticuna, nesse caso, cede lugar à imposição da cultura dominante,

que com uma aparente facilidade vai minando dia após dia a originalidade cultural

Ticuna tão difundida pelos antigos.

Os antigos indígenas praticavam um trabalho apenas para a subsistência e

algumas vezes o excedente era trocado com regatões e os povos vizinhos supriam a

necessidade do que não possuíam.

Os Ticuna eram basicamente caçadores e coletores, praticando o cultivo de espécies nativas como a macaxeira, o cará, uma espécie de cana-de-açúcar e outras. Naquele momento, com uma alimentação baseada na carne de

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caça, a pesca tinha importância mínima, sendo praticada com uma tecnologia de cercados e envenenamento dos peixes com o sumo do timbó (OLIVEIRA FILHO, 1988, p. 46).

O trabalho de pesca é um trabalho em geral dos homens. Já a pesca conjunta

é muito rara, mesmo entre moradores da mesma casa. A grande maioria dos Ticuna

costuma pescar com o caniço, a flecha, a tarrafa e as redes, e os melhores locais

para a pesca são em geral inúmeros lagos que estão à margem o rio Solimões. A

figura 5 demonstra ao fundo uma manifestação da arte Ticuna e evidencia a

importância da pesca e da caça como prática indispensável à sobrevivência do povo

indígena Ticuna.

Figura 5 – Pinturas artísticas dos Ticuna

Fonte: Arquivo pessoal - 2012

Devido à escassez e ao fato de a cada dia serem obrigados a ir mais longe

para encontrarem caças, hoje são poucos que praticam a caça, apesar de esta ser

tradicional e estar bastante ligada à cultura culinária Ticuna. No passado eram

utilizados a zarabatana e arco, que lançavam flechas e dardos envenenados. Hoje já

utilizam, na maioria das vezes, espingardas calibre 16, o que gera mais mobilidade e

garante maior segurança para o caçador. As caças que geralmente são capturadas

são: os diversos tipos de macacos, a cutia, o veado, a queixada, o catitu, a anta, o

mutum, o jacu, alencó e a arara, entre outros animais.

Na seqüência, a figura 6, à esquerda, mostra a cozinha onde são preparados

os pratos típicos da culinária Ticuna, em uma cozinha de pachiúba, com cobertura

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de palha, e um fogão de barro onde é colocada a lenha seca para o preparo dos

alimentos. A figura 7, à direita, mostra o preparo do peixe moqueado, que são peixes

assados com escamas e vísceras sem colocar nenhum tempero antes de ser

assado. Posteriormente, o peixe é degustado acompanhado de sal e pimenta ou

molho de tucupi. Esse alimento é tradicionalmente mantido por gerações.

Figura 6 - Peixe Cozido Figura 7 - Peixe moqueado

Fonte: Arquivo pessoal - 2012 Fonte: Arquivo pessoal - 2012

Figura 8 - Preparo da farinha de mandioca

Fonte: Arquivo pessoal - 2012

Quanto ao trabalho e alimentação os Ticuna praticam o cultivo de espécies

como a macaxeira, para fazer farinha (figura 8), cultivam banana, cará, jerimum,

abacaxi, melão, melancia, feijão de praia e outros produtos regionais. São coletores

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de frutos como: pupunha, buriti, açaí, catuaba, castanha do Pará, cupuaçu, jenipapo,

mapati entre outros frutos da floresta. Alguns desses produtos são comercializados

na cidade e até exportados de forma ilegal para Letícia, na Colômbia.

A coleta de frutas é realizada por todos da família. As frutas mais comuns nas aldeias Ticuna são: açaí (waira), pupunha (itu), castanha (nhoí), cupuaçu (cupu), mapati (tchinhã), ingá (pama), umari (te‘tchi), abiu (tao), e a sapota (otere). As capoeiras onde os índios vão colher as frutas são, em geral, nas proximidades da suas antigas roças, que deixaram em repouso, preservando as árvores frutíferas. (ISA

1, 2000, s/p).

Antigamente, a alimentação era baseada na carne de caça, a pesca tinha

uma importância mínima e era praticada com uma técnica de envenenamento dos

peixes com o sumo da raiz timbó. A situação, no entanto, se inverteu a partir da

ocupação das várzeas do Rio Solimões. Podemos dizer que hoje, a pesca é uma

das atividades produtivas mais importantes para os Ticuna, e fez com que alguns

indígenas acumulassem capitais e alguns passaram a desenvolver a prática do

comércio nas aldeias.

A criação de animais nas aldeias Ticuna é quase inexpressiva. As famílias

possuem poucas galinhas, há ainda uma pequena criação de patos, porcos e

carneiros, que são criados soltos e geralmente são vendidos aos regatões ou cidade

mais próxima, sendo pouco consumido.

Quase todas as famílias Ticuna possuem sua roça particular. Muitas roças

ficam em terra firme, local que não alaga por ocasião das cheias do rio. Quando eles

vão ao trabalho nessas roças, dizem ―vou para o centro‖, ou seja, centro da mata. A

maioria das roças, no entanto, fica na várzea, ou em ilhas e florestas alagáveis às

margens do Solimões e afluentes. São procuradas por serem férteis devido ao

acúmulo sais minerais e nutrientes orgânicos, necessários a uma boa prática

agrícola. Nas roças da família trabalham, em geral, o pai, sua esposa e os filhos

mais velhos que ainda não são casados. No entanto, os filhos homens, maiores e

solteiros, poderão ter uma roça própria quando casarem. Os mais idosos têm

também roças independentes de seus filhos e genros, mesmo quando moram na

mesma casa. Quando mais de uma família vive em uma mesma casa, elas

costumam trabalhar separadas, cada uma em sua respectiva roça. Além dessa mão

1 Instituto Sócio Ambiental. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/ticuna/print Acesso

em: 15.07.2012

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de obra entre família, os Ticuna contam com uma ajuda extra de parentes e amigos

na agricultura.

O famoso ajuri (figura 9) é um trabalho coletivo (mutirão) realizado com

frequência em todas as aldeias da etnia Ticuna. Existem diversos tipos de ajuri: o da

derrubada da roça, o da colheita da roça, o da palha – no qual os convidados levam

a palha e a trançam para a cobertura da casa do dono do ajuri – o da construção de

casas, o da canoa e outros. Em todos os casos o dono do ajuri é o responsável pela

comida e bebida oferecidas aos seus convidados. Ele prepara o pajuaru, bebida

típica que é desenvolvida a partir da fermentação de mandioca ou macaxeira, e

providencia peixe e farinha para todos os presentes. Ao terminar o serviço, os

participantes juntos com o dono do ajuri, festejam e às vezes passam a noite inteira

em cantos e danças. É uma alegria total.

Figura 9 - Ajuri Ticuna (mutirão)

Fonte: Arquivo pessoal - 2012

As ferramentas utilizadas na agricultura Ticuna são basicamente os terçados,

os machados e o motor serra. Essas ferramentas são compradas nos regatões ou

nas cidades vizinhas, principalmente em Tabatinga, em Letícia, na Colômbia e em

Santa Rosa, no Peru. Alguns machados e fornos para torrar a farinha foram doados

pela FUNAI, pelo Governo do Estado e por algumas ONGs. Existem pequenos

comércios instalados na própria aldeia por moradores com maior poder aquisitivo, os

quais vão com mais frequência à cidade e também fornecem os instrumentos

necessários à produção, principalmente o terçado que, em geral, é o mais utilizado.

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No cotidiano Ticuna há muita facilidade com as artes; é possível observar

variedade e riqueza da produção artística, com uma habilidade natural para a

pintura, aspectos que contribuem consideravelmente para resistência à cultura não

indígena e ao mesmo tempo proporcionam afirmação de sua identidade. São

confeccionadas diversas máscaras cerimoniais, roupas feitas com o tururi –

entrecasca de uma árvore com as pinturas que fazem referência às metades

exogâmicas – produzem artesanato em forma de animais, cestos para o trabalho

cotidiano, tecelagem de maqueira para ser usada no descanso, colares com

pequenas figuras esculpidas em tucumã, responsáveis pelo adorno. A música e as

histórias míticas também fazem parte desse cenário de preservação da cultura.

As pinturas em artesanatos e no corpo dos Ticuna são possíveis devido ao

acervo de tintas e corantes que possuem. Mais ou menos quinze espécies de

plantas que são utilizadas no tingimento de fios para tecer bolsas e redes ou pintar

entrecascas, esculturas, cestos, peneiras, instrumentos musicais, remos, cuias e

também o próprio corpo.

Na cultura Ticuna, a tecelagem está intimamente ligada à mulher. A

fabricação de fios, cestos e peneira, como demonstra a figura 10, é uma das

primeiras tarefas desenvolvidas pelas meninas e adolescentes. A importância dessa

atividade ganha uma expressão ritual. Durante o período de reclusão, a menina

moça, worecü, dedica-se aos trabalhos em tucum, especialmente à torção de fios,

que são enrolados em forma de ―flor‖, de modo diferente dos novelos circulares

vistos usualmente.

Figura 10 - Cestos, tipitis e peneiras para o trabalho diário

Fonte: Arquivo pessoal - 2012

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Culturalmente a confecção da cerâmica também é tarefa preferencialmente

feminina, mas os homens também costumam exercê-la. Outro suporte que

possibilita o prazer de desenhar e colorir são os painéis feitos de entrecasca de

certas espécies de Ficus ou tururi. O tururi, nome dado a esse tipo de painel, é uma

invenção que surgiu do reaproveitamento de técnicas e matérias-primas

tradicionalmente empregadas na manufatura de máscaras. Os tururis são pintados

exclusivamente para fins comerciais. Os especialistas reconhecidos na arte de pintar

o tururi são os homens, em sua maioria jovens ou de meia-idade.

As figuras desenhadas são das mais variadas, porém, existe uma que é

preferência dos Ticuna, a representação de animais (onça, jabuti, cobra, borboleta,

anta, jacaré e várias espécies de aves e peixes) que, em alguns casos, combinam

com elementos da flora ou com figuras humanas.

Na esfera ritual o perspectivismo está presente. A forma mais representativa

da arte gráfica são as máscaras, os escudos, as paredes externas do compartimento

de reclusão da moça-nova – festa na qual se comemora a passagem da infância das

meninas para a fase adulta – e o corpo. Os motivos ornamentais podem estar

distribuídos pela vestimenta inteira ou representação de seus clãs. Na parte

superior ou ―cabeça‖ a decoração serve para salientar as feições da entidade

sobrenatural, mas é nas entrecascas do tururi com as quais cobrem o corpo que se

observa um maior número de desenhos. Para melhor compreender o papel do

imaginário na sociedade, convém refletir sobre o que afirma Durant (1997) em ―As

estruturas antropológicas do imaginário‖:

A objetivação social máxima dos corpos, sua máxima particularização expressa na decoração e exibição ritual, é ao mesmo tempo sua máxima animalização; quando eles são recobertos por plumas, cores, grafismo, máscara e outras próteses animais. O homem ritualmente vestido de animal é a contrapartida do animal sobrenaturalmente nu: o primeiro, transformado em animal, revela para si mesmo a distintividade ―natural‖ do seu corpo; segundo, despido de sua forma exterior e se revelando como humano, mostra a semelhança ―sobrenatural‖ dos espíritos. O modelo do espírito é o espírito humano, mas o modelo do corpo são os corpos animais; e se a cultura é a forma genérica do eu e a singularização dos corpos – o que naturaliza a cultura, isto é, a ―incorpora‖ -, enquanto a subjetivação do objeto implica a comunicação dos espíritos – que a culturaliza natureza, isto é a sobrenaturaliza. (p. 389, grifos do autor).

As máscaras são confeccionadas pelos homens, que têm o domínio da arte e

se encarregam da construção de grande parte dos objetos rituais, como alguns

adereços da worecü, os instrumentos musicais, o recinto de reclusão, os bastões

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esculpidos etc. Essa prática pode ser tida de certa forma como tabu. Acredita-se que

a comunicação com o mundo dos espíritos encontrados na floresta só será possível

se a confecção de certos objetos for executada pelos homens da aldeia Ticuna.

As pinturas estampadas nos rostos por ocasião de rituais, por sua vez, podem

ser realizadas por ambos os sexos e é empregada hoje em dia apenas durante os

rituais por todos os participantes, inclusive pelas crianças. Essas pinturas, feitas com

jenipapo, já no primeiro dia da festa, têm a função social de identificar o clã ou

nação, como dizem os Ticuna, de cada pessoa. É possível detectar em alguns

ornamentos faciais certas similaridades com a natureza, ou seja, com os animais e

as plantas que dão nome aos clãs. Além da função social de especificação do clã,

pintar-se na festa é um ato obrigatório. A decoração corporal das jovens e crianças

iniciadas, por sua vez, é realizada segundo normas rigidamente estabelecidas.

A sensibilidade Ticuna para a arte revela-se, agora, em outros materiais e

formas de expressão plástica e estética, como as pinturas em papel produzidas por

um grupo de artistas que formam, atualmente, o Grupo Etüena. Segundo a mitologia

Ticuna ―Etüena é a pintora dos peixes. Ela sentava-se à beira do rio esperando a

piracema passar. Ela então pegava cada peixe e pintava, dando uma cor que ficava

para sempre‖. Quando as crianças nascem, seu corpo é pintado pelo pai com

jenipapo para que sua vida seja protegida contra as doenças e outros males.

2.1 O CASAMENTO – AS METADES EXOGÂMICAS

O casamento na sociedade Ticuna está dividido em metades exogâmicas. Um

membro só pode casar com um membro da outra metade, cada qual composta por

clãs. Estes grupos de clãs patrilineares (o pertencimento ao clã é herdado de pai

para filho), são reconhecidos por um nome que é geral a todos, kï‘a, em português,

equivalente à nação.

Os Ticuna, segundo Paladino (2010) formam uma sociedade de tipo

segmentar, constituída por clãs reunidos em duas metades exogâmicas O conjunto

de clãs ou nações identificadas por nomes de aves forma uma metade, enquanto as

demais, identificadas por nomes de plantas, formam a outra. Mesmo os clãs Onça e

Saúva, um mamífero e um inseto, são associados à metade ―Planta‖ por razões

descritas na mitologia Ticuna.

A condição de membro de um clã confere a um indivíduo uma posição social,

sem a qual não é reconhecido como Ticuna. Cada clã Ticuna é constituído por

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outras unidades, os sub-clãs. Nesse sistema social, cada indivíduo pertence

simultânea e necessariamente a várias unidades sociais como metade exogâmica,

clã e sub-clã, uma vez que elas estão contidas umas nas outras.

Quadro 1: Metades Exogâmicas.

METADE PLANTAS

Clãs Subclãs

Auaí ´a-ru: (auaí grande) ´ts´everu: (auaí pequeno) ´ait s´anari (jenipapo do igapó)

Buriti ´tema (buriti) ny‘eni (n) tsi (buriti fino)

Saúva ´vaira (açaí) ´nai (n) yëë (saúva) tëku: (saúva)

Onça

ts´i´va (seringarana) ´na?nï (n) (pau mulato) ts´e´e (acapu) ´ts´u: (n) a (caranã) ´keture (maracajá)

METADE AVES

Clãs Subclãs

Arara

ts´a´ra (canindé) ño´ï (vermelha) moru: (maracanã) vo´o (maracanã grande) ´a?ta (maracanã pequeno)

Mutum ñu?në (n) (mutum cavalo) ai´veru: (urumutum)

Japu ba´rï (japu) kau:re (japihim)

Tucano ´tau: (tucano)

Manguari ´ñau:(n)a (manguari) dyavï´ru: (jaburu) tuyo:y´u (tuyuyu)

Galinha o´ta (galinha)

Urubu Rei ´e?ts´a (urubu-rei)

Gavião Real ´da-vï (gavião real)

Fonte: Instituto Sócio ambiental. Disponível em: http:pib.socioambiental.org/pt/povo/ticuna/1666 Acesso: 15 Jul. 2012.

Atualmente, essa etnia indígena se autodenomina, em português, de 'nações',

adota nomes de árvores, animais terrestres e insetos que formam a ―metade A‖ e as

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aves ―metade B‖. Para Oliveira Filho (1988), o critério de distintividade está na

separação que os indígenas fazem entre nações de pena e nações sem pena ou a

nação da terra e a nação do Ar. O livro das árvores, feito pelos índios Ticuna,

organizado por Gruber (1997) revela que:

Cada um de nós Ticuna pertence a uma nação, nacüã, que em português também pode se chamar clã. Alguns animais e algumas árvores dão nome a essas nações. Assim as pessoas sabem com quem devem e com quem não devem se casar. As pessoas que pertencem às nações de avaí, jenipapo, saúva, buriti ou onça só podem se casar com pessoas que tenham nação ―de penas‖, ãtchiü, como maguari, mutum, arara, japó ou galinha. Os filhos herdam a nação do pai. Desde o princípio foi assim. A história conta que antigamente o povo de Yo‘i estava todo misturado. Ninguém tinha nome e ninguém podia se casar. Então Yo‘i preparou um caldo de jacarerana e deu um pouco para cada pessoa. Provando do caldo, a pessoa descobria a sua nação. Depois disso, as pessoas começaram a se casar. A nação de onça-pintada também pode se chamar tchi’wa, seringarana. A nação de onça-vermelha, - nge’ma, está relacionada com uma árvore do mesmo nome. (p. 20).

Mesmo sem referência direta às metades no cotidiano, a sua importância está

ligada ao fato de designarem os casamentos permitidos. Os indivíduos buscam seus

parceiros na metade oposta à sua, e o pertencimento dos filhos a uma nação ocorre

por linha paterna.

O desrespeito à exogamia, se cometido casualmente, pode ser punido com

censura pública sem que haja exclusão definitiva dos indivíduos das atividades

sociais. No entanto, as ligações incestuosas prolongadas causam "horror e

repugnância" aos parentes e podem resultar em "tragédias de sangue" com

acusações públicas e mortes violentas, que são vistas, no entanto, como

restauradoras do estado de normalidade.

Na concepção tradicional, a família é constituída de um grupo de pais e filhos,

ou, em um sentido mais abrangente, incluindo também parentes próximos. Esse

conceito corresponde à noção de família nuclear ou família extensiva, mas a

compreensão da família alterou-se principalmente na década de 1990.

Segundo Castells (1999, p. 169), ―a principal transformação que está

ocorrendo na família é o fim do patriarcalismo, que se caracteriza pela autoridade,

imposta institucionalmente, do homem sobre mulher e filhos no âmbito familiar‖. Este

sistema, segundo o autor, está enraizado na civilização, em razão da sua

perpetuação histórica e cultural, determinando também relacionamentos

interpessoais que extrapolam os limites da família.

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2.2 O NASCIMENTO

Na ocasião do nascimento os avós ou os pais tiram o jenipapo para tingir o

recém nascido. O tingimento com jenipapo é feito para espantar os maus espíritos e

proteger a criança de doenças. Mesmo já tendo familiaridade com o processo de

desenvolvimento, muitos continuam com essa prática. Isso está presente, por

exemplo, nos hábitos e costumes dos grupos sociais, transmitidos tradicionalmente

de geração a geração. Em uma família, a maneira dos pais tratarem os bebês

recém-nascidos revela uma forma de "sabedoria" apreendida por eles nos

ensinamentos dos mais velhos e na sua própria experiência. Esse conhecimento é

fundamental, pois garante que os bebês recebam os cuidados básicos necessários à

sua sobrevivência e seu desenvolvimento, ainda que as maneiras de cuidar dos

filhos sejam muito variadas em função da época, da cultura, da ―classe social‖ e da

família Ticuna.

2.3 A MORTE

Os Ticuna acreditam que quando morem vão para o Eware após sua morte.

O Eware é o começo de sua existência e é lá que eles ficarão eternamente. Para os

Ticuna existem diversas árvores no Eware, a qual é para eles uma terra sagrada. É

o local onde começou o mundo, local do começo e do fim da vida. Foi ali que o povo

Ticuna foi criado. Nesse lugar corre o igarapé que também se chama Eware. Das

águas do Eware o deus Yo‘i pescou as pessoas. O Eware, as árvores e as águas

são dados por herança.

As árvores do Eware são diferentes segundo os antigos Ticuna. A mata é

baixa, nunca cresce e nunca morre. Há muita sorva, buriti, açaí, ingá, cupuí, araçá,

bacaba, bacuri, mapati, sapota, pamá. Também há muitas flores. Essa vegetação do

Eware chama-se bunecü, porque é sempre pequena e nova como uma criança, bue.

Segundo Gruber (1997, p. 22) ―O Eware é protegido por animais e gente encantada.

De cada lado do igarapé ainda estão a casa de Yo‘i e a de Ipi, assim como

antigamente. Também está o caniço que os irmãos usaram para pescar os animais e

as pessoas‖.

Um mito é uma espécie de primeira tentativa criada por distintas etnias com a

finalidade chegarem à compreensão dos grandes mistérios da vida e do universo

que nos circundam. É verdade que os mitos refletem discernimentos, porque os

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seres humanos possuem uma função intuitiva que revela alguma verdade natural e

sobrenatural. Qualquer povo nas mais variadas culturas, em qualquer lugar tenta

explicar o aparecimento dos animais, da natureza e dos homens. Os mitos indígenas

Ticunas, como também seus rituais, estão passando por constantes transformações

a cada geração. Isso se deve em grande parte em decorrência da dinâmica cultural

vivenciada na região de fronteira, do intenso contato e convívio com outros povos e

do fácil acesso ao mundo globalizado através dos meios de comunicação em massa

e internet. Assim, os mitos e algumas crenças e muitas práticas do cotidiano Ticuna

estão constantemente sendo ressignificadas ou adaptadas para maior proximidade

com o outro. Neste sentido, Martins (2009) demonstra que a fronteira se revela como

o lugar da desumanização:

As concepções centradas na figura do imaginário do pioneiro deixam de lado o essencial, o aspecto trágico da fronteira, que se expressa na mortal conflitividade que caracteriza, no desencontro genocida de etnias e no radical conflito de classes sociais, contrapostas não apenas pela divergência de seus interesses econômicos, mas, sobretudo pelo abismo histórico que as separa...longe de ser o território do novo e da inovação, a fronteira se revela, nestes estudos, o território da morte e o lugar de renascimento e maquiagem do arcaísmo mais desumanizadores. (p. 13).

A ideia era levar o indígena a esquecer-se de sua cultura para absorver de

forma artificial uma cultura nova. A fronteira, nesse sentido, é o lugar da opressão e

do preconceito étnico, que chega maquiado por uma forma mais prática de vida, com

a ideia de pertencer à sociedade não índia, mas na verdade é uma maneira de

dominar o outro de forma passiva.

Os membros da etnia Ticuna possuíam uma educação que podemos chamar

de educação não formal. Essa educação era a força motriz que conduzia todo o

cotidiano na aldeia, desde: o levantar, o comer, o vestir, o dormir, a construção das

casas, das canoas, dos utensílios domésticos e de caça, do plantio, dos mitos,

crenças e festas até a linguagem falada ou expressa através de gestos e posturas.

Todos os passos na aldeia envolviam a educação para a vida em comunidade. Ao

longo dos anos essa educação vem cedendo lugar a praticas encontradas em outras

culturas.

A fronteira étnica leva a uma constante reformulação cultural, um assunto que

está melhor explicitado no capítulo seguinte, o qual aborda a educação indígena e a

educação para os índios.

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3 SISTEMA EDUCACIONAL: EDUCAÇÃO INDÍGENA E EDUCAÇÃO PARA OS

ÍNDIOS

A terminologia Educação Escolar Indígena foi proposta por Meliá em 1970 e

posteriormente expandida por Lopes em 1980, conforme Collet (2006, p. 117). Esses

autores tinham como objetivo delimitar a diferença entre Educação Indígena que é a

educação própria dos indígenas e Educação Escolar Indígena, a qual denomino de

educação feita para os índios. Essa diferenciação ocorreu para que houvesse uma

melhor compreensão no entendimento das posturas ideológicas, políticas e

pedagógicas implícitas em cada um desses segmentos. Segundo os autores,

Educação Indígena é a aprendizagem espontânea por meio da qual crianças e

jovens indígenas observam as outras pessoas praticarem atividades cotidianas nas

aldeias levando em conta os conhecimentos que são transmitidos pela oralidade,

porém, sem muitas explicações das suas tradições, e dessa maneira assimilam os

conhecimentos de reprodução social. Transmite-se assim a Educação Indígena, em

que todos são alunos e, ao mesmo tempo, professores, porque todos aprendem

juntos. Através dessas atividades crianças e jovens são preparados para tornarem-

se sujeitos plenos e produtivos de seu grupo étnico. Para os mesmos autores a

Educação Escolar Indígena é a educação transmitida formalmente na escola.

A escola para os povos indígenas começou a existir com a chegada da

primeira missão jesuítica ao território brasileiro que foi enviada de Portugal por D.

João III. Era composta por missionários da Companhia de Jesus e chefiada pelo

Padre Manoel da Nóbrega a qual tinha como um dos objetivos converter os nativos à

fé cristã. Segundo Paiva (1982, p. 93), os Jesuítas gastavam mais tempo na

correção dos costumes do que pregar a mensagem da salvação ou escolarizar. Isso

evidencia a preocupação em conduzir os indígenas a uma renúncia dos hábitos

culturais mais arraigados. Neste sentido, Henrique et al (2007) faz referência à

escola nas aldeias:

A escola entrou na comunidade indígena como um corpo estranho, que ninguém conhecia. Quem a estava colocando sabia o que queria, mas os índios não sabiam, hoje os índios ainda não sabem para que serve a escola. É esse o problema. A escola entra na comunidade e se apossa dela, tornando-se dona da comunidade, e não a comunidade dona da escola. (p. 10)

Com a implantação da escola nas aldeias indígenas, o discurso era uma

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educação que traria melhoria e facilidades entre a convivência com os não

indígenas. Na realidade, entretanto, os jesuítas tinham como objetivo a aproximação

dos indígenas com a finalidade de conquistar a sua confiança, aprender suas

línguas para poder manipulá-los de forma que eles não tinham a opção e direito de

escolha. No caso de rejeição, seriam punidos e reprimidos severamente por sua

rebeldia e tinham que fazer somente que fosse de interesse dos jesuítas.

Os indígenas não tinham noção do que representava a escola e muito menos

para que servia, pois essa escola era utilizada como aparelho ideológico do estado,

cujo objetivo real era transformar as aldeias conduzindo os índios a seguir regras e

padrões não índios impostos através da escola, mudando de certa forma, a estrutura

de sua cultura. Muitos indígenas foram conduzidos a abdicar da sua linguagem e se

adequar ao português que era a língua falada por todos da Companhia de Jesus. Os

indígenas não tinham o direito de reivindicar nada e apenas aceitavam o lhes era

imposto pelos jesuítas, fato que gerava revolta dos índios contra esses

procedimentos.

3.1 A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA NO BRASIL: ALGUMAS OBSERVAÇOES

Historicamente, a educação Escolar Indígena no Brasil possui três períodos

distintos, que se subdividem em cinco fases distintas, conforme D‘Angellis (2000). O

primeiro período – ―A Escola de Catequese‖ – contemporâneo com os dois

primeiros séculos de colonização, vai de 1549 (data da chegada dos primeiros

jesuítas) a 1759/67 (datas da expulsão dos Jesuítas dos territórios portugueses e

espanhóis respectivamente). Nesse período a escola esteve basicamente sob a

responsabilidade de missionários, portugueses e espanhóis principalmente de

diversas congregações como jesuítas, franciscanos, carmelitas, capuchinhos,

beneditinos, oratorianos e clérigos diversos. A escolarização configurava apenas um

instrumento de catequese, de cristianização do índio, cujo objetivo era ―pacificar‖

para escravizar os nativos, e desse modo, a colônia era construída. Nessa fase foi

produzido o aniquilamento de diversas culturas e a incorporação de mão de obra

indígena à sociedade nacional. Segundo Meliá (1979, p. 47), ―a educação

missionária, através de fracassos e frustrações, mostrou logo sua inoperância. O

educador constata que o índio... (...) no profundo do seu ser é intocável‖. Há mais de

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500 anos, rotineiramente são presenciadas as formas propriamente indígenas de

resistência às novas situações de contato.

O Segundo Período – ―As Primeiras Letras e o Projeto Civilizatório‖ – vai do

século XVIII até meados do século XX e divide-se em duas fases: A primeira –

―Fase Pombalina‖ – do século XVII até o século XIX, caracterizou-se pela instituição

do ―Diretório Pombalino‖, em 1757, que teve origem com o Tratado de Madri (1750)

e impulsionou a instrumentalização de um conjunto de medidas para a Amazônia

chamada de Diretório pombalino, alterando a política indigenista, antes ligada ao

regimento das missões (1686) e à Lei de 1688 (Conselho Ultramarino). O regimento

das missões relegava às missões o poder temporal – responsabilidade jurídica – e o

Poder Espiritual – direito de catequizar – em relação aos índios da colônia. Já a Lei

de 1688 garantia a escravização do índio não tutelado pelas ordens religiosas (que

não viviam em aldeamentos missionários). O diretório possuía a finalidade de

conservar o aumento do domínio colonial, utilizando o índio como instrumento.

Assim, foi preciso promover a nacionalização do índio (súdito) – tribais e tapuios,

proibir a língua geral (nheengatu) e promover a língua portuguesa, abolição das

distinções formais entre índios e brancos (valores e costumes), cancelamento do

poder temporal dado aos missionários, transformação das aldeias missionárias em

vilas e povoamentos coloniais (com nomes portugueses), incentivo ao casamento

entre branco e índios. Pelo regime do Diretório o índio trabalharia sob a liderança de

um diretor e receberia pelo trabalho. Normalmente eram arrendados de uma região

para outra para execução de obras particulares ou públicas. O Diretor das vilas e

povoados também devia promover a implementação das estratégias diretoras para

civilizar o indígena – transformando-o em um civilizado, pois para ser súdito real

deveria adotar costumes e valores do ―dito branco‖. A segunda fase – ―O Império, a

Primeira República e as Ditaduras‖ – vai do século XIX até o século XX. A principal

medida do Império ocorreu em 1845 com o Decreto nº 426 que contém o

―Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios‖.

A Primeira República é marcada pela criação do SPI – Serviço de Proteção

ao Índio, em 1910, com o estado brasileiro implementando uma política indigenista

de ―integração‖ à sociedade nacional, pois o índio era visto numa condição étnica

inferior. ―A educação, que a ‗sociedade nacional‘ pensa para o índio, não difere

estruturalmente, nem no funcionamento, nem nos seus pressupostos ideológicos, da

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educação missionária. E recolhe fracassos do mesmo tipo.‖ (MELIÁ, 1979). As

escolas nas aldeias não diferem muito de uma escola rural nacional, com

professores não indígenas ensinando crianças índias a ler e a escrever na Língua

Portuguesa.

Terceiro Período – ―O Ensino Bilíngüe‖ dos anos 1970 até o século 21,

dividido em duas fases: A primeira fase – ―A FUNAI, o SIL e a educação bilíngue de

transição‖ A posterior criação da FUNAI – Fundação Nacional do Índio – em 1967,

trouxe algumas mudanças: elege-se oficialmente o ensino bilíngue como forma de

"respeitar os valores tribais"; em 1973, o Estatuto do Índio - Lei 6001/73, tornou

obrigatório o ensino das línguas nativas nas escolas indígenas. Essa educação

escolar oficial para índios, segundo Meliá (1979) ―não difere estruturalmente, nem no

funcionamento, nem nos seus pressupostos ideológicos, da educação missionária

jesuítica‖ (p. 48). A segunda fase: ―O Indigenismo Alternativo, o Movimento

Indígena e as Escolas Indígenas‖ apontada na periodicização de D´Angelis (2005),

caracteriza-se pela realização de projetos alternativos de educação escolar, com a

participação de Organizações Não Governamentais (ONGs) surgidas no final dos

anos 1970, na ditadura militar. É o período também de realização de assembleias

indígenas em todo o país que propiciaram a articulação de lideranças indígenas até

então isoladas entre si. Começa um período experiências dos anos 1980 pela CPI

com os povos indígenas, na região do Alto Solimões essa experiência resulta na

criação da Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngues (OGPTB). Essa

organização teve algum sucesso na elaboração de diretrizes norteadoras para que

fosse garantida a preservação da cultura Ticuna.

Nos anos de 1980 houve um crescimento do chamado movimento indígena,

resultado da criação e consolidação de diversas organizações de educadores

indígenas. Lembrando-se da diferença, mencionada por Meliá (1979) entre

―Educação Indígena‖ feita pelos próprios índios em seu cotidiano e ―Educação para

o Índio‖, em linhas gerais, seria uma educação não índia imposta sobre a cultura

indígena. Inicia-se então um movimento de criação de diferentes experiências

escolares indígenas e de formação de educadores.

Em relação à legislação educacional, em 1991, o Decreto Presidencial nº. 26

de 04/02/91, nos seus artigos 1º e 2º, determina que cabe ao Ministério da

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Educação ―coordenar as ações referentes à educação indígena‖ (BRASIL, 1991).

Tais ações serão ―desenvolvidas pelas Secretarias de Educação dos Estados e

Municípios em consonância com as Secretarias Nacionais de Educação do

Ministério da Educação‖ (Idem). Há assim um ―esvaziamento‖ da FUNAI, já que suas

atribuições passam a ser divididas por outros Ministérios. A passagem da educação

escolar indígena da FUNAI para o MEC com o decreto 26/91 potencializou as

possibilidades de concepção de uma política de educação escolar indígena, de

acordo não só com os novos preceitos constitucionais, mas também se apoiando em

experiências significativas de projetos pilotos desenvolvidos por entidades de apoio

aos índios e ao encontro das propostas e reivindicações formuladas no bojo de uma

nova faceta do movimento indígena.

O Governo Federal resolveu, após diversas reações contrárias, publicar a

Portaria Interministerial nº 559, de 16/04/91, e acatar grande parte das

reivindicações dos povos indígenas sobre educação escolar. A portaria regulamenta

a competência do MEC para coordenar as ações de educação indígena e tem como

objetivo: ―Garantir que as ações educacionais destinadas às populações indígenas

fundamentem-se no reconhecimento de suas organizações sociais, costumes,

línguas, crenças e nos seus processos próprios de transmissão do saber‖ (BRASIL,

1991a). No campo da educação, a Lei n. 9.394, de 20/12/96 – LDBEN – Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional, instituiu como dever do Estado a oferta de

uma educação escolar bilíngue e intercultural e uma legislação regulamentar – a

Resolução CEB nº.3, do CNE de 1999 – veio estabelecer diretrizes curriculares

nacionais e fixar normas para o reconhecimento e funcionamento das escolas

indígenas.

Entendemos que a municipalização e estadualização empreendidas na

década em especial após a promulgação da LDB em 1996, sem o devido

acompanhamento, fiscalização e apoio estratégico do MEC, tem produzido, na

realidade a pulverização das ações, enfraquecendo e até impedindo uma eficiência

maior na educação escolar indígena.

O que existe de mais sistematizado em linhas gerais sobre práticas e

discussões teóricas sobre a educação escolar indígena ainda é o RCNEI –

Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – divulgado em 1998 pelo

MEC com a atuação do Comitê Nacional de Educação Escolar Indígena do MEC,

como órgão consultivo das ações do Ministério, além das inúmeras publicações de

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livros didáticos financiadas pelo MEC. Todo esse quadro trouxe inevitavelmente um

grande estímulo à discussão sobre escolarização das aldeias, com inúmeros

projetos de capacitação de professores indígenas sendo realizados no país nos

últimos anos, com financiamento público e com a participação de Secretarias,

Universidades e ONGs.

Este período, em sua última fase, caracterizou-se também pela aceleração

dos processos de escolarização indígena nas aldeias e pelas criações nos estados,

dos chamados NEIs – Núcleos de Educação Indígena – espaços mais ampliados de

política pública em educação escolar Indígena.

Essa foi uma característica da reforma educacional empreendida pelo

Governo Federal nas duas últimas gestões do Ministro Paulo Renato de Souza: uma

descentralização centralizadora. As tarefas político pedagógicas, como elaboração

de currículos e controle sobre o sistema de avaliação, foram centralizadas no MEC,

enquanto as tarefas executivas e administrativas, onde se encontram os ônus, foram

descentralizadas ficando por conta dos estados e municípios.

Essa profunda reforma educacional, sob a orientação de organismos

internacionais como Banco Mundial, BID – Banco Interamericano de

Desenvolvimento, UNESCO etc. insere-se no contexto de ajuste macroeconômico e

redefinição do papel do Estado, que é regida pelo pressuposto da contenção do

gasto social público. Na prática, o MEC continua apoiando alguns cursos de

capacitação de professores e a produção de materiais didáticos, como vinha

fazendo no governo Fernando Henrique Cardoso.

Com a Lei 11.645/08 (que altera a Lei 10.639/03) institui-se a obrigatoriedade

do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena na educação

escolar. Se isto é assim, cabe perguntar: Quais os desafios e perspectivas para o

ensino da história e da cultura indígena? Os desafios vão desde a falta de

importância que é dada à minoria indígena, fato que é uma evidente herança cultural

do colonizador, até uma história indígena que esbarra na dificuldade que o

historiador tem de observar com um olhar de indígena, essa história que em geral é

feita por alguém que está ―fora‖ da realidade indígena ou simplesmente realiza

pesquisas com indígenas, porém, não vive a realidade do cotidiano indígena. Esse

distanciamento bloqueia o sentimento histórico vivenciado pelos indígenas e por

melhor que seja a intenção do historiador não pode ser fiel ao legado histórico-

cultural dos indígenas.

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O que propõe a lei com o ensino da história indígena na Educação Escolar é

o que podemos chamar de ―pseudo-história indígena‖, ou seja, uma história indígena

escrita na ótica do não indígena, visão gerada pela cultura dominante e

provavelmente por políticas indigenistas. Consideramos que esse seja um dos

principais problemas, apesar de que o próprio enunciado da Lei 11.645/08 ―...a

obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana, afro-brasileira e indígena na

educação escolar‖ em si, é carregado de pré-conceito e descaso com os nativos,

primeiros habitantes desta terra.

Na ocasião do ―Descobrimento do Brasil‖ em 1500, segundo dados do

IBGE, foi estimado entre 1,5 milhão e 5 milhões de índios, distribuídos em cerca de

1.400 aldeias, onde se falavam, aproximadamente, 1.300 línguas e dialetos

diferentes. Em termos comparativos, levando em consideração dados da Fundação

Nacional do Índio (FUNAI), extraídos do Censo 2010 do IBGE, existem atualmente

em território brasileiro, aproximadamente, 817.000 (oitocentos e dezessete mil)

índios, distribuídos em 688 (seiscentos e oitenta e oito) terras indígenas, falando

aproximadamente 180 (cento e oitenta) línguas e dialetos.

O que aconteceu com os indígenas, ou melhor, o que fizeram com eles?

Será que a figura imaginária do nativo na concepção do colonizador era uma

ameaça de tamanha proporção que tornava inviável seus interesses econômicos?

Será mesmo que o encontro de etnias tem que necessariamente ser um encontro

genocida? Analisando o que ocorreu com nossos indígenas e imaginando o que

seria possível se o ser humano apreendesse a ser mais humano, acredito no ensino

de história indígena que envolvesse temas de identidade cultural, atividades, mitos e

crenças, e as formas de relacionamento no cotidiano indígena. Partindo de uma

ótica do próprio índio, de sua cosmovisão, seria uma grande oportunidade de

conhecer um pouco mais os primeiros moradores dessa terra. Poderia ser uma

oportunidade para ensinar o que realmente ocorreu com os nativos. Não acredito

que isso redimisse o responsável pela dizimação indígena, mas seria uma

oportunidade para que a verdadeira história viesse à tona.

3.2 EDUCAÇÃO PARA ÍNDIOS, IMPLANTAÇÃO DA ESCOLA

Podemos perceber os Ticuna como um meio de sobrevivência, uma

estratégia de luta no cerne das relações sociais contraria o que Lévi-Strauss

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denomina de Cultura original, demonstram através de movimentos indígenas e do

contato na fronteira cultural, uma ligeira ressignificação de sua cultura com bases na

diversidade cultural da região onde convivem indígenas e pessoas do Peru,

Colômbia e Brasil. Além disso, têm contato permanente com a maior diversidade

cultural do Brasil, localizada no vale do rio javari. Atualemente é muito comum,

mistificações e práticas, na medida em que ―são falseadas‖, montadas, manipuladas

e manipuladoras, delineando, neste sentido, os que pensam poder resgatar um

mundo puro, originário ou que, pelo menos, lamentam ter perdido esse paraíso; e

aqueles que veem nos movimentos indígenas intenções outras, não muito inocentes.

Neste contexto, o modelo de escola observado nas Escolas Indígenas do Alto

Solimões não é um modelo indígena e sim, um modelo de escola não indígena,

apesar de os professores serem bilíngues, não deixa de ser uma escola nos moldes

não indígenas. Os problemas apontados em relação à deficiência na forma em que

são transmitidas as crenças e rituais na escola indígena podem estar relacionados a

vários aspectos que influenciam no desenvolvimento do processo de ensino

aprendizagem dos alunos.

Os rituais das tribos indígenas da Amazônia passam hoje por uma fase de rememoração bastante interessante no ponto de vista antropológico. Pela condição estabelecida no processo de colonização muito material foi perdido e outros foram incorporados em novos valores. Encontramos nas várias comunidades que estudamos muitos rituais perdidos no tempo real, outros que estão em fazer recuperação oral. (JUREMA, 2001, p. 69).

Dessa forma, temos visto que as primeiras experiências educacionais da

criança geralmente são proporcionadas pela família, no entanto, muitos pais não têm

plena consciência da importância de sua participação no repasse cultural para uma

possível sobrevivência da cultura. Muitos pais indígenas deixam seus filhos à mercê

da escola e seus destinos são traçados de forma omissa. O professor passa a

assumir uma enorme responsabilidade pela educação de seus alunos. E mesmo

assim, são para a maioria dos pais e mães, os responsáveis pelos maus resultados

obtidos por seus filhos, sem se darem conta de que deveriam ser os que mais

exercem influência na principal formação cultural e religiosa de seus filhos. Resta

dizer que a escola necessita ir além e ―preencher‖ a tão grande lacuna deixada pela

sociedade e legislação.

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Sabemos que ninguém escapa a educação, por isso o povo Ticuna com toda

certeza possui uma forma singular de educação. Vemos no livro ―o que é Educação‖,

a carta dos índios aos brancos que ofereciam à escola dos brancos a seus jovens

indígenas. Algo que nos chama atenção. Benjamin Franklin acabou divulgando a

Carta:

...Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa. Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virginia, que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos deles, homens. (BRANDÃO, 1995, p. 8-9)

Alguns indígenas idosos depositavam uma grande esperança no repasse

cultural, que seria promovido pela escola, através de pedagogias específicas para

uma aquisição da cultura Ticuna, porém estão presenciando enormes mudanças e

chegam a dizer: ―o mundo de hoje é outro mundo, é outra vida, e bem diferente do

que pensávamos e sonhávamos‖. Essa fala é de um dos entrevistados, nascido em

1944, que aos 68 anos, vê de perto as mudanças sociais em nome da ―melhoria‖ e

o preço a ser pago é sem duvida a perda de identidade em sua cultura, que

constantemente é conduzida a absorver inúmeros aspectos da cultura não índia, da

cultura peruana e da cultura colombiana.

Neste sentido, é preciso analisar repercussões de educação escolar no âmbito da progressiva dessacralização de importantes setores da vida cotidiana, produzida pela introdução de uma racionalidade caracterizada por disjunções entre o sagrado e o laico, o homem e seu deus, o homem e a natureza, a natureza e deus (WEIGEL, 2000 p. 36).

A educação mesmo nos moldes dos não indígenas pode contribuir

consideravelmente no processo de preservação cultural, é preciso, portanto de

envolvimento e comprometimento profissional por parte dos educadores. Segundo

Freire (1997), a educação inclui e vai além da noção de escolarização. ―A escola é

apenas um local importante no qual ocorre a educação, no qual homens e mulheres

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tanto produzem, como são produtos de relações sociais e pedagogias específicas‖.

(p. 48).

Para o autor, a educação como prática de liberdade, ao contrário daquela que

é prática de dominação, implica na negação do homem abstrato e isolado, solto,

desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade

ausente dos homens.

Neste sentido podemos descrever a aprendizagem como sendo um processo

de aquisição e assimilação, consciente de novos padrões e novas formas de

perceber, ser, pensar e agir, por meio dos quais o ensino e a aprendizagem possam

caminhar juntos, pois um influencia no desenvolvimento do outro.

Para Piletti (2003) ―Há uma relação intrínseca entre o ensino e a

aprendizagem não há ensino se não há aprendizagem, é necessário conhecer o

fenômeno sobre o qual, o ensino atua que é a aprendizagem‖. (p. 33)

O repasse cultural era feito através da oralidade, os responsáveis por essa

educação principalmente os pais, aproveitavam o momento em que se deslocavam

para a roça, durante o trajeto os conhecimentos culturais eram transmitidos de

acordo com as circunstâncias, quando pescavam ou estavam à espreita da caça, os

conhecimentos eram transmitidos de uma a outra geração. Todos esses fatores

estão diretamente ligados ao processo de ensino e aprendizagem cultural dos

alunos.

Em entrevista realizada na ocasião do meu Trabalho de Conclusão de Curso

– TCC (2009) – a membros do departamento de educação da FUNAI, o com o sr.

Francisco2, registrei um relato que reflete a realidade vivida por indígenas na tribo

Ticuna e no Brasil:

Eu hoje estou a cada dia me aperfeiçoando na educação dos civilizados, principalmente por questões econômicas, tenho que realizar constantes cursos de capacitação para que possa me manter no emprego que estou. Assim como eu existem centenas de irmãos Ticuna que estão esquecendo a sua educação e aprendendo a educação dos brancos. É a única saída para o sucesso profissional, se não for assim fica difícil e teremos que pescar e plantar roça.

Esta fala demonstra que a educação indígena é muito sábia e simples

conforme a tradição e não garante a sobrevivência em seu estado original, a menos

que lance mão de uma sabedoria que também é cultural, para sobrevivência e

2 Nome fictício para preservar a identidade do sujeito da pesquisa.

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inserção no meio não índio.

Os filhos acompanhavam os pais nas tarefas diárias, nas longas caçadas, no

plantio de suas roças, nas colheitas do roçado, na confecção das comidas e

bebidas, nas festas tradicionais, nas danças, na produção de artesanato. Assim,

aprendiam desde cedo a ser independentes e gostar do trabalho. Não nos referimos

aqui aos moldes do capitalismo atual, e sim, às relações onde não há espaço para

violências ou repreensões, aliadas ao sentimento coletivo de posse da terra, ao

sentimento de solidariedade, à vivência e experiência dos pais, avôs, tios. Eram,

dessa forma, conduzidos a uma educação cultural, natural e sadia de todas as

crianças e jovens nas comunidades Ticuna.

Esse modelo ―tradicional‖ de educação indígena não pode competir com a

esmagadora e influente cultura não índia. Os principais meios de influências são o

contato direto com o não índio (principalmente com fins lucrativos através do

comércio) e a programação televisiva. Existem diversos conhecimentos culturais

que poderiam, assim como na cultura tradicional Ticuna, ser ensinados pelos pais,

porém, a maioria dos jovens já influenciados pela civilização não índia tem mudado

seus hábitos no cotidiano. Isso causa a grande falta de comunicação entre as

gerações e por fim pode influenciar na perda de identidade cultural.

O modelo de educação implantado na aldeia Ticuna já demonstrou sua

fragilidade evidenciando que essa educação tida como educação indígena, pode até

ser bonita na teoria, mas apresenta ineficácia em sua aplicabilidade. Essa foi uma

constatação desta pesquisa, que também foi confirmada por diversas lideranças

indígenas e em discussões e palestras realizadas por ocasião da I Conferência

Regional do Alto Solimões e Javari, organizada pelo MEC em maio de 2009, da qual

tive o privilégio de participar.

3.3 A ESCOLA NA COMUNIDADE INDÍGENA DE UMARIAÇU I

Umariaçu I é uma comunidade indígena que fica próximo à cidade de

Tabatinga. A nação Ticuna, como já mencionado, é considerada como uma das

maiores no contingente de população indígena no território brasileiro, com uma

língua isolada na classificação linguística, utilizada por praticamente cem por cento

de seus indivíduos.

Hoje a Comunidade de Umariaçu I fica em terra firme próximo à margem do

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Rio Solimões. De acordo com informações de moradores antigos, a comunidade

antiga ficava em baixo, ou seja, na parte baixa do barranco, hoje coberta pelas

águas devido à grande queda no barranco.

Existe uma estrada que, segundo o professor José, foi aberta pelos próprios

índios da comunidade e depois de muito tempo foi terraplanada por máquinas da

prefeitura de Tabatinga, e consequentemente asfaltada, mas nunca foi realizada

uma operação tapa buraco, motivo pelo qual, na época das chuvas torna-se

impossível o trânsito de veículos na estrada. ―Esquecidos mesmos‖, diz o Sr.

Gaspar. A aldeia possui eletricidade, porém a iluminação pública é precária, as

lâmpadas queimadas raramente são substituídas. Não existe um sistema de esgoto

eficiente, o esgoto é a céu aberto, são as chamadas valas que na ocasião das

chuvas transbordam e causam grande risco à saúde, principalmente para as

crianças. Embora haja muitos projetos de saneamento, com verbas ―exclusivas‖, que

se perdem ao longo do caminho, as aldeias melhoram um pouco, mas o que tem

sido feito não atende às reais necessidades das comunidades indígenas. A maioria

das casas utiliza a famosa privada, construída a partir de um buraco na terra com

uma pequena casinha de madeira, coberta de folhas de zinco ou palha e em alguns

lugares existe só o buraco como mostra a figura 11, a seguir.

Figura 11 – Privada encontrada em comunidade indígena

Fonte: Arquivo pessoal - 2012.

Hoje em dia muitas casas na comunidade já possuem banheiro fechado com

vaso sanitário, mas ainda é possível esse tipo de privada. Essa prática culturalmente

era normal e comum nas comunidades Ticuna. Ali alguns depositam os resíduos

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fecais, e as varas geralmente tem duas finalidades: uma é para que não dê total

visibilidade às pessoas que a utilizam; a outra finalidade das varas é para evitar que

as galinhas, porcos e outras criações se alimentem dos dejetos.

3.3.1 A Situação da Escola

A escola foi fundada na administração do prefeito Oscar Gomes de Silva, ao

lado da então, Igreja da Cruz, que estava abandonada por seis anos na ocasião. A

escola era feita de madeira e havia apenas um galpão sem estrutura física para o

bom funcionamento de uma escola. Já na administração do Prefeito Raimundo

Nonato Batista de Souza a escola foi erguida em alvenaria, e assim permanece até

os dias de hoje, pois na administração atual, a escola conta com poucas melhorias,

incluindo apenas uma nova pintura. As figuras 12 e 13 demonstram a fachada da

escola.

Figura 12 – Escola o‘i Tchürüne Figura 13 – Fachada da Escola o‘i Tchürüne

Fonte: Arquivo pessoal – 2012 Fonte: Arquivo pessoal - 2012

A escola busca agilizar a institucionalização de um modelo diferenciado de

educação indígena, na medida em que conjuga os conteúdos programáticos

necessários para a prática de uma educação diferenciada com as exigências

técnicas (carga horária, profissionais qualificados, currículo e outras) definidas pela

legislação pertinente.

3.3.2 Pessoal, Instalações, Equipamentos Material Didático e Verbas que a Escola

Dispõe

As comunidades Ticunas da região são atendidas pela rede educacional dos

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municípios e, em algumas aldeias, por escolas mantidas pela FUNAI. A Escola

Municipal O’i Tchürüne conta com trinta funcionários e um voluntário em sua

operacionalização: um gestor, três secretárias, um auxiliar administrativo,

dezesseis professores, dez funcionários nos serviços gerais.

Dos 16 professores que lecionam na escola somente dois têm formação

superior, doze estão cursando e dois têm só o Magistério. Juntos fazem até o

impossível par conseguir lecionar na Escola Municipal O‘i Tchürune, tendo em vista

a falta de melhores recursos didáticos.

O material didático é cedido pela Secretaria de Educação. Geralmente não

faltam livros didáticos, porém na escola falta papel oficio, papel estêncil, lápis de cor,

e até mesmo apontador. A secretária e alguns funcionários, durante as aulas,

apontam os lápis das crianças com uma enorme faca de 14 polegadas (peixeira).

A escola é construída em alvenaria, possuindo seis salas de aula, uma

secretaria, um refeitório, uma cozinha, quatro banheiros, um depósito/despensa, um

poço semi-artesiano.

As salas de aula contêm aproximadamente quarenta e cinco cadeiras, um

quadro negro que não ajuda o trabalho do professor e janelas grandes que facilitam

a entrada de ar. As luminárias da escola estão em situação precária, as que

acendem não produzem uma iluminação adequada, o que torna a claridade fosca e

comprometida, dificultando tanto a ministração da aula por parte dos professores

como gera uma consequente debilidade no aprendizado dos alunos. Nas salas há

de cartazes educativos, mas em quantidades reduzidas.

A secretaria e diretoria ocupam o mesmo espaço físico, as quais são

utilizadas pelas pessoas que ocupam essas funções. Nesse ambiente há uma mesa,

prateleiras para os documentos de secretaria e algumas cadeiras. Há também um

cartaz contendo o quadro geral de alunos e professores. A escola possui um

banheiro feminino medindo 3x6m, um banheiro masculino medindo 3x3m e dois

banheiros para os professores, cada um medindo 3x1m.

O refeitório é composto por mesas de madeiras com bancos e um bebedouro.

A cozinha é um local pequeno dentro do refeitório que mede 3,5x3m possui um

fogão a gás, pia e utensílios necessários à elaboração da merenda escolar.

A escola dispõe de um corredor em forma de T, medindo 2,5x 16,5m por 2,5x

20m. O terreno da escola mede aproximadamente 35x25m. O depósito que possui

uma extensão de 3x4m, não possui prateleiras para guardar a merenda ficando

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assim exposta à ação do tempo, protegida apenas por um estrado de madeira, o que

pode substancialmente comprometer os valores nutricionais da merenda.

3.3.3 A População Alvo da Escola

A Escola Municipal O‘i Tchürune tem como população alvo os índios da

aldeia indígena que residem na comunidade de Umariaçu I, visando um

acompanhamento de perto para que os índios não estudem os primeiros anos de

suas vidas na escola dos ―brancos‖, o que poderia ocasionar perda de identidade

cultural. As crianças da comunidade estão todas matriculadas na escola.

3.3.4 O Currículo em Função da Necessidade dos Alunos

A elaboração de currículos e planos de aulas e sua apresentação à secretaria

da Educação da prefeitura local como propostas de educação indígena diferenciada

tem sido a base da luta para a conquista de reconhecimento dos professores e das

escolas indígenas. Na prática existe muita dificuldade para aplicação do ensino

diferenciado em disciplinas como geografia (que inclui o estudo da localização dos

limites das terras ticunas, por meio de mapas elaborados pelos professores) e de

certa forma vem se ampliando a conscientização em relação aos direitos sobre as

terras indígenas e, consequentemente, contribuindo para fortalecer a ação de defesa

desses direitos.

3.3.5 Projetos Desenvolvidos

As escolas nas aldeias Ticuna participam de um projeto de Educação Ticuna,

que começou a ser implementado em 1993, pela Organização dos Professores

Ticuna Bilíngües (OGPTB), junto aos professores Ticuna que atuam em 93 escolas

indígenas, distribuídas nas Aldeias Ticuna situadas na Região do Alto Solimões.

O ensino da cultura de forma oral apresentado pelos idosos segundo os

professores indígenas, está servindo para estimular o interesse dos jovens sobre a

cultura Ticuna e oferecer um acervo de conceitos sobre o universo Ticuna, por meio

de palavras e frases que, submetidas ao longo do tempo às pressões da sociedade

envolvente e às transformações históricas das aldeias, quase desapareceram. As

narrações dos idosos passaram a constituir uma fonte de conhecimento para os

professores sobre os significados contidos na língua Ticuna. Centenas de vocábulos

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já foram registrados e podem, no futuro, resultar em obras de apoio ao Projeto

desenvolvido pela escola que tem como objetivo geral o resgatar as origens da

cultura Ticuna na forma de gramáticas e dicionários. ―É preciso publicar, porque

quando os mais velhos morrerem, não teremos mais como resgatar essas histórias‖,

alerta o professor Reinaldo Otaviano do Carmo.

O impacto sobre a cidadania, os aspectos inovadores no interior das aldeias,

as ações de conscientização sobre doenças sexualmente transmissíveis (DST), bem

como, os debates sobre questões ambientais, políticas públicas e direitos indígenas,

realizados no âmbito desse projeto, estão estreitando as relações entre as

comunidades e as escolas. Tais atividades têm impacto direto no entendimento das

comunidades sobre o que vem a ser o exercício da cidadania.

O fato de o projeto ser proposto e executado por uma organização indígena,

no caso a OGPTB, representa uma inovação, sobretudo porque a formação está

associada à luta pelo reconhecimento da educação indígena diferenciada, bandeira

dos povos e organizações indígenas em toda a Amazônia.

3.3.6 Conselho Escolar

O Conselho de pais e mestres foi formado na escola, mais dificilmente se

reúne para uma conversa sistêmica. Existe praticamente só no papel. Não

obtivemos mais informações a respeito do conselho escolar.

3.3.7 A Situação da Merenda

A merenda escolar sempre é oferecida aos alunos indígenas, tendo em vista

a falta de opção no cardápio indígena que em geral é o peixe e a farinha. É possível

notar uma ―certa‖ preocupação em garantir uma merenda da forma mais balanceada

e ―rica‖ em vitaminas. O cardápio da merenda escolar geralmente conta com: aveia,

charque, macarrão, bolacha, feijão, arroz, açúcar, leite, óleo, sal, carne moída,

frango, canjica (segundo uma das merendeiras as crianças não gostam), suco,

farinha de mandioca. Também notamos que a merenda escolar deveria ser mais

enriquecida em legumes e hortaliças regionais, para que os alunos tenham uma

nutrição mais balanceada e diversificada em seus condimentos e temperos. Para

que fosse possível elaboramos e implantamos um projeto de intervenção na escola

Municipal O‘i Tchürune cujo objetivo foi apresentar a horta escolar como um

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instrumento de desenvolvimento da educação ambiental de forma interdisciplinar e

vivenciada proporcionando noções básicas de técnicas agrícolas para o cultivo de

uma horta escolar. As figuras 14, 15 e 16 demonstram o trabalho com a horta

escolar.

Figura 14 – Adubando a horta escolar

Fonte: Arquivo pessoal - 2012 Figura 15 – Plantação de hortaliças na escola

Fonte: Arquivo pessoal – 2012

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Figura 16 – Plantação de hortaliças na escola

Fonte: Arquivo pessoal - 2012

Conseguimos construir uma horta com a ajuda dos alunos da 3ª e 4ª séries

daquela escola. A finalidade era capacitar a comunidade escolar para atuar na

melhoria da sua qualidade de vida com a implantação do projeto da horta no

contexto escolar. Oportunizamos a participação de alunos e professores no processo

assegurando oportunidades e recursos igualitários para que as pessoas

desenvolvam completamente seu potencial de cultivo. O projeto de intervenção

contribuiu substancialmente com o processo de ensino aprendizagem de forma

interdisciplinar, aprendendo a partir do concreto e palpável, visando uma melhor

compreensão da interação do indivíduo com o meio ambiente e consequente

valorização do conhecimento no cultivo de hortaliças necessárias à comunidade

escolar. Neste sentido, elaboramos o projeto que foi destinado à Escola municipal

O’t Thürune na Comunidade de Umariaçu I, como exigência da disciplina de

Educação Ambiental.

O projeto foi realizado mediante a utilização de procedimentos que

possibilitaram o cultivo de uma horta escolar. Foram discutidos aspectos que

evocaram nos alunos da Escola O’t Thürune, a necessidade de desenvolver

técnicas agrícolas que viabilizassem o enriquecimento nutricional da merenda

escolar de forma balanceada, rica em nutrientes e vitaminas para um melhor

desenvolvimento físico e psíquico dos alunos. Realizamos palestras com a

finalidade de proporcionar mudanças de postura por parte dos alunos em relação ao

cultivo agrícola. Foram analisadas as condições do solo para a implantação da horta,

foi escolhido o melhor local e implantada a horta, que foi possível também através

de certo conhecimento da cultura indígena. Contamos com o apoio de funcionários

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do CETAM e do IDAM, para a aquisição de sementes e orientações diversas.

Plantamos alguns pés de coqueiro, como pode ser visto na figura 17, com a

finalidade de melhorar a paisagem da escola, produção de frutos e também para

garantir um pouco de sombra para os alunos.

Figura 17 – Plantação de coqueiros na escola

Fonte: Arquivo pessoal – 2012

Apesar de alguns avanços a escola indígena necessita de um olhar mais

comprometido para que possa atingir o objetivo de educar para a vida, mas também

garantir a preservação cultural.

3.3.8 Deficiências Detectadas na Escola

As crianças não possuem material escolar suficiente, geralmente pela falta de

recursos dos pais indígenas. Muitas vezes o que recebem não dá para sustentar a

enorme quantidade de filhos que possuem. Faltam itens básicos como lápis, caderno

e até apontador.

A Escola Municipal O’t Thürune, possui poucos cartazes educativos, o que

dificulta o aprendizado das crianças, as quais em geral, têm o ânimo elevado e a

adrenalina à flor da pele, o que dificulta um pouco o trabalho do professor. Poucos

realmente são os que prestam atenção nas aulas de Língua Portuguesa, segundo

relato de alguns professores.

Não encontramos na escola uma horta escolar para enriquecer a merenda,

muitas crianças vão para escola sem se alimentar e a principal refeição que contam

em sua alimentação diária é a merenda escolar.

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A escola não tem estrutura para realizar aulas Educação Física para as

crianças; os ventiladores foram retirados para concerto e nunca mais voltaram aos

seus devidos lugares. Falta arborização na escola. Tais aspectos permitem afirmar

que as Crianças da Escola O’t Thürune necessitam de uma atenção especial por

parte da Secretaria de Educação.

3.3.9 Etno Educação Indígena

A educação indígena tem sido amplamente questionada tanto por indígenas

como pelo Ministério da Educação e Cultura, e diversas medidas estão sendo

tomadas para que providenciem melhorias na qualidade da educação indígena e

que ela seja pensada mediante a realidade local e não, no âmbito nacional, como

vinha sendo elaborada. Em setembro de 2009, ocorreu uma Conferência Nacional

sobre Educação Indígena em Brasília.

Considerando a legislação e as diretrizes da política de educação escolar indígena, como política democrática, a ser amplamente debatida em conjunto com os povos indígenas, órgãos gestores da educação nos estados e municípios, instituições indigenistas, universidades, instituições científicas relacionadas à temática indígena e todas as outras instituições comprometidas com as garantias plenas de direitos indígenas, resolve: Art. 1º Fica convocada a Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, a realizar-se em outubro de 2009, sob a coordenação do Ministério da Educação, com o objetivo de analisar em profundidade a oferta da educação escolar indígena e propor diretrizes que possibilitem o seu avanço em qualidade e efetividade. Parágrafo único. A Conferência Nacional será realizada pelo Ministério da Educação em conjunto com os representantes dos povos indígenas, com o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação - CONSED, com a União dos Dirigentes Municipais de Educação - UNDIME e com as demais instituições governamentais e não governamentais que atuam diretamente na oferta de educação escolar junto aos povos indígenas. (I CONEEI - I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, 2009).

Diversas políticas de controle têm travado o processo educacional indígena. É

importante saber dos próprios indígenas qual é a melhor forma de educação que

eles necessitam, ou melhor, é bom que os próprios indígenas participem da

elaboração de um novo projeto educacional para povos indígenas no Brasil.

Os primeiros contatos com branco trouxeram para a aldeia a educação-

escolar, que tem aspectos positivos e negativos. Porém a ―culpa‖ pela deficiência na

transmissão cultural não pode jamais se atribuída à escola, haja vista que, o modelo

implantado na aldeia não é um modelo propriamente indígena. Acreditamos que a

deficiência está mais relacionada ao processo de assimilação da cultura não índia.

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Os Ticuna estão cercados por uma cultura predominante e que

aparentemente torna a vida mais fácil, fato que tem gerado a aculturação, que é a

perda de identidade própria para assumir uma nova identidade cultural. Desse

pensamento surgem as divergências no próprio meio Ticuna quanto à educação

indígena. Nesse contexto, podemos destacar duas correntes: uma considera que é

importante estudar os mitos, preservar a cultura através de um ensino bilíngue.

Outra acredita que é perda de tempo estudar os mitos e aspectos culturais, pois

acham que enquanto estão estudando tais aspectos, os não índios estão se

preparando para o vestibular. Os Ticuna comentam ainda que a escola indígena não

prepara seus alunos de forma adequada, acham que não são preparados do mesmo

modo que os não índios, e isso, segundo essa corrente, gera a discriminação de sua

etnia e até chegam a mostrar as estatísticas que poucos indígenas conseguem

ingressar na faculdade se não houver um programa de formação diferenciado.

Um dos fatores motivadores pode ser o entendimento de que até os não

índios estudam os mitos em suas culturas: o Saci Pererê, a Caipora e outros. Os

mitos podem ser ensinados de forma interdisciplinar. A escola que está na aldeia

pode fazer a diferença, se todos os envolvidos no processo educacional estiverem

pensando coletivamente.

Muitos aspectos importantíssimos relacionados à cultura Ticuna foram

deixados do lado de fora da escola, e após analisarmos determinados fatores,

podemos entender que a educação, tal como a conhecemos, reproduz e consagra a

desigualdade social; o sistema capitalista que gera a educação bancária ―educação

do opressor‖ que com tanta veemência foi criticado por Paulo Freire, continua bem

vivo e perto de nós. Brandão (1995, p.100) ressalta que ―é preciso acreditar que,

antes, determinados tipos de homens criam determinados tipos de educação, para

que, depois ela recrie determinados tipos de homens‖.

A escola deveria buscar alternativas em uma educação que fosse apropriada

para a sobrevivência da cultura Ticuna. Segundo Comênio (1976, p.104) ―não é

necessário consequentemente introduzir nada no homem a partir do exterior, mas

apenas fazer germinar as coisas das quais ele contém os germens em si mesmo e

fazer-lhe ver qual a sua natureza‖.

As crenças Ticuna estão tornando-se obsoletas em meio aos estudantes,

portanto, faz-se necessário, um resgate da cultura e, sobretudo partindo da escola

indígena para que esta nação ―diferente‖ não venha ser mais uma, tragada pelo

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―monstro da superioridade cultural‖. Devemos pelo menos tentar uma tomada de

consciência e possível resgate de identidade cultural. Como afirma Freire (1977):

―Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em

comunhão‖. (p. 27). Com o empenho da comunidade Ticuna e o respaldo de

autoridades brasileiras, na elaboração de políticas que viabilizem a libertação do

indígena, não de suas origens, mas libertação no sentido de não serem

escravizados por uma cultura dominante que constantemente faz com que sintam-se

inferiorizados.

3.4 EDUCAÇÃO INDÍGENA: APRENDIZAGEM TICUNA

É importante mencionar que a educação Ticuna em sua origem é de

responsabilidade principalmente dos pais e parentes mais próximos. Essa educação

defendida pelos antigos é uma educação para a vida e garante a perpetuação

cultural da nação Ticuna. Ela era ensinada de forma oral, principalmente antes de

dormir, a caminho da roça, quando estavam à procura da caça, quando estavam

pescando ou em outras situações favoráveis ao repasse cultural entre gerações.

Esses momentos eram aproveitados pelos mais antigos que ensinavam a cultura

através de histórias, mitos e lendas. Com a evolução da nação Ticuna, tornou-se

necessário uma educação que contemplasse o cotidiano e valorizasse a cultura

Ticuna como um todo.

Todo povo que atinge um certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual. Com a mudança das coisas, mudam os indivíduos; o tipo permanece o mesmo. Homens e animais, na sua qualidade de seres físicos, consolidam a sua espécie pela procriação natural. Só o Homem, porém, consegue conservar e propagar a sua forma de existência social e espiritual por meio das forças pelas quais a criou, quer dizer, por meio da vontade consciente e da razão, O seu desenvolvimento ganha por elas um certo jogo livre de que carece o resto dos seres vivos, se pusermos de parte a hipótese de transformações pré-históricas das espécies e nos ativermos ao mundo da experiência dada. (JAEGER, 2001, p.3).

Fica claro que o modelo educacional implantado na aldeia, não é um modelo

que atende os anseios culturais da etnia Ticuna, mesmo com as políticas públicas

voltadas para Educação Escolar Indígena, nos últimos vinte anos, formuladas a

partir da promulgação da Constituição Federal que legitimou novos paradigmas para

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as relações entre Estado brasileiro e povos indígenas, pautados pelo

reconhecimento, valorização e manutenção da sociodiversidade indígena. Não

atingimos aquela educação ideal para os Ticuna. Um dos entrevistados falou que o

que sonhavam ―naquele tempo era outra vida por que era muito difícil se viver como

hoje, é muito difícil (diferente) do que a gente sonhava sobre o que poderia

acontecer no futuro‖. O entrevistado, nas entrelinhas, deixa claro que hoje não é o

que sonhava alguns anos atrás; a vida hoje é diferente e difícil para ele que viveu

em outra realidade e sonhava com uma educação que ajudasse na preservação de

suas tradições. O que ele tem observado é que o sistema de ensino não tem uma

preocupação com a preservação, e dia após dia há uma preparação para a

integração na sociedade não índia.

Os sistemas de ensino ao implementarem políticas diferenciadas na

educação indígena, e com o movimento social indígena e indigenista, emergente a

partir década de 1970 dá origem ao conceito de educação escolar indígena como

direito, caracterizada pela afirmação das identidades étnicas, pela recuperação das

memórias históricas, pela valorização das línguas e conhecimentos dos povos

indígenas, pela vital associação entre escola/sociedade/identidade, em consonância

com os projetos societários definidos autonomamente por cada povo indígena.

No cotidiano dos professores, das lideranças e das pessoas que se tornam

aliados, para uma possível ressignificação da instituição escola, que foi modelada

historicamente pela negação da diversidade sociocultural, tentam transformá-la em

um espaço de construção de relações interétnicas orientadas para a manutenção da

pluralidade cultural, pelo reconhecimento de diferentes concepções pedagógicas e

pela afirmação dos povos indígenas como sujeitos de direitos. Surgiram as diretrizes

político-pedagógicas da interculturalidade, do bilingüismo/multilinguismo, da

diferenciação, da especificidade e da participação comunitária, formando consensos

sobre como seria uma educação escolar protagonizada pelos povos indígenas e

associada a seus próprios projetos societários.

Devemos admitir a impossibilidade de se definir com nitidez a real política de

Educação Indígena colocada atualmente em prática. Se ao longo da história do país,

ela sempre andou ao lado da religião e das doutrinas humanitárias e positivistas,

que nortearam a formulação da política indigenista brasileira, hoje, com as

conquistas alcançadas na última Constituição referente aos direitos indígenas,

parece haver um jogo de forças contraditórias entre as posições progressistas

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garantidas na lei e a efetiva consecução desses princípios.

Existe uma evidente tensão, não resolvida e talvez irresolvível, entre

princípios que afirmam a pluralidade cultural e linguística, e que exortam não só o

respeito, bem como a alimentação dessa pluralidade e uma visão sedimentada por

uma longa história, que legitima e consolida práticas em todos os níveis, que

corroboram e alimentam a homogeneização e a hegemonia de uma cultura e de uma

língua — "as nacionais". Até os anos 1970, podemos identificar um projeto claro,

explícito e pragmático que norteou a Educação Indígena no Brasil: catequese e

socialização para a assimilação dos índios na sociedade brasileira, uma vez que a

tradição indigenista pautava-se no estímulo a formas sociais e econômicas que

geravam dependência e subordinação da terra e do trabalho indígena a uma lógica

de acumulação.

O lema era integrar, civilizar o índio, concebido como um estrato social

submetido a uma condição étnica inferior, quando vistos nos moldes da cultura

ocidental cristã. Isto se confirma quando os órgãos oficiais de tutela, o Serviço de

Proteção ao Índio (SPI) e depois a Fundação Nacional do Índio (FUNAI),

estabeleceram convênios com instituições religiosas de diferentes credos, para que

elas se incumbissem de implantar o trabalho escolar dentro das aldeias. O Estado

tutor jamais se preocupou em colocar em prática uma política de educação

específica para o indígena que não fosse a voltada para a integração. Antropólogos

e linguistas eram chamados para dar pareceres sobre os convênios estabelecidos

com as instituições religiosas, mas não para idealizar e realizar uma proposta de

Educação Escolar Indígena.

A partir dos anos 1980, ocorreu uma mudança neste quadro, mas foi instalada

certa ambiguidade nas formas de se traçar e implantar uma política de Educação

Indígena. Ambigüidade, não por haver uma revolução nas práticas que deveriam

conduzir os rumos da Educação Indígena, mas sim, uma grande transformação nas

concepções que vão nortear o convívio do Estado brasileiro com sua realidade

indígena. Os anos 1980 foram o marco na afirmação dos movimentos indígenas

organizados no Brasil, motivados também pelo caminho construído pelas

organizações civis de apoio ao índio para a conquista dos seus direitos formais,

garantidos em lei, via Constituição. Foi, então, o início de uma mobilização dos

próprios indígenas para conquistas políticas que vinham sendo lançadas na arena

de um país que sempre se orgulhou de sua democracia racial e uniformidade

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linguística. O entrevistado P.I.P, que foi Cacique Ticuna por mais de 30 anos,

vivenciou esse momento de mudança e afirmação do povo Ticuna, lutando junto

com outros indígenas na linha de frente para garantir os direitos previstos em lei.

Depois de 1984, 1985, comecei a fazer viagens para fora para a 1ª assembleia Geral dos Povos indígenas sobre o direito do seu território, viajei para São Paulo. Fiquei hospedado perto do campo de futebol Pacaembu, por ali fiquei naquele tempo hospedado, não só eu mais cento e poucos indígenas que estavam participando da primeira assembleia dos povos indígenas sobre o direito. Desde esse tempo que faço grandes trabalhos, fui viajar para o Rio de Janeiro, e vários Estados. Depois de muito tempo já depois de 1995, eu fiz uma longa viagem já para fora do país, fui para Bélgica, Bruxelas na Europa. Fiz varias Viagens sobre as questões de terra para serem demarcadas, como aconteceu que já foi demarcada a terra para o povo indígena, por que naquele tempo o povo indígena não tinha direito de viver como hoje, tranquilo e em paz. Isso que aconteceu só Deus que me deu permissão, eu fui à Áustria para a conferência mundial indígena, e o prefeito de lá o Sidaco que me convidou para assinar um convenio com a nossa organização CGTP, para consegui a verba, esse dinheiro para demarcação das terras não foi dado por brasileiros, senão um dinheiro de fora austríaco, então isso tudo eu fiz esse trabalho naquele tempo de 1993 á 2000. Não só pela terra, mas também pela Educação, Saúde. Todo esse trabalho eu com segui com grande sacrifício. Depois da demarcação das terras aconteceu um grande massacre, em 28 de março de 1988 no Capacete, onde teve a matança do povo indígena por causa da terra, o proprietário da terra disse “que poderia sair só depois que matasse o povo indígena, o lucro das terras que ele tinha perdido” então isso aconteceu. (Entrevistado P.I.P, Liderança Ticuna, 2012 ).

O entrevistado P.I.P, fala sobre as conquistas indígenas com grande

satisfação, mas e ao mesmo tempo notamos sua indignação pelas barreiras

impostas das mais variadas formas para que seus direitos previstos em lei sejam

obedecidos. Os Ticuna organizaram representações que procuram constantemente

dar voz a um povo que por muitos anos não teve voz.

O povo Ticuna possui representações de sociedade civil organizada, ou seja,

associações instituídas nos termos do Código Civil brasileiro. Não são as únicas e

nem as mais importantes entidades de representação das sociedades indígenas,

mas nos últimos 15 anos emergiram como nova categoria de representação das

comunidades, atuando como foro de aglutinação das mais diferentes representações

tradicionais ou não.

O caso do Alto Solimões é particularmente significativo à representação

especializada de atores comunitários de ofícios como representação do complexo de

tribos e seus líderes CGTT, representantes na educação OGPTB e na saúde

OSPTAS. Tais associações podem assumir a expressão de representação do

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complexo de tribos e seus líderes.

A Educação Indígena acabou tendo como referência o sistema formal,

institucionalizado na e pela sociedade não indígena, baseada no letramento e na

escola. Consideramos, então, que tudo o que se formulou e executou até agora é

mais Educação Escolar Indígena do que Educação Indígena propriamente dita,

entendida esta última, como sendo o conjunto dos processos de socialização e de

transmissão de conhecimentos próprios e internos a cada cultura indígena. Já na

aprendizagem tradicional de Cultura Ticuna, a educação para a vida perpassa pelos

mitos e crenças animistas e tabus.

Para que possamos compreender a riqueza da educação mítica dos Ticuna

faz-se necessário uma compreensão mais profunda do que realmente sejam os

mitos. Para tanto, recorremos à etnologia da palavra mito que tem raízes do grego,

múthos, que indica qualquer ideia expressa somente por palavra oral. Assim, um

mito é algo sobre as pessoas de determinada cultura, mas sem base direta na

realidade. Está em foco algum assunto de conversa, alguma estória, alguma fábula.

De fato, no grego, o verbo “muthe’o” significa contar, ―narrar uma ficção‖. Uma

definição do léxico grego pode elucidar melhor essa questão: uma estória,

apresentada como história relacionada a tradições cosmológicas e sobrenaturais de

um povo, com seus deuses, sua cultura, seus heróis, suas crenças religiosas, etc.

Um mito é uma ficção popular, contada como se fosse uma história real. A origem da

nação Ticuna é ponto passivo entre eles, acredita-se que Yo‘i e Ipi foram os deuses

responsáveis pelo aparecimento das pessoas, como mostra a figura 18, a seguir.

Figura 18 – Pintura dos deuses Yo‘i e Ipi

Fonte: Arquivo pessoal - 2012

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Os Ticuna originalmente possuem diversas histórias míticas que são

―contadas‖ (mesmo não sendo com a mesma motivação dos antigos) aos jovens e

às crianças. Elas servem para ilustrar a vida na floresta, o dever de respeitar a

floresta, os saberes necessários de como proceder em relação à caça, à pesca e

também quanto à extração de produtos e derrubada da floresta, sob pena de

castigo ou de maldição com feitiço se houver desperdício ou prejuízo para a

natureza.

Os mitos eram utilizados para facilitar as relações entre parentes indígenas,

proporcionar um respeito mútuo entre os filhos, os pais, os pajés, o cacique e os

idosos da tribo. Também eram um mecanismo usado para proporcionar segurança,

autoconfiança e sentimento de proteção, dando coragem aos membros da tribo

Ticuna frente aos inimigos, ou ainda para facilitar nas relações com membros de

outras etnias, e até mesmo para educá-los na forma de proceder à frente do homem

―branco‖. Essa cosmo visão expressada através de mitos tem revelado como é

importante o ensino da manutenção via escola indígena, desse aspecto cultural que

tem se tornado obsoleto entre muitos povos indígenas.

Os Ticuna acreditam que quando olhamos a floresta, aparentemente vemos

tudo parado, mas por dentro é diferente, a floresta está em constante movimento e

tem espírito próprio, tem vida, sendo que ela pode até castigar quem a desrespeitar.

A árvore do jenipapo está presente até no mito da origem das pessoas. Para eles

essa explicação é fundamental para o conhecimento da criação do ser humano. Os

deuses Yo‘i e Ipi, e a mulher que apareceu do caroço do umari foram os principais

atores no aparecimento das pessoas.

As crenças Ticuna tornam-se ricas em diversos aspectos: acreditam que o

jenipapo é indispensável em sua cultura, pois, o ato de se pintar com o jenipapo,

protege a vida das pessoas contra diversos espíritos, males, doenças e pode até

fechar o corpo dos recém-nascidos.

O jenipapo e a origem das pessoas Tetchi arü Ngu‘i era mulher de Yo‘i, mas ficou gestante de Ipi. Yo‘i não gostou disso e resolveu castigar o irmão. Assim que a criança nasceu, Yo‘i mandou Ipi buscar jenipapo, e, para pintar o menino. Quando Ipi subiu na árvore, ela começou a crescer, crescer, quase alcançando o céu. Ipi sofreu muito, mas por fim conseguiu apanhar uma fruta. Desceu da árvore transformado em tucandeira, trazendo o jenipapo na boca, Yo‘i mandou Ipi ralar a fruta sem parar. Ele ralou, ralou, ralou, até que ralou seu próprio corpo. Tetchi arü Ngu‘i pegou o sumo do jenipapo e pintou o filho. Depois jogou a borra no igarapé Eware. A borra do jenipapo desceu pela água e foi parar num lugar com muito ouro. Depois

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tornou a subir, já transformada em peixinhos, numa grande piracema. Quando a piracema passou, Yo‘i fez um caniço e foi pescar, usando caroço de tucumã maduro, Mas os peixes, quando caíam na terra, viravam animais: queixada, anta, veado, caititu e muitos outros. Aí Yo‘i usou isca de macaxeira, e com essa isca os peixinhos se transformavam em gente. Yo‘i aproveitou e pescou muita gente. Mas seu irmão não estava entre essas pessoas. Yo‘i, então, entregou o caniço para Tetchi arü Ngu‘i e ela conseguiu fisgar um peixinho que tinha uma mancha de ouro na testa. Era o Ipi. Ipi saltou em terra, pegou o caniço e pescou os peruanos e outros povos. Esse pessoal foi embora com Ipi para o lado onde o sol se põe. Da gente pescada por Yo‘i descendem os Ticuna e também outros povos que rumaram para o lado onde o sol nasce, inclusive os brancos e os negros (GRUBER, 1997, p. 18).

Em todas as culturas pessoas necessitam explicar de alguma forma como

surgiram, por quê, de onde vieram e para onde vão. Segundo Champlim (1991) é

uma necessidade essencialmente humana onde as perguntas e dúvidas geradas, é

que impulsionam o homem a procurar, de alguma forma, as respostas para sua

indagações.

Na cultura Ticuna, quando uma criança nasce, seu corpo é pintado de

preferência pelos avôs e quando já está um pouco maior, pintam-se novamente

durante as festas. As meninas quando têm a primeira menstruação, ―ficam moças‖ é

necessário uma pintura com o jenipapo e uma festa de inicialização chamada festa

da ―moça nova‖. Essa festa foi descrita no livro das Árvores, organizado por Gruber

(1997), com riqueza de detalhes:

Quando uma menina fica moça, deve permanecer isolada, em uma casa dentro do mosquiteiro, em contato apenas com a mãe ou a tia. Enquanto a família prepara as bebidas e os moqueados, a moça aprende a fazer fios de tucum e a tecer bolsas. Depois de uns meses, quando já está tudo pronto, a festa pode começar. É uma festa sagrada, que Yo‘i criou e deixou no mundo para o povo Ticuna nunca esquecer suas tradições. A cerimônia dura três dias e é muito bonita. Tem danças e cantos. Tem o som das flautas e tambores. Tem a apresentação das máscaras. Tem caiçuma e pajauaru. Tem muita alegria.[...] Nessa mesma festa, as crianças são pintadas e têm seus cabelos cortados. Quando o sol começa a nascer, os parentes passam o sumo do jenipapo no corpo da moça e das crianças. Antes de colocar os enfeites, o corpo da moça e das crianças é pintado com uma mistura de urucu e leite da árvore do tururi-vermelho. Sobre essa pintura são colocadas penugens brancas de pássaros. A armação do cocar, o manto e os enfeites dos braços da moça e das crianças são preparados com entrecasca branca, tirada de uma árvore especial: naitchi. Essas entrecascas usam somente na festa. (p. 84-86).

O entrevistado J.G.F, fala sobre a importância da festa da moça nova e

explica como era realizada. Os indígenas se comunicavam através de sons e era

diferente de hoje, mas conseguiam se comunicar somente descendo rio abaixo de

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canoa, sem parar na beira do rio. O instrumento usado era a aricana.

A festa tradicional, a festa da moça nova era outro tipo de som, usavam o aricana que era feito da casca de uma madeira, eles tiram a casca e vão enrolando e fazem um tubo bem grande com a boca bem grande e a ponta bem fina para eles buzinar, isso é outro tipo de comunicação, eles não precisam vim aqui e dizer tão dia tem a festa da moça nova, um trabalho, eles baixavam com a canoa e buzinavam e todos ouviam, sabia que em tal maloca, estava acontecendo alguma coisa. Não era qualquer pessoa que podia tocar só quem era preparado para tocar, por que na nossa tradição indígena, a aricana tem um símbolo que só a pessoa escolhido podia tocar, os idosos escolhiam as pessoas e preparavam, nessas festas que juntam muitas pessoas que naquela época agüentavam uma semana tomando pajauaru, comendo carne assada, banana assada, durante essa festa eles preparavam a pessoa, quando chegava à época da festa a pessoa tocava, em todas maloca tinha um escolhido. Quando iam fazer a festa era a pessoa que saia, dois remavam e a pessoa só escolhida tocava. Não tinha motor naquela época, era só no remo. (Entrevistado J.G.F, 2012).

Os Ticuna acreditam que no princípio era tudo escuro, por conta de uma

enorme samaumeira que cobria a terra, quando os seus principais deuses Yo‘i e Ipi,

juntamente com todos os animais da floresta decidiram derrubar a samaumeira,

finalmente ela caiu. Seu tronco deu origem ao Grande Rio, Rio Solimões e através

de seus galhos originaram-se os igarapés e lagos. Outra crença importante é a da a

moça do umari:

Quando a samaumeira caiu, ficou ainda o toco, que na língua Ticuna se chama napüne. É a parte que fica na terra quando alguma árvore é derrubada. No toco da samaumeira as folhas continuavam brotando. Isso preocupou Yo‘i e Ipi, pois a árvore poderia crescer de novo. Colocaram sobre o toco um jabuti enorme para que ele comesse as folhas. Mas o jabuti não dava conta, porque as folhas cresciam sem parar. Então, os irmãos chegaram bem perto e puderam escutar o coração da samaumeira: tou, tou, tou! Ele ainda estava vivo. Ipi tentou tirá-lo com o machado, mas o coração pulou bem longe. Uma borboleta pegou o coração, depois o calango e por fim ele foi parar com a cutia. A cutia saiu correndo e plantou o caroço do coração. Yo‘i foi atrás, procurou, procurou e acabou encontrando o caroço. Levou, então, para plantá-lo no seu terreno. Depois de um tempo, nasceu uma árvore de umari, tetchi. Assim surgiu o umari: do coração da samaumeira. A árvore botou folhas, flores e frutos. As folhas pequenas, quando caíam no chão, viravam sapos pequenos. As folhas grandes viravam sapos grandes. As frutas também começaram a cair. A última delas se transformou numa moça muito bonita, que se chamou Tetchi arü Ngu‘i: ―a última fruta do umari‖. Yo‘i levou a moça para ser sua mulher. Essa é a explicação Ticuna para o aparecimento da primeira mulher. (GRUBER, 1997, p. 16).

Na história mítica a filosofia proporcionou certas modificações no modo de

expressar as idéias, de forma que o mitológico cedeu lugar a uma abordagem

racional de realidade. Em seguida apareceu a abordagem científica, com a sua base

empírica. Mas, quando surgiu a ciência, os mitos já haviam sido confinados às

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estórias da literatura de ficção, embora permaneçam ativos em muitos sistemas

religiosos do mundo. Hoje não são tão valorizados, embora sejam uma ótima

ferramenta para manutenção de elementos da cultura de um povo.

Os mitos sempre serviram de forças impulsionadoras de atos humanos. Mitos

sobre deuses que galardoam e castigam têm encorajado os homens a adotarem

atitudes particulares e a agirem de determinadas maneiras.

Poderíamos mesmo dizer que os mitos são histórias impulsionadoras, relatos

cujo intuito é o de levar os homens à ação, e não de se consistirem meramente em

narrativas divertidas. Os mitos também são histórias explicativas, que tentam

explanar coisas sobre as quais os homens mostram curiosidade, embora não

disponham de meios para investigá-las ou comprová-las de forma cientifica.

Naturalmente, os relatos míticos são inventados como se fossem verdadeiros,

esperando-se que os homens creiam nos mesmos.

Segundo Champlim (1991) entendemos que grandes sistemas religiosos têm

sido essencialmente mitológicos, embora sistemas inventados pela imaginação

humana têm sido levados a sério.

Desde os tempos de Platão, os filósofos precisavam ter extremo cuidado com o que diziam a respeito dos mitos encontrados nos escritos de Homero, mitos esses que se tornaram a base de religiões populares, politeístas. E isso porque negar os mitos sobre os deuses era, para os gregos, o que é hoje negar a Bíblia para os evangélicos fundamentalistas. Os escritos de Homero eram uma bíblia para os gregos, e todos eles pensavam que Homero não podia ter-se enganado. Em certo sentido, os mitos são buscas pela verdade, posto que mal-orientadas. Muitos mitos contêm um certo cerne de verdade que, posteriormente, vem à superfície. As realidades finais impressionam-nos no mais íntimo do ser, e acabam por conferir-nos discernimento quanto à sua veracidade, mas, no processo, isso é distorcido e exagerado. (p. 320).

Assim, sugiram diversos mitos na nação Ticuna, e mesmo surgindo esses

conceitos, os mitos terminam por provar que são insuficientes para explicar as

realidades como um todo. No entanto, quando a verdade começa a raiar, os mitos

mostram ser extremamente resistentes, podendo persistir ainda por longo tempo. E

assim, quando a verdade é buscada, os mitos entrincheiram-se, pois para os

homens parece difícil sacrificar doutrinas preciosas, consagradas pelo tempo,

mesmo que sejam erradas. Os mitos emprestam coerência a grupos humanos, e a

verdade ameaça essa unidade. Só muito gradualmente é que as tradições vão

incorporando a verdade e sacrificando, paralelamente, os mitos.

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Algumas verdades precisam de meio século, ou mesmo mais, para se firmarem, depois que começam a emergir. E que os mitos atuam como estímulos, que levam um grupo social qualquer a seguir determinada linha de pensamento e de ação. A verdade age do mesmo modo, mas sempre aparece depois dos mitos, e enfrenta muita dificuldade para desacreditar e deslocar os mesmos. Todavia, à verdade compete tomar o lugar dos mitos. Talvez sempre tenhamos de tolerar algum mito na sociedade humana, mas, é mister que o controle exercido pelos mitos decline, e que o controle exercido pela verdade aumente, à medida que avançarem a ciência e o conhecimento em geral. Porém, não se deve esperar que isso venha a processar-se de maneira homogênea, porquanto nenhuma era será mais mitológica, na história da humanidade, como o futuro período do anticristo. (CHAMPLIM, 1991, p.321)

Todas as religiões, tanto as primitivas quanto as avançadas, têm a

necessidade de algum mito. Pois a ligação entre o divino e a experiência pessoal só

pode ser feita de acordo com conceitos mitológicos. Desde as civilizações antigas, já

existia a necessidade de explicar a origem, e muitas coisas que estão relacionadas

com o mundo espiritual e para tal eram usados os mitos.

O mito da criação, nos relatos babilônicos, fala sobre Marduque, em sua luta titânica contra o dragão Tiamate, como preparação prévia para a criação da terra e do homem. No hinduísmo, por sua vez, temos a história de Brahma, inspirando e expirando a vida do universo criado. Também fala-se sobre aqueles heróis mitológicos como Rômulo e Remo; sobre mitos estelares para explicarem as constelações e os movimentos dos astros. Há o mito egípcio do sol, retratado como Rá, a atravessar o firmamento em um bote. Também há mitos sobre o mundo inferior, como os de Osíris, Orfeu, Charon e Izanagi. Mitos sobre os deuses e um grande dilúvio, como o de Ut-Napistim dos babilônios e o de Noé, dos hebreus. Mitos que explicam festividades e costumes, como a fuga do Egito como uma explicação para a páscoa. (ibid., p. 320).

Os mitos têm por finalidade narrar, em forma de história, a experiência dos

homens em sua consciência de Deus. As mitologias foram os primeiros professores

da humanidade. Naturalmente, esta citação está sujeita à discussão e refutação

parcial, embora forneça-nos o âmago da questão de como os mitos estão

relacionados à fé religiosa. A mitologia Ticuna expressa a ideia de um lugar que

pode ser chamado de ―paraíso‖, os mortos vão para esse lugar e ficam encantados.

As crenças animistas são parte indispensável da educação Ticuna. O

termo animismo vem do lat. anima (alma, fôlego), que segundo Champlim (1991), foi

usado pela primeira vez por Stahl em 1720, para expressar um conceito filosófico da

alma do mundo. Segundo Champlim (1991) existem três tipos de conceitos

animistas: no primeiro, os objetos físicos possuiriam vida ou espírito próprios, não

havendo tal coisa como matéria inanimada, o universo seria uma presença viva; já

no segundo, os objetos físicos, embora não animados por si mesmos, seriam

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habitados por espíritos que sobrevivessem mesmo quando os objetos físicos fossem

destruídos; o terceiro conceito seria a manifestação dos espíritos esporadicamente

por meio das pessoas, dos objetos físicos ou de lugares específicos, poderia se

tratar de puros espíritos, incluindo espíritos não humanos, espíritos de antepassados

e de pessoas já falecidas. Os bruxos, feiticeiros e médiuns, segundo alguns,

poderiam entrar em contato com tais espíritos. A terceira forma de animismo é

virtualmente universal, e muitas pessoas supõem ser essa a base de toda a crença

religiosa. Alguns supõem que essa teoria surgiu do fenômeno dos sonhos, o que

pode ser apenas uma explicação parcial, mas provavelmente, lugares assombrados

e fantasmas seriam a origem dessa teoria.

Os filósofos que têm defendido uma forma ou outra dessa teoria são Empédocles, Plotino, Leibniz, Schopenhauer, Pierce, Schiller, Whitehead, Alexandre de Chardin e Waddington. As religiões orientais, ao tentarem oferecer explicações idealistas da realidade, incorporam uma forma de pampsiquismo que, naturalmente, é algo inteiramente diferente da ideia de que há espíritos ocultos em objetos físicos, embora a palavra possa ser usada para indicar ambas essas ideias, de maneira bem geral. (CHAMPLIM, 1991, p.168).

A ideia embora crua contida no animismo Ticuna é de que existem o espíritos,

com o qual podemos entrar em contato, estabelecendo diferença em nossas vidas.

Qualquer vida é muita dentro da floresta e a gente olha de cima, parece tudo parado. Mas por dentro é diferente. A floresta está sempre em movimento. Há uma vida dentro dela que se transforma sem parar. Vem o vento. Vem à chuva. Caem as folhas. E nascem novas folhas. Das flores saem os frutos. E os frutos são alimentos. Os pássaros deixam cair às sementes. Das sementes nascem novas árvores. E vem a noite vem à lua. E vêm as sombras que multiplicam as árvores. As luzes dos vaga-lumes são estrelas na terra. E com o sol vem o dia. Esquenta a mata. Ilumina as folhas. Tudo tem cor e movimento. (GRUBER, 1997, p. 48).

Os espíritos segundo os Ticuna estão por toda parte, e na eminência de

nomear tais espíritos protetores e reguladores da vida social e das atitudes ticunas,

eles atribuem algumas funções a esses espíritos que podem ir de dono, pai, mãe e

assim por diante; conforme os ensinamentos tradicionais encontrados no ―livro da

Árvore‖.

As Árvores e Seus Donos. A floresta é a coberta da terra. É a casa dos animais. E onde nós vivemos. É onde também vivem outros seres, Alguns desses outros seres nós chamamos de nanatü, que significa ―dono‖, ―pai‖ ou ―mãe das árvores, dos animais, dos peixes, das águas. São seres que cuidam há milhares de anos de tudo que existe na natureza, assim como nós cuidamos de nossos filhos e de nossas roças. O buritizal tem dono, o açaizal tem dono, o seringal tem dono, o caranazal tem dono, a samaumeira tem dono, a sorveira tem dono. (ibid., p. 28).

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Segundo pesquisas realizadas e entrevistas a idosos da tribo Ticuna, na

ocasião de minha graduação, em 2010, observei através de relatos que o animismo

está presente no mito do WÜWÜRÜ que é um bicho que vive no meio do buritizal,

ele é o dono do buriti. Os antigos contam que o Wüwürü mata as pessoas fazendo

cócegas e depois as devora. Todo tempo ele fica limpando o buritizal e juntando as

frutas. Os seus dentes são fortes, possui uma cabeça meio pelada, unhas grandes e

esporões nos pés.

O Curupira é outro mito presente na cultura Ticuna. Ele é o dono da mata e

mora nas sapopebas da samaumeira. Ele gosta de silêncio e está sempre andando

para cima e para baixo na floresta. Quando cansa, senta-se sobre um jabuti, que

empresta o seu banco para ele sentar, Segundo os antigos ele tem os cabelos

compridos, corpo peludo, olhos pretos e pés virados. Existem vários tipos de

Curupira: o pai da samaumeira, o dono do jabuti, o dono dos outros animais, o

Curupira macho e o Curupira fêmea. O Curupira faz medo aos caçadores batendo

nas raízes das árvores. Ele atrai e encanta as pessoas. Quando o Curupira ataca, o

único jeito de matá-lo é batendo no seu corpo com um pedaço de pau podre, mas

antes de morrer ele sempre diz: ―Se um dia eu me acabar, fica outro no meu lugar

guardando tudo o que é meu‖. O curupira está presente na memória da crianças.

Isso foi observado na ocasião de uma oficina de desenhos sobre mitos e lendas na

Escola O‘i Thurune, quando um aluno fez um desenho interessante do curupira,

conforme demonstra a figura 19.

Figura 19 – Desenho do Curupira

Fonte: Arquivo pessoal - 2012

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A figura 19 mostra o curupira com os pés para trás para que o caçador não o

encontre. Outro bicho mitológico temido é o Mapinguari que ataca e vive à procura

do caçador que deixa de matar a caça apenas para o consumo diário e passa a

caçar para o comércio. Acredita-se que o curupira faz esse caçador embrenhar-se

mata a dentro até se perder e sumir.

O Mapinguari é um bicho enorme e temido pelos Ticuna, é todo peludo, e vive no meio da floresta, Ele é dono da mata e dos animais. Têm as unhas muito afiadas, dentes pontudos, apenas um olho na testa e duas bocas. Uma das bocas, o Mapinguari usa para comer, a outra, que fica na sua barriga, usa para gritar. Quando ele grita, essa boca se abre e fecha, soltando um som ensurdecedor, e muito alto que faz a terra estremecer, Quem ouve este som endoidece e se perde na mata. O Mapinguari costuma atacar os caçadores que andam pela floresta nos feriados ou nos sábados e domingos. Para matá-lo, é preciso atirar o chumbo bem dentro da boca que tem na barriga, no momento em que ela se abre para gritar. (GRUBER, 1997, p. 33).

O mito do mapinguari ajuda tanto na preservação da floresta, quanto, na

preservação da harmonia familiar, pois acredita que nos feriados e domingos não

devem se empreender em caçadas pela floresta. O mito levava a crer, embora pela

coação e pelo medo, que o melhor era ficar em casa com a família e com os

parentes na comunidade.

Já a Beru é a mãe do macambo, ngu. Limpa o terreno ao redor da árvore e

não gosta que mexam nas suas frutas. Beru se alimenta de gente e ataca as

pessoas jogando nelas seus peitos enormes ou atirando muitas frutas de macambo.

Às vezes aparece como gente, às vezes se transforma em borboleta.

O Daiyae é outro bicho da floresta, dono de uma fruteira que se chama pé-de-

jabuti, tütchi. O Daiyae parece com gente, é baixinho, com a cabeça quase pelada.

Seus poucos fios de cabelos são muito procurados para dar sorte. No tempo da fruta

pé-de-jabuti, o Daiyae recolhe todo dia as frutas maduras que caem no chão. Se

alguém pegar essas frutas, ele se zanga e faz cócegas na pessoa até matá-la. Se a

pessoa vence o Daiyae, leva alguns fios de seus cabelos para usar como defesa e

ter muita sorte nas caçadas e pescarias.

É possível dizer com base em estudos teológicos que o encontro com

qualquer um desses poderes espirituais entra na esfera do ―dinamismo‖. Ocasionado

pelo poder ou capacidade espiritual elevada, garante a poucas pessoas o contato

direto com certos espíritos para que a vida na comunidade possa ter o mínimo

possível de harmonia. O Pajé, portanto é a pessoa na tribo que tem a

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responsabilidade de transitar no campo espiritual, intercedendo junto aos espíritos

para que possam realizar: uma boa colheita, um trabalho próspero e sem

imprevistos, e talvez a atribuição mais importante do Pajé seja invocar certos

espíritos da floresta para que efetuem a cura de enfermidades, mordidas de cobras e

outras situações adversas no cotidiano da nação Ticuna.

O Espírito das Árvores e o Trabalho do Pajé. O espírito de certas árvores ajuda o trabalho do pajé. Quando uma pessoa fica doente, chama o pajé. E o pajé chama o espírito das árvores para curar, O espírito chega e entra no corpo do pajé. Aí ele canta. Depois vem outro e mais outro. Se a pessoa está muito mal, é preciso chamar vários espíritos. A samaumeira tem espírito. A chuchuacha tem espírito. O cedro tem espírito. O açacu tem espírito. A ucuuba tem espírito. A seringueira tem espírito. A maçaranduba tem espírito. A castanha-de-paca tem espírito. Há também outros espíritos que o pajé chama: do boto-tucuxi, do Yewae, da sereia, do Curupira. Os velhos ensinam que ninguém deve passar debaixo da maçaranduba. Se passar, deve ser bem devagar, porque o espírito da árvore escuta, vem atrás e faz adoecer o filho. Se alguém cortar à toa essa árvore, seu espírito vai embora. Certo dia, um homem andava pela mata e viu um velho pajé olhando por muito tempo para uma samaumeira. O pajé falava baixinho para a árvore: Samaúma, eu gosto de ti. Tu és uma árvore grande, alta, bonita. Através de ti eu posso curar as pessoas. Teu espírito é guerreiro. Quando eu preciso de comando, eu chamo teu espírito e ganho tua força. Samaúma, tu deves ficar viva para sempre‖. (GRUBER, 1997, p. 46).

Podemos afirmar também, que o Pajé tem uma importância peculiar dentro da

nação Ticuna. Acreditava-se que ele tinha o poder de curar e até mesmo com sua

prática de xamanismos, tinha o poder de atacar o inimigo voraz com o feitiço, e só

quem tirava o feitiço era outro Pajé, mas dependia do grau de interação com os

espíritos. Porém, algumas árvores que servem de remédio, podem ser utilizadas por

diversas pessoas da etnia Ticuna, não sendo necessariamente ser dotado dos

poderes de um Pajé é a chamada ―alquimia Ticuna‖, que em muitos caso torna-se

eficiente e em parte supre a falta de atenção e políticas públicas voltadas para os

povos indígenas.

A chuchuacha que segundo os Ticuna essa árvore serve para curar várias doenças como: fraqueza, palidez e reumatismo. A casca da carapanaúba serve para problemas dos rins, do fígado, para anemia e dores no estômago. A casca do cedro, bem cozida, serve para dar banho nas pessoas que sentem dores no corpo, para curar amebas e palidez. A casca do taperebá, fervida, serve para lavar feridas e curar diarréias. A casca também pode ser usada queimada e transformada num pó bem fino para colocar no umbigo das crianças recém-nascidas. A casca da acapurana cura diarréia, feridas e amebas, Também é usada pelas mulheres depois do parto e durante a menstruação. A casca do matamatá é boa para cólicas, diarréia e amebas. A casca do muruchi também serve para diarreia, já o chá da raiz do açaí serve para diarreia, dor no estômago e amebas. Outra

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árvore importante é a andiroba. De suas frutas retiramos um óleo que serve para tratar diarreia, tosse, dores musculares, coceiras e feridas. O óleo da copaíba também cura vários tipos de doenças asma, gripe, coqueluche, febre e dor de cabeça. Serve ainda para passar no corpo e tratar a coceira. O leite da sucuuba serve para curar peito aberto. O leite deve ser tirado do tronco, do lado onde o sol se põe. Depois se passa no local da dor ou faz-se um emplastro, usando um pano bem limpo. O tratamento deve ser na lua nova. A resina do cicantã é boa para cheirar e assim alivia a dor de cabeça. Serve também para espantar a cobra-grande, Yewae. Para picada de aranha, defuma-se o local com breu e a dor passa. Defumam-se também as crianças para desentupir o nariz. (GRUBER, 1997, p. 82).

Os Ticuna acreditam que as árvores têm espíritos e que esses espíritos

ajudam o trabalho do Pajé, pois só este pode comunicar-se com tal espírito. O

animismo ticuna distingue o espírito e a matéria e reconhece a existência de forças

sobrenaturais que influenciam suas vidas como um todo. Existem meios de entrar

em contato com essas forças ligadas diretamente a todas as práticas do cotidiano

Ticuna. É evidente a crença de que a vida diária, os rituais e a própria conduta ética

são influenciados diretamente pela crença no sobrenatural. Os Ticuna, embora sem

o conhecimento consciente, aceitam o princípio do dinamismo, ou seja, o encontro

de espíritos, aspecto que se torna evidente quando observamos os seus rituais.

Entre os Ticuna existem alguns tabus. Essa palavra deriva-se dos idiomas

das ilhas do Pacífico, que segundo Champlin (1991), foi onde o tabu (proibição) se

expandiu para tornar-se uma técnica de controle social, ou seja, um elaborado

sistema de interditos e proibições.

Entre os povos primitivos, mormente os polinésios, os tabus afetam todas as áreas de vida, envolvendo pessoas, lugares e coisas. Estão envolvidas ideias como coisas sagradas, misteriosas, a necessidade de proteção, coisas imundas a ser evitadas, poderes misteriosos a ser invocados. Talvez a noção dominante, nos tabus, seja que há coisas inerentemente perigosas, que devem ser evitadas a todo custo. (p. 391).

A violação do código de conduta do grupo, ou o contato com qualquer coisa

proibida, significa uma espécie de infecção que é adquirida pelo culpado,

ameaçando a ele mesmo e ao grupo inteiro. O castigo sobrevém automaticamente, a

partir da própria situação perigosa. Podemos estar certos de que atuam aí muitos

poderes psicossomáticos, talvez alguma forma de demonismo ou de pajelança. Na

cultura Ticuna o grupo mostra mais interesse na purificação do que na punição do

culpado, mas os poderes invisíveis garantem alguma espécie de vingança contra o

ofensor.

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Os tabus comuns incluem contato com o sangue e com a morte. Um cadáver

é considerado corruptor, e todo objeto que entre em contato com o mesmo deve ser

abandonado. Eu, inclusive, presenciei um episódio na aldeia de Belém do Solimões,

onde uma pessoa foi assinada brutalmente e os indígenas colocaram fogo na casa

de palha, com a finalidade de esquecer o ocorrido.

O sangue da menstruação da mulher ou do parto também é considerado

perigoso, requerendo ritos de purificação. Os guerreiros que voltam de uma batalha

são reputados como contaminados pela morte, e, portanto, tabu. Aqueles que violam

o código de comportamento sexual ou que cometem grandes crimes, como o

homicídio, praticam a quebra de tabus.

Certas lideranças e Pajés são considerados homens santos e mágicos como

quem tem uma aura divina, são ―intocáveis‖ por pessoas comuns. Até mesmo as

vestes e os objetos usados por tais pessoas são considerados perigosos. Os

objetos e instrumentos religiosos obtêm tal poder. Certos alimentos são proibidos

convenientemente. Assim, as mulheres não podem consumir certos alimentos, que

ficam reservados somente para os homens.

Em alguns países africanos, para exemplificar, as mulheres não podem comer galinhas, as quais ficam todas para os homens. Em algumas tribos não se pode comer serpentes; mas, no caso de outras, as cobras são um acepipe. Ofensores graves devem morrer; mas outros ofensores são banidos. Algumas vezes, basta a confissão pública e o arrependimento. (CHAMPLIM, 1991, p. 391).

A palavra ―tabu‖ passou a fazer parte de muitos idiomas, com o sentido de

qualquer coisa proibida, a qual torna-se tanto mais atrativa, justamente por haver

sido proibida.

O conhecimento da arte para confecção e pintura das máscaras são

predominantemente de domínio dos homens, também responsáveis por grande

parte dos objetos rituais, como alguns adereços da worecü, os instrumentos

musicais, o recinto de reclusão, os bastões esculpidos e outros. Essa prática pode

ser tida como tabu, acredita-se que a comunicação com o mundo dos espíritos

encontrados na floresta só será possível se a confecção de certos objetos for

executada pelos homens da aldeia.

Já as mulheres são responsáveis pela parte alimentícia, e transporte dos

alimentos, pois acredita-se que o homem pode revoltar os espíritos e só a mulher

com sua fertilidade pode executar certas tarefas. As mulheres têm que carregar os

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produtos quando voltam da roça, os homens, em geral, trazem o tecado ou vêm com

as mãos livres. Isso ocorre, pois acreditam que pode acontecer algo inesperado a

qualquer momento e o homem deve estar preparado para agir se for o caso. Na

nação Ticuna existem diversas situações em que a educação cultural tradicional não

pode ser realizada em conjunto, homens e mulheres, pois quebram alguns tabus

que mantêm e engrenam a cultura em sua preservação.

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4 A EDUCAÇÃO NO OLHAR DO INDÍGENA

Os índios Ticuna têm uma forma peculiar de ver a educação. A pesquisa de

campo deste trabalho demonstra o desejo que eles têm por uma educação voltada

para formação que prepare o indígena para a vida em sociedade, uma formação que

o leve a trazer algum tipo de beneficio para sua comunidade. A educação para eles

está diretamente ligada ao seu reconhecimento, enquanto indígenas, para que a luta

por seus direitos possa ser garantida. Com base nesse princípio, muitos buscam

estudar na cidade para conseguir estabelecer o contato digno com os não índios.

Dessa maneira, a comunicação através da língua portuguesa passa a ser uma

ferramenta de status dentro da comunidade indígena. Os índios buscam melhorias

também através dos cursos de licenciatura oferecidos na comunidade indígena de

Filadélfia.

Mesmo com o desejo de muitos indígenas estudarem na cidade para garantir

o contato com os não índios, muitas lideranças têm questionado o apoio, haja vista

que um grande número de indígenas que vai estudar em universidades do país, não

retorna às comunidades. O entrevistado J.G.F3, líder indígena por muitos anos,

demonstra sua preocupação com indígenas que foram estudar na cidade em

algumas universidades e que por motivos de conquistas pessoais, ou do

oferecimento de bons salários, decidiram não voltar mais para suas comunidades de

origem.

Já temos alguns indígenas que estão em grandes universidades estudando direito e medicina. Mas a fraqueza que dá é que quando ele aprende não quer voltar mais para a aldeia, então essa é a grande dificuldade. As lideranças, os caciques das outras comunidades, quando a gente questiona para mandar um aluno para as grandes universidades para competir, terem uma educação de qualidade e voltar. Muitos dizem: será que ele vai ir e vai voltar para a comunidade? Por que temos diversos exemplos de indígenas que foram e não querem voltar mais, por que lá encontraram um mercado de trabalho muito melhor que o daqui então não querem mais voltar. (Entrevistado J.G.F, 2012).

Essa é uma constante preocupação das lideranças Ticuna, pois na aldeia a

vida é mais difícil, pacata e os salários são menores que na cidade e muitas vezes

3 Nesta pesquisa, objetivando preservar a identidade dos sujeitos, foram utilizadas as iniciais dos

seus nomes. As respostas foram transcritas na íntegra, buscando fidelidade e respeito às características da língua indígena.

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algumas oportunidades batem à porta: aqueles que estudam nas cidades ou em

universidades fora do seu contexto social são tentados a abandonar o sonho de

melhorias para suas comunidades, em detrimento do sonho de conquistas pessoais,

fato que segundo o entrevistado P.I.P: ―é uma lástima‖. No entanto, alguns acabam

voltando, cumprindo o compromisso e desenvolvendo o papel social que a

comunidade cobra e espera deles: melhorias e avanço para suas comunidades.

Neste sentido, Martins (2009) afirma que a fronteira étnica torna-se o lugar de

sacrifício do outro, e muitas vezes esse sacrifício significa ―abrir mão‖ da própria

cultura para viver com mais conforto e facilidade, o que de outra forma seria

impossível na comunidade. Alguns têm feito exatamente o que a comunidade

espera, preparando-se e voltando para lutar por seu povo.

Os Ticuna são muito esforçados em seus estudos e lutam por tais melhorias

físicas e também pela formação de professores para suas escolas. Muitos estão

lutando por escolas em alvenaria, com uma infraestrutura que viabilize a

aprendizagem, lutam também por laboratórios de informática para que seus alunos

possam ter acesso ao mundo globalizado e aos conteúdos que muitas vezes, pela

falta de livros, eles não possuem.

Com o advento da educação escolar indígena, muitos conhecimentos que

eram transmitidos pelos pais e parentes próximos, agora são de responsabilidade

em geral dos professores, os quais, mesmo com inúmeras dificuldades estão

empenhados na busca do êxito para essa tarefa difícil que lhes é atribuída.

O que se observa é que muitos indígenas que estudaram nas cidades quando

falam sobre educação e cultura em sua etnia Ticuna, utilizam o verbo na terceira

pessoa. Poucas vezes dizem minha nação ou se incluem no povo sobre o qual estão

tecendo alguns relatos ou comentários relacionados a diversos aspectos da cultura.

A pessoa desatenta à realidade sociocultural da região do alto Solimões e da

realidade Ticuna, tem a impressão que estão falando de um povo que conhecem,

mas estão distantes e não fazem parte de seu cotidiano, de sua origem, e cultura de

sua história.

É possível identificar esse tipo de distanciamento entre pessoas que fazem

parte da cultura Ticuna, mas que pelas relações nos estudos, com influência da

cultura não índia e também por relações de trabalho, nos órgãos públicos – FUNAI,

Prefeitura, FUNASA, escolas e outros – ou por trabalho no comércio e também como

funcionários domésticos, mantém um contato mais próximo com a cultura não índia.

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A fala do entrevistado A.P, professor indígena, ligado à rede municipal de ensino de

Tabatinga e também funcionário da secretaria de educação no setor de assuntos

indígenas, demonstra em diversos momentos certo distanciamento da cultura

Ticuna.

Na cultura tradicional o que nunca eles esquecem é principalmente a pesca e a caça e sempre eles sobrevivem através da pesca e da agricultura e eles preservam muito também a terra os plantios e dentro da escola eles

preservam principalmente a língua. (Entrevistado A.P, 2012).

O entrevistado que foi estudar na cidade do Rio de Janeiro, onde se graduou

em Pedagogia, agora está envolvido com questões de educação indígena, porém,

ao falar do povo Ticuna, refere-se a um povo que parece não ser o seu, usando o

verbo em terceira pessoa. Ao que parece, há uma necessidade de se distanciar para

conseguir falar de alguns aspectos da sua cultura.

Vale mencionar que muitos Ticuna não têm o costume de falar sobre sua

cultura com outros povos com os quais não têm muito contato e afinidade.

Atualmente, mesmo com um bom contato estabelecido, sentem dificuldade em falar

de tais aspectos. Se hoje falam de forma um pouco mais aberta, ainda assim tentam

manter um distanciamento como forma de se sentirem mais à vontade. A utilização

desse mecanismo de defesa não deve ser interpretado como uma negação da sua

identidade cultural e sim, como um modo diferente de dar voz a uma cultura que foi

calada por muitos anos, quer seja por outros povos indígenas como os Omáguas,

patrões da borracha, quer por não índios que, constantemente e de maneira

preconceituosa, não valorizavam a cultura indígena.

Hoje os Ticuna vivem um outro momento. Os próprios indígenas, por meio de

suas lideranças e professores, demonstram a partir de evidências históricas que o

momento vivido é bem diferente do que sonhavam. O entrevistado P.I.P, que foi

cacique por aproximadamente trinta anos, e atualmente é cacique de honra das

tribos Ticuna, disse que antigamente a vida era outra: “naquele tempo também não

existia escola e assim é a vida; e hoje, nesse tempo é outra vida porque era muito

difícil se viver como hoje, é muito difícil (diferente) do que a gente sonhava sobre o

que poderia acontecer no futuro”.

O entrevistado não consegue esconder sua emoção, demonstrada através da

tristeza e indignação ao viver em um mundo diferente do que sonhava para ele e

para o seu povo. Afirma que o povo no passado não estava preparado para viver em

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um mundo como o de hoje. A cultura Ticuna vem se adaptando gradativamente,

assim ainda continua existindo de maneira dinâmica buscando sintonia com a cultura

não índia na região do Alto Solimões. A escola tem muito a ajudar para que

aspectos da cultura não se tornem obsoletos. Hoje os próprios indígenas são

autores de textos que expressam sua cultura. E veem na criatividade uma

ferramenta pedagógica para manter a cultura sempre viva. O entrevistado A.R.S,

que é um educador na tribo Ticuna, e atualmente trabalha como chefe do posto da

FUNAI, disse que é preciso criar partindo da preservação cultural efetuada na

escola.

O que a gente preserva na escola: a língua, falantes da língua Ticuna, tem que escrever e produzir livros escritos na língua Ticuna, assim que já está preservando a cultura escolar indígena, por que sem registrar alguma coisa, não tem como preservar a cultura, então é isso que está fazendo a escola indígena agora, tá lutando para registrar a sua língua comum na cultura. Assim que pode preservar. (ENTREVISTADO A.R.S, 2012).

O entrevistado deixa claro em sua fala e postura que o caminho para

preservar a cultura são os livros produzidos pelo próprio povo Ticuna. O que

preserva a cultura segundo ele não são as produções de alguém que é alheio à

cultura, mas as do próprio indígena escrevendo sobre sua cultura.

Os índios Ticuna antes não escreviam nada, tinham outra forma de educar

suas crianças e jovens, as tradições da cultura eram repassadas através do convívio

contínuo com as pessoas idosas, os mais experientes da tribo, e tudo era transmitido

através da tradição oral, era no ―boca a boca‖ mesmo. Hoje o cotidiano na tribo é

outro, é outra vida, a escola deve possuir uma educação diferenciada.

A educação tradicional dos Ticuna era muito mais voltada para as tradições, por exemplo, quando um Ticuna dá aula tem que usar a língua tradicional, falar na língua Ticuna. A criança tinha que falar e escrever na língua Ticuna, isso tem que preservar, por que é direito do indígena garantido pela Constituição Federal em Art. 231, fala que a comunidade indígena tem que preservar a sua língua materna, eles tinham aulas principalmente na língua materna, mas também utilizam a língua portuguesa. (Entrevistado A.R.S, 2012).

Esse comentário de A.R.S demonstra que tem ocorrido mudanças

significativas na comunidade indígena que são resultado de lutas conquistadas

muitas vezes com derramamento de sangue, como ocorreu no caso do massacre no

Capacete em 28 de Março de 1988, m que havia uma comunidade de fazendeiros

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em terras indígenas. Após a demarcação reivindicada pelos índios, estes foram

tomar posse de suas terras e foram recebidos à balas. Hoje o povo indígena tem

alguns direitos que ainda estão aquém do que desejam para suas comunidades.

O entrevistado A.C, secretário administrativo na escola indígena que fez

teologia em São Paulo – SP, menciona que já não existem barreiras para o

desenvolvimento social e educacional nas aldeias. Só o que pode travar esse

avanço para o futuro é a falta de comprometimento dos professores que devem

ensinar para o progresso, mas garantindo a preservação da cultura indígena.

A educação, por exemplo, já foi criado até no MEC que a educação do povo indígena Ticuna tem quer ser uma educação diferenciada. Hoje já tem livros didáticos próprios, tem professores que já se formaram e tem preparação na língua, então eu acho que não há nenhum empecilho para que a educação venha progredir, não há nenhuma barreira para preservar, para ensinar a língua materna indígena pelo meio da educação. (Entrevistado A.C, 2012).

A.C. tem a visão de que é necessária a garantia à comunidade indígena da

mesma educação ministrada na cidade e afirma que todos são iguais perante as leis

e isso tem que ser cumprido na sua totalidade.

Tem que preservar a língua e a educação tem quer ser igual à da cidade, somente a educação diferenciada da língua. Agora, a educação tem que ser a mesma educação com a mesma intensidade com que é aplicada nas redes estaduais de ensino e nas redes municipais, a educação tem que ser aplicada no mesmo nível, mas excetuando da educação diferenciada que é a língua, isso ai deve ser diferente. (Entrevistado A.C, 2012).

Para os entrevistados A.C e A.R.S existem avanços significativos que são

importantes para a vida; já para o entrevistado P.I.P, essa educação diferenciada

nunca existiu, porque os professores que estudaram na universidade de formação

indígena não cumprem o que foi previsto e ensinado nas aulas de preparação para o

ensino na cultura Ticuna.

Hoje em dia tem que ter uma educação diferenciada, só que essa educação diferenciada nunca aconteceu. Claro que as professoras bilíngues M.F e J.G.G, sempre davam aula para os povos indígenas Ticunas que são professores, mas só que não foi cumprido o programa que está escrito no livro, nunca foi ensinado pelos professores para o povo, eles tanto ocupados, e assim os jovens esquecem as coisas da cultura, como que faz, como se constrói enfim tudo isso esqueceram porque os professores não ensinam, não cumprem a planilha que tinham feito no livro, então é isso que acontece. Acho isso uma pena porque a gente vai perder, não vão mais 10 ou 15 anos. (Entrevistado P.I.P, 2012).

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Na fala do entrevistado P.I.P, fica evidente que ele é ciente que muitos não

cumprem a missão deixada por seus pais em levar em frente o conhecimento da

cultura, sabe que muita coisa é ensinado nas escolas, mas muitos professores não

estão preocupados em fazer da escola um meio pelo qual a cultura venha a ser

preservada.

Muitos professores indígenas acreditam que a Resolução n.º 3/99, do

Conselho Nacional de Educação, permite fundamentar e fortalecer a luta pela

educação diferenciada, embora muitos não estejam preparados ainda de forma

necessária para essa sonhada educação diferenciada. Essa resolução fixa diretrizes

nacionais para o Funcionamento das escolas indígenas e dá outras providências

que são normas orientadas pela Constituição Federal e pela Lei de Diretrizes e

Bases da Educação (LDB), em sintonia com os pareceres da Câmara de Educação

Básica do Conselho Nacional de Educação, que podem viabilizar a educação

escolar indígena e garantir a plena participação dos povos indígenas, conforme

prevê o art. 3º:

Na organização de escola indígena deverá ser considerada a participação da comunidade, na definição do modelo de organização e gestão, bem como: I – suas estruturas sociais; II – suas práticas sócio- culturais e religiosas; III – suas formas de produção de conhecimento, processos próprios e métodos de ensino-aprendizagem; IV – suas atividades econômicas; V – a necessidade de edificação de escolas que atendam aos interesses das comunidades indígenas; VI – o uso de materiais didático-pedagógicos produzidos de acordo com o contexto sociocultural de cada povo indígena. (BRASIL, 1999).

Entretanto, segundo o entrevistado N.M., professor do Município de Tabatinga

e do Estado, nas secretarias estaduais há alguns entraves que dificultam a

execução de participação indígena efetiva para a manutenção da cultura Ticuna.

Nós temos apenas a língua bem viva, em 2004 nós conseguimos ter como componente curricular e até hoje estamos ensinando a língua e a arte Ticuna, e ensinamento dos mitos e costumes. Na escola hoje nós temos as normas que são determinadas pela SEMED, secretaria estaduais e não conseguimos colocar o que é específico, por que cumprimos determinações da SEMED e Secretarias Estaduais, que às vezes impedem a execução da educação cultural. (Entrevistado N.M, 2012).

N.M. fala da dificuldade em conseguir conciliar e ensinar aspectos da cultura

com o cumprimento de metas das secretarias estaduais, por isso esbarram em

determinações que precisam ser cumpridas no período letivo. A cultura perde por

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conta do estabelecimento de metas que fogem a realidade Ticuna. Isso impede uma

educação eficiente em si tratando da manutenção da cultura Ticuna.

A tão sonhada educação para os Ticuna é uma educação que permita a

sobrevivência cotidiana na comunidade e também a interação e a convivência

harmoniosa com os outros povos indígenas e não índios na região de Fronteira.

4.1 EDUCAÇÃO PARA SE TORNAR ―CIVILIZADO‖

É cultural na região os indígenas chamarem os não índios de civilizados ou de

brancos, pois assimilaram isso no passado e, quando falam em se civilizar nos dias

de hoje, isso deve ser entendido tão somente como apreender parte da cultura dos

não índios, o que se feito com a devida sabedoria não gera nenhuma forma de

prejuízo para a sua identidade cultural, mas conduz a uma valorização ainda maior

de suas origens.

Antigamente os indígenas Ticuna tinham uma educação que eles próprios

chamam de mais cultural, aprendiam com os idosos. Depois muitos passaram a

desvalorizar sua cultura para aprender a cultura dos não índios, mas com os cursos

universitários e palestras passaram a enxergar o valor que sua cultura possui.

Na fala do entrevistado A.R.S. é possível notar que, a principio, a cultura era

deixada de lado, por falta de mais conhecimento, para adquirir uma cultura alheia à

sua. Essa nova aprendizagem garantia certo status na comunidade. Hoje, no

entanto, com avanços nos estudos e sabendo a importância de sua cultura, lutam

por preservá-la.

Olha, de primeiro não valorizavam, quando a escola estava começando em 1981/2 aí que os próprios indígenas diziam assim: eu não quero falar minha língua, por que isso daí não vale é nada, eu quero aprender a língua portuguesa. Só valorizavam a língua portuguesa, porque a língua dele para ele não vale nada, isso daí era por falta de entendimento naquele tempo, mas quando a maioria estudou na OGPTB, na comunidade indígena de Filadélfia, quando muitos (professores) estudaram na universidade, aí que os professores já aprenderam o que é cultura, para que serve a cultura, daí que fortaleceu a valorização da cultura, a valorização da linguagem. Hoje os alunos já aprenderam um pouco, agora estão valorizando a língua indígena, então, a maioria dos professores já está falando que tem que valorizar mesmo. (Entrevistado A.R.S, 2012).

A aprendizagem do português nas escolas da cidade é uma via de mão dupla,

em um sentido ajuda a preservar a cultura, mas ao mesmo tempo em que aprendem

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outra cultura e conseguem algum emprego na cidade são tentados a viver nela a

maior parte de seu tempo. Tal fato não significa que irão perder totalmente uma

cultura que vem de berço, a preocupação maior, é com os filhos dos indígenas que

estudam na cidade em escolas dos não índios, esses sim podem deixar de vez a

cultura Ticuna e viver em função das aparentes facilidades da cultura não índia. Mas

o ensino na aldeia tem melhorado inclusive no ensino da língua portuguesa, o que

pode ser observado na fala do entrevistado V.V.:

Os professores antigos que não falam muito o português, e hoje os professores novatos já são formados na cidade e falam bem o português, então os alunos aprendem com ele, com o professor que ensina na língua portuguesa e na língua Ticuna, aprende as duas línguas... temos dificuldade na língua portuguesa, por que nos não falamos bem com os brancos que falam bem direito não tem nada de palavra atrapalhada, falam bem direito, mas sempre que falamos tem alguma palavra atrapalhada, algumas dão certo, mas algumas não dão certo. (Entrevistado V.V., 2012).

O entrevistado V.V. é professor indígena e já foi diretor de escola por muitos

anos, agora é diretor pedagógico de uma escola indígena, mas diz que se viu

obrigado a enviar seus filhos para estudarem na cidade para poder dialogar melhor

com os não índios.

Até eu como professor, mandei meus filhos para estudar na cidade, porque a maioria do pessoal da comunidade quer mandar seus filhos para estudar na cidade para falar o português como o pessoal da cidade. Mas tem vários pais de alunos que mandam seus filhos estudar no colégio dos brancos e eles abandonam porque cada pessoa tem uma vida diferente. Tem jovem que gosta de namorar com as moças e têm moças que gostam de namorar com rapazes. Por isso muitos que vão estudar na cidade abandonam e volta para a comunidade de novo. Aquele que não abandona consegue aprender, consegue até uma função como professor ou agente de saúde e algum serviço que tem na comunidade ele consegue, e consegue também às vezes um cargo. Mas aquele que não quer trabalhar consegue fazer faculdade em Tabatinga, em Benjamim, e outros fazem cursos de Técnico em enfermagem em Tabatinga, é isso que temos aqui na comunidade, mas a maioria dos pais e mães manda os filhos estudar na cidade para conseguir falar bem com os brancos, mas alguns não conseguem. (Entrevistado V.V., 2012).

À exceção de um entrevistado, todos os outros falaram em estudar para se

civilizarem, não no sentido de abrir mão de sua cultura, mas sim para adquirem

elementos de uma cultura alheia à sua.

Já a maioria dos pais indígenas quer ver seus filhos preparados para se

relacionar com os não índios, para não enfrentarem as mesmas dificuldades que

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muitas vezes enfrentam ao ir à cidade resolver algum problema na prefeitura,

cartório, no INSS, no comércio, fazer algum documento e etc. O entrevistado J.G.F,

uma grande liderança indígena Ticuna, diz que o ensino na comunidade mesmo com

professores bilíngues é um ensino mais fraco do que na cidade.

Esse é um ponto muito fundamental, porque muitas vezes dentro das comunidades indígenas o aluno termina o ensino médio, mas não consegue falar o português, então uma versão que os povos indígenas têm, quando eles veem outras pessoas falando bem o português, ele começa a pensar: meu filho está estudando a oitava série ou o primeiro ou segundo ano e não sabe falar o português, então ele começa logo a pensar nisso, eu vou mandar meu filho para a cidade, que é para quando ele voltar, saber falar o português para poder conversar com qualquer pessoa que vem de fora, para atender as pessoas, então essa é a visão pela qual eles mandam os filhos para fora. (Entrevistado J.G.F, 2012).

Para os indígenas da região do Alto Solimões o domínio do português abre

portas para empregos, traz recursos para as comunidades e garante muitas

facilidades.

O entrevistado A.C quando questionado sobre o que acha quando um

indígena Ticuna diz que vai enviar seu filho para estudar na cidade para se civilizar

diz que não existe ―civilizado‖:

Isso aí, eu acho que essa pessoa que (...), não há civilizado, se existisse civilizado a gente não via tanta violência, tanta barbaridade como a gente vê agora. O verdadeiro civilizado é aquele que se socializa, é aquele que não vê preconceito, mesmo em um mundo que a gente vive tão caótico na convivência, ser civilizado é respeitar os valores é respeitar o ser humano, é respeitar uns aos outros. Ser civilizado é o que eu acho que deve ser vivido e praticado. (Entrevistado A.C, 2012).

A.C. afirma que não existe ―civilizado‖ ao dizer que o ato de ser civilizado

deve ser buscado e vivido. Esse entrevistado teve a oportunidade de estudar em

São Paulo e talvez tenha observado os atos de selvageria das pessoas querendo

entrar ao mesmo tempo nos trens, metrôs, ônibus e, também, a violência nas ruas.

Sem se equivocar chega à conclusão de que não existe ―civilizado‖. Neste sentido,

Milton Santos (2000) ressalta que nunca houve humanidade, que não chegamos a

uma civilização plena, estamos fazendo um rascunho ou ensaios daquilo que um

dia poderá ser uma civilização.

4.2 AS MUDANÇAS OCORRIDAS NA EDUCAÇÃO DA ALDEIA E NA EDUCAÇÃO

As culturas são dinâmicas, principalmente se falamos em uma cultura

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indígena que mantém contato permanente com uma diversidade cultural enorme

como é o caso da região de fronteiras políticas do Brasil, Peru e Colômbia. As

ressignificações na cultura são intensas e aqueles que têm um olhar atento

percebem claramente, como o entrevistado P.I.P, que nunca sentou na carteira ou

banco de uma escola, mas é dotado de uma sabedoria natural que poucas pessoas

possuem. Ele relata as mudanças ocorridas ao longo dos anos, inclusive no âmbito

da educação.

A tradição dos Ticuna era como eu estava falando, que no tempo passado, não existia esse negócio de educação indígena, mas na própria cultura existe a educação: o avô e avó ensinavam cada noite. Chamavam o pessoal de cada comunidade, se reuniam e ensinavam o povo em volta, as crianças. Contavam na própria língua para não esquecer sua língua que é cultura, era um tipo de aula que os velhos estavam dando para os mais novos. Assim, a criança aprendia como tecer a palha, como construir uma casa, como fazer um cesto, como fazer muitas coisas de arte, que hoje em dia estamos perdendo uma parte porque os velhos que foram mortos e os filhos em vez de aproveitar estão esquecendo. Acho isso uma pena porque a gente vai perder, não vão mais 10 ou 15 anos. Tenho visto que o povo indígena de 10 anos e 15 anos, e é claro que vai perder tudo por que vai avançando no costume do branco que é o estudo em português e a língua materna vai se perdendo, isso é uma grande pena porque vai perder tudo.

(Entrevistado P.I.P, 2012).

O ideal de educação é aquela que valoriza os princípios culturais, o legado

deixado por seus antepassados, e é preciso que esses conhecimentos também

estejam em sintonia com o mundo atual, o mundo globalizado. Tal sintonia garante

maior longevidade cultural e prepara o Ticuna para lidar com a diversidade cultural

encontrada na meso região do alto Solimões. A fala do entrevistado A.R.S caminha

nessa direção:

Aqui a educação na cultura indígena, precisa ensinar aluno aquilo que é bom da cultura. Mas alguma cultura, alguma parte que não é bom não deve ser ensinado, o que é bom tem que ensinar, por exemplo, como fazer remo, fazer canoa, fazer peneira tipiti, isso é uma cultura do indígena. Isso daí não o professor não pode dizer que o aluno não pode fazer, o professor tem que ensinar por que isso daí é bom para ele ensinar na escola, é importante mesmo, por exemplo, fazer uma arte uma igaçaba feito de barro com várias misturas, então assim o Ticuna constrói uma igaçaba, essa igaçaba serve para colocar água, a água fica um poço frio, parece com a geladeira é bom para beber essa água. Isso daí tem que ensinar mesmo, e educação na cidade, por exemplo, é muito bom também estudar, tem que estudar mesmo porque a educação na cidade é bom mesm, aprende digitar no computador, aprende datilografar na máquina de escrever, e tem que saber ligar no telefone, tudo isso é cultura do branco. Tudo isso precisa saber também, porque se não sabe digitar computador, é ruim pra gente, tem que saber mesmo. Todos são bom, cultura indígena, cultura do branco também bom na área do estudo, por que precisa mesmo saber duas culturas, até mesmo várias culturas. (Entrevistado A.R.S, 2012).

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O entrevistado defende um ensino multicultural justificando que se os alunos

não possuem esse tipo de conhecimento ficam em situação difícil frente aos outros

povos. É preciso de um conhecimento diversificado para dar conta da riqueza

cultural na região.

N.M., professor indígena, diz que estão perdendo a educação que era

ensinada pelos antigos, e que hoje, com a globalização, é preciso entrar também na

era digital para adquirir novos conhecimentos, mas o que não pode ocorrer é o

abandono total pela cultura materna.

Antigamente tinha uma educação muito cultural, já com a evolução do mundo com a globalização, depende das comunidades e das tribos no contato com as cidades. Vemos que essa educação cultural está acabando. Antigamente tínhamos a educação cultural repassada pelos pais, pelos avós e hoje em dia a gente está perdendo isso e é um problema que cada vez vem gerando mais preocupações. (Entrevistado N.M, 2012).

O mundo hoje é outro, as culturas são dinâmicas e o contato com outros

povos cada vez ocorre de forma mais intensa, portanto é necessário que o educador

tenha um olhar apurado e perceba a dificuldade do momento e através da escola

ajude a minimizar as dificuldades que são inúmeras. As práticas pedagógicas de

valorização da cultura indígena e também não índia são de extrema importância

para a sobrevivência do povo Ticuna.

4.3 O CONTATO COM O OUTRO: VENCENDO O PRECONCEITO

O conhecimento da cultura Ticuna minimiza o preconceito, muitos não índios

quando passam a conhecer os Ticuna de perto acabam observando a riqueza dessa

cultura e o resultado disso é uma valorização ainda maior desse povo. O

entrevistado N.M foi questionado sobre o fato de já ter sofrido algum tipo de

preconceito e ele relatou que:

Sofria há alguns tempos, até eu já sofri essa situação na escola quando eu estudava para lá. Mas nos últimos anos estive observando que temos pouca discriminação, a sociedade já vem nos reconhecendo, mas são poucas pessoas que fazem esse tipo de discriminação, são pessoas que não têm esse conhecimento, são pessoas que falam por falar e não têm o conhecimento de quem é o Ticuna, não sabem o valor que ele tem, não sabem por que ele é Ticuna, por que recebe esse nome, então são pessoas que não têm esse conhecimento cultural. (Entrevistado N.M, 2012).

O povo Ticuna tem ganhado espaço e, felizmente, os preconceitos que

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sofreram no passado cada vez vem sendo minimizados. O entrevistado R.O.C, que

também é professor indígena conta que se sentia humilhado por não ter condições

materiais de ir à escola como os outros, diz também que tinha vergonha de ser

chamado de índio.

Com nove ou dez anos trabalhei na Colômbia, depois trabalhando com um patrão, não gostei porque muitos alunos filhos de Colombianos iam para a escola com roupas bonitas, calçado bonito. Eu fiquei muito triste e tive que voltar para o Brasil, aí encontrei um senhor com sua mulher que me chamaram para trabalhar, voltei para o Brasil, em Tabatinga. (Entrevistado R.O.C, 2012).

Os indígenas sofreram muito preconceito no passado, mas hoje nas escolas

da cidade tal aspecto vem se modificando. Tive o privilégio de ter como colega de

turma na ocasião de minha graduação em Pedagogia, um indígena que era muito

querido e respeitado pelos colegas de faculdade. A princípio, ele começou bem

tímido, quase não se expressava e aos poucos foi perdendo o receio de falar e

desfrutava de verdadeiras amizades com os amigos de faculdade. Não sofria

nenhum tipo de preconceito por ser indígena.

O entrevistado J.G.F relata que presenciou alguns indígenas que diziam não

ser Ticuna, pois tinham vergonha de ser chamados de Ticuna.

Olha já presenciei várias pessoas que eu conheço, várias pessoas que foram nascidas e criadas aqui, mas já disseram na minha frente que não é Ticuna, que não gosta de Ticuna, e algumas vezes até entro em debate dizendo: “eu te conheço, nós nascemos juntos em tal lugar, se criamos juntos e hoje você tem preconceito de sua própria pessoa, você não está ignorando os colegas não, você está ignorando você mesmo. Por que você nasceu e se criou lá!” Então a pessoa fica assim, meio com vergonha. Eu digo: “eu não, eu nasci e me criei lá na região, minha mãe é Ticuna, meu pai é paraense, mas eu me orgulho de ter tido uma mãe indígena, eu me orgulho de falar minha língua Ticuna, falo ela em qualquer canto, aonde eu estiver eu falo e declaro que eu sou Ticuna. Por que a minha mãe, a minha cultura e minha tradição, isso eu nunca vou perder. Minha língua eu nunca vou perder, aonde tiver um Ticuna eu converso com ele”. Então muita gente quando chega morar na cidade, quando chega morar em Tabatinga, em Manaus não quer mais ser indígena, mas tem gente que preserva aonde ele estiver...isso é uma pergunta muito boa!. (ENTREVISTADO J.G.F, 2012).

Esses relatos nos transportam a um espaço de tempo difícil na história dos

Ticuna, esses fatos têm sido superados simplesmente em razão do conhecimento da

cultura do outro que gera a valorização e o respeito por esse outro que também é

um ser humano igual a qualquer pessoa.

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4.4 FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS NO ALTO SOLIMÕES

O ensino superior na comunidade indígena de Filadélfia foi uma conquista do

povo indígena Ticuna que possibilitou maior facilidade no acesso a universidade,

tanto aos Ticuna como aos indígenas de outras etnias da Região do Alto Solimões.

A região do Alto Solimões conta com o Curso de Licenciatura para

Professores Indígenas do Alto Solimões que se tornou realidade através de parceria

da OGPTB com Universidade do Estado do Amazonas (UEA), apresentando a

primeira versão do projeto em abril de 2004. O projeto foi aprovado no âmbito da

UEA em agosto de 2005 e nesse mesmo período ficou entre os 12 projetos de

licenciatura indígena selecionados pelo Programa de Apoio à Implantação e

Desenvolvimento de Cursos de Licenciatura para Formação de Professores

Indígenas/Secretaria de Educação Superior/Secretaria de Educação Continuada,

Alfabetização, Diversidade e Ministério da Educação e Cultura (Prolind/SESU/

SECAD/MEC).

A primeira etapa do curso foi desenvolvida com apoio do Fundo Internacional

de Desenvolvimento Agrícola/Programa Regional de Apoio aos Povos Indígenas da

Bacia do Amazonas/Corporação Andina de Fomento, cujos recursos foram

solicitados pela OGPTB em 2003. Essa etapa teve ainda o apoio financeiro da

Fundação Nacional do Índio, também parceira desse projeto. Atualmente inúmeros

indígenas já foram licenciados e estão buscando melhorias na educação indígena

em suas comunidades. O entrevistado A.R.S, professor da FUNAI por muitos anos e

agora chefe do posto da FUNAI em Belém do Solimões, fala sobre a importância

desse curso universitário de formação indígena.

Eu sim fizera um curso universitário de licenciatura plena da educação indígena do alto Solimões, foi estudei, mas desisti quando quase terminava a etapa, então eu não concluí bem esse estudo, que foi realizado na comunidade, aldeia de Filadélfia no município de Benjamim Constant. Então aquele estudo foi muito bom porque me deu muitas informações sobre vários conhecimentos universitários que é a união de vários conhecimentos, isso significa aprender muitas coisas, mas só que eu aprendi pouco porque desisti, então é muito bom estudar mesmo na universidade. Essa foi dada pelo governo federal que apoia os indígenas da OGPTB, organização que tem a preocupação com a formação dos professores indígenas para que eles deem aulas mais preparados na comunidade. Por isso que a OGPTB foi e criou a formação dos professores. Então foram eles que promoveram a aula nessa universidade e fizeram parceria com a UEA, onde ela ajuda a universidade, então assim é agora. Então os colegas já concluíram a universidade, eles já estão formados. (Entrevistado A.R.S, 2012).

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O entrevistado A.R.S defende o ensino superior e demonstra que a

universidade de formação indígena é uma grande conquista e sem dúvida vai

contribuir com o processo de manutenção da cultura Ticuna, com professores mais

interessados e que tenham procedimentos didáticos para ajudar na preservação de

sua cultura.

Relatos do entrevistado V.V. demonstram uma trajetória escolar que passou

por etapas difíceis que vão desde o estudo com um professor que tinha apenas a

segunda série, estudo feito na cidade de Tabatinga, até ser aluno egresso no curso

de formação superior na comunidade indígena de Filadélfia.

Eu estudei naquele tempo antigo aqui mesmo na comunidade com o Prof. R.O.C, com ele terminei o estudo de 1ª a 4ª Série antiga, depois estudei no curso de formação de professores indígenas da OGPTB em Filadélfia até concluir o ensino medi, Magistério, depois estudei na faculdade, fiz cinco etapas e desisti com problema de saúde, durante dois anos sentia muita dor, por causa disso desisti. (Entrevistado V.V, 2012).

V.V., apesar de desistir do curso por motivos de saúde, falou que o curso foi

de fundamental importância para que hoje ele tivesse êxito como professor e lutasse

pela manutenção de cultura Ticuna. Muitos indígenas desistem do curso, pelos mais

variados motivos, esse aspecto requer uma atenção especial em uma pesquisa

posterior.

O curso universitário em Filadélfia tem auxiliado no processo de formação e

educação das aldeias Ticuna. É possível notar um grande avanço na educação tanto

no âmbito da escola indígena quanto no que se refere ao nível de consciência de

pessoas indígenas. Muitos valorizam mais a sua cultura depois que viram a

importância que esta tem sobre o indivíduo. Nesse sentido, o entrevistado J.G.F

conta que muitos Ticuna, que antes não valorizavam sua cultura, após estudarem,

valorizam-na e tem orgulho de ser Ticuna.

Tem alguns que quanto mais estudam fora mais ele praticam a sua cultura, eles andam pintados na cidade, usam seu cocar, usa seu colar, suas pulseiras, sua tradição. São gente que às vezes dentro da comunidade não praticava isso, mas quando ele chega lá fora ele começa estudar, ele relembra do povo dele, ele não quer perder a tradição do povo dele então ele representa o povo dele aonde ele tiver. Porque que acontece isso? É aquilo que falei no início, que o professor não leva ao conhecimento da tradição. Temos que preservar a cultura porque a cultura dá o reconhecimento da tua tribo, dá o reconhecimento da tradição, diz qual foi o povo de onde você veio e qual é a tua historia. Então quando ele sai da comunidade que ele chega lá nas grandes universidades que ele vai

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estudar a história do povo Ticuna aí ele mesmo se reconhece. Pensa: lá eu não aprendi, mas aprendi aqui, é o momento que ele começa a usar mesmo a cultura dele, aconteceu com muitos que eu conheço que estão hoje em Brasília, no Rio de Janeiro, São Paulo, trabalhando. Quando eu encontro eles, estão muito diferentes, quando saíram daqui tinham até vergonha de usar um cocar na cabeça, um colar, e hoje quando encontro eles, eles representam o povo Ticuna. (Entrevistado J.G.F, 2012).

O entrevistado vê na educação e na aquisição de conhecimentos uma forma

de igualdade e aceitação frente a outros povos, e até mesmo é uma forma vencer o

complexo de inferioridade que se enraizou no meio Ticuna, tanto pela ação dos

índios Omáguas como pela pressão e escravidão e opressão que sofreram por parte

dos não índios que colonizaram a região, em especial no período áureo da borracha.

As lembranças desse período na história Ticuna tem cedido lugar a uma nova fase,

na qual os Ticuna lutam pelo direito ao conhecimento de qualidade.

A formação de professores indígenas na região do alto Solimões pode ser um

mecanismo de ajuda para preservar a cultura indígena, e nesse sentido, um curso

especifico para professores indígenas tem acertado em seus objetivos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência histórica demonstra que os processos de mudança

desencadeados pela presença dos brancos majoritários na Região do Alto Solimões

e ao redor das sociedades indígenas conduziram a reformulações socioculturais, e

até em alguns casos levaram a aculturação. Foi possível identificar como a escola

pode ajudar nas relações sociais preparando o indivíduo indígena para a sociedade

e para enfrentar a diversidade cultural da Região do Alto Solimões.

Esta pesquisa foi muito importante em vários sentidos, inclusive por me fazer

enxergar aspectos que muitas vezes fugiam ao meu olhar. Mesmo convivendo com

os índios Ticuna não tinha a percepção que tenho agora. Constatei ainda que o

tempo disponível em um mestrado para pesquisa e a distância do meu campo de

pesquisa – quase sete mil quilômetros – em um trabalho com pressupostos da

pesquisa etnográfica, dificultaram uma apresentação apurada e mais consistente na

apresentação dos resultados analisados. Entretanto esses resultados foram

descritos a partir da análise do cotidiano Ticuna, com base nas entrevistas

realizadas, e apesar das dificuldades na compreensão da linguagem e ideias, estas

se constituíram fator determinante para este trabalho. A observação direta teve um

papel fundamental na comparação da realidade somada à colaboração de trabalhos

existentes sobre a realidade da tribo Ticuna. Imagino, com base nos resultados

obtidos nesta pesquisa, que é possível um sistema educacional que valorize tanto a

aquisição de novos conhecimentos como a preservação e transmissão cultural.

As hipóteses levantadas, foram confirmadas e realmente existem inúmeros

problemas em relação à deficiência pela forma como são transmitidas as crenças, os

mitos e rituais na Escola O‘i Tchürüne. O problema do repasse cultural de uma

geração a outra se deve, em primeiro lugar, ao fato de que na nação Ticuna o papel

de educador é assumido pelos pais, avós ou parentes próximos, como por exemplo,

os tios. Por meio de levantamentos antropológicos podemos notar que para os

Ticuna não é papel do professor ensinar determinados conhecimentos e que o

ensino dos mesmos pode gerar a quebra de alguns tabus, como é o caso de

conhecimentos específicos para as mulheres e para os homens. Quanto à hipótese

de que existem diferentes correntes educacionais foi constatado que, na verdade,

são diferentes posturas pedagógicas ou formas metodológicas diferentes de ensino

ou até mesmo do nível de comprometimento dos professores com o ensino. Existem

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professores, a exemplo do professor entrevistado A.R.S, que utiliza até o ritual da

festa da moça nova como fonte inesgotável de aprendizagem e recursos

pedagógicos.

Quando tem comemoração da festa da moça nova, o professor tem que assistir a festa da moça nova junto com seus alunos, os alunos têm que observar o que está acontecendo na festa da moça nova, tem que marchar, tem brincadeira, os alunos têm que anotar o que veem. O professor tem que observa, ficar atento e quando voltar na sala de aula tem que perguntar deles o que eles viram na festa da moça nova, ver se eles entenderam. O professor tem que perguntar o que significa cada coisa que viram na brincadeira, então os alunos têm saber mesmo o que é a tradição. (Entrevistado A.R.S, 2012).

Muitos pais indígenas influenciados pela cultura não índia deixam seus filhos

à mercê da escola, e seus destinos são traçados de forma omissa. O repasse

cultural que era responsabilidade principalmente da família e através da oralidade,

agora cai sobre os ombros do professor que passa a assumir total

―responsabilidade‖ que na realidade não lhe é atribuída culturalmente.

O modelo de escola observado na Escola Municipal Indígena O‘i Tchürüne

não é um modelo indígena e sim o um modelo de escola não indígena, apesar de os

professores serem bilíngues, não deixa de ser uma escola nos moldes não indígena

segundo as definições propostas por Meleá (1979), quando ela traz a diferença entre

educação dos índios e educação indígena.

A comunidade indígena vê na escola um instrumento de preservação da

cultura, mas o grande problema que encontramos é que na escola muitas vezes não

ocorre a transmissão cultural da forma idealizada pela comunidade indígena, e o

ponto mais frágil nesse processo, observado nesta pesquisa, são as convicções

animistas e a própria ―teologia popular‖ que é demonstrada por meio de suas lendas

e contos. O descaso por tal conhecimento é um ―estar à beira do abismo‖, ou seja, a

inerência de um povo de cultura singular torna-o apenas pessoas que se identificam

por causa da língua materna. A cultura histórica dos Ticuna, nesse caso, torna-se

obsoleta.

A situação socioeconômica da mesorregião do Alto Solimões, marcada por

elevados níveis de pobreza, e a falta de alternativas econômicas paras as

populações locais, associada ao baixo nível de escolaridade e aos antecedentes

históricos de exploração dos povos indígenas, contribuem para práticas de violação

dos direitos indígenas, os quais são forçados a adotar o sistema de vida dos não

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índios para que se tornem extintos, ou seja, são forçados a ―mudar‖ para sobreviver.

O processo educacional foi caracterizado pelo distanciamento dos conteúdos

oferecidos em relação à realidade do povo Ticuna, assim como pela dificuldade de

comunicação entre professores brancos e alunos Ticuna, inclusive no que se refere

à língua. Reforçava-se, uma tendência geral no enfraquecimento da cultura dessa

comunidade indígena, que fazia parte do processo de perda do domínio da sua

própria língua.

O modelo ―tradicional‖ de educação indígena não pode competir com a

esmagadora e influente cultura não índia. Os principais meios de influências são o

contato direto com o não índio (principalmente com fins lucrativos através do

comércio) e a programação televisiva.

O modelo de educação implantado na aldeia Ticuna demonstrou sua

fragilidade evidenciando que essa educação tida como educação indígena, pode até

ser bonita na teoria, mas apresenta ineficácia em sua aplicabilidade. Essa foi a

constatação deste trabalho, e tal aspecto foi confirmado por diversas lideranças

indígenas entrevistadas nesta pesquisa, em discussões e palestras realizadas por

ocasião da I Conferência Regional do Alto Solimões e Javari, organizada pelo MEC

em maio de 2009, a qual tive o previlégio de participar.

Diversas políticas de controle têm travado o processo educacional indígena. É

importante saber dos próprios indígenas qual é a melhor forma de educação que

eles necessitam, ou melhor, é interessante que os próprios indígenas participem da

elaboração de um novo projeto educacional para povos indígenas no Brasil.

Os Ticuna estão cercados por uma cultura predominante e que

aparentemente torna a vida mais fácil. Isso tem gerado a aculturação, que é a perda

de identidade própria para assumir uma nova identidade cultural. Desse pensamento

surgem as divergências no próprio meio ticuna quanto à educação indígena, e nesse

contexto, duas correntes são destacadas: uma considera que é importante estudar

os mitos, preservar a cultura através de um ensino bilíngüe; a outra acredita que é

perda de tempo estudar os mitos e aspectos culturais, pois enquanto estão

estudando aspectos culturais, os não índios estão se preparando para o vestibular.

Essa corrente considera ainda que a escola indígena não prepara seus alunos de

forma adequada, que eles não são preparados do mesmo modo que os não índios,

o que gera a discriminação de sua etnia demonstrando as estatísticas que apontam

que poucos indígenas conseguem ingressar na faculdade se não houver um

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programa de formação diferenciado.

Muitos aspectos importantíssimos relacionados à cultura ticuna foram

deixados do lado de fora da escola, e após a análise de determinados fatores, foi

possível constatar que a educação, tal como a conhecemos, reproduz e consagra a

desigualdade social. O sistema capitalista que gera a educação bancária, a

―educação do opressor‖, que com tanta veemência foi criticado por Paulo Freire,

continua bem vivo e perto de nós. Brandão (1995, p. 100) afirma nesse sentido, que

―é preciso acreditar que, antes, determinados tipos de homens criam determinados

tipos de educação, para que, depois ela recrie determinados tipos de homens‖.

O modelo necessário de educação para a escola indígena deveria ser o

buscar alternativas em uma educação que fosse apropriada para a sobrevivência da

cultura ticuna, uma educação adequada à realidade cultural dos Ticuna, e mais que

isso, que eles fossem os mentores de tal educação. Segundo Comênio (1976, p.

104) ―não é necessário consequentemente introduzir nada no homem a partir do

exterior, mas apenas fazer germinar as coisas das quais ele contém os germens em

si mesmo e fazer-lhe ver qual a sua natureza‖.

As crenças ticunas estão tornando-se obsoletas em meio aos estudantes,

portanto, faz-se necessário, um resgate da cultura e, sobretudo partindo da escola

para que esta nação ―diferente‖ não venha a ser mais uma, tragada pelo ―monstro da

superioridade cultural‖. É preciso que ocorra uma tomada de consciência e possível

resgate de identidade cultural. Como ressalta Paulo Freire ―Ninguém liberta

ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão‖.

A Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena que ocorreu em

Setembro de 2009, em Brasília, teve, antes de tudo, um papel de indicar mudanças

e influenciar positivamente o Estado na oferta dessa educação. As conferências

regionais devem apontar inovações para serem incorporadas nas leis e diretrizes

dessa modalidade de educação. É necessária a criação de uma política própria de

Educação Escolar Indígena que respeite a diversidade de cada contexto local. Essa

política atual não respeita a territorialidade e divide os povos indígenas de forma

equivocada. Deve-se pensar na participação comunitária na gestão da educação, a

partir da criação de novos mecanismos administrativos e burocráticos para essa

gestão.

São as universidades brasileiras, aliadas à ação de organizações não

governamentais, que têm tentado formular e viabilizar uma política nacional de

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Educação Indígena cujos princípios básicos são: a vinculação e reconhecimento das

escolas indígenas no Sistema Nacional de Educação; o uso das línguas maternas e

incorporação dos processos próprios de aprendizagem como base de implantação

da escola formal; o desenvolvimento de programas, currículos e materiais didáticos

específicos e diferenciados para as escolas indígenas; preparação de recursos

humanos especializados para a formação de professores indígenas.

O desafio continua lançado, resta saber por qual prioridade: conseguir que o

Sistema Nacional de Educação repense imediatamente a concepção de educação

para o país e formule depois um conceito de educação para minorias, ou que faça

as duas coisas concomitantemente. O que é preciso redimensionar e contestar é o

atual discurso disseminado nas repartições públicas "preocupadas com nossos

indígenas", que remete a uma falsa sensação de dever cumprido.

Com muita frequência, o que se percebe é que mudou apenas a roupagem do

dizer: o discurso incorpora o tirânico clichê antropológico do "determinismo cultural",

as frases de efeito do jargão pedagógico do "aprender construindo em processo" e

da inevitabilidade do "ensino bilíngue". O fazer continua o mesmo. Além disso, a

experiência histórica brasileira nos tem revelado outra verdade: não basta uma

Constituição. É preciso que as políticas gerais de governo reflitam seus princípios

em práticas abrangentes e interventoras, de modo a garantir uma transformação no

direcionamento das ações públicas voltadas para o "social". Este é um problema de

ordem nacional, que atinge a todos que não podem pagar para ter sua escola:

brancos, pobres e minorias étnicas, em geral.

O intuito, ao realizar esta pesquisa, foi contribuir de forma consciente e

humilde para a mudança de rumos — do dizer e do fazer — da chamada Educação

Indígena na região do alto Solimões, no momento em que parece abrir-se um

espaço para reformulações, no âmbito da política oficial, através do próprio

Ministério da Educação. Procuramos, assim, dar alguma substância às discussões

que têm sido travadas no Comitê de Educação Escolar Indígena, no seu trabalho de

assessoria e de definição das novas "Diretrizes para a Política Nacional de

Educação Escolar Indígena". Nesse contexto, foi importante oferecer à comunidade,

entre outras coisas, reflexões, críticas e polêmicas sobre aspectos da Educação

Indígena e relatos de experiências alternativas, divulgação de ideias e projetos que

poderão influenciar positivamente, inclusive reconhecendo e observando a literatura

produzida por indígenas.

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O que é ser índio(a) hoje? Qual a visão da cultura e da história indígena na mídia, na poesia, na prosa e nos livros didáticos? Como distinguir as especificidades da literatura indígena em meio ao processo de transculturação e reconhecer a existência dessa literatura, em meio a tantos ―apagamentos‖? Quais os pontos de confluência entre os diferentes saberes dos povos indígenas no Brasil. (GRAÚNA, 2012, p.36).

Diante destes questionamentos propostos pela autora precisamos de uma

maior conscientização do que é ser um indígena e os indígenas precisam saber o

seu papel frente aos desafios. Cabe também aos pais e à sociedade

conscientizarem-se de que o papel da educação escolar indígena é tão importante

quanto a educação familiar para que tenhamos êxito na educação e no contato com

outros povos, pois é na escola que o indivíduo se prepara para exercer uma

profissão, no entanto, é com o caráter e a moral que obterá na educação familiar

que vai ser forjado para fazer com que os futuros profissionais exerçam suas

funções como bons cidadãos críticos e participativos na sociedade.

As crianças Ticuna necessitam, em primeiro lugar, do apoio da família; em

segundo lugar, dos docentes, dos colegas de sala e do psicopedagogo como apoio

para aquelas que apresentam dificuldade de aprendizagem. De acordo com a LDB

9394/96, art. 2º: ―A educação é dever da família e do Estado inspirada nos princípios

de liberdade e nos ideais de solidariedade humana tem por finalidade o pleno

desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua

qualificação para o trabalho‖ (BRASIL, 1996). A lei é clara quanto à participação de

família no processo educativo. Alencar (2001, p. 86) concorda e reforça ao afirmar

que ―É muito importante o papel do professor juntamente com a família no que diz

respeito ao diagnóstico e acompanhamento de crianças que apresentam problemas

de aprendizagem específicos de leitura, escrita e aritmética‖.

Observamos na realidade Ticuna que muitos profissionais têm se

preocupado, única e exclusivamente, em transmitir para seus alunos apenas aquilo

que os livros didáticos contêm, não se importando com a formação do pensamento

crítico e do caráter de seus alunos, privando-os de crescerem intelectualmente, pois

sabemos que ao nos prendermos em demasiado ao livro didático isso nos impede

de formular ideias próprias. O papel de todos os educadores não é somente o de

transmitir o patrimônio cultural, mas também de participar da formação do homem e

do cidadão, e essa formação do cidadão deve fazer parte do processo educativo nas

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comunidades Ticuna.

É preciso planejar uma educação que, pelo seu processo dinâmico possa ser

criadora e libertadora do homem. Planejar uma educação que não limite, mas que

liberte, conscientize e comprometa o homem diante do seu mundo. Este é o teor que

se deve inserir em qualquer planejamento educacional, a liberdade de expressão e a

autonomia nas ideias.

A experiência docente é espaço gerador e produtor do conhecimento, mas isso não é possível sem uma sistematização que passa por uma postura critica do educador sobre as próprias experiências. Refletir sobre os conteúdos trabalhados, a postura frente os educandos, frente ao sistema social, político, econômico, cultural é fundamental para se chegar à produção de saber fundamentado na experiência. (GHEDIN, 2002, p. 46).

O acompanhamento familiar também é algo essencial na escola,

principalmente na educação infantil, pois é nessa fase que as crianças precisam

receber todo o apoio, orientação e estímulo dos pais, para que dessa forma elas se

sintam amadas e protegidas por eles. Ao se sentirem assim, com certeza terão mais

estímulo para aprender a ler, a escrever, a pensar criticamente etc.

Cabe a todo profissional da área da educação começar a refletir sobre suas

práticas pedagógicas, sobre como vem desenvolvendo o ensino e de como ele pode

melhorar suas metodologias, pois ninguém consegue ser um bom profissional se

não der lugar a inovações. O professor precisa estar capacitado para atuar de

acordo com a situação real em que seus alunos se encontram, baseado no

conhecimento prévio e nas experiências vivenciadas por eles no seu cotidiano.

Por meio desta pesquisa ficou evidente que apesar das conquistas na

educação das aldeias indígenas garantidas por direitos constitucionais, bem como,

de algumas conquistas políticas, a educação indígena está aquém de suprir as

necessidades socioculturais encontradas na etnia Ticuna. Cabe ressaltar que

educação para a sociedade é uma construção do homem, realizada através das

objetivações humanas, do trabalho, enfim, das ações humanas realizadas sobre a

natureza no sentido de transformá-la para suprir necessidades básicas, materiais e

espirituais. É interessante atentar para o fato que não existe realidade social que

não tenha sido tocada e reorganizada pela "humanidade do homem". Essa

sociedade, por sua vez, atua sobre o próprio homem, constituindo-o, modificando-o,

transformando-o. Assim, o homem constrói, reconstrói e é construído, cria e é

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recriado no curso das relações sociais estabelecidas em cada momento histórico.

Quando pensamos em qualquer indivíduo, seja Ticuna ou não índio, não

podemos representá-lo como um indivíduo único, isolado, independente de suas

condições objetivas, subjetivas, materiais, sociais e culturais. A subjetividade de

cada indivíduo, o que é próprio de cada sujeito, suas características pessoais, seu

jeito de ser e de agir, tudo isso não é uma dimensão absolutamente própria de cada

pessoa, como somos muitas vezes levados a supor. A subjetividade do indivíduo é

construída e reconstruída no jogo das relações sociais. Assim, indivíduo e sociedade

constituirão uma mesma realidade, na qual o indivíduo é uma expressão mais

particular e a sociedade é uma expressão mais geral.

Na sociedade em que vivemos, somos levados a pensar e agir como se

fôssemos, cada um de nós, pessoas únicas e isoladas, absolutamente originais,

desligadas e separadas do que convencionamos chamar de contexto social, uma

coisa tão abstrata que nem sabemos o que significa. Cada vez mais somos

estimulados pela necessidade de demonstrar uma originalidade, um brilho pessoal,

um toque único, um charme especial e sem concorrentes. Ao mesmo tempo, somos

atraídos pelas promessas da felicidade oferecidas e que estariam ocultas nessa

possibilidade individual. Esse culto ao individualismo que muitas vezes é encontrado

até no meio indígena, constitui uma das manifestações de um processo histórico que

dá origem, mantém e fundamenta a sociedade capitalista e tem sua base no fato de

que o capitalismo necessita que os indivíduos sejam "livres" e desembaraçados para

produzir, consumir e concorrer entre si. Nessa perspectiva, torna-se fundamental

privilegiar o indivíduo em detrimento da sua condição de ser social pertencente a

uma universalidade, a uma sociedade, a uma classe social a uma etnia indígena. As

dificuldades são imensas, mas considero que mesmo em aldeias é possível ainda

educar para a sociedade.

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APÊNDICES

APÊNDICE A – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS

1) A sua educação escolar foi exclusivamente na comunidade indígena, ou foi

estudar na cidade?

2) Fez algum curso Universitário? Qual, em que lugar e Universidade?

3) Há quanto tempo é professor? Quais as disciplinas você leciona?

4) Você já exerceu outro cargo na escola?

5) Como era a educação tradicional dos Ticuna?

6) Quais foram às mudanças que você tem observado em ralação ao ensino da

cultura?

7) O que você acha das mudanças sociais? Há abertura ou resistência a essas

mudanças?

8) Existe tendência para absorção de valores culturais (costumes) de outros povos

próximos (Colombianos, Peruanos e Brasileiros (moradores das cidades vizinhas))?

9) Você acha possível preservar a tradição cultural Ticuna?

10) Em sua opinião quais são os fatores que facilitam ou dificultam o ensino da

cultura Ticuna no ambiente escolar?

11) Acredita que o Ticuna tem que ser preparado para competir no mercado de

trabalho com os não indígenas?

12) Acha possível ensinar todos os aspectos culturais na escola? Ou a educação

tem que ser igual a da Cidade?

13) Qual educação que dá status para a pessoa na comunidade?

14) Você acha que os jovens valorizam as tradições?

15) Há liberdade de escolha (territorial, volitiva, familiar) em relação a padrões

culturais preestabelecidos?

16) É possível uma educação intercultural, que respeite os valores indígenas e

prepare-o para o convívio com outros povos?

17) Qual é o conhecimento privilegiado (dos antigos ou das pessoas que estudam)?

18) Com você vê a fala de alguns indígenas que dizem: ―Vou mandar meu filho para

cidade estudar, para se ―civilizar‖‖?

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APÊNDICE B – ENTREVISTAS

ENTREVISTA COM A.C

Na comunidade e um pouquinho na cidade, até a 5ª Série aqui na

comunidade, fiz um curso básico em Teologia em Pindamonhangaba São Paulo, o

que facilitou muito em relação ao relacionamento, convivência com outras pessoas,

ter capacidade de dialogar com as outras pessoas, com as autoridades. Ajudou a ter

certa influência foi muito bom, ótimo, muito bom.

Há dois anos trabalho com questões de educação na escola. Atualmente

exerço o cargo de Assistente Administrativo.

Como era a educação tradicional dos Ticuna?

Bastante complicada pra visão desse século agora, pela evolução, pela

expansão do conhecimento, a cultura anterior dos Ticuna é bastante ultrapassada

por aquilo que a gente tá vivendo hoje. Se vivermos aquilo que eles viveram, nossos

antepassados é um caso muito conflitante para a realidade atual. Então a cultura

indígena teve certa influência, negativa, então eu acho que a cultura é uma distorção

daquilo que eles chamam de cultura. Por que certas culturas que devem ser

preservadas, como: a língua, como o artesanato. Isso ai deve ser preservado. Mas

os mitos, isso ai eu acho que deve ser esquecidos, isso ai é uma distorção da

realidade para uma sociedade. Os mitos atrapalham, por que isso ai é distorcer a

realidade do ser humano.

Quais foram às mudanças que você tem observado em ralação ao ensino da

cultura?

A cultura hoje, algumas pessoas das mais velhas ainda voltam para a cultura,

preservam a cultura, mas a juventude de vinte, vinte e dois anos tem esquecido a

cultura, por exemplo: a festa da moça nova, isso ai, eu acho que daqui a alguns

anos a mais vai ser esquecido por que eu acho que essa é a principal, é uma das

principais culturas que devem ser esquecida no viver, na educação, por que isso ai

não é educação. A festa da moça nova não é uma educação, isso aí é uma

escravidão, é escravizar o jovem, é escravizar e não deixar que o jovem se eduque

se forme isso ai é prender, deixar o ser humano a mercê de uma cultura que não

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tem um avanço não se evolui para a educação. Por isso no meu ponto de vista, a

educação cultural dos antigos, deveria ser preservada só aquilo que já foi falado

anteriormente: A língua materna, a cultura artesanal, isso ai deve ser preservado.

Mas os mitos não deve preservar.

O que você acha das mudanças sociais? Há abertura ou resistência a essas

mudanças?

A mudança educacional, hoje o povo indígena, tem buscado a mudança

educacional nas universidades, na educação, o povo têm se abrido, tem visto que

ficar ai a mercê de uma cultura tão antiga não leva a formação, não leva a lugar

nenhum, por isso, hoje tem vários indígenas que estão cursando a universidade,

estão se formando, eles têm as suas mentes já aberta, porque é somente através de

uma boa educação, de um curso com nível superior que o povo consegue se

sobressair, ter uma maneira melhor de viver na comunidade, e de preservar aquilo

que deve ser preservado.

Existe tendência para absorção de valores culturais (costumes) de outros

povos próximos (Colombianos, Peruanos e Brasileiros (moradores das

cidades vizinhas))?

Muito pouco, tem muito pouca influencia, o povo indígena na sua capacidade

de pensar de adaptar as coisas é muito pouco. Há absorção talvez naquilo que

possam adquirir: na musica, nos alimento, isso ai eles tem absorvido, mas, por

exemplo: a influência é bem pouco de outros povos, no povo indígena Ticuna. Por

exemplo, a maneira de dormir, de habilitar de construir, por exemplo, principalmente

ao Brasileiro, a maneira de construir as suas casas hoje em dia é uma influencia do

povo brasileiro. Bem pouco, muito pouco tem a influencia de outros povos como os

peruanos os colombianos têm muito pouca influência no povo brasileiro indígena

Ticuna.

Você acha possível preservar a tradição cultural Ticuna?

Isso é muito pouco. A tradição, por exemplo, vai ser muito pouco preservada,

se tiver pessoas, por exemplo, com pouca visão de conhecimento, esses ai vão

tentar preservar essa cultura dos povos, por exemplo, a festa da moça nova, tem

bem poucos antropólogos que vão tentar preservar, por exemplo, para que o povo

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fique nessa situação, nesse estado de escravidão moral, por que eu acho que essa

cultura é uma escravidão moral, que prejudica, é uma grande tristeza no meu ponto

de vista preservar essa cultura ai, se continuarmos preservando isso ai, é uma

grande distorção é uma mentira que deve ser completamente banido de entre o

povo indígena, por que a educação ela transforma pra melhor e somente a

educação, somente uma boa educação vai libertar o povo dessa grande farsa essa

mentira.

Em sua opinião quais são os fatores que facilitam ou dificultam o ensino da

cultura Ticuna no ambiente escolar?

A educação, por exemplo, já foi criado até no MEC que a educação do povo

indígena Ticuna tem quer ser uma educação diferenciada. Hoje já tem livros

didáticos próprios, tem professores que já se formaram e tem preparação na língua,

então eu acho que não há nenhum empecilho para que a educação venha progredir,

não há nenhuma barreira para preservar, para ensinar a língua materna indígena

pelo meio da educação. A educação que foi debatida foi discutida, a educação

diferenciada que está no ministério da Educação do nosso País Brasil.

Acredita que o Ticuna tem que ser preparado para competir no mercado de

trabalho com os não indígenas?

Isso é normal de todos os povos, todos os seres humanos indígenas e não

indígena tem que ter um preparo, todos, todos são iguais perante alei, à lei ampara

tanto o não indígena como o indígena. Então, com uma boa educação, com um bom

preparo todos nos devemos competir e a competição com um bom preparo não há

barreiras para impedir que aconteça, a maneira de se obter uma vaga de se ter um

bom emprego.

Acha possível ensinar todos os aspectos culturais na escola? Ou a educação

tem que ser igual a da Cidade?

Tem que preservar a língua e a educação tem quer ser igual a da cidade,

somente a educação diferenciada da língua, agora a educação tem que ser a

mesma educação com a mesma intensidade com que é aplicada nas redes

estaduais de ensino e nas redes municipais, a educação tem que ser aplicado no

mesmo nível, mas excetuando da educação diferenciada que é a língua, isso ai deve

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ser diferente.

Qual educação que dá status para a pessoa na comunidade?

É uma educação que a pessoa inquire essa educação só tem uma boa

educação uma pessoa que tem um bom preparo no aspecto social e no aspecto

espiritual, por exemplo, uma pessoa que chega que conquista se forma no nível

superior se não teve um conhecimento do espiritual do religioso, essa pessoa

indígena é uma pessoa tão ignorante como qualquer pessoa que não se formou,

uma pessoa que não teve a oportunidade de se formar de se preparar é isto que é

visto na vida de muitas pessoas que já se formaram, que já estão diplomados, já

receberam o certificado, mas que tem uma vida negativa que é rejeitada por muitas

pessoas.

Você acha que a influencia religiosa que veio de fora, atrapalha a cultura

Ticuna ou ajuda a cultura Ticuna?

O protestantismo é um dos fatores que tem uma influencia na vida do ser

humano, que leva o ser humano a pensar, a cursar, a estudar, a ter uma vida social

exemplar. É a influência religiosa do protestantismo, bem que a outra influencia

religiosa sendo mais antiga mais isso ai não influenciou em melhora nenhuma, só

influenciou no negativo que influenciou na maior vergonha do povo indígena

(Ticuna).

Você acha que o protestantismo veio como uma forma nova para auxiliar as

relações sociais na comunidade Ticuna?

O protestantismo evangélico é um dos fatores que tem mudado e tem

influenciado para um melhoramento o desenvolvimento educacional e social do ser

humano.

Você acha que os jovens valorizam as tradições?

O jovem atualmente tem abandonado gradativamente a influencia da cultura

de seus pais por que eles tem visto que provavelmente, que é uma coisa negativa, é

uma coisa que somente os antropólogos que querem escravizar a sociedade, os

velhos nessa cultura que querem preservar. Ma essa cultura antiga essa cultura de

então, os jovens tem dado pouco valor, por que é uma coisa bastante, bastante

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negativa, violenta, que violenta as pessoas fazer aquilo que eles fazem.

Há liberdade de escolha (territorial, volitiva, familiar) em relação a padrões

culturais preestabelecidos?

As comunidades, os povos, os lideres não interferem. As pessoas os

indígenas tem livre escolha de morar tanto quanto na comunidade quanto cidade,

mas o indígena para ele é muito difícil morar na cidade devido as dificuldade, a falta

de preparo educacional, isso ai interfere bastante, é por isso que hoje tem muito

poucos indígenas que moram na cidade.

Os indígenas que moram nas cidades são bem visto na aldeia ou sofrem algum

tipo de preconceito?

São bem visto devido o relacionamento e devido à língua, devido as suas

origens, são bem visto, não tem nada de preconceito com aqueles que moram nas

cidades e com aqueles que moram nas comunidades indígenas.

É possível uma educação intercultural, que respeite os valores indígenas e

prepare-o para o convívio com outros povos?

Sim, há grande possibilidade se no caso o conhecimento dessa cultura, por

exemplo, se há diferença da cultura do ensino intercultural isso é uma possibilidade,

para o convívio com outros povos, porque isso facilita bastante o conhecimento de

línguas, de estudar outras línguas isso ai é uma coisa intercultural que possibilita e

facilita a convivência do povo Ticuna que já é um povo que convive com outros

povos como o Brasil, como o Peru como a Colômbia isso ai é principalmente no

conhecimento cultural, facilita bastante o conviver. Se na convivência ele esquecer a

cultura, se ele abrir mão de algumas coisas, por exemplo, da língua, se ele se

esquecer da língua, e se ele esquecer daquilo que seu pai fazia daquilo que o seu

pai desenvolveu há tempos, esse ser esse homem esse individuo. Eu acho que é

uma pessoa que ignorou aquilo que seu pai conquistou aquilo que sua mãe

conquistou isto, não estou falando daquilo que eu já falei que é uma distorção, eu

estou falando da sua língua, da sua cultura artesanal, daquilo que levou tempo para

se adaptar para conseguir, eu acho que uma pessoa que abandonar isso ai é uma

pessoa bastante, é uma pessoa completamente que não respeitou que não valoriza

a sua própria origem.

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Qual é o conhecimento privilegiado (dos antigos ou das pessoas que

estudam)?

Os dos antigos é somente mitos é um engano é uma mentira que foi

guardada; o conhecimento atual, atualizado esse ai é o conhecimento atual que

capacita que socializa esse ai é o conhecimento que deve ser ensinado, deve ser

buscado, deve ser admirado por todos. A pessoa deve se formar deve adquirir o

novo conhecimento atual.

Com você vê a fala de alguns indígenas que dizem: “Vou mandar meu filho

para cidade estudar, para se “civilizar””?

Isso aí, eu acho que essa pessoa que (...), não há civilizado, se existisse

civilizado a gente não via tanta violência, tanta barbaridade como a gente vê agora.

O verdadeiro civilizado é aquele que se socializa, é aquele que não vê preconceito,

mesmo em um mundo que a gente vive tão caótico na convivência, ser civilizado é

respeitar os valores é respeitar o ser humano, é respeitar uns aos outros. Ser

civilizado é o que eu acho que deve ser vivido e praticado.

ENTREVISTA COM A.R.S

A sua educação escolar foi exclusivamente na comunidade indígena, ou foi

estudar na cidade?

Eu que estou falando agora sou A.R.S. Primeiro eu estudei aqui mesmo na

aldeia indígena de Belém do Solimões, com um professor indígena mesmo que foi o

meu professor, com ele aprendi a ler e escrever. Em seguida estudei com um

professor civilizado que trabalhou nesta comunidade de Belém do Solimões. Então

aprendi falar pouco à língua portuguesa e assim devagar foi meu estudo. Por ultimo

conclui naquele tempo que estudei primeira a quarta serie só, daí parei de estudar e

não tinha condições de estudar na cidade, por que naquele tempo tinha dificuldade

para estudar lá, meu pai não tinha condições para pagar meu estudo na cidade.

Então por isso eu fiquei na quarta serie era 1982.

Fez algum curso Universitário? Qual, em que lugar e Universidade?

Eu sim fizera um curso universitário licenciatura plena da educação indígena

do alto Solimões, foi estudei, mas desisti quando quase terminava a etapa, então eu

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não concluir bem esse estudo, que foi realizado na comunidade, aldeia de Filadélfia

no município de Benjamim Constant. Então aquele estudo foi muito bom porque me

deu muitas informações sobre vários conhecimentos universitários que é a união de

vários conhecimentos, isso significa aprender muitas coisas, mas só que eu aprendi

pouco por que desisti, então é muito bom estudar mesmo na universidade. Essa foi

dada pelo governo federal que apoio os indígenas da OGPTB, organização que tem

a preocupação com a formação dos professores indígenas para que eles deem

aulas mais preparados na comunidade. Por isso que a OGPTB foi e criou para a

formação dos professores. Então foram eles que promoveram a aula nessa

universidade e fizeram parceria com a UEA, onde ela ajuda a universidade, então

assim é agora. Então os colegas já concluíram a universidade, eles já estão

formados.

Há quanto tempo é professor? Quais as disciplinas você leciona?

Eu já trabalhei na escola durante 24 anos, quando trabalhei na escola

ministrei quatro matérias: português, matemática, ciências e geografia. Eram só

quatro disciplinas, assim eu dei aula porque tenho um pouco de experiência nessas

matérias, mas nossos alunos naquele tempo também aprenderam um pouco

comigo, por exemplo, na aula de português, eu falo um pouquinho de português e

explico bem o que significa cada palavra, depois formo frases, explico em português

e depois traduzo em nossa língua, na matemática é muito bom, falo em português e

na nossa língua do mesmo jeito, então é assim que dou aula, muitos dos meus

alunos gostaram de minhas aulas, por que eles aprenderam comigo e alguns alunos

me elogiaram eles dizem que ―sou professor experiente, e tenho conhecimento para

dar aula‖. Às vezes alguns de meus alunos me elogiaram, ai foi que observei que

minha aula era boa para eles.

Você já exerceu outro cargo na escola?

No ano de 2008, eu fui transferido para outro cargo, como auxiliar do chefe do

posto da FUNAI, posto indígena. O chefe regional de Tabatinga me indicou como

substituto chefe do posto já há dois anos exerço cargo de servidor auxiliar da FUNAI,

e agora estou assumindo o cargo de chefe. A função é anotar todas as reuniões, se

as lideranças se reunirem eu tenho que anotar tudo que ocorre nessa comunidade,

por exemplo, briga de indígena com indígena, tenho que anotar todo material que

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chegar aqui, que foi doado pelo governo, tenho que anotar tudo isso e fazer um

relatório, isso não pode perder esse é o meu trabalho, outro trabalho que faço é

aconselhar o povo indígena, por exemplo, se tiver uma briga entre eles, então eu

junto com o cacique, o chamamos para aconselhar para não fazer mais essa coisa

ruim, esse é meu trabalho agora como chefe do posto do distrito de Belém do

Solimões. Esse é um trabalho de defender o povo e fiscalizar a área indígena sob

minha jurisdição tudo isso fiscalizo junto com o cacique, é assim que é o trabalho

que estou fazendo agora.

Como era a educação tradicional dos Ticuna?

A educação tradicional dos Ticuna era muito mais voltada para as tradições,

por exemplo, quando um Ticuna dá aula tem que usar a língua tradicional, falar na

língua Ticuna. A criança tinha que falar e escrever na língua Ticuna, isso tem que

preservar, por que é direito do indígena garantido pela Constituição Federal em Art.

231, fala que a comunidade indígena tem que preservar a sua língua materna, eles

tenham aulas principalmente na língua materna, mas também utilizar a língua

portuguesa. Então tudo isso seria bom, por que a língua tem que ser valorizada para

transmitir conhecimentos para outra pessoa; outra tradição que tem na cultura

Ticuna é a festa da moça nova. Quando tem comemoração da festa da moça nova,

o professor tem que assistir a festa da moça nova junto com seus alunos, os alunos

têm que observar o que está acontecendo na festa da moça nova, tem que marchar,

tem brincadeira, os alunos têm que anotar o que vê. O professor tem que observar

ficar atento e quando voltar na sala de aula tem que perguntar deles o que eles

viram na festa da moça nova, vê se eles entenderam. O professor tem que

perguntar o que significa cada coisa que viram na brincadeira, então os alunos tem

saber mesmo o que é a tradição.

Quais foram às mudanças que você tem observado em ralação ao ensino da

cultura?

Na minha observação mudou um pouco a cultura, por exemplo, antigamente a

escola era construída pelos próprios pais dos alunos, era feito de paxiúba, de

carnaúba de palha. Os próprios pais dos alunos construíam. O professor que dava

aula antigamente era pago pelo próprio pai do aluno, agora mudou é diferente, o

professor indígena está ganhando, pago pelo prefeito, pagam um Salário, outros

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ganham pela FUNAI, a FUNAI paga bem para eles, então essa foi à mudança que

teve em ralação ao ensino da cultura. Agora outra mudança foi na vestimenta,

realmente o Ticuna desde a formação de cada comunidade indígena usavam

roupas, mas alguns não tinham sapatos naquele tempo, assim mesmo estudavam.

Hoje em dia estão são bem vestidos, tem sapatos, tem relógio. Alguns Ticuna já se

aculturaram, já tem organizado suas casas, já tem televisão, alguns já têm telefone e

já tem mudado um pouco a situação social deles.

O Senhor usou a expressão aculturado, você acha que alguns indígenas têm

esquecido a sua cultura?

Sim, Alguns indígenas têm desvalorizado ou esquecido a sua cultura, por falta

entender a sua cultura, por falta de entender ou valorizar a sua cultura, eles

desvalorizam mesmo, mas só que eles perceberam que a outra cultura é boa, a

cultura do outro povo é boa, por isso abandonaram. Mas sim, não são muitos, só

alguns indígenas que estão deixando, por falta de entendimento, por isso que eles

esquecem e não resistem.

O que você acha das mudanças sociais? Há abertura ou resistência a essas

mudanças?

Agora, geralmente hoje em dia o povo indígena tem mudado na parte social e

alguns mudaram só na parte física, por exemplo, alguns jovens hoje em dia que

perceberam outra cultura que vê na televisão, cortam cabelo diferente, fazem pintura

no cabelo. Alguns jovens Ticuna perceberam e fazem isso daí da outra cultura. Daí

que vem a mudança, mas alguns pai e mães resistem essa cultura, restem mesmo

com a cultura deles, principalmente a pessoa que é idosa, assim velinho eles falam

para seus filhos para sua filha não gravar outra cultura de outros povos. Tem a

cultura deles também, mas existe a nossa cultura. Hoje é um pouco complicado e

acontece mesmo, por que cada vez vem mudando um pouco a cultura de cada

povo. Isso também acontece no meio do povo indígena.

Existe tendência para absorção de valores culturais (costumes) de outros

povos próximos (Colombianos, Peruanos e Brasileiros (moradores das

cidades vizinhas))?

Olha aqui nas tendências de valores culturais de outros povos, é negocio dos

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colombianos assim, eles realmente vivem pouco aqui na comunidade indígena, só

alguns peruanos e brasileiros,mas uma parte dessas pessoas são boa, mas a outra

parte não é boa por que algumas dessas pessoas influenciam os indígenas na parte

ruim, por exemplo, passam droga assim os Ticuna influenciados pelos colombianos,

ai que está o problema isso que está acontecendo agora no meio indígena, porque

colombianos e peruanos envolvidos com droga, eles são vendedores de droga, os

Ticuna que não sabem acompanham. Daí que está o problema de relacionamento

com o colombiano, peruano e brasileiro. Sim mas a outra parte, alguns colombianos,

peruanos e brasileiros é boa. Assim como os Ticuna tem gente boa, mais alguns são

pessoas ruins é assim mesmo que acontece. Então nesse ponto cada cultura tem

que resistir, por que o Ticuna ele não vende droga nem desenvolve a droga, mas

hoje em dia ele está envolvido, alguns Ticuna já estão envolvidos com drogas, fumo,

cheira cola. Tudo isso trazido pelo colombiano ou peruano, então assim que é essa

cultura, hoje em dia sabemos que a droga já era cultura de alguns povos indígenas,

eu li em um livro que até hoje em dia alguns indígenas de outras tribos machucam a

folha de cocaína, assim é a cultura deles, mas para nós indígenas que vivemos no

amazonas, não temos essa cultura.

Você acha possível preservar a tradição cultural Ticuna?

Sim é possível preservar a tradição da cultura Ticuna, por que é única, têm

seus mitos, uma cultura deve ter seus mitos, a mitologia de sua origem para ter

raízes para saber onde surgiu cada povo, por que sem raiz não tem segurança, por

exemplo, uma planta para nascer, primeiro é preciso da semente que nasce e cresce

a raiz dela é segura no chão, a raiz dela tem que se aprofundar no chão para

segurar, assim também é uma cultura e preciso segurar para não ficar abandonado,

por exemplo, na tradição Ticuna é em sua origem um povo pescado. O Ticuna povo

pescado no igarapé do Eware, ai que está às origens do povo Ticuna. Isso daí

precisa ser preservado mesmo. Assim como um documento preservado, como a

escrita, gravação ou com apresentação dramática.

Em sua opinião quais são os fatores que facilitam ou dificultam o ensino da

cultura Ticuna no ambiente escolar?

O que dificulta o ensino da cultura Ticuna, é, tudo aqui é fácil. Quando se fala

em meio ambiente, o indígena está relacionado com o meio ambiente por que ele

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está vivendo nas comunidades, perto de tudo que existe na natureza, mas tudo isso

é bom à pessoa cuidar da natureza, assim na preservação do lago, terra, floresta e

até na escola. O que a gente preserva na escola: a língua, falantes da língua Ticuna,

tem que escrever e produzir livros escritos na língua Ticuna, assim que já está

preservando a cultura escolar indígena, por que sem registrar alguma coisa, não tem

como preservar a cultura, então é isso que está fazendo a escola indígena agora, tá

lutando para registrar a sua língua comum na cultura. Assim que pode preservar.

Acredita que o Ticuna tem que ser preparado para competir no mercado de

trabalho com os não indígenas?

Sim, alguns indígenas precisam se preparar para competir mesmo, para

trabalhar com o não indígena, por que tudo aquilo que a gente quer aprender, não

aprende aqui mesmo, tem que aprender com outra pessoa é preciso de alguém que

oriente para que dê certo. Então. Por que todos os conhecimentos vêm de outros

povos. Como os povos indígenas Ticuna estão um pouco atrasados no estudo,

precisam de alguém que oriente eles para poder trabalhar, fazendo parceria, um

ajuda o outro, assim que seria bom. Hoje alguns indígenas já sabem trabalhar,

trabalhar para o bem de sua comunidade, por exemplo, um dos meus primos já

trabalha com a caixa econômica, uma parceria, assim um ajuda o outro, assim que

seria bom, mas hoje os indígenas só alguns já sabe trabalhar por que trabalhar para

o bem da sua comunidade, o exemplo é meu primo ele trabalha com a caixa

econômica, aqui na comunidade de Belém do Solimões, ele mesmo já trabalha com

a caixa econômica, uma caixa, ele registrou, tem CNPJ. Então agora esse Ticuna já

ta dirigindo esse trabalho, e ele primeiro tinha duvidas ele tinha dificuldade de como

vai sacar dinheiro, como vai fazer prestação de contas, mais ele tinha medo, mas

divagar agora ele já aprendeu já funciona a caixa na casa dele, ele já aprendeu

então esse daí é um exemplo para mim. Realmente precisou alguém para ajudar ele,

mas depois que ele já sabia, ele mesmo cuida do trabalho dele, assim é.

Acha possível ensinar todos os aspectos culturais na escola? Ou a educação

tem que ser igual a da Cidade?

Aqui a educação na cultura indígena, precisa ensinar aluno aquilo que é bom

da cultura. Mas alguma cultura alguma parte não é bom não deve ser ensinado, o

que é bom tem que ensinar, por exemplo, como fazer remo, fazer canoa, fazer

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peneira tipiti, isso é uma cultura do indígena. Isso daí não o professor não pode

dizer que o aluno não pode fazer, o professor tem que ensinar por que isso daí é

bom para ele ensinar na escola, é importante mesmo, por exemplo, fazer uma arte

uma igaçaba feito de barro com varias misturas, então assim o Ticuna constrói uma

igaçaba, essa igaçaba serve para colocar água, a água fica um poço fria, parece

com a geladeira é bom para beber essa água, isso daí tem que ensinar mesmo, e

educação na cidade, por exemplo, é muito bom também estudar, tem que estudar

mesmo por que a educação na cidade e bom mesmo aprende digitar no

computador, aprende datilografar na maquina de escrever, e tem que saber ligar no

telefone, tudo isso é cultura do branco. Tudo isso precisa saber também, por que se

não sabe digitar computador, é ruim pra gente, tem que saber mesmo. Todos são

bom, cultura indígena cultura do branco também bom na área do estudo, por que

precisa mesmo saber duas cultura, até mesmo varias culturas.

Qual educação que dá status para a pessoa na comunidade?

A Educação mais valorizada na comunidade é o estudo mesmo. Estudar e

tem que ser aluno dedicado mesmo, estudar no colégio e aprender sua língua e

escrever, mas tem que saber escrever na língua portuguesa, assim, mas falar, o

mais valorizado é isso. Não poder ser valorizado só uma parte, só um lado por que

se falasse só na língua Ticuna, só valorizando ai, se não sabe falar o português dá

dificuldade, mas tem que valorizar principalmente a sua língua, depois a segunda

língua que foi emprestada. Tem que valorizar esses dois, mas está bom por que a

maioria dos países: Estados Unidos, Japão. Todos esses falam sua língua própria,

estudam na sua própria língua e escrever na sua língua e depois eles estudam em

outras línguas para ter uma boa comunicação com outras pessoas, então isso daí

que é valorizado, mais valorizado também é a cultura mesmo, as tradições. Para que

sempre tenha resistência na cultura com a educação, tem que ter apresentação,

dramatização, o professor tem que fazer dramatização com seus alunos na hora das

atividades na escola, ai que ele vai explicar para o aluno não esquecer.

Você acha que os jovens valorizam as tradições?

Olha de primeiro não valorizavam, quando a escola estava começando em

1981/2 ai que os próprios indígenas diziam assim eu não quero falar minha língua,

por que isso daí não vale é nada, eu quero aprender a língua portuguesa, só

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valorizavam a língua portuguesa, por que a língua dele para ele não vale nada, isso

daí era por falta de entendimento naquele tempo, mas quando a maioria estudaram

na OGPTB, na comunidade indígena de Filadélfia, quando muitos (professores)

estudaram na universidade, ai que os professores já aprenderam o que é cultura,

para que serve a cultura, daí que fortaleceu a valorização da cultura, a valorização

da linguagem. Hoje os alunos já aprenderam um pouco, agora estão valorizando a

língua indígena, então, a maioria dos professores já estão falando que tem que

valorizar mesmo, hoje em dia é assim preservado.

Há liberdade de escolha (territorial, volitiva, familiar) em relação a padrões

culturais preestabelecidos?

Sim, mas também nesse ponto alguns tem sua escolha, por exemplo, cada

liderança estabelece algumas normas para a comunidade, algumas pessoas dão

valor, mas outros não dão valor, isso que acontece também, por que não existe um

só pensamento cada um tem um pensamento, cada povo indígena tem liberdade de

escolher o que ele quiser, mas, por exemplo, aqui na comunidade existem a policia

indígena, alguns tem vontade de trabalhar nessa parte, tem sua liberdade, mas

alguns próprios indígenas não valorizam a policia indígena. Mas essa pessoa que

diz isso falta o conhecimento, sabe por que um policial serve para cuidar do seu

povo para melhorar a sociedade de cada povo, como exemplo, cada país tem a sua

policia, tem o seu militar, tem a marinha, o exercito, tudo isso para cuidar do seu

povo, assim também o Ticuna precisa ter policiamento, tem vontade de fazer isso,

mas tem que ter um conhecimento mais profundo.

É possível uma educação intercultural, que respeite os valores indígenas e

prepare-o para o convívio com outros povos?

Todos nos precisamos saber a cultura dos outros povos, para que tenhamos

um amplo conhecimento, por que não é bom saber só uma cultura não é bom

conhecer outras culturas de outros povos, tanto como inter tribais que como no

Brasil que tem muitas culturas, mas que para viver outra cultura, por exemplo,

vamos supor o ―branco‖, na cultura dele ele já sabe respeitar um ao outro, ele na

casa dele ele é bem organizado: ele usa relógio, usa sapato e tudo isso é cultura,

ele vive coisa boa, mais toda cultura, todos os povos tem que aprender mesmo por

que essa cultura é boa e aí forma a aculturação de cada povo, por que não é bom

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viver sempre ma escravidão na ignorância, por que a sabedoria vem para civilizar,

para tornar uma pessoa bem respeitada, bem educada, mas acultura sempre tem

que existir, sempre tem que ser preservada. Na minha ideia, por exemplo, eu sou

Ticuna, já estudei um pouco, eu sempre Ticuna mesmo. Na minha vida eu sempre

falo bem com meus irmãos, os civilizados quando encontro por ai dou bom dia, como

vai; eu respondo bem eles e eles me respeitam, assim que é bom já tá aculturado

um pouco, por que outros que não sabe isso falam mal dos outro, isso não é bom é

discriminação, então assim cada povo tem que segurar sua cultura, mas tem que

aprender outra cultura, assim que é o relacionamento, tem que viver bem com outras

pessoas.

Qual é o conhecimento privilegiado (dos antigos ou das pessoas que

estudam)?

O conhecimento do antigo, por exemplo, é bom esse daí é bom, o conselho

dos nossos avós, por que eles falavam para seus filhos antigamente assim: meu

filho você tem que saber fazer remo, fazer canoa, tem que saber pescar, isso têm

que saber mesmo para quando você casar, conseguir uma mulher não faltar nada

para sua mulher, mas se você tem preguiça, preguiçoso e não saber fazer nada,

então você vai sofrer necessidade. Esse é o conselho dos avós, hoje em dia a

maioria Ticuna já estão envolvidos no conhecimento dos brancos, já estão na escola

estudando, alguns próprios pais dos alunos já pensam em mandar os filhos para o

colégio, para estudar bem e ter um emprego para ganhar bem, mas só se estudar.

Alguns filhos dos Ticuna obedecem aos pais e são privilegiados, aqueles filhos que

aprendem, são privilegiados conseguem emprego na área da saúde, educação

ganha bem.

Com você vê a fala de alguns indígenas que dizem: “Vou mandar meu filho

para cidade estudar, para se “civilizar””?

Na minha ideia realmente alguns, alguns indígenas Ticuna falam isso, sabe,

por que no pensamento deles o filho deles tem que estudar na cidade, para ele falar

o português. Para que ele ao menos quando os brancos perguntar, ele responder,

para não ficar envergonhado, para ter coragem de falar para ter coragem de

trabalhar na escola ou na saúde, por que só aquele que fala o português esse daí

que serve para trabalhar em algum setor pessoal da prefeitura, do governo, por que

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se não fala em português aí tem dificuldade como é que vai entender ou falar com o

branco, por causa disso é que alguns pais mandam os seus filhos para estudar na

cidade. Para quando eles voltarem já falar em português foi por isso que mandei

meus filhos estudar na cidade.

ENTREVISTA COM J.G.F

Há quanto tempo você Trabalha servindo a comunidade?

Olha, eu trabalho desde 2003, fui eleito em voto direto pela comunidade, fiz o

possível para trabalhar corretamente com a população, meu nome mesmo é J.G.F

conhecido por M., nasci no Takana, no igarapé que fica um quilometro acima de

Belém do Solimões, nasci e me criei e estou aqui na comunidade, prestei serviço

como liderança (Cacique) 7 anos, desde os meus 44 anos hoje tenho 53 anos, em

todo esse tempo a gente viu muita diferença dos anos que passaram, tem uma

diferença muito grande.

A sua educação escolar foi exclusivamente na comunidade indígena, ou foi

estudar na cidade?

Em 1972, a gente morava no Igarapé Tacana e a Educação na época era

muito difícil, tinha muitas dificuldades por que a gente não morava em comunidade,

na época da borracha a gente morava muito longe e ai a gente estudou com muito

sacrifício, saia 4 horas da madrugada para chegar 7 horas onde estava a escolinha

feita de palha e paxiúba, o professor era daqui da região mesmo um parente

Cocama, que dava aula pra gente, então eu estudei aqui mesmo dentro da área, da

região. E por isso hoje a gente vê que o meu estudo, o pouquinho que estudei, fiz o

ensino fundamental de primeira a quarta série, hoje me serve muito por que a gente

vê muita diferença do passado para o presente data hoje, e por isso hoje a gente

está aqui na comunidade de Belém do Solimões, onde eu estou há mais de 40 anos

e a gente vê que as coisas cada vez melhora na área de educação. Também na

área do ensino bilíngue também foi uma contradição muito, assim que trouxe um

momento meio difícil para os alunos indígenas quando ―surgiu‖ a língua Ticuna, aula

na língua Ticuna, porque muitos indígenas não aceitaram. Eles preferiram que seus

filhos estudassem na língua portuguesa mesmo, para pegar mais pratica,

conhecimento com o povo ―branco‖, mas no fundo a gente tinha um meio de trazer a

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cultura que estava se perdendo de volta, aí nós trabalhamos, nós as lideranças

conscientizando a população de que a aula em língua, bilíngüe era um meio de

resgatar a cultura de muitos jovens que hoje não conhecem a realidade da cultura.

Por que muitos ignoram até a própria cultura dele, então, com o trabalho que a gente

fez hoje sentimos que eles começam relembrar o passado perguntando as pessoas

idosas, como era antigamente, como era a educação? A educação antigamente era

muito diferente que a de hoje, por que era mais aprimorada, mais forte, era mais

cobrado. Na época da palmatória, do caroço do milho, o aluno tinha que responder

as perguntas, tinha que saber as quatro operações da matemática, por que se

errasse era castigado, com a palmatória, com o caroço de milho, então nessa época

eu estudei, o meu estudo que aprendi na época de primeira à quarta serie hoje me

serve muito por que eu trago comigo. A educação hoje avançou muito, mas também

para população indígena ela teve um avanço muito grande, quando eles começaram

a descobrir que a língua indígena é importante, hoje nós indígena já fazemos uma

cartinha para nossos companheiros na língua indígena, manda um bilhetinho, nós

lemos as bíblias que estão sendo traduzida em língua Ticuna, a gente já tem

facilidade, e antigamente mínguem não sabia de nada, hoje não, com o avanço da

educação traduzido para língua Ticuna, à educação bilíngue.

Você acha prejudicial ou benéfica à chegada das missões que fizeram

traduções da bíblia para língua Ticuna, você acredita que isso atrapalhou a

cultura ou foi bom para a cultura Ticuna?

Pelo trabalho que a gente faz foi um avanço muito bom as missões que hoje

estão traduzindo a bíblia em língua Ticuna, por que é um meio onde todos que tem a

bíblia é um meio de praticar, a lê e estudar. Ajuda muito a desenvolver a

sensibilidade de cada um, por que ele se dedica, por que muitas vezes eles pegam a

cartilha escolar e não se dedicam a ler, por exemplo, uma moça, um rapaz, um idoso

que é evangélico, mas eles se dedicam a ler dois capitulo três capítulos da bíblia, um

versículo, dois na bíblia que interessa a ele dentro da missão, então a bíblia ajuda a

trazer uma facilidade de leitura dentro da nossa língua.

Como era a educação tradicional dos Ticuna?

Antigamente a educação tradicional começou através da comunicação, eles si

comunicavam através de sons, através de bambu, na época. Os antigos, meus avós

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sempre contavam, eles não sabiam ler mais tinham um tipo de comunicação,

conferiam o troco com um tipo de pedrinha, com caroço de milho, o valor era tanto,

então contavam tantos caroços de milho, e tiravam ou colocavam. Mas depois com o

aprimoramento vieram outras pessoas trazendo outros conhecimentos na educação,

começaram a falar na educação escolar, que hoje cresceu, na época que era difícil

de trazer a educação, só às missões que criaram as pequenas escolinhas, que

ensinavam desde o A, B, C... Até hoje que o estudo está mais desenvolvido. Mas a

educação antigamente ela era muito difícil, não tinha um meio da população

indígena ou não indígena dessa região, se comunicar pela escrita, a comunicação

era mais por sons. Usavam um tipo de madeira bem cavado, que produzia um eco e

quem ouvia sabia que fulano estava de ajuri, era um tipo de comunicação. A festa

tradicional, a festa da moça nova era outro tipo de som, usavam o aricana que era

feito da casca de uma madeira, eles tiram a casca e vão enrolando e fazem um tubo

bem grande com a boca bem grande e a ponta bem fina para eles buzinar, isso é

outro tipo de comunicação, eles não precisam vim aqui e dizer tão dia tem a festa da

moça nova, um trabalho, eles baixavam com a canoa e buzinavam e todos ouviam,

sabia que em tal maloca, estava acontecendo alguma coisa. Não era qualquer

pessoa que podia tocar só quem era preparado para tocar, por que na nossa

tradição indígena, a aricana tem um símbolo que só a pessoa escolhido podia tocar,

os idosos escolhiam as pessoas e preparavam, nessas festas que juntam muitas

pessoas que naquela época agüentavam uma semana tomando pajauaru, comendo

carne assada, banana assada, durante essa festa eles preparavam a pessoa,

quando chegava à época da festa a pessoa tocava, em toda a maloca tinha um

escolhido. Quando iam fazer a festa era a pessoa que saia, dois remavam e a

pessoa só escolhida tocava. Não tinha motor naquela época, era só no remo.

Quais foram às mudanças que você tem observado em ralação ao ensino da

cultura?

As mudanças nesse tempo, de lá para cá, mudaram muito. Na época a

cultura tinha as danças tradicionais que hoje muitos já ignoram, não praticam: a

dança do bambu, a dança do tracajá, a dança do urucu, a dança do Mutapa, isso

eles não estão praticando mais, por que precisa de muitos preparos para fazer a

dança da forma tradicional, então hoje mudou muito, dos anos oitenta para cá ainda

teve mais uma mudança, por que a população em oitenta, oitenta e um, e oitenta e

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dois, começou a abandonar mesmo a tradição cultural. Por que começaram a se

envolver com outras culturas não indígenas, eles acharam que era mais bonita e

começaram a praticar. Hoje aqui existe a dança da arara vermelha, arara azul,

dança do boi, quadrilha e outras. Então isso chamou a atenção da juventude a

deixar a sua cultura para entrar em uma cultura nova que não é propriamente deles.

Então hoje os idosos estão questionando muitas vezes, nas reuniões eles

questionam por que estamos trabalhando para o resgate da cultura, mais são só os

idosos que voltam a praticar, a juventude rejeita, fica com vergonha por que eles

ficam achando que é muito difícil muito feio então eles não praticam. Hoje a gente

está sempre questionando para o resgate da cultura milenar. Muitos que estão

estudando, estão cursando a escola bilíngue, falam que e preciso o resgate da

cultura, por que o povo não conhece mais o que era deles, e estão praticando outras

culturas que não é permitido a gente usar.

O que você acha das mudanças sociais? Há abertura ou resistência a essas

mudanças?

Nas mudanças sociais, por uma parte a população achou uma facilidade, e

por outra parte é um pouco rejeitado por que trouxe muitas divisões na convivência

do povo e facilidade por que hoje na sociedade indígena tem algumas coisas que

eles não aceitam, quando muda ai entra o civilizado, pode se envolver na

comunidade, ai o peruano, o colombiano, isso é pela liberdade e facilidade de entrar.

Mas dentro do intuito do povo indígena, eles não querem abrir espaço, por que isso

trás uma dificuldade para ele, por que quando os nãos indígenas trazem uma

cultura, uma ideia diferente, ai o povo indígena adulto acham que eles estão

ensinando coisa que não deve ensinar, por que às vezes eles trazem bebida,

cigarro, inventam outros tipos de brincadeiras que dentro da sociedade indígena não

é permitido eles usarem, mas também, por outro lado a sociedade indígena

melhorou por que hoje nos temos o banco postal, o Bradesco, nos temos a caixa

econômica federal, que facilitou a ida, o deslocamento de todos os indígenas daqui

até Tabatinga para poder retirar seu dinheiro, muitos não precisa ir à tabatinga,

comprar alguma coisa. Por que aqui mesmo tem alguns comércios, hoje nos temos

frango, calabresa, refrigerante. Então no passado antes de entrar essa socialização

dentro da comunidade era difícil e tudo era em Tabatinga. Hoje a sociedade

melhorou bastante, tem como os aposentados retirar seu dinheiro aqui mesmo, tem

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como o pessoal do programa bolsa família receber seu dinheirinho aqui mesmo,

então facilitou, por uma parte é bom e por outra parte não é muito bom, por que o

povo indígena a juventude, eles gostam de imitar. Eles veem alguma coisa, eles

gostam de fazer também.

Você acha possível preservar a tradição cultural Ticuna?

Olha, é um ponto muito fundamental que hoje a gente está trabalhando em

cima disso por que quando nós falamos para nossa juventude para o nosso povo

que nós precisamos preservar a nossa cultura, tem dois pontos que temos que

pensar como preservar. Hoje dentro do nosso contexto da população indígena que a

gente vê é que a nossa cultura ela está sendo publicada sem a gente ter a

participação do que está sendo feito, por que hoje a juventude faz a de musicas

religiosa, culturais tradicionais e musica mundana também, não religiosa, isso ai eles

estão vendendo para fora, as pessoas tão vendendo esses discos, então, até muitos

deles hoje estão fazendo entrevistas sobre as culturas, mas cobrando. Eles vendem!

Isso ai hoje traz a dificuldade para nossa cultura dentro da comunidade. Hoje nós

adultos (as mães, os Paes), estamos preservando a cultura, mas por outro lado,

sentimos que os jovens como não tem o entendimento que os adultos têm, ele

comaçam fazer isso. Então hoje temos visto que nossa cultura já está sendo

publicada abertamente. Todo mundo já sabe mais ou menos, mas tem o fundo que

ainda não foi descoberto do povo indígena ainda, e isso ai é que o povo esta

preservando por que isso é preciso ter essa preservação, por que esses aspectos

não podem ser publicados abertamente de acordo com as leis que o povo indígena

tem que seguirem. E a gente tem como preservar, hoje estamos trabalhando para

preservar essa cultura.

Em sua opinião quais são os fatores que facilitam ou dificultam o ensino da

cultura Ticuna no ambiente escolar?

A educação hoje, ela se divide em dois pontos mais difícil, nós temos

professores hoje que eles não falam a língua Ticuna, ele entra em seu horário com a

língua portuguesa, ai o aluno trabalha; o segundo professor vem com a língua

Ticuna, o terceiro com espanhol e assim vai. Entre essas mudanças de línguas é

que o aluno indígena se atrapalha muito. Aqui tem essa dificuldade, por que no

período do primário, de primeira a quarta serie, é um professor só, então tem

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facilidade, ele estuda. Mas o professor acha difícil dar aula na língua Ticuna, por que

a língua Ticuna é um pouco complicada, ela é um pouco difícil, tem indígenas que

não sabem pronunciar as palavras certa. Ele fala nas não sabe se ele está falando

corretamente como era no passado, ele fala muito diferente, mas na realidade

quando aquele que entende ouve, sabe que ele não pronunciou direito aquela

palavra. É dentro da escola que dificulta isso, é a atenção do professor. Tem

professor que não gosta de explicar muito para o aluno, ele põe lá na lousa, explica

uma vez e vai embora, ai o aluno se perde. Essa é a dificuldade que o professor não

se dedica a ensinar o aluno, para o aluno ter esse ensinamento. Então essa é a

dificuldade, na questão do professor que não ensina o aluno bem.

Acredita que o Ticuna tem que ser preparado para competir no mercado de

trabalho com os não indígenas?

Isso ai é uma parte muito fundamental que hoje a população vem

trabalhando, dentro da educação já em nível superior nas universidades, a

população indígena hoje precisa competir na educação ou no mercado da educação

para que o aluno indígena chegue no ponto, no nível para ele ter uma

responsabilidade muito grande de ele ir estudar para competir com o não indígena,

para que ele possa trazer esse conhecimento que ele aprendeu, para dentro da

comunidade. Isso ai é uma coisa que a gente vem trabalhando há muito tempo,

procurando espaço nas grandes universidades para que o Ticuna chegue lá para

estudar, mas é um pouco difícil por que a gente não conseguiu esse espaço ainda.

As outras comunidades que ficam aqui perto: Campo Alegre, Betânia, Nova Itália,

nos já temos alguns indígenas que estão em grandes universidades estudando

direito, medicina. Mas a fraqueza que dá é que quando ele aprende não quer voltar

mais para a aldeia, então essa é a grande dificuldade. As lideranças, os caciques

das outras comunidades, quando a gente questiona para nandar um aluno para as

grandes universidades para competir, terem uma educação de qualidade e voltar.

Muitos dizem: será que ele vai ir e vai voltar para a comunidade? Por que temos

diversos exemplos de indígenas que foram e não querem voltar mais, por que lá

encontraram um mercado de trabalho muito melhor que o daqui então não querem

mais voltar, mais isso ai é uma questão nossa, que a gente vem trabalhando para ter

essa competição na educação.

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Acha possível ensinar todos os aspectos culturais na escola? Ou a educação

tem que ser igual a da Cidade?

Na escola indígena a gente vem sempre acompanhando a educação

indígena, na língua Ticuna e a educação da cidade, elas não tem quase diferença,

ela só muda de dialeto. A educação diferenciada ela entra com a cultura, entra com

a tradição, entra com as lendas os mitos que os alunos têm que aprender, mas

traduzindo para o português, é a mesma coisa, por que no português as aulas são

mais voltadas as lendas lá da China, dos outros continentes e a língua Ticuna ela já

não visa esse lado, ela visa o que está dentro da cultura mesmo, a historia de Joe,

Ipi como tudo se criou, é aprimorado também o ensino da cidade. A maioria dos pais

das mães eles pedem que seja trabalhado e ensinado, o ensino da cidade para que

o aluno aprenda as duas coisas. O ensino da cidade e o ensino da cultura.

Qual educação que dá status para a pessoa na comunidade?

A educação que dentro da comunidade a gente sente que o povo busca mais

é a educação da cidade, por que dentro da língua Ticuna, o que é mais conhecido

da educação da cidade é o português, então todos os alunos destacam-se mais na

língua portuguesa e também na língua indígena, pois o professor exige para eles

não perderem suas tradições sua cultura.

Você acha que os jovens valorizam as tradições?

Hoje no presente tempo, a tradição indígena é pouco valorada pelos jovens,

só quem começa a valorizar são os que estudam história indígena e reconhecem o

quanto perderam por não valorizar a cultura, mas a maioria que não prestam

atenção eles não valorizam. A minoria valoriza a maioria não dá valor às tradições.

Há liberdade de escolha (territorial, volitiva, familiar) em relação a padrões

culturais preestabelecidos?

Esse é um ponto muito fundamental que a gente hoje vem trabalhando, por

que dentro dos parâmetros da lei indígena tem duas coisas: os indígenas tem

liberdade de escolha, por que eles têm uma liberdade de optar para onde é que ele

vai, mas ele não pode trazer coisa que vai ofender a comunidade. Ele tem liberdade

de montar um comercio, de comprar um motor, tudo que ele precisar, menos a

bebida alcoólica. Outra coisa, uma menina tem a liberdade de casar com qualquer

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um civilizado, mas a lei diz que se a mulher casar com um rapaz da cidade, ele tem

que levar ela para a cidade, e se a menina lá da cidade casar com o indígena, ele

por direito tem que trazer ela para a comunidade. Essa é a diferença que tem dentro

da liberdade que eles têm, mas eles são livres, todos indígenas são livre eles podem

fazer o que eles quiserem. Só não cigarro e bebida alcoólica!

É possível uma educação intercultural, que respeite os valores indígenas e

prepare-o para o convívio com outros povos?

Isso ai é uma coisa que a gente vem trabalhando há muito tempo, mas é

difícil para as lideranças, para a população por que quando nos falamos de trazer

essa unificação essa pacificação para a população é quando chega o momento mais

fundamental, que cada cultura, com suas tradições, sua língua tradicional materna,

mas dentro do convívio entre as outras etnias diferentes, no português ele tem uma

familiarização muito boa por que ele se entende, mas quando chega no momento

das tradições é diferente, cada um puxa para o seu lado, então sempre aconteceu

essas palestras, conversas entre as lideranças para a gente viver em união, trazer o

conhecimento de outro povo para a comunidade e nós levar o conhecimento para

outro povo e poder se conhecer melhoro deles.

Qual é o conhecimento privilegiado (dos antigos ou das pessoas que

estudam)?

São os dois pontos que hoje a gente tem visto o que esta sendo valorizado o

que estuda e também os que os antigos, por que sem conhecer as lendas, as

historias antigas o aluno hoje chegar ao conhecimento de hoje, por que a educação

de hoje sempre visa à história antiga, da população indígena antiga. Sempre ela tem

os dois lados.

Com você vê a fala de alguns indígenas que dizem: “Vou mandar meu filho

para cidade estudar, para se “civilizar””?

Esse é um ponto muito fundamental, por que muitas vezes dentro das

comunidades indígenas o aluno termina o ensino médio, mas não consegue falar o

português, então uma versão que os povos indígenas têm, quando eles veem outras

pessoas falando bem o português, ele começa a pensar: meu filho está estudando

oitava serie ou no primeiro ou segundo ano e não sabe falar o português, então ele

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começa logo a pensar nisso, eu vou mandar meu filho para a cidade, que é para

quando ele voltar, saber falar o português para poder conversar com qualquer

pessoa que vem de fora, para atender as pessoas, então essa é a visão pela qual

eles mandam os filhos para fora.

Como Você vê as pessoas que vão estudar fora e não querem mais voltar para

a comunidade? Você acha que elas perderam ou abandonaram a cultura, qual

o seu pensamento a esse respeito?

Olha, meu pensamento, eu que já acompanhei varias pessoas que hoje estão

em Manaus, estão em Brasília, que estudaram e se destacaram para essas grandes

cidades que era para estar hoje na nossa comunidade, é devido que quando eles

saem da comunidade eles saem com a proposta de voltar para a comunidade, mas

lá começam a desenvolver outros pensamentos, outros amigos novas pessoas e

quando eles se forma naquela área que ele foi estudar a própria universidade já

oferece (emprego) ganhando um bom salário. Ai ele pensa e tem alguns que vem

até a comunidade, vai à prefeitura, vai à escola, vai a todo canto procurando

trabalho, ai o salário é muito baixo, então ele não consegue o que ofereceram para

ele lá, então ele se obriga a voltar pelo contrato de trabalho nas grandes cidades.

Mas também ele muda muito, tem alguns deles que perde um pouquinho a cultura,

agora tem alguns que quanto mais estuda fora mais ele pratica a sua cultura, ele

anda pintado na cidade, usa seu cocar, usa seu colar, suas pulseira, sua tradição.

São gente que às vezes dentro da comunidade ele não praticava isso, mas quando

ele chega lá fora ele começa estudar, ele relembra do povo dele, ele não quer

perder a tradição do povo dele então ele representa o povo dele a onde ele tiver.

Porque que acontece isso? É aquilo que falei no inicio que o professor não leva ao

conhecimento da tradição. Temos que preservar a cultura por que a cultura dá o

reconhecimento da tua tribo, dá o reconhecimento da tradição, diz qual foi o povo de

onde você veio e qual é a tua historia. Então quando ele sai da comunidade que ele

chega lá nas grandes universidades que ele vai estudar a historia do povo Ticuna ai

ele mesmo se reconhece. Pensa: lá eu não aprendi, mais aprendi aqui, é o momento

que ele começa a usar mesmo a cultura dele, aconteceu com muitos que eu

conheço que estão hoje em Brasília, no Rio de Janeiro, São Paulo, trabalhando.

Quando eu encontro eles estão muito diferente, quando saíram daqui tinham até

vergonha de usar um cocar na cabeça, um colar, e hoje quando encontro eles, eles

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representam o povo Ticuna.

Você acha que alguns indígenas que moram na cidade têm preconceito,

vergonha de dizer que são Ticuna?

Olha já presenciei varias pessoa que eu conheço varias pessoas que foram

nascidos e criados aqui, mas já disseram na minha frente que não é Ticuna, que não

gosta de Ticuna, e algumas vezes até entro em debati dizendo Eu te conheço, nos

nascemos juntos em tal lugar, se criamos juntos e hoje você tem preconceito de sua

própria pessoa, você não está ignorando os colegar não, você está ignorando você

mesmo. Por que você nasceu e se criou lá, então a pessoa fica assim, meio com

vergonha. Eu digo: eu não, eu nasci e me criei lá na região, minha mãe é Ticuna,

meu pai é paraense, mas eu me orgulho de ter tido uma mãe indígena, eu me

orgulho de falar minha língua Ticuna, falo ela em qualquer canto, a onde eu estiver

eu falo e declaro que eu sou Ticuna. Por que a minha mãe, a minha cultura e minha

tradição, isso eu nunca vou perder. Minha língua eu nunca vou perder, a onde tiver

um Ticuna eu converso com ele. Então muita gente quando chega morar na cidade,

quando chega morar em Tabatinga, em Manaus não quer mais ser indígena, mas

tem gente que preserva a onde ele estiver isso é uma pergunta muito boa.

ENTREVISTA COM V.V

A sua educação escolar foi exclusivamente na comunidade indígena, ou foi

estudar na cidade?

Eu estudei naquele tempo antigo aqui mesmo na comunidade com o Profº

R.O.C, com ele terminei o estudo de 1ª a 4ª Série antiga, depois estudei no curso de

formação de professores indígenas da OGPTB em Filadélfia até concluir o ensino

médio Magistério, depois estudei na faculdade, fiz cinco etapas e desisti com

problema de Saúde, durante dois anos sentia muita dor, por causa disso desisti.

Fez algum curso Universitário? Qual, em que lugar e Universidade?

Às vezes eu consigo algum curso lá em Filadélfia, há muito tempo atrás fiz um

curso de elaboração de livro de linguística da comunidade de Vendaval, em 1987.

Em 1988 Fiz outro curso para elaboração de outro livro em Vila Betânia município de

Santo Antonio do Içá.

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Há quanto tempo é professor? Quais as disciplinas você leciona?

Sou professor desde 1988, até agora 2012, vinte e quatro anos como

professor, já foi Cacique da comunidade por 6 anos. Em 2007 entre para o cargo

de Gestor da escola através de uma portaria, eu sai em 2010, fui 4 anos gestor da

escola.

Você já exerceu outro cargo na escola?

Além de professor e gestor da escola, o prefeito no ano passado me indicou

como diretor Pedagógico da Escola.

Como era a educação tradicional dos Ticuna?

A educação tradicional do povo indígena Ticuna. Sou professor há muito

tempo que eu estou dando aula com a língua Ticuna e ao mesmo tempo dando aula

de português, variando entre português, língua Ticuna e matemática, meio a meio

com as matérias de geografia, ciências arte Ticuna e educação física.

Quais foram às mudanças que você tem observado em ralação ao ensino da

cultura?

A mudança com relação ao ensino, do povo indígena e não indígena. No

tempo antigo, nos que somos um povo indígena estudávamos com a língua Ticuna e

a língua portuguesa, mas hoje em dia no tempo atual não é mais como no tempo

passado, hoje o estudo na escola está mais avançado, por que nos somos

professores e ensinamos com as duas línguas. Os professores que tem entrado há

pouco tempo, é um pouco diferente a vida do professor, por que tem alguns

professores que já falam mais do que Eu e os professores antigos que não falam

muito o português, e hoje os professores novatos já são formados na cidade e falam

bem o português, então os alunos aprende com ele, com o professor que ensina na

língua portuguesa e na língua Ticuna, aprende as duas línguas. Os alunos, os

jovens já falam um pouco de português, não é como no tempo antigo que ninguém

falavam, os alunos antigos sabiam só para ler, mas não falavam, mas hoje em dia

até tem os pequenos de dez anos para cima, alguns já sabem responder ao

professor em língua portuguesa.

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O que você acha das mudanças sociais? Há abertura ou resistência a essas

mudanças?

Nos temos as mudanças, mas sempre temos que preservar a nossa cultura,

para não esquecer o que já fizemos.

Existe tendência para absorção de valores culturais (costumes) de outros

povos próximos (Colombianos, Peruanos e Brasileiros (moradores das

cidades vizinhas))?

Aqui mesmo nessa comunidade de Vendaval, não temos isso, sempre o povo

é daqui mesmo. Agora com os colombianos e peruanos não sabemos, por que não

tem colombiano ou peruano não indigna aqui, os que vêm são bem pouquinho do

peru e da Colômbia, eles tem uma cultura igual à cultura indígena do povo brasileiro,

falam a mesma língua, tem a mesma cultura, não é diferente. Na aldeia de vendaval,

nos vivemos sempre com a nossa própria cultura, a diferença que tem é através da

religião, a religião Católica, dos brancos e a religião evangélica que é um pouco

diferente, mas não deixamos de praticar nossa cultura, o que aprendemos tanto na

igreja e fora dela nos preservamos, nossa vida sempre esta melhorando por causa

disso.

Você acha possível preservar a tradição cultural Ticuna?

Aqui nos o povo da comunidade de vendaval nos continuamos cuidando e

preservando para não esquecer a cultura do tempo passado por que se deixar de

uma vez o povo esquece a sua historia desde o inicio até o tempo atual. Mas eu

como professor tenho uma coisa que não posso mais fazer é uma cultura principal, a

festa da moça nova, eu não posso mais fazer, por que creio em Deus e na festa da

moça nova é feito uma bebida muito forte e depois o pessoal vão brigar no meio da

briga as pessoas morrem: matam com faca, com cacetada de pau e morre, já era.

Por causa disso eu não posso mais mexer, mais as outras cultura eu não posso

deixar: o nome Ticuna, o clã, cada pessoa tem o clã e o nome, as casas de palha, o

fazer roça, a caça a pesca, a línguas, os artesanatos, o fazer canoas, os

casamentos isso não deixamos de preservar, mas tem a sua religião como

evangélico a única parte é a festa da moça nova que deixamos de fazer, por que no

meio disso ai tem coisas ruins, mas se tem alguma coisa boa não deixamos de

fazer.

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Em sua opinião quais são os fatores que facilitam ou dificultam o ensino da

cultura Ticuna no ambiente escolar?

O ensino dentro da escola que eu sinto no meu coração que nos somo um

povo indígena e temos dificuldade na língua portuguesa, por que nos não falamos

bem com os brancos que falam bem direito não tem nada de palavra atrapalhada,

falam bem direito, mas sempre que falamos tem alguma palavra atrapalhada,

algumas dão certo, mas algumas não dão certo. Por que a língua portuguesa não é

a nossa língua, por isso quanto mais perguntas tenho dificuldade de dizer, de falar.

Mas algumas conseguimos dizer e responder, mas sempre lutamos par consegui e

quem é aluno novo e os professores novos tem que estudar mais par acabar a

dificuldade de cada pessoa. As únicas coisas que temos dificuldade é na palavra e

na matemática sempre temos dificuldade no ensino na escola, agora a língua Ticuna

não temos dificuldade. Temos um pouco de dificuldade na arte também, por que arte

não é só desenho, a arte é para construir alguns texto, livros, alguma coisa. Nisso

temos um pouco de dificuldade, mas já demos alguns passos 50% que nos

conseguimos e 50% que nós temos dificuldade.

Acredita que o Ticuna tem que ser preparado para competir no mercado de

trabalho com os não indígenas?

Nos temos na relação com o não indígena, até próprio na comunidade nos

temos algumas coisas para fazer, na relação com o não indígena que nos temos na

cidade para poder trazer alguma coisa para o bem da comunidade, temos um

intercambio uma troca, par poder conseguir alguma coisa. Por enquanto aqui na

comunidade de vendaval, nos temos uma parceria com a prefeitura e o governo do

estado para conseguir alguma coisa que precisamos.

Acha possível ensinar todos os aspectos culturais na escola? Ou a educação

tem que ser igual a da Cidade?

Aqui na escola indígena é diferente da escola estadual ou municipal da

cidade, por que na comunidade é diferente da cidade. Por que os estudantes da

comunidade indígena não falam muito na língua portuguesa, claro que eles estudam

na língua portuguesa, mas algum que tem cabeça boa consegue rápido, mas aquele

que a cabeça não é boa não consegue. É isso que também os professores não

indígenas que vem do município ou de outra cidade tem dificuldade na relação com

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os alunos. Por que o professores não indígena que leciona aqui, o aluno não sabe

falar o português e o professor que vem de fora não saber falar nossa língua.

Quando o professor pergunta os alunos não responde, quando o aluno pergunta o

professor não responde.

Qual educação que dá status para a pessoa na comunidade?

A Educação valorizada é a língua Ticuna e o português, principalmente o

português para poder fazer contato com os brancos, ou na língua espanhola

também, precisamos estudar por que estamos perto da fronteira para poder fazer

contato com os peruanos ou colombianos e os próprios brasileiros também.

Você acha que os jovens valorizam as tradições?

Aqui na comunidade os jovens valorizam os costumes deles como a língua

materna, a arte, a moradia, o casamento, bebida que não é forte, eles preservam,

dão valor a cultura.

Há liberdade de escolha (territorial, volitiva, familiar) em relação a padrões

culturais preestabelecidos?

Quando um jovem casa com uma moça, durante um tempo que não tem

dinheiro para fazer uma casinha para morar, sempre ele fica na casa do pai ou do tio

durante um tempo, mas quando consegue dinheiro para fazer sua própria casa ele

sai e fica com a família.

É possível uma educação intercultural, que respeite os valores indígenas e

prepare-o para o convívio com outros povos?

Ele aprende com a outra cultura, a cultura de outro povo, ele tem respeito

com a outra pessoa, ele vive junto na mesma casa e às vezes não falam a mesma

língua, mas é indígena, temos os Cambeba, Cocama que existe em São Paulo de

Olivença, ele é indígena, mas não fala mais sua língua.

Qual é o conhecimento privilegiado (dos antigos ou das pessoas que

estudam)?

A educação antiga é muito diferente, o povo antigo tinha educação, mas não

era como hoje, os mais antigos, nossos avós ensinavam os filhos netos bisnetos,

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para eles fazerem a canoa, fazer o remo, fazer a zarabatana, fazer casa, fazer tipiti,

fazer pote, fazer igaçaba como a gente fazia comida típica, é muito diferente, hoje

não existe mais, era o ensinamento do povo antigo, sobre o casamento eles também

ensinavam para não casar com qualquer pessoa, se casar com prima é pecado deus

vai castigar um dia, fazer tudo que tinha no tempo passado. Não é como hoje na

escola, hoje é diferente. Hoje o ensino é a letra, os jovens menores de idade, eles

não sabem mais o que é do tempo passado, hoje os alunos sabem só lê e fazer o

que o professor manda: formar frase, formar texto, hoje em dia já é isso. Os pais

também já ensina o filho, manda estudar na escola, manda procurar um lugar para

terminar o ensino médio, o pai manda estudar em algum lugar, procura a faculdade,

manda procurar a área que quer estudar, isso é hoje em dia, já e diferente do tempo

passado, pensam só em faculdade pra fazer o que ele quiser.

Você acha possível uma forma de ensinar que valorize tanto os conhecimentos

culturais como as letras que se ensinam hoje?

Hoje na escola têm muitos alunos na escola que não sabem mais fazer tipiti,

aturá, canoa, tipiti e etc. Mas eu como professor, há vinte poucos anos, sempre

estou falando para eles que hoje em dia nós não valorizamos mais muitas coisas

que aprendíamos, já esquecemos, é preciso resgatar de novo para esquecer tudo,

pois o que esquecemos é coisa que tem valor, que precisas mos, mas não fazemos

mais atura, não fazemos mais tipiti, aturá, remo, canoa. Tudo isso é bom para

vender e ganhar algum dinheirinho para darem valor a nós e para poder fazer o que

precisamos fazer, assim que sempre falo para eles. Os pais hoje têm que voltar,

porque antes só incentivavam para estudar e não para fazer artesanato, tudo que os

antigos ensinavam eles esquecem por que o pai só manda estudar, só para

aprender a língua portuguesa e nem mesmo à língua Ticuna. Hoje estamos voltando

demovo a cultura.

Com você vê a fala de alguns indígenas que dizem: “Vou mandar meu filho

para cidade estudar, para se “civilizar””?

Até eu como professor, nadei meus filhos para estudar na cidade, por que a

maioria do pessoal da comunidade quer mandar seus filhos para estudar na cidade

para falar o português como o pessoal da cidade. Mas tem vários pais de aluno que

mandam seus filhos estudar no colégio dos brancos e eles abandonam por que cada

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pessoa tem uma vida deferente, tem jovem que gosta de namorar com as moças e

tem moças que gostam de namorar com rapazes. Por isso muitos que vão estudar

na cidade abandonam e volta pra a comunidade de novo. Aquele que não abandona

consegue aprender e consegue até uma função como professor ou agente de saúde

e algum serviço que tem na comunidade ele consegue, e consegue também às

vezes um cargo. Mas aquele que não quer trabalhar consegue fazer faculdade em

Tabatinga, em Benjamim, e outros fazem cursos de Técnico em enfermagem em

Tabatinga, é isso que temos daqui da comunidade, mas a maioria dos pais e mães

manda os filhos estudar na cidade para conseguir falar bem com os brancos, mas

alguns não conseguem. Outros conseguem através do dinheiro, por que quando a

gente estuda na cidade, quando fica na casa de algum patrão, e ali o patrão manda

lavar roupa, fazer comida e o professor manda fazer tarefa e por isso o aluno não faz

a tarefa, às vezes perde tempo e quem estuda de noite, trabalha de dia e não

consegue estudar, perde nota, perde tudo e chaga no final do ano reprovado, mas

aquele que tem casa na cidade ele consegue bem, estuda bem, faz as tarefas e o

pai ajuda, manda farinha para ele para poder comer, um peixinho e o resto do

dinheirinho para comprar material para estudar, aquele que tem condição, mas

aquele que não tem condição também abandona antes de terminar o ensino médio,

antes de terminar o ensino fundamental.

ENTREVISTA COM P.I.P

A sua educação escolar foi exclusivamente na comunidade indígena, ou foi

estudar na cidade?

Meu nome é P.I.P, Minematecu, nome indígena, eu sou de 1944. Nesse

tempo quando eu cresci até 1970, nessa época não existia educação, eu sempre vivi

no próprio costume e também quando tinha 15 anos de vida, foi viver no meio da

civilização, mas mesmo assim quando tinha 25 anos consegui deixar o patrão

naquela época que cada proprietário é quem mandava, não é como hoje que é livre

para os indígenas morarem, não tem mais isso, naquele tempo era o dono da

propriedade onde a gente vive. Então assim naquele tempo não conheci as letras,

nem nada por que naquele tempo era proibido para o povo indígena estudar. Assim

cresci até 1975, 1980 quando me casei com a minha ex-esposa, fiquei vivendo. Em

1972 vivi em Letícia na Colômbia, fiquei morando até 1975, ai retornei novamente

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aqui ao Brasil, e vivi em Vendaval algum tempo. Nesse tempo também não existia

escola e assim é a vida, e hoje, nesse tempo é outra vida por que era muito difícil se

viver como hoje, é muito difícil (diferente) do que a gente sonhava sobre o que

poderia acontecer no futuro. Se precisava de alguma coisa eu estava disposto a ir a

qualquer canto. Depois de 1984, 1985, comecei a fazer viagens para fora para a 1ª

assembleia Geral dos Povos indígenas sobre o direito do seu território, viajei para

São Paulo. Fiquei hospedado perto do campo de futebol Pacaembu, por ali fiquei

naquele tempo hospedado, não só eu mais cento e poucos indígenas que estavam

participando da primeira assembleia dos povos indígenas sobre o direito. Desde

esse tempo que faço grandes trabalhos, fui viajar para o Rio de Janeiro, e vários

Estados. Depois de muito tempo já depois de 1995, eu fiz uma longa viagem já para

fora do país, fui para Bélgica, Bruxelas na Europa. Fiz varias Viagens sobre as

questões de terra para serem demarcadas, como aconteceu que já foi demarcada a

terra para o povo indígena, por que naquele tempo o povo indígena não tinha direito

de viver como hoje, tranquilo e em paz. Isso que aconteceu só Deus que me deu

permissão, eu fui à Áustria para a conferência mundial indígena, e o prefeito de lá o

Sidaco que me convidou para assinar um convenio com a nossa organização CGTP,

para consegui a verba, esse dinheiro para demarcação das terras não foi dado por

brasileiros, senão um dinheiro de fora austríaco, então isso tudo eu fiz esse trabalho

naquele tempo de 1993 á 2000. Não só pela terra, mas também pela Educação,

Saúde. Todo esse trabalho eu com segui com grande sacrifício. Depois da

demarcação das terras aconteceu um grande massacre, em 28 de março de 1988

no Capacete, onde teve a matança do povo indígena por causa da terra, o

proprietário da terra disse ―que poderia sair só depois que matasse o povo indígena,

o lucro das terras que ele tinha perdido‖ então isso aconteceu. Mas mesmo assim a

gente conseguiu demarcar a terra e sempre acontecem esses problemas, de vez em

quando. Fui Capitão Geral da Tribo Ticuna desde 1980, mas em 1984 fui Geral:

Tanto do Brasil Como Colômbia e Peru, também vieram caciques vieram até no

Brasil e me Elegeram, fique 30 anos na luta, direto na frente como Capitão Geral,

depois de 90 por aí que eu já decidi que iria sair do cargo de Capitão Geral, e

mesmo assim me colocaram como presidente de honra e quando tem um novo

cacique em cada comunidade tenho que fazer uma visita e explicar o que ele não

sabe isso que faço hoje como presidente de honra.

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Como era a educação tradicional dos Ticuna?

A tradição dos Ticuna era como eu estava falando que no tempo passado,

não existia esse negocio de educação indígena, mas na própria cultura existe a

educação: o avô e avó ensinavam cada noite, chamava o pessoal de cada

comunidade se reuniam e ensinavam o povo em volta, as crianças cantarem na

própria língua para não esquecer sua língua que é cultura, era um tipo de aula que

os velos estavam dando para os mais novos. Assim a criança aprendia como tecer a

palha, como construir uma casa, como fazer um cesto, como fazer muitas coisas de

arte, que hoje em dia estamos perdendo uma parte por que os velhos que foram

mortos e os filhos em vez e aproveitar estão esquecendo. Hoje em dia tem que ter

uma educação diferenciada, só que essa educação diferenciada nunca aconteceu

claro que as professoras bilíngues M.F. e J.G.G, sempre davam aula para os povos

indígenas Ticuna que são professores, mas só que não foi cumprido o programa que

está escrito no livro, nunca foi ensinado pelos professores para o povo, eles tanto

ocupados e assim os jovens esquece as coisas da cultura, como que faz, como se

constrói em fim tudo isso esqueceram por que os professores não ensinam, não

cumprem a planilha que tinham feito no livro, então é isso que acontece. Acho isso

uma pena por que a gente vai perder, não vão mais 10 ou 15 anos. Tenho visto que

o povo indígena de 10 anos e 15 anos, e é claro que vai perder tudo por que vai

avançando no costume do branco que é o estudo em português e a língua materna

vai se perdendo, isso é uma grande pena por que vai perder tudo. Eu sei por que em

algumas partes o indígena nas comunidades que ficam próximo das cidades como

Umariaçu, Filadélfia, Belém do Solimões e outros, sempre as pessoas não tem mais

respeito pela sua missão, por que no passado era igual como a religião, da parte da

Bíblia, que é a religião de Deus, a mesma coisa no tempo passado que toda nossa

cultura faz parte de nosso herói chamado Joi e Ipi e o Mutapa, esses deixaram para

nós só que o povo não acreditou em uma parte, mas na outra acreditam, está se

acabando os velhos que contam a realidade para não misturar a raça entre si e não

acontecer um problema muito sério, um castigo. Por exemplo, se eu casar-se com

minha prima ou sobrinha que tem o mesmo sangue é da mesma família pode

acontecer alguma coisa na gravidez da mulher ou na plantação e outras coisas que

pode acontecer então isso no passado era uma coisa muito respeitada por serem

coisas sagrado, como tem o culto na igreja, a palavra de Deus que não podemos

brincar por que é coisa de Deus, é sagrado. A mesma coisa é a cultura tradicional,

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as festas, a bebida sem embriagado para depois fazer brincadeira de briga que mata

o outro com o derramamento de sangue. Isso não existia naquele tempo por que é

lei nossa era sagrada naquele tempo, ninguém brigava nem matava os outros

naquela época. Então tudo isso o costume de nossa cultura terminou, e hoje estão

vivendo melhor dizendo como bandido, roubando dos outros, ficando com raiva de

alguém que tem mais que os outros, ficando com queixa, inveja e assim vem abriga.

Meche com a mulher de alguém, com a filha alheia, enfim, tudo isso acontece e

quem é culpado são os próprios professores que não ensinam essas coisas que

deveriam ser ensinado dentro da sala de aula pelos professores, eu vejo isso no

momento.

Quais foram às mudanças que você tem observado em ralação ao ensino da

cultura?

Antes era como já falei agora no presente o povo já se esqueceu de fazer sua

própria canoa principalmente, que é cultural não é como hoje que as pessoas já têm

visto de outro tipo de canoa feito de taboa, igual ao casco de qualquer barco feito

assim, mas antes era uma arvore inteira que era cavada e aberta isso hoje o povo

não faz, mas, isso já foi terminou. O remo também em algumas partes existe, mas o

povo não quer mais remar por que existem os motores para viajar, fazer uma coisa e

outra. Agora outra cultura que ainda existe é que fazem a roça, fazem farinha, vários

tipos de plantio, enfim faz tudo isso. E outra coisa que o povo, a minoria fazem sua

própria cultura: cantam, fazem festas tradicionais mais muito pouco, mas agora

esqueceram como fazer as casas tradicionais que não tem parede de taboa, hoje as

casas tem parede de taboa de madeira, no passado era tudo na terra, tem um

material que chamamos de ripa, isso é o piso, o chão que tínhamos isso não tem

mais. Hoje não se vê mais casa tradicional, não tem casas de palha, e as que têm

não são como as feitas antes, tem parede, quarto. Essa parte vejo que perdemos.

O que você acha das mudanças sociais? Há abertura ou resistência a essas

mudanças?

Olha existe sim mais ninguém tem a coragem de enfrentar, de não deixar

acabar para continuar fazendo como antes. Vejo coisas que acontecem, mas não

sei como poderia fazer, é muito difícil para entender como poderia ser.

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Existe tendência para absorção de valores culturais (costumes) de outros

povos próximos (Colombianos, Peruanos e Brasileiros (moradores das

cidades vizinhas))?

Tanto o que chega do peru ou da Colômbia, quando chega ao Brasil é uma

cultura diferente, então a mistura faz que outro acha que isso é melhor e faz aquilo

que acha que é melhor, então por um lado perde e por outra ganha, isso está

acontecendo. Da mesma forma as pessoas que vivem na cidade: um jovem, uma

moça ou rapaz que vive ou estuda na cidade quando chega à comunidade ele

pratica a maneira, a forma que vive na cidade. Isso é uma pena por que ele traz uma

coisa lá de fora, traz uma cultura diferente. Traz as festas, dança bebida, traz fumo,

traz até droga. Esse é um grande problema enfrentado nas cidades principalmente

no Peru e na Colômbia que traz esses problemas para o Brasil. E esses jovens que

saem daqui para o peru e Colômbia vão a onde tem essa fabrica, a onde tem esse

negocio de droga, vão lá e se entrosa com outros povos e quando voltam vão fazer

esses negocio, é isso que vejo hoje.

Você acha possível preservar a tradição cultural Ticuna?

É possível, isso é por que a gente tem de vez em quando fazer uma

assembleia explicando, quem deveria fazer essa assembleia são os professores e

as professoras por que eles que estão no dia a dia na sala de aula, poderia ser na

sexta feira. Se tirassem um dia para explicar dando aula, convidando um velho ou

velho para dar aula para os alunos aprenderem, falando na língua e de forma

diferenciado, assim seria bom mais não acontece isso e cada vez vai se perdendo

mais os costumes tradicionais.

Em sua opinião quais são os fatores que facilitam ou dificultam o ensino da

cultura Ticuna no ambiente escolar?

Dentro da escola o que dificulta muito é que os professores e professoras

falam em outra língua e os indígenas não entendem, não sabem o que o professor

está falando, acho que grande dificuldade para os nossos jovens é isso que acho

que precisa e uma aula diferenciada de vez em quando, pelo menos um dia na

semana deveria convidar um velho ou velha por classe para ensinar os alunos.

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Acredita que o Ticuna tem que ser preparado para competir no mercado de

trabalho com os não indígenas?

Isso se no caso de praticar na própria cultura não fugindo de sua identidade é

muito importante essa discussão, por que o camarada que estuda fica capacitado

par discutir com presidente, com as autoridades brasileiras sobre as questões. Hoje

não sei mais como é a lei sobre o povo indígena para discutir com prefeito, na

câmara isso é muito importante para as pessoas que tem capacidade no estudo que

fica na frente de seu povo, não só para você. Por que tem muitos que tem a

capacidade, mas não querem defender seu povo. Ele quer estudar para si mesmo,

sem defender ninguém, isso não vale também. A pessoa estuda fica capacitado e

depois tem que defender seu povo, discutir seus direitos com as autoridades.

Acha possível ensinar todos os aspectos culturais na escola? Ou a educação

tem que ser igual a da Cidade?

Muitos professores às vezes falam em assembleia: a nossa língua nos já

falamos, já sabemos falar. Não precisamos estudar mais na nossa língua, por que

precisamos estudar outra língua que não sabemos. Claro que você sabe falar na sua

língua, mas você não sabe fazer a casa, você não sabe o que vai buscar La no

mato, você não conhece o que é que tem no nosso território, lá na mata não sabe

que tem o cipó, arvore que serve para alguma coisa, em fim, tudo isso você não

sabe. Mesmo que saiba falar em sua língua é importante conhecer tudo isso daí. É

isso que tenho reclamado varias vezes, por que estão dizendo que temos a língua, é

claro que a gente tem, mas os restos não sabem então não adianta.

Qual educação que dá status para a pessoa na comunidade?

A educação que eu vejo que tem que ser respeitada, aqui em vendaval é

muito difícil, como posso explicar, dificilmente participo diretamente na escola, os

professores nunca me convidam lá para dizer isso é minha planilha, é isso que faço

nunca me convidaram, mas o que vejo é que um diretor da escola e alguns alunos

me falam que é melhor a gente esquecer a língua por que se não a pessoa fica

atrasado, por que não sabe falar o português, então isso é difícil para mim, mas não

sei para os alunos, é assim que vejo a questão dos professores, é por que tem que

estudar na língua materna também para não esquecer, isso é o mais importante.

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Você acha que os jovens valorizam as tradições?

A minoria mais a maioria não valorizam mais não, por que estão em outro

caminho: no baile, na bebedeira no fumo, etc. principalmente o que eu não gosto

muito esse negocio de futebol, por que depois que um bate no outro tem briga,

enfim, isso por que não é tradição indígena é isso que sempre acontece.

Há liberdade de escolha (territorial, volitiva, familiar) em relação a padrões

culturais preestabelecidos?

Isso e para ver nos direitos do povo indígena e cada pai de família tem que

fazer acordo de como vai acontecer com o filho, a filha do camarada para não fazer

um mingau dentro de uma panela só, e depois acontecem os problemas. Acho que

isso aqui em vendaval não aconteceu com as comunidades que ficam próximas da

cidade. Mas aqui já está chegando, tem alguns que tem a prima como mulher da

mesma família, não é muito, mas já têm alguns.

É possível uma educação intercultural, que respeite os valores indígenas e

prepare-o para o convívio com outros povos?

Olha tem que se preparar mesmo, isso é muito importante para que quando o

indígena chegue a outro povo, saber respeitar a tradição que é diferente, então ele

tem que respeitar e conhecer para depois trazer para cá o que serve para a

realidade aqui. Então isso é importante para poder ter a troca de ideias com outros.

Qual é o conhecimento privilegiado (dos antigos ou das pessoas que

estudam)?

Eu acho que muito mais importante tanto faz o que esta na escola e o que

nunca foi na escola, Por que o antigo conhece muita coisa e o que esta dentro da

escola já conhece as coisas modernas e o que não esta dentro da escola e nunca foi

à escola, conhece a realidade que não tem nada a ver com a classe de aula isso é

importante.

Com você vê a fala de alguns indígenas que dizem: “Vou mandar meu filho

para cidade estudar, para se “civilizar””?

Isso para mim é uma grande perdição, por que está perdendo sua própria

cultura, depois que volta. Claro que vai estudar na cidade e depois se forma e

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depois quando chega à sua comunidade e às vezes nem quer vim mais na sua

comunidade, ele vê outra maneira de viver na cidade e depois não quer mais viver

no seu próprio povo, isso é uma grande pena por que não é a coisa correta.

você acha que as pessoas que vivem na cidade, que não falam mais a língua

podem ser consideradas como Ticuna ou já abandonaram a identidade?

Olha o que vejo na lei, na constituição federal e na lei do próprio indígena diz

no artigo 231/36 quem tem sua crença costume, cultura enfim, esse que já perdeu

sua identidade seria chamado emancipado, por que ele já não é mais indígena. Ele

que pediu, não quer mais viver como índio então perdeu e não vai mais ser

considerado como indígena.

ENTREVISTA COM PROF. A.P.

A sua educação escolar foi exclusivamente na comunidade indígena, ou foi

estudar na cidade?

Exclusivamente na comunidade e também, por que é assim a escola indígena

fica na zona rural e na zona urbana.

Fez algum curso Universitário? Qual, em que lugar e Universidade?

Bem, tem alunos que já tem curso universitário na UEA e tem também alguns

que já fizeram na UFAM, nas cidades de Tabatinga e Benjamim Constant. Eu fiz na

universidade da cidade do Rio de Janeiro, curso de pedagogia durante três anos

desde 2003.

Há quanto tempo é professor? Quais as disciplinas você leciona?

Eu já estou com três anos, trinte e seis meses. Matemática, história,

português e ciências.

Você já exerceu outro cargo na escola?

Não, só o cargo de professor.

Como era a educação tradicional dos Ticuna?

Antigamente era muito difícil, por que tradicional quer dizer: por exemplo, os

professores para escrever usavam tintas naturais, que vem da natureza para usar na

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sala de aula, para eles usar e poder trabalhar. Hoje em dia eles já usam os materiais

didáticos.

Quais foram às mudanças que você tem observado em ralação ao ensino da

cultura?

Principalmente a cultura é muito importante, por que para os indígenas a

cultura é que traz uma nova bagagem, uma nova transformação. Quer dizer a cultura

indígena ele tem a cultura própria, os costumes as tradições como ele vive lá, mas

também ao mesmo tempo ele consegue a cultura da civilização.

O que você acha das mudanças sociais? Há abertura ou resistência a essas

mudanças?

É importante sobre as mudanças sociais tanto na vestimenta, mas não só na

vestimenta, mas é importante principalmente a educação como houve uma

transformação no desenvolvimento dos alunos, alguns já estão dentro da faculdade

e outros já estão dentro da pós-graduação. Isso é uma grande mudança.

Existe tendência para absorção de valores culturais (costumes) de outros

povos próximos (Colombianos, Peruanos e Brasileiros (moradores das

cidades vizinhas))?

Sim existe sim, por que é importante valorizar as culturas como a cultura

brasileira, colombiana e dos peruanos, por que tem etnia, tem Ticuna tanto no Brasil

como na Colômbia também, e sempre eles estão praticando, vivendo o seu costume

tanto na escola quanto na comunidade. Na cultura tradicional que nunca eles

esquecem é principalmente a pesca e a caça e sempre eles sobrevivem através da

pesca e da agricultura e eles preserva muito também a terra os plantios e dentro da

escola eles preservam principalmente a língua materna.

Você acha possível preservar a tradição cultural Ticuna?

É muito, muito, por que isso é o rumo para nós da tribo Ticuna.

Em sua opinião quais são os fatores que facilitam ou dificultam o ensino da

cultura Ticuna no ambiente escolar?

Bem aqui têm dois: o que facilita em minha opinião através do ensinamento

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principalmente na aprendizagem na língua portuguesa e o que dificulta é que o

professor não indígena não tem como acompanhar bem ou ensinar na escrita de

nossa língua isso atrapalha um pouco, mas ao mesmo tempo as crianças

conseguem aprender.

Acredita que o Ticuna tem que ser preparado para competir no mercado de

trabalho com os não indígenas?

Sim eu acredito sim, como eu sou um exemplo também. Nós por que nos

somos seres humanos é preciso competir juntos com os não indígena, é muito

importante no mercado de trabalho, assim como eu estou trabalhando aqui na

secretaria municipal de tabatinga, é muito interessante isso daí.

Acha possível ensinar todos os aspectos culturais na escola? Ou a educação

tem que ser igual a da Cidade?

Têm que ser diferenciada, por que a educação na cidade é mais corrida e a

educação indígena é um pouco diferente, e por isso não são iguais, mas na

legislação fala que todos somos iguais mais ai que esta a diferença.

Qual educação que dá status para a pessoa na comunidade?

A érea da educação, a parte de saúde ou outros trabalhos.

Você acha que os jovens valorizam as tradições?

Sim muito, eles valorizam sim. Como hoje em dia os jovens têm um projeto

talento escolar de música, esporte e tradições nas competições.

Há liberdade de escolha (territorial, volitiva, familiar) em relação a padrões

culturais preestabelecidos?

Bem ai é com os moradores e com as lideranças, tem que prevenir e

preservar e não é assim livre, ai tem que ser com as lideranças mesmo.

É possível uma educação intercultural, que respeite os valores indígenas e

prepare-o para o convívio com outros povos?

Sim, claro. Isso é muito importante, tem que respeitar e valorizar para que ele

possa conviver com outras pessoas com outros povos e com outras etnias também.

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Qual é o conhecimento privilegiado (dos antigos ou das pessoas que

estudam)?

O conhecimento privilegiado para nós tem que ser o renovo, o novo

conhecimento, a nova bagagem que hoje em dia nós queremos desenvolver

principalmente na escola como com nossos jovens, adolescente e crianças também.

Com você vê a fala de alguns indígenas que dizem: “Vou mandar meu filho

para cidade estudar, para se “civilizar””?

O que aconteceu comigo. Então mandar o filho para a cidade estudar é bom é

muito importante, por que se o pai pensa que o filho se prepara mais ele tem que

saber como cuidar dele, para que ele alcance o objetivo que ele esta buscando, é

muito bom um pai que manda para a cidade para estudar e não para se civilizar,

para que ele consiga o seu estudo na cidade e retorne para sua comunidade para

ajudar o seu povo, a sua família, para que a comunidade também se desenvolva e

os moradores também tenham um aprendizado a mais, outros conhecimentos.

Você acha que têm alguns indígenas que vão estudar na cidade e não voltam

para sua comunidade?

Existe sim, tem alguns Ticuna que sai de sua comunidade, estuda, se prepara e se

ele consegue uma estrutura boa ele não consegue retornar, mas existem também os

indígenas Ticuna que estudam na cidade e voltam para sua comunidade para

ensinar o seu povo.

ENTREVISTA COM R.O.C

A sua educação escolar foi exclusivamente na comunidade indígena, ou foi

estudar na cidade?

Na realidade eu nunca fui estudar na cidade, por que na minha juventude não

tinha oportunidade para estudar, meu primeiro estudo vou contar à verdade que eu

aprendi lê e escrever em português com um pastor americano que veio dos Estados

Unidos, em uma missão da Igreja Batista Emanuel, com ele que comecei a conhecer

o que era a educação o que era o estudo, quando completei a segunda serie a gente

mudou, criamos uma comunidade perto e acabou a escola, acabou o estudo

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também e assim aprendi, nunca tive um estudo diretamente na cidade, um tempo

depois quando comecei estudar de novo, depois que tive um estudo com as pessoas

da missão, então terminei a escola e depois mudaram tudo, por que a missão fez

uma escola só para os Ticuna, depois acabou também. Alguns de nossos colegas

estudaram mais do que a gente, e continuaram na comunidade e ensinaram os

outros, sem saber e sem treinar, sem se capacitar em nada, em como dar aula, e eu

estudei um pouco com eles em Campo Alegre quando começaram a criar a

comunidade de campo alegre. Depois disso quando meu pai morreu não me lembro

em que ano, minha mãe também morreu daí foi embora para a cidade de Tabatinga

e depois fui para Letícia cidade Colombiana. Com nove ou dez anos trabalhei na

Colômbia, depois trabalhando com um patrão, não gostei por que muitos alunos

filhos de Colombianos iam para a Escola com roupas Bonitas, calçado bonito. Eu

fique muito triste e tive que voltar para o Brasil, aí encontrei um senhor com sua

mulher que me chamaram para trabalhar, voltei para o Brasil, em Tabatinga. Quando

voltei o sogro daquele senhor que me chamou primeiro, me mandou para casa do

sogro dele para trabalhar. Ele também não me deu condição, não me deu

oportunidade para estudar, eu fiquei olhando os alunos que estudavam no Brasil e

depois sai desse patrão, e outra senhora que morava dentro da cidade de

Tabatinga, me chamou e me matriculou. E eu fique sem registro, sem nada e ela me

matriculou assim mesmo, ai fiquei com ela, foi lá que fiquei dois anos estudando na

Escola Marechal Rondon, ai estudei até a quarta série, quando já tinha estudado

voltei para a comunidade buscar meu registro. Só eu e meus irmãos que viviam na

comunidade, eu fiquei sem pai e eu mesmo me virei em tudo e assim aprendi um

pouco, mas mesmo assim as pessoas já me procuravam já em 1975. Ai eu conheci

a vida da sociedade brasileira, que chamamos de Branca. Quando estava estudando

na escola fui muito discriminado, me chamaram de caboclo, me chamaram de índio,

mas assim mesmo continuei estudando no meio do pessoal com muita pressão,

quando passei da quarta para quinta serie voltei para a comunidade, ai o pessoal me

procuraram para eu ser professor, ai já tinha 18 anos nos anos de 1975. Desde lá

não vultei mais para a cidade, comecei trabalhar na comunidade de Campo Alegre e

dali me chamaram para dar aula na comunidade de Vendaval, assim que foi o meu

primeiro estudo onde aprendi lê, escrever e contar.

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Há quanto tempo é professor? Quais as disciplinas você leciona?

Na época a gente dava aula só de língua portuguesa e de matemática, foi à

única coisa que tive condições para dar aula, aprendi na escola e do jeito que

aprendi na escola levava para os alunos, me lembrava de como era as aulas.

Comecei a dar aula em 1978, comecei dar aula na comunidade de vendaval, era

sozinho sem mais ninguém, e depois, já em 80, 90 por ai já aprendi alguma coisa

com o pessoal que procuravam a gente para capacitar e assim ai aprendendo na

época.

Você já exerceu outro cargo na escola?

Na época não por que era eu sozinho mesmo, eu dava aula e nada mais,

naquela época era eu sozinho que dava aula, não tinha cargo nenhum era somente

professor e nessa época dei aula sem ganhar nada, da prefeitura ou de mínguem, ai

de repente apareceu um coordenador do Mobral, um novimento de alfabetização de

adultos, assim fiz uma capacitação com pessoas de outra comunidade, onde

levaram a gente por quinze dias para se capacitar em São Paulo de Olivença, ai que

peguei o primeiro treinamento de como dar aula, pelo Mobral que me pagava de seis

em seis meses e ganhava pouco, o cargo na época não existia para nós.

Como era a educação tradicional dos Ticuna?

Na época percebi que a tradição deles onde eu trabalhava, tinha que inventar

e explicar qual é o nome dar coisa que eles tinham na comunidade no conhecimento

dos Ticuna que não sabiam como era em português. Na época onde eu trabalhava

na comunidade de Vendaval em que trabalhava não tinha ninguém que falava o

português, era só eu mesmo e eles falavam muito mais a língua Ticuna, percebi que

a tradição a cultura era muito diferente do eu que pensavam, por que tinha que

comparar e dizer o nome das coisas ao mesmo tempo pera eles saber que podiam

entender pelo desenho ou pela escrita, era isso que eu fazia.

Quais foram às mudanças que você tem observado em ralação ao ensino da

cultura?

Nas mudanças realmente quando comeram a passar outras pessoas que

faziam pesquisas, pessoas do Rio de Janeiro, Antropólogos, Linguistas que vieram

para perguntar como a gente dava aula, assim vamos mudando o sistema. Vendo o

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conhecimento próprio conhecimento na comunidade o que fazemos diariamente,

percebemos olhamos e perguntamos na aula. Nas fastas culturais também

percebemos observamos muitas coisas bonitas que eles fazem e perguntamos qual

é o nome e levamos para a escola assim vamos aprendendo o que não sabíamos

antes minha mãe me ensinava nas como fui para escola, lá não ensinavam isso para

gente, depois quando alguém faz a gente relembrar assim a gente sabe como

desenvolver o trabalho nas atividades da escola na aula, isso que é mudança que

vai mudando para frente.

O que você acha das mudanças sociais? Há abertura ou resistência a essas

mudanças?

Hoje em dia, o nosso Ticuna realmente já tem resistido por que segura

preserva, acho que em vendaval tinha uma cultura muito diferente e percebemos

que eles resistem muito para não acabar a cultura. Assim que vivemos no dia a dia,

não é como o branco, que faz festa de aniversario, isso não existia antigamente. O

que existia era o ajuri, isso era os forte onde todos trabalham juntos, isso é muito

bom, mas hoje em dia não é igual àquela época, já mudou muita coisa.

Existe tendência para absorção de valores culturais (costumes) de outros

povos próximos (Colombianos, Peruanos e Brasileiros (moradores das

cidades vizinhas))?

Essa tendência é que leva os Ticuna que não são muito preparados, se

atrapalham muito com o que vem do estrangeiro peruanos e colombianos que hoje

em dia entram muito, conversam muito, levam os Ticuna na conversa e até ficam por

ai nas comunidades, então isso é que atrapalha muito as pessoas que não são

preparados.

Você acha possível preservar a tradição cultural Ticuna?

A tradição acho que é importante para ser preservada, mesmo que as

pessoas não saibam mais, mais para a escrita como historia a gente já sabe como

que faz para isso é importante à preservação hoje. Hoje em dia tem pouca gente

que sabe que realmente prepara as festas culturais as tradições, essas coisas assim

e como está escrito na lei que é preciso preservar a língua e a cultura e as tradições,

é importante segura, nê?

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Em sua opinião quais são os fatores que facilitam ou dificultam o ensino da

cultura Ticuna no ambiente escolar?

Acho que nesse caso algumas coisas tenho um pouco de dificuldade, por que

quando alguns professores não estão muito preparados para dar aula, por que

quando um professor está preparado ele tem que usas sua criatividade olhando

primeiro quem são os alunos na sala de aula e principalmente o que é bom para

aplicar e levar ao conhecimento deles para eles saberem tanto na língua portuguesa

como na língua Ticuna, por que a língua Ticuna, na verdade ela é muito complicada.

Se a pessoas não está preparada para ensinar na língua ticuna é quase igual como

ensinamos na língua portuguesa, por que tem varia variações linguísticas e é muito

difícil para uma pessoa que não preparada aplicar em sala de aula para os alunos, é

isso que dificulta.

Acredita que o Ticuna tem que ser preparado para competir no mercado de

trabalho com os não indígenas?

É mais nesse caso o Ticuna, realmente quando não está preparado não

adiante querer entrar na marra ai, para dirigir alguma coisa ou criar alguma coisa

para vender no mercado. Quando a FUNAI entrou pela primeira vez o governo e o

Presidente da FUNAI, deu algo para a comunidade indígena dirigir comprar e vender

e nesse caso não deu certo nenhum, e para o competir com o mercado de trabalho

da cidade a gente não está preparado ainda. Temos que se preparar para

administrar e hoje em dia já podemos tentar.

Acha possível ensinar todos os aspectos culturais na escola? Ou a educação

tem que ser igual a da Cidade?

Sinceramente digo desde que o conhecimento dos indígenas não é e claro

que até pode ser aprender igual, desde que entenda que tem a diferença por que

tem a educação especifica e diferenciada, os estudos é claro que são iguais, mas

quando você pega aula na língua Ticuna você tem que aprender exatamente igual

ao que você aprendeu em português é igual. Mas só que é diferente é que tem que

respeitar e conhecer o que é diferente.

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Qual educação que dá status para a pessoa na comunidade?

O mais valorizado hoje em dia é o português, por que a língua portuguesa

geralmente é preciso entender para conversar e dialogar e pedir e fazer outras

coisas. A língua materna é pra esclarecer as pessoas que não entendem bem o

português, então os dois são importantes e tem que ser valorizados juntos, mas para

mim em minha opinião tem que ser o português o mais utilizado, agora a língua

materna é para você conhecer quem é. Se você não souber falar bem o português,

as pessoas já identificam que você não é brasileiro, mesmo sendo brasileiro não é

falante da língua portuguesa. Então assim as pessoas já percebem que aquele que

fala português é mais valorizado.

Você acha que os jovens valorizam as tradições?

Hoje é difícil, por que o jovem hoje em dia não entende e não tem muito

conhecimento com as tradições então é difícil hoje em dia, por isso que é importante

a gente escrever, quem já está na faculdade pode escrever e mostrar por que deve

ser valorizada a tradição.

Há liberdade de escolha (territorial, volitiva, familiar) em relação a padrões

culturais preestabelecidos?

Na verdade antigamente para o casamento não podia ser livre, entre os

próprios indígenas não podia ser, por que dentro da sociedade indígena é dividido

em duas nações ou clã as duas partes que são a nação de onça, que representa a

nação de árvore, Avaí representa a nação d quatipuru, o mutum é mutum mesmo, a

arara é arara mesmo. Então por isso antigamente era bem organizado mais hoje em

dia é quase livre. E para morar também pode ser livre, mas só que é preciso saber a

onde é a demarcação da terra, por que hoje em dia é patrimônio da união então tem

isso. O casamento também pode ser livre, o próprio pessoal branco pode casar com

uma Ticuna desde que respeite a pessoa, pode morar dentro da comunidade e

trabalhar na cidade desde que respeite e valoriza a pessoa. O indígena quando se

casa com uma branca ele tem que ter muito conhecimento para ir morar na cidade.

É possível uma educação intercultural, que respeite os valores indígenas e

prepare-o para o convívio com outros povos?

Eu acho que sim, desde que se prepare muito para viver na cidade para

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poder consegui o trabalho para poder saber como é o ambiente de cidade, desde

que a pessoa tenha esses conhecimentos mesmo à pessoa sendo indígena, mas ele

pode com outro indigna, não sei como é que vai ser. Mas posso contar que a pessoa

que vive na cidade, os Ticuna a maioria que vivem na cidade de Manaus e aqui

também e vive bem tranquilo, desde que esteja trabalhando, empregado através do

preparo estudo isso ai.

Qual é o conhecimento privilegiado (dos antigos ou das pessoas que

estudam)?

Hoje em dia para mim os dois estão juntos, por que hoje em dia nós já

aprendemos alguma coisa como qualquer uma pessoa, vimos agora à filmagem

(festa de conclusão de um curso de edição de imagem e preservação da cultura

Ticuna na aldeia de Umariaçu), desde que aprendemos, fazemos um trabalho que

nunca tínhamos feito dentro da comunidade é uma coisa muito boa e importante.

Tanto os estudos da cidade, da língua portuguesa e da cultura têm que saber, os

dois caminham junto isso é importante saber.

Com você vê a fala de alguns indígenas que dizem: “Vou mandar meu filho

para cidade estudar, para se “civilizar””?

É isso é um pouco difícil para a gente responder, por que quando a pessoa

manda o seu filho para a cidade na verdade é para aprender saber ler, escrever,

conversar e para se defender de algumas coisas de alguns problemas, para vencer

a dificuldade de falar, para tirar seus documentos, essas coisas. É para aprender

isso e acho que não é para se civilizar por que nunca muda. A pessoa pode até falar

muito bem, mais nunca muda, e pode até se civilizar mesmo, mas não muda. Então

não podemos dizer que a pessoa vai mandar seu filho para se civilizar é um pouco

difícil para a gente dizer isso. Mesmo a pessoa estando na cidade ele continua com

traços da cultura, a única coisa que é difícil para ele é que ele sempre é discriminado

lá, o pai tem que vim para cá, para reuniões e para mostra que realmente tem pai,

ou alguém responsável por você. Você pode estudar terminar a universidade,

terminar não sei o que mais lá, na cidade que de repente você vai precisar de um

comprovante de quem é você. Mesmo que fale bem o português e as pessoas digam

que não é mais Ticuna, mas se alguém quiser saber quem é a pessoa, e se pedir

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para trazer o pai e de repente aparece o pai Ticuna indígena e aí? Então se

continuar na cidade ele tem que continuar indígena, não pode mudar.

ENTREVISTA COM N.M

A sua educação escolar foi exclusivamente na comunidade indígena, ou foi

estudar na cidade?

O ensino fundamental foi feito aqui mesmo na comunidade, da primeira a

oitava série, não tínhamos o ensino médio, então, fui estudar na cidade no ano de

1999, na escola duque de Caxias e conclui o ensino médio em 2001.

Fez algum curso Universitário? Qual, em que lugar e Universidade?

Fiz na Universidade Estadual do Amazonas, o Proformar curso de Normal

Superior e conclui em 2004.

Há quanto tempo é professor? Quais as disciplinas você leciona?

Sou professor há onze anos pelo município, e pelo município ainda não fui

para a sala de aula, só tive trabalho administrativo, e pelo Estado estou a sete anos

dando aula para o ensino médio, nas disciplinas de língua indígena Ticuna, artes e

historia.

Você já exerceu outro cargo na escola?

Sim pelo município fui gestor de escola durante oito anos, e pela escola

estadual no ultimo ano de 2011, exerci a função de apoio pedagógico.

Como era a educação tradicional dos Ticuna?

É uma pergunta que não dá para fechar em poucas palavras, antigamente

tinha uma educação muito cultural, já com a evolução do mundo com a globalização,

depende das comunidades e das tribos no contato com as cidades. Vemos que

essa educação cultural está acabando, antigamente tínhamos a educação cultural

repassada pelos pais, pelos avós e hoje em dia a gente esta perdendo isso e é um

problema que cada vez vem gerando mais preocupações.

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Quais foram às mudanças que você tem observado em ralação ao ensino da

cultura?

Nós temos apenas a língua bem viva, em 2004 nós conseguimos ter como

componente curricular e até hoje estamos ensinando a língua e a arte Ticuna, e

ensinamento dos mitos e costumes. Na Escola hoje nós temos as normas que são

determinadas pela SEMED, secretaria estaduais e não conseguimos colocar o que é

especifico, por que cumprimos determinações da SEMED e Secretarias Estaduais,

que às vezes impedem a execução da educação cultural.

O que você acha das mudanças sociais? Há abertura ou resistência a essas

mudanças?

Há pouca resistência, a comunidade já entendeu que se firmarmos presos

somente a nossa cultura, isso não vai garantir o desenvolvimento social, por que as

comunidades indígenas dependem de uma sociedade maior, que é a sociedade

envolvente, do município, do governo e precisamos ter esse conhecimento e o valor

que qualquer um dos brasileiros tem: Ter seus direitos, ter uma boa educação e o

direito de todos através do exercício da cidadania.

Existe tendência para absorção de valores culturais (costumes) de outros

povos próximos (Colombianos, Peruanos e Brasileiros (moradores das

cidades vizinhas))?

Geralmente convivemos com outras etnias, tem municípios vizinhos com

outras etnias, temos municípios vizinhos que tem outros povos, acabamos

convivendo com eles e acabamos adquirindo certos costumes que eles praticam e

trazemos para nossa cultura, por exemplo, no artesanato, nos utensílios escolares, o

a forma de viver, o jeito de pescar, a forma de se comunicar atreves de gestos.

Então a gente vem conhecendo também através da escola, o ensino e

aprendizagem de outras culturas. Pesquisamos através de livros, através da internet

e às vezes colocamos em pratica essas culturas.

Você acha possível preservar a tradição cultural Ticuna?

É possível sim, mas todos têm que estarem engajados, tanto os alunos como

os professores, mas não uma preservação como era antigamente, por que hoje o

conhecimento do homem brando e o nosso conhecimento cultural estão todos entre

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laçados, todos conectados. Então o próprio indígena tem que auto-reconhecer que

ele é um indígena e não pode perder a sua identidade por mais que ele tenha o

conhecimento do homem branco, mas ele tem que se reconhecer como indígena: as

suas crenças, as sabedorias de seu povo, ele tem que manter e preservar e

repassar para as futuras gerações.

Em sua opinião quais são os fatores que facilitam ou dificultam o ensino da

cultura Ticuna no ambiente escolar?

O que já lhe falei, é o sistema imposto pelas SEMED e secretarias Estaduais,

um sistema que em minha opinião não é possível repassar os verdadeiros costumes

da tradição do povo. Mas se tivesse outro sistema, a gente realmente conseguiria

trazer para a escola, a prática.

Acredita que o Ticuna tem que ser preparado para competir no mercado de

trabalho com os não indígenas?

Com certeza, mas depende da situação de cada aldeia de cada povo, por

exemplo, a gente depende da sociedade majoritária, então o Ticuna tem que ser

preparado para enfrentar concursos, vestibulares, por que somente a comunidade

não vai dar sustento para ele, somente a cultura em si não vai dar sustento para ele

se manter como cidadão.

Qual educação que dá status para a pessoa na comunidade?

A valorização do ser humano principalmente e ter a consideração de todos na

comunidade e se auto-reconhecer como indígena e ser aceito por todos, com um

comportamento que a sociedade venha confiar na gente isso é o básico.

Você acha que os Ticunas sofrem algum tipo de preconceito aqui na região ou

não?

Sofria há alguns tempos, até eu já sofri essa situação na escola quando eu

estudava para lá. Mas nos últimos anos estive observando que temos pouca

descriminação, a sociedade já vem nos reconhecendo, mas são poucas pessoas

que fazem esse tipo de descriminação, são pessoas que não tem esse

conhecimento, são pessoas que falam por falar e não tem o conhecimento de quem

é o Ticunas, não sabem o valor que ele tem, não sabem por que ele é Ticuna, por

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que recebe esse nome, então soa pessoas que não tem esse conhecimento cultural.

Você acha que os jovens valorizam as tradições?

A juventude de hoje está perdendo a valorização, é uma situação

preocupante que os jovens estão adquirindo outra cultura, a cultura da mídia, a

cultura da globalização. Então em vez de praticar sua cultura original, estão

praticando a cultura ocidental. Estamos batendo nessa tecla todos os anos, na

escola ensinamos isso e através da escola tentamos resgatar os valores culturais.

Há liberdade de escolha (territorial, volitiva, familiar) em relação a padrões

culturais preestabelecidos?

Os Ticuna quase não tem liberdade, por que tem uma norma dos Ticuna que

eles não podem ter essa liberdade para casar, conforme determina a cultura porque

são dois grupos de clãs e tem uma norma que eles não podem cruzar com o próprio

clã, são dois grupos de clãs os de pena e os sem pena, então os grupos não podem

casas entre si eles têm que cruzas os clãs.

É possível uma educação intercultural, que respeite os valores indígenas e

prepare-o para o convívio com outros povos?

É possível sim, por que quando todos já tiverem essa consciência é claro que

isso é possível, repassando para os mais novos através da escola, através da

própria família, a família tem que ter essa consciência para repassar para os filhos, e

assim crescer nessa consciência e que quando crescerem já vai praticar isso já.

Qual é o conhecimento privilegiado (dos antigos ou das pessoas que

estudam)?

Hoje em dia temos essa visão de privilegiar somente aquele que estuda na

escola dos brancos, que é formado em faculdade, existe esse conceito, mas

geralmente temos que valorizar o conhecimento dos mais velos dos anciãos, por que

todos os velinhos, cada ancião, cada senhora carregam uma bagagem cultural muito

alta muito grande e se não explorarmos esse conhecimento, perguntando e eles

repassar para os filhos para os netos, então esse conhecimento todo vai se perder.

Por isso que eu valorizo os dois, os dois são importantes para o convívio social com

os povos.

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Com você vê a fala de alguns indígenas que dizem: “Vou mandar meu filho

para cidade estudar, para se “civilizar””?

A pessoa que fala assim talvez não entendeu que a educação é feita no

próprio local de convívio. Agora temos escolas por aqui mesmo, os professores

estão capacitados para dar as aulas aqui mesmo, os próprios indígenas já estão

capacitados e o conhecimento que ele busca lá fora é o mesmo conhecimento que é

produzido aqui na aldeia, antigamente tinha essa visão quando a gente não tinha a

escola aqui na comunidade, mas agora poucas pessoas tem essa fala.

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FICHA CATALOGRÁFICA

Ol4p

Oliveira, Samuel Rocha de O processo educacional da cultura indígena Ticuna na região do Alto Solimões / Samuel Rocha de Oliveira. 2012. 166 f. Dissertação (mestrado em Educação) --Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012. Orientação: Zeila de Brito Fabri Demartini 1. Povos indígenas – Brasil 2. Índios Ticuna - Educação 3. Educação indígena 4. Educação intercultural I. Título. CDD 374.012