.....................................................................UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO – CAC
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO – DAU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO URBANO – MDU
O p r o j e t o p a i s a g í s t i c o d o s j a r d i n s
p ú b l i c o s d o R e c i f e d e 1 8 7 2 a 1 9 3 7
A l i n e d e F i g u e i r ô a S i l v a
Recife, abril de 2007.
.....................................................................UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO – CAC
DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA E URBANISMO – DAU
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO URBANO – MDU
O p r o j e t o p a i s a g í s t i c o d o s j a r d i n s
p ú b l i c o s d o R e c i f e d e 1 8 7 2 a 1 9 3 7
A l i n e d e F i g u e i r ô a S i l v a
Orientadora: Profª Drª Ana Rita Sá Carneiro
Co-orientador: Profº Drº Denis Bernardes
Recife, abril de 2007.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programade Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (MDU/UFPE) como um dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento Urbano.
A Iracema (93), Dionéa (57), Amanda (28), e Clara (0),
avó, mãe, irmã e sobrinha: quatro gerações que
representam de onde aprendi e a quem poderei deixar
alguma perspectiva de zelo pelo antigo e amor aos jardins.
Agradecimentos
Apesar da condição de pesquisa de mestrado, não faltaram a este trabalho razões de ordem
pessoal e afetiva, as quais, no entanto, não lhe eximem da busca constante pelo rigor
metodológico. Ao contrário, foram (e serão) questões essas que alimentaram a elaboração
desta dissertação, por acreditar que a produção verdadeira do conhecimento (e não do
conhecimento verdadeiro) se consubstancia na sua capacidade transformadora.
O envolvimento com o tema, que se tornou certo compromisso e opção profissional, se
iniciou nos tempos de pesquisa no Laboratório da Paisagem/UFPE em fevereiro de 2001, seja
como voluntária ou bolsista de iniciação científica do PIBIC/CNPq, seja por ocasião do
trabalho de graduação em Arquitetura e Urbanismo, concluído em 2004.
Dirijo, portanto, minhas primeiras palavras de agradecimento ao Laboratório da Paisagem, a
todos que o cercam, alimentados pela figura da sua fundadora e coordenadora – Ana Rita Sá
Carneiro – e ao qual me ligo por um vínculo que cultivo há exatos seis anos.
A Ana Rita, menos pela supervisão deste trabalho, mas, por seis anos de ensinamentos
quanto à preservação da paisagem, pelo seu exemplo constante de amor à pesquisa,
pioneirismo, ética e coragem, e pelo núcleo que criou, que não é exagero chamar de “Escola”.
Ao professor Denis Bernardes, que tanto compreendeu minhas intenções e deu grandes
contribuições na banca de qualificação. Agradeço pelo incentivo, pelo acompanhamento e
pela aceitação deste trabalho, encurtando as distâncias entre os métodos tão distintos da
pesquisa no campo da Arquitetura e da História.
Aos professores Sílvio Zancheti e Virgínia Pontual, pela solidez de suas disciplinas, em
torno do patrimônio e das possibilidades do conhecimento histórico. Ao professor Sílvio,
também pelas observações no exame de qualificação.
Ao professor Luís de la Mora, metodólogo e entusiasta da pesquisa científica, pelos
apontamentos precisos, sempre de grande contribuição.
Aos funcionários do MDU, particularmente a Catarina e Rebeca, e aos colegas da Turma 26
do Mestrado, pela companhia e discussões em busca dos caminhos do saber e do saber fazer.
A Fátima Mafra, arquiteta, colega no mestrado e amiga em todas as horas, pela companhia
no curso e na pesquisa nos acervos do Recife e do Rio de Janeiro, nas visitas às praças e pela
cessão dos artigos de Mário Melo.
Às amigas Anna Caroline, Fabiana e Flaviana, pela presença constante, pelas discussões
sobre nossas pesquisas e constituição de um grupo de trabalho que transformou o
coleguismo em amizade e edificou coisas belas.
À historiadora Emanuela Ribeiro, pela generosidade e momentos de discussão do trabalho.
Aos arquitetos Fábio Cavalcanti, Juliana Arruda, Larissa Menezes e Rodrigo Cantarelli, aos
historiadores Aterlane Martins, Igor Soares e Magna Milfont, ao arqueólogo Paulo Tadeu
de Souza Albuquerque e à professora Vera Mayrinck, pelas conversas, companhia nas
visitas de campo, esclarecimentos, indicação e empréstimo de bibliografia.
A Cândida Freitas, pelas visitas às praças e aos arquivos, generosidade e cessão de
iconografia que apresentou em sua dissertação.
A Juliana Sorgine, pelo apoio e orientação na pesquisa no Rio de Janeiro.
A Helga Carolina, pela amizade de sempre e pela capa.
A Maria Francisca, pela solidariedade cotidiana e, sobretudo, às vésperas da entrega deste
trabalho.
À arquiteta Liana Mesquita, repito palavras expressas anteriormente por seu pioneirismo na
pesquisa sobre a história dos jardins no Recife.
À arquiteta e professora querida Lúcia Veras, novamente deixo-lhe palavras de
agradecimento já pronunciadas pela inspiração primeira nos estudos da paisagem.
Aos funcionários da Biblioteca Joaquim Cardozo, do Arquivo Público Estadual Jordão
Emerenciano, da Fundação Joaquim Nabuco e do Museu da Cidade do Recife, pelo auxílio
que se iniciou no tempo da graduação e, especialmente, à contribuição de Gabriela Severien.
Ao Escritório Burle Marx & Cia Ltda, particularmente aos arquitetos paisagistas Haruyoshi
Ono e Isabella Ono, pela receptividade no Rio de Janeiro.
À Biblioteca Nacional, pela presteza no acesso a periódicos raros no pouco tempo
disponível para pesquisa no Rio de Janeiro, especialmente ao diretor Jorge Luís dos Santos.
Ao CNPq, pelos dois anos de auxílio financeiro em fomento a esta pesquisa.
À 5ª Superintendência Regional e à COPEDOC do Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), pela oportunidade de refletir profissionalmente sobre o
patrimônio durante os dois anos de elaboração desta dissertação, através do Programa de
Especialização em Patrimônio IPHAN/UNESCO (PEP). Aos colegas da turma e da Regional,
em particular, Raquel Florêncio e Patrícia Valéria, pelo auxílio e por me conceder acesso
privilegiado ao acervo precioso de livros, álbuns iconográficos e periódicos da Biblioteca
Almeida Cunha e à arquiteta Fernanda Gusmão, pelos ensinamentos, compreensão
constante e paciência na supervisão do meu trabalho.
Finalmente, aos meus pais, José Amadeu e Dionéa, e professores de Caruaru, onde nasci e
percorri os caminhos que me trouxeram ao Recife.
A Deus, pelos dois dons preciosos que nos concedeu: sonhar e realizar.
“Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.
O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.
Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca”.
(Trechos de Pecado Original, Fernando Pessoa, 1933).
Resumo
Esta dissertação objetivou investigar o projeto paisagístico dos jardins públicos construídos
na cidade do Recife entre 1872 e 1937, hoje classificados como praças, a partir da análise do
traçado, da vegetação, do mobiliário e dos componentes aquáticos. Foram estudadas 13
praças e 19 projetos paisagísticos e consultados documentação governamental, jornais,
periódicos e iconografia da época, entre plantas, fotos, desenhos e gravuras. A pesquisa
caracterizou três fases distintas da produção paisagística na história do Recife, denominadas
de “Jardim Romântico: 1872-1888”, “Jardim Salubre: 1922-1926” e “Jardim Moderno: 1934-
1937”. Em cada fase, foram ainda descortinados aspectos relacionados à toponímia,
localização dos jardins na cidade e funções atribuídas.
Palavras-chave: projeto paisagístico, jardim, história, Recife.
Abstract
This research analyses public gardens built in the city of Recife from 1872 to 1937, focusing landscape
concept defined by the layout, vegetation, furniture and aquatic components. Nowadays they are
called squares. It characterized three different periods: the “Romantic Garden: 1872-1888”, the
“Healthful Garden: 1922-1926” and the “Modern Garden: 1934-1937”. Also it took into account
garden nomination along time, localization in the city and functions related to the concept. The
analysis included governmental documentation, newspapers, magazines and iconographies of 13
squares and 19 plans.
Keywords: landscape design, garden, history, Recife.
Sumário
12 Introdução
16 1. Metodologia
27 2. O projeto paisagístico dos jardins públicos no Brasil 27 2.1. O conceito de jardim público 31 2.2. O projeto paisagístico 50 2.3. Considerações parciais
54 3. O Jardim Romântico: 1872-1888 54 3.1. O Recife na segunda metade do século XIX 61 3.2. O projeto paisagístico dos jardins públicos 84 3.3. Considerações parciais
88 4. O Jardim Salubre: 1922-1926 88 4.1. O Recife no início do século XX 93 4.2. O projeto paisagístico dos jardins públicos 116 4.3. Considerações parciais
121 5. O Jardim Moderno: 1934-1937 121 5.1. O Recife na década de 1930 125 5.2. O projeto paisagístico dos jardins públicos172 5.3. Considerações parciais
177 6. Conclusões
199 Fontes da pesquisa
Introdução
A tradição recifense na criação de jardins públicos, notadamente como ações de remodelação
de antigas praças, largos, campos e campinas em diferentes períodos históricos, resultou em
um vasto legado paisagístico, cujo marco inicial foi a implantação do pioneiro Parque de
Friburgo pelo conde João Maurício de Nassau durante o domínio holandês (1630-1654).
Muitos desses logradouros hoje são remanescentes de projetos de ajardinamento executados
desde os últimos decênios do século XIX até o final da década de 1930, expressando
influências de jardins europeus, destacadamente italianos, franceses e ingleses. Apesar dessa
tradição de projeto, os jardins públicos do Recife foram pouco contemplados na literatura
sobre a história da cidade, muitas vezes aparecendo como o cenário de diferentes práticas
sociais, na visão de cronistas, escritores e historiadores.
Um dos momentos dessa produção remonta a 1872, período posterior à criação do primeiro
Passeio Público do Recife, quando se iniciou a prática de ajardinamento de antigos campos,
pátios, largos e praças coloniais, como o Campo das Princesas, hoje Praça da República; o
Pátio do Colégio dos Jesuítas, depois Largo do Espírito Santo e Praça de Pedro II, atual Praça
Dezessete; o Largo ou Praça da Boa Vista, que se tornou o Jardim do Conde d’EU,
atualmente designado de Praça Maciel Pinheiro, e a Praça Visconde de Mauá. Esses projetos
paisagísticos continham elementos ao gosto do jardim inglês, como coretos, gradis e
pavilhões de ferro, lagos e traçado sinuoso. Expressavam funções recreativa e artística e
foram executados durante o governo de diferentes chefes provinciais, inclusive a partir de
iniciativas particulares.
Outro período da produção paisagística do Recife foi delineado na década de 1920, com a
construção de diversos parques na gestão do prefeito Antônio de Góes (1922-1925) e do
governador Sérgio Loreto (1922-1926). A essa época, remonta a criação dos parques, hoje
praças, do Derby, Sérgio Loreto, Entroncamento, Oswaldo Cruz e Amorim, do Parque do
Paissandu, atual Praça Chora Menino, além das reformas das praças da República e Maciel
Pinheiro. Os projetos continham pérgulas, coretos e lagos, fontes, canteiros, colunas, bancos e
jarros rebuscados, arborização densa e traçado predominantemente axial, mesclando
influência dos jardins franceses e ingleses e desempenhando funções recreativa, artística e
higiênica.
Em sua maioria, esses parques resultaram de projetos de ajardinamento de antigas campinas
e largos: a Campina do Derby, a Campina do Bode, o Largo do Paissandu, o Largo do
Entroncamento, a Lagoa de Fernandes Vieira e a Campina dos Manguinhos, consolidando a
prática iniciada no século XIX. O Parque do Derby, entretanto, foi construído como parte de
um grande empreendimento – a urbanização da campina homônima – que incluía um
loteamento, um canal e a definição de um padrão construtivo para as residências, enfim a
criação de um bairro.
Um terceiro momento expressivo do paisagismo no Recife está vinculado à atuação do jovem
paisagista Roberto Burle Marx, que iniciava sua carreira e lançava as bases do jardim
moderno na condição de técnico da Diretoria de Arquitetura e Construção (do Governo do
Estado de Pernambuco), à frente do Setor de Parques e Jardins. Constituía-se outra fase da
produção paisagística do Recife, segundo “um plano moderno de aformoseamento”, como
vinculava o Diario da Tarde de 22/05/1935, na administração do prefeito João Pereira
Borges (1934-1937) e do governador Carlos de Lima Cavalcanti (1935-1937).
Os projetos de Burle Marx mesclavam influências de escolas paisagísticas tradicionais a
espécies vegetais nativas e novos elementos construídos, como exemplares da flora
brasileira, superfícies aquáticas como meio de cultura botânica, bancos de granito e
esculturas que valorizavam tipos humanos brasileiros. Sua concepção de jardim moderno
assentava em princípios de “higiene”, “educação” e “arte”, segundo sua própria definição.
Os jardins que executou mantinham o papel de higienização dos projetos que o antecederam,
além das funções recreativa e artística, conservadas desde o século XIX, porém, agregavam
uma nova função, a educativa.
Entre 1935 e 1937, Burle Marx executou os projetos do Jardim da Casa Forte, hoje Praça de
Casa Forte; Jardim do Benfica, atual Praça Euclides da Cunha; Praça Artur Oscar; Praça da
República; Parque do Derby; Praça Coração de Jesus (ou Praça Chora Menino) e Parque
Amorim. Elaborou outros projetos de reforma para a Praça Dezessete; o Largo das Cinco
Pontas; o Largo da Paz; a Praça Barão de Lucena (onde hoje existe o edifício JK, no centro do
Recife) e a Praça Pinto Dâmaso (ou Praça da Várzea), cujas plantas foram localizadas.
Entretanto, não se dispõe de evidências mais fortes quanto à execução de todos esses
projetos. A exceção é a Praça Pinto Dâmaso, cujo projeto não foi, comprovadamente,
implantado. Ainda existem referências gráficas (desenhos a nanquim de sua autoria) e
textuais sobre possíveis intervenções no Parque do Entroncamento (ou Praça Correia de
Araújo) e na Praça Maciel Pinheiro.
Esses logradouros chegaram aos dias atuais como um conjunto de espaços urbanos
vegetados de uso público, expressão dos sucessivos projetos de ajardinamento executados
desde o século XIX e representativos de diferentes momentos da produção paisagística do
Recife. Por esse motivo, esses espaços urbanos, hoje classificados como praças (Sá Carneiro e
Mesquita, 2000), são designados de jardins públicos ao longo da pesquisa.
Nesses termos, essas praças podem ser consideradas jardins históricos conforme a Carta de
Florença, que, em 1981, colocou no plano internacional a questão da preservação do
patrimônio paisagístico. O jardim histórico é “uma composição arquitetônica e vegetal que,
do ponto de vista da história ou da arte, apresenta um interesse público (...) cujo material é
principalmente vegetal (...) expressão de relações estreitas entre a civilização e a natureza (...)
que dá testemunho de uma cultura, de um estilo, de uma época, eventualmente da
originalidade de um criador” (Cury, 2004, p. 253-254). Destacam-se na “composição
arquitetural do jardim histórico” o plano (o traçado) e os diferentes perfis do terreno, as
massas vegetais (a vegetação), os elementos construídos (o mobiliário) e as águas moventes
ou dormentes (os componentes aquáticos) (Cury, 2004, p. 254).
No entanto, há bastante tempo, muitas dessas praças vêm experimentando alterações como a
redução de área para ampliação do sistema viário, a modificação do traçado, o desligamento
de fontes, o aterramento de lagos, o corte e a substituição da vegetação, a remoção de bancos
e esculturas e a colocação de outras peças – ações que podem repercutir na descaracterização
dos projetos originais e levar à perda de um acervo paisagístico de interesse histórico.
Acrescente-se a carência de literatura sobre o assunto, do qual se encontram referências
pontuais em obras clássicas de cronistas, escritores e historiadores do Recife, evidentemente,
não menos valiosas, e em outros trabalhos elaborados no domínio do conhecimento
científico, como dissertações e teses. Contudo, são raras as publicações que contemplam a
criação de jardins públicos no Recife sob a ótica do projeto paisagístico, portanto, como
composição de arquitetura em que se destacam o traçado, a vegetação, o mobiliário e os
componentes aquáticos. Diante dessas motivações, o trabalho objetiva “caracterizar o projeto
paisagístico dos jardins públicos do Recife construídos entre 1872 e 1937”.
A pesquisa visa, em maior plano, fomentar a discussão quanto à preservação do acervo
paisagístico do Recife e contribuir à produção de literatura que possa auxiliar na prática de
conservação das praças da cidade, na condição de jardins históricos.
Em síntese, esta dissertação está organizada em seis capítulos, em que o primeiro apresenta a
metodologia da pesquisa, assentada no campo da Arquitetura Paisagística e da História. O
segundo capítulo discute o conceito de jardim público, justificando o emprego da expressão
ao universo das praças estudadas; circunstancia as principais iniciativas paisagísticas no
Brasil, como cenário em que se inseria o Recife, e, por fim, discorre sobre a classificação
adotada no trabalho.
Esta classificação compreende três fases distintas, intituladas “o Jardim Romântico: 1872-
1888”, “o Jardim Salubre: 1922-1926” e “o Jardim Moderno: 1934-1937”, correspondentes ao
terceiro, quarto e quinto capítulos, respectivamente, os quais se dividem em três itens.
Primeiramente, traçou-se um breve panorama cultural e social da cidade, destacando as
principais ações urbanísticas de que faziam parte os jardins, seguindo-se com a
caracterização dos projetos paisagísticos executados e as considerações parciais.
O sexto e último capítulo da dissertação expõe as conclusões da pesquisa, apontando as
particularidades do trabalho, visões insurgentes sobre a produção paisagística do Recife,
algumas lacunas evidenciadas e perspectivas de continuação a partir de novas abordagens.
1. Metodologia
Como domínio do conhecimento e profissão institucionalizada através do ensino superior
diferenciada da Arquitetura, a Arquitetura da paisagem ou paisagística, termo instituído
pelo criador do Central Park, Frederick Law Olmsted, em 1863, se constituiu há pouco mais
de um século (Magalhães, 2001, p. 29; 67). É também designada por Paisagismo, expressão
moldada como um sinônimo brasileiro, e está inserida no currículo dos cursos de
Arquitetura e Urbanismo no país. Como práxis, no entanto, remonta aos primórdios da
civilização humana, tendo no jardim sua expressão primeira.
É preciso ressaltar a dificuldade de abordagem teórica do tema, em função da definição do
próprio objeto de intervenção e de estudo do arquiteto paisagista, a paisagem, expressão
“polissêmica” e “movediça” (Meneses, 2002, p. 29), comumente circunscrita a um lance de
vista abarcado pela visão ou empregada como sinônimo de natureza ou de beleza, neste
caso, mais ligada às representações das Artes, notadamente a Pintura e a Arquitetura.
Todavia, hoje a paisagem é, reconhecidamente, objeto de conhecimento multidisciplinar,
para o qual converge o olhar da Arquitetura, da Engenharia, da Pintura, da Ecologia, da
Botânica, da Biologia, da História e da Geografia, esta última, uma das disciplinas que mais
se dedicou a seu estudo. Nesse processo, sobressai um ou outro aspecto, de acordo com a
formação do observador.
Nesse sentido, optou-se por discutir a paisagem na medida em que se relaciona com a
Arquitetura, dentro do interesse desta dissertação – o projeto paisagístico. A esse respeito, a
Arquitetura paisagística é uma disciplina que atua sobre a paisagem, e, portanto, busca
compreendê-la. Assim como na Arquitetura, o olhar do arquiteto paisagista para a paisagem
se converte num gesto, numa práxis, por isso também é denominada de Arte da paisagem.
Enquanto a Arquitetura “se ocupa, antes de tudo, da construção de abrigo para o homem,
para a coletividade, e as suas atividades” (Barata apud Magalhães, 2001, p. 50), o campo de
intervenção da Arquitetura da Paisagem é o espaço livre, o espaço exterior das edificações,
seja o jardim, o parque, o calçadão de praia, o pátio ou a praça, as margens de rios e canais
(Magalhães, 2001, p. 50; Macedo, 1999). Trata-se, portanto, de uma disciplina projetual, que
pressupõe sempre um processo criativo através de uma forma que dá expressão a
determinado conteúdo (Magalhães 2001, p. 32).
Continuando com Magalhães (2001, p. 36), “A forma (...) não existe por si mesma, mas sim
para exprimir, através de um objecto, o que o artista pensa e sente, tanto a nível pessoal,
como social, (...), a forma não constitui algo que possa ser acrescentado ao conteúdo, como
ornato”. A autora recusa, portanto, a corriqueira interpretação que se faz de “forma” como
um arranjo, um ornato, uma qualidade extrínseca à concepção, mas, a compreende como
resultado de um processo projetual. Em suas palavras, “o acto de dar forma, de conceber
uma proposta de intervenção, pressupõe sempre um processo criativo, como na criação de
qualquer obra artística” (Magalhães 2001, p. 63).
O projeto significa, portanto, o momento de concepção, no sentido do termo “design”,
utilizado na literatura em inglês, que, no dizer de Lang (apud Del Rio, 1990, p. 51),
“pressupõe, síntese, análise, previsões, avaliação e tomada de decisões”, parelho à expressão
espanhola “diseño”.
O projeto paisagístico é uma resposta fundamentada em um conjunto de dados mais ou
menos objetivos e contextualizados (dados do “lugar” e do “programa”); é desenvolvido
como uma mediação entre o sujeito (o autor) e o objeto (Corajoud, 2001, p. 119-120). Essa
mediação consiste na maneira pela qual o arquiteto paisagista responde a uma situação,
tendo em conta um máximo de dados do sistema de acontecimentos e circunstâncias que o
relacionem às coisas morfológicas e culturais (Corajoud, 2001, p. 121-122). Na visão de
Corajoud (2001, p. 120-121), o projeto paisagístico, como processo de concepção, se relaciona
e responde à paisagem local e às funções a que se destina, através de um trabalho de
reconhecimento e ajuste.
Essa visão é compartilhada por Laurie (1983, p. 195), segundo o qual, o projeto paisagístico
está ligado às limitações e possibilidades do sítio, à explícita definição do problema e à ação
de forças externas, destacando-se os distintos usos do solo. Refere-se, principalmente, à
seleção dos componentes, materiais e espécies vegetais, em função de uma concepção e sua
posterior combinação para resolver problemas (Laurie, 1983, p. 191). O projeto paisagístico
deve levar em conta o terreno (o formato e a topografia), a circulação, os edifícios vizinhos,
os materiais, as possibilidades de conservação e a estimação da função que pretende
desempenhar (Laurie, 1983, p. 195). A circulação é tema de primeira ordem, visto que, além
de comunicar lugares e instalações, combina e segrega superfícies; está em íntima relação
com a variação e sucessão de experiências sensíveis e entornos que se apresentam ao longo
do caminho (Laurie, 1983, p. 195-199).
Entretanto, o projeto paisagístico é atribuição do arquiteto paisagista mais recentemente, com
a institucionalização do curso em escolas de formação específica, até então delegada a
engenheiros e arquitetos, distinção igualmente recente, em comparação à práxis projetual
dos jardins. Os engenheiros exerceram intensa atividade na construção das cidades
brasileiras e foram responsáveis por inúmeros projetos paisagísticos de jardins públicos a
partir do século XIX.
No projeto paisagístico, a vegetação domina os materiais inertes, muito embora “a
intervenção no largo, na praça ou no percurso, com o objectivo de sua concepção, (...) ainda
que nestes casos a vegetação assuma uma expressão mais reduzida face aos materiais inertes,
é também objecto da Arquitectura Paisagista” (Magalhães, 2001, p. 54).
Entendendo que as praças que compreendem o objeto empírico da pesquisa são jardins
históricos nos moldes da Carta de Florença, no sentido de composição arquitetônica e vegetal
que testemunha uma cultura e uma época, foram escolhidos como variáveis de análise do
projeto paisagístico: a) o traçado; b) a vegetação; c) o mobiliário; d) os componentes aquáticos
(Cury, 2004, p. 254) (Figura 1.1).
Figura 1.1: Desenho das variáveis de análise. Fonte: Elaborado pela autora.
O traçado é o plano, a planta ou a traça, sinonímia verificada a partir de consultas a
dicionários lingüísticos e arquitetônicos. Segundo Lamas (2004, p. 98-100), “o traçado é um
dos elementos mais claramente identificáveis tanto na forma de uma cidade como no gesto
de a projectar. Assenta em um suporte geográfico preexistente, regula a disposição dos
edifícios e quarteirões, liga os vários espaços e partes da cidade”. Analogamente, no jardim,
o traçado orienta a disposição dos elementos e liga os vários espaços, organiza e regula a
distribuição dos outros componentes (gramados, canteiros, árvores, esculturas, coretos,
fontes e lagos, entre outros) e responde pela unidade da composição (Conway apud Ribeiro,
TRAÇADO VEGETAÇÃO MOBILIÁRIO COMPONENTES AQUÁTICOS
PROJETO PAISAGÍSTICO
1996, p. 14). Complementando com Loudon, na afirmação de Ribeiro (1996, p. 14), essa
unidade é uma das qualidades mais importantes do projeto paisagístico, por ele designada
de “espinha dorsal”. O traçado é, portanto, a espinha dorsal do projeto paisagístico, que
regula, conecta, ordena, articula, define, orienta a distribuição dos elementos na composição.
A vegetação é um dos elementos fundamentais do projeto paisagístico e caracterizador do
jardim. Na afirmação de Lamas (2004, p. 106-108), a construção da cidade “tanto pode
utilizar elementos duros ou minerais como vegetais ou plantados. Trata-se de um mesmo
problema de desenho arquitectónico em que a árvore, as plantações, se encontram na mesma
escala de valores que a parede, a fachada ou outro elemento construtivo. (...) São ambos
elementos da mesma actuação, porventura exigindo alguns conhecimentos disciplinares
diferenciados”.
O mobiliário é composto por artefatos que “mobíliam” e “equipam” uma cidade (Lamas,
2004, p. 108), comumente designados de equipamentos urbanos (Marx, 2003, p. 157). Inclui
peças de menor dimensão – como chafarizes, fontes, postes, esculturas, gradis, bancos,
colunas, jarros, obeliscos e outros monumentos – ou elementos com escala de construção – a
exemplo dos coretos, pavilhões e quiosques.
A expressão “componentes aquáticos”, por sua vez, foi moldada por Guerra (2003) para
designar elementos dos espaços livres públicos que tenham água em sua constituição, como
chafarizes, cacimbas, poços, viveiros, fontes, lagos e tanques. Estes componentes
desempenham ora uma função utilitária (abastecimento d’água, lavagem de carro, pesca,
banhos), ora uma função contemplativa (embelezamento e desejos de bem-estar) (Guerra,
2003). Embora alguns desses elementos possam ser enquadrados no mobiliário, opta-se pela
expressão “componente aquático”, por designar partes específicas na composição dos
espaços livres públicos ao longo da história do Recife e tendo em conta que a água é um dos
materiais fundamentais no projeto paisagístico, esteja em repouso ou em movimento.
Ao longo do tempo, a práxis de projetar jardins originou as escolas paisagísticas, delineando
princípios de composição, a que Laurie (1983, p. 29) denominou de “vocabulário projetual”,
combinando elementos e materiais com diferentes expressões de traçado, vegetação,
mobiliário e componentes aquáticos. Essa cultura paisagística historicamente constituída,
notadamente as escolas italiana, francesa e inglesa, exerceu grande influência na produção
dos jardins no Ocidente.
A caracterização do projeto paisagístico neste trabalho parte, então, da análise do traçado, da
vegetação, do mobiliário (incluindo materiais de que são feitos), e dos componentes
aquáticos, considerando condicionantes do sítio, como o formato e a topografia do terreno, a
presença de rios e mar e as edificações do entorno, bem como, a função a que se destina. E
procura identificar as influências dos princípios de composição legados pelas escolas
paisagísticas ao longo da história. Por outro lado, tendo por objeto de estudo praças
qualificadas como jardins históricos, testemunho de uma época e de um fazer, consoante a
Carta de Florença, a análise é colocada no campo histórico, em relação aos procedimentos de
coleta e tratamento de dados.
Reportando-se a Le Goff (2003, p. 537-539), a escolha dos documentos está vinculada ao
historiador, à sua intervenção para retirá-lo do conjunto de outros dados do passado, à
posição na sociedade da sua época e à sua elaboração mental; o documento é monumento,
resulta do esforço de uma sociedade para impor ao futuro uma auto-imagem. Importa não
isolar os documentos do conjunto de monumentos de que são parte integrante; recorrer ao
documento arqueológico, iconográfico, alargando-o para além dos textos tradicionais, enfim,
tratá-los como documentos-monumentos (Le Goff, 2003, p. 538-539).
Sob esse ponto de vista, as fontes primárias da pesquisa incluem quatro tipos de
documentos: a) documentação governamental (falas, relatórios, mensagens e exposições
apresentadas por prefeitos do Recife e governadores ou presidentes da província de
Pernambuco); b) jornais de circulação diária; c) periódicos; d) iconografia (Figura 1.2).
Figura 1.2: Classificação das fontes primárias. Fonte: Elaborada pela autora.
Os documentos oficiais da administração provincial, estadual e municipal constituíram
importante referencial para a delimitação do objeto empírico e definição dos recortes
FONTES PRIMÁRIAS
DOCUMENTAÇÃO GOVERNAMENTAL
JORNAIS DE CIRCULAÇÃO
DIÁRIAPERIÓDICOS ICONOGRAFIA
temporais, por fazerem menção direta às obras concluídas, em andamento ou planejadas,
muitas vezes apontando o mês exato ou aproximado de inauguração dos projetos
executados. Na maioria das vezes, essa documentação foi o marco balizador para a pesquisa
em outras fontes, por indicar a intenção de construção ou reforma de vários jardins,
fornecendo diversas referências para pesquisas futuras, já que a execução de muitos projetos
não foi confirmada.
Os jornais foram também de extrema importância, sobretudo para a confrontação com as
referidas falas, relatórios, mensagens e exposições. Além de noticiarem as obras realizadas
ou em andamento, confirmando a execução de projetos às vezes assinalados como uma
intenção do poder público, os jornais publicavam artigos de alguns intelectuais da sociedade
recifense. Entre eles, destacam-se matérias e entrevistas de jornalistas, professores e
engenheiros, ora enaltecendo, ora reagindo às concepções de Burle Marx. Também foram
retirados dos jornais depoimentos do paisagista, por assim dizer, verdadeiros memoriais
descritivos de alguns projetos.
Destacam-se, por um lado, as matérias publicadas no Jornal do Commercio e no Diario da
Tarde, jornal de propriedade do Governador Carlos de Lima Cavalcanti, e, por outro, os
artigos incisivos do jornalista Mário Melo, na coluna “Ontem, Hoje e Amanhã”, do Jornal
Pequeno, ferrenho opositor dos projetos de Burle Marx. Estes artigos foram cedidos pela
arquiteta Fátima Mafra, que atualmente desenvolve pesquisa sobre o paisagista.
Os periódicos, por sua vez, forneceram artigos e notícias que tratam diretamente dos projetos
de ajardinamento ou transcrição de alguns documentos. Foram consultados a Revista do
Instituto Archeologico e Geographico de Pernambuco, mais tarde Instituto Archeologico,
Historico e Geographico Pernambucano, o Almanach de Pernambuco, o Annuario de
Pernambuco, a Revista de Pernambuco, a Revista Arquivos, da Prefeitura Municipal do
Recife, e a Revista Cidade Maravilhosa, editada e publicada no Rio de Janeiro. Também
merecem registro alguns exemplares da Revista da Escola de Belas Artes de Pernambuco e
títulos da obra de Saturnino de Brito, além dos dez volumes dos Anais Pernambucanos do
historiador Francisco Augusto Pereira da Costa. Parte da pesquisa da Revista de
Pernambuco de 1924 e 1925 foi cedida pelo Laboratório da Paisagem/UFPE.
Foram identificados confrontos de opinião entre o Jornal do Recife, de 1925, e a Revista de
Pernambuco, esta última elaborada pelo Corpo Redaccional do Diario do Estado e editada
pela Repartição de Publicações Officiaes do Estado de Pernambuco. O jornal sempre dirigia
um tom crítico à administração Sérgio Loreto, utilizando expressões como “loretismo” e
“loretista”, enquanto o governador ressaltava a eficiência de propaganda da revista,
considerando-a um órgão de utilidade pública.
A iconografia incluiu quatro tipos de fontes: gravuras, fotografias, plantas e desenhos a
nanquim de Burle Marx. As fotografias foram de extrema importância para a confrontação
com as plantas e as informações escritas, como evidências da execução dos projetos. Grande
parte da iconografia utilizada no trabalho foi retirada de álbuns, jornais e periódicos e, raras
vezes, da documentação governamental.
Consubstanciaram a análise plantas, desenhos e descrições textuais relativas aos projetos de
Burle Marx não executados ou aqueles que ainda despertam dúvidas (praças Barão de
Lucena, Maciel Pinheiro, Dezessete e Pinto Dâmaso, largos da Paz e das Cinco Pontas e
Parque do Entroncamento). O estudo de casos análogos se constitui numa ferramenta
bastante útil para o preenchimento de lacunas, ainda mais quando se trata do mesmo autor e
do mesmo momento histórico. Tendo-se em mente a questão central da pesquisa – a
caracterização do projeto paisagístico dos jardins públicos do Recife entre 1872 e 1937 –
parece legítimo recorrer a jardins análogos, como, inclusive, orienta a Carta de Florença.
Deve ser ressaltada a dificuldade na confrontação entre as fontes escritas e as fontes
iconográficas, face à falta de indicação de data na maioria das fotografias (s/d), muitas vezes
estimada pela comparação com figuras e descrições de outros jardins executados no mesmo
período. Essa dificuldade motivou a visita às praças para observação e identificação de
características do traçado, do mobiliário, da vegetação e dos componentes aquáticos, que
seriam reminiscências e, portanto, evidências materiais dos projetos executados.
A esse respeito, com a ampliação das fontes documentais na pesquisa histórica, na visão de
Le Goff (2003, p. 525), não se trata mais de fazer uma “seleção de monumentos” apenas, mas,
de “considerar os documentos como monumentos”, “inseri-los nos conjuntos formados por
outros monumentos”, como os vestígios da cultura material, os objetos de coleção, os tipos
de habitação, a paisagem, os fósseis, os restos ósseos dos animais e dos homens.
Também para Lefebvre (apud Le Goff, 2003, p. 530) “a história faz-se com documentos
escritos, sem dúvidas. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem
documentos escritos, quando não existem. (...) Logo, com palavras. Signos. Paisagens e
telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem
dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geógrafos e com as análises de
metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao homem,
depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade,
os gostos e as maneiras de ser do homem”. Ainda na afirmação de Rezende (2005, p. 68) “a
história das cidades está inscrita na sua paisagem e nas suas ruínas, no silêncio aparente das
construções mais antigas e no murmurar das testemunhas que, não só viveram na cidade,
mas quiseram conservá-la através dos seus escritos”.
Comungando desse entendimento, o artista plástico e jornalista Otoni Moreira de Mesquita
desenvolveu, em 1992, uma pesquisa em História e Crítica da Arte sobre as obras públicas na
cidade de Manaus entre 1852 e 1910, trabalho publicado e recentemente reeditado (2006).
Além de fontes documentais do período estudado (relatórios, falas, exposições, decretos,
regulamentos, leis, jornais, catálogos, almanaques, revistas, álbuns iconográficos e relatos de
cronistas e viajantes), segundo o autor, “adotou-se também como fonte primária, a análise
dos prédios, considerando que estas construções ainda fazem parte do cotidiano de grande
parte da população e sinalizam a história da cidade (...). São documentos materializados que
testemunham uma época” (Mesquita, 2006, p. 20-21).
Em narrativa sobre a cidade de Fortaleza, o historiador Antonio Luiz Macêdo Silva Filho
(2004, p. 16) também percorreu “rastros frágeis do viver urbano, marcas, discretas ou
imponentes, inscritas no contemporâneo – rumores de homens e mulheres do passado e do
presente cujas experiências sociais se encontram amealhadas e expressas nos objetos
materiais”. Edificações, logradouros e monumentos “assinalam a possibilidade de empregar
a cultura material na constituição de uma história urbana (...) ganham singular pertinência
porquanto se revertem em indícios de densidade temporal, associam-se a valores sociais,
normas e práticas coletivas, expectativas e desejos (...) construções de significado
historicamente engendradas” (Silva Filho, 2004, p. 15).
Na apreciação da historiadora Maria Stella Bresciani (apud Silva Filho, 2004, p. 16), “uma vez
relacionados à dinâmica urbana, objetos como uma placa de rua ou uma lâmpada podem
representar fragmentos preciosos, descortinando na cidade as diversas camadas residuais de
tempos plurais que a compõem”.
Desse modo, a verificação de elementos materiais nas praças – passeios, bancos, jarros,
esculturas, fontes, lagos, canteiros, árvores – constituiu importante fonte documental para a
pesquisa.
A seleção desse conjunto de fontes primárias preteriu outras tantas, como atas da Câmara
Municipal do Recife, coleções iconográficas, posturas municipais e leis provinciais, decretos,
relatórios de engenheiros ligados à administração pública, relatos de viajantes e
memorialistas, estudos técnicos, planos urbanísticos e outros periódicos, como o Boletim da
Cidade e do Porto do Recife e a Revista do Arquivo Público Estadual de Pernambuco. A
escolha das fontes variou conforme os recortes temporais e a disponibilidade para consulta
nos acervos visitados. E foram encontrados em maior quantidade documentos escritos e
iconográficos dos projetos do Jardim do Campo das Princesas, do Parque do Derby e do
Jardim da Casa Forte.
Como o interesse maior do trabalho é caracterizar fases distintas a partir do projeto
paisagístico, a análise foi conduzida pelo conjunto dos jardins. A periodização foi, portanto,
definida pelo projeto, mas, ligada às administrações governamentais que executaram as
obras, sem, no entanto, resvalar para uma análise das ações de ajardinamento no contexto de
cada uma dessas gestões ou a partir de uma determinada intenção política.
O primeiro momento abarca 16 anos e 4 intervenções, iniciando pela execução do projeto de
ajardinamento do Campo das Princesas, em 1872, e terminando com o da Praça Visconde de
Mauá, atribuído ao final do Império, provavelmente por volta de 1888. Foram vários os
chefes da província de Pernambuco nesse tempo, com mudanças no corpo técnico da
Repartição de Obras Públicas. O segundo período refere-se às administrações do governador
Sérgio Loreto (1922-1926) e do prefeito Antônio de Góes (1922-1925), em que 8 projetos foram
realizados em cerca de 2 anos, entre 1924 e 1925. Por fim, a terceira fase compreende as
gestões do governador Carlos de Lima Cavalcanti (1935-1937) e do prefeito João Pereira
Borges (1934-1937), quando foram executados 7 projetos do paisagista Roberto Burle Marx
entre 1935 e 1937.
O intervalo entre os três períodos foi marcado por ações pontuais, como a criação das praças
Adolfo Cirne e Joaquim Nabuco na segunda década do século XX, ou medidas de
conservação e reparos em várias praças e algumas obras na primeira gestão do governador
Carlos de Lima Cavalcanti (1930-1935), quando o Recife teve como prefeitos Lauro Borba
(1930-1931) e Antônio de Góes (1931-1934).
Portanto, foram consultados alguns documentos do interstício entre a segunda e a terceira
fases: a Revista Brasil-Portugal (1932-1933), o Mapa da Cidade do Recife e Arredores (1932),
o Album de Pernambuco (1933), um relatório do secretário da Viação, Obras Publicas,
Agricultura, Industria e Comercio, João Cleofas de Oliveira (1932), e exposições de Carlos de
Lima Cavalcanti (1930-1933 e 1930-1935). A confrontação dessas fontes com a documentação
relativa aos períodos 1922-1926 e 1934-1937 poderia esclarecer dúvidas quanto à implantação
de alguns projetos da década de 1920, cujos traços teriam permanecido, e melhor
circunstanciar a atuação de Burle Marx.
As três fases da pesquisa encerram 13 praças, entre novos projetos e reformas, totalizando 19
intervenções, e a nomenclatura atual adotada toma por base Sá Carneiro e Mesquita (2000)
(Figura 1.3).
Figura 1.3: Delimitação do objeto de estudo e periodização. Fonte: Elaborada pela autora.
As fontes complementares incluíram livros, artigos, entrevistas, legislação, relatórios e
trabalhos técnicos, dicionários, pesquisas acadêmicas, particularmente dissertações de
mestrado, e anais de eventos nacionais e regionais, os quais oferecem um panorama da
produção científica sobre as temáticas relacionadas a este trabalho.
Praças/Períodos (1872-1888) (1922-1926) (1934-1937)
1. Praça da República 1872 1924 1937 2. Praça Maciel Pinheiro 1872-1875 1925 3. Praça Dezessete 1877 4. Praça Visconde de Mauá 1888 5. Praça do Derby 1924 1937 6. Praça Chora Menino 1924 1935 7. Praça Sérgio Loreto 1924 8. Praça do Entroncamento 1925 9. Praça Oswaldo Cruz 1924 10. Praça Parque Amorim 1924 1935 11. Praça de Casa Forte 1935 12. Praça Euclides da Cunha 1935 13. Praça Artur Oscar 1936
Foram consultados os acervos da Biblioteca Almeida Cunha/5ªSR-IPHAN; Bibliotecas da
UFPE (Joaquim Cardozo, do Centro de Artes e Comunicação (CAC), do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas (CFCH) e Central); Biblioteca Blanch Knopf e Setor de Microfilmagem da
Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ); Laboratório da Paisagem/UFPE; Museu da Cidade
do Recife; Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE) e Biblioteca Pública
Municipal, no Recife, do Escritório Burle Marx & Cia Ltda e da Biblioteca Nacional, na
cidade do Rio de Janeiro.
Parte da documentação governamental foi pesquisada no site http://ecollections.crl.edu/, já que
se encontra à disposição do público por ter sido digitalizada através do projeto The Latin
American Microfilm Project (LAMP) do Center for Research Libraries (CRL), patrocinado pela
Andrew W. Mellon Foundation.
2. O projeto paisagístico dos jardins públicos no Brasil
2.1. O conceito de jardim público
Historicamente, ao menos na civilização ocidental, a praça significou o espaço livre urbano
de domínio público, comum, aberto, coletivo e desnudo, e o jardim se consolidou como o
espaço livre privado, doméstico e vegetado. Enquanto a praça, cuja origem remonta à Ágora,
na cidade grega, e ao Fórum, na pólis romana, constitui o espaço de todos, destinado ao
encontro e à manifestação do público, o jardim recua aos primórdios da civilização humana,
como uma das formas mais antigas da relação homem-natureza.
Nas palavras de Araujo (2002, p. 27-28), a Ágora era o “lugar do debate e do encontro por
excelência”, assim como o Fórum, “espaço público consagrado às distrações da vida social
dos citadinos”. Nas praças da Idade Média e da Renascença, “concentrava-se o movimento,
tinham lugar as festas públicas, organizavam-se as exibições, empreendiam-se as cerimônias
oficiais, anunciavam-se as leis, e se realizava todo tipo de eventos semelhantes” (Sitte, 1992,
p. 25).
O jardim, por outro lado, consiste numa ação de manipulação da natureza motivada desde
cedo por razões contemplativas e utilitárias e está ligado a uma inquietação espiritual que
remonta à idéia do paraíso, evocado nos primeiros jardins organizados a partir dos métodos
de cultivo e irrigação e enraizado em mitologias e religiões.
Etimologicamente, a expressão “praça”, “lugar cercado de edifícios”; “largo”; “mercado” e
“feira”, cujo aparecimento na língua portuguesa remonta pelo menos ao século XIII, deriva
do latim vulgar platea, sendo que no português medieval já se documentavam a locução
adverbial “em praça” e o advérbio “praceiramente”, ambos significando “em público”
(Cunha, 1986, p. 627).
Ainda do ponto de vista etimológico, o vocábulo “jardim”, “terreno onde se cultivam plantas
ornamentais”, variação do francês jardin, do antigo jart, já era encontrado no idioma
português ao menos no século XIII (Cunha, 1986, p. 453). Em 1858, havia registro da palavra
“jardineira” e, em 1873, dos vocábulos “ajardinar”, “jardinagem” e “jardinista” (Cunha, 1986,
p. 453). Também partindo da expressão normanda gardin, variante antiga de jardin,
originaram-se o inglês garden e o alemão garten, cujo radical gard significa “cercado”,
derivado do anglo-saxão geard e do alemão arcaico gart (Corominas, 1994, p. 343), assim
como introduziu-se a palavra jardín no idioma espanhol. A relação da expressão “jardim”
nos idiomas francês, português, espanhol, inglês e alemão parece advir da origem comum do
hebraico gan, ou seja, proteger ou defender, sugerindo a presença de uma vala ou cerca, e
eden ou oden, exprimindo a noção de prazer, deleite. Da combinação entre os dois termos, a
palavra “jardim” passou a significar “um recinto de terra para o prazer e o deleite” (Laurie,
1983, p. 29).
Sob esse ponto de vista, a praça é originalmente o espaço livre de domínio público (urbano,
com pouca ou nenhuma vegetação), ao passo que o jardim representa o espaço livre privado
(doméstico, encerrado, em que a presença vegetal é quase inevitável) – relação metaforizada
por Saldanha (1993) em seu ensaio antropológico sobre a vida pública e privada.
A expressão portuguesa “parque”, por sua vez, com acepções originais de “bosque cercado
onde há caça”; “terreno arborizado que circunda uma propriedade” e “jardim público”,
remonta pelo menos ao século XVI, também derivada do francês parc, através do baixo latim
parricum (Cunha, 1986, p. 583). A forma homônima espanhola “parque”, de 1607, igualmente
advinda do francês parc pelo latim, significa “manjedoura de gado”, “sítio cercado destinado
a conservar animais selvagens”; “terreno, cercado e com plantas, para recreio” – origem
comum nas línguas francesas e germânicas do Ocidente (Corominas, 1994, p. 442). O parque
conjuga o sentido “público” da praça e “verde” do jardim, ou seja, em outros termos, na
condição de espaço público vegetado, é um jardim público, como inclusive aponta um dos
significados originais da palavra.
Ao longo do tempo, o jardim assumiu configurações e designações diversas e hoje se
apresenta sob diferentes expressões projetuais de acordo com as funções que desempenha e
abarca grande variedade de espaços livres, como os passeios e as alamedas, as praças e os
parques urbanos, os jardins botânicos e os jardins zoológicos, as hortas e os pomares, apesar
de que uma abordagem estritamente tipológica não está no escopo deste trabalho. Nesses
termos, tanto um parque como uma praça podem ser classificados como jardins.
Citando Burle Marx, “o jardim em todos os tempos, entre todos os povos, surgiu nos
momentos máximos de suas respectivas civilizações. Não houve povo que evoluindo não se
congregasse em cidade. Não houve cidade que evoluindo não contivesse jardins” (1996, p.
15).
Essa práxis originou, ao longo da história, as chamadas escolas paisagísticas, que, seguindo
princípios de composição, utilizavam materiais naturais (vivos ou inertes), como água, pedra
e vegetação, e artificiais, através da ação humana dominando a natureza e moldando
diferentes expressões de traçado, mobiliário, componentes aquáticos e massas vegetais. O
jardim italiano (renascentista), o jardim francês (barroco) e o jardim inglês (romântico)
exerceram grande influência na práxis paisagística do Ocidente, de onde a palavra “jardim”
passou também a designar a escola, qualificando uma produção, e cujos princípios
compositivos são delineados no item seguinte, através da abordagem do projeto na
experiência brasileira.
Foi a partir do século XVII que os jardins se materializaram “enquanto espaços públicos
urbanos”, como apontou o Professor Hugo Segawa (1996, p. 31), estabelecendo elos entre
praça e jardim ou, noutras palavras, discorrendo sobre a prática do plantio de árvores no
espaço público. Com base nos registros de Mark Girouard, Segawa (1999, p. 39) descortinou
uma “uma série de recantos aparentemente triviais, mas relacionados com o nascimento dos
espaços ajardinados públicos franceses”.
Em 1597, a implantação de um campo de pallamaglio (esporte praticado no verão à sombra
das árvores) no lado externo dos muros de Paris impulsionou o aproveitamento de áreas ao
longo de suas muralhas, o que mais tarde originou os passeios arborizados, também
executados em outras cidades francesas como parte dos grandes bulevares (Segawa, 1996, p.
39-40). A partir do século XVII e ao longo do século XVIII, várias cidades construíram seu
passeio ajardinado, como Berlim, Hamburgo, Dublin, Amsterdã, Bordeaux, Nancy, Viena,
Munique, Madri e Lisboa (Segawa, 1996, p. 44-45).
Desde o Renascimento, as villas italianas eram freqüentemente abertas ao público, assim
como os jardins da Realeza em Londres, nos seiscentos, e em outras cidades européias
(Laurie, 1983, p. 94; Segawa, 1996, p. 43-44), mas, no início do século XVII, o jardim começava
a extrapolar o limite da edificação, ganhando o estatuto de público, na acepção de urbano,
não contido no espaço da vila ou do palácio.
Londres, no século XVII, introduziu o padrão square nas novas áreas de ocupação: “um
recinto ajardinado e cercado, embutido numa trama de ruas residenciais, ostentando
construções uniformes”, que não podia ser confundido com a praça tradicional (Segawa,
1996, p. 44). Como apontou Zucker (apud Segawa, 1996, p. 44), “as squares inglesas
desenvolveram-se a partir da tendência do britânico por uma maneira afável de vida (...) e
acima de tudo, com alto grau de privacidade”, cujo acesso era regulamentado pelos
moradores, que possuíam a chave do portão. A definição encontrada por Gideon para square
num dicionário de arquitetura de 1887 diz: “um pedaço de terra no qual há um jardim
enclausurado, circundado por uma via pública dando acesso às casas em volta” (apud
Segawa, 1996, p. 44).
Ao longo da história também ocorreu uma ampliação das funções desempenhadas pelos
jardins, os quais podem ser destinados à recreação (esportiva ou contemplativa),
embelezamento urbano, produção de conhecimento científico (estudo da flora e da fauna),
educação, equilíbrio ecológico (amenização da temperatura e da poluição atmosférica e
sonora e conservação da biodiversidade) e cultivo de alimentos. Seu elemento fundamental e
caracterizador é a vegetação, o que o aproxima da idéia de espaço verde (ou vegetado), seja
no domínio público, seja no âmbito privado.
Desse modo, a praça, o parque e o jardim hoje são incluídos no conjunto dos espaços livres
urbanos – tradução do inglês open spaces e do alemão freiraum – exatamente porque são livres
de edificação ou com o mínimo delas e cujo acesso é livre, agregando distintas funções de
recreação, circulação, equilíbrio ecológico e embelezamento (Sá Carneiro e Mesquita, 2000, p.
24-25; Macedo, 1999; Albuquerque, 2005, p. 55).
Evidentemente, as expressões “público” e “privado” carregam uma série de significados,
pois perpassam por questões de posse ou propriedade, de uso e acesso, as quais não cabe
aqui aprofundar. Em se tratando do recorte temporal abarcado nessa pesquisa, distintas são
as formas de uso (as práticas culturais) e o acesso (pelos grupos sociais) aos espaços livres,
motivo pelo qual se emprega a expressão jardim público em sentido lato, na acepção de
jardim urbano, para diferenciar do jardim privado ou doméstico, portanto, contido no espaço
das edificações e mais restrito ao uso familiar.
Na documentação escrita consultada nesta pesquisa, todas as praças que compreendem o
objeto do trabalho guardavam a conotação de jardins públicos, independente de que parcela
da população lhes tinha acesso e dos gradis que as encerravam. No século XIX, por exemplo,
era corrente nos relatórios do governo provincial a utilização da expressão jardins públicos,
considerados como melhoramentos urbanos. No mesmo sentido, a Revista de Pernambuco,
nos anos de 1920, comumente se reportava aos parques do Recife como jardins e logradouros
públicos, na idéia de melhoramentos urbanos. Ainda na documentação da década de 1930,
entre jornais, relatórios de prefeitos e governadores e plantas, também era corriqueiro o
emprego das expressões jardins, ajardinamento e logradouros públicos, numa referência às
praças reformadas por Burle Marx. Os logradouros públicos, segundo definição do
Dicionário da Arquitetura Brasileira, de Corona e Lemos (1972, p. 302), incluem avenidas,
ruas, praças e jardins.
Entretanto, a distinção entre praça-espaço público e jardim-espaço privado perdurou na
configuração da cidade colonial brasileira, uma vez que a praça constituía o espaço livre
público, seco, com pouco ou nenhum equipamento, ao passo que os jardins, como as hortas
conventuais e os quintais, representavam os espaços livres vegetados no domínio privado,
destacando-se o Parque de Friburgo, construído no Recife em meados do século XVII.
Enfim, o sentido público da praça, seja arborizada ou não, permaneceu no transcurso da
história e chegou aos dias atuais, a exemplo da noção de jardim como espaço livre destinado
ao convívio com a natureza, seja público, seja privado, e justamente por isso, é hoje uma
denominação universal relativa aos espaços associados à presença de vegetação, da qual
derivam as expressões ajardinar e ajardinamento. E o parque vincula as duas acepções para
expressar a idéia de jardim público.
Apoiada nessas raízes históricas, a Carta de Florença (Cury, 2004, p. 253), definiu, em 1981, o
jardim histórico como uma composição arquitetônica e vegetal, ultrapassando, portanto, a
questão tipológica, isto é, reconhecendo que seu elemento principal é a vegetação, seja praça,
parque ou jardim. Novamente reportando-se à Carta, a denominação jardim histórico aplica-
se tanto aos jardins modestos quanto aos parques mais elaborados (Cury, 2004, p. 254),
consubstanciando, portanto, o emprego da expressão “jardim” ao conjunto de praças
estudadas na pesquisa.
2.2. O projeto paisagístico
Embora o escopo do trabalho sejam os jardins públicos, cabe, inicialmente, uma menção ao
Parque de Friburgo, na condição de um projeto paisagístico de grande envergadura,
executado em pleno século XVII, um marco no paisagismo brasileiro.
Um jardim renascentista no Recife colonial. Foi assim que a arquiteta Liana Mesquita (2002)
interpretou o Parque de Friburgo, um grande empreendimento contido no palácio
homônimo criado pelo conde João Maurício de Nassau, governador geral do Brasil
Holandês, durante a ocupação flamenga no Recife (1630-1654). Friburgo, cidade da liberdade
– como aponta o nome Vrijburg – conjugava diversas atividades. Assentado na porção norte
da Ilha de Antônio Vaz, sítio bastante estratégico, hoje correspondente ao bairro de Santo
Antônio, o Palácio voltava-se para o Oriente faceando o Rio Capibaribe, onde atualmente
está localizada a Praça da República, com amplo descortino para as águas e para o
continente.
O jardim era constituído por pomares, hortas, canteiros, criatórios de aves, ovinos e caprinos
e grandes lagos – espelhos à paisagem, viveiros de peixes e habitat de coelhos e cisnes – mais
parecendo “uma unidade produtiva”, no dizer de Mesquita (2002) (Figuras 2.1 e 2.2).
Figura 2.1: Planta Baixa do Parque de Friburgo, cujo plantio se iniciou em 1639. Fonte: Ilustração do livro de Gaspar Barleus apud Mesquita, 2002.
Figura 2.2: Perspectiva do Parque de Friburgo, reconstituição livre por Liana Mesquita. Fonte: Mesquita, 1998.
A autora compara a disposição desses elementos à do jardim renascentista, pelo traçado
ortogonal, predominantemente simétrico que organizava todos os espaços (Mesquita, 2002)
(Figuras 2.1 e 2.2). Os passeios arborizados, um convite à contemplação das vistas e ao
acúmulo de experiências, e a unidade entre o jardim e a edificação (o Palácio) também
rememoravam o jardim renascentista, comparação comungada por Alcides (2002). A idéia de
“organizar um pequeno mundo”, em suas palavras (Alcides, 2002), remonta à noção das
villas renascentistas italianas do século XVI.
O ano de 1783 é considerado um marco na tradição paisagística brasileira por conta da
conclusão das obras do Passeio Público do Rio de Janeiro, reconhecido como o primeiro
jardim público do país. O início da implantação remonta a 1779, sob a voga dos princípios
iluministas setecentistas e segundo projeto de autoria do brasileiro Valentim da Fonseca e
Silva, o Mestre Valentim, quase um século e meio após a criação do parque de Nassau. Um
jardim público “em um sentido que deve ser examinado em seu tempo. Espaço de acesso
controlado e de comportamento vigiado”, como advertiu Segawa (1996, p. 108).
Nas palavras de Monteiro de Carvalho (1999, p. 9), “os conceitos de civilidade, progresso,
saúde e bem-estar públicos surgiam, no século XVIII (...) pela voz do chamado espírito das
Luzes (...) acrescentando (...) valorização do solo urbano nas áreas consideradas mais frescas
e arejadas; aeração da cidade em grandes parques e jardins e saneamento básico em redes de
esgoto; distribuição de água em chafarizes públicos ornamentais; segregação da doença, da
mendicância e da morte com a instituição de hospitais e cemitérios sob o controle de
congregações particulares ou do Estado”.
A ação fiscalizadora, centralizadora e de repressão ao clero do Marquês de Pombal culminou
com a expulsão dos Jesuítas em 1759 e a transferência da sede do governo de Salvador para o
Rio de Janeiro em 1763, onde a política de civilidade foi levada a cabo por instituições laicas
(irmandades e ordens terceiras) e pela burocracia estatal (Monteiro de Carvalho, 1999, p. 9).
Iniciava-se o processo de laicização do espaço urbano que se consolidaria no século seguinte,
de que resultam os jardins públicos no Brasil.
Na condição de capital e principal porto do país, o Rio viu-se acrescido de monumentos
representativos da nova ordem urbana e conheceu, na gestão de Dom Luís de Vasconcelos
(1779-1790), seu “primeiro grande surto de racionalização urbana do período colonial”, em
que foram priorizados o saneamento básico, o abastecimento de água, o embelezamento
urbano, e a cidade foi dotada “do primeiro local de lazer do carioca” – o Passeio Público –
construído em áreas “frescas e belas” (Monteiro de Carvalho, 1999, p. 9-10).
No domínio das obras civis, o Mestre Valentim projetou chafarizes e o Passeio Público,
inspirado num modelo de jardim monumental “como sinônimo de bom gosto, luxo e
entretenimento – uma expressão da natureza dominada pela razão” enfim, um “jardim
cortesão” de beleza e prazer, organizado segundo a “estética do barroco” (Monteiro de
Carvalho, 1999, p. 15-16). O Passeio Público era definido por um traçado axial de aléias,
“ruas bordadas de arvoredos”, que culminavam num belvedere e terraço, de onde se podia
descortinar, por um lado, a Baía de Guanabara, e, por outro, a cidade do Rio de Janeiro –
“uma estrutura dinâmica e cenográfica”, cujo ponto de fuga se abria ao panorama da baía
(Monteiro de Carvalho, 1999, p. 25) (Figura 2.3).
Figura 2.3: Planta Baixa do Passeio Público do Rio de Janeiro, projeto de Mestre Valentim. Fonte: Taulois, 2002.
O Mestre Valentim compôs o jardim com construções e elementos escultóricos, fontes,
vegetação arbórea de sombra soberba e trepadeiras em caramanchões, um portão em ferro
fundido – em que era mestre – muro, pirâmides de granito e pavilhões (Figura 2.4). O
conjunto escultórico da Fonte dos Amores mais parecia “um altar”, uma “espécie de outeiro
de pedra e vegetação”, em que dois jacarés de bronze derramavam jatos d’águas de suas
mandíbulas, enquanto o portão desenvolvia volutas em curvas e contracurvas (Monteiro de
Carvalho, 1999, p. 25-26; 23) (Figura 2.5).
Figura 2.4: Aspecto interno do Passeio Público, destacando-se a vegetação exuberante e uma pirâmide, numa litografia aquarelada de Alfredo Martinet, 1847. Fonte: Segawa, 1996.
Parafraseando a historiadora da arte Monteiro de Carvalho (1999, p. 26), toda a composição
do Passeio Público evocava um jardim iluminista: a união do fazer artístico e utilitário, o
traçado e a planta barroca dos pavilhões com sua rica decoração, as pirâmides monumentais,
o olhar dirigido ao infinito do céu da Baía de Guanabara sob a inspiração de Versailles.
Ainda no final do século XVIII, por ordem régia de 1798, Portugal iniciava uma política de
criação de jardins botânicos no Brasil, continuada no Império – Belém (1796), Salvador
(1803), Rio de Janeiro (1808), Olinda (1811), Ouro Preto (1825) e São Paulo (1825) – com
funções de ordem científica e econômica, para conhecimento das novas plantas nativas e
aclimatação de outras úteis e implantação de comércio de espécies na Europa (Segawa, 1996,
p. 109-115).
No início do século XIX, com a presença da Corte no Rio de Janeiro, iniciou-se “um quadro
de arte refinada” decorrente da Missão Artística Francesa, chegada em 1816, e das atividades
da Imperial Academia de Belas-Artes, cujos cursos foram inaugurados em 1826 (Reis Filho,
2004, p. 116-117). Realizaram-se expedições e estudos naturalísticos, capitaneados por
diversos naturalistas estrangeiros, entre os quais, Martius, Spix, Saint Hilaire e Gardner.
Em 1810, a Imprensa Régia publicou o “Discurso sobre a utilidade da instituição de jardins
nas principais províncias do Brasil”, escrito pelo ilustre médico brasileiro Manuel Arruda da
Câmara, estudioso das ciências naturais e da agricultura. O opúsculo era dividido em duas
partes: uma exposição sobre a importância de se criarem hortos nas capitanias do país e a
proposição das espécies estrangeiras e nativas a serem cultivadas, pelos seus préstimos ou
por sua raridade e perigo de extinção.
Figura 2.5: Portão de entrada e traçado monumental do Passeio Público, numa pintura de época. Fonte: Taulois, 2002.
Na segunda metade do século, nos centros urbanos mais populosos, o número de edificações
cresceu ininterruptamente, instalaram-se redes de abastecimento d’água, iluminação pública
e linhas de transporte coletivo (Reis Filho, 2004, p. 152). Na apreciação do Professor Nestor
Goulart Reis Filho (2004, p. 122), foi nesse processo em que se procurou, por todos meios,
reproduzir nos jardins a paisagem dos países de clima temperado, entregues em geral aos
cuidados de jardineiros franceses, contendo árvores e flores européias e as palmeiras
imperiais, como símbolo de identificação com a Corte e de participação na nobreza do
Império. Complementando com a pesquisadora Ana Rosa de Oliveira (Delphim, 2005, p. 20),
esses “jardineiros franceses passaram a promover o uso das espécies européias e o gosto pelo
pitoresco, (...) na imitação de árvores e pedras, que deixou muitos vestígios nos jardins
brasileiros do século XIX”.
Foi exatamente a partir dos oitocentos que se firmaram no Brasil as ações de ajardinamento
dos antigos espaços livres públicos coloniais (campos, praças, terreiros, adros, pátios, largos
e rossios), como expressão do processo de secularização ou laiscização do espaço urbano
(Marx, 2003; Vaz, 2001; Derenji, 2001; Silva, 2001). O espaço livre público aos poucos se
tornava vegetado e recebia novos equipamentos, modificando-se os antigos largos, adros,
pátios e praças coloniais, quase desprovidos de mobiliário, exceto àqueles ligados às
liturgias, com pouca ou nenhuma vegetação e destinados ao uso sagrado ou religioso, em
vez do profano ou secular, conforme explicação de Marx (2003).
O projeto paisagístico, a que o autor designa de “trato” ou “tratamento”, já não se
relacionava apenas com igrejas e capelas, casas de câmara e cadeia e paços de governantes,
mas, com edifícios laicos, e consistia também na implantação de diversos elementos do
mobiliário urbano (inicialmente composto por cruzes, imagens e elementos litúrgicos
temporários), como fontes, chafarizes, monumentos públicos, luminárias, bancos e placas,
sinais de orientação, bebedouros e até árvores e canteiros (Marx, 2003, p. 156). Nas suas
palavras, “na segunda metade dos oitocentos esses novos figurantes se apresentam e se
difundem, alterando a feição centenária, desnuda e acanhada dos nossos centros” (Marx,
2003, p. 156).
São desse período os jardins executados no Rio de Janeiro pelo engenheiro francês Auguste
François-Marie Glaziou, o paisagista oficial da Corte, inicialmente convidado para executar a
reforma do Passeio Público da cidade e, posteriormente, para ocupar o cargo de diretor de
Parques e Jardins da Casa Imperial.
A partir de 1862, Glaziou reformou o Passeio Público, amolecendo o traçado rígido do
Mestre Valentim em linhas sinuosas de variadas extensões e dimensões, multiplicando as
alamedas, incluindo um pavilhão para bandas de música, de onde fez partir um riacho para
formar um lago, uma pequena ilha e uma ponte rústica (Figura 2.6). Para o descortino da
Fonte dos Amores, implantou “um relvado central ovalado” e para a contemplação da obra
conjunta, um lago circular com repuxo após o portão de entrada (Cunha, 2004a). O jardim
monumental de Valentim convertera-se no jardim romântico de Glaziou.
Figura 2.6: Aquarela de Glaziou de 1862 (projeto de reforma do Passeio Público do Rio de Janeiro), pertencente ao acervo do IPHAN. Fonte: Delphim, 2005.
Mais tarde, o engenheiro foi encarregado das obras de ajardinamento do Campo de Santana
ou Campo da Aclamação (futura Praça da República), construído entre 1873 e 1880, do
Parque da Quinta da Boa Vista, de 1876, ambos no Rio de Janeiro, e do Parque São Clemente,
em Nova Friburgo-RJ.
Em pesquisa recente, Trindade (2002) compreendeu o projeto de Glaziou para o Campo de
Santana como um “parque romântico”, cercado por grades em ferro fundido assentadas
sobre mureta de granito, acesso limitado em quatro portões, traçado sinuoso configurado por
alamedas e gramados, elementos que “imitavam a natureza”, como pedras e troncos falsos,
grutas e cascatas artificiais, lagos curvos e pontes simulando galhos de árvores, espécies
vegetais nativas e exóticas, com alternância de volumes e floração e piso em saibro arenoso
sobre brita para melhor escoamento da água (Figuras 2.7 e 2.8).
Figura 2.7: Planta baixa do Parque do Campo de Santana, projetado por Glaziou. Fonte: Trindade, 2002.
A água, ora em repouso nos lagos, ora em movimento na cascata, produzia uma sensação
refrescante e efeitos sonoros, compondo um jardim “de beleza e prazer” (Trindade, 2002). Na
primeira década do século XX, foram introduzidas no Parque do Campo de Santana guaritas,
estátuas de mármore, um chafariz, quatro fontes, peças em ferro fundido de escultores
franceses e vasos ornamentais, os quais, na apreciação de Trindade (2002), reuniam a técnica
da fundição do ferro e a arte para a produção de elementos belos, ampliando “os recantos de
fruição, tão representativos do paisagismo romântico do século XIX”.
Riachos, grutas, pérgula e árvores arranjadas como bosques também compunham o projeto
do Parque da Quinta da Boa Vista, Residência Imperial, num sítio de topografia acidentada
aos moldes dos jardins ingleses do século XVIII (Figura 2.9).
Figura 2.9: Aquarela de Glaziou (projeto do Parque da Quinta da Boa Vista), pertencente ao Museu da Cidade do Rio de Janeiro. Fonte: Delphim, 2005.
Figura 2.8: Vista geral do Campo de Santana, foto de Marc Ferrez, 1880. Fonte: Trindade, 2002.
No Recife, a idéia de criar um passeio público se concretizou entre 1838 e 1840, com a
execução do Cais do Boyer, hoje Cais da Av. Martins de Barros, junto à Praça Dezessete,
devido ao engenheiro francês Júlio Boyer “por ordem do presidente Francisco do Rêgo
Barros” (Costa, 1983, v. 9, p. 521). “Fizeram um novo cais – o Passeio Público, aliás. Tinha
bancos pintados de verde para comodidade do público” (Sette, 1948, p. 48) e árvores vindas
do Jardim Botânico de Olinda (Parahym, 1978, p. 49).
“(...) feito o calçamento do leito da rua, e ficando ainda, paralelamente disposto, um espaço de
largura quase igual à do mesmo leito, tendo de permeio uma larga calçada, com bancos de
madeira, alinhadamente dispostos, e arborizado palmeiras imperiais e gameleiras em tôda a sua
extensão, e onde havia música aos domingos, afluindo assim grande concorrência de povo, teve
então a denominação de Passeio Público” (Costa, 1983, v. 9, p. 521) (grifos do autor).
Esta descrição coincide com o célebre “Panorama de Pernambuco”, gravura de Friederick
Hagedorn Carls, de 1855, tomada da Torre da Igreja do Espírito Santo (Figura 2.10).
Figura 2.10: Panorama de Pernambuco, de Frederick Hagedorn Carls, 1855. Fonte: Ferrez, 1984.
Novamente reportando-se a Costa (1983, v. 9, p. 521):
“Como ponto de diversão pública, aos domingos, com a pomposa denominação de Passeio
Público, foi por muito tempo assim chamado o lanço de Cais a que nos referimos, até que,
desaparecendo os bancos, parte da arborização, e não havendo mais tocatas dominicais, ficou o
público privado dessa única recreação que tinha. Algumas praças, posteriormente
ajardinadas, vão em parte amenizando a palpitante necessidade de um passeio público, como
desde muito requer uma cidade nas condições do Recife” (grifos nossos).
Contudo, após a implantação do Passeio Público do Recife e antes da execução dos primeiros
jardins públicos da cidade, no último quartel do século XIX, as discussões quanto à criação
de um passeio ajardinado nos terrenos inundáveis da Rua da Aurora, onde hoje se localiza o
Parque 13 de Maio, e a elaboração de um projeto paisagístico, remontam pelo menos a
meados dos oitocentos.
Recentemente, Freitas (2006) analisou uma proposta de autoria do engenheiro Louis Léger
Vauthier para o Passeio Público, de 1844, até agora a planta mais antiga já localizada
referente a um projeto de jardim público no Recife (Figura 2.11). No bojo dos melhoramentos
urbanos promovidos pelo Conde da Boa Vista, a partir de 1840, Vauthier concebeu o passeio
junto à margem do Rio Capibaribe e ao longo de uma via importante, decerto, para facilitar-
lhe o acesso pela água e por terra (Freitas, 2006, p. 62-63). Na interpretação da autora, o
traçado definido por dois grandes canteiros entrecortados por passeios retilíneos e separados
por uma área vazia aumentava a variedade de percursos, expressando uma influência
francesa pela rigidez do traço (Freitas, 2006, p. 66).
Figura 2.11: Passeio Público do Recife, planta referente ao projeto de Louis Vauthier de 1844 (imagem redesenhada). Fonte: Freitas, 2006.
Em 1860, nova proposta foi elaborada pelo engenheiro francês William Martineau, que
abarcava o terreno pantanoso da Rua da Aurora e o Campo das Princesas, ligando-os pelo
Rio Capibaribe e também expressando rigidez no seu traçado, configurado por avenidas
retilíneas arborizadas que se entrecortavam (Figura 2.12). Sem que ambos os projetos
tivessem sido executados, essa intenção só vai se concretizar de fato em 1939, com a
inauguração do Jardim 13 de Maio, hoje Parque 13 de Maio, quase um século depois do
projeto de Vauthier.
Figura 2.12: Passeio Público do Recife, planta referente ao projeto de William Martineau de 1860 (imagem redesenhada). Fonte: Freitas, 2006.
Consolidava-se no país a noção de passeio público, definido por Corona e Lemos (1972, p.
360-361) como:
“Um lugar de passeio, seja jardim, parque, praça ou largo; nome (...) que se dava aos locais
públicos destinados a exercícios e divertimentos. Foi muito comum a expressão (...) para
designar os recantos, às vêzes bastante extensos, que os podêres públicos ajardinavam
(...) com o feito de patrocinar ao povo local de estar ao ar livre”(grifos nossos).
A experiência portuguesa de criação de hortos botânicos desde o final do século XVIII,
segundo Segawa (1996, p. 16; 110), vincula-se ao desenvolvimento de uma série de espaços
públicos ajardinados ao longo do século XIX, pois, parcialmente fracassados nos seus
objetivos, os jardins botânicos acabaram por se transformar em passeios públicos, como em
São Paulo e Salvador, ou confundiriam suas atividades, incluindo o mais relevante deles: o
Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Em Salvador, essa noção remonta à segunda década do
século XIX, ligada à presença de espaços livres arborizados na cidade, para onde concorria a
elite baiana (Silva, 2001, p. 233).
Por sua vez, o Passeio Público de Fortaleza, antigo Campo da Pólvora e futura Praça dos
Mártires, foi inaugurado em 1880, constituído por três níveis topográficos distintos (ou três
avenidas ou alamedas), promovendo uma separação voluntária de usuários. Localizado na
área central e com ampla vista para o mar, “tornou-se de pronto a principal área de lazer e
sociabilidade” da cidade, em que a primeira avenida servia ao desfrute da elite, a segunda,
às classes médias e a terceira, aos populares (Ponte, 1999, p. 31). Como palco de retretas e
ponto de reunião, era “circundado de um belo gradil e portões de ferro (projetados por
Adolfo Hebster), munido de jardim bem arborizado, ornado com bancos, colunas, canteiros,
postes e combustores de gás, vasos de louça e estatuária de estilo neoclássico retratando
divindades da mitologia grega” (Silva Filho, 2004, p. 97) (Figuras 2.13 e 2.14).
Figura 2.13: Passeio Público de Fortaleza (último plano) com descortino para o mar, detalhes do gradil, cadeiras, combustores, passeio e arborização. Fonte: Azevedo, 2001.
Em 1886, era a vez da inauguração do Passeio Público de Curitiba, “o primeiro parque
público da cidade” (Bahls, 2006, p. 1), ainda que inacabado. O Passeio de Curitiba “retratava
com fidelidade o gosto corrente no desenho de parques e jardins: aproveitando o curso do
Rio Belém, tanques e canais serpenteiam dentro do recinto, acompanhando o traçado sinuoso
das aléias em saibro; pontes rústicas venciam a travessia sobre as águas, navegadas por
gôndolas (...). Mictórios, quiosque para botequim, coreto, iluminação a gás e elétrica (...)
foram complementos que o local recebeu nos seus primeiros anos de funcionamento”
(Segawa, 1996, p. 146-147).
A 1895 remonta o projeto do parque municipal de Belo Horizonte, como parte do plano da
nova capital mineira concebido pelo engenheiro Aarão Reis (Figura 2.15). Em edição de 30 de
janeiro de 1895, publicou a Gazeta de Noticias:
Figura 2.14: Passeio Público de Fortaleza (primeiro plano). Ao fundo, o gradil, árvores, um lago com fonte e, à frente, uma escultura. Fonte: Lopes, 1989.
“Um vasto Parque (...) ocupará o centro mais ou menos da cidade (...). Superfície
extremamente ondulada cujas partes mais baixas serão transformadas em grandes lagos e rios
e as mais elevadas em esplêndidos pontos de vista (...) elevará a nova cidade acima de quantas
ora atraem, no Brasil, a população que deseja refazer forças, no verão em lugares amenos e
aprazíveis. Várias construções ligeiras, mas de gosto artístico, enfeitarão este belo jardim,
proporcionando variados entretenimentos aos passeantes” (apud Segawa, 1996, p. 69).
Figura 2.15: Planta do Parque Municipal de Belo Horizonte, segundo o plano elaborado pelo engenheiro Aarão Reis, pertencente ao Museu Histórico Abílio Guerra. Fonte: Teixeira, 1999.
Segundo Segawa (1996, p. 69), Aarão Reis incorporava em seu plano a lição dos grandes
parques públicos das cidades européias e norte-americanas, ressaltando o papel da
vegetação na qualidade do ambiente. O parque refletia o pensamento urbanístico que
caracterizou a passagem entre os séculos XIX e XX no Brasil, marcada pela atuação de
médicos e engenheiros nos processos de urbanização, proclamando os benefícios da
arborização para a higiene pública.
Essas idéias alinhavam-se ao pensamento em torno da insalubre cidade européia
oitocentista, vitimada por epidemias e péssimas condições de trabalho e habitabilidade
herdadas da Revolução Industrial, para as quais os parques emergiam como um antídoto
pela função saneadora da natureza.
A grande reforma urbanística por que passou Paris entre 1853 e 1870, promovida pelo Barão
Georges Eugène Haussmann, estava, em parte, alicerçada no Higienismo, o que justificava a
criação de um conjunto de parques. Benévolo (1976, p. 98-122) aponta que os trabalhos
executados podem ser divididos em cinco categorias: obras viárias, de edificação, os parques
públicos, as instalações e a modificação da sede administrativa da capital, ecoando de
diversas formas em muitas cidades européias, em que a rigidez do traço reto seria a marca de
um tanto de intervenções. Na visão de Lubambo (1991, p. 64), Haussmann incorporou lições
urbanísticas do século anterior ao promover um “urbanismo essencialmente paisagístico”,
alicerçado na tradição barroca de construir jardins, praças e avenidas arborizadas para a
nobreza.
No Brasil, as primeiras décadas do século XX foram caracterizadas por intervenções
urbanísticas calcadas em pelo menos cinco eixos básicos – campanhas de higienização,
embelezamento, expansão urbana, encampação de alguns serviços públicos de infra-
estrutura e ações voltadas para questões portuárias e de habitação –, como dão conta os
estudos que vêm sendo realizados no país (Marques e Vainsencher, 1996). Particularmente,
estética urbana e higienização “constituem partes interligadas de qualquer projeto de
intervenção urbana na época (...) o alargamento e a criação de grandes avenidas (...) pela
construção de parques e jardins, e reforma de edifícios públicos (...), além de posturas que
regulamentavam a construção, a disposição hidro-sanitária e o aspecto externo dos edifícios”
(Marques e Vainsencher, 1996).
Se até então a influência inglesa dominava o paisagismo no Brasil, a reforma urbanística de
Paris, que emergia como a nova metrópole da Europa, seria a grande vitrine para as ações de
remodelação urbana, também inspirando o projeto paisagístico dos jardins públicos nos
primeiros decênios do século XX. O culto à árvore, inclusive, é, de acordo com Segawa (1996,
p. 70), uma invenção francesa do início do século XIX como símbolo de civilidade, cultura e
patriotismo, expresso, por exemplo, na criação do “dia da árvore”, da “festa da árvore”.
Comemoração dessa natureza no Brasil ocorreu pela primeira vez em 1902, em Araras, São
Paulo, “com a finalidade de conservar o bosque municipal” (Segawa, 1996, p. 71).
Dizendo de outro modo, as reformas urbanas atingiriam a escala do jardim, agregando-lhe
um papel de higienização para alargar a noção de jardins de beleza e prazer que dominaram
a práxis paisagística no século XIX. O projeto paisagístico passava a responder a uma função
higiênica, preocupação marcante de várias administrações públicas na passagem para o
século XX, como apontam diversas obras realizadas por governadores e intendentes
municipais de Manaus, Belém, Fortaleza e Curitiba.
A riqueza gerada pela exploração da Borracha na Amazônia iria favorecer uma série de
medidas relacionadas aos ideais de salubridade e embelezamento urbano em Belém e
Manaus, característicos do período denominado por cronistas e historiadores de Belle Époque
Tropical (Andrade, 2003).
A partir de 1893, em Manaus, como parte das ações urbanísticas promovidas pelo
governador Eduardo Ribeiro, foi ajardinada a Praça D. Pedro II, já rebatizada de Praça da
República (Mesquita, 2006, p. 276). O projeto incluía uma suntuosa fonte em bronze,
adornos, grande variedade de plantas e flores e um coreto em ferro de origem inglesa sobre
base octogonal e ornamentado com motivos florais (Mesquita, 2006, p. 275-278) (Figura 2.16).
Figura 2.16: Praça D. Pedro II, numa foto do Álbum do Amazonas: Manaus, 1901-1902: detalhe do coreto, bancos, árvores, palmeiras e fonte. Fonte: Mesquita, 2006.
Em 1898, foi o governador Fileto Pires Ferreira quem anunciou o “aformoseamento” da
Praça General Osório, a qual, em 1902, já estava dividida por largos passeios determinando
um traçado axial com um coreto ao centro, de base “trabalhada no estilo pitoresco (próprio
do Romantismo)”, imitando troncos vegetais e rochas (Mesquita, 2006, p. 286-287) (Figura
2.17). O autor ainda informa que a praça “era definida como do gênero square, dos ingleses,
‘isto é, sem vegetação elevada, a não ser na avenida que a delimitava, plantada de arvoredo’”
Mesquita (2006, p. 287).
Figura 2.17: Praça General Osório, numa foto do Álbum do Amazonas: Manaus, 1901-1902: detalhe do traçado, coreto com base ornada, bancos, árvores e canteiros. Fonte: Mesquita, 2006.
Em Belém, durante a atuação do intendente municipal Antônio Lemos, entre 1897 e 1912,
foram executados vários projetos paisagísticos para a criação de jardins públicos na idéia,
segundo suas próprias palavras, de que “cada praça é um futuro parque, em excelentes
condições de auxiliar o saneamento urbano; mas constitui (...) um formoso sítio de recreio”
(Lemos apud Segawa, 1996, p. 194; 201). Algumas obras de tratamento urbanístico de antigos
largos lhe foram anteriores, mas sua “visionária ação (...) permitiu desenvolver uma política
urbana de intensa arborização e criação de parques e jardins, consciente das virtudes
sanitárias, estéticas e morais de uma iniciativa dessa natureza e envergadura” (Segawa, 1996,
p. 17; 201).
Após ser remodelada, a Praça Batista Campos foi franqueada ao público em 1904, criando-se
um espaço amplo com ruas e canteiros largos para conter grande número de arbustos, ervas
e árvores (Lemos apud Segawa, 1996, p. 205). Carregava influência dos jardins ingleses
marcante no país: pavilhões, caramanchões de ferro importados da Alemanha, ilhotas,
formações rochosas artificiais, pontes rústicas de madeira ou concreto imitando troncos,
chafarizes, gruta, iluminação e vegetação em estratos variados (Segawa, 1996, p. 206).
A Praça da República passou por uma intervenção que mesclava “o requinte dos jardins
franceses, a simetria e proporcionalidade dos italianos e o pitoresco dos ingleses”, com eixos
entrecruzados definidos por um monumento focal e dividindo o espaço em quadrantes,
caminho elíptico impermeabilizado, passeios curvos e retilíneos, canteiros, recantos
estruturados por fontes e espelhos d’água, pavilhões em ferro, bancos, esculturas e pontes,
escadarias e obeliscos em alvenaria (Andrade e Tângari, 2002, p. 48-55) (Figura 2.18).
Figura 2.18: Praça da República num postal da primeira década do século XX. Fonte: Andrade, 2003.
Na cidade de Fortaleza, entre 1896 e 1912, durante a gestão do governador Nogueira Accioly
e do intendente municipal Guilherme Rocha, foram empreendidos diversos melhoramentos
urbanos vinculados à idéia de progresso, salubridade e beleza, e, a partir de 1902 e 1903,
foram “belamente ajardinadas” as três principais praças da cidade – a Praça do Ferreira, a
Praça Marquês do Herval e a Praça da Sé (Ponte, 1999, p. 35-36; Girão, 1983, p. 48-49).
Naquela Fortaleza Belle Époque, como denominou o historiador Sebastião Rogério Ponte, a
“regeneração” das praças extrapolava o “mero aformoseamento”, pois determinava novas
regras de convívio e estimulava a saudável prática de exercícios corporais, sendo que “nesses
logradouros foram introduzidos canteiros de flores (...), ‘avenidas’, cópias da estatuária
grega, vasos importados, chafarizes e largos pavilhões para a ocorrência de retretas,
patinação e ginástica” (1999, p. 36). “Médicos e higienistas recomendavam os passeios
salutares, as práticas esportivas, o movimento e o exercício dos corpos” (Ponte, 1999, p. 39).
Também a partir de 1903, começaram a ser modificados os antigos “campos ermos,
pantanosos e desnivelados (...) de Curitiba, na segunda metade dos Oitocentos”, ações
semelhantes àquelas que ocorriam em outras capitais brasileiras, neste caso, favorecidas pelo
crescimento da economia paranaense com a exportação de erva-mate e pelas inovações
técnicas na construção civil trazidas pelos imigrantes alemães (Bahls, 2006, p. 1). Na
administração do prefeito Luís Antonio Xavier, foram realizadas ações de nivelamento,
terraplanagem, calçamento, iluminação e arborização em antigos charcos e áreas insalubres,
algumas das praças principais da cidade atualmente, como relata Bahls (2006).
Essas obras, segundo a historiadora, tiveram continuidade com a execução de vários projetos
paisagísticos sob o mote vigente de “sanear e embelezar” a cidade, na gestão do intendente
municipal Cândido de Abreu, engenheiro que, entre 1913 e 1916, procedeu ao ajardinamento
de praças com o apoio do governador paranaense Carlos Cavalcanti (Bahls, 2006, p. 1).
“Pretendia-se atribuir à urbe uma aparência de progresso e civilidade, segundo o modelo
francês de urbanização, o qual priorizava espaços amplos, arejados e arborizados” (Bahls,
2006, p. 1). A partir de 1913, foram ajardinadas a Praça Carlos Gomes (Figuras 2.19 e 2.20), a
Praça General Osório (Figura 2.21), a Praça Eufrásio Correa e a Praça Zacarias.
Figura 2.19: Praça Carlos Gomes em 1918. Fonte: Bahls, 2006.
Figura 2.21: Praça General Osório, na década de 1920, com traçado, repuxos e palmeiras de inspiração francesa. Fonte: Bahls, 2006.
Predominava a referência dos jardins franceses, pelo traçado mais rígido e utilização de
repuxos com bacias e palmeiras, porém, ainda com elementos dos jardins ingleses, como
lagos com pedras e ponte rústica, e estátuas em bronze e luminárias em estilo Art-Noveau.
Em 1946, sob toda inspiração francesa, foi executada a Praça Profº João Cândido, definida
por um traçado monumental e arbustos podados formando desenhos (Figura 2.22).
Figura 2.20: Praça Carlos Gomes, década de 1920, detalhe do lago, com pedras e ponte rústica. Fonte: Bahls, 2006.
Figura 2.22: Praça João Cândido em 1950. Traçado monumental, canteiros e arbustos podados. Fonte: Bahls, 2006.
Esse conjunto de iniciativas empreendidas em várias cidades brasileiras durante a República
aponta a forte influência européia, sobretudo do padrão de urbanização francês, segundo o
qual, os projetos de ajardinamento passavam a responder a uma nova função higiênica,
como forma de alcançar uma cidade mais salubre, coexistindo com elementos do paisagismo
romântico.
Foi essa a cultura paisagística com que Burle Marx se deparou quando chegou ao Recife na
década de 1930. Em sua avaliação, se a última metade do século XIX caracterizou-se por uma
obra de caráter acadêmico, que se pretendia sincronizada com os centros civilizados e com a
fortuna da nova nobiliarquia, após a abolição da escravidão, queda do Império e crise
econômica, iniciou-se um período marcado pela exploração da borracha na Amazônia,
desenvolvimento agrícola e pecuário e grande importação de materiais (Marx, 1987, p. 17). A
burguesia ascendente ávida por hábitos civilizados haveria de se manifestar na cópia dos
modelos europeus, pela mão dos imigrantes e dentro do “período e estilo Art-noveau”,
refletindo o gosto pela jardinagem e cultivo de flores e plantas exóticas, o que perduraria até
o quarto decênio do século XX (Marx, 1987, p. 17).
O pensamento de Burle Marx era o de ampliar as funções recreativa, artística e higiênica dos
jardins públicos, agregando-lhes também um papel educativo, a serviço do conhecimento
botânico, para despertar o amor e o respeito à natureza. “Através do jardim, da planta
brasileira, experimento construir um espaço da respiração e da reflexão (...). Ele é um
exemplo da coexistência pacífica das várias espécies, lugar de respeito pela natureza e pelo
outro, pelo diferente: o jardim é, em suma, um instrumento de prazer e um meio de
educação” (Marx, 1987, p. 34).
2.3. Considerações parciais
A partir do século XIX, após a instalação da Corte no Rio de Janeiro, as principais cidades
brasileiras experimentaram um grande processo de urbanização, com a execução de diversas
obras de modernização. Inúmeros edifícios laicos, como faculdades, teatros, liceus, palácios
de governo, estações de trem e habitações urbanas vão abrigar um tanto de atividades civis e
se ajuntar à presença da Arquitetura religiosa e militar, fincando marcas na paisagem das
cidades e caminhando para uma gradual laicização do espaço urbano.
A criação de jardins fez parte dos processos de urbanização em todo o país, como
melhoramentos urbanos na constituição de um espaço laico, desprendendo-se das antigas
práticas religiosas realizadas nos espaços livres coloniais. No entanto, os processos de
ajardinamento de campos, largos, pátios e praças remanescentes dos tempos da Colônia
ocorreram em diferentes contextos, ligados à presença de vários engenheiros estrangeiros no
Brasil e conjunturas econômicas distintas.
Paulatinamente, também foram ampliadas as funções dos jardins públicos, como obra de
embelezamento e recreação, depois como meio de higienização da cidade, até atingir um
papel educativo com o paisagista Roberto Burle Marx no Recife da década de 1930.
Ao longo do século XIX, notadamente a partir da segunda metade, a práxis paisagística se
constituiu sob ampla influência dos jardins ingleses. Com a Proclamação da República, as
ações de ajardinamento vão se multiplicar sob a idéia de progresso e civilidade, continuando
o processo de laicização fortemente inspirado nos jardins franceses, após a reforma de Paris,
enraizada na criação de espaços amplos, arejados e arborizados.
Tentar estabelecer uma classificação que dê conta de todo esse panorama, abarcando tantas
cidades e períodos distintos do paisagismo no Brasil, é uma tarefa bastante difícil. Alguns
trabalhos têm sido produzidos no país, muitos dos quais, incluídos na revisão bibliográfica
desta pesquisa, porém enfocando cidades ou períodos específicos, a atuação de um
determinado paisagista ou político na construção de jardins públicos, o que, evidentemente,
resulta em visões particulares.
Todavia, a respeito desse cenário, em trabalho denominado “Quadro do Paisagismo no
Brasil”, Macedo (1999) estabeleceu uma classificação da produção paisagística do país em
três linhas projetuais, por ele designadas de “Eclético”, “Moderno” e “Contemporâneo”,
atreladas à ampliação das funções desempenhadas pelos jardins no país, incluindo públicos e
privados. Para o autor, a fase Eclética corresponde ao período de 1783 a 1934 e se refere à
produção do século XIX e início do século XX, anterior à atuação de Burle Marx, que inicia
um segundo momento da produção nacional, classificada como a fase Moderna, tendo como
marco inaugural o projeto do Jardim da Casa Forte (Macedo, 1999).
Essa categorização a partir do enfoque do projeto se presta a dar uma noção genérica do
panorama nacional, não se atendo, portanto, às especificidades locais. Nesse sentido, a fase
Eclética, recortada pelo autor num intervalo de 150 anos, abrange, na presente pesquisa, dois
momentos diferentes, caracterizados por distintos modos de projetar o jardim público, os
quais resultaram numa produção a que se designou, respectivamente, de “Jardim
Romântico” e de “Jardim Salubre”, precedendo o “Jardim Moderno” de Burle Marx.
A expressão “Jardim Romântico” empregada neste trabalho coincide com a interpretação dos
pesquisadores que têm se dedicado ao estudo da história dos jardins públicos brasileiros no
século XIX, portanto, consolidando uma expressão que já é utilizada na literatura. Sua
característica principal é a inspiração na visão romântica, pitoresca e idílica, em que o jardim
destinava-se ao recreio e ao embelezamento, baseado na idéia de integração entre homem e
natureza, e cujo projeto paisagístico reproduzia elementos naturais, como pontes rústicas,
cascatas, arranjos de árvores, grutas, canteiros e lagos.
A adoção do termo “Jardim Salubre”, por sua vez, também se respalda nas pesquisas que
têm abordado a criação de jardins públicos no Brasil, sobretudo após a Proclamação da
República, delineada por uma prática urbanística enraizada na idéia de higiene pública. O
projeto paisagístico mesclava aspectos do jardim francês e do jardim inglês, com a rigidez do
traçado como expressão do domínio da natureza pelo homem, repuxos luminosos, alamedas
e arborização densa, além de elementos do mobiliário tipicamente romântico, caracterizando
um gesto regulador sobre a cidade para torná-la saudável, sem, contudo, se descolar da idéia
de criar um espaço para recreio e embelezamento.
Embora carregados de referências européias, a classificação desses projetos como jardim
inglês ou francês parece impertinente, uma vez que as duas escolas ocorreram nos séculos
XVII e XVIII. Cabe, portanto, identificar influências, na acepção de jardins aos “moldes”
ingleses ou franceses, sem enveredar por uma discussão estilística, que vai além do interesse
deste trabalho.
A produção de Burle Marx, como ele próprio afirmou continuadamente, agregava as
influências históricas das escolas paisagísticas que o antecederam, aquele vocabulário
projetual a que Laurie (1983, p. 29) se referia. Sua obra “reflete a modernidade, a data em que
se processa, porém jamais perde de vista as razões da própria tradição, que são válidas e
solicitadas” (Marx, 1987, p. 12), pensamento que expressou em vários depoimentos durante o
período em que trabalhou no Recife, nas diversas conferências que proferiu e entrevistas que
concedeu ao longo de sua vida.
A acepção dada pelo paisagista era consoante à de Lúcio Costa, para quem “ser moderno é –
conhecendo a fundo o passado – ser atual e prospectivo” (1997, p. 116). Ao fazer uso, de
forma pioneira, da flora nativa do Brasil, o jardim de Burle Marx vertia os preceitos do
Movimento Moderno da Arquitetura, que preconizava a valorização das raízes brasileiras.
Parafraseando o crítico de arte Mário Pedrosa (Amaral, 1981, p. 264), o paisagista “concedeu
direito de cidadania às plantas plebéias”.
Nesta direção, emprega-se o qualitativo “moderno” sem maior inclinação à discussão dos
conceitos de “modernidade”, “modernização” e “modernismo”. A expressão “moderno” está
baseada mais nos documentos da época, na forma como Burle Marx designou e como é
referida na literatura nacional e internacional, e menos numa discussão sobre o paisagismo
moderno como um estilo, que foi reconhecido pela crítica como uma escola posteriormente.
Burle Marx é considerado o criador do jardim moderno no Brasil, tendo iniciado sua carreira
no Recife, onde projetou seu primeiro jardim público, o Jardim da Casa Forte. Parece,
portanto, razoável pensar no jardim moderno a partir de sua atividade na capital
pernambucana, onde deixou vários escritos e depoimentos, projetou e construiu vários
jardins e participou de um profícuo grupo de discussões capitaneado pelo poeta e
engenheiro Joaquim Cardozo.
O jardim moderno dotava a cidade de um espaço de recreação, arte, higiene e educação,
como meio de conhecimento das espécies nativas do Brasil, utilizando-se de novos elementos
e materiais no projeto: grande variedade de espécies vegetais, com diferentes volumes e
folhagens, bancos sem rebuscamentos, fugindo à feição romântica, e esculturas que
reproduziam tipos humanos brasileiros.
A designação “Jardim Moderno” diferencia, portanto, o projeto paisagístico característico da
década de 1930 dos projetos executados nos períodos anteriores, o “Jardim Romântico” e o
“Jardim Salubre”, sendo que os jardins públicos construídos nas três fases estavam incluídos
nas obras de melhoramentos urbanos.
6. Conclusões
A intenção de estudar o projeto paisagístico dos jardins públicos do Recife a partir de um
recorte temporal relativamente amplo descortinou características distintas em relação ao
traçado, vegetação, mobiliário, componentes aquáticos e uso de materiais nas três fases
investigadas entre 1872 e 1937, como indica a Tabela 7.
No século XIX, o traçado sinuoso resultava da divisão do terreno em canteiros, com
vegetação de pequeno e médio porte, entremeados por bancos. Na década de 1920,
prevaleceu o traçado axial, configurado por passeios retilíneos arborizados e um ponto focal,
por vezes marcado por um componente aquático. Porém, ainda foram empregados traçados
sinuosos, como expressão de lagos e passeios curvilíneos. Na década de 1930, o traçado
refletia o princípio de convergência em pontos focais como elementos de atração no núcleo
da composição (lagos, cactário, canteiro central e fonte), emoldurados por passeios e
alamedas de árvores como cortinas no contorno do jardim, encerrando o espaço e
sombreando os bancos.
A vegetação foi utilizada em recantos contemplativos, com o predomínio de canteiros e
arbustos esparsos desempenhando uma função artística no século XIX. Passou a formar
alamedas e passeios e a figurar nos jarros, nos lagos e nas cobertas das pérgulas e dos
coretos, assumindo funções artística e higiênica nos anos de 1920. Com Burle Marx, tornou-se
o motivo principal do projeto, empregada de acordo com o ecossistema e a proveniência
geográfica, resultando em jardins temáticos e exercendo funções artística, higiênica e
educativa na década de 1930. As palmeiras imperiais foram valorizadas nos três períodos.
O mobiliário incluiu grande número de peças, sendo bastante específico quanto ao modelo e
material em cada período: coretos e gradis com luminárias em ferro e bancos em madeira
(1872-1888), coretos e pérgulas de ordens clássicas, bancos sem e com encosto adornados com
motivos da natureza em cimento armado (1922-1926) e bancos sem encosto de granito polido
(1934-1937). Enquanto muros e gradis foram específicos do século XIX, jarros e colunas em
cimento foram típicos da década de 1920. As esculturas retrataram desde motivos clássicos,
inspirados na mitologia greco-romana (deuses e ninfas), figuras animalescas, bustos em
homenagens a vultos da história, até tipos humanos brasileiros.
Vários materiais foram utilizados na produção do mobiliário dos jardins públicos do Recife
(ferro, bronze, madeira, mármore, cimento e granito).
A água, em repouso ou em movimento, iluminada, em superfícies ou represada como meio
de cultura botânica, foi um componente marcante no projeto paisagístico, bastante utilizada
nas três fases e aproveitada por suas propriedades cênicas, refrescantes, sonoras e ecológicas,
na forma de fontes, lagos e aquário.
Tabela 7 – Projeto paisagístico dos jardins públicos do Recife de 1872 a 1937
Período Elementos
Traçado: sinuoso (definido por canteiros) Vegetação: canteiros, arborização esparsa, palmeiras imperiais Mobiliário: coretos ou pavilhões e gradis com luminárias em ferro, muros, esculturas de deusas em bronze, bancos com encosto venezianos em madeira e estrutura em ferro, escultura de mármore (índia) com coluna e bacia
O Jardim Romântico(1872-1888)
Componentes aquáticos: lagos, fonte-chafariz em pedra Traçado: axial (definido por alamedas) e sinuoso (definido por lagos e passeios curvos) Vegetação: canteiros, arborização densa, palmeiras imperiais, plantas em jarros, trepadeiras na coberta das pérgulas e coretos e aquática nos lagos Mobiliário: bancos, jarros ou jardineiras e colunas ou pedestais de cimento com desenhos rebuscados, bancos com motivos zoomórficos e florais com encosto e florais sem encosto em cimento armado, pérgulas, coretos e pontes rústicas em cimento armado, esculturas em bronze (Deus Mercúrio e Leão) e bustos em homenagem a personalidades da sociedade civil
O Jardim Salubre (1922-1926)
Componentes aquáticos: lagos, vasca, fonte em ferro, aquário Traçado: pontos focais (lagos, cactário, canteiro central e fonte), emoldurados por passeios e delimitados por cortinas de vegetação arbórea Vegetação: canteiros de pequeno e grande porte, arborização, palmeiras imperiais, aquática, diferentes espécies formando jardins temáticos Mobiliário: bancos sem encosto em granito polido, bancos torneando o caule das árvores, esculturas de tipos brasileiros (índia e homem de tanga)
O Jardim Moderno (1934-1937)
Componentes aquáticos: lagos (superfícies aquáticas e meio de cultura botânica) e fontes
Fonte: Elaborada pela autora.
Foram evidenciados aspectos particulares em torno da toponímia, da localização dos jardins
na cidade e das funções atribuídas, bem como, apresentadas algumas revisões
historiográficas. A mudança na designação (Tabela 8) e a ampliação paulatina das funções
atreladas aos projetos apareceram bem relacionadas ao cenário político e cultural do Brasil e
alinhadas ao contexto europeu.
Tabela 8 – Denominações anteriores das praças do Recife Denominação atual Denominações anteriores
Praça do Palácio Velho Campo do Erário Campo da Honra Campo dos Mártires Campo/Pátio/Praça do Palácio Pátio do Palácio Novo Largo do Paço
1. Praça da República
Campo das Princesas/Jardim do Campo das Princesas Largo do Aterro da Boa Vista Largo/Praça da Matriz Praça de Nossa Srª da Conceição da Boa Vista Praça da Boa Vista Praça dos Mártires Largo/Praça do Moscoso Praça Ricardo Guimarães
2. Praça Maciel Pinheiro
Praça do Conde d'EU/Jardim da Praça do Conde d'EU/Jardim do Conde d'EU Pátio/Praça/Largo do Colégio (dos Jesuítas) Largo/Praça do Espírito Santo Praça de Pedro II/Praça D. Pedro II Jardim do Largo do Espírito Santo/Jardim do Espírito Santo
3. Praça Dezessete
Jardim da Praça de Pedro II/Jardim da Praça D. Pedro II Jardim Sete de Setembro 4. Praça Visconde de Mauá Praça da Estação Central Campina do Derby 5. Praça do Derby Parque do Derby Largo do Chora Menino Largo do Paissandu Parque/Praça do Paissandu
6. Praça Chora Menino
Praça Coração de Jesus Viveiro/Praça do Muniz Campina do Bode Parque/Praça Sérgio Loreto
7. Praça Sérgio Loreto
Praça Siqueira Campos Largo do Entroncamento Parque do Entroncamento 7. Praça do Entroncamento Praça Correia de Araújo Lagoa de Fernandes Vieira 9. Praça Oswaldo Cruz Parque/Praça Oswaldo Cruz
10. Praça Parque Amorim Campina dos Manguinhos Campina/Largo da Casa Forte 11. Praça de Casa Forte Jardim da Casa Forte Largo do Viveiro Largo do Benfica Jardim do Benfica Cactário da Madalena
12. Praça Euclides da Cunha
Jardim das Cactáceas 13. Praça Artur Oscar Largo/Praça dos Voluntários da Pátria
Fonte: Elaborada pela autora.
Algumas influências estrangeiras ressoaram na produção paisagística do Brasil, em cujo
panorama se inseria o Recife. O Movimento Romântico europeu do século XVIII parece
repercutir muito claramente na criação de jardins ao gosto inglês no Recife do século XIX. As
posturas higienistas reguladoras da insalubre cidade industrial européia do século XIX, na
criação de um conjunto de parques ao sabor predominante da escola francesa, cujo símbolo
maior e centro irradiador foi a reforma de Paris na metade do século. E o Movimento
Moderno da Arquitetura, na execução dos jardins de Burle Marx, como marco inaugural do
que, mais tarde, seria reconhecido pela crítica como o jardim moderno e, em certo sentido, o
jardim brasileiro.
No final do século XIX, predominou a expressão “jardim”, visto que os projetos paisagísticos
eram executados como uma prática de ajardinamento, porém qualificada com nomes
vinculados à Corte e títulos nobiliárquicos (Princesas, Conde, Imperador e Visconde), alguns
dos quais imediatamente rebatizados após a Proclamação da República (Tabelas 8 e 9). Ao
que parece, o emprego da expressão jardim ainda estaria vinculado ao caráter de certo modo
“privativo” desses espaços, encerrados por gradis e portões, mesmo se tratando de jardins
urbanos. Nesse momento, prevaleceu a noção de jardim no seu sentido mais primitivo, como
espaço verde e privado assim constituído historicamente, mas, no âmbito da cidade e
destinado ao usufruto de uma parcela da população. Sobressaíram-se também as funções
artística e recreativa, vigentes nos jardins de beleza e prazer característicos das cidades
brasileiras oitocentistas, desde o Passeio Público do Rio de Janeiro, também reproduzindo o
gosto europeu do século XVIII (Tabela 9).
Já na década de 1920, foi bastante evidente a predominância da expressão “parque”,
comumente qualificada por nomes civis e republicanos (Sérgio Loreto, Oswaldo Cruz,
República, Maciel Pinheiro) ou por topônimos remanescentes de períodos anteriores (Derby,
Paissandu e Entroncamento) (Tabelas 8 e 9). Ficou igualmente visível como o conjunto de
parques executados entre 1924 e 1925 expressava a conotação de jardim, desempenhando,
contudo, uma nova função higiênica na cidade, tão propalada no início do século XX no
Brasil, repercutindo o Higienismo europeu do século XIX (Tabela 9). A função sanitária dos
parques construídos como antídoto à cidade industrial parece se revelar na adoção do termo
“parque”, comum na Europa oitocentista. O emprego desta expressão ainda pode se vincular
à arborização densa que caracterizava a presença vegetal nos projetos daquela década,
remetendo à sua origem etimológica, no sentido do bosque, do terreno arborizado ou do
jardim público.
Por fim, na década de 1930, prevaleceu o uso da palavra “praça”, sustentando a conotação de
jardins, executados segundo um plano de conjunto (Tabelas 8 e 9). No entanto, os jardins
públicos se consolidaram como espaço republicano, democrático, de acesso à população num
sentido mais lato do que aquele que predominara no século XIX. Isso deve explicar, ainda
que parcialmente, o emprego predominante da expressão “praça”, uma criação que remonta
ao espaço público republicano da Antigüidade Grega. Ainda ocorreu mais uma ampliação
em relação à função dos novos jardins públicos, que, naquele momento, além do papel
artístico, recreativo e higiênico, foram projetados como um instrumento de educação sobre a
flora de distintos ecossistemas, destacando-se espécies nativas do Brasil (Tabela 9). A noção
artística, contudo, foi alargada com Burle Marx, extrapolando a função de embelezamento
urbano pela implantação de peças ornamentais e vegetação decorativa. Um jardim artístico
era uma composição subordinada a leis estéticas de proporção, harmonia, ritmo e contraste
de cores e volumes. Conforme o paisagista, o jardim, na sua função artística, não se tratava
de uma criação supérflua, mas, preenchia uma necessidade da vida.
A construção dos jardins públicos do Recife acompanhou a direção do crescimento da
cidade, da área central para os bairros adjacentes e subúrbios, paulatinamente delimitados
por edifícios civis, sinalizando o gradual processo de laicização do espaço urbano (Tabela 9),
como parte dos melhoramentos urbanos.
Tabela 9 – Síntese das três fases do projeto paisagístico dos jardins públicos do Recife: 1872-1937
Fase Designação predominante Funções Principais
edificações do entorno Localizaçãona cidade
Jardim Romântico (1872-1888)
Jardim Artística Recreativa
Palácio (poder executivo), Teatro, Tesouro, Biblioteca, Liceu, Igrejas, Estação de trem, Casa de Detenção e Sobrados
Área central
Jardim Salubre (1922-1926)
Parque Artística Recreativa Higiênica
Quartel, Palacetes, Grupo escolar, Departamento de Saúde e Assistência, Palácios (executivo e judiciário), Teatro, Tesouro, Liceu, Igrejas e Sobrados
Área central Arredores
Jardim Moderno (1934-1937)
Praça Artística Recreativa Higiênica Educativa
Residências, Igrejas, Sobrados, Torre (Observatório),Quartel, Palacetes, Palácios (executivo e judiciário), Teatro, Tesouro, Liceu
Área central Arredores Subúrbios
Fonte: Elaborada pela autora.
Dentre as revisões historiográficas mais importantes, deve ser ressaltado que o Jardim do
Campo das Princesas, cujo projeto é creditado ao engenheiro Emile Beringer em 1875, foi
executado em 1872. Portanto, antes do projeto de Glaziou para o Parque do Campo de
Santana, de 1873, um dos jardins de maior magnitude da época, tido como a grande
experiência paisagística do século XIX no Brasil. A Praça Maciel Pinheiro, por sua vez, foi
inaugurada em 1875 e não, em 1876. Novos dados também foram reunidos para melhor
circunstanciar a atuação de Burle Marx, auxiliando na redefinição do universo de
intervenções planejadas e executadas pelo paisagista. Desse modo, embora a atenção do
trabalho tenha sido direcionada às 13 praças e 19 intervenções que delimitaram o objeto de
estudo, ao todo, foram referenciados ou comentados 31 projetos paisagísticos.
Nesses termos, a Praça da República é hoje um dos jardins públicos mais antigos do Brasil,
conservando traços de várias épocas, comparável a diversas ações semelhantes realizadas em
cidades importantes da estrutura urbana brasileira, como Belém, Curitiba, São Paulo,
Fortaleza, Salvador e, inclusive, o Rio de Janeiro. Remonta à execução do Parque de Friburgo
do século XVII no sítio do futuro Campo das Princesas, à implantação de um jardim em 1872
e sua remodelação por volta de 1924, consolidada com a intervenção de Burle Marx em 1937,
caracterizando-se atualmente como um dos jardins mais importantes do Recife em relação à
tradição de projeto paisagístico na cidade.
Sobre a obra de Burle Marx, embora não se possa afirmar de forma mais contundente quanto
ao pioneirismo do Recife no cenário nacional – que, inclusive, não foi o objetivo da
investigação – enquanto predominavam influências européias no país, na década de 1930, o
paisagista dava, no Recife, passos inaugurais da criação do jardim moderno. No entanto, a
crítica concentra seu esforço nos jardins que executou após sua saída do Recife, iniciando a
partir daí uma produção moderna, cujo marco teria sido o teto-jardim do Ministério da
Educação e Saúde no Rio de Janeiro em 1938. Os jardins públicos do Recife ainda são vistos
com restrições nos termos de um jardim moderno, por isso, comumente classificados como
clássicos e acadêmicos.
Entretanto, quando comparado aos dois momentos anteriores, muitas diferenças em relação
ao projeto paisagístico são bem evidenciadas. Exatamente por isso, debruçar o olhar sobre os
jardins do Recife que lhe antecederam – além do interesse em si como objeto de estudo –
constitui uma importante reflexão para a compreensão da obra de Burle Marx. O esforço
desta pesquisa sobre os jardins públicos que executou no Recife, além de contribuir para sua
preservação, abre um viés para novos exames críticos em torno de sua obra.
Por outro lado, se a escolha de um objeto de estudo razoavelmente vasto proporcionou
visões até então não perscrutadas na história da cidade do Recife, de outro modo, preteriu
uma série de aspectos que animam a continuação dessa pesquisa.
Entre eles, discutir o paisagismo moderno e a produção paisagística do Recife no contexto
específico das administrações públicas das quais resultou, aproximando-se de uma história
política; investigar o embate entre o jardim artístico e a praça histórica no discurso de Burle
Marx e Mário Melo, as práticas sociais vinculadas aos jardins, as diferentes expressões de
desenho e de materiais do mobiliário urbano do ponto de vista da História da Arte, sua
importação e fabricação. Estudar ainda a utilização de espécies vegetais, a partir de um
enfoque botânico; compreender a constituição do espaço público na história do Recife;
abordar as relações entre praça e memória coletiva pela colocação e retirada de monumentos,
a autenticidade dos projetos sob a ótica do valor patrimonial e, finalmente, investigar os
novos usos das praças do Recife, relacionando-os às alterações morfológicas atuais, são
algumas dessas possibilidades.
À análise do projeto também faltaram dados para uma maior abordagem das luminárias e
postes e dos materiais de pavimentação, impossibilitando uma comparação entre as três
fases. É certo que as luminárias do século XIX estão mais visíveis na iconografia, assim como
informações sobre alguns materiais utilizados na pavimentação nas décadas de 1920 e 1930,
sem maiores detalhes sobre a importação ou fabricação desses componentes.
Mário Sette relata, inclusive, algumas experiências de iluminação a gás no Campo das
Princesas (ainda do Erário), bem como, registra o aparecimento de candeeiros de diferentes
feitios e a alteração que a luz farta provocou no cotidiano da população. O advento da
eletricidade e as inovações tecnológicas dela decorrentes repercutiriam na mudança do
mobiliário urbano, substituindo-se as luminárias a azeite de peixe, de carrapato, querosene e
a gás carbônico, pelos postes de energia elétrica, e, decerto, no uso dos jardins públicos.
Mudança para a qual certamente contribuíram as novas formas de acesso, desde os bondes
puxados a tração animal, ao bonde elétrico e, por fim, o automóvel.
Em relação à importação e produção do mobiliário, o professor Geraldo Gomes, autor do
livro “Arquitetura do Ferro no Brasil”, apresenta coretos nas cidades de Manaus-AM, Belém-
PA, Olinda-PE, São Paulo-SP e Caxambu-MG, mas, nenhum no Recife, e chega a apontar que
“como era costume generalizado cercar as praças, no século XIX, outros portões, talvez mais
suntuosos, podem ter existido por todo o Brasil” (Silva, 1987, p. 115). Segundo o professor, a
origem dos coretos é mais reconhecida pelas inscrições nas peças. Como não resta nenhum
exemplar do século XIX no Recife, torna-se bastante difícil identificar sua procedência. Do
mesmo modo, a aquisição e a produção de bancos, postes, fontes e esculturas nas primeiras
décadas do século XX não aparecem nos estudos que têm sido produzidos no país no campo
do Paisagismo, portanto, à espera de investigação.
A inserção da vegetação nos logradouros públicos do Recife é outra questão que aguarda
estudos mais aprofundados. Além de ser um elemento facilmente passível de transformação,
falta-lhe literatura, sendo referência o ensaio “Memória dos Verdes Urbanos do Recife”, da
arquiteta Liana Mesquita. A autora se ressente de que “não se disponha, ainda, de
informações sistematizadas sobre os logradouros arborizados no século XIX” (Mesquita,
1998, p. 24). E enfatiza que no Recife oitocentista prevalece sobre a arborização pública “a
vegetação plantada nos sítios e quintais privados, surgidos quando as grandes glebas de
terra e os engenhos foram desmembrados e loteados” (Mesquita, 1998, p. 25).
Conceder especial atenção à atuação dos engenheiros europeus especificamente na produção
paisagística dos séculos XIX e XX no Brasil é outra tarefa para os pesquisadores que têm se
dedicado ao assunto, já que preponderam o papel daqueles profissionais na construção de
edificações, pontes e estradas e na elaboração de inúmeros planos de reformas urbanísticas e
a figura de Glaziou no cenário fluminense. A esse respeito, a pesquisa enfrentou duas
dificuldades: a escassez de plantas e a falta de indicação quanto à autoria dos projetos nas
duas primeiras fases. Dificuldades semelhantes foram enfatizadas pelo professor Otoni
Mesquita em sua pesquisa sobre as obras públicas de Manaus no século XIX, publicada sob o
título “Manaus – História e Arquitetura (1852-1910)”. Para o autor, “naquela época, o mais
importante era relacionar a obra ao nome do governante, enquanto que a autoria do projeto
era apenas um detalhe de pouca importância” (Mesquita, 2006, p. 57), fato que ficou bastante
evidente na gestão Sérgio Loreto/Antônio de Góes.
Muitos também são os campos disciplinares ou os domínios de pesquisa para cada uma
dessas possibilidades: a Arquitetura, a Botânica, a História Urbana, a História Social, a
História Política, a História da Arte, a Estética, a Geografia e as Ciências Sociais ou, com mais
razão, a conjugação de conteúdos e procedimentos específicos de cada um deles. É
importante registrar que no decorrer da pesquisa foram identificados trabalhos que
estimularam um novo olhar sobre os jardins públicos do Recife. São visões de historiadores,
cronistas e jornalistas que contemplam a criação de jardins públicos em Fortaleza, Manaus,
Curitiba e Rio de Janeiro, perpassando pela questão da toponímia urbana e da composição
do projeto paisagístico. Ainda é grande a carência de literatura específica no campo da
Arquitetura Paisagística em relação à história dos jardins no Brasil.
A consciência das inúmeras lacunas e possibilidades de continuação anima e demonstra a
opção, nesse momento, de abarcar um acervo razoável, constituindo um objeto empírico
relativamente grande, em detrimento de reduzir o recorte espacial e temporal e incorporar
outras questões. Sobre todas essas possibilidades que hoje aparecem como lacunas, pensando
com a historiadora Mary Del Priore em entrevista recente (Pimentel, 2006, p. 49), “a validade
das perguntas também varia (...) e como as questões se renovam, há lacunas que se apagam
sem ter sido, sequer preenchidas. Há questões que deixam de ser feitas, antes de ser
respondidas”.
O esforço metodológico dessa pesquisa consistiu, acredita-se, na busca contínua pela
congregação de saberes e formas bastante distintas de produzi-los, situando-a no campo da
História, com seus métodos clássicos capaz de dar tratamento a uma grande massa
documental, e no campo da Arquitetura Paisagística, para narrar um pouco da tradição do
Recife em projetar o jardim público.
Além do exercício de tratamento dos dados, que se procurou fazer com a maior acuidade
possível, é preciso mencionar o fato de que muitas plantas e fotografias constantes nesta
dissertação, pacientemente recolhidas em acervos do Recife e do Rio de Janeiro, foram
reunidas, comentadas e apresentadas num trabalho escrito pela primeira vez, após um
extenuante processo de confrontação com as fontes escritas, com outras ilustrações que não
foram inseridas e com vestígios materiais identificados nas praças.
As visitas de campo vêm estimular o trabalho de inventariação, no momento em que se
percebeu existência de muitos exemplares expressivos da produção paisagística do Recife,
ressaltando-se sua integridade e diversidade, particularmente de elementos do mobiliário e
componentes aquáticos, sendo difícil um olhar mais apurado em relação à vegetação.
A escultura da índia, a coluna e a bacia do chafariz do então Pátio do Colégio, hoje Praça
Dezessete, trazidos ao Recife há 160 anos são, sem dúvida, remanescentes dos mais antigos
da tradição de projeto paisagístico na cidade. Inicialmente implantados como uma peça
utilitária, um chafariz para abastecimento d’água da população, foram valorizados nos
sucessivos projetos de ajardinamento daquele logradouro, chegando aos dias de hoje após
pelo menos três grandes e distintas intervenções, a de 1877, a de 1930-1933, e aquela que lhe
deu o aspecto atual. Ainda que o projeto de Burle Marx não tenha sido executado, a escultura
seria mantida, conforme suas próprias palavras.
Hoje, a índia, a coluna e a bacia, após terem sido separados em duas partes, foram
remontados e podem ser vistos no trecho da Praça Dezessete em frente à Igreja do Espírito
Santo sob uma base em que se lê “Offerta da Companhia do Beberibe” (Figura 6.1). Também
é possível apreciar as quatro placas em que se escreveram as datas de 1654, 1817, 1824 e 1889
no fuste da coluna, onde existiam as torneiras do chafariz (Figura 6.1). Já o traçado
cruciforme se apresenta diferente das duas intervenções de que se tem notícia (1877 e 1930-
1933) e foi acrescida, no outro trecho da praça, uma grande escultura de 1927, composta pela
estátua em bronze de Ícaro e pelos bustos em pedra dos aviadores portugueses Gago
Coutinho e Sacadura Cabral.
Figura 6.1: Escultura, coluna e bacia do antigo chafariz da Companhia do Beberibe da Praça Dezessete. Fonte:Foto da autora, dezembro de 2006.
Do mesmo modo, a fonte em pedra da Praça Maciel Pinheiro aparece como um dos
elementos que se manteve após a execução de três grandes projetos, em 1875, 1925 e 1930-
1933 (Figura 6.2), os quais modificaram bastante o traçado e a vegetação. Recentemente, foi
colocada uma estátua em pedra da escritora Clarice Lispector (gestão do prefeito João Paulo
Lima e Silva).
Figura 6.2: Fonte-chafariz da Praça Maciel Pinheiro. Fonte: Foto da autora, fevereiro de 2007.
É também remanescente do século XIX a estatuária das deusas da Praça da República,
importadas de Paris e produzidas por volta de 1863 (Figuras 6.3 a 6.11). Ao contrário, a Praça
Visconde de Mauá aparece completamente alterada em relação ao projeto de jardim
romântico atribuído ao final do Império (Figura 6.12).
Figuras 6.3 a 6.7: Esculturas das deusas da Praça da República (Diana de Gabies, Flora, Ceres, Diana e Juno, respectivamente). Fonte: Fotos da autora, janeiro de 2007.
Figuras 6.8 a 6.11: Esculturas das deusas da Praça da República (Minerva, Níobe, Vesta e Têmis, respectivamente). Fonte: Fotos da autora, janeiro de 2007.
Figura 6.12: Praça Visconde de Mauá. Fonte: Foto da autora, fevereiro de 2007.
Da década de 1920, chegaram aos dias de hoje as linhas principais traçado, as pérgulas e o
lago com a ilha da Praça do Derby (Figuras 6.13 a 6.15), bem como, a pérgula, os bancos, o
busto e o lago da Praça Oswaldo Cruz (Figuras 6.16 a 6.22), enquanto os da Praça da
República podem ser vistos na lateral do Teatro Santa Isabel (Figuras 6.23 e 6.24). Na Praça
Oswaldo Cruz, foi implantado um busto do médico Amaury de Medeiros, de 23/10/1939. E
na Praça do Derby, foi acrescido um lago com fonte.
Figuras 6.13 e 6.14: Pérgulas coríntia e dórica da Praça do Derby. Fonte: Fotos da autora, fevereiro de 2007.
Figuras 6.15: Lago com a ilha dos amores na Praça do Derby. Fonte: Foto da autora, fevereiro de 2007.
Figuras 6.16 e 6.17: Pérgula e busto da Praça Oswaldo Cruz. Fonte: Fotos da autora, outubro de 2006 e fevereiro de 2007.
Figuras 6.18 e 6.19: Lago da Praça Oswaldo Cruz. Fonte: Fotos da autora, outubro de 2006.
Figuras 6.20 a 6.22: Bancos da Praça Oswaldo Cruz. Fonte: Fotos da autora, outubro de 2006.
Figuras 6.23 e 6.24: Bancos da Praça da República, ao lado do Teatro Santa Isabel. Fonte: Fotos da autora, outubro de 2006.
Da época, também se mantiveram o mobiliário da Praça do Entroncamento (composto pela
fonte ornamental, jarros, colunas, bancos com e sem encosto em cimento), sua arborização
densa de mangueiras, as palmeiras e os eixos principais culminando no ponto focal, sem
dúvida, o exemplar mais íntegro do projeto paisagístico característico do período 1922-1926
(Figuras 6.25 a 6.31). Existe também um playground, construído no vértice do terreno voltado
para a Av. Rui Barbosa, onde se localizava o coreto, que foi demolido.
Figura 6.25: Árvores, palmeiras, fonte e bancos da Praça do Entroncamento. Fonte: Foto da autora, outubro de 2006.
Figuras 6.26 a 6.28: Coluna, jarro e banco da Praça do Entroncamento. Fonte: Fotos da autora, outubro de 2006.
Figuras 6.29 a 6.31: Bancos da Praça do Entroncamento. Fonte: Fotos da autora, outubro de 2006.
Vivem na Praça Sérgio Loreto o coreto com vasos e o lago, visivelmente alterado em suas
linhas originais e aparentemente reduzido em tamanho, como foi o próprio logradouro, por
conta da ampliação da malha viária (Figura 6.32). Há um monumento em concreto armado
polido de 1975, do escultor Abelardo da Hora, dedicado aos heróis da Restauração
Pernambucana.
Figura 6.32: Coreto da Praça Sérgio Loreto. Fonte: Foto da autora, fevereiro de 2007.
Na Praça do Derby, também são encontrados postes em ferro que mesclam desenhos com
motivos florais e zoomórficos, ornados com flores, ramagens, patas e cabeças de bode,
possivelmente seguindo a inspiração do projeto daquela época. Contudo, não se dispõe de
maior comprovação sobre sua origem, podendo ter sido remanejados de outro logradouro.
Por outro lado, a Praça Chora Menino, em seu aspecto geral, aparece bastante modificada em
relação ao projeto de 1924 e de 1935 e lá se encontra uma estátua em pedra de uma mulher,
de José Faustino (20/04/1983) (Figuras 6.33 e 6.34). A Praça Parque Amorim foi quase
reduzida a uma rotatória de veículos (Figura 6.35). Raras são as informações escritas e
iconográficas disponíveis e pouco se conhece sobre o projeto da época, sem que se saiba, ao
menos, a delimitação de sua área original. Porém, alvo de reforma recente, inaugurada em
dezembro de 2006 (gestão do prefeito João Paulo Lima e Silva), recebeu novo revestimento
de piso, fonte e escultura (Figuras 6.35 e 6.36).
Figuras 6.33 e 6.34: Traçado e mobiliário da Praça Chora Menino alterados em relação aos projetos de 1924 e 1935. Fonte: Fotos da autora, fevereiro de 2007.
Figuras 6.35 e 6.36: Traçado, revestimento de piso e fonte com escultura da Praça Parque Amorim após a última reforma (22.12.2006). Fonte: Fotos da autora, fevereiro de 2007.
Da década de 1930, a Praça de Casa Forte e a Praça Euclides da Cunha contêm vários
elementos do projeto definido por Burle Marx. Enquanto na Praça de Casa Forte mantém-se
o traçado, os lagos, as escadas, os canteiros e as alamedas de árvores nos três trechos, a
vegetação apresenta modificações (Figuras 6.37 a 6.39).
Figura 6.37: Praça de Casa Forte, lago defronte a Av. 17 de Agosto com vegetação na água, no canteiro e arbórea. Fonte: Foto da autora, fevereiro de 2007.
Figuras 6.38 e 6.39: Praça de Casa Forte, lago central e passeio defronte a Igreja Matriz. Fonte: Fotos da autora, fevereiro de 2007.
A Praça Euclides da Cunha, após ter passado por profundas transformações no decorrer do
tempo, foi restaurada e inaugurada em 2004 (gestão do prefeito João Paulo Lima e Silva),
segundo o projeto de Burle Marx, com a reconstrução do cactário e sucessão de gramados e
passeios em elipses concêntricas, plantio de árvores sertanejas no contorno da praça e
colocação de bancos sob sua sombra (Figuras 6.40 a 6.43). A escultura que existe no cactário
remonta ao final da década de 1950 e representa um cangaceiro, como denominou seu
criador, o escultor Abelardo da Hora, ao passo que a estação de esgoto de 1911 continua em
funcionamento.
Figura 6.40: Praça Euclides da Cunha. Fonte: Foto da autora, fevereiro de 2007.
Figuras 6.41 a 6.43: Praça Euclides da Cunha: detalhe do cactário Fonte: Fotos da autora, fevereiro de 2007.
Bastante modificadas em relação à feição concebida por Burle Marx estão a Praça Artur
Oscar e a Praça Chora Menino, com novo traçado e mobiliário. O traçado da Praça Artur
Oscar hoje se apresenta invertido em relação ao de 1936: onde havia piso, há grama e onde
havia o canteiro, há um espaço vazio (Figura 6.44). Foram retirados os bancos, plantadas
palmeiras (Figura 6.44) e colocado um busto do Almirante Tamandaré no centro da praça,
recentemente relocado para a instalação de uma fonte (gestão do prefeito João Paulo Lima e
Silva). Possivelmente, os únicos elementos definidos por Burle Marx são as árvores do
contorno da praça.
Figura 6.44: Praça Artur Oscar. Fonte: Foto da autora, fevereiro de 2006.
Na Praça do Derby e na Praça da República é difícil afirmar quais elementos introduzidos
por Burle Marx teriam permanecido, sobretudo em relação à vegetação. Mesmo que a
intervenção de Burle Marx na vasca de 1924 (a colocação de fonte e palmeiras) tenha, de fato,
ocorrido, aquele componente foi aterrado. Em seu lugar, há um playground. O traçado da
Praça do Derby aparece mais amolecido em relação ao projeto de 1924, o que pode ser uma
alteração feita pelo paisagista, assim como as palmeiras, marcantes no logradouro (Figura
6.45).
Figura 6.45: Palmeiras da Praça do Derby. Fonte: Foto da autora, fevereiro de 2007.
Já a área da Praça da República foi ampliada, porém, depois da reforma de Burle Marx, uma
vez que o trecho onde seria construído um aquário, um dancing e um restaurante não foi
executado naquele momento. De todo modo, sem a sucessão de passeios curvos da década
de 1920, o traçado da praça se assemelha ao projeto de 1937 (Figura 6.44) e não se vêem a
fonte luminosa e os bancos da época (1934-1937). Paulatinamente, foram colocadas diversas
esculturas no logradouro: as estátuas do Conde da Boa Vista, do engenheiro Louis Léger
Vauthier (07/10/1974), do poeta Augusto dos Anjos (12/11/1984), o busto de Maurício de
Nassau (17/06/2004) e um monumento comemorativo aos Heróis da Revolução de 1817
(gestão do governador Joaquim Francisco de Freitas Cavalcanti), do escultor Abelardo da
Hora.
Figura 6.44: Detalhe do traçado da Praça da República. Fonte: Foto da autora, janeiro de 2007.
A Praça da República, o jardim público mais antigo do Recife, é um mostruário do projeto
paisagístico dos três períodos. A única, aliás, do conjunto das praças estudadas, que passou
por intervenções nas três fases. Os eixos em cruz são, num certo sentido, o traço de projeto
mais antigo impresso na paisagem do Recife, que permaneceu desde 1872. Canteiros
desmanchados cederam lugar a um traçado cheio de volutas, desanuviado por Burle Marx,
enquanto mantiveram-se as palmeiras e o baobá. A praça também recebeu o mobiliário
característico de cada período, cujos elementos chegaram, em parte, aos dias de hoje, como as
esculturas de 1863-1864 colocadas em 1872 (hoje redistribuídas), os bancos, por volta de 1924
(hoje ao lado do Teatro Santa Isabel), e o efeito do repuxo luminoso no centro da composição,
embora a peça não seja a mesma fonte de 1937 projetada por Burle Marx.
Essa rápida observação, resultante das visitas inicialmente motivadas pela dificuldade na
confrontação entre as fontes primárias, animam a um reconhecimento minucioso quanto à
permanência dos projetos paisagísticos executados entre 1872 e 1937.
Ficou bastante visível a existência de uma grande quantidade de estátuas, bustos,
monumentos, playgrounds e fontes em todas as praças, implantados ao longo do tempo, além
das transformações no traçado e na vegetação e da retirada dos bancos. Recuperando as
palavras do poeta Joaquim Cardozo, pronunciadas em 1937, após 70 anos, os jardins públicos
do Recife continuam a ser “remexidos”, projetando um tema para outra investigação no
campo da memória.
O trabalho de identificação realizado pela pesquisa constitui hoje uma base para o
planejamento urbano e a ação da Municipalidade em relação às intervenções nas praças do
Recife. Consubstancia, portanto, a discussão quanto à sua preservação, ou, ao menos, de
alguns elementos específicos como remanescentes materiais representativos de cada fase. Em
outras palavras e retomando a Carta de Florença, como testemunhos de um fazer, de uma
época, de uma cultura paisagística.
A opção pela abordagem do projeto deu-se por ser a origem das motivações deste trabalho,
legitimadas pela formação de arquiteta e urbanista e pelo início do exercício profissional na
preservação dos jardins históricos da cidade. Entretanto, os novos usos, as novas funções, as
necessidades de adaptação dos projetos, as dificuldades na conservação dos espaços livres
públicos, sejam administrativas, técnicas ou financeiras, incluindo fatores como vandalismo e
o desconhecimento da população quanto à sua importância, também impulsionam
discussões acerca dos limites da preservação. Justamente por isso, acredita-se que a pesquisa
também poderá fomentar a prática de conservação urbana, no sentido de mediar a
preservação do acervo paisagístico do Recife e as novas demandas sociais.
Uma das maiores dificuldades foi associar um tanto de fragmentos documentais de tempos
distintos para trabalhar a história de um objeto que vive materialmente na paisagem do
Recife. Se o ponto de partida foram as transformações a que vêm sendo submetidas, há
tempos, muitas praças da cidade, o objetivo passou a ser melhor conhecê-las para melhor
preservá-las. Não no desejo de imobilizá-las, como ocorreu com a Zora de Marco Polo, que,
“obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar a memorização (...), definhou,
desfez-se e sumiu” (Calvino, 1990, p. 19).
Prevaleceu o olhar da arquiteta e urbanista, animado pelas possibilidades do conhecimento
histórico, recuperando documentos, visitando as praças e percorrendo um tanto de
narrativas em busca dos jardins públicos do Recife para dar-lhes autonomia e conceder-lhes
uma história. Certamente, advertida pelo que ocorreu à Aglaura de Marco Polo, que, “na
ausência de palavras para fixá-la, perdeu-se” (Calvino, 1990, p. 66).
Se cada documento e cada praça são fragmentos da história e da cidade, reunidos e
articulados, podem, talvez, contar um pouco da tradição do Recife em projetar o jardim, de
onde, aliás, ganharam vida, pela pena de Italo Calvino (1990, p. 95-96), tantas cidades
invisíveis de Marco Polo – do jardim suspenso do paço imperial de Kublai Khan, ainda que
aquele só tenha existido à sombra de suas pálpebras cerradas.
Fontes da pesquisa
Fontes primárias
Falas, relatórios, mensagens e exposições de chefes provinciais, prefeitos e governadores
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GOÉS, Innocencio Marques de Araujo. Falla que a’ Assembléa Legislativa Provincial no dia de sua installação a 1 de março de 1889 dirigio o Exm. Sr. presidente da provincia. Recife: Typ. de Manoel Figueiroa de Faria & Filhos, 1889.
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ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1903, 5º anno. Recife: [s.n].
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ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1906, 8º anno. Recife: [s.n].
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ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1909, 11º anno. Recife: Imprensa Industrial, 1908.
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ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1912, 14º anno. Recife: Imprensa Industrial, 1911.
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ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1917, 19º anno. Recife: Imprensa Industrial, 1916.
ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1918, 20º anno. Recife: Imprensa Industrial, 1917.
ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1919, 21º anno. Recife: Imprensa Industrial, 1918.
ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1920, 22º anno. Recife: Imprensa Official, 1919.
ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1923, 25º anno. Recife: Imprensa Industrial, 1922.
ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1924, 26º anno. Recife: Imprensa Industrial, 1923.
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ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1927, 29º anno. Recife: [s.n].
ALMANACH de Pernambuco para o anno de 1928, 30º anno. Recife: Off. Graph. Jornal do Commercio, 1927.
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PLANTA e Corte da Fonte Luminosa (Escala 1:100 e 1:25) e Aparelho Esportivo. (Identificados pela autora como parte do projeto de ajardinamento da Praça Pinto Dâmaso).
PRAÇA Barão de Lucena – Projeto de ajardinamento organisado por R. Burle Marx, Escala 1:200.
PRAÇA Coração de Jesus – Projecto de ajardinamento organisado por R. Burle Marx, Escala 1:200.
PRAÇA das Cinco Pontas – Projecto de ajardinamento organisado por R. Burle Marx, Escala 1:200.
PRAÇA Pinto Damaso – Projeto de ajardinamento organisado por R. Burle Marx, Escala 1:200.
PROJECTO de aformoseamento – Largo do Entroncamento, Escala 1:200, 16/12/1925.
PROJETO de ajardinamento organisado por R. Burle Marx para a Praça Arthur Oscar, Escala 1:100.
PROJETO de Roberto Burle Marx para a Praça Dezessete, iniciado em 18/10/1937 e terminado em 21/10/1937.
SANEAMENTO de Recife: Projecto de melhoramentos – F. Saturnino Rodrigues de Brito, Engenheiro-Chefe. Estado de Pernambuco-Brazil, 1917.
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ENCONTRO NACIONAL DE ENSINO DE PAISAGISMO EM ESCOLAS DE ARQUITETURA E URBANISMO, 5., 2000, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2000. 1 CD-ROM.
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Sites
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http://www.artnet.com/artist/573456/eugene-louis-lequesne.html
http://insecula.com/contact/A005515.html
http://web.artprice.com/ps/artitems.aspx?refGenre=C&target=pr
http://www.artnet.com/artist/624368/j-j-ducel-and-cie.html
http://challisshouse.1stdibs.com/itemdetails.php?id=114236
Normas
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NBR 14724: 2002: Informação e documentação – Trabalhos acadêmicos – Apresentação.