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Agries Guimaraes Rosa do Amaral, \/ilmaGuimaraes Rosa e-Nonada Cultural Ltda.
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Bibliotcca do Estudante
Ctl--Brasil. Catalopacao-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
R694r Rosa, Joao Outmarses, 1908-1967
() recado do morro! [oao Gutmaraes
Rosa. - Rio de Janeiro: Nova Frcnteira,
2007.
(Biblioteca do estudante)
ISBN978-85--209-1977,,{
1. Canto brasileiro. L'Tttulo. II. Scr-ie,
CDD: 869.93CDU, 811.134.3(81)3
---,- Morro alto, morro Brande,
me conta a ten padecer.
Pro baixo de tuim, ndo olho;
p'ra cima, nao posso "VeL ..
(ContraCQl'lYClo. Peca pseudofolcku-ica.}
o recado do morro
em que bern se saiba, conseguiu-
se rastrear pelo avesso um caso de vida e de morte,
extraordinariamente comum, ,que se armou com
o enxadeiro Pedro Orosio (tambem acudindo por
Pedrao Chabergo ou Pe-Boi, de alcunha), e teve
aparente principio e lim, num julho-agosto, nos
fundos do municipio onde ele residia; em sua raia
noroestea, para dizer com rigor.
Desde ali, 0 ocre da estrada, como de costume, eum S, que comec;:a grande frase. E iam, serra-acima,
cinco homens, pelo espi~ao divisor. Dia a muito
menos de meio, solene sol, as sombras deles davam
para 0 lado esquerdo.
Debaixo de ordem. De guiador - ape, des-
calco - Pedro Ofbsio: moyO, a nuca bcm-Ieita,
grallda membradura; e marcadamente erguido: nem
lhe laltavam cinco ceutimetros para ter urn talhe de
gigante, capaz de cravar de engolpe em qualquer
terreno uma acha de aroeira, de estalar a quatro em
cruz os ossos da cabeca de WTI marruas, com urn soco
em sua cabdoura, e de levantar do chao urn jumento
arreado, carregando-o nos braces por meio quilo-
metro, esqui vando-se de seus cokes e mordidas, e
sem nem par isso afrouxar do f()lego de ar que Deus
empresta a todos.
Seguindo-o, a cavalo, tres patr6es, entrajados e
de limpo aspeeto, gente de pessoa, Urn, de fora, a
quem tratavam por seo Alquiste ou 0 lquiste - espi-
go, alernao-rana, com raro cabelim barba-de-milho
e cara de barata descaseada. 0 sol faiscava-Ihe nos
aros dos oculos, mas, tirados os oculos, de grossas
lentes, seus olhos se amaciavam num aguado azul,
inocente e terno, que ate por si semblava rir, aos
poucos se acostumando com a forte Iuz daqueles
altos. Calcava botas cor de chocolate, de urn novo
o RECADO DO MORRO ~ 7
feitio; por cima da roupa clara, vestia guarda-p6 de
linho, para verde; traspassava a tiraeol as correias
da codaque e do binoculo; na cabeca urn chapeu-
de-palha de abas demais de largas, arranjado ali na
roca, Enxacoco e desguisado nos usos, a tudo quanto
enxergava dava urn mesmo engra
acharia cavalgadura que Ih\' assentasse. Mas ele cra
urn sete-pernas. Abrindo passo muito extenso e Ii-
geiro, e, tao forcoso, de corpo nunca se cansava. Por
mais, aqueles ali nao estavam apurados, iam jornadaI
vagarosa. 0 lourara, sea Alquiste, parecia (luerer
remedir cada palmo de lugar, ver apalpado as grutas,
os sumidouros, as plantas do caatingal e do mato.
Par causa, esbarravam a tada hora, se apeavam, meio
desertavam desbandando da cstrada-mestra.
De feito, diversa ea regiao, com belezas, mara-vilhal. Terra longa e jugosa, de montes p6s montes:
morros e corovocas. Serras c serras, por prolonga-
cao. Sernpre urn apique bruto de pedreiras, enormes
pedras violaceas, com matagal ou lavadas. Tudo cal-
carea. E elas sc roern , nao raro, em farmas -.- que
nem pontes, torres, colunas, alpendres, chamines,
guaritas, grades, campanarios, parades animais,
destrocos de estatuas ou vultos de criaturas. Por la,
qualquer voz volta em bela eco, e qualquer chuva
suspcnde, no ar de cristal, todo tinto arco-iris, cor
par cor, vivente longo ao solsim, feito urn pavao.
Umas redondas chuvas acidas de grande diametro, . . ,chuvas cavadoras, recalcantes, que cacm fumegando
com vapor e empurram enxurradas mao de rios,
se engolfam descendo par funis de furnas, antros e
o RECADO no MORRO 9
grotas, com tardo gorgolo musical. Nos rochedos,
as bugres rabiscaram movidas figuras e letras, e sus
se foram. Pelas abas das serras, quantidades de ca-
vcrnas - do teto de umas poreja, solta do tempo,
a agiiinha estilando salobra, minando sem-fim num
gotejo, que vira pedra no ar, se endureee e dependu-
ra, por toda a vida, que nem renda de torroezinhos
de amendoa ou fios de estadal, de cera-benta, cera
santa, e grossas lagrimas de espermacete; enquanto
do chao sobem outras, como crcscidos dentes, como
que aquelas scjam goelas da terra, com boca para
morder. Criptas onde 0 ar tern corpa de idade e a
agua forma pele muito fria, e a escuridao se pega
como uma coisa. Ou lapinhas cheias de morce-
gas, quc juntos chiam, guincham, porfiam. Largos
ocos que servem de malhador ao gado, no refrio
das noites, ou de abrigo durante as tempestades.
Lapas, com salitrados desvaos, onde assiste, rodeada
de silencios e acendendo globos olhos no escuro, a
coruja-branca-de-orelhas, grande mocho, a estrige
cor de perolas -- strix perlata. Cafurnas em que as
andorinhas parte do ano habitam, fazendo ninho,
pondo e tirando cria, depois se somem em bandos
por este mundo, deixaram Ia dentro s6 a ruiva mo-leja, as rumas, e sua ardida cheiracao. Fim do campo,
10 JOAo GUIMARAES ROSA
nas sarjetas entremontas d~s bacias, um ribeirao de
repente vem, desenrodilhado, ou 0 fiume de um
riachinho, e da com 0 emparedamento, entao cava
um buraco e por ele se soverte, desaparecendo num
emboque, que alg1!lt'is ainda tern pelo nome gentio,
de anhanhonhacanhuva. Vara, suterrao, travessando
para 0 outro sope do morro, ora adiante, onde re-
brota desengulido, a agua ja filtrada, num bilo-bilo
facil, logo se alisando branca e em leves laivos se
azulando, que qual polpa cortada de caju. E mesmo
c6rregos se afundam, no plao, sem razao, a nao ser
para poderem cruzar intactos por debaixo de rios,
C remanam do tunel , ressurtindo, longe, e depressa
se afastam, seguindo por terern escolhido de afIuir
a um rio outro. E lagoazinhas, em pontos elevados,
sao ao contrario de todas: se enchem na seca, e
tempo-das-ajjuas se esvaziam, delas mal se sabe. E
nas grutas se achavam ossadas, passadas de velhice,
de bichos scm estatura de regra, assombracao deles
----- 0 megaterio, 0 tigre-de-dente-de-sabre, a proto-
pantera, a monstra hiena espelea, 0 paleo-cao, 0 lobo
espeleo, 0 urso-das-cavernas '--"--, e homenzarros,
duns que nao ha mais. Era so cavacar 0 duro chao, de
laje branca e terra vermelha e sal. Montes de ossos,
de bichos que outros arrastavam para devorar ali, ou
o RECADO DO MORRO ~ It
que massas d'agua afogaram, quebrando-os contra
as rochas, quando as manadas eles queriam fugir,
se escondendo do Diluvio, Agora, pelas penedias,
escalam cardos, cactos, panlsitas agarrantes, gravatas
se abrindo de Hores em azul-e-vermelho, azagaias
de piteiras, 0 pau-d' oleo corn raizes de escultura,
gameleiras manejando como alavancas suas sapope-
mas, rachando e estalando 0 que acham; a brornelia
cabelos-do-rei, epifita; a ehita--- uma orquidea; e a
catleia sofredora rosissima e roxa, que ali vive no, ,rosto das pedras, perfurando-as. Papagaios rouco
gritam: voam em amarelo, verdes. Vez em vez, se
esparrama um grupo de anus, coracoides, que piam
pingos choramingas. 0 caracara surge, pousando
perto da gente, quando menos se espera -- um
gaviaoao vistoso, que gutura. Por resto, 0 mudo
passar alto dos urubus, rodeando, recruzando -~;
pela gnisa esses sabem 0 que-ha-de-vir.
Ao dito, seu Olquiste estacava, sem jeito, a cavalo
nao se governava bern. Tomava nota, escrevia na ca-
derneta; a caso, tirava retratos. A gameleira grande
esta estrangulando com as raizes a paineira pequena!
- ele apreciava, a exclama. Colhia com duas maos a
ramagem de qualquer folhinha campa sem serventia
para se guardar: de marroio, carqueja, sete-san-
12 -JO;;':O GUIMAItAES ROSA
grias, amorzinho-seco, pe-de-perdiz, joao-da-costa,
unha-de-vaca-roxa, olhos-de-porco, copo-cl'aqua,
Iingua-de-tucano, Iingua-de-teiu. Uma hora, rcvirou
a correr arras, agachado, feito pegador de galinha,
tropecando no ban'iburral e espichando tombo, so
por ter percebido de rclance, inho e zinho, fugido no
balango de entre as moitas, 0 orob6 de um nharnbu.
Outramao, de desenhava, desenhava: de tudo tirava
traco e Iigura leal. Daquelas cumeeiras, a vista vai
de bela a mais, dos lados, se alimpa, treze, quinze,
vinte, trinta leguas lonjura.--~ "Da acoite de se
ajoelhar e rezar ... " -- ele falou. Dava. E sorria de
ver, singular, elas trepando pela reigada da verten-
tc, as labaredas verdes dum eanavial. Saudou, em
beira de capao, urn tamandua longo, saido em seu
giro incerto; se nao 0 segurassem, ia la, aceitava 0abraco? Mas bastantemente assentava no caderno,
it sua satisfacao, Quando nao provia melbor coisa,
especulava perguntas; frei Sinfrao, que se entendia
na Iinguagem dele, rcpetia:
-- Quer saber donde voce e, Pedrao. Se voce
nasceu aqui?
Nao. Pe-Boi era de mais afastado, catrumano,
nato num povoadim de vereda, no sertao dos cam-
pos-gerais. Homem de brejo de buritizal entre cha-
o RECADO DO MORRO - 13
padas arenosas, terra de rei-trovao e gado bravo. E,
mesmo agora, so se ajustara de vir com a comitivaera porque tencionavam chegar, mais norte, ate ao
eome
ou uma montanha. Aquelemesmo Ivo, que evinha
ali, e clue de primeiro tao seu amigo fora, andava
agora com ele estremecido, por conta de uma mo-
cinha, Maria Melissa, do Cuba, da qual gostavam.
E, a causa de outra!;:' delas nern se lembrava, ali em
Cordisburgo tinha 0 Dias Nemes, famanaz, virado
contra ele no vii frio de uma inimizade, capaz de
tudo. Com frequencia, Pedro Orosio tirava do bol-
so urn espelhinho redondo: se supria de se mirar,
vaidoso da constancia de scu rosto.
E quando e que voce toma juizo, Pedro, e
se casa?
Todos riam. Ate 0 Ivo, que ria fazia, destornado.
Seu Alquiste quis bater uma fotografia de Pedro
Orosio: reeomendou que ele ficasse teso, descidos
os braces. -"Grande ... Muito grande ... " -falou.
-"Born para soldado!" De por si scm acanhamento
nenhum, antes saido, e mais ainda sc espiritando
com aquele regozijo geral, 0 Pedro prosapiou gra9a
de responder, sem quebra de respeito- que per
guntassem ao outro se na terra dele as m09as eram
bonitas, pois gostava era de se casar com uma assim:
de cara rosada, cabelo amarelo e olho azul. ..
Seo Alquiste, quando 0 frade a entendeu para
ele, apreciou muito a parlada, e mesmo disse urn
o RECADO DO MORRO IS
ditado, la na lingua: que urn quer salada fina e
. outro quer batata com a casca ... Porque de, seo
Olquiste, premiava para si, se pudesse, era casar
com uma mulata daqui, uma dessas quase pretas de
tao roxas ... E cntao 0 Ivo, la de tras, encolhido na
sela mas forcejando por espevitar boa-cera, arefal-sa, tambem disse: "A born, amigo Pedro, quem
sabe ele havera de querer te levar, por conhecer a
cidade dele?"
E Pedro Orosio, subido em sua fiuza, dava
resposta de claro rosto. Tinha medo de ninguem,
assim descarecia de Hgado ou peso de cabeca para
guardar rancor. Contentava-o ver 0 Ivo abrir paz;
coisa que valia neste mundo era se apagarem as
duvidas e quizilias. 'Ioda desavenca desmanchava 0
agradavel sossego simples das coisas, rendia ate pre
gui9a pensar em brigar. Nunca desgostara do Ivo, e,
quando mesmo, ali era 0 Ivo 0 unico de sua igualha,
a proprio, e a gente sentia falta de algum compa
nheiro, para se entreter presen9a de conversa; do
contrario a viagem fieava aborrecida. Outros eram
os outros, de born trato que fossem: mas, pessoas
instruidas, gente de mando. E urn que vive de seu
trabalho bracal nao cabe todo avontade junto eom
esses, por eles pago.
16 ~ JOAO GU1MARAE5 ROSA
De qualidade tambem,que, os que sabem ler e
escrever,a modo que mesmo 0 trivial da ideia deles
deve de ser muito diferente. 0 seo Alquiste, por
urn exemplo, em festa de entusiasmo por tudo, que
nem uma crianca ,rio brincar; mas que, sendo sua
vez, atinava em por na gente urn olbar ponteado,
trespassante, semelhando de feitieeiro: clue divul-
gava e discorria, ate adivinhava sem ficar sabendo,
Ou 0 frade frei Sinfrao, sempre rezando, em hora
e folga, eom 0 terce ou no missalzinho; mas rezava
enorrnes quantidades, e assim atarefado e alegre,
como se no lucrativo de urn trabalho, produzindo, e
nao do jeito de que as pessoas comuns podem rezar:
a eurto e com distracao, ou entao no per-socorro
de uma tristeza ansiada, em momentos de aperto,
Por isso tudo, aqueles a gente nem conseguia bern
entender. Mesmo 0 seo Jujuca do Acude, rapaz
m090 e daqui, mas com seus estudos da Iida certa
de todo plantio de cultura, e das doencas e remedies
para 0 gado, para os animais. Pois seo Jujuca trazia
a espingarda, cacava e pescava; mas, no mais do
tempo, a atencao dele estava no comparar as terras
do arredor, lavoura e campos de pastagem, saber
de tudo avaliado, por onde pagava a pena comprar,
barganhar, arrendar -- negociar alqueires e novi-
o RECADO DO MORRO ~ 17
Ihos, madeiras e safras; seo Jujuca era urn m090
atilado e ambicioneiro.
Do CJue eles tres falavam entre si, do muito que
achavam, Pedro Orosio nao acertava compreender, a
respeito da beleza e da parecen9a dos territorios. Ele
sabia para isso qualquer urn tinha alcance--- que
Cordisburgo era 0 lugar mais formoso, devido ao
ar e ao ceu, e pelo arranjo CJue Deus caprichara em
seus morros e suas vargens; par isso mesmo, la, de
prirrieiro, se chamara Vista-Alegre. E, mais do que
tudo, a Gruta do Maquine ~ tao inesperada de
grande, com seus sete saloes encobertos, diversos,
seus enfeitcs de tantas cores e tantos formatos de so-
nho, rebrilhando risos na luz-- ali dentro a gente se
esquecia numa admiracao esquisita, mais forte que
o juizo de cada urn, com mais gloria resplandecente
do que uma Iesta, do que uma igreja.
Nao, bronco ele nao era, como 0 Ivo, que nern
tinha querido entrar, esperara cit fora: disse que ja
estava cansado de conhecer a Lapa. Mas, daquilo,
daquela, ninguern nao podia se cansar, Ah, e as es-
trelas de Cordisburgo, tambem 0 sea Olquiste
falou eram as que brilhavam, talvez no rnundo
todo, com rnais agarre de alegria.
18 ~JOAO GUIMARAES ROSA
Pedro Orosio achava do mesmo modo Iindeza
comum nos seus campos-gerais, por saudade de lit,
onde tinha nascido e sido criado. Mas, outras coisas,
que seo Alquiste e 0 frade, e seo Jujuca do Acude
referiam, isso ficavf por ele desentendido, fechado
sern explicacao nenhuma; assim, que tudo ali era
uma Lundiana ou Lundlandia, desses nomes. De
certo, segredos ganhavam, as pessoas estudadas; nao
eram para 0 usn de um lavrador como cle, so com
sua saude para trabalhar e suar, e a protecao de Deus
em tudo. Um enxadeiro, sol a sol debrucado para a
terra do chao, de orvalho a sereno, e puxando toda
forca de seu corpo, como e que hit de saber pensar
continuado? E, mesmo para entender ao vivo as
coisas de perto, cle so tinha poder quando na mao da
precisao, au csquentado ~ -- par odio ou par amor.
Mais nao conscguia.
Agora, a clue 0 tirava, era a garantido de voltar
par um pouco aos Gerais, ate lit iam, para lit guiava.
E chegariam aos Gerais quase scm necessidade de
se apear das serras em seu avan
.
20 ~JOAO GUIMARA.ES ROSA
ro com esse? Em todo a c,aso, melhor estava que a
Iva retornasse as boas. A vida era curta para nela se
trabalhar e divertir; para que tantas dificuldades?
Prazia caminhar, isto sim, e estava sendo bern
gratificado. Cantavlou assoviava, e, pe-dobro, puxa-
va estrada. Ajeitava a calca preta de zuarte, desbotada
mas bern arrepacada, por nao pair a barra da roupa;
dobrava-a para dentro, para nao ajuntar poeira. E,
as pes de sola grossa, experimentava-os firme em
qualquer chao.
o ceu nao tinha fim, e as serras se estiravam,sob a esbaldado azul e enormes nuvens oceanosas.
Ora as cavaleiros passavam par urn socalco, entre
uma quadra de pedreira avancante, pedra peluda,
e 0 despenhadeiro, uma fra altissima. Eles seguiam
Pedro Orosio; era vaqueao , nele se fiavam. la bern
na dianteira. Aquele elevado m090, sem paleto , a
camisa furada, urn ombra saindo par urn buraco ;
terminando, de velho, seu chapeu-de-palha: copa
e drculo, com a rego concave; e acintura a garru-cha na capa, e urn facao; ia, a longo.- "Sansao ... "
- disse sea Alquiste. Fazia agrado ver sua boa co-
ragem de pisar, seu decidido arranque.
E assim seguiam, de urn ponto a urn ponto, por
brancas estradas calcareas, como por uma linha va,
o RFCAD() DO MORRO 21
uma linha geodesica. Mais au menos como a gente
vive. Lugares. Ali, 0 caminho esfola em espiral uma
laranja: au e a trilha escalando contornadamente
a morro, como urn laco jogado em animal. Que-
riam subir, ever. 0 mundo disforme, de posse das
nuvens, seus grandes vazios. Mas, eom brevidade,
desciarn outra vez. Sairam a onde a estrada ereta,born estirao. Ate que, a pouco trecho, enxergavam,
adiaute uma pessoa caminhando.
Urn homenzinho terem-terem, ponderadinho
no andar, todo arcaico.
~~- "0 0 Gorgulho ... " - 0 Pe-Boi disse.Quem? Um velhote grimo, esquisito, que mo-
rava sozinho dentro de uma lapa, entre barrancos e
gratas - uma urubuquara --- casa dos urubus, uns
lugares com pedreiras. 0 nome dele, de verdade,
era Malaquias.
E ia 0 Gorgulho.direito bern no meio da estrada,
pareeia urn garatujo, urn desses calungas pretos, ou
carranquinha escoradora de veneziana. Tinha urn
surrao a tiracolo, e se arrimava em bordao au man-
guara. Como quase todo velho, andava com maior
afastamento dos pes; mas sobranceava comedimento
c esturdia dignidade.
Devia de ouvir poueo, pois a eomitiva ja quase
o alcancara e ele ainda nao dera pOl' isso. Ora, pela
calada do dia, ali e lugar de muito silencio. Assim
que, 0 Gorgulho caJyava alpercatas, sua roupa era
de sarja Fusca, for;'ato antigo ~- casacao compri-
do demais, com gualdrapas; uma borjaca que de
certo tiuha sido de dono outro-- mas Iimpa, sem
desalinho nenhum; via-se clue ele fazia questao de
estar composto, sem em ponto algum desleixar-se.
E 0 que empunhava era urna bengala de alecrim, a
madeira roxo-escura, quase preta.
E, nisso, de arranco, ele esbarrou, se desbracan-
do em gestos e sestros, brandindo seu cacete. Fazia
espantos. Falou, mesmo, voz irada, logo ecfOnico:
_ Eu?! Naol Nao comigo! Nenhum filho de
nenhum ... Nao tou somando!
Tomou fOlego, deu um passo. Sem sossegar:
mmm Nao me venha com 10XIas! Conselho que nao
entendo, nao me praz: e agouro!
E mais gritava, batendo com 0 alecrim no chao:
__~__ or, judengo! Tu, antao, vai p'r ' as profun-
das!. ..
De tanta maneira, sincera era aquela luria. Silen-
ciou. E prestava atenyao toda, de nariz alto, como se
o RECADO no MORRO 2)
seu queixo Fosse um aparelho de escuta. Ao tempo,
enconchara mao aorelha esquerda.Alguem tambcm algo ouvira? Nada, nao. En-
quanto 0 Gorgulho estivera aos gritos, sim, que
repercutiam, de tornavoz, nos eontrafortes e pa-
redoes da montanha, perto, que para tanto sao dos
melhores aqueles lances. Agora e antes, porem, tudo
era quieto.
~-"Que foi que foi, seu Malaquia?"- ja ao lado
dele Pedro Orosio indagava.
Apenas no instante 0 Gorgulho percebia-os.
Volrou-se . Mas nao respondeu. Empertigou-se,
saudando circunspecto; tudo nele era formal. Ate a
barba branco-amarela , so na orla do rosto, chcgan-
do ao cabelo. Pedro Orosio teve de apresenta-lo, a
cada um, e de cumpria serio 0 cumprimento, eom
vagal' a frei Sinfrao beijou a mao, mencionando
Jesus Cristo. Se deseobrira e segurava 0 chapeu,
pigarreando e aprovando, com lentos anuidos, a
boa presenya daquelas pessoas, Mas a gente notava
quanto esforco ele fazia para se conter, tanta per-
turbacao ainda 0 agitava.
"H'h Q' -- um... ue e que 0 morro nao tem
preceito de estar gritando ... Avisando de eoisas ... "
-~ disse, pOl' fim, se persignando e rebenzendo, e
24 ~ JoAo GU1MARAES ROSA
apontando com 0 dedo no rumo magnetico de vinte
e nove graus nordeste.
La -~ estava 0 Morro da Carca: solitario, escalc-
no e escnro, feito uma plramide. 0 Gorgulho mais
olhava-o, de arrevi/ar bogalhos; parecia que aqneles
olhos seus dele iam sair, se esticar para fora, com
pedunculos, como tentaculos.
"P . I havid aI ')" Irei- ossrve ter aVI 0 gnma coisa: ..- rei
Sinfrao pergnntava..- "Essas serras gemem, ron-
cam, as vezes, eom retumbode longe trovao, 0 chao
treme, se sacode. Serao descarregamentos subter-
ranees, 0 desabar profundo de camadas calcareas,
como nos terremotos de Born-Sucesso ... Dizem que
isso acontece mais e por volta da lua-cheia ... "
Mas, nao, ali ilapso nenhum nao ocorrera, os
morros continuavam tranquilos, que e a maneira de
como entre si e1es conversam, se conversa algnma
se transmitem. 0 Gorgulho padeceria de qualquer
alucinacao; e1e que ate era meio surdo. E Pedro
Orosio,
com 0 nariz e revolvendo as magras bochechas,
Dele, oi, ningucm zombava gracejo, que era homem
se prezando, forte zangadi
28 '"JOAO GUJMARAES ROSA
depois de matutar seu pouco, retorcendo 0 nariz e
bufando fraco, A fala dele era cjue nao auxihava 0 se
entender - as vezes urn engrol fanho, ou baixandoem abafado nhenhcnhem , mas com partes quase
gritadas. Em cada ;v.omento, espiava, de reves, para
o Morro da Garca, posto la, a nordeste, testemunho.
Belo como uma palavra. De uma feita, 0 Gorgulho
levou os olhos a ele, abertamente, e outra vez se
benzeu, tirado 0 chapeu, depois, expediu um escon-
juro, com a mao canhota. Frei Sinfrao recomendava
a seo Alquiste que agora deixasse de tomar notas na
caderneta.
Passando-se assim estas coisas, discorriam de
ficar sabendo, melhor, que 0 Gorgulho residia, havia
rnais de trinta anos, na dita furna, uma caverna a cis-
morro, no ponto mais brenhoso e feio da serra gran-
de. Lapinha antes anonima, ou "Lapa dos Urubus",
mas agora chamada a "Lapinha do Gorgulho". Santo
de sozinho de santo: nunca tivera vontade de se easar
"0 hor saib . .,--- ssen or Sal a: nem CODJO, nern conJa -- mea
razao sera esta ... "Mesmo omotivo dessa sua viagem
era ir de visita ao seu irrnao Zaquias, morador tao
jontao, tambem numa gruta pequena, pegada com
a Lapa do Breu, rumo a rumo com a Vaca-em-Pe.
Porque tinha tido sabenca de que 0 Zaquia andava
o RECADO DO MORRO" 2')
imaginando se casar. E entao ele achava obriga9ao
de aviso de deixar seus trabalhos, por uns dias, e vir
reconselhar irrnao, tivesse juizo, considerasse, aspaciencias, nao estava mais em era de pensar em
mulher. E, de sse modo, pondo em efeito.
Afora causa tao precipitada, so de longes meses,
nao mais de uma vez na roda do ano, era que urn
doles resolvia, deixava sua gruta, e espichava estrada,
por mol' de vir ver 0 outro irmao lapuz. "Mas, por
. ')" "0 h d' ? "que nao moram Juntos. - ssen or isse ....
- e 0 Gorgulho fitava 0 frade, espantado com 0
desproposito,
Porern seo Olquiste queria saber como era a
gruta, por fora e por dentro? Soria boa no tamanho,
confortosa, com tres comodos, dois deles clareados,
por altos suspiros, abertos no paredao, 0 salao der-
radeiro e quc era sempre escuro, e tinha no rneio do
chao um buraco redondo, sem fundo de se escutar
o fim duma pedra cair; mas 1 a gente nao preci-
sava de entrar - so um casal de suindaras certos
tempos vinha, ninhavam, esse corujao faz barulho
nenhum. Respeitava ao naseente. A boca da entrada
era estreita, um atado de feixes de capim dava para se
fechar, de noite, mode os bichos. E tinha ate trastes:
urn banco, urn taco de arvore, urn caixote e uma
30"jO,\0 GUIMARAES ROSA
barrica de bacalhau. E tinha pote d' agua. Dorrnir,
ele dormia numa esteira. Vivia no seu sossego.
E de que vivia? Plantava sua roca, colhia: __ u __ "A
gente planta milho, arroz, Ieijao, bananeira, abo-
bra, mandioca, rm~ndobi,batata-doce, melancia ... "
Roca em terra geradora, ali porto, sem possessao de
ninpuem, chao de eal, dava de tudo. Que ele tinha
sido valeiro, de protissao, em outros tempos ...
-- emendava baixinho Pedro Orosio. Abria valos
divisorios. Trabalhava e era pago por vams: preyo
por varas. Pago a pataca. Fechou estes lugares todos.
"I' h '1" I I" C-- "'ec eL - e e mesma (1218.. ontavarn que
ainda tinha guardado born dinheiro, enterrado, por
isso fora morar em gruta: tudo em meias-patacas
e quarentas, moedoes de cobre zinhavral. Com a
mudanca dos usos, agora se fazia era cerea-de--ara-
me, ninguem queria valos mais; ele tcve de mudar
de rumo de vida. Cultivava seu de comer. E punha
esparrclas para caya, sabia cavar mjo grande; por
redondo ali, dava muita paca: nem bern ve uma
semana, tinha pegado em munden uma paca ama-
rela, dona de gorda. So pelo sal, e por se servir de
mercf de alguma roupa ou chapeu velho, era que
ele surgia, vez em raro, em Iazenda ou povoado.
Trazia frutas, tambem fazia os balaios , mestre no
o RECADO DO MORRO 31
intcrteixo. Dizia: -- "Tambem faco balaio ... Os-
senhor fica com 0 balaio ... Tambcm faco balaio ...
TambCm faco balaio ... "
Mas nesse entremcio, baixando 0 lancante ,,chegavam a urn lugar sombroso, sob muralha, e
passado ao fresco por urn riachinho: cis, cis. Urn
regato f1uifim, que as pedras olham. Mas que mais
adiante levava muito sol. Do calcareo corroido subia
e se desentortava ve1ha gameleira, imensa como urn
capac de mato, Espacados, no chao, havia cardos,
bromelias, urtigas. Do mundo da gameleira, vez Clue
outra se ouvia urn trinco de passarinho, Ali fizeram
estacaopara a hora de comer., ,Dado urn lombo aos cavalos, estes pegavam a
pastar, nas bocainas do barranco, urn me!oso ressal-
vado da seca e entrancado, cheirando born, com seus
oleos e seus pelos. Pedro Orosio ia ajuntar galhos de
graveto, acola , debaixo dos pes de itapicuru; acendia
a foguinho, coava cafe. Dava prevencao: de repente,
uma laje daquelas, da trempe, podia estalar, rachada
se esqucntando, com bruto rumor. Tinharn queijo,
biscoitos, farinha, e carne de porco nevada na banha,
numa lata. Todos se assentavam, mesmo no solo, au
em blocos e lascas de pedra, so 0 Gorgulho como
que teimava em fiear de pe firme em seu proprio
lil
I
32. JO.~O GUIMAR.4.ES Ros"
todo respeito e escoradoem seu alecrim. Rcjeitou
de tudo, com breves mesuras de cortesia: - "A
Deus sejam dadas! E a melhor sustancia paraVossen-
cias ... N6s matulamos inda agorinha ... " --- falou.t
"E 'I" d berba?" J'--- .stara e e JeJuan a sua so er _a. - -- sea uJUcaperguntou, baixo. Mas Pedro Or6sio sussurrou es
clarecimento, que alguns velhos diziarn "nos" assim ,
que de certo era par eles mesmos e de cada urn seu
anjo-da-guarda, por mais de.
Par ai, caso e coisa, e ja que ele morava dito
numa urubuquara, queriarn poder saber a respeito
de companhia tal, dos urubus, qual era a regimento
d "A I" - I 'esses. ON rre. - que naa era - e e renuia, vez
vezes. Nao em sua gruta de vivenda, onde assistia.
Llrubu nenhum la nao entrava, nenhonde. - "Mas,
?" "p "Q 'par perto. -- or perto, par perto... ue e que
ele podia fazer, par evitar? Urubu vinha la, zuretas,
se ajuntavam, chegavam por de longe, muitos todos,
gostavam mesmos daquelas covocas. Que eque eleia fazer? Ossenhor diga ... Amem que, urubu, de
seu de si, nao arruma perjuizo p'ra ninjmem , mais
menos p'ra ele, que nao tinha criacao nenhuma,
tinha s6 lavouras ... E a Gorgulho calcava com a
ponta da bengala em terra, e grave, de cabeca,
afirmava, afirmava.
o RECADO DO MORRO G 33
Todo mesmo, percebeu como reperguntavam, e
botou silencio, desengracado com isso, nao enten-
dendo como pessoas de tao alta distincao pudessem
perder seu interesse, em coisa, E so manso a manso
foi que Pedro Or6sio e frei Sinfrao conseguiram tirar
dele noticia daqueles passaros, 0 geral deles.
Assaz quase milhares. Que passam tempo em
enormes voos por cima do mundo, como par cima
de urn deserto, parque so estao vendo 0 seu de-
comer. Por isso, despois, preeisam de urn lugar
sinaladamente, que pequeno seja. Para eles, ali era 0
mais retirado que tinham, fim-de-rnundo, cafund6,
ninpuern vinha bulir em seus ovos. --- "Arubu tirou
heranca de alegre-tristonho ... "Tinha hora, subiam
no ar, urn chamava os outros, batiam asa, escure-
eiam 0 recanto. Algum ficava quieto, descansando
suas penas, 0 que costuravam em si, com agulha
e linha preta, parecia. Careca ..-- mesmo a cabe-
ca e a pesco
34- Jo A 0 G U I !Hi\.. RAE S Ro S 1\
existentes, todos rodeados, Pretos, daquele preto
de dar cinzas, urn preto que se esburaca.e que rouba
alguma coisa de vida dos olhos da gente. A chibanca,
de quando vinham. Chegavam no sol-se-por. Vinham
magros, vinhanf gordos ... Botavam seus ovos, sem
ninho nenhum, nos solapos, nas grotas, nas rachas
altas dos barrancos, nos buracoes, nas arvores do
mato lajeiro. Cada preeipicio estava cheio de nichos,
dentro eles chocavam, punham para fora as cabecas e
os pescoyos, pretos, de latao. Era ate urgente, como
espiavam pra urn e pra outro lado. Dai, tiravam os
filhotes. Entao, fediam muito, os lugares.Cada par
com seus dois filhos, danados de bonitinhos, primei-
ro eram plumosos, branquinhos de algodao, pOl' logo
iam ficando lilas. Quando viam a gente, gomitavam:
- "Arubu pequeno rumita 0 tempo todo, toda a
vida ... " Tambern e dessa Ieicao assim que pai e mae
botam comida no bico de cada urn. Eh, arubuzinho
pia como pinto novo: pintos pios ...
Se nao tinha medo de serem tantos, e ali encos-
tados? Ah, nao, eh, des tambem tern ate regra: uns
castigam os outros. Dao pancada, dao urn assorto
de gUincho, de repreensao. Eh, e urn reino deles.
Tal que, ali no esconso, uns podiam se apartar para
morrer, morriam m090s, morriam velhos, doenca
o Rl'CII.PO DO MORRO' 35
mereciam? Uns escondiam os pes, daros, e abriam
as asas, iam encostando as asas, no chao, tempo-
de-chuva chovia em cima, urubu virava monturo,
se acabava, quase ... Mais morre, au nao rnorrc?
"Iiu nunca "vi arubu morto ... Eu nunca vi arubu
morto ... "
E se tinha, sc era verdade , urn urubu todinho
branco, sempre escondido pelos outras, mas que
produzia as ordens? Nao, disso 0 Gorgulho nunea
tinha vislumbrado. Pudesse em haver, 56 se sendo
o capeta ... Tesconjurava. E a fala delcs, uns com
os outros? Conversavam? 0 seu Malaquias cnten
dial 0 Gorgulho mais se endireitava, cismado; sua
cara era tao suja, sarrosa. Que nao nem que sim:
nunca tinha vislumbrado. Mas falava. Pela feitura,
talvez ele nao pudesse tel' toda a mao em seu dizer,
porquanto tanto esforco punha em nao bambear 0
eorpo. Se esdruxulou:
-"Vao pelos mortos ... Oficio deles. Vao pelos
mortos ... Dai em vante. Este morro e born de veri-
to ... Eu sou velho daqui, bruaca velha daqui. A lui
morar Ia, rna de me governar sozinho. Tenho nada
eom arubu, nao. Assituamento deles. POl' este e este
cotovelo! Vossemcce ossenhor sabe. Carcco de ir
dereitamente, levar conselho de corrigimento pra
meu irrnao Zaquia. POl' conta de coisa que se diz ,
que ele cluer se casar.Tira meu assossego. Careco de
desdizer que nao ease. Ta frouxo de juizo? Viagem
desta muito me cansa, estou de graneles dias fora dec. '
Iorca, maltreito. 56 pOl' ele ser 0 meu irrnao, mais,I
novo. Arreside corn ruins vizinhos perto, aprende
o mal, ideias, Se casa, casa scm rneu agrado: seu
quis, seu seja ... Vou indo de forasta, tendo minhas
obriga ~- e sea Alquiste se levan-"LJ ,1\, di A.," , ta t,r" eletava. --_.- norn est lZ XOIZ Imm pOl' n . --- - -;
38 e J O.A 0 G U 1M" R A F S R 0 S ,,\
lalou,brumbrum. S6,se pelo acalorde voz do Gor-
gulho ele pressentia. E ate se esqueceu, no ala, deu
apressadas frases ao Gorgulho, naquela lingua sem
as possibilidades. 0 Gorgulho meio se arregalou, e
defastou urn passo. Mas se via que algum entendi-
mento, como que de palpite, esteve correndo entre
ele e 0 estranjo: porque ele ao de leve sorriu, e foi a
unica vez que mostrou um sorriso, naquele dia. Os
dois se remiravam. Seo Olquiste reconheceu que nao
podia; e olhou para frei Sinfrao. -. "Chois' muit'. , t -os . Iimrn por ant! --- me agou.
Nao, nao era nada importante, 0 frade explicou,
o quanto pode. No mais, que 0 Gorgulho disse, que
foi breve, se repetia menosmesmo, continuativo,
nao havia pOI' onde se acertar, --- "13 do airado ... ".- disse seo ]ujuca. Nem cram coisas do mundo
entendivel. De certo 0 Gorcrulho pOI' sua maniab' ,
estava transferindo as palavras. Mais achou, como
de relance, que seo Alquistc era capaz de pegar 0
sentido escogitado; e entao afiou boca. Mas, nesse
al()go, falando muito depressa, embrulhava tudo, nao
vencia se desembargar. S6 Pedro Or6sio as vezes ca-
piscava, e reproduzia para frei Sinlrao, que repassava
revestido pra sco Olquiste. E seo ]ujuca tarnbern
auxiliava de falar estrangeiro com frei Sinfrao -_. mas
o RECADO DO MORRO .~ 39
era vagaroso e noutra toada diferente de linguagem,
isso se notava. Mas, depois, todaa resposta de seo
Alquiste retornava, via 0 frade e Pe-Boi. Por tanto,
todos entao estavam nervosos, detanta conconversa.
E 0 Ivo, que no meio daquilo era 0 sern-prestimo,
glosou qualquer tolice -- nem era chacota -, e 0
Gorgulho expeliu nele um olhar de grandes raivas;
e dai esbarrou: quis nao falar mais nada nao.,., .Ao lim de tanto transtorno, 0 rosto de seo AI-
quiste se ensombreceu, meio em decepcao; e ele
desistiu, foi se sentar outra vez no pedaco de pedra.
S6 se ouvia 0 resume de uma mosca-verde, que pas-
sava; 0 tertere dos animais boqueando seu capim; e
o avexo cm chupo do r iachirn , que estarao frigindo.
Tambem 0 passaro da copa da gameleira fufiou. E 0
outro, a passarinho anonimo, hi em baixo, no morrode ar vores pretas do ribeirao: Toma-a-ben,iio-ao-
seu-ti-io,Jo-iio! 0 resto era 0 calado das pedras, das
plantas bravas que crescem tao demorosas, e do ceu e
do chao, em seus lugarcs. 0 Gorgulho riseava 0 ter-
reno com a bengala; pigarreou, e perguntou sc seo
Olquistc nao seria algum bispo de outras eomareas,
de longes usancas, vestido assim de cidadao?
Mas seo Alquiste pegava no lapis e na eaderne-
ta, para lancar os assuntos diversos. Do Gorgulho
4oeJoko GUIMi\.RAES ROSA
ningwhn queria escarnir, mas todos estavam risaos,
porque ele tiuha quebrada seu encanto, agora chega
caceteava. Ai ele mesmo de via de ter sentido isso, ou
notou clue 0 tempo do sol iaavancando, Caso que
tirou 0 chapeu e bfertou as despedidas: carecia de
seguir, alcancar de noitinha no seu irmao Zaquias.
-- "Ver 0 outro espeleu, em sua outra espelun-
ca ... " - 0 frade pronunciou. E 0 Gorgulho pensou
que era algum abencoado, e fez 0 em-nome-do-
padre. Seo Olquiste entiou a mao no .bolso, tirou
a carteira de dinheiro.- "Olhe, que ele vai nao
aceitar, com ma-criacao!" - seo Jujuca observou.
Mas,jeito nenhum: 0 Gorgulho bern recebeu a nota,
nao-sei-de-quantos mil-rcis, bern a dobrou dobra-
dinho, bem melhor guardou, no fundo da algibeira.
"0 d' b' . I ".- eus vos e a oa paga, por esta esportu a ...
-- disse merce.
A terrno que, depots de outra reverencia, deles
se quitou, subindo por urn sernideiro, carninhando
scm se voltar, firme com 0 alecrim. Aformiga, suomiu-se na ladeira, tapado por uma aresta de rocha
e urn gravata - panoplia de muitas espadas presas
pelos punhos, Ainda tornou a aparecer, urn instante,
escuro como urn gregotim, que muito sol alumiava,
no patamar da serra, E, de vez, se foi.
o RECADO DO MORRO e 41
Trastanto, seo Olquiste se estendeu nos pelegos,
para sestear, segundo uso. 0 .frade desembolsou 0
rosario, tecendo uma pouca de reza, ali na borda
do riacho, cuja agua, alegrinhaem frio, nao espera
por ninguem.-"Voce sabe 0 que 0 lugar aqui esta
d ' dro?" I' "P .aconselhan 0, 0 Pe ro (_. e e pos. -' 01S para
fazer arrependimento dos pecados, p'ra se confes-
sar. .. Hemr Voce esta reeordado do catecismo? .. "
Frei Smfracse fazia muito ao gracejar com a gente,
dava gosto. Rezava como se estivesse debulhando
milho em paiol, ou rocando mato. Aquele exemplo
aumentava qualquer Fe. 0 Iva tinha botado as gar-
rafas de eerveja debaixo da eorrenteza d' agua, para
refrescarem; entre uma oracao e outra, frei Sinfrao
bebia urn copo cheio.
Mas, porclue havia de ter amcacado com aquilo,
de contricao e conhssao? PeBoi restava perturbado,
seu pensamento desobedeeia .. Aquela hora, nem
que quisesse, nao podia dar balanco em pecados
nenhuns. Frei Sinfrao podia ter comecado pelo Ivo.
o Iva que nao perdia vaza de adular: fora cortarcapim para calcar por baixo dos pelegos, sempre
na esperan
4 2 lokoGUIMARAES ROSA
tau as ordens ... "~.. a Iva respondia. A bern dizer,
ele nao era rna pessoa. Ia cuidar dos cavalos.
E Pedro Orosio nao podia parar quieta. 0 es-
tatuto de seu corpo requeria sernpre movimentos:
tinha de estar; -trabalhando, au eaminhando, au
cacando como se divertir. Sea Jujuca tinha pegado
a binoculo do outro, e vinha ate ao fim do lanco da
escarpa-- onde razoavel tempo esteve apreciando:
no covao, urna boiada branca espalhada no pasto.
Por ali, a gente avistava mais trilhos-de-vaca do que
veiazinhas nas orclhas de urn coelho. No macio do
ceu, seria born passar 0 dedo.. -.- "Voce entendeu al-
guma coisada estoria do Gorgulho, ei Pedro?" ".--A
pois, entendi nao senhor, seo Jujuca. Maluqueiras ... "
Claro que era, poetagem. E seo jujuca emprestava
a Pedro Orosio 0 binocul; para uma espiada. Ele
havia a linha das serras desigualadas, a toda lonjura,
as pontas dos morros pondo 0 ceu ferido e baixo.
Olhou, urn tanto. Depois, esbarrado assim, sem que-
fazer, sem ser para prosear ou dorrnir, desnorteava.
Prazivel era se estivesse com companheiros, jogar
urna mao de truque. 0 riachinho, revirando, todo
se cuspia, E foi contentamento para Pedro Orosio,
quando se arrumaram para continuar de seguida.
E, indo eles pelo caminho, duradamente se
avistava 0 Morro da Garca, sobressainte. 0 qual
o RECADO DO MORRO 43
taram Pedr o Orosio bern sabia dele, de ouvircomen .
di . b . d . os Esses quc tocavam coma que iziam as ora elf " -' ,
boiadas do Serrao, vinham do rumo da Pirapora,
contavam ---~ que, par dias e dias, caceteava enxcr-
gar aquele Morro: que sempre dava ar de estar nu~
mesmo lugar, scm se aluir, parecia que a viagelTI nan
progredia de render, a presenya igual do Morro era
o que mais cansava. ., I
E voltou a mente 0 querer se deixar ficar la,
em seus Gerais, nao havia de faltar onde plantar a
. terreola: era urn born oressentimento.lllela, uma . , 1
I .d' leou e se dispersou ele naoMas ogo a I eta ra
tinha passado par estreitez de dissabor au sofrimen-
to nenhum , capaz de impor saudades. Assim, era
como se minguasse terra, para dar sustento aquela
sementezinha.
Agora estavam torando para a fazenda do Jove,
por pernoite. Depois, desde a manha seguinte,
sempre para 0 norte, la onde agora se fechava urn
falso-horizonte de nuvens, a sobre. Caminhar era
itoso Aqui ca atras os outros conversavam eprovel ., " , .
riam - sea Alquiste e frei Sinfrao cantavam canti-
m rompante na lingua de outras terras, quegas eo , .
nao se entendia; seo Jujuca acompanhava-os. E run-
guem se lembrou nem disse mais do Gorgulho, nem
44 Q ]OAOGulMARAJ!S Ros.,
da serra que ficou la. Tardeava, quando chegaram no
Jove, a casa de Irentc dada para uma lagoa. Marre-
cos voavam pretos para a ceu vermelho: que vao se
guardar junto com a sol.
Adiante, hmlve dias e dias, dado resumo.
A onde queriam chegar, ate Ia chegaram, a co-mitiva en} fins.
Mas, quando vinham vindo, terminando a torna
viagem, ja a ceu de todas as partes se enflllua,ava
cinzento, pOl' conta das muitas queimadas que nas
encostas Iavravam. 0 sol atarde era uma bola car-mesim, em lisa, nao obumbrante. A barba do Ivo
igualava, apontando cavanhaque em feio corncco,
E Pedro Or'osio, espiando no espelhinho, se achava
meio carecido de cortar 0 cabelo, que pOl' sabre as
orelhas caracolava.
Variavam algum trajeto, a rnor evitavam agora os
espinhacos dos morros, pOl' causa do frio do vento
-- castigo de ventanias que nessa curva do ano
roclam da Serra Geral. Mas quase todas as rnesmas,
que na ida, eram as moradias que procuravam, para
hospedagem de janta ou alrnoco, au em que ficavam
de aposento. As quais, sol a sol e val a val, mapeadas
par modos e caminhos tortos, nas principals tinham
sido, rol. a do Jove, entre 0 Ribeirao Maquine e 0
o RECADO DO MORRO ~ 45
Rio das Pedras -- fazenda com espa,o de casarao
e sobrefartura; a dona Vininba, aprazivel , ao pe da
Serra do Boiadeiro -- - ai Pedro Orosio principiou
namoro com uma rapariga dc muito quilate, pOl'
seus escolhidos olhos e sua fina alvura; 0 Nb8 Hermes,
abeira do Correyo da Capivara onde acharamnoticias do mundo, pOl'meio de jornais antigos e seo
Jujuca feehou compra de cinquenta novilhos curra-
leiros; a Nnd Selena, na ponta da Serra de Santa Rita
-- onde teve uma festinha e frei Sinfrao disse duas
missas, contessou mais de umas duzias de pcssoas:
a Marciano, na fralda da Serra do Repartimento, seu
contraforte de mais cabo, mediando da cabeceira do
Corrego da Onca para a do Corrego do Mcdo la
o Pedro quase tevc de aceitar malajuizada briga com
urn campeiro morro-vermelhano; e, assaz, passado 0
Sao Francisco, 0 Apolinario, na vertente do Formoso
-- ali ja cram as campos-gerais, dentro do sol.
Medido, Pedro Orosio guardara razao de orgu-
lho, de ver 0 alto valor com que seo Alquiste can-
templara 0 seu pais natalicio: 0 chapadao de chao
vermelho, desregral, 0 frondoso cerrado escuro
feito urn mar de arvores, e os brilhos risonhos na
grava da areia, 0 ceu urn sertao de tao diferente
azul, que nao se acreditava, 0 ar que suspendia toda
46 0 J 0 A 0 G U 1M!\. R Ii E S R 0 S A
c1aridade, e OS brejos compridos desenrolados em
dobras de terreno montanho -- veredas de atoleiro
terrivel, com de lado e Iado 0 enfile dos buritis, que
nem plantados drede por maior mao: por entre
o voar de araras?e papagaios, e no meio do gemer
das rolas e do assovio limpo e carinhoso dos sofrl's,
cada palmeira semelhando urn bem-querer, eoroada
verde que mais verde em todo 0 verde, abrindo as
palmas numa ligeireza, como sois verdes ou estrelas,
de repente.
Ah, quem-sabe, trovejasse, se ehovesse, eomo
Iembrando longes tempos Pe-Boi talvez tivesse re-
pensado mesmo sua ideia de parar para sempre por
la, e fieava. Mas, ele assim, ali, a saudade nao tinha
presa, que ela e outro nome da agua da distancia
- se voava embora que nem passaro alvo acenando
asas por cima de uma lag6a secavel. Eo que de mais
via era a pobreza de muitos, tanta mingua, tantos
trabalhos e difieuldades. Ate lhe deu certa vontade
de nao ver, de sair dali scm tardanca, .Mesmo,senso reconhecia, no que estavam
praticando os tres donos viajantes. -- "Eu estou
em ferias, descanso ... " --- frei Sinfrao explicava.
E carregava pedras --- confessando, doutrinando,
pondo 0 povo para rezar conjunto, onde estivessem,
o RHCADO DO MORRO 047
todas as noites; e terminou uma novena no Marcia-
no, e ja na Nha Selena come9ava outra. E seo Jujuca
aprendia tudo de seu interesse -- tirava conversa
com os sitiantes e vaqueiros, ja tracava projeto de
arrendar por Iaurn quadradao de pastagens, que aliterra e bezerros formavam mais em conta. E 0 seu
olquiste estudava 0 que podia, escrevia a monte emseus muitos cadernos, num lugar recolheu a ossada
inteira limpa de uma anta-sapateira, noutro ganhou
uma pedra enfeitosa, em Formato de fundido e cores
de bronze, noutro comprou para si urn como de
dez metros de sucuri macha.--- "Cada urn e d6ido
de sua banda!" -- definia 0 Ivo, a respeito. E em
combinavam no rir, Pedro Orosio e eIe.
Porque, desde dias, estavam outra vcz compa-
nhciros, a amizade concertara. Ao que 0 Ivo era
urn rapaz correto, obsequioso. -- "Mal-entendido
que se deu, s6... Ma estoria, que urn born gole
bebido junto desmancha... " Nisso que 0 Ivo peIos
outros respondia tambem: 0 Jovelino, 0 Veneriano,
o Martinho, 0 Helio Dias Nemes, 0 [oao Lualino, 0
Ze Azougue- que, se ainda estavam arredados,
ressabiando, no rumo nao queriam outra coisa seniio
se reconciliar. Deixasse, que eIe, Ivo, logo chegassem
de volta no arraial, arreunia todos, Iestejavam as pa-
4 8 J 0 AoG U 1M A RAE S ROSA
zes. ~"O Nemes tambem?!"~Pe-Boi perguntou,
duvidoso, q'Uase naocrendo. -- "Pais ele! Voce vai
vel'. No sirn pOI' mim, velho! ... " Eesse Ivocra urn
sujeito de muita opiniao,
palet6 ecalca, um camaradamuito comprido, rna-
grelo, com cara de sandeuv-c- custoso mesmo se
acertar alguma ideia de donde, que calcanhar-do-
judas, um sujeito .sambanga assim pudesse ter sido
produzido. 0 pal'i',t6 era tao grande clue nao se aca-
bava, abotoados tantos.botoes, mas a calca chegava
s6, estreitinha, pela meia-canela. Os pes tambem
marcavam por descomuns no comprimento, calca-
dos com umas alpercatas floreadas, de sola do sertao.
Ao que, com tudo isso, prasapio assim, mas ele era
dos desses vaidosos. Caminhava com defeitos, e, das
pernas ao pesco90, se alceava em tres curvas, como
devia de ser uma cobra em pe. Viu um banco vazio,
e confiou 0 corpo as nadegas. Nao cumprirnentara
ninguem. Mas todo se ria, fechava nunca a boca.
-- Eo 0 Catraz! -- 0 menino joaozezim logo
disse. --Apelido dele e Qualhacoco, Mas, fala nao,
que ele da 6dio ... Ele cursa aqui. Eo boc6.
o Catraz tinha vindo berganhar milho por fuba,condizia 0 conteudo do saco, Mas nao mostrava
nenhuma pressa. Ver tanta gente reunida, para ele
mudava as felicidades. - "A-ha.ha ... Pessoas de
criacao ..."- ele disse, espiando os viajantes. ----"0Catraz, conta alguma novidade! Voce viu 0 arioplae?"
"- A pois, inda ontem, ele torou avoando pra a
o RFCADO DO MORRO ,,!
banda de baixo ... Passarao de pescoyo duro ... "Mais
o menino Joaozezim perguntava: ~-"E a mOya da fo-
lhinha, CatrazrVocc guardou?"~-; qual era uma es-
tampa de calendario de parede, a figura de urna moca
eivilizada, com urn colar de sete voltas, 0 Catraz pelo
retrato pegara paixao, e tanto pedira, tinham dado
a ele. -- "Ha-de, ha-de, que esta lao Fremosura! ...
Ah, 56, a rna de coisa que ela e tabaquista, e ficou
com aquela pintinha preta de rape, na cara ... Ainda,
ainda, que eu conseguisse de casar com ela, ah, ah .
Fiz promessa de nao casar com mulher feiosa "
o Catraz suspirava com 0 saco. -- "Mal que foramcontar pra 0 meu irrnao Malaquia que eu estava
tratando casorio ... Meu irrnao Malaquia entonces
veio me ver, de passar pito. Ele e casmurro, e muito
apichicado ... Malaquia me apertou, ei , tive de dar
juramento, de ao menos nao me casar nesses prazos
de dez anos. A escapula que tive. Me vali com aguas
"mornas ..._~_ "Este Catraz tern urn dinheirinho. Ele ate
engorda porco ... " -~ alguem dizendo. Mas Pedro
Orosio disfarcara e saira a chamar seo Jujuca, 0
frade, seo Alquiste: estava ali 0 irrnao do Gorgulho,
e tambem grotesco. Aqueles acorreram. Explicado,
seo Olquiste cxclamouzao: -~- Ypperst! E 0 Catraz,
52" J 0 .Ii; 0 G II 1 MAR A n S R 0 SA
falanfao, nao se acanhaya com as altas presen
54 "Loe o GU1M,\RAFSRoSA
sentado de coc'ras, na beira da grota. Gosta mais de
sol claque jacare ... Mas eseria pessoa, meu irmao
. lh "" J " C t ?"" Eh . I Omars ve 0... --. acare, 0 a raz. -- ,pOlS. '--jacare fica de hi na moira, com seu olhao dele?Tiro
em cabeca de jat~re nao adianta nada ...
Mas 0 Malaquia conversava eom ele eoisas de
religiao, tambern. Tinha falado num lugar, no lugar
muito estranho _. onde tern a tumba do Salomao:
quase que ninguem nao podia ehegar ate la. Reeanto
limpo e fundo, entre desbarrancados, tao sumido que
pareeia a gente estar vendo ali em sonho; e so eom
umas palmeiras e umas grandes pedras pretas; mas
o melhor era que la nem urubu nao tinha licenca de
ir ... -"A bom, agora e que eu estou alembrado, you
eontar a que foi que meu irmao Malaquia dixe ... "
Mas, por essa altura, so a menino JoaozeziIn l
que se chegou mais para perto, era quem 0 ouvia.
- "Dixe que ia andando par um caminho, rom-
pendo par espinhaco dessas scrras ... " Porque seo
Jujuca se entendia com seu Nhoto, assunto dumas
vacas e novilhas - massa de negocio provavel. Frei
Sinfrao abrira a breviario e lia suas rezas. 0 Ivo fora
ate la, no curral, sempre inquietamente. Dona Vi-
ninha entrava para a casa, decerto dar uma vista no
apreparo do almoco. Seo Olquiste agora desenhava
o Rl;CADO no MORRO 5-5
na caderneta as alpercatas do Catraz, era a que ele
portava de mais imponente. E Pedro Orosio mesmo
se esquecia, no meio-lembrar de uma coisa au outra,
fora do que a Catraz cstivesse dizendo.
- "... E urn morro, que tinha, gritou, enton-
ces, com ele, agora nao sabe se foi mesrno p'ra ele
ouvir, se foi pra alguns dos outros. Eque tinha unsseis ou sete homens, por tudo, caminhando mesmo
juntos, par. ali, naqueles altos ... Eo morro gritou
foi que nern satanaz. Recado dele. Meu irmao Ma-
laquia falou del-rei, de tremer peles, nao querendo
ser favoroso ... Que sorte de destine quem marca
e Deus, seus Apostolos, a toque de caixa da morte,
coisa de festa ... Era a Morte. Com a caveira, de
noite, feito Historia Sagrada ... Morte a traicao,pelo semelhante. Malaquia dixe. A Virgem! Que e
que essa estoria de recado pode ser?! Malaquia meu
irrnao se esconjurou, rccado que ninguern se sabe
di "se pe lU ...
De repente, frei Sinfrao ergueu os olhos do
breviario: - "Voce como e que anda com Deus,rneu filho?"- docemente perguntou---- "Voce sabe
rezar?""-- Ah, isso, rezo. Rezo p'ra as almas, toda
noite, e de menha rezo p'ra mim... Pego com Deus.
A gente semos as criacaozinhas dele, que nem as
I h "ga m as e os porcos ...
5'6 aJOAO GUIMARi\ES ROSA
E 0 Catraz botava 0 s~co ao ombro, se dispunha
a puxar embora, caminho de suaIapa, lapinhaperto
pegada corn a Lapa do Breu, rumo a rumo corn a
Vaca-em-Pe, ern partes terrentas de pedreiras e
rocha nua, num ponto diante do qual outra serra
vai ingreme, talhada como urn queijo. Disseram-
lhe clue retardasse urn pouco: aproveitasse cafe e
almoco. E ele concordou, mas tinha apuro -- desceu
a escadinha da varanda, e beirou a casa indo para a
porta da cozinha. Falando, perguntando, 0 menino
joaozezim 0 acompanhou.
Assim. Tanto que alm09aram, sua vez os viajantes
iam tambem partir. Nem viram mais 0 Catraz, nele
nem pensavam. Ate certa distancia ate ao Pantano,. ,porem, ern compensacao, teriam outro companhei-
ro, da mesma vaza.
Esse urn ~- 0 Guegue --- clueoutro nome nao tinha;
e nem precisava, 0 Guegue era 0 bobo da Fazenda.
Retaco, grosso, mais para idoso, e papudo --- urn papo
em tres bolas meando emendas, urn tanto de lado.
Nao tirava da cabeca urn velho chapeu-de-couro de
vaqueiro, preso por barboqueixo. Babava sempre urn
pouco, nos cantos da enorme boca corn urn ou dois
tocos amarelos de dentes. Uma faquinha, ele nao es-
tando trabalbando, figurava com a dita na mao. E tinha
intensas maneiras diversas de resmungar. Mas falava.
o RECADO DO MORRO 57
Ah, era urn especialmente, 0 Guegue! --- dona
Vininha e seu Nhoto contavam, para se rir. Tratava
dos porcos de ceva, levava a comida dos camaradas na
roca, e cuidava a contento de todo servicode terreiro,
prcstava muito zelo. Derradeiro, a Lirina, filha de dona
Vininha e seu Nhoto, se casara, fora morar no Pantano,
dali a legua imperfeita. Quando se carecia, mandavam
Ja 0 Guegue -- com recados, ou doces, quitandas,
objetos de emprestimo, Principalmente, era ele por-
tador de bilhetes, da mae ou da filha, rabiscados a lapis
em quarto de Iolha de pape!. Mais pois, ele apreciava
tanto aquela viajinba, que, de algum tempo, os bilhetes
depois de lidos tinham de ser destruidos logo; por-
que, se nao Ihe confiavam outros, 0 Guegue apanhava
mesmo urn daqueles, ja bem velhos, e ia levando, 0
que produzia confusao, A outros lugares, 0 Guegue
nem sempre sabia ir. Errava caminho sem erro, e sedesnorteava devagar. Levavam-no a qualquer parte, e
rccomendavam-lhe que marcasse atcncao, entao ele ia
olhando os entressinados, forcejando por guardar de
cor: onde tinha aquele burro pastando, mais adiante
tres montes de bosta de vaca, urn anu-branco chorro-
chorro-cantando no ramo de cambarba, uma galinha
ciscando com sua roda de pintinhos. Mas, quando
retornava, dias depots, se perdia, xingava a mae de
:;8'OJOAO GUIMARAHS ROSA
todo 0 mundo .-- porque, nao achava rnais burrinho
pastador,nem trampa, nem passaro, nem galinha e
pintos. 0 Guegue era urn homem serio, raciona1.
Reconforme, viria junto 0 Guegue, pois passa-
yam pelo PantilnolEle devia de trazer urn boiao com
dike de limao em calda,mais urn bilhete para a Nha
Lirina. E ja estavam arreando os cavalos, quando 0
Guegue aparecia, rico de seus movimentos setn-cen-
tro, saindo dos fundos de uma grave manha: tinha
estado a amarrar, por simpatia, urn barbante na cerca
da horta, para 0 xuxu crescer depressa; ele estava
sempre querendo fazer alguma coisa de utilidade .
A mais, limpara, ja pronta, uma saboneteira, feita
da concha de urn cagado. A bern dizer, seu trabalho
nisso fora lange e simples: pegara 0 cagado na rede
do rego, matara-o a pontadas de faca no entre-casco,
depois 0 coloeara par cima de urn formigueiro - as
formiguinhas, devorando, eonsumiram 0 glude,
fabriearam a saboneteira, a qual ele presenteava ao
menino [oaozezirn. Era so lavar, no rego -.. 0 Gue-
gue vivia it sua beira, 0 rego era 0 rio dele.
Par modo, quem ia por atencao no Guegue?
Quem, no menino joaozezim? Onde foi assim que
este ultimo achava de contar ao outro aquilo que ou-
vira e the soara tao importante por esquipatico , e
o REC'\OO DO MORRO _~9
. mais aeeitaria de comentar. N enhumque mnguem . . _ . . ,
d I Tmbem por ardicao que trvesse , 0dos autos. a. .,
. .J ~ imnao conferira 0 assunto commemu oaozez
I.pelo siso desgostariam de se es-
aque es -- - que" "
te 0 silendo que vem antes da per-clarecer, consoan. lados J'it estao nao-respondendo.
gunta: e que, ca ,cc Urn morro, que mandou reeado! Ele
d. C'; 'traz 0 Qualhacoco ... Esse Catraz, Qua-lsse,O a-, , _
lhacoco, ql)e mora na lapinha, foi no Salomao, ele
J' . E tinha sete homens la, com 0 irrnao dele,cnsse. . . ' 1\." ~"
. h d . tos pelos altos ... Voce aered.'ta!eamln an 0 jun os,. Jo"aozezimprimeiro quis olhar deEo menmo .
. bai () Guegue' nao podendo, por serpe-elma para arxo ,1
60 J 0 Ii: 0 G U 1 MAR A E S Ro S A
o menino joaozezim falava desapoderado, comose tivesse aprendido so na memoria 0 ao-eomprido
da conversa. E queria uma confirmacao de resposta,
saber do Gucgue. Mas, en'luanto a esperava, nao
podia deixar de rriexer os labios, continuasse are.
produzir tudo para si, num sussurro scm SOITI.
Mas 0 Gucgue nao sabia dar opiniao, apenas repe
tia, alto, as palavras; c, no intervale, imitava com 0
cochicho de bcicos. Representando por gestos cada
verdade que 0 menino dizia: sungava as maos aalturade um homem, ao ouvir do rei; e apontava para 0
morro, e mostrava sete dedos pelos setc homens,
e alongava 0 brace pOl' diante, para ser a espada, e
formava cruz com dois dedos c beijava-a, ao nome de
Deus; e batia caixa COIn as maos na barriga, e COIn
uma careta e um esconjuro figurava a aparicao da
Morte. Tudo, por seus meios, cle recapitulava, e
pontuava cada estancia com um feio mcio-jjuincho.
Mas Pedro Orosio , que via e ouvia e nao entendia,
achava-lho muita graqa.
-",---- Voce tern medo nao, Gucgue? -- a menino
Joaozezirn perguntava, ao cabo.
Entao 0 Gucgue foi apanhar no telheiro do enge
nho 0 seu bom cacete, um calaboca, que levava preso
debaixo do braco, mesmo quando earregando a boiao
o /
62 JOAO GllIMAlt,~l;S ROS,'1.
trilhas escalavradas, OS caponetes nas dobras, sempre
o sempre. Mesmo seo Jujuca se queixava: -"Como e
que um pode conhecer esses espigoes? Eo tudo igual,
e tudo igual. .. Eo 0 mesmo diHcil que se campear em
lugares de vargem t ';."
Frei Sinfrao rezava ou se queixava do mali comodo
na sela. Seo Olquiste quase nao davamais ar de influen-
cia: por falta de pratica, ja se via que ele estava cansado
de viagem; e com soltura de disenteria, pelos bons de-
comer nas fazendas. 0 jenipapeiro grande, na curva
do Abelheiro, calvo de toda fofha. Menos afastado,
trafegou um carro-de-bois. cantando muito bonito,
grosso- devia de estar com aroda bem apcrtada,
e 0 eixo seria de madeira de itapicuru. Passou um
casal de pica-pans, de pervoo, de belas cores. A gente
agora ouvia 0 pipio seriado ciacodorna. Ulna res vcio
ate ca - um boi pesado de ossos secos.
- Bom rapaz, esse Pedro... dizia seo Ju-
juca.
- Par uns assim, castuma rezar mais ... -- frei
Sinfriio respondeu.
Mas seo Olquiste agora so dava atencao a algum
passaro. 0 pitangui, escarlate, sangue-de-boi , Mes-
mo voava um urubu-cacador, de asas preto e prata.
o mais eram joaos-de-barro. A viuvinha-do-brejo
o RECAI)O DO MORRO' 6J
tentava cantar melhor: 0 macho se dirigindo it fe-
mea, no apelo de reunir, Depois, vendo 0 espiralar
de gavioes, soltou 0 grito-pio de alarme.
E 0 Guegue a cacetadas matou uma cobra vene-
nasa: -"Voce Ioi vir, agora morre!" Ese voltava para
os outros: -"Eh, cobra anda em toda parte ... "
- Olha 0 boiaol Olha 0 boiao, Gueeue! ~- (eleC'
depusera 0 boiao no chao).
E Pedro Orosio se incomodou: tinham errado 0
caminho? Por certo, alguma errata dera, havia mais
de hora-c-meia caminhando, por uma estrada de
carros-de-bois e por lim de trilha em trilha, e nao
chegavam it fazendola do genro de donaVininha. Per-
guntou ao Guegue, 0 Guegue demorou explicacao.
Que tinha favorccido essas voltas, de extravio, pelo
agrado de se passear, em tao prezadas condicoes. 0
que fosse um ter confianca em mandadeiro idiota!
Onde vinham parar era no rasa da Vargem-do-
Morro, seu paredao, e 0 Sumidor do Sujo. Ali, re-
conhecia, aquele plaine pardo, poeirante, lugar de
malhador de gado selvagem, um ermo sem vivalma,
nem bananeiras, nem telhado de gente residindo
perto. Pastos do Modestino. S6 os grupos de gran-
des pedras, lajes amarelas, espalhadas. Um cocho
64- J 0 k 0 G U 1M" RA ES ROSA
velho, abandonado, asombra de um pau-d' oleo. E,asombra de uma faveirae de um jacaranda-cabiuna,a lagoinha de agua salgada e turva. Motivo desse
bebedouro, sempre rodeavam por la numerosas
manadas, e na e~sea das ar vores havia riseas de
afio das pontas dos touros. Mas, aquela hora, so se
enxergava uma vaea, angulosa, mal podendo com
seus enormes chifres. Desde que cessou 0 pipar
de dois gavi6es que se !ibravam circunvoantes, no
silencio daquela solidao podia-se escutar 0 sol. Era
uma planicie morta, que ia vazia ate longe, na barra
escura do Capao-do-Gemido. Ca, no reconcavo da
bocaina, a serra !imitava um quadrante, 0 paredao
arcade, uma ravina com sombrias bocas de grutas.
Trepava-se caminho acima, contornado, de desvio,
segurando no cipo-nepro e no cipo-escada, aprovei-
tando uma grota scca, muito funda e apertada, eheia
de calhaus. Quiseram ir acola, para ver, em cerro
terraplem, um salte-d'agua, barbadinho, surtido da
pedra fouta e logo desaparecido em ocos, gologolao.
Mais um cruzeiro em que 0 raio desenhara a quei,
mado umas figuras bem repartidas, sobreditas como
milagrosas. Mas disseram a Pedro Orosio que os
esperasse, ficando vigiando as animais, e 0 Guegue,
par eonta do boiao de dace.
o RECADO DO MORRO ~ 6~'
Ficaram.
E entao grande foi 0 susto dos dais, quando uma
voz solene e cavernosa proc!amou de la, falafrio:
~~_ Bendito! que evem em nome em dho-
mem...
Ai, virarn. Quandao, clande viera a rna VO?', sesoerguia do chao uma cabeyona de gente. Era um
homem grenhudo, magro de marte, arregalado,
seus olhos espiando em zanga, requeimava. Deitado
debaixo duma paineira, espojado em cima do esterco
velho vaeum, ele estava proposto de nu so tapado
nas partes, com urn pano de tanga. E assim tornou
a arriar a cabeca e estirado de semelhante feiyao
continuou, por nao querer se levantar.
Bendito, quem envem em nomindome!
E solevava numa mao uma comprida cruz, de
varas amarradas a cipo _ ..~~. brandia-a, com autorida-
de. Era um doido. 0 Guegue nao the tirava de riba
os olhos, satisfeito, uma coisa de tanto feitio ele
[amais tinha avistado, Por 11m, se voltou para Pedro
Or6sio, e perguntou:
-- to logro?Mas foi 0 proprio sujeito serninu do chao quem
entrou com a resposta:
_ to logro? to virtude? Em nome do Pai, doFilho, do Espirito,Santo -- quem esta vos pergun'
66" 101\0 GUIMARAES ROSA
tando SOU eu, me declarem: voces dois sao criaturas,
ou sao figurados do Inimigo?! Entao, me sigam no
sinal sagrado!---- e tracou em testa e boca e peito
o da Cruz. Pedro Or6sio e 0 Guegue 0 imitaram,I
com 0 gue de pareceu se abrandar. ---- Se vos sois
anjos, mandados pelo Divino, para refrigerar minha
fe no duro da penitencia, dizeis! vos rogo, porgue,
se forem, entao me levanto do estrume dos grandes
bichos do campo, limpo minha cara e meus cabelos,
C vos reecbo ajoelhado, loas e salmos entoamos ...
Aceitou 0 gue 0 Pedro Or6sio disse: gue era
apenas urn sitiante conium, com sua lavourinha
para tras da Serra do Cuba; e gue ali 0 Guegue
era acostado na dona Vininha, fazenda do B6amor;
e gue vinham transeuntes, jornalados, service de
comitiva,
-- Faz mal nao. Bendito 0 gue vern in nomine
Domine! ... Todo service pode ser de Deus, meus
filhos. Se corrijam! Ainda nao completei meus nove
dias de jejum e reforco, gue vim preeneher aqui
neste deserto, entre penhas e fragas brabas ... Mas
estou em acabamento----- depois-d' amanha tenho de
tornar a sair pregando, pois 0 lim-do-mundo esta
apressado, nao dou por mais tres meses, se tanto. A
humanidade ve? Nao vel Nao sabe. Cada um agar-
o RECADO DO MORRO" 67
rado com seus muitos pecados ... Mas hei de gritar
fOgo e chorar sangue, ate converter ao menos uma
boa partel Vao rezando, vao rezando: vao se conver-
tendo logo, por si, pra me poupar trabalho ... Mas,
olhem 0 Arcanjo! Silencio, ajoelhem ai em ponto,,
rezem urn rosano .. .
E depos a cruz do lado do eorpo, fechou os olhos,
as maos no peito, feito gente morta. A gente podia
admirar e achar Clue as delicias e Clue estavam
com cle.
Em seguimento disso, porem, Pedro Or6sio se
afastou, cacando um lugar melhor, para se sentar.
Por seguran
b
68 QJO.40 GU1MAR,4ES RosA
encosta, urn rente grito: urn casal de maitacas saiu
pelo ar. A gente olhava para 0 ceu, e esses unibus.
Vez em quando, batia 0 vento -- girava a poeira
brancada, feito moido de gesso ou mais cinzenta,
deb se formam vllltos de seres, que a pedra copia: 0
goro, 0 onho e 0 saponho, 0 osgo e 0 pit6sgo, 0 nha-a,
o zambezao, 0 quibungo-branco, 0 morcegaz, 0
regonguz, 0 sobre-lobo, 0 monstro homem.
o Guegue, pOI' lim, perguntava:-_. Oce e da procissao? Vai dan sal' no Rosario?
A nhum? Mundo vai se acabar? Oce disse ... Oce
sabe?
Silencio, mais silencio! Me deixa, a hora e
de Deus. Nao embargando, voce e urn pobre filho
dele, se ve que tern 0 espirito simplorio ... Quer
ver 0 lim do mundo? Que vern vindo redondando
ai, rodando feito pe-d 'agua, de temporal e raios: os
querubins ja estao com as brasas bentas, amontados
em seus trapes cavalos! Tu, treme ...
- Ue ... Como e que oce sabe? Oce e padre
algum?
- Enche tua boca de bosta, p'ra nao carecer
de blasfemar! Como que seir Tu tambem vai saber,
refiro que nao seja tarde: assentado de dentro da
panela de breu, tu entao sabe ... Arrepende, treme
o RECAJ)O 00 MORRO 69
e reza, e te prostra, cara no chao, intieis publicano!
Olha a trombeta! De profundos, eu escuto: olha a
morte, atencao:
. Uai, entao e! Eo que nem 0 Menino ...
.. _. 0 menino? 0 menino? De uns assim foi dito,
que entram no Reino-do-Ceu dansadamente ... Que
menino?
- A born, no Boamor: foi que 0 Rei isso do
Menino- com espada na mao, tremia as peles, nao
queria ser favoroso. Chegou a Morte, com a caveira,
de noitc, falou assombrando. Falou foi 0 Catraz,
Qualhacoco: 0 da Lapinha ... Fez sinosaimao ... Mas
com sete homens, caminhando pelos altos, disse clue
a sorte quem marca e Deus, seus Doze Apostolos,
e a Morte batendo jongo de caixa, de noite, na festa,
feito Historia Sagrada ... Querendo matar a trai-
9ao ... Catraz, 0 irmao dum Malaquia ... Oce falou:
a caveira possui algum poder? Eo fim-do-mundo?
- Eo 0 comeco dele, e 0 corueco v-> alvorada de
toda a Gloria! Urn arcanjo sabe 0 poder de palavras
que acaba de sair de tua boca ... Ajoelha, as gra9as,
ajoelha, ja!
o Guegue obedecia, se ajoelhava. Mas aqueleestapaiurdio - 0 esturdio homem, pronto nu e
espichado no sempre do chao, lazarado por seu
..
proprio querer, ali entre 0 verde e 0 preto do gado
solteiro do Modestino --- agora mandava que ele
botasse fora 0 caeete. E 0 Guegue hesitava.
-- Se e vossa vez, encosta aqui comigo, para um
resto de jejum e remissao aspra: que de hoje a dia-e-
rncio podemos pegar este mundo pelas alcas ...
Ue, eu nao posso. Tcnho de levar recado
e boiao de dace, nha Dona Vininha mandou ...
Posso nao.
- Nao pode, pela salvacao dessa humanidade
sacana, em vesperas de inferno geral?! Que e de seu
companheiro?
- A, ali, atras do joao,- Surso! Surge!
Mas 0 homern se solevava e virava, via 0 que via
atras da moita de mentrasto, e iracundo abominou:
--- "Caifaz! Isso e direito? Eo respeito?! Raca de
viboras, cambada de pagaos, obrando! Te aparta ,
maldito! Raca de viboras! ...
Nenhuma cortesia ou desculpa para ele tinha
valor: se levantou de todo, sacudiu aquele corpo
mujo de magro e nuelo, segurou muito a cruz e foi
desertando, audaz, se caminhando para longe -- ain-
da prometia que ia para 0 beira-mato, prosseguir em
seu forte dever de penitenciacao. Ao que bramava e
o RECADO DO MORRO '])
escarceava, scm olhar para tras. Com uma gaforina
de cabelo assim, devia de ter ate piolho,
o Guegue queria ir tendo algum medo, aeari-nhava seu grande papo. Mas Pedro Orosio veio e lhe
entregou de novo 0 boiao de dace, sem parlandas.
Dava 0 vento, outra vez, suspendia maos daquela
esponjosa poeira, que tem gosto de agua de pote e
de comida cozinhada. Aquele lugar era muito feio.
- us, uai, eh ... - 0 Guegue se manifestava.- ... Hornern zuretado! ... Sera que 0 mundo
acaba?
Que nada e nao, assegurava Pedro Orosio. Aca-
bava nunca. E aquele inesperado homem era leso do
[uizo, no que dizia nao fazia razao, Ca, sc tivesse 0
mundo de se acabar, outros, de mais poder e estudo,
era que antes haviam de obter sua noticia, E bern
veio que, por essa altura, justo 0 pessoal estavam
retornando.
Dali sairam , rearrumando rumo, modo de
conduzir 0 Guegue ao Pantano, de nha Urina e sia
Duque, seu marido, Constando que era urna bonita
fazenda branca, entre arvores; la tomaram cafe combiscoitos, e lit deixaram 0 Guegue e 0 boiao.
Dai, acima carninho, ainda Pedro Orosio se
lembrou de dar parte ao frade do que no raso do
Modestino se passara, e do extraordinario daquele
homem por nu - 0 Nomindome - ameacador de
tantas prosopopeias, Embora, ficou calado. Expor
tudo nao era convinhitvel, ele nao sabia Iacil passar
a ideia de comd'tinha sido, e eles podiam fazer
maiores perguntas cansava sua cabeca distribuir
a pessoas cidadas um caso de tanto comprimento.
Guardou consigo. S6, ja quase chegavam no Jove,
de tardinha, cruzou numa porteira com um velho,
das Lajes, um Torontonho ou Toront6e, que vinha
ate no joao Salitreiro, comprar fogos para as festas
do Rosario. Tal velho conhecia 0 N omindome: re-
portou que ele era doido varrido, mas tinha passado
bons anos no Seminario de Diamantina. Seu nome
em Deus, ninguem nao sabia, portanto. S6 era co-
nhecido por apelativo de [ubileu, ou Santos~6leos.
- Faz tempo que esse Santos-Oleos, ou Jubileu,
o que seja, que nao aparece por arrabaldes. Ninguem
sabe donde ele assiste, nao tem pouso nenhum. Vara
por este mundo todo: some daqui, vai se apresentar
jajao em longes beiradas, diz-se que testemunha
ate nos Fcchos-do-Funil, numa tapera de capela,
em Oestes, mais la de la da capital do Estado ... De
uns dez anos que ele sobrevive as feitas carreiras,
d' acola p'r' alem, enfiando por dia muitos Iugares, e
o RECADO DO MORRO 73
pronunciando brados do fim-do-mundo -.~ estreito
prazo de tres meses ... Bom, desse jeito, assim, nao
e vantagem: algum dia ele acerta ...
o veIho Tront6io riu, de si, e se tocou avante,Iambando no cavalo baio a tala do chicote. Ao que
de era tic-avo de uma mocinha, das Jindas, cha-
mada Quiteria, ai Ribcirao-da-Onca abaixo. Born
homem.
--"Sera que foi, a respeito de quem era cJuevoce
estava perguntando?"--0 Ivo quis se informar.ja no
Jove, depois que tinham jantado e faziam redondo
de conversas no patio da Irente, junto com algum
pessoal de Ia.
- "Falando do Rosario, da festa ... " - Pe~Boi
preferiu atalhar, por preguivas de depor a verdade,
tao tola.
__ Ah, pois isso. A festinha, vamos ter e no
Azevre, domingo de noite, na certa. Sem faIta, voce
vem ... Alegria da palavra!
Nissa, outros vinham. Eram, ver e nao ver, 0
Joao Lualino e 0 Veneriano - e nao despraziam de
se eneontrar com ele, Pedro Orosio, por contrario
riam amistosos, e se chegavam. - "Pais, ei, Croni-
co ... Ei, Pc! Salve essa bizarria ... " Saudavam com
palmadas de abraco. E 0 Ivo tornava a gerencia da
74 ~ JOAO GUIMARAES ROSA
conversa, avindador, queria que todos mais compa-
nheiros estivessem, fora de lembranca de qualquer
injuria passada. ~.,,- "A mais ea festa, hem, hem?" T" . "I" bi d" d--- a inteira. a com Ina os ... ,--~ respon iam.
?o Veneriano era urn preto jeitoso, impapavcl emtoda Iestanca, pelo que melhor dansava -.- nem
se imagina: mesmo com aqueles pes de inhauma,
dedoes abertos e enormes, e 0 calcanhar muito
salientado, cabo de cacarola. 0 Joao Lualino ,
pardaz, sempre muito luxo no vestir, botava ate
agua-de-cheiro na cabeca; diziam que era sujeito
muito mau, e sangrador, faquista. -"A ser, quand'
e que voces ficam Iorros de pajear essa gente de
ambulante?" -_. 0 Joao Lualino perguntou. Arre,
era amanha, estavam no arraial , de volta ~'- 0 Ivo
cxplicava.v-i- "Eh, Cronh' co ._.. falava 0 Veneriano
-: Voces foram arranjar urn carcamano mais es-
tranhavel. Hum, que zanza por ai itgarimpa, mo de
atestar amostra de pedrinhas e folhas d' arvor-cs ...
Que e que estara percurando, de verdade?" E 0
Lualino: -"Alto cidadao Vai ver, e cristaleiro,
mais salado que os outros Botar preso em cadeia,
mode se dizer de ser. .. " Por urn meio-pensamen-
to, Pedro Orosio se comparava: aqueles pareciam
homens mais seguros de si, com muita capacidade.
o RECADO DO MORRO ~ 7)'
Estavam rindo, falando por brincadeira, mas mes-
mo assim a gentc via que, eles, cada urn queria ser
sem chefe, sem obriga9ao de respeito, alforrtados
de qualquer regra. Talvez ele, Pe-Boi, dava apre90
demais aos patroes, resguardando a ordem, lhe
faltava calor no sanguc, para debicar e dizer ditos
maldosos. Outramente, admirava seu tanto a vivice
do Lualino , mesmo do Iva Cronico. Por mais que
virasse e vivesse, ele ficava diferente daqueles: era
sempre 0 homem dos campos-gerais, ser-io festivo
para se decidir, querendo bern a tudo, vagaroso.
Agora, tinha estado la, ate nas veredas do Apoli-
nario, onde papagaio bravo revoando passa, a qual-
quer parte do dia. Ao que fora, imaginando de ficar,
e nao tinha ficado. Mesmo no momento, se queria
par a rumo 0 pensamento, de lembranca de la, nao
conseguia, sern sensatez, scm paz. Faltava a sauda-
de, de sope. Toda aquela viajada, uma coisa logo de-
pois de outra, entupia, entrincheirava; so no fim,
quando se chega em casa, de volta, e que urn pode li-
vrar a ideia do emendado de passagens acontecidas.
Mais valia a boa amizade , companheiragem
-- 0 Ivo Cronico , 0 [oao Lualino , 0 Veneria-
no ~- e a festa, por ser, ja clue ocasiao dela: nas
cafuas, perto de estradas, em casas quase de cada
]6 ~JOA(J GUIMARAES ROSA
negro se ensaiava, tocando caixas, com grande
ribombo. Agrado de festar, isso sim, as mocinhas
mocas, tinha desejos de umas.Ao depois, carecia de
retomar seu trabalho costumeiro, ir dando preparo
para 0 plantio das'rocas, reconhecia falta dessa Iida,
mesmo que nern igual de dormir, tomar cafe, Corner
e beber. --"Ouve, Pedro: alcm do que foi ajustado,
voce aeha que eles van gratificar a gente com mais
um pouco mais? Ah, 0 carcamao de cerro da, Ele e
frouxo de rnunheca... " 0 Ivo, no Ialar, pegara mao
no braco dele; 0 Ivo era amigo, supria confianca,
Pedia para ver a arrna: ~,--- "Oi, Pe, essa sua garru-cha e mcsrno boa, mandadeira?" "--- Regularzim.
Tiver um dinheiro, compro outra. Revolver, feito
es " " A d b f." cse seu... - ra, na a, ozoqe ... 0 Ivo tazia
questao de encarar bem a gente, corn uma firrneza
de ser sincero, e falava falas de afei9aO. Unico defei-
to dele era um cismo destruido no jeito de olhar e
falar, parecendo coisa que estivesse reparando uma
res vistosa, um boi gordo.- "A bern, Pe, tu disse
que estava pensando ern querer voltar pra la, pra os
Gerais altos ... " 0 Ivo, falante assim, a gente tinha
um gostinho de rebater os conselhos dele: - "A
ja, Cronhco velho, aquilo era aragem de fantasia
atoa, 56. Eu fico, mas fico aquirnesmo ... "A mais,
o RECADO DO MORRO.]]
outro gosto, de arreliar adiante 0 amigo, que estava
sernpre volteando e se queixando no mesmo assun-
to, de que ele Pedro devia de nao querer namorar
corn as mocas todas, mas escolher uma, ou as duas
au tres, s6, e deixar a cada um outro a de amor de
cada um: --- "Voce sabe, Cronhco, 0 remelhor e ir
narnorando namoriscando, enquanto elas quiserem ,
Mocidades ... " Entao 0 Ivo arriava a crista, demu-
dava de conversacao. Ali no Jove tinha luz-eletrica,
o povo escutava radio, se ia dormir mais tardado. E
se comia uma ceia boa: de sopa-de-batatinha com
bastante sal, com folha verde de cebola picada, e
broa de milho; depois, leite frio no prato fundo, com
queijo em pedacinhos e farinha-de-munho. Ca fora,
as estrelas belezavam, e a lua vinha subindo cedo,
ja bern: dali a uns tres dias, era 0 dado da lua-cheia,
conforme se sabe.
De vez, ora assirn foi que, no outro dia, em
vez de torarem para 0 arraial, ainda inventaram de
enrolar caminho para asTrairas, por mostrar ao seu
Alquiste 0 rio das Velhas - seus matos montoados,
suas belas varzeas, seus passaros vazanteiros. Urn
aborrecimento. Tino foi 0 do frade, que disse nao
podia vadiar mais, se separou e desviajou deles. Seo
Jujuca determinou que, se 0 Ivo quisesse, podia 'ir
780 JOAO GU1MARAIo:S ROSA
tambem, acompanhar frei Sinfrao, agora 0 movi-
mento era mais resumido, tao perto. 0 Iva nao quis
~--- por esperanc;:ade maior dinheiro, sarnava de ficar
ate ao fim. Pedro Orosio mesmo, pelo sim pelo
certo, tratava de z6lar mais agradador e prestativo.
Mas achava mais grac;:a nenhuma, no seo Olquiste,
senlpre nas manias de rernexer ever, e perguntar,
e tomar 0 mundo por desenho e cscr'ito. 0 que, a
partir dali, esclarecia aos tantos seu coracao, era 0
palpite da festa. E foi 0 proprio Iva que uma hora
careceu de ter mao nele: - "Modera essa inlluen-
cia, Pc, que ainda nao e hoje. Mas vai ser festa pra
toda a vida... " E Pedro Orosio, pelo que tinha de
esperar, repensava na Laura, filha do Timberto, do
Saco-do-Mato; e na Teresinha e na Joana Joaninha,
do arraial; e em todas. A~prazer~deque nao queria
deixar de pensar tambem na Maria Melissa, do
Cuba, por causa do Iva ele sentia uma qualidade
de remorso; descontente com isso, do Iva mesmo
era que entao comec;:ava quase a ter raiva. Andava,
d "M ' , I' P' S I'an ava. ~,,- as voce e gera ista, e ... , ua terra, a,
. 'b ' b ll "" U I Poi .eu VI, e em que e oa... - rna osga.. DIS val
p'ra lit,voce ... Pra ver como e que 0 sertao e pai de
born ... ""~--A bern, falei por falar. Azanga comigo
nao, Pe..."Ate escarrnentava a paciencia cia gente,
o RECAllO DO MORRO 79
aquele lazer do Ivo. Ao que tinha interesse nenhum,
de cabimento, aqucla andacao, para deletrear ao seo
Alquiste os recantos do rio das Velhas. Poetagem.
o trivial estava indo, sem pior; mas 0 que havia eraque a vida toda se retardava.
Ao em seguimento disso, so na sexta-Ieira de
tardinha foi que chegaram no arraial, terminada a
viajacao. Aquela hora mesma, Pedro Orosio e olvo
tocaram suas pagas e agrados 0 gratisdado, em
boas ccdulas. "Gastar atoa, nao gasto. Ebaixo! Nemfroi "P I "A'entro em rOJoca ... -- ec I'O se constou. - m~
da, olha, amanha de noite e a festa, oe? Melhor a
gente ir junto, em az. Viro, venho te buscar ... " 0
I di A "U . "A' P I 0"vo ISpOS. ----- ai, ara... 1, ec ro rosie passou
para a casa de seo Tolendal, que tinha venda. A de
satisfez 0 resto de umas dividas, 0 restante Ihe pediu
que guardasse. Cobre seu, nao-ve, era para bern-
baratar no justo e certo. E seo Tolendal homem
entendido em confianca e inteligencia mandou
arrumar uma cama para 0 Pedro repousar aquela
noite. Dormiu em born colchao com lencol e colcha,
em cima do balcao.
E Iaz e acontece que, sabado, de manha, cedinho
ate demais, 0 povo todo morador naquela rua prin-
cipal teve de se acordar debaixo duma continuacao
80 JOAO GU1MARAES ROSA
de gritos grados, que nao achavam suspensao. Pedro
Orosio se levantou, abriu em fresta a porta da venda.
Que viu? Era 0 homem doido - aquele Nomine-
domino! Em bern que ele accra estava vestido deb '
algum jeito. E tinKa enrolado uma ruma de panos
em cada pe, em guisa de servir de calcado: aquilo
parecia 0 sujeito pisando poeira enliado em dois
travesscirocs, frouxoso. Estafermo mesmo assim ,arava 0 passo, pernas tantas, ate cada lim da rua, e
retornava, estroso, ardente, cachorro cacado, sete
fOlegos. Abria peito: -- ".,.1': a Voz e Verbo ...I': a Voz e 0 Verbo ... Arreunam, todos, e me escu-tern, que Iim-do-mundo esta pendurando! Siso,que minha predica e curta, tenho que muito ir e
converter ... "
Da casa-de-venda do Hor, do outra lado da
esquina, urn moco cometa se chegava it janela et ",r 1\ I C . , ,pergun ava:- voce e nsto,mesmo,ouesoJoao
Batista? .. "
E 0 vira-rnundo malucal, que ja ia se afastado, se
revirau, rente, por sobre 0 deseompasso de suas altas
pernas, que nem umas andas, e levantou os braces,
bern escancarados - feito precisasse de escorar a
queda do ceu. E deu exclama:
- Bendito 0 que vern in nomine Domine! ...
o RECADO DO MORRO 8!
Se via que ele estava no ultimo ponto de escar-
nado, escaveirado, 0 sol queimara aquela cara, de
descascar pe1e. Mas perdera a gaforina devia
de tel' pedido a alguem para the rapar a cabeca. E
os olhos frechavam, resumo de brasas. Dava pena.
De segura, teria terminado 0 traquejo de jejum e
rezas no malhador de gada do raso do Modestim, e
nem esperara por mais nada, para executar 0 danado
avanco, de deu em deu, em nome de Deus. So podia
ser clue tivesse navegado a madrugada inteira, para
vir chegar agora a esta hora. Em algum sitio podia
ser que tivessem dado a ele urn cafe?
_ ... Sua pergunta e do rago da Fe, e nao da
carne, nao, moco, 0 senhor e homem gentil, tern ga~
lardaol Tem galardao ... Mas eu sou 0 zerinho zero,
malemal uma humilde criatura do Senhor: eu nem
sou aVoz... Vinde, povo: senvergonhas, pecadores,
homens e mulheres, todos. Todos eu amo, vim pOl'
vosso service, Deus enviou pOl' mim, ele requer
o vosso remimento, Dele tenho 0 praz~me. Olha 0
aviso: evem 0 lim do mundo, em fOgo, fOgo e fogo!
o mundo ja comecou a se aeabar, e vos semprandona safadeza, na goiosa! Contraforma! Contraforma!
Olha 0 enquanto-e-ternpo ... Vamos, vamos: p'r' a
igreja! Todos me acompanhem. Aqui-del-papa!
Aquidel ~presidente!
Desabalou de vez, olho da rua a longe, quase cor-
rendo, feito pulando rego, tinha de alargar tambem
as pernas - aqueIes rolos de pano nos pes dele foi-
cavam por~ao de poeira, Por urn vago, a gente estre-
mecia, salteado delaflecho comandante daquela voz,
que instava calafrios: quase que se ia acreditando. As
mulheres se benziam. Ai ja havia pessoas em pra~a
- .. - pois era vespera de festa, 0 arraial se apostava
com limpezas e arcos embandcirinhados, estando
cheio de Iorasteiros; por maior, pretos. Outros, que
acordaram com a latomia do Nominedomine em seu
ir e desvir, durado em mais de quarto-de-hora, ja
tinham vestido roupa, e saiam como publico. Que
era que deviam de fazer? Ir chamar os frades? 0
doido, direto para a igreja do Rosario, era capaz de
obrar muitos desatinos. Devia-sc de ir para lao Pedro
Orosio tambem ja estava pronto, lora de portas.
AqueIe dia-de-sabado principiava bern.
E de repente 0 sino do Rosario se tangeu _. col
a col, cantaro!' Ah, quem batia, sabia: tantoava em
repique e repinico, muito claro no bimbalho. Mas,
foi logo a forte, dez maos peIo badalo, pegou a be-
delengar a torto, dla e dlem, parecia querer romper
de vez a forma de seu caroco dele. Virgem! -- 0
Norninedomine tinha alcancado de chegar atorre,
O RECADO DO MORRO 83
a igreja estava entregue aos mascaras, carecia de 0
pessoal todo do arraial correr para lao 0 homem
dava rebate, rebimbo, dobra que redobrava, a tal.
Depois, perdia quajquer estilo. Era so aquela furia:
dladlava, dlandoava, 0 sino tambem