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O RETORNO DE

SHERLOCK

HOLMES

Arthur Conan Doyle

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ÍndiceA casa vazia ......................................................... 3

O construtor de Norwood ................................ 17

Os dançarinos ................................................... 33

O ciclista solitário ............................................. 51

A Escola do Priorado......................................... 65

Black Peter ........................................................ 87

Charles Augustus Milverton ........................... 102

Os seis bustos de Napoleão ........................... 113

Os três estudantes .......................................... 127

O pincenê dourado ........................................ 139

O atleta desaparecido .................................... 154

Abbey Grange ................................................. 168

A segunda mancha ......................................... 183

O Autor e Sua Obra ................................. 200

Compilado por

Roberto B. Cappelletti

Setembro, 2005

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A CASA VAZIAFoi na primavera do ano de 1894 que toda a Londres estava interessada e o mundo espantado pelo

assassinato do honorável Ronald Adair, sob as circunstâncias mais incomuns e inexplicáveis. O público játinha conhecimento de algumas particularidades desse crime que exorbitou da investigação policial, masuma boa parte naquela ocasião foi suprimida, pois o caso para a acusação era tão consistente que não havianecessidade de apresentar todos os fatos. Só agora – passados quase dez anos – é que eu me permitireconstituir esses elos que compõem o todo daquela notável cadeia. O crime por si mesmo era de interesse,mas tal interesse para mim nada significava quando comparado à inconcebível conseqüência que meproporcionou maior choque e surpresa que qualquer outro evento da minha vida de aventuras. Mesmoagora, decorrido esse longo intervalo, ainda me emociono quando penso nisso, sentindo mais uma vezaquele súbito transbordamento de alegria, assombro e incredulidade submergir totalmente a minha mente.Deixe-me solicitar àquele público (que demonstrou algum interesse nos rápidos vislumbres que euocasionalmente lhes proporcionei quanto aos pensamentos e ações de um homem muito notável) que elesnão me culpem se não compartilhei o meu conhecimento – porque eu deveria ter considerado o meuprimeiro dever fazê-lo – não obstante tenha sido impedido por uma proibição específica dos próprios lábiosdele, a qual só foi retirada no início do mês passado.

Pode-se imaginar que o meu contato íntimo com Sherlock Holmes tenha me interessado profundamentepelo crime e que depois do seu desaparecimento eu jamais tenha deixado de ler cuidadosamente os váriosproblemas que se apresentavam diante do público. Tenho sempre tentado – por mais de uma vez e para aminha própria satisfação pessoal – empregar os métodos dele em sua solução, embora com resultadosmedíocres. Contudo, não houve nenhum que tenha atraído tanto a minha atenção quanto essa tragédia deRonald Adair. Conforme li nas evidências do inquérito (que levou a um veredicto de homicídio premeditadocontra alguma pessoa ou pessoas desconhecidas), percebi mais claramente o significado da perda da comu-nidade com a morte de Sherlock Holmes. Havia pontos sobre esse estranho caso que, eu estava seguro,teriam interessado especialmente a ele, e os esforços da polícia certamente teriam sido completados, oumais provavelmente antecipados, pela observação treinada e a mente alerta do primeiro agente criminal naEuropa. Todos os dias eu andava em círculos; revirei o caso em minha mente e não encontrei nenhumaexplicação que me pareceu adequada. Sob pena de contar a mesma história duas vezes, recapitularei osfatos como eles foram revelados ao público por ocasião da conclusão do inquérito.

O honorável Ronald Adair era o segundo filho do Conde de Maynooth, governador de uma das colôniasaustralianas naquela época. A mãe de Adair havia retornado da Austrália para submeter-se a uma operaçãode catarata, e ela, seu filho Ronald e sua filha Hilda estavam morando juntos no 427 da Park Lane. Os jovensvoltaram-se para a melhor sociedade – não tinham, até onde se podia saber, nenhum inimigo e nenhum vícioem particular. O rapaz ficara noivo da Senhorita Edith Woodley, de Carstairs, mas o compromisso forarompido por consentimento mútuo alguns meses antes, e não havia nenhum sinal de que qualquer senti-mento muito profundo tenha sido deixado para trás. Assim, pelo resto a vida {sic} o rapaz se deslocou paraum círculo estreito e convencional, pois era de hábitos tranqüilos e de natureza não emotiva. O jovemaristocrata ainda estava nessa vida despreocupada quando sobreveio a morte, da forma mais estranha einesperada, entre as 10 e as 11:20 da noite de 30 de março de 1894.

Ronald Adair era apaixonado pelo jogo de cartas – jogando continuamente, mas nunca de forma que asapostas o prejudicassem. Ele era sócio dos clubes de baralho de Baldwin, Cavendish e Bagatelle. Ficouestabelecido que, no dia de sua morte, depois do jantar, ele tinha jogado uma partida de uíste no últimoclube. Ele também tinha jogado lá pela tarde. O testemunho daqueles que haviam participado do jogo – Sr.Murray, Sir John Hardy e coronel Moran – provou que o jogo era uíste, e que as partidas foram bastante

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equilibradas. Adair podia ter perdido umas cinco libras, não mais. A fortuna dele era considerável, e tal perdanão poderia de forma alguma afetá-lo. Ele havia jogado quase diariamente em um ou outro clube, mas eraum jogador cauteloso, e normalmente vencia. Fora evidenciado que, de parceria com o coronel Moran, eletinha de fato ganho até quatrocentos e vinte libras numa única sessão, algumas semanas antes, da duplaformada por Godfrey Milner e Lord Balmoral. Isto é tudo de sua história recente que surgiu no inquérito.

Na noite do crime ele voltou do clube exatamente às dez. A mãe e a irmã estavam fora, passando a noitecom um parente. A criada depôs que o ouviu entrar no quarto da frente do segundo andar, geralmenteutilizado por ele como sala de estar. Ela havia acendido o fogo na lareira e a fumaça fez com que abrisse ajanela. Nenhum som foi ouvido do quarto até as onze e vinte, hora do retorno da senhora Maynooth e suafilha. Desejando dizer boa-noite, ela tentou entrar no quarto do filho. A porta fora fechada por dentro enenhuma resposta foi obtida aos seus gritos e batidas. Elas obtiveram ajuda e a porta foi forçada. O joveminfeliz foi localizado próximo da mesa. Sua cabeça tinha sido horrivelmente mutilada por uma bala de revólver,mas nenhuma arma de qualquer tipo foi encontrada no quarto. Na mesa havia duas notas de dez libras edezessete libras (dez em prata e ouro); o dinheiro fora disposto em pequenas pilhas de quantias variadas.Havia também algumas figuras em uma folha de papel, com os nomes de alguns amigos do clube – adversáriosdele –, pelos quais se conjeturou que antes de sua morte ele estava empenhado em organizar suas perdas ouganhos nas cartas.

Um exame minucioso das circunstâncias serviu apenas para tornar o caso mais complexo. Em primeirolugar, não podia haver nenhuma razão satisfatória para que o jovem trancasse a porta por dentro. Havia apossibilidade de que o assassino o tivesse feito e depois escapado pela janela. Contudo, o desnível era depelo menos vinte pés, e um leito de açafrões floridos estendia-se completamente abaixo da janela. Nem asflores nem a terra exibiam qualquer sinal de distúrbio, nem haviaqualquer marca na estreita faixa de grama que separa a casa daestrada. Então, aparentemente, fora o próprio jovem quem haviatrancado a porta. Mas como ocorreu a sua morte? Ninguémpoderia ter escalado a janela sem deixar rastros. Supondo-se queum homem tenha atirado através da janela, seria realmentenotório que um tiro de revólver pudesse infligir uma ferida tãomortal. Por outro lado, Park Lane é uma rua movimentada; háum ponto de táxi a cem jardas da casa. Ninguém tinha ouvido otiro. E permanecia o homem morto e a bala de revólver quehavia explodido violentamente, assim provocando uma feridaque deve ter causado morte instantânea. Tais eram ascircunstâncias do Mistério de Park Lane, que posteriormenteseria complicado pela completa ausência de motivos. Como eujá disse, o jovem Adair não tinha qualquer inimigo conhecido, enenhuma tentativa tinha sido feita para remover o dinheiro ouas preciosidades do quarto.

Revirei diariamente estes fatos em minha mente, esforçando-me para estabelecer alguma teoria que pudesse reuni-los todose encontrar aquela linha de menor resistência que o meu pobreamigo havia afirmado ser o ponto de partida de toda investigação.Confesso que fiz poucos progressos. À tarde fui passear peloParque e por volta das seis horas encontrava-me no fim da OxfordStreet, próximo à Park Lane. Um grupo de desocupados na calçada,

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todos voltados para uma janela específica, orientaram-me para a casa que eu tinha vindo observar. Umhomem alto, magro, com óculos de lentes coloridas – que eu suspeitei fortemente fosse um detetive àpaisana – estava propondo alguma teoria própria, enquanto outros aglomeravam-se em volta para escutar oque ele dizia. Eu me aproximei o tanto quanto pude, mas as observações dele me pareceram tão absurdasque eu novamente me afastei, um pouco desapontado. Assim fazendo, choquei-me contra um ancião, umhomem deformado que tinha estado atrás de mim, e derrubei vários livros que ele levava. Lembro-me deque quando os recolhi, observei o título de um deles: A ORIGEM DA ADORAÇÃO DA ÁRVORE, e mesurpreendeu que o camarada fosse algum bibliófilo pobre que, como negócio ou passatempo, se dedicasseà coleta de volumes obscuros. Esforcei-me para me desculpar pelo acidente, mas era óbvio que aqueleslivros que eu tinha tão desastradamente maltratado eram objetos muito preciosos aos olhos do seu dono.Com um rosnado de desprezo ele virou sobre os calcanhares e eu vi o seu dorso curvo e os seus bigodesbrancos desaparecem no meio da multidão.

Minhas observações no 427 da Park Lane pouco fizeram para esclarecer o problema no qual eu estavainteressado. A casa era separada da rua por um muro baixo com cerca, totalizando não mais de cinco pés dealtura. Assim, era muito fácil qualquer um penetrar no jardim, mas a janela era completamente inacessível,desde que não havia nenhum barril ou qualquer outra coisa que pudesse ajudar o homem mais ativo aescalá-la. Mais confuso do que já estava, retornei meus passos a Kensington. Não fazia cinco minutos queestava em meu escritório quando a empregada entrou para dizer que uma pessoa desejava ver-me. Paraminha perplexidade, não era outro senão o meu velho e estranho coletor de livros, com sua face perspicaz eenrugada espiando de uma armação de cabelos brancos, e seus preciosos volumes – pelo menos uma dúziadeles – apertados sob o braço direito.

– Você está surpreso de me ver, senhor, – disse ele, numa voz esquisita como um coaxar.Eu reconheci que eu estava.

– Bem, eu tenho consciência, senhor, equando tive a oportunidade de vê-lo entrarnesta casa ao vir mancando atrás de si,pensei comigo mesmo: apenas entrarei everei aquele cavalheiro para lhe dizer queeu fui um pouco áspero nas minhasmaneiras onde não havia nenhum prejuízoimplicado, e que estou muito agradecidoa ele por apanhar os meus livros.

– Você faz caso de uma ninharia, – eudisse. – Posso perguntar como soubequem eu era?

– Bem, senhor, se não for tomar umaexcessiva liberdade, sou um vizinho seu,pois encontrará a minha pequena livraria naesquina da Church Street, e ficarei muito felizpor vê-lo. Talvez você seja um colecionador,senhor. Aqui estão PÁSSAROS BRITÂNICOS, eCATULLUS, e A GUERRA SANTA – uma pechin-cha, cada um deles. Com apenas cinco volumesvocê poderia preencher aquele espaço na segundaestante. Parece desalinhado, não é mesmo, senhor?

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Eu movi minha cabeça para visualizar o gabinete atrás de mim e quando me virei novamente, SherlockHolmes estava de pé sorrindo para mim por trás da minha mesa de estudo. Eu fiquei de pé e o encareidurante alguns segundos com absoluto assombro; então parece que devo ter desfalecido pela primeira eúltima vez em minha vida. Certamente uma névoa cinzenta girou diante dos meus olhos e, quando clareou,encontrei o meu colarinho desabotoado e senti em meus lábios o gosto posterior de formigamento causadopelo conhaque. Holmes estava dobrado sobre a minha cadeira com o frasco em sua mão.

– Meu caro Watson, – disse a voz bem conhecida, – eu lhe devo mil desculpas. Não tinha idéia de queseria tão afetado.

Eu o agarrei pelos braços.– Holmes! – eu exclamei. – É realmente você? É verdade que está vivo? É possível que teve sucesso

em escalar aquele terrível abismo?– Espere um momento, – disse ele. – Está realmente seguro de estar pronto para discutir essas coisas?

Eu provoquei um sério choque com minha reaparição desnecessariamente dramática.– Estou certo; entretanto, Holmes, quase não posso acreditar em meus olhos. Céus! pensar que você

– você entre todos os homens – poderia estar aqui em meu escritório.Novamente o agarrei pela manga e senti o braço magro e musculoso por baixo dela.

– Bem, de qualquer forma, você não é um espírito, – eu disse. – Meu velho amigo, estou encantado devê-lo. Sente-se e me conte como saiu vivo daquele terrível precipício.

Ele sentou-se diante de mim e acendeu um cigarro da antiga maneira indiferente. Ainda estava vestidocom a indigente sobrecasaca do comerciante de livros, mas o resto daquele indivíduo fora colocado numapilha de cabelos brancos e livros velhos sobre a mesa. Holmes parecia até mais magro e incisivo que o velho,mas havia uma palidez mortal em sua face aquilina que me falou que a sua vida recente não tinha sido muitosaudável.

– Estou satisfeito em me esticar, Watson, – disse ele. – Não é nada engraçado quando um homem altotem de reduzir um pé de sua estatura durante várias horas seguidas. Agora, meu caro companheiro,em matéria dessas explicações, nós temos, se eu posso solicitar a sua cooperação, o trabalho deuma noite dura e perigosa pela frente. Talvez fosse melhor se eu lhe desse um relato completo detoda a situação quando aquele trabalho for terminado.

– Eu estou cheio de curiosidade. Prefiro muito ouvi-lo agora.– Você virá comigo à noite?– Quando e onde você desejar.– Isto é realmente como nos velhos tempos. Teremos tempo suficiente para um bom jantar antes de

precisarmos partir. Bem, então, sobre aquele precipício. Eu não tive nenhuma dificuldade séria parasair dele, pela muito simples razão de que eu nunca estive nele.

– Você nunca esteve nele?– Não, Watson, eu nunca estive nele. O recado que lhe enviei era absolutamente genuíno. Eu tinha

poucas dúvidas de que havia encerrado a minha carreira quando percebi a figura algo sinistra dorecém-falecido professor Moriarty subindo o caminho estreito que conduzia à segurança. Eu li umpropósito inexorável em seus olhos acinzentados. Troquei algumas observações com ele e entãoobtive a sua permissão cortês para escrever a curta nota que você depois recebeu. Deixei o recadocom a minha cigarreira e a minha bengala e prossegui pelo caminho, com Moriarty ainda em meuscalcanhares. Quando cheguei ao final, fiquei de pé à distância. Ele não sacou nenhuma arma, masinvestiu contra mim e lançou seus longos braços ao meu redor. Ele sabia que seu próprio jogo eraviver e estava apenas ansioso para vingar-se de mim. Nós cambaleamos juntos à beira da cascata.Porém, eu tenho um pouco de conhecimento de baritsu, o sistema japonês de luta que foi me muito

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útil. Eu escapei do seu aperto e ele, comum horrível grito de protesto, esperneouloucamente durante alguns segundos,arranhando o ar com ambas as mãos. Mastodos os seus esforços não puderamdevolver-lhe o equilíbrio e ele se foi. Coma minha face sobre a beirada, eu o vi caipor um longo percurso. Então ele bateunuma pedra em um ressalto e mergulhouna água.

Eu ouvi espantado esta explicação que Holmespronunciou entre as baforadas do seu cigarro.

– Mas os rastros! – eu exclamei. – Eu vi,com meus próprios olhos, que dois des-ceram a trilha e nenhum retornou.

– Foi mais ou menos isto. No momento emque o professor desapareceu, ocorreu-meque uma oportunidade extraordinária erealmente afortunada havia sido colocadaem meu caminho pelo Destino. Eu sabiaque Moriarty não era o único homem que me havia jurado de morte. Havia pelo menos outros trêscujo desejo de vingança contra mim só seria aumentado pela morte do seu líder. Eram todos homensdo tipo mais perigoso. Um ou outro deles certamente me alcançaria. Por outro lado, se todo mundofosse convencido de que eu estava morto, esses homens tomariam liberdades, iriam se descuidar ecedo ou tarde eu poderia destrui-los; então estaria na hora de anunciar que eu ainda estava na terrados viventes. Tão rapidamente o cérebro atuou de que eu acredito que tenha imaginado isto tudoantes do professor Moriarty alcançar o fundo da Queda de Reichenbach.“Eu me levantei e examinei a parede rochosa atrás de mim. Em seu pitoresco relato do assunto, queli com grande interesse alguns meses depois, você afirma que a parede era abrupta. Isso não eraliteralmente verdadeiro. Alguns pequenos pontos de apoio se apresentavam e havia alguma indicaçãode uma saliência. O precipício é tão elevado que escalar tudo era uma impossibilidade óbvia; eraigualmente impossível refazer o meu caminho ao longo da trilha molhada sem deixar alguns rastros.Eu posso, é verdade, inverter as minhas botas, como já fiz em ocasiões semelhantes, mas a visão detrês conjuntos de rastros em uma só direção certamente haveria de sugerir um logro. No geral,então, o melhor que eu poderia fazer era arriscar a subida. Não era uma perspectiva agradável,Watson. A queda rugia abaixo de mim. Eu não sou uma pessoa fantasiosa, mas dou-lhe a minhapalavra que me parecia ouvir a voz de Moriarty gritando comigo das profundezas do abismo. Umengano teria sido fatal. Mais de uma vez, quando os tufos de grama escaparam das minhas mãos ouo meu pé deslizou nos chanfros molhados da pedras, pensei que estava perdido. Mas avanceilutando e afinal alcancei uma saliência de vários pés de largura e coberta por um musgo verde macioonde eu poderia descansar sem ser observado, no mais perfeito conforto. Eu estava lá estiradoquando você, meu caro Watson, e todos os seus seguidores investigavam as circunstâncias daminha morte da maneira mais simpática e ineficiente.“Afinal, quando terminou de formular todas as suas conclusões – inevitáveis e totalmente errôneas–, você partiu para o hotel e eu fiquei sozinho. Eu tinha imaginado que havia chegado ao término

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das minhas aventuras, mas uma ocorrência muito inesperada mostrou-me que ainda existia umasurpreendente reserva para mim. Uma pedra enorme, caindo de cima, passou por mim, atingiu atrilha e saltou para o precipício. Por um momento pensei que fosse um acidente mas um poucodepois, observando melhor, vi a cabeça de um homem contra o céu escurecido e outra pedra bateuna mesma borda em que eu estava deitado, a cerca de um pé da minha cabeça. O significado dissoera evidente: Moriarty não estava só. Um correligionário – talvez até aquele mensageiro que mesmode relance eu percebi que era um perigoso cúmplice – tinha mantido guarda enquanto o professorme atacava. De longe, fora da minha visão, ele podia ter testemunhado a morte do amigo e a minhafuga. Ele esperou e então, dando a volta por trás até o topo do precipício, empenhou-se em obtersucesso onde o seu camarada havia fracassado.“Eu não demorei muito pensando nisso, Watson. Novamente vi aquela face de olhar severo sobre oprecipício e soube que era o prenúncio de mais uma pedra. Então saltei para o caminho abaixo demim – não pensei que pudesse fazer isso a sangue frio: era cem vezes mais difícil que subir. Masnão tive tempo para pensar no perigo, porque outra pedra sibilou adiante de mim assim que alcanceia extremidade da borda com as mãos. Então escorreguei até a metade do caminho abaixo mim,mas, pela graça de Deus, embora ferido e sangrando, pousei no chão. Virei sobre os meus calcanhares,fiz dez milhas sobre as montanhas na escuridão e, uma semana depois, encontrava-me em Florença,seguro que ninguém no mundo sabia o que me acontecera.“Tive apenas um confidente – meu irmão Mycroft. Eu lhe devo muitas desculpas, meu caro Watson,mas era de vital importância que você pensasse que eu estava morto, e é bastante certo que vocênão teria escrito uma história tão convincente dando conta do meu trágico fim se não imaginasseque era verdade. Durante os últimos três anos, por diversas vezes eu peguei a caneta para lheescrever, mas sempre temi que a sua consideração afetuosa por mim haveria de levá-lo a cometeralguma indiscrição que trairia o meu segredo. Foi por essa razão que fugi hoje à tarde, quando vocêderrubou os meus livros, porque na ocasião eu estava em perigo e qualquer exibição de surpresa ouemoção de sua parte poderia ter chamado a atenção para a minha identidade e conduzido aosresultados mais deploráveis e irreparáveis. Quanto a Mycroft, precisei contar com ele para obter odinheiro de que necessitava. Os eventos em Londres não correram tão bem como eu esperava, poiso julgamento da quadrilha de Moriarty deixou em liberdade dois dos seus membros mais perigosos,justamente os meus inimigos mais vingativos. Eu viajei durante dois anos pelo Tibete, diverti-mevisitando Lhassa e passei alguns dias com o lama principal. Você pode ter lido sobre as notáveisexplorações de um norueguês chamado Sigerson, mas estou seguro que nunca lhe ocorreu estarrecebendo notícias deste seu amigo. Eu então atravessei a Pérsia, dei uma rápida olhada em Meca efiz uma visita curta mas interessante ao califa em Kartum, cujos resultados comuniquei ao ForeignOffice. Retornando à Europa, gastei alguns meses em uma pesquisa sobre os derivados do alcatrão,realizada num laboratório de Montpellier, no sul da França. Tendo concluído satisfatoriamente essaminha pesquisa e informado que apenas um dos meus inimigos permanecia agora em Londres,estava a ponto de voltar quando os meus movimentos foram apressados pela divulgação desseextraordinariamente notável mistério de Park Lane, que me atraiu não apenas por seus méritospróprios, mas também parecia oferecer algumas oportunidades pessoais muito peculiares. Vimimediatamente para Londres, chamei o meu pessoal à Baker Street, deixei a sra. Hudson numaviolenta crise histérica e vi que Mycroft tinha preservado os meus aposentos e papéis exatamentecomo estavam antes. Assim é, meu caro Watson, que às duas horas desta tarde eu me encontravana minha velha poltrona, em meu próprio velho quarto, desejando apenas poder ver o meu velhoamigo Watson na outra poltrona, que ele tão freqüentemente tem adornado”.

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Tal foi a narrativa impressionante que ouvi naquela noite de abril – uma narrativa que teria sido totalmenteincrível para mim, não fosse confirmada pela visão da figura alta e magra, de semblante incisivo e impetuoso,que eu jamais havia imaginado ver novamente. De alguma forma ele havia sentido o pesar da minha própriaperda e a sua solidariedade foi demonstrada mais pelas maneiras do que pelas palavras. ‘O trabalho é omelhor antídoto para a tristeza, meu caro Watson,’ ele disse, ‘e eu tenho um pouco de trabalho para nós doisesta noite; se pudermos levá-lo a uma conclusão satisfatória, por si mesmo justificará a vida de um homemneste planeta’. Em vão eu lhe implorei que me contasse mais. ‘Antes de amanhã você mesmo verá e ouviráo suficiente’, ele respondeu. ‘Nós temos três anos do passado para pôr em dia. Basta disso até as nove emeia, quando daremos início à notável aventura da casa vazia’.

Foi realmente como nos velhos tempos quando àquela hora eu me encontrei sentado ao lado dele emuma charrete, com o meu revólver no bolso e a emoção da aventura em meu coração. Holmes estava frio,áspero e silencioso. Quando as lâmpadas da rua lhe iluminaram as feições austeras, percebi seus lábiosfinos comprimidos e suas sobrancelhas arqueadas em profunda reflexão. Eu não sabia qual era a bestaselvagem que estávamos a ponto de caçar pelas selvas escuras da Londres criminosa, mas estava bemseguro da capacidade deste caçador-mestre e que a aventura seria das mais sérias – enquanto o sorrisosardônico que ocasionalmente penetrava a sua melancolia ascética pressagiava pouca coisa boa para oobjeto de nossa busca.

Eu tinha imaginado que estávamos em direção à Baker Street, mas Holmes parou o táxi na esquina deCavendish Square. Observei que assim que partiu ele olhou mais atentamente à direita e à esquerda, e acada cruzamento de rua subseqüente ele tomou extremo cuidado para certificar-se de não estar sendoseguido. A nossa rota foi deveras singular. Era extraordinário o conhecimento de Holmes dos caminhossecretos de Londres e nessa ocasião ele passou rápida e seguramente por uma rede de atalhos e estábulosde cuja existência eu sequer suspeitava. Afinal emergimos numa pequena estrada em que se alinhavamcasas velhas e escuras, levando-nos da Manchester Street à Blandford Street. Aqui ele virou rapidamentenuma passagem estreita, ultrapassou um portão de madeira num pátio deserto e então abriu a porta dosfundos de uma casa com uma chave. Entramos juntos e ele fechou a porta atrás de nós.

O lugar estava às escuras, mas para mim era evidente que se tratava de uma casa vazia. Nossos pésrangeram e estalaram sobre o entabuamento nu, e minha mão estendida tocou numa parede da qual o papelse desprendia em tiras. Os dedos frios e delgados de Holmes fecharam-se em torno do meu pulso e meconduziram adiante por um longo corredor, até que eu divisei vagamente a clarabóia escura em cima de umaporta. Holmes virou-se repentinamente à direita e nos encontramos em um quarto grande, quadrado evazio, bastante sombreado nos cantos mas cujo centro era fracamente iluminado pelas luzes da rua. Nãohavia nenhuma lâmpada nas proximidades e a janela tinha uma grossa camada de pó, de forma que somentepodíamos discernir um ao outro no interior. Meu companheiro pôs a sua mão em meu ombro e os lábiosperto da minha orelha.

– Você sabe onde estamos? – ele sussurrou.– Essa é a Baker Street, seguramente – eu respondi, enquanto olhava pela janela escura.– Exatamente. Estamos em Camden House, que fica no lado oposto aos nossos antigos apartamentos.– Mas por que estamos aqui?– Porque dá uma excelente vista daquele pitoresco conjunto. Eu poderia aborrecê-lo, meu caro Watson,

pedindo-lhe para vir um pouco mais perto da janela, mas tomando toda a precaução para não semostrar, e então olhar para os nossos velhos quartos – o ponto de partida de tantos dos seuspequenos contos de fadas? Veremos se os meus três anos de ausência anularam completamente omeu poder de surpreendê-lo.

Eu rastejei para a frente e espiei a janela familiar. Assim que olhei, dei um suspiro e um grito de espanto.

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A cortina estava fechada e uma luz intensa iluminava o aposento.A sombra de um homem que estava sentado em uma cadeirafoi lançada na tela iluminada da janela. Não havia nenhumengano quanto à posição da cabeça, os ombros quadrados, aseveridade das características. Sua face estava de perfil e o efeitodisso era de uma dessas silhuetas negras que nossos avósgostavam de moldar. Era uma perfeita reprodução de Holmes.Fiquei tão pasmado que estiquei a minha mão para me certificarque o verdadeiro homem estava se erguendo ao meu lado. Elevibrava num riso silencioso.

– Bem? – disse ele.– Céus! – exclamei. – É maravilhoso.– Creio que a idade não murchou nem envelheceu a

minha infinita variedade, – disse ele, e eu reconheciem sua voz a alegria e prazer do artista que se orgulhada própria criação. – Realmente está bem parecidocomigo, não é?

– Eu estaria pronto para jurar que era você.– O crédito dessa obra é devido ao monsieur Oscar

Meunier, de Grenoble, que gastou alguns dias para fazero modelo. É um busto em cera. O resto eu mesmoorganizei durante a minha visita à Baker Street esta tarde.

– Mas por quê?– Porque, meu caro Watson, eu tive a mais forte razão possível

para desejar que determinadas pessoas pensassem que eu estavalá, quando realmente estava em outro lugar.

– E você acha que os quartos estão sendo vigiados?– Eu sei que estão sendo vigiados.– Por quem?– Por meus velhos inimigos, Watson. Pela encantadora sociedade cujo líder jaz em Reichenbach.

Você deve recordar que eles sabiam – e só eles sabiam – que eu ainda estava vivo. Eles acreditavamque cedo ou tarde eu haveria voltar para o meu apartamento, vigiaram-no continuamente e estamanhã me viram chegar.

– Como você sabe?– Porque eu reconheci a sentinela deles quando olhei pela janela. Ele é um elemento bastante inofensivo

daquela confraria, de nome Parker, um estrangulador de ofício e artista notável na harpa judia. Eunão queria nada com ele e sim com uma pessoa muito mais formidável que estava por trás dele, oamigo do peito de Moriarty, o homem que atirou aquelas pedras de cima do precipício, o criminosomais esperto e perigoso de Londres. Esse é o homem que está em meu encalço esta noite, Watson;esse é o homem desavisado que procuramos.

Os planos do meu amigo estavam se revelando gradualmente. Deste retiro conveniente, estávamos vigiandoe localizando os perseguidores. Aquela sombra angular acima de nós era a isca e nós os caçadores. Levantamo-nos juntos e em silêncio no escuro para observar as figuras apressadas que passavam diante de nós. Holmesestava calado e imóvel, mas tenho certeza que ele estava sutilmente alerta, com os seus olhos atentamentefixos no fluxo de transeuntes. Era uma noite gélida e turbulenta e um vento assobiava e guinchava ao longo

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da rua. Muitas pessoas se deslocavam para lá e para cá, a maioria bem abrigada em seus casacos e cachecóis.Algumas vezes me pareceu ter visto a mesma figura antes; notei especialmente dois homens, a uma certadistância rua acima, que pareciam estar se abrigando do vento na entrada de uma casa. Tentei chamar aatenção do meu companheiro para eles, mas Holmes fez um gesto de impaciência e continuou observandoa rua. Mais de uma vez ele se mostrou inquieto, batendo rapidamente com os pés e os dedos na parede. Eraevidente que ele estava ficando intranqüilo e que os seus planos não estavam saindo exatamente como eleesperava. Afinal, com a aproximação da meia-noite, a rua foi gradualmente esvaziando e ele passou a andarpelo quarto, para cima e para baixo, numa agitação incontrolável. Eu estava a ponto de lhe fazer algumaobservação quando elevei os meus olhos à janela iluminada e novamente experimentei uma surpresa quasetão grande quanto a anterior. Eu apertei o braço de Holmes e apontei para cima.

– A sombra se moveu! – eu exclamei.Realmente, a silhueta não mais estava de perfil; agora a sua parte traseira estava voltada para nós.Certamente esses três anos não haviam alisado as asperezas do seu temperamento ou a sua impaciência

com uma inteligência menos ativa que a dele.– Claro que se moveu –, disse ele. – Eu sou de uma negligência tão ridícula, Watson, que haveria de

erguer um boneco imóvel e esperar que alguns dos homens mais atilados da Europa fossem enganadospor ele? Nestas duas horas em que estivemos aqui a sra. Hudson fez algumas mudanças sutisnaquela figura oito vezes, ou uma vez a cada quinze minutos. Ela trabalha pela frente, de forma quea sua sombra nunca pode ser vista. Ah! – Ele aspirou de forma estridente, entusiasmada.

Sob a tênue iluminação eu vi a sua cabeça lançada para a frente, numa atitude rígida de completa atenção.A rua estava absolutamente deserta. Aqueles dois homens ainda poderiam estar ocultos na entrada, mas eujá não podia vê-los. Tudo permanecia escuro, exceto por aquela tela amarela e brilhante à nossa frente, coma figura negra estampada em seu centro. No silêncio absoluto eu ouvi novamente aquela nota aguda esibilante que vibrou em mim com excitação intensa e contida. Um instantedepois ele me puxou para o canto mais escuro do quarto e eu senti a suamão de advertência em meus lábios. Os dedos que me apertaram estavamtremendo. Jamais vira o meu amigo em maior comoção, e a superfície darua ainda permanecia escura, deserta e imóvel diante de nós.

Mas eu repentinamente percebi o que os sentidos mais agudos deHolmes já tinham distinguido. Um som baixo, furtivo chegou aos meusouvidos, não da direção da Baker Street, mas da parte de trás damesma casa em que nos encontrávamos escondidos. Uma portaabriu e fechou; logo a seguir alguns passos se arrastaram pelocorredor – passos silenciosos, mas que reverberaram severamentepela casa vazia. Holmes abaixou-se contra a parede atrás dele eeu fiz o mesmo, levando minha mão à coronha do revólver.Investigando através da escuridão, vi o vago esboço de umhomem, uma sombra ainda mais negra que a escuridão da portaaberta. Ele parou por um momento e então rastejou adiante,ameaçador, entrando no quarto abaixado. A figura sinistra estavaa cerca de três jardas de nós e eu me preparei para pular sobre eleantes de perceber que ele não tinha nenhuma idéia da nossapresença. O vulto passou muito perto de nós, subiu furtivamente àjanela e, muito suavemente e sem fazer barulho, abriu-a cerca de quinzecentímetros. Conforme ele passou diante dessa abertura, a luz da rua, já não

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atravessando o vidro sujo, bateu diretamente em seu rosto. O homem parecia estar excitado consigo mesmo.Seus dois olhos brilhavam como estrelas e as suas feições estavam convulsionadas. Era um homem velho,magro, com um nariz adunco, testa alta, calva e um enorme bigode grisalho. Tinha uma cartola empurradapara trás da cabeça e pela abertura do sobretudo vislumbrei a frente da camisa de um traje de gala. Sua faceera magra e morena, marcada por linhas selvagens e profundas. Na mão ele carregava o que parecia ser umbastão, mas quando o colocou no chão, produziu um tinido metálico. Do bolso do sobretudo ele entãoretirou um objeto volumoso e ocupou-se de alguma tarefa que terminou com um estalo alto e agudo, comose uma mola ou pino tivessem sido acionados. Ainda ajoelhado no chão ele dobrou-se para a frente e lançoutodo o seu peso e força em alguma alavanca, em resultado do que produziu um ruído longo, vibrante,opressivo, terminando uma vez mais num ‘clique’ poderoso. Então ele se endireitou e eu pude observar queo que ele tinha nas mãos era uma espécie de arma com um aspecto curiosamente disforme. Ele abriu aculatra do dispositivo, colocou algo dentro e fechou-a novamente. Então, agachando-se, descansou aextremidade da arma no peitoril da janela aberta, e eu vi o seu longo bigode em cima do objeto e os seusolhos perscrutando atentamente em todas asdireções. Ouvi um ligeiro suspiro de satisfaçãoquando ele avistou o surpreendente alvo noaposento à sua frente – a silhueta negra sobre ofundo amarelo –, deixando claro que encontrarao seu objetivo. Por um momento ele ficou rígidoe imóvel; então, seu dedo pressionou o gatilho.Houve um tinido estranho, alto e um silvo longo,seguido do som característico de vidro quebrado.Naquele instante Holmes saltou como um tigresobre o atirador e lançou-o de rosto no chão. Eletentou erguer-se novamente por um momento,mas Holmes agarrou-o pela garganta com umaforça convulsiva e eu o golpeei na cabeça com amira do revólver; ele caiu novamente no chão. Eucaí em cima dele e assim que o segurei, meucamarada soprou um estridente apito de chamada.Houve um ruído de pés correndo no pavimento edois policial uniformizados, com um detetive àpaisana, entraram apressadamente no edifício edepois no quarto.

– É você, Lestrade? – disse Holmes.– Sim, Sr. Holmes. Peguei a tarefa eu

mesmo. É bom vê-lo de volta a Londres,senhor.

– Suponho que você deseja uma pequenauma ajuda não-oficial. Três assassinos não detectados em um ano não o fará, Lestrade. Mas vocêcontrolou o Mistério de Molesey com menos que o seu habitual – quer dizer, você manipulou issobastante bem.

Ficamos todos de pé, com o nosso prisioneiro ofegante entre dois robustos policiais. Na rua em frente,alguns curiosos já começavam a se juntar. Holmes foi até a janela, fechou-a e puxou as cortinas. Lestradetinha trazido duas velas e os policial descobriram as suas lanternas. Afinal pude ter dar uma boa olhada em

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nosso prisioneiro.Uma face extremamente viril e ainda sinistra voltou-se para nós. Com a sobrancelha de um filósofo acima

e a mandíbula de um sensualista abaixo, o homem deve ter nascido com grande capacidade para o bem oupara o mal. Mas ninguém podia fitar aqueles cruéis olhos azuis, as pálpebras lânguidas e cínicas, o narizferoz, agressivo e o ameaçador, ou as sobrancelhas cerradas, sem ler os sinais de perigo mais claros daNatureza. Ele não deu qualquer atenção a nenhum de nós; seus olhos estavam fixos na face de Holmes, comuma expressão na qual estavam igualmente mesclados o ódio e o assombro. – Seu demônio! – ele murmurava.– Seu esperto, demônio inteligente!

– Ah, coronel! – disse Holmes, enquanto arrumava o seu colarinho amarfanhado. – ‘As jornadasterminam em colóquios de amantes’, como diz o antigo adágio. Não acho que tive o prazer em vê-lo desde que você me obsequiou com as suas atenções quando eu estava deitado à beira deReichenbach Fall.

O coronel ainda encarou o meu amigo como um homem em transe.– Você é um demônio esperto, muito esperto! – era tudo o que ele podia dizer.– Eu ainda não o apresentei. – disse Holmes. – Este, cavalheiros, é o coronel Sebastian Moran, que

uma vez foi do Exército de Sua Majestade na Índia, e o melhor perito atirador que o nosso ImpérioOriental alguma vez produziu. Acredito que é correto dizer que o seu escore de tigres ainda não foirivalizado, não é mesmo?

O velho feroz nada disse, mas ainda encarou meu companheiro. Com aqueles olhos selvagens e o bigodeeriçado, ele estava maravilhosamente parecido com um tigre.

– Estou surpreso que o meu estratagema simples tenha ludibriado um shikari tão experiente – disseHolmes. – Isso lhe deve ser muito familiar. Você não amarrou uma criancinha sob uma árvore, ficoude emboscada sobre ela com o seu rifle e esperou que a isca trouxesse o seu tigre? Esta casa vaziaé minha árvore e você é o meu tigre. Você possivelmente teria outras armas de reserva para o casode haver diversos tigres, ou na improvável suposição de que a sua pontaria falhasse. Estas, – eleapontou ao redor, – são as minhas outras armas. O paralelo é perfeito.

O coronel Moran pulou para a frente com umrosnado de ódio, mas os policiais o arrastaram devolta. A fúria em sua face era uma coisa terrível dese ver.

– Confesso que você me fez uma pequenasurpresa, – disse Holmes. – Não antecipeique você mesmo fosse usar esta casavazia e esta vantajosa janela frontal.Imaginei que ia operar da rua, onde o meuamigo Lestrade e seus homens joviaisestavam à sua espera. Com essa únicaexceção, foi tudo como eu calculei.

O coronel Moran voltou-se para o detetiveoficial.

– Você pode ou não ter uma causa justapara me prender, – disse ele, – mas nãopode haver ao menos uma razão para queeu me submeta à zombaria desta pessoa.Se estou nas mãos da lei, deixe que as

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coisas sejam feitas de uma forma legal.– Bem, isso é bastante razoável, – disse Lestrade. – Nada mais tem a dizer antes que partamos, Sr.

Holmes?Holmes havia apanhado a poderosa arma pneumática do chão e estava examinando o seu mecanismo.

– Uma arma admirável e sem igual, – disse ele –, silenciosa e de fantástico poder: eu conheci VonHerder, o escuso mecânico alemão que a construiu por ordem do falecido professor Moriarty. Duranteanos soube da sua existência, mas nunca antes tive a oportunidade de manejá-la. Recomendo-amuito especialmente à sua atenção, Lestrade, bem como as balas que a ela se ajustam.

– Você pode contar conosco para cuidar disso, Sr. Holmes, – disse Lestrade, enquanto o todo sedirigia para a porta. – Mais alguma coisa a dizer?

– Só perguntar de quê você pretende acusá-lo preferencialmente?– Acusação, senhor? É claro que da tentativa de assassinato do Sr. Sherlock Holmes.– Assim não, Lestrade. Eu não pretendo envolver-me no assunto de modo algum. A você, e só a você,

pertence o crédito da notável apreensão que efetuou. Sim, Lestrade, eu o congratulo! Com a suahabitual mistura feliz de astúcia e audácia, você o tem.

– Apreendeu-o! Apreendeu quem, Sr. Holmes?– O homem que toda a força policial tem procurado em vão – o coronel Sebastian Moran, que no dia

trinta do mês passado assassinou o honorável Ronald Adair com uma bala explosiva disparada poruma arma pneumática através da janela aberta da casa n° 427 da Park Lane, quarto da frente dosegundo andar. Essa é a acusação, Lestrade. E agora, Watson, se você puder tolerar a corrente de arde uma janela quebrada, penso que em meia hora poderemos dispor de alguma distração proveitosae de um bom charuto em meu apartamento.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Nossos antigos aposentos tinham permanecido inalterados pela supervisão de Mycroft Holmes e pelos

cuidados imediatos da sra. Hudson. É verdade que assim que entrei eu observei uma desacostumadameticulosidade, mas as antigas marcas estavam todas em seus lugares. Num dos cantos estava o laboratórioquímico com a mesa manchada de ácido, devidamente cobertos. Havia uma estante com uma fila formidávelde álbuns de recorte e livros de referência que muitos dos nossos concidadãos teriam imenso prazer emqueimar. Os diagramas, o estojo do violino, a prateleira de tubos-de-ensaio – até mesmo o chinelo Persa queestocava o tabaco – tudo retornou à minha mente assim que olhei em volta. No quarto havia dois ocupantes– o primeiro era a sra. Hudson, que sorriu para ambos quando entramos –; o segundo era o estranho bonecoque havia desempenhado um papel muito importante nas aventuras daquela noite. Era um fiel modelo domeu amigo em cera colorida, tão admiravelmente elaborado que se podia dizer um fac-símile exato. Eleestava ereto numa mesa com um pequeno pedestal e vestido com um traje velho de Holmes, tão bemdrapejado que a ilusão da rua era absolutamente perfeita.

– Espero que você tenha tomado todas as precauções, sra. Hudson? – disse Holmes.– Eu fui até ele de joelhos, senhor, do modo que você me disse.– Excelente. Você levou a coisa a cabo muito bem. Observou onde foi parar a bala?– Sim, senhor. Tive receio que danificasse o seu bonito busto, mas ela atravessou a cabeça diretamente

e aplainou-se na parede. Eu a recolhi do tapete; aqui está!Holmes colocou-a em minha mão.

– Uma bala de revólver macia, como você pode perceber, Watson. Há gênio nisso, pois quem esperariaencontrar uma coisa assim disparada de uma espingarda de ar comprimido? Tudo bem, sra. Hudson.Agradeço muito por sua ajuda. E agora, Watson, deixe-me vê-lo uma vez mais em sua velha poltrona;há diversos detalhes que eu gostaria de discutir com você.

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Ele tinha se livrado da sobrecasaca indigente e agora voltara a ser o velho Holmes, dentro do robe-de-chambre cor de rato que adotou como efígie.

– Os nervos do velho shikari não perderam a sua firmeza, nem os olhos dele a sua sutileza, – disse ele,com um sorriso, enquanto inspecionava a testa quebrada do busto.

– No exato centro da parte traseira da cabeça e atravessando o cérebro violentamente. Ele foi o melhoratirador da Índia, e espero que haja poucos melhores em Londres. Já tinha ouvido o seu nome?

– Não, nunca ouvi.– Bem, bem; assim é a fama! Mas, então, se me

recordo corretamente, você também não tinhaouvido o nome de professor James Moriarty, quefoi um dos grandes cérebros deste século. Deixe-me apenas alcançar o meu índice de biografias naestante.

Ele virou as páginas indolentemente, inclinadopara trás em sua cadeira e soltando grandesbaforadas do charuto.

– Minha coleção de M’s agora está completa,– disse ele. – O próprio Moriarty ésuficiente para tornar qualquer letrailustre; e aqui está Morgan, o envene-nador; e Merridew, de abominávelmemória; e Mathews, que arrancou omeu canino esquerdo na sala de esperada estação Charing Cross; e, finalmente, eisaqui o nosso amigo desta noite.

Ele me passou o livro e eu li:MORAN, SEBASTIAN, CORONEL.Desempregado. Antigamente do 1º dePioneiros de Bangalore. Nasceu emLondres, em 1840. Filho de Sir Augustus Moran, C. B., uma vez Ministro britânicopara a Pérsia. Educado em Eton e Oxford. Serviu na Campanha de Jowaki, naCampanha afegã e em Charasiab (despachos), Sherpur e Cabul. Autor de JOGOPESADO NO HIMALAIA OCIDENTAL (1881); TRÊS MESES NA SELVA(1884). Endereço: Conduit Street. Clubes: Anglo-Indian, Tankerville, BagatelleCard Club.

Na margem estava anotado, com a mão precisa de Holmes:O segundo homem mais perigoso de Londres.

– Isto é surpreendente, – eu disse, devolvendo-lhe o volume. – A carreira do homem é a de umsoldado honrado.

– É verdade, – respondeu Holmes. – Até um certo ponto ele agiu bem. Sempre foi um homem denervos de aço, e na Índia ainda se conta a história de como ele rastejou por um dreno atrás de umtigre comedor de homens ferido. Há algumas árvores, Watson, que crescem até uma certa altura eentão de repente desenvolvem alguma excentricidade pouco apresentável. Você observará issofreqüentemente em seres humanos. Eu tenho uma teoria de que o indivíduo representa em seudesenvolvimento todo o cortejo dos seus antepassados, e aquela tal volta súbita para o bem ou para

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o mal deve-se atribuir a uma determinada influência poderosa que penetrou na linha da sua genealogia.A pessoa se torna, assim, o epítome da história de sua própria família.

– É certamente bastante fantástico.– Bem, eu não insisto nisto. Seja qual for a causa, o coronel Moran tornou-se difícil de apanhar. Ele

se aposentou, veio novamente para Londres e adquiriu um renome maldito. Nesse momento elefoi procurado pelo professor Moriarty, de quem tornou-se o braço direito durante algum tempo.Moriarty o abasteceu liberalmente com dinheiro e só o empregou em um ou dois trabalhosrealmente de alta classe, que nenhum criminoso ordinário poderia ter empreendido. Você podeter alguma recordação da morte da sra. Stewart, de Lauder, em 1887. Não? Bem, estou seguro queMoran estava por trás disso, mas nada pôde ser provado. Tão hábil era o coronel em dissimularque até mesmo quando a gangue de Moriarty foi desbaratada, nós não pudemos incriminá-lo.Você se lembra que naquela ocasião, quando o visitei em seu apartamento, eu fechei as venezianasde medo das armas pneumáticas? Sem nenhuma dúvida você me julgou extravagante. Eu sabiaexatamente o que estava fazendo, porque soube da existência dessa arma notável, e tambémsabia que os melhores atiradores no mundo estariam por trás dela. Quando estávamos na Suíçafomos perseguidos por Moriarty, e foi sem dúvida ele quem me concedeu aqueles desafortunadoscinco minutos na borda de Reichenbach.“Você pode imaginar que eu lia os jornais com uma certa atenção durante a minha curta estada naFrança, procurando qualquer oportunidade de me pôr nos calcanhares dele. Enquanto ele estivesselivre em Londres, minha vida realmente não teria valor algum. Noite e dia aquela sombra pairousobre mim, e cedo ou tarde a chance dele surgiria. O que eu poderia fazer? Não pude mantê-lo sobvigilância, pois estaria me expondo. Não havia nenhuma vantagem em atrair um magistrado. Elesnão podiam interferir em virtude do que lhes pareceria uma suspeita desvairada. Assim, nada podiafazer. Mas eu acompanhei as notícias criminais, sabendo que cedo ou tarde haveria de pegá-lo.Então veio a morte desse Ronald Adair; afinal chegava a minha oportunidade. Sabendo o que eusabia, não era evidente que o coronel Moran tinha cometido aquele crime? Ele tinha jogado cartascom o rapaz, seguiu-o do clube até em casa e atirou nele através da janela aberta. Desses eventosnão havia qualquer dúvida. Somente as balas já constituíam evidência bastante para pôr a cabeçadele em um laço. Eu vim imediatamente e fui visto pela sentinela que, estava certo, voltaria a atençãodo coronel para a minha presença. Ele ligou o meu súbito retorno ao seu crime e ficou terrivelmentealarmado. Eu estava seguro de que ele faria uma tentativa imediata para tirar-me do caminho, e paratal propósito traria à luz a sua arma assassina. Deixei-lhe uma excelente marca na janela e, tendoadvertido a polícia de que poderiam ser necessários – a propósito, Watson, você deslustrou a presençadeles naquele lance de precisão infalível – assumi o que me pareceu ser um ponto de observaçãocriterioso, jamais sonhando que ele escolheria o mesmo local para o seu ataque. Agora, meu caroWatson, ainda permanece alguma coisa sem explicação?”

– Sim, – eu disse. – Você não esclareceu o motivo do coronel Moran para o assassinato do honorávelRonald Adair?

– Ah! meu caro Watson, aqui nós entramos naqueles reinos da conjetura onde a mente mais lógicapode falhar. Cada um pode formular sua própria hipótese sobre as evidências apresentadas, e a suatem tanta probabilidade de estar correta quanto a minha.

– Então você formou uma?– Penso que não é difícil explicar os fatos. Houve uma evidência de que o coronel Moran e o jovem

Adair estiveram associados e assim ganharam uma considerável quantidade de dinheiro. Ora, éindubitável que jogavam sujo – disso eu estava prevenido há muito tempo. Acredito que no dia do

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assassinato Adair descobriu que Moran o estava enganando. É muito provável que lhe tenha faladoreservadamente e ameaçado expô-lo a menos que ele se resignasse a abandonar voluntariamente asua sociedade nos clubes e se comprometesse a não jogar baralho novamente. É bastante duvidosoque alguém tão jovem quanto Adair armasse um escândalo horroroso expondo de imediato umhomem bem conhecido e tão mais idoso que ele. Ele provavelmente agiu conforme estou sugerindo.A exclusão dos clubes significaria a ruína de Moran, que vivia dos ganhos obtidos desonestamenteatravés das cartas. Ele assassinou Adair, que naquele momento estava empenhado em calcular quantodinheiro devia então restituir, desde que não pudesse ganhar com o jogo sujo do seu sócio. Eletrancou a porta por que, se as senhoras o pegassem de surpresa, certamente haveriam de insistirem saber o que ele estava fazendo com aqueles nomes e moedas. Isto passa?

– Não tenho nenhuma dúvida de que você bateu na verdade.– Isso será constatado ou contestado por ocasião do julgamento. Enquanto isso, seja como for, o

coronel Moran não nos aborrecerá nunca mais. A famosa arma pneumática de Von Herder embelezaráo Museu da Scotland Yard, e uma vez mais o Sr. Sherlock Holmes está livre para dedicar a sua vidaao exame desses pequenos e interessantes problemas que a complexa vida de Londres tãocopiosamente apresenta.

O CONSTRUTOR DE NORWOOD– Do ponto de vista do perito criminal, –

disse sr. Sherlock Holmes, – Londrestornou-se uma cidade singularmentedesinteressante como a recente morte dolamentado professor Moriarty.

– É difícil imaginar que se encontre muitoscidadãos decentes que concordem comvocê, – eu respondi.

– Bem, bem; não devo ser egoísta, – disseele, com um sorriso, enquanto afastava asua cadeira da mesa onde fora servido ocafé da manhã. – A comunidade certa-mente vence e ninguém perde, exceto opobre especialista desempregado, cujaocupação se foi. Com aquele homem emcampo, um jornal matutino apresentavainfinitas possibilidades. Freqüentementetratava-se apenas de uma pista menor,Watson, a mais sutil indicação, e aindaassim era suficiente para me dizer que o grande cérebro maligno lá estava, como as mais suavesvibrações nas extremidades da teia lembram a uma aranha imunda que espreita no centro. Roubosinsignificantes, agressões temerárias, afrontas despropositadas – para o homem que possuía a pista,tudo isso podia ser cogitado num todo interligado. Para o estudante científico do mundo criminalmais elevado, nenhuma capital da Europa oferecia as vantagens que Londres então ostentava. Masagora... – Ele encolheu os ombros numa humorística reprovação do estado de coisas que ele mesmo

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tanto havia trabalhado para produzir.No momento ao qual me refiro, Holmes retornara por alguns meses e, atendendo ao seu pedido, eu havia

negociado a minha clínica e estávamos de volta, compartilhando os antigos aposentos da Baker Street. Umjovem médico, chamado Verner, havia comprado o meu pequeno consultório em Kensington, aceitando opreço mais alto que eu me aventurei a pedir com objeções incrivelmente escassas – um incidente que só seexplicou alguns anos depois, quando descobri que aquele Verner era uma parente distante de Holmes, e quefoi o meu amigo quem realmente entrou com o dinheiro.

Nossos meses de sociedade não tinham sido tão monótonos como ele afirmara porque encontro, aoexaminar as minhas anotações, que esse período inclui o caso dos documentos do ex-presidente Murillo etambém o chocante incidente do vapor holandês Freiesland, que quase nos custou ambas as vidas. Contudo,a natureza fria e orgulhosa de Holmes era sempre contrária a qualquer coisa na forma de aplauso público eele me impôs, nas condições mais estritas, não dizer nenhuma palavra adicional sobre ele, seus métodos ousucessos – uma proibição da qual, como já expliquei, somente agora fui liberado.

Depois do seu protesto extravagante, Sherlock Holmes reclinou-se novamente na cadeira e estavadesdobrando o seu jornal matutino de um forma vagarosa quando a nossa atenção foi despertada por umestrondoso toque de campainha, imediatamente seguido pelo som cavo de um tambor, como se alguémestivesse batendo na porta externa com o punho. Assim que ela foi aberta, ouvimos uma bulha tumultuadano corredor; pés rápidos subiram os degraus e, um momento depois, irrompeu no quarto um homem jovemde olhos selvagens, frenético, pálido, desalinhado e palpitante. Ele nos encarou, de um para outro, e sob onosso olhar inquiridor, percebeu que de alguma desculpa era necessária para essa entrada incerimoniosa.

– Eu sinto muito, sr. Holmes, – elelamentou. – Você não deve me culpar.Estou quase louco. Sr. Holmes, eu souo infeliz John Hector McFarlane.

Ele fez tal anúncio como se somente onome explicasse a sua visita e as suas manei-ras, mas pude ver, pela expressão indiferentedo meu companheiro, que não significava maisa ele do que a mim.

– Fume um cigarro, sr. McFarlane, – eledisse, empurrando a caixa na direçãodo rapaz. – Estou certo que, com osseus sintomas, meu amigo aqui, o dr.Watson, lhe prescreveria um seda-tivo. O tempo esteve muito quentenestes últimos dias. Agora, se está sesentindo um pouco mais composto, ficariafeliz se você sentasse naquela cadeira e nosdissesse muito lenta e tranqüilamente quem vocêé e o que deseja. Você mencionou o seu nome como se eu devesse reconhecê-lo, mas lhe asseguroque, além dos fatos óbvios que você é um causídico, solteiro, maçom livre e asmático, nada seisobre você.

Familiarizado como estava com o métodos do meu amigo, não me foi difícil seguir as suas deduções eobservar a desordem do traje, o maço de documentos legais, a corrente do relógio e a respiração ofeganteque os tinham induzido. Nosso cliente, contudo, fitou-o de olhos arregalados.

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– Sim, eu sou aquilo tudo, sr. Holmes; e, além disso, sou neste momento o homem mais infeliz deLondres. Pelo Senhor, não me abandone, sr. Holmes! Se eles vierem me apreender antes que eutermine a minha história, faça-os dar-me tempo, de forma que possa lhe contar toda a verdade. Euficaria feliz de ir para o cárcere se soubesse que você estava trabalhando por mim.

– Prendê-lo! – disse Holmes. – Isso é realmente muito interessante. De que acusação você espera serdetido?

– De assassinar o sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood.O rosto expressivo do meu companheiro mostrou uma simpatia que não era, eu receio, completamente

desprovida de satisfação.– Meu caro, – ele disse, – foi agora mesmo, ao café da manhã, que eu dizia ao meu amigo, dr. Watson,

que os casos sensacionais haviam desaparecido dos nossos periódicos.Nosso visitante esticou uma mão trêmula e apanhou o Daily Telegraph que ainda estava sobre os joelhos

de Holmes.– Se você tivesse lido isso, senhor, teria observado à primeira vista a missão pela qual vim aqui esta

manhã. Sinto como se o meu nome e o meu infortúnio estivessem na boca de todo homem. – Elevirou o jornal para expor a página central. – Aqui está, e com a sua permissão, lerei para você. Escuteisto, sr. Holmes. As manchetes são: ‘caso Misterioso em Lower Norwood. Desaparecimento de umConstrutor Bem Conhecido. Suspeita de Assassinato e Incêndio Premeditado. Uma Pista para oCriminoso’. Essa pista que eles já estão seguindo, sr. Holmes, sei que os trará infalivelmente a mim.Eu fui seguido da estação da Ponte de Londres, e estou certo que eles estão esperando somente pelaautorização para me prender. Partirá o coração da minha mãe – partirá o coração dela! – Ele torceuas mãos numa agonia apreensiva e balançou para trás e para a frente em sua cadeira.

Eu observei com interesse esse homem que era acusado de perpetrar um crime violento. Ele tinha cabeloslouros e vistosos, com um aspecto desbotado, olhos azuis amedrontados e um rosto bem barbeado, comuma boca vacilante, sensível. A idade dele seria de aproximadamente vinte e sete anos; seu traje e maneiraseram as de um cavalheiro. Do bolso do seu sobretudo claro de verão ele fez saltar o pacote de documentosendossados que proclamavam a sua profissão.

– Devemos usar o tempo de que dispomos, – disse Holmes. – Watson, você faria a gentileza de pegaro jornal e ler o parágrafo em questão?

Debaixo das manchetes vigorosas que nosso cliente havia citado, li a sugestiva exposição:“Ontem à noite bem tarde, ou cedo nesta manhã, ocorreu um incidente em LowerNorwood que aponta, receamos, para um grave crime. O sr. Jonas Oldacre é umbem conhecido residente daquele subúrbio, onde exerceu a sua profissão deconstrutor por muitos anos. O sr. Oldacre é solteiro, tem cinqüenta e dois anos deidade e vive em Deep Dene House, no fim da estrada com aquele nome, emSydenham. Ele gozava da reputação de ser um homem de hábitos excêntricos,tímido e reservado. Por alguns anos ele praticamente se retirou do negócio, havendocomentários de que juntou uma considerável riqueza. Todavia, existe ainda umpequeno depósito nos fundos da casa e ontem à noite, por volta das doze horas,deu-se um alarme: uma daquelas pilhas de madeira estava em chamas. Os soldadosdo fogo logo estavam no local, mas a madeira seca queimou com grande fúria e foiimpossível impedir a conflagração até que a pilha toda fosse completamenteconsumida. Até este ponto a ocorrência exibia as características de um acidenteordinário, mas recentes indicações parecem apontar um crime grave. Causousurpresa a ausência do proprietário do estabelecimento na cena do incêndio, e a

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investigação que se seguiu mostrou que ele tinha desaparecido da casa. Um examedo seu quarto revelou que a cama não fora usada, que uma caixa forte nele existenteestava aberta e que vários documentos importantes achavam-se espalhados pelorecinto e, finalmente, que havia sinais de uma luta assassina: leves rastros de sangueforam localizados no interior do quarto e a empunhadura de um cajado de peregrino,de carvalho, também exibia manchas de sangue. Sabe-se que o sr. Jonas Oldacrehavia recebido uma visita recente em seu quarto naquela noite, e o bastãoencontrado foi identificado como sendo de propriedade dessa pessoa, que é umjovem advogado de Londres chamado John Hector McFarlane, sócio júnior deGraham e McFarlane, 426 da Gresham Buildings, E. C. A polícia acredita ter aposse de evidências que fornecem um motivo muito convincente para o crime e, deum modo geral, não se pode duvidar que sensacionais desenvolvimentos venham aseguir.“DEPOIS. – Há um rumor que iremos comprovar que o sr. John Hector McFarlaneestá na verdade sendo detido sob a acusação de assassinato do sr. Jonas Oldacre. Épelo menos certo que uma ordem de prisão foi emitida. Houve desenvolvimentosadicionais e sinistros na investigação em Norwood. Além dos sinais de luta noquarto do infeliz construtor, sabe-se agora que as janelas francesas do seu quarto(que estão ao rés do chão) foram encontradas abertas, havendo marcas como sealgum objeto volumoso fosse arrastado através delas para a pilha de madeira, e,finalmente, afirma-se que foram achados restos mortais carbonizados entre ascinzas do incêndio. A teoria da polícia é que um crime sensacional foi cometido,que a vítima foi agredida até a morte em seu próprio quarto, seus documentosforam roubados e o cadáver arrastado à pilha de madeira que foi então incendiadapara ocultar todos os indícios do crime. A condução da investigação criminal foideixada nas mãos experientes do inspetor Lestrade, da Scotland Yard, que estáseguindo as pistas com sua costumeira energia e sagacidade.

Sherlock Holmes ouviu essa fantástica narrativa com os olhos fechados e as pontas dos dedos juntas.– O caso certamente tem alguns pontos de interesse, – ele disse, do seu jeito lânguido. – Posso

perguntar-lhe em primeiro lugar, sr. McFarlane, como é que você ainda está em liberdade, desdeque parece haver evidência suficiente para justificar a sua apreensão?

– Eu moro em Torrington Lodge, Blackheath, com meus pais, sr. Holmes; mas ontem à noite, tendode tratar muito tarde com o sr. Jonas Oldacre, fiquei num hotel em Norwood e de lá fui ao meusnegócios. Eu nada soube desses acontecimentos até estar no trem, quando li o que você ouviu hápouco. Imediatamente vi o perigo horrível da minha posição e apressei-me para pôr o caso em suasmãos. Não tenho dúvida que teria sido preso em meu escritório na cidade ou em minha casa. Umhomem seguiu-me da estação da Ponte de Londres, e eu não tenho nenhuma dúvida... pelo céu! oque é isso?

Fora um tinido da campainha, imediatamente seguido por passos pesados nos degraus. Um momentodepois o nosso velho amigo Lestrade aparecia na entrada. Por cima do seu ombro eu vislumbrei um ou doispoliciais uniformizados do lado de fora.

– Sr. John Hector McFarlane? – disse Lestrade.Nosso infeliz cliente levantou-se com um aspecto horrível.

– Eu o prendo pelo homicídio intencional do sr. Jonas Oldacre, de Lower Norwood.McFarlane voltou-se para nós com um gesto de desespero e afundou mais uma vez em sua cadeira como

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alguém que é esmagado.– Um momento, Lestrade, – disse Holmes. – Meia hora a mais ou a menos não pode fazer nenhuma

diferença para você, e o cavalheiro estava a ponto de nos dar conta de pormenores interessantesque muito poderiam nos ajudar a esclarecer o assunto.

– Penso que não haverá nenhuma dificuldade em esclarecer isso, – disse Lestrade, severamente.– Nada menos; com sua permissão, estou muito interessado em ouvir a história dele.– Bem, sr. Holmes, é difícil recusar-lhe qualquer coisa, pois você foi útil à força algumas vezes no

passado, e nós lhe devemos um bom serviço na Scotland Yard, – disse Lestrade. – Ao mesmotempo, devo permanecer com o meu prisioneiro e sou obrigado a adverti-lo que qualquer coisa quediga aparecerá como evidência contra ele.

– Não desejo nada melhor, – disse o nosso cliente. – Tudo que eu peço é que você ouça e reconheçaa verdade absoluta.

Lestrade olhou para o seu relógio.– Eu lhe darei meia hora, – ele disse.– Primeiro devo explicar, – disse McFarlane, – que nada sabia do sr. Jonas Oldacre. O seu nome me

era conhecido, pois muitos anos atrás meus pais se familiarizaram com ele, mas as circunstânciasos separaram. Fiquei então muito surpreso quando ontem, aproximadamente às três horas da tarde,ele entrou em meu escritório na cidade. Mas ainda mais surpreso fiquei quando ele me contou opropósito de sua visita. Ele tinha nas mãos várias folhas de caderno, cobertas com uma escritarabiscada – aqui estão eles – e colocou-os sobre a minha mesa.“‘Aqui está o meu testamento’, ele disse. ‘Eu quero que você, sr. McFarlane, modele isto na formalegal apropriada. Ficarei aqui sentado enquanto você o faz’.“Eu me dediquei a esse trabalho e você pode imaginar o meu espanto quando notei que, comalgumas reservas, ele havia deixado todas as suas propriedades para mim. Ele era um homemestranho, como um pequeno furão, de cílios brancos, e quando olhei para ele percebi os seusagudos olhos cinzentos fixos em mim com uma expressão divertida. Quase não pude crer em mimmesmo quando li os termos do testamento, mas ele explicou que era um solteirão com praticamentenenhum parente vivo; que ele havia conhecido os meus pais em sua mocidade; que sempre ouvirafalar de mim como um jovem muito conceituado e estava certo que o seu dinheiro estaria em mãosmerecedoras. Evidentemente, pude apenas gaguejar a minha gratidão. O testamento estavaapropriadamente acabado, assinado e foi testemunhado pelo meu escrevente. É este, no papel azul;essas papeletas, como expliquei, são os rascunhos. O sr. Jonas Oldacre então me informou quehavia diversos documentos – contratos de arrendamento, certificados de ações, hipotecas, escrituras,e assim sucessivamente – os quais era necessário que eu visse e compreendesse. Ele disse que asua mente não ficaria tranqüila até que toda a coisa estivesse resolvida e implorou-me que fosse àsua casa em Norwood nessa noite, trazendo comigo o testamento, para arranjar tudo. ‘Lembre-se,meu menino: nenhuma palavra aos seus pais sobre o assunto até que tudo esteja resolvido.Conservaremos isto como uma pequena surpresa para eles’. Ele era muito insistente neste ponto, eme fez prometer isso fielmente.“Você pode imaginar, sr. Holmes, que eu não estava disposto a recusar nada que ele pedisse. Eleera meu benfeitor, e tudo o que eu queria era levar a cabo os desejos dele em qualquer aspecto.Então enviei um telegrama para casa dizendo que eu tinha um negócio importante em mãos eque era impossível dizer a que horas poderia voltar. O sr. Oldacre me disse que ficaria agradecidose eu jantasse com ele às nove, pois ele poderia não estar em casa antes daquela hora. Tivealguma dificuldade em localizar a sua casa, contudo, e havia passado quase meia hora quando

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cheguei. Eu o encontrei...”– Um momento! – disse Holmes. – Quem abriu a porta?– Uma mulher de meia-idade; a empregada dele, suponho.– E foi ela quem mencionou o seu nome, eu presumo?– Exatamente, – disse McFarlane.– Por favor, prossiga.

McFarlane esfregou suas sobrancelhas úmidas e então continuou a narrativa:– Essa mulher levou-me a uma sala de visitas onde fora posta uma ceia frugal. Depois o sr. Jonas

Oldacre conduziu-me ao seu quarto onde havia uma pesada caixa forte. Ele a abriu e retirou umamassa de documentos, os quais examinamos juntos. Terminamos entre as onze e a meia-noite. Eleobservou que não devíamos perturbar a empregada. Também mostrou-me a sua janela francesa,que tinha permanecido aberta o tempo todo.

– A cortina estava fechada? – perguntou Holmes.– Não estou certo, mas acredito que estava só pela metade. Sim, lembro-me como ele a levantou para

expor a janela aberta. Não consegui encontrar a minha bengala e ele disse, ‘não importa, meumenino, agora o verei bastante, eu espero, e guardarei a sua bengala até que você volte para reivindicá-la’. Então deixei-o lá, com a caixa forte aberta e os documentos distribuídos em pacotes sobre amesa. Era tão tarde que não pude voltar a Blackheath, assim passei a noite no Anerley Arms, e nadamais soube até que eu li os horríveis acontecimentos pelos jornais da manhã.

– Qualquer coisa mais que você gostaria de perguntar, sr. Holmes? – disse Lestrade, cujas sobrance-lhas tinham subido algumas vezes durante essa notável explicação.

– Não até que eu tenha ido a Blackheath.– Você quer dizer Norwood, – disse Lestrade.– Oh, sim, não há dúvida que foi isso que eu quis dizer, – disse Holmes, com o seu sorriso enigmático.

Por muitas experiências anteriores, Lestrade havia aprendido a reconhecer que aquele cérebro podiadissecar o que era impenetrável para ele. Eu o vi olhar curiosamente para o meu companheiro.

– Penso que gostaria de ter uma palavracom você agora, sr. Sherlock Holmes,– ele disse. – Dois dos meus policiaisestão à porta, sr. McFarlane, e há umacarruagem à espera.

O jovem desgraçado ergueu-se e, com umúltimo relance de súplica dirigido a nós,caminhou para fora do quarto. Os oficiaisconduziram-no ao táxi, mas Lestrade ficou.

Holmes havia apanhado as páginas queconstituíam o rascunho do testamento eolhava para elas com o mais agudo interesseem sua face.

– Há alguns pontos sobre aquele docu-mento, Lestrade, não há? – ele disse,empurrando-os.

O funcionário olhou para eles com uma expressãoconfusa.

– Posso ler as primeiras linhas e estas no meio da segunda

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página, e uma ou duas no final. São tão claras quanto uma impressão, – ele disse, – mas a escritaentre elas é muito ruim, e há três lugares onde não consigo ler nada.

– E o que você deduz disso? – disse Holmes.– Bem, o que você deduz disso?– Que foi escrito em um trem. A escrita nítida representa estações; a má escrita, movimento; a péssima

escrita, passagem sobre entroncamentos. Um perito científico imediatamente pronunciaria que issofoi feito numa linha suburbana, desde que em nenhuma parte – salvo as vizinhanças imediatas deuma grande cidade – poderia haver tão rápida sucessão de pontos. Concedendo que toda a viagemdele fora dedicada à preparação do testamento, então o trem era um expresso, parando uma únicavez entre Norwood e a Ponte de Londres.

Lestrade desatou a rir.– Você é muito para mim quando começa a tecer as suas teorias, sr. Holmes, – ele disse. – Como isso

pode relacionar-se ao caso?– Bem, confirma a história do jovem no sentido que o testamento foi rascunhado por Jonas Oldacre

durante a sua viagem de ontem. É curioso – não é? – que um homem fosse escrever um documentotão importante de uma forma tão casual. Sugere que ele não pensava que ia ser de muita importânciaprática. Se um homem preparasse um testamento que ele nunca pretendesse tornar efetivo, elepoderia fazer dessa maneira.

– Bem, ao mesmo tempo ele preparou seu próprio certificado de óbito, – disse Lestrade.– Oh, você pensa assim?– Você não?– Bem, é bastante plausível, mas o caso ainda não está claro para mim.– Não está claro? Bem, se isso não está claro, o que poderia ser claro? Aqui está um homem jovem

que repentinamente descobre que se um certo homem idoso morrer, ele herdará uma fortuna. Oque ele faz? Ele não diz nada a ninguém, mas planeja encontrar algum pretexto para ver o seucliente naquela noite. Ele espera até que a única outra pessoa da casa se recolha e então, no isolamentodo quarto do homem, ele o assassina, queima o seu corpo na pilha de madeira e parte para um hoteldas vizinhanças. As manchas de sangue no quarto e também na bengala são muito insignificantes.Provavelmente ele imaginou que o seu crime seria sem derramamento de sangue e esperou que seo corpo fosse totalmente consumido, esconderia todas as pistas quanto ao método do assassinato– pistas que, por alguma razão, deviam apontar para ele. Tudo isso não é óbvio?

– Surpreende-me, meu bom Lestrade, como sendo apenas uma ninharia muito óbvia, – disse Holmes.– Você não acrescenta imaginação às suas outras grandes qualidades, mas se pudesse por ummomento colocar-se no lugar desse jovem, você escolheria exatamente a noite depois que otestamento foi lavrado para cometer o seu crime? Não lhe pareceria excessivamente perigoso tornarassim tão próxima uma possível relação entre os dois incidentes? Além disso, você escolheria umaocasião em que o fato de estar na casa é conhecido, visto que um criado o deixou entrar? E, finalmente,você faria grandes esforços para ocultar o corpo, e ainda deixaria a sua própria bengala atestandoque é você o criminoso? Confesse, Lestrade, que tudo isso é muito inverossímil.

– Quanto à bengala, sr. Holmes, você sabe tão bem quanto eu que o criminoso freqüentemente ficaexcitado e faz coisas tais que um homem frio evitaria. É provável que ele estivesse muito amedrontadopara voltar ao quarto. Dê-me outra teoria que se ajuste aos fatos.

– Eu posso muito facilmente dar-lhe meia dúzia, – disse Holmes. – Aqui, por exemplo, está umamuito plausível e até mesmo provável. Eu lhe faço disto um presente gratuito. O homem mais velhoestá exibindo documentos que são de valor evidente. Um vagabundo que passa os vê através da

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janela, cuja cortina estava baixada apenas até a metade. Sai o advogado. Entra o vagabundo! Eleagarra uma bengala que vê por lá, mata Oldacre e depois toma providências para incinerar o corpo.

– Por que o vagabundo haveria de queimar o corpo?– Por que McFarlane deveria fazê-lo?– Para esconder alguma evidência.– Possivelmente o vagabundo quis esconder qualquer assassinato em que estivesse comprometido.– E por que o vagabundo não levou nada?– Porque não eram documentos que ele pudesse negociar.

Lestrade balançou a cabeça; entretanto, pareceu-me que a sua maneira era absolutamente menos segurado que antes.

– Bem, sr. Sherlock Holmes, você pode procurar o seu vagabundo e, enquanto você o faz, nós nosagarraremos ao nosso homem. O futuro mostrará quem está com a razão. Apenas observe esteponto, sr. Holmes: que até onde sabemos, nenhum dos documentos foi removido, e que o prisio-neiro é o único homem no mundo que não tinha nenhuma razão para removê-los, visto que ele erao herdeiro legal e se apossaria deles em qualquer caso.

Meu amigo pareceu afetado por essa observação.– Não pretendo negar que a evidência tende muito fortemente em favor da sua teoria, sob alguns

aspectos, – ele disse. – Só desejo demonstrar que há outras teorias possíveis. Como você disse, ofuturo decidirá. Bom dia! Ouso dizer que no decurso do dia eu irei a Norwood e verei como vocêestá se saindo.

Quando o detetive partiu, meu amigo levantou-se e fez os seus preparativos para o trabalho do dia como ar alerta de um homem que tem uma tarefa congenial diante dele.

– Meu primeiro movimento, Watson, – ele disse, enquanto se ocupava com o seu sobretudo, – deve,como eu disse, ser na direção de Blackheath.

– E por que não Norwood?– Porque neste caso nós temos um incidente singular

que segue nos calcanhares de outro incidentesingular. A polícia está cometendo o erro deconcentrar a sua atenção no segundo,porque parece ser o único que é verdadeira-mente criminoso. Mas para mim é evidenteque o modo lógico de abordar o caso écomeçar tentando lançar alguma luz noprimeiro incidente – o curioso testamento,feito tão às pressas e para um herdeiro tãoinesperado. Pode ser algo que simplifiqueo que se seguiu. Não, meu caro compa-nheiro, não penso que você possa meajudar. Não há nenhuma perspectiva deperigo, ou eu nem sonharia em mexer-me semvocê. Creio que quando voltar a vê-lo à noitepoderei relatar se consegui fazer algo por esse jovem infeliz quese lançou sob a minha proteção.

Era tarde quando o meu amigo voltou e eu pude ver, num relance à sua facedesfigurada e ansiosa, que as elevadas esperanças com que ele havia começado não tinham se cumprido.

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Durante uma hora ele guinchou com o violino, empenhado em acalmar o próprio espírito agitado. Afinal elejogou o instrumento de lado e mergulhou numa descrição minuciosa das suas desventuras.

– Tudo está caminhando errado, Watson – tudo tão errado quanto pode ser. Eu fui audacioso diante deLestrade, mas, por minha alma, acredito que pela primeira vez o camarada está no rastro certo e nósno errado. Todos os meus instintos seguem um curso e todos os fatos seguem outro, e eu receiomuito que os júris britânicos entretanto não tenham alcançado aquele vislumbre de inteligência emque dariam preferência às minhas teorias em detrimento dos fatos de Lestrade.

– Você foi para Blackheath?– Sim, Watson, estive lá e descobri muito depressa que o recém-lamentado Oldacre era um vilão

considerável. O pai estava fora à procura do filho. A mãe estava em casa – uma mulher pequena,fofa, de olhos azuis e um tremor de medo e indignação. É claro que ela jamais admitiria a possibili-dade de culpa do filho, mas ela não expressou surpresa ou pesar quanto ao destino de Oldacre. Pelocontrário, falou dele com tanta amargura que inconscientemente estava fortalecendo o caso dapolícia de forma considerável; evidentemente, se o filho a tivesse ouvido falar do homem daquelejeito, isso o predisporia para o ódio e a violência. ‘Ele era mais como um macaco maligno e espertodo que um ser humano’, disse ela, ‘e sempre foi assim, desde que era jovem’.“‘Você o conheceu naquela época?’ eu disse.“‘Sim, eu o conheci bem; na realidade, ele foi um antigo pretendente. Agradeço aos céus que tive obom senso de afastar-me dele e casar com um homem melhor, embora pobre. Eu fique noiva dele,sr. Holmes, mas quando ouvi uma história chocante de como ele tinha soltado um gato em umaviário, fiquei horrorizada com a sua crueldade brutal e não quis mais nada com ele’. Ela procurounuma escrivaninha e mostrou-me a fotografia de uma mulher, vergonhosamente deformada e mutiladacom uma faca. ‘Esta é a minha própria fotografia’, ela disse. ‘Ele enviou-me isto nesse estado, coma sua maldição, na manhã do meu casamento’.“‘Bem’, eu disse, ‘pelo menos agora ele a perdoou,visto que deixou todas as suas propriedades para oseu filho’.“‘Nem meu filho nem eu queremos qualquercoisa de Jonas Oldacre, morto ou vivo!’ elaexclamou com ênfase. ‘Há um Deus no céu, sr.Holmes, e o mesmo Deus que castigará aquelehomem mau mostrará, no momento apropri-ado, que o mãos do meu filho são inocentesdo sangue dele’.“Bem, eu tentei uma ou duas possibilidades,mas não pude chegar a nada que ajudasse anossa hipótese, mas a vários pontos quetrabalhavam contra ela. Dei isso por conclusivoe fui para Norwood.“Esse lugar, Deep Dene House, é uma grandevilla moderna, de tijolos aparentes, erguida emseu próprio terreno, com um gramado e umamoita de loureiros na frente. À direita e um poucoatrás, a uma certa distância da estrada, fica o depósitode madeira que tinha sido a cena do incêndio. Aqui está

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um rascunho numa folha do meu caderno. Esta janela à esquerda é a que abre no quarto de Oldacre.Dela você pode observar a estrada, veja. Este é praticamente o único pedaço de consolação que tivehoje. Lestrade não estava lá, mas o seu policial de plantão fez a honras. Eles haviam encontrado umgrande tesouro há pouco. Tinham empregado a manhã na limpeza das cinzas entre as pilhas demadeira queimada, e além de restos orgânicos carbonizados tinham achado diversos discos demetal descorados. Examinei-os com cuidado, e não havia nenhuma dúvida que eram botões decalças. Pude distinguir até mesmo que um deles era marcado com o nome ‘Hyams’, o alfaiate deOldacre. Então trabalhei muito cuidadosamente no gramado, em busca de sinais e rastros, mas estaseca deixou tudo tão duro quanto ferro. Nada podia ser visto exceto que algum corpo ou volumetinham sido arrastados através da baixa cerca viva de alfena que está alinhada à pilha de madeira.Tudo aquilo, evidentemente, ajusta-se à teoria oficial. Eu rastejei sobre o gramado com um sol deagosto em minhas costas, mas cheguei ao fim de uma hora sem saber mais do que antes.“Bem, depois desse fiasco eu entrei no quarto e também o examinei. As manchas de sangue erammuito leves, meras nódoas e descolorações, mas indubitavelmente frescas. A bengala fora removida,mas também lá as marcas eram superficiais. Não há nenhuma dúvida que a bengala pertence aonosso cliente; ele o admite. Havia marcas de pés de ambos os homens pelo tapete, mas nenhumade qualquer terceira pessoa, o que novamente favorece o outro lado. Todo o tempo eles estavamacumulando pontos e nós estávamos parados.“Somente obtive um rápido vislumbre de esperança – e ainda não chegou a nada. Examinei o conteúdoda caixa forte, a maior parte do qual fora removida e deixada sobre a mesa. Os documentos foramcolocados em envelopes lacrados; um ou dois tinham sido abertos pela polícia. Eles não eram degrande valor, até onde pude estimar, nem a caderneta bancária mostrou que o sr. Oldacre estivesseem condições muito prósperas. Mas pareceu-me que nem todos os documentos estavam lá. Haviaalusões a alguns certificados – possivelmente os mais valiosos – que não pude encontrar. É claroque isso viraria o argumento de Lestrade contra ele – se nós pudéssemos prová-lo definitivamente– pois quem roubaria uma coisa se soubesse que a herdaria brevemente?“Finalmente, tendo puxado toda as outras capas e não sentindo nenhum cheiro, tentei a minhasorte com a empregada. Sra. Lexington é o nome dela – uma mulher pequena, taciturna e silenciosa,com olhos suspeitos e tortos. Ela poderia nos contar algo se soubesse – estou convencido disso.Mas ela era tão lisa quanto cera. Sim, ela tinha deixado o sr. McFarlane entrar às 21:30 passadas. Elapreferia que a sua mão tivesse murchado antes de tê-lo feito. Ela foi para a cama pouco depois das22:30. O quarto dela fica no outro extremo da casa, e ela não poderia ouvir nada do que haviaocorrido. O sr. McFarlane tinha deixado o chapéu dele, e por sorte ela foi despertada pelo alarme defogo. Seu pobre e querido patrão certamente fora assassinado. Se ele tinha algum inimigo? Bem,todo homem tem inimigos, mas o sr. Oldacre era muito reservado e só encontrava pessoas relacio-nadas ao seu negócio. Ela tinha visto os botões e estava certa que eles pertenciam às roupas que osr. Oldacre usava ontem à noite. A pilha de madeira estava muito ressecada, pois não tinha chovidodurante um mês. Queimou feito palha, e até que ela alcançasse o local, nada mais se podia ver alémde chamas. Ela e todos os bombeiros sentiram o cheiro de carne queimada. Ela nada sabia dosdocumentos nem dos negócios privados do sr. Oldacre.“Assim, meu caro Watson, este é o meu relatório de um fracasso. E ainda assim – ainda assim – eleapertou as mãos finas num paroxismo de convicção – eu sei que tudo está errado. Sinto isso emmeus ossos. Há alguma coisa oculta, algo que a empregada sabe. Havia um tipo de desafio mal-humorado em seus olhos que só acompanha o sentimento de culpa. Contudo, nada de bom resultaem continuar falando sobre isso, Watson; mas a menos que nos venha uma oportunidade afortunada,

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temo que o Caso do Desaparecimento de Norwood não irá figurar naquela crônica dos nossossucessos que, segundo a minha previsão, o público paciente terá de suportar, cedo ou tarde”.

– Seguramente, – eu disse, – o aparecimento do homem faria sucesso com qualquer júri?– Esse é um argumento perigoso, meu caro Watson. Você se lembra daquele assassino terrível, Bert

Stevens que desejava cooptar-nos em 1887? Ele sempre se apresentava do modo mais amável, ojovem da escola dominical?

– É verdade.– A menos que sejamos bem sucedidos estabelecendo uma teoria alternativa, esse homem está perdido.

Você dificilmente conseguirá encontrar uma falha no caso que pode agora ser apresentado contraele, e toda investigação adicional serviu apenas para fortalecê-lo. A propósito, há um pequeno detalhecurioso sobre esses documentos que podem nos servir como ponto de partida para uma investigação.Examinando a caderneta bancária eu verifiquei que o saldo baixo devia-se principalmente a chequesvultosos que foram passados para um sr. Cornelius durante o último ano. Confesso que deveriainteressar-me em saber quem é esse sr. Cornelius e como pode ter negócios tão grandes com umconstrutor aposentado. É possível que ele esteja metido no caso? Cornelius poderia ser um corretor,mas não achamos nenhuma escritura que correspondesse a esses grandes pagamentos. Fracassandoqualquer outra indicação, minhas pesquisas devem agora tomar a direção de uma investigação nobanco onde o cavalheiro descontou esses cheques. Mas receio, meu caro companheiro, que nossocaso terminará ingloriamente com Lestrade pendurando o nosso cliente, o que certamente será umtriunfo para a Scotland Yard.

Não sei se Sherlock Holmes conseguiu dormir alguma coisa naquela noite, mas quando desci para o caféda manhã achei-o pálido e abatido, seus olhos luminosos ainda mais brilhantes pelas sombras escuras queos circundavam. O tapete ao redor de sua cadeira estava literalmente coberto de pontas de cigarros e pelasprimeiras edições dos jornais matutinos. Um telegrama jazia aberto sobre a mesa.

– O que você pensa disto, Watson? – ele perguntou, jogando-o para mim.Era de Norwood, e dizia o seguinte:

Nova evidência em mãos. Culpa de McFarlane definitivamente estabelecida.Aconselho abandonar caso.

LESTRADE.– Isto soa muito sério, – eu disse.– É o canto-de-galo vitorioso do pequeno Lestrade, – respondeu Holmes, com um sorriso amargo. –

Mas ainda pode ser prematuro abandonarmos o caso. Afinal de contas, uma importante nova evidênciaé uma coisa de dois gumes, e possivelmente pode cortar numa direção muito diferente à que Lestradeimagina. Tome o seu desjejum, Watson; sairemos juntos e veremos o que podemos fazer. Sinto quehoje vou precisar de sua companhia e do seu apoio moral.

Meu amigo não tomou nenhum café da manhã, pois era uma das suas peculiaridades não se permitirnenhuma alimentação nos momentos mais intensos, e eu o conhecia para saber que ele se presumia em suaforça férrea até desfalecer de pura inanição. – No momento eu não posso dispor de força e energia nervosapara a digestão, – ele diria, em resposta aos meus protestos médicos. Assim, não fiquei surpreso quandoessa manhã ele deixou a refeição intacta atrás de si e partiu comigo para Norwood. Uma multidão de obser-vadores mórbidos ainda se juntava em torno de Deep Dene House, que era apenas uma vila suburbana, talcomo eu havia imaginado. Lestrade nos encontrou dentro dos portões e a sua face corou com a vitória, a suamaneira grotescamente triunfante.

– Bem, sr. Holmes, por acaso você provou que estávamos errados? Você achou o seu vagabundo? –ele apregoou.

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– Eu não formei conclusão alguma, – respondeu o meu companheiro.– Mas nós formamos a nossa ontem, e agora ela demonstra estar correta, assim você deve reconhecer

que fomos um pouco à sua frente desta vez, sr. Holmes.– Você certamente tem o ar de que algo incomum ocorreu, – disse Holmes.

Lestrade riu estrepitosamente.– Você não gosta de ser batido mais do que qualquer outro de nós, – ele disse. – Um homem não

pode sempre esperar ter todas as coisas no seu caminho, pode, dr. Watson? Venham por aqui, porfavor, cavalheiros, e eu penso que posso convencê-los de uma vez por todas de que foi John McFarlanequem cometeu este crime.

Ele nos conduziu pela passagem e por um corredor escuro além dela.– Aqui é onde o jovem McFarlane deve ter vindo para recuperar o seu chapéu depois da execução do

crime, – ele disse. – Agora veja isto.Com subitaneidade dramática ele riscou um fósforo e a sua luminosidade expôs uma mancha de sangue

na parede caiada. Quando ele segurou o fósforo mais perto, vi que era mais que uma simples mancha. Era anítida impressão de um polegar.

– Olhe com a sua lupa, sr. Holmes.– Sim, vou fazê-lo.– Você sabe que as impressões de dois polegares

jamais são idênticas?– Ouvi falar algo sobre isso.– Bem; então, por favor, quer comparar aquela

impressão com esta impressão de cera do dedopolegar direito do jovem McFarlane, obtida porordem minha esta manhã?

Conforme ele segurou a impressão perto da mancha desangue, não precisou de lupa para constatar que as duaseram indubitavelmente do mesmo dedo. Para mim ficouevidente que o nosso infeliz cliente estava perdido.

– Isso é definitivo, – disse Lestrade.– Sim, isso é definitivo, – eu repeti involuntariamente.– É definitivo, – disse Holmes.

Algo no tom de sua voz chamou a minha atenção e eume virei para ele. Uma mudança extraordinária ocorrera emsua face. Ele estava se contorcendo numa alegria interior.Seus dois olhos brilhavam como estrelas. Pareceu-me queele estava fazendo um esforço desesperado para conter umataque de riso convulsivo.

– Meu caro! Meu caro! – ele disse afinal. – Bem, quemteria pensado nisso? E quão ilusórias as aparênciaspodem ser na verdade! Um homem tão jovem esimpático a considerar! Isto é uma lição para não confiarmos em nosso próprio julgamento, nãoé, Lestrade?

– Sim; alguns de nós somos um pouco inclinados demais à convicção, sr. Holmes, – disse Lestrade. Ainsolência do homem era enlouquecedora, mas não podíamos nos ressentir com isso.

– É uma coisa providencial que esse jovem fosse pressionar o seu dedo polegar direito contra a

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parede enquanto retirava o chapéu da cavilha! É também uma ação muito natural, se você forpensar nisso.

Holmes parecia exteriormente calmo, mas o seu corpo inteiro contorcia-se numa excitação reprimidaenquanto ele falava.

– A propósito, Lestrade; quem fez essa notável descoberta?– Foi a empregada, sra. Lexington, que chamou a atenção do policial do plantão noturno para isso.– Onde estava o policial da noite?– Ele permaneceu de guarda no quarto onde o crime fora cometido, para constatar que nada foi

tocado.– Mas por que a polícia não viu esta marca ontem?– Bem, não tínhamos nenhuma razão particular para fazer um exame cuidadoso do corredor. Além

disso, não está em um lugar muito proeminente, como você pode ver.– Não, não – evidentemente não. Suponho não existir nenhuma dúvida que a marca estava lá ontem?

Lestrade olhou para Holmes como se pensasse que ele sabia o que se passava em sua mente. Eu confessoque fiquei surpreso com a sua maneira alegre e também com a observação bastante arredia.

– Eu não sei se você acha que McFarlane saiu da prisão na calada da noite para fortalecer as evidênciascontra ele, – disse Lestrade. – Creio que qualquer perito no mundo irá concordar que isso é a marcado polegar dele.

– É inquestionavelmente a marca do polegar dele.– Isso é o bastante, – disse Lestrade. – Eu sou um homem prático, sr. Holmes, e quando tenho a

minha evidência, chego às minhas conclusões. Se você tiver alguma coisa a dizer, me encontrará nasala de visitas escrevendo o meu relatório.

Holmes havia recuperado a eqüanimidade; entretanto, eu ainda parecia detectar alguns vislumbres dedivertimento em sua expressão.

– Meu caro, isto é uma evolução muito triste, não é, Watson? – ele disse. – E ainda há alguns pontossingulares sobre isto que oferecem umas parcas esperanças para o nosso cliente.

– Fico deleitado de ouvir isso, – eu disse, cordialmente. – Receava que tudo estivesse contra ele.– Eu dificilmente iria tão longe dizendo isso, meu caro Watson. O fato é que há uma falha realmente

séria nesta evidência à qual o nosso amigo dá tanta importância.– Realmente, Holmes! O que é?– Apenas isto: eu sei que aquela marca não estava lá quando examinei o corredor ontem. E agora,

Watson, vamos dar um pequeno passeio ao sol.Com o cérebro confuso mas um coração no qual algum calor de esperança estava se devolvendo, acom-

panhei o meu amigo num passeio em volta do jardim. Holmes deu uma volta em toda a casa e examinoucada uma das fachadas com grande interesse. Ele então voltou para o interior e andou por todo o edifício, doporão ao sótão. A maioria dos quartos não era mobiliado, mas Holmes não deixou de inspecionar tudominuciosamente. Finalmente, no corredor superior, que passava por três quartos desocupados, ele foi nova-mente atacado por um espasmo de alegria ruidosa.

– Realmente há algumas características incomparáveis neste caso, Watson, – ele disse. – Penso queagora é o momento de tomarmos o nosso amigo Lestrade em confiança. Ele teve o seu pequenodivertimento às nossas custas, e talvez nós possamos fazer muito por ele, se a minha leitura desteproblema provar estar correta. Sim, sim; acho que sei como chegaremos a isso.

O inspetor da Scotland Yard ainda estava escrevendo na sala de visitas quando Holmes o interrompeu.– Eu entendi que você estava escrevendo o relatório deste caso, – ele disse.– Sim, estou.

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– Você não acha que pode ser um pouco prematuro? Não posso ajudá-lo a pensar que a sua evidêncianão está completa?

Lestrade conhecia muito bem o meu amigo para desconsiderar as suas palavras. Ele colocou de lado a suacaneta e olhou para Holmes com curiosidade.

– O que você quer dizer, sr. Holmes?– Somente que há uma testemunha importante que você não viu.– Você pode apresentá-la?– Eu penso que sim.– Então faça isso.– Eu farei o melhor. Quantos policiais você tem?– Há três ao alcance do apito.– Excelente! – disse Holmes. – Posso perguntar se todos eles são homens grandes, sadios, com vozes

poderosas?– Não tenho nenhuma dúvida disso; entretanto; não vejo o que as suas vozes têm a ver com isto.– Talvez eu possa ajudá-lo a ver uma ou duas outras coisas também, – disse Holmes. – Faça o favor de

chamar os seus homens e eu tentarei.Cinco minutos depois, três policial tinham se agrupado no corredor.

– No alpendre você encontrará uma considerável quantidade de palha, – disse Holmes. – Peço-lheque pegue dois feixes dela. Penso que será da maior ajuda produzindo a testemunha de que necessito.Muito obrigado. Acredito que você tem alguns palitos de fósforo em seu bolso, Watson. Agora, sr.Lestrade, tudo o que lhe peço é que me acompanhe à plataforma superior.

Como eu disse, lá havia um corredor largo que conduzia a três quartos vazios. Estávamos todos numaextremidade do corredor, orientados por Sherlock Holmes, os policiais sorrindo e Lestrade encarando o meuamigo com espanto, expectativa e derrisão que acossavam as suas outras feições. Holmes estava diante denós com o ar de um prestidigitador que está executando um truque.

– Você por gentileza mandaria um dos seus policiais trazer dois baldes de água? Ponham a palha aquino chão, longe das paredes de ambos os lados. Agora acho que estamos todos prontos.

O rosto de Lestrade tinha começado a ficar vermelho e enraivecido.– Eu não sei se você está querendo brincar conosco, sr. Sherlock Holmes, – ele disse. – Se você

souber de qualquer coisa, seguramente pode dizê-lo sem toda essa tolice.– Eu lhe asseguro, meu bom Lestrade, que tenho uma excelente razão para fazer tudo o que faço.

Você possivelmente recordará que zombou um pouco de mim, algumas horas atrás, quando o solbrilhava do seu lado da cerca, portanto você não deve se ressentir de um pouco de pompa e cerimôniaagora. Posso lhe pedir, Watson, para abrir aquela janela, e então pôr um palito de fósforo naextremidade da palha?

Eu assim fiz e um rolo de fumaça cinzenta rolou pelo corredor, enquanto a palha seca crepitava e ardia.– Agora nós devemos observar se podemos achar essa testemunha para você, Lestrade. Posso pedir a

vocês todos que se unam num grito de ‘Fogo’!? Agora, então; um, dois, três...– Fogo! – gritamos todos.– Obrigado. Eu o aborrecerei uma vez mais.– Fogo!– Só mais uma vez, cavalheiros, e todos juntos.– Fogo! – O grito deve ter soado através de Norwood.

O som ainda não havia praticamente se extinguido quando uma coisa surpreendente aconteceu. Derepente, onde parecia ser uma parede sólida no fim do corredor, uma porta se abriu e um homem pequeno

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e seco arremessou-se para fora dela, como um coelhofugindo de sua toca.

– Ótimo! – disse Holmes, calmamente. – Watson,um balde de água em cima da palha, por favor.Assim está bem! Lestrade, permita que lheapresente a sua principal testemunha perdida,sr. Jonas Oldacre.

O detetive encarou o recém-chegado pálido deassombro. Este piscava sob a luz brilhante do corredor,olhando para nós e para o fogo queimando sem chama.Era uma face odiosa – astucioso, maligno, vicioso, comolhos espertos, acinzentados e cílios brancos.

– O que é isto, então? – disse Lestrade, afinal. –O que você tem feito todo esse tempo, eh?

Oldacre esboçou uma risadinha intranqüila,recolhendo-a diante da furiosa face vermelha do detetivezangado.

– Eu não fiz nenhum mal.– Nenhum mal? Você fez o melhor que pôde para

enforcar um homem inocente. Se não fosse poreste cavalheiro aqui, não estou certo de quevocê não teria obtido sucesso.

A miserável criatura começou a choramingar. – Eu lhe asseguro, senhor; era somente uma travessura. – Oh! então foi uma piada? Você não achará divertidopara o seu lado, eu prometo. Tirem-no daí e fiquem nasala de visitas até que eu volte. Sr. Holmes, – ele conti-nuou, quando os outros haviam saído, – eu não pudefalar diante dos policiais, mas não me preocupo em afir-mar, na presença do dr. Watson, que esta é a coisa maisbrilhante que você já fez; entretanto, para mim ainda éum mistério como você o fez. Você salvou a vida de umhomem inocente e evitou um escândalo muito graveque teria arruinado a minha reputação na Força.

Holmes sorriu e deu um tapinha no ombro deLestrade. – Em vez de ser arruinado, meu bom senhor, você veráque a sua reputação cresceu enormemente. Faça apenasalgumas alterações naquele relatório que você estavaescrevendo e eles entenderão como é duro lançar pónos olhos do inspetor Lestrade. – E você não quer que o seu nome apareça?

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– Não, absolutamente. O resultado do trabalho é a sua própria recompensa. Talvez eu também obtenhacrédito em algum dia distante, quando permitir que o meu zeloso historiador exponha uma vezmais o seu papel almaço – eh, Watson? Bem, agora vamos ver de onde esse rato tem espreitado.

Uma lâmina de ripas e gesso atravessava a passagem, a seis pés do final, com uma porta astuciosamenteoculta por trás. O interior era iluminado por aberturas sob os beirais. Alguns itens de mobília e uma provisãode comida e água estavam lá dentro, bem como vários livros e documentos.

– Há uma vantagem de ser um construtor, – disse Holmes assim que saímos. – Ele pôde montar o seupróprio esconderijozinho sem a ajuda de um cúmplice – salvo, evidentemente, aquela sua preciosaempregada, que eu não perderia tempo em acrescentar à sua bolsa, Lestrade.

– Seguirei o seu conselho. Mas como você soube deste lugar, sr. Holmes?– Eu conjeturei que o sujeito estava se escondendo na casa. Quando examinei o corredor e constatei

que ele era seis pés mais curto que o correspondente no andar inferior, ficou bem claro do que setratava. Imaginei que ele não teria coragem de permanecer quieto diante de um alarme de fogo. Nóspodíamos, evidentemente, entrar e capturá-lo, mas foi divertido fazê-lo revelar-se. Além disso,Lestrade, eu lhe devia uma pequena mistificação pela sua gozação matutina.

– Bem, senhor, certamente você se equilibrou comigo quanto a isso. Mas como você pôde saber queele estava na casa?

– A impressão do polegar, Lestrade. Você disse que era definitivo; e assim era, mas num sentidomuito diferente. Eu sabia que ela não estava lá no dia anterior. Eu presto bastante atenção emtermos de detalhes, como você pode ter observado; já havia examinado o corredor e tinha certezaque a parede estava limpa. Portanto, a marca foi colocada durante a noite.

– Mas como?– De modo muito simples. Quando esses pacotes foram lacrados, Jonas Oldacre conseguiu que

McFarlane colocasse os lacres, pressionando o dedo polegar na cera macia. Seria feito tão depressae tão naturalmente que eu duvido que o próprio jovem tenha nenhuma lembrança disso. Muitoprovavelmente foi assim que aconteceu, e o próprio Oldacre não tinha nenhuma noção do uso quefaria disso. Pensando sobre o caso naquele retiro ele de repente percebeu que poderia criar umaevidência absolutamente condenatória contra McFarlane empregando aquela marca de polegar. Eraa coisa mais simples do mundo ele fazer uma impressão de cera do lacre, umedecê-la com tantosangue quanto ele poderia obter de uma picada de alfinete e pôr a marca na parede durante a noite,com a própria mão ou com a de sua empregada. Se você examinar esses documentos que ele levouconsigo para a toca, aposto que encontrará o lacre com a marca de polegar nele.

– Maravilhoso! – disse Lestrade. – Maravilhoso! É tudo tão transparente quanto o cristal, da formaque você coloca. Mas qual é o objetivo dessa profunda decepção, sr. Holmes?

Era divertido ver como as maneiras dominantes do detetive haviam repentinamente mudado para aquelasde uma criança que faz perguntas ao mestre.

– Bem, não penso que isso seja muito difícil de explicar. O cavalheiro que está esperando agora naescada abaixo de nós é uma pessoa muito baixa, maliciosa e vingativa. Você sabe que ele foi umavez recusado pela mãe de McFarlane? Não? Eu lhe disse que você deveria ir primeiro a Blackheathe depois a Norwood. Bem, essa injúria, como ele a considerava, irritou o seu cérebro mau, intrigante,e por toda a sua vida ele almejou vingança, mas nunca surgiu uma oportunidade. Durante os últimosdois anos os negócios foram contra ele – especulações secretas, eu imagino – e o deixaram empéssima situação. Ele estava determinado a fraudar os seus credores e para tal propósito passavacheques vultosos a um certo sr. Cornelius, que é, eu suponho, ele mesmo sob um pseudônimo.Embora não tenha localizado esses cheques, tenho absoluta certeza que foram depositados sob

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aquele pseudônimo em alguma cidade provinciana onde Oldacre eventualmente levava uma duplaexistência. Ele pretendia mudar definitivamente o seu nome, apanhar esse dinheiro e desaparecer,começando uma vida nova em outro lugar.

– Bem, isso é bastante provável.– O golpe do desaparecimento poderia lançar toda a perseguição fora do seu rastro, e ao mesmo

tempo seria uma ampla e esmagadora vingança sobre a antiga namorada, se ele pudesse dar aimpressão de que havia sido assassinado pelo único filho dela. Foi uma obra-prima de vilania e elea levou a cabo como um mestre. A idéia do testamento, que daria um motivo óbvio para o crime, avisita secreta dele sem o conhecimento dos próprios pais, a retenção da bengala, o sangue, osrestos mortais e os botões na pilha de madeira, era tudo admirável. Até poucas horas atrás pareceu-me uma rede da qual não havia nenhuma fuga possível. Mas ele não teve aquele supremo talento doartista: o conhecimento de quando parar. Ele desejou melhorar o que já estava perfeito – puxar acorda ainda mais apertada em torno do pescoço da sua vítima infeliz – e assim arruinou tudo.Vamos descer, Lestrade. Há somente uma ou duas perguntas que eu gostaria de lhe fazer.

A criatura maligna estava sentada em sua própria sala de visitas, com um policial de cada lado.– Era uma brincadeira, meu bom senhor – uma travessura, nada mais, – ele lamentava sem cessar. –

Eu lhe asseguro, senhor, que me escondi simplesmente para observar o efeito do meu desapareci-mento, e estou certo que você não seria tão injusto a ponto de imaginar que eu teria permitido quealgum prejuízo acontecesse ao jovem sr. McFarlane.

– Isso é para um júri decidir, – disse Lestrade. – De qualquer maneira, nós o deteremos sob acusaçãode conspiração, se não de tentativa de assassinato.

– E você descobrirá que os seus credores provavelmente irão bloquear a conta bancária do sr. Cornelius,– disse Holmes.

O homenzinho ergueu-se e voltou os olhos malignos para o meu amigo.– Tenho que lhe agradecer por uma boa peça, – ele disse. – Talvez um dia eu pague a minha dívida.

Holmes sorriu indulgentemente.– Suponho que, ao menos por alguns anos, você achará o seu tempo absolutamente tomado, – ele

disse. – A propósito, o que você colocou na pilha de madeira, além das suas calças velhas? Umcachorro morto, coelhos ou o quê? Você não vai dizer? Meu caro, você é muito indelicado! Bem,bem; naturalmente um par de coelhos daria conta do sangue e das cinzas carbonizadas. Se aindaestá escrevendo os seus apontamentos, Watson, pode colocar alguns coelhos para encerrar.

OS DANÇARINOSHolmes tinha permanecido sentado em silêncio durante algumas horas com seu dorso longo e delgado

encurvado sobre um recipiente químico no qual ele fermentava algum produto particularmente malcheiroso.A cabeça dele estava afundada no peito e do meu ângulo de visão ele se assemelhava a um pássaro magro eestranho, com uma plumagem cinza no rabo e um topete negro.

– Então, Watson, – ele disse, repentinamente, – você não se propõe investir nas ações sul-africanas?Eu esbocei um princípio de surpresa. Acostumado que estava às curiosas faculdades de Holmes, esta

súbita intrusão em meus pensamentos mais íntimos era totalmente inexplicável.– Mas como você pode saber? – eu perguntei.

Ele girou sobre as rodas do tamborete com um tubo-de-ensaio borbulhante na mão e um vislumbre dedivertimento em seus olhos profundos.

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– Agora, Watson, confesse que está completamente surpreso, – ele disse.– Estou.– Eu deveria fazê-lo assinar um papel para tal efeito.– Por que?– Porque em cinco minutos você dirá que é tudo absurdamente simples.– Estou certo que não farei nada dessa natureza.– Você vê, meu caro Watson, – ele colocou o tubo-de-ensaio na prateleira e começou a dissertar com

o ar de um professor dirigindo-se à sua classe –, não é realmente difícil elaborar uma série deconclusões, cada qual dependente da precedente e cada uma delas simples em si mesma. Se depoisde fazê-lo a pessoa simplesmente externa todas as conclusões centrais e apresenta à audiênciasomente o ponto de partida e a conclusão, pode produzir um efeito assustador, embora possivel-mente vulgar. Agora não foi realmente difícil, por uma inspeção do estado dos seus dedos indicadore polegar esquerdos, sentir seguramente que você não se propôs investir um pequeno capital noscampos de ouro.

– Não vejo nenhuma conexão.– É muito provável que não; mas eu posso lhe mostrar rapidamente uma íntima conexão. Aqui estão

os elos muito simples da cadeia:1 Quando você voltou do clube ontem à noite, tinha giz entre os dedos indicador e polegar

da mão esquerda;2 Você passou giz neles enquanto jogava bilhar, confirmando a suposição;3 Você nunca joga bilhar exceto com Thurston;4 Quatro semanas atrás você me contou que Thurston tinha uma opção em alguma

propriedade sul-africana que expiraria em um mês, e a qual ele desejou que vocêcompartilhasse com ele;

5 Seu talão de cheques está trancado na minha gaveta e você não me pediu a chave;6 Você não está disposto a investir o seu dinheiro dessa maneira”.

– Como é absurdamente simples! – eu exclamei.– Isso mesmo! – ele disse, um pouco exasperado. – Todo problema torna-se muito infantil uma vez

que lhe é explicado. Eis aqui um ainda não explicado. Veja o que você pode fazer dele, amigoWatson.

Ele lançou uma folha de papel sobre a mesa e voltou à sua análise química.Eu olhei espantado para os absurdos hieróglifos no papel.

– Ora, Holmes, é uma criança desenhando! – eu exclamei.– Oh, essa é a sua idéia!– O que mais poderia ser?– Isso é o que o sr. Hilton Cubitt, de Riding Thorpe Manor, Norfolk, está muito ansioso para descobrir.

Este pequeno enigma veio pelo primeiro correio e ele deve seguir no próximo trem. Há alguémtocando a campainha, Watson; eu não ficaria muito surpreso se fosse ele.

Ouvimos um passo pesado nos degraus e um momento depois adentrou à sala um cavalheiro alto,corado e bem barbeado, cujos olhos claros e bochechas coradas falavam de uma vida conduzida longedas névoas da Baker Street. Assim que entrou ele pareceu trazer consigo uma brisa forte do ar fresco etonificante da costa leste. Tendo apertado as mãos de cada um de nós, ele estava a ponto de se sentarquando os seus olhos encontraram o papel com as curiosas marcas que eu há pouco havia examinado edeixado sobre a mesa.

– Bem, sr. Holmes, o que se faz com isso? – ele lamentou. – Disseram-me que você era apaixonado

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por mistérios esquisitos e eu imagino quevocê não poderá encontrar algum maisbizarro que esse. Enviei o papel na frente,de forma que você tivesse tempo de estudá-lo antes que eu chegasse.

– É certamente uma produção bem curiosa,– disse Holmes. – À primeira vista pareceriaser alguma brincadeira infantil. Consiste devárias pequenas figuras absurdas quedançam pelo papel no qual foram desenha-das. Por que você deveria atribuir algumaimportância a um objeto tão grotesco?

– Eu jamais o faria, sr. Holmes, mas a minhaesposa sim. Ela está mortalmente amedron-tada. Ela não diz nada, mas eu posso ver oterror em seus olhos. É por isso que pre-tendo peneirar o assunto a fundo.

Holmes levantou o papel de forma que a luz solaro iluminasse completamente. Era uma páginaarrancada de um caderno. As marcas foram feitas alápis e tinham este aspecto:

Holmes o examinou durante algum tempo e então, dobrando-o cuidadosamente, colocou-o em seu livrode bolso.

– Isto promete ser um caso dos mais interessantes e incomuns, – ele disse. – Você forneceu algunsparticulares em sua carta, sr. Hilton Cubitt, mas eu ficaria muito agradecido se revisasse tudo nova-mente em benefício do meu amigo, o dr. Watson.

– Eu não sou muito de contar histórias, – disse o nosso visitante, enquanto apertava e torcianervosamente as suas mãos grandes e fortes. – Se alguma coisa não estiver clara, basta interromper-me. Começarei da época do meu casamento, no ano passado, mas em primeiro lugar quero dizerque, embora não seja um homem rico, meu pessoal está em Riding Thorpe há coisa de cinco séculos,e não há nenhuma família mais conhecida no condado de Norfolk. No ano passado eu vim a Londrespara o Jubileu e hospedei-me numa pensão da Russell Square porque Parker, o vigário da nossaparóquia, já estava ali. Na pensão havia uma jovem senhora americana – Patrick era seu nome –Elsie Patrick. De algum modo nos tornamos amigos, e antes de se passar um mês eu estava tãoapaixonado quanto um homem pode ficar. Nós nos casamos discretamente num cartório de registrocivil e retornamos a Norfolk como marido e mulher. Você certamente pensará que é muito insensatoum homem de uma boa família tradicional casar-se dessa forma com uma mulher de cujo passadonada sabe, ou das pessoas de sua família, mas se você a visse e a conhecesse, isso o ajudaria acompreender, sr. Holmes.“Ela, Elsie, era muito direta sobre isso. Não posso dizer que ela não tenha me dado todas as oportu-nidades de escapar disso, se eu assim o desejasse. ‘Eu tive algumas associações tão desagradáveis

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em minha vida‘, disse ela, ‘que desejo esquecê-las completamente. Eu preferiria nunca aludir aopassado, pois isso é muito doloroso para mim. Se você me quer, Hilton, terá uma mulher que nãotem nada de que possa ficar pessoalmente envergonhada, mas terá de se satisfazer com a minhapalavra sobre isso e permitir que eu me cale sobre todo aquele tempo que se passou até que metornei sua. Se estas condições são muito duras, então volte para Norfolk e deixe-me viver sozinhacomo você me encontrou’. Foi somente no dia anterior ao nosso casamento que ela me disse essasexatas palavras. Eu respondi que estava satisfeito de tomá-la em suas próprias condições, e fuicorreto quanto à minha palavra.“Bem, nós agora estamos casados há um ano, e fomos muito felizes. Mas no fim de junho, cerca deum mês atrás, percebi os sinais de dificuldade pela primeira vez. Um dia minha esposa recebeu umacarta da América; eu vi o selo americano. Ela ficou mortalmente pálida, leu a carta e lançou-a aofogo. Não fez nenhuma alusão a ela depois disso, e eu nada fiz, pois promessa é promessa, mas apartir daquele momento ela nunca mais teve uma hora tranqüila. Há sempre um olhar de medo suaface – um olhar como se ela estivesse esperando, na expectativa de algo. Ela faria melhor confiandoem mim; descobriria que sou o seu melhor amigo. Mas até que ela se abra, nada posso fazer. Tenhaem mente, sr. Holmes, que ela é uma mulher sincera, e qualquer dificuldade que possa ter ocorridoem sua vida passada não foi devida a nenhuma falta sua. Sou apenas um simples escudeiro deNorfolk, mas não há um homem na Inglaterra que ponha a honra de sua família num pedestal maisalto do que eu. Ela sabe bem disto, e foi bem informada a respeito antes de nos casarmos. Ela nuncanos traria qualquer mancha – disso eu estou seguro.“Bem, agora eu chego à parte esquisita da minha história. Cerca de uma semana atrás – na terça-feira da semana passada – encontrei sobre uma das portas-janelas diversas pequenas figuras estranhasdançando, como essas no papel. Elas foram rabiscadas com giz. Pensei que o garoto do estábulo ashavia desenhado, mas o rapaz jurou não saber nada a respeito. De qualquer maneira, elas tinhamaparecido lá durante a noite. Eu lavei os rabiscos e só depois mencionei o assunto à minha esposa.Para minha surpresa, ela tomou isso muito a sério e me implorou que a deixasse ver qualquer outrafigura que porventura surgisse. Nada aconteceu durante uma semana; então, ontem pela manhã,achei este papel que fora deixado no relógio de sol do jardim. Mostrei-o a Elsie e ela caiu numalanguidez mortal. Desde então ela parece uma mulher em um sonho, meio entorpecida, com oterror sempre à espreita em seus olhos. Foi aí que escrevi e lhe enviei o papel, sr. Holmes. Não eraum assunto que eu pudesse levar à polícia, porque eles teriam rido de mim, mas você poderá dizer-me o que fazer. Não sou um homem rico, mas se houver qualquer perigo ameaçando a minhamulherzinha, eu gastaria o meu último cobre para protegê-la”.

Este representante da antiga terra inglesa era uma boa criatura – simples, direto e suave, com seus grandesolhos azuis e sérios e sua face larga, graciosa. O amor pela esposa e a sua confiança nela brilhavam em suasfeições. Holmes tinha ouvido a história com extrema atenção, e agora sentou-se por algum tempo emreflexão silenciosa.

– Você não acha, sr. Cubitt, – ele disse, afinal, – que a melhor estratégia seria apelar diretamente à suaesposa e lhe pedir que compartilhe esse segredo com você?

Hilton Cubitt tremeu sua cabeça volumosa.– Uma promessa é uma promessa, sr. Holmes. Elsie poderia me contar, se desejasse; caso contrário,

não posso forçar a sua confiança. Estou justificado em assumir o meu compromisso – e vou mantê-lo.– Então eu o ajudarei com todo o meu coração. Em primeiro lugar, você ouviu falar de qualquer

estranho sendo visto em sua região?– Não.

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– Presumo que é um lugar muito quieto. Qualquer rosto estranho causaria comentários?– Nas vizinhanças imediatas, sim. Mas nós temos diversos pequenos balneários não muito distantes.

E os fazendeiros também alojam hóspedes.– Estes hieróglifos têm um significado, evidentemente. Se forem puramente arbitrários, pode ser

impossível solucionarmos isso. Por outro lado, se forem sistemáticos, não tenho nenhuma dúvidaque chegaremos ao fundo da questão. Mas esta amostra em particular é tão curta que eu nadaposso fazer, e os fatos que você me trouxe são tão indefinidos que não temos base alguma para umainvestigação. Sugiro que você volte a Norfolk, mantenha uma vigilância atenta e faça uma cópiaexata de qualquer novo dançarino que apareça. É realmente lamentável que não tenhamos umareprodução daqueles que foram desenhados a giz na porta-janela. Faça também uma investigaçãodiscreta sobre qualquer estranho na vizinhança. Quando tiver coletado alguma nova evidência,venha a mim imediatamente. Este é o melhor conselho que posso lhe dar, sr. Hilton Cubitt. Seocorrer qualquer novo desenvolvimento urgente, estarei sempre pronto para encontrá-lo rapida-mente em sua casa de Norfolk.

A entrevista deixou Sherlock Holmes muito pensativo, e nos dias seguintes várias vezes o vi retirar opapel do seu livro de bolso e observar seriamente as curiosas figuras nele inscritas por muito tempo. Contudo,não fez nenhuma alusão à tarefa até uma tarde, uns quinze dias depois. Eu estava saindo quando ele mechamou de volta.

– É melhor você ficar aqui, Watson.– Por quê?– Porque eu recebi um telegrama de Hilton Cubitt esta manhã. Você se lembra de Hilton Cubitt, dos

dançarinos? Ele estava na Liverpool Street às 13:20, e pode chegar aqui a qualquer momento. Deduzopelo telegrama que houve alguns novos incidentes de importância.

Não tivemos de esperar muito porque o nosso escudeiro de Norfolk veio diretamente da estação, tãorápido quanto uma charrete podia trazê-lo. Ele parecia preocupado e deprimido, com os olhos cansados e atesta enrugada.

– Este negócio está dando cabo dos meus nervos, sr. Holmes, – ele disse, e afundou numa poltronacomo um homem esgotado. – É bastante ruim sentir-se rodeado por algo invisível, desconhecido,que tem alguma espécie de desígnio sobre você; mas quando, além disso, você sabe que essa coisaestá matando a sua esposa aos poucos, torna-se então mais do que a carne e o sangue podemsuportar. Isso a está consumindo diante dos meus olhos.

– Ela tem dito qualquer coisa, entretanto?– Não, sr. Holmes, ela nada diz. Houve momentos em que a pobrezinha quis falar, mas ainda não

pôde retornar totalmente das profundezas em que mergulhou. Tentei ajudá-la, mas talvez o tenhafeito desajeitadamente e acabei assustando-a. Ela falou sobre a minha família antiga, nossa reputaçãono condado, do orgulho por nossa honra imaculada, e eu sempre sentia que estava atingindo aoponto, mas ela de alguma forma se desligou antes que chegássemos lá.

– Mas você descobriu algo por si mesmo?– Em boa quantidade, sr. Holmes. Tenho vários quadros novos de dançarinos para você examinar e, o

que é mais importante, vi o camarada.– O quê, o homem que os desenha?– Sim, eu o vi trabalhando, mas deixe-me contar tudo em ordem. Quando retornei depois da minha

visita a você, a primeira coisa que vi manhã seguinte foi uma nova safra de dançarinos. Foramdesenhados a giz na madeira negra da porta da casa de ferramentas, que fica ao lado do gramado ecompletamente à vista das janelas frontais. Fiz uma reprodução exata; aqui está.

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Ele desdobrou um papel e o estendeu sobre a mesa. Eis uma cópia dos hieróglifos:

– Excelente! – exclamou Holmes. – Excelente! Por favor, prossiga.– Quando terminei de fazer a cópia, apaguei as marcas; mas, duas manhãs depois, uma nova inscrição

tinha aparecido. Tenho uma cópia dela aqui:

Holmes esfregou as mãos e sorriu satisfeito.– Nosso material está se acumulando rapidamente, – ele disse.– Três dias depois, uma mensagem fora rabiscada num papel e deixada sob um seixo, no relógio de

sol. Aqui está. Os caracteres são, como você pode ver, exatamente iguais aos últimos. Depoisdisso eu fiquei determinado a esperar; assim, tirei o meu revólver e sentei-me em meu escritório,que é sobranceiro ao gramado e ao jardim. Eu estava sentado à janela aproximadamente às duasda manhã; tudo estava escuro, exceto pelo luar, quando ouvi passos atrás de mim e lá estava aminha esposa em camisola. Ela me implorou que viesse para a cama. Eu lhe disse francamenteque desejava descobrir quem brincava conosco com tais truques absurdos. Ela respondeu que eraalguma piada insensata e que eu não deveria meimportunar com isso.“‘Se realmente o aborrece, Hilton, poderíamos irviajar, você e eu, e assim evitaríamos essaamolação’.“‘Você acha que seremos expulsos de nossaprópria casa por um praticante de brincadeiras?’eu disse. ‘Se o fizéssemos, teríamos o condadointeiro a rir de nós’.“‘Está bem, venha para a cama’; disse ela, ‘pode-mos discutir isso pela manhã’.“De repente, assim que ela terminou de falar, viaquele rosto pálido ficar ainda mais branco aoluar e sua mão pressionou o meu ombro. Algumacoisa estava se deslocando na sombra da casa deferramentas. Eu vi uma figura escura e furtiva querastejou em torno da quina e se agachou emfrente à porta. Apanhei a pistola e estava saindoapressado quando minha esposa lançou seusbraços à minha volta e segurou-me com umaforça convulsiva. Tentei livrar-me, mas ela estavadesesperadamente agarrada a mim. Afinalconsegui libertar-me, mas até abrir a porta e

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chegar à casa, a criatura havia desaparecido. Ela deixara um rastro da sua presença; contudo, lá naporta estava o mesmo arranjo de dançarinos que já tinha aparecido duas vezes, e que copiei naquelepapel. Não havia nenhum outro sinal do camarada em qualquer parte, embora eu tenha verificado ochão em toda a volta. E a coisa ainda mais surpreendente é que ele deve ter ficado lá todo o tempo,pois quando examinei a porta novamente, pela manhã, ele tinha rabiscado um pouco mais dos seusdesenhos abaixo da linha que eu já tinha visto.

– Havia desenhos novos?– Sim, muito poucos, mas eu fiz uma cópia deles; eis aqui.

Ele apanhou outro papel. A nova dança estava assim:

– Diga-me, – disse Holmes (e eu podia ver pelos seus olhos que ele estava muito excitado) – este foiuma mera adição ao primeiro ou parecia ser completamente separado?

– Estava num painel diferente da porta.– Excelente! Isto é de longe o mais importante de tudo para o nosso propósito. Enche-me de esperanças.

Agora, sr. Hilton Cubitt, por favor continue a sua declaração deveras interessante.– Nada mais tenho a dizer, sr. Holmes, a não ser que estava zangado com a minha esposa por ter me

segurado à noite, quando eu poderia ter apanhado o maroto esquivo. Ela disse que receou que euviesse a me prejudicar. Por um momento passou pela minha mente que talvez o que ela realmentetemesse era que ele fosse prejudicado, porque eu não pude duvidar que ela soubesse quem era essehomem e o que ele queria dizer com estes estranhos sinais. Mas há uma entonação na voz da minhaesposa, sr. Holmes, e um vislumbre em seus olhos que proíbem a dúvida; estou seguro de que erarealmente a minha própria segurança que estava em sua mente. Este é todo o caso, e agora desejoo seu conselho sobre o que devo fazer. Minha própria inclinação é pôr meia dúzia dos rapazes daminha fazenda no matagal e, quando esse camarada vier novamente, dar-lhe uma surra tal que elenos deixará em paz pelo futuro.

– Temo que este é um caso muito profundo para remédios tão simples, – disse Holmes. – Quantotempo você pode ficar em Londres?

– Devo voltar hoje. Não deixaria a minha esposa sozinha toda a noite por coisa alguma. Ela está muitonervosa e implorou-me que voltasse.

– Acho que você tem razão. Mas se pudesse ficar, eu possivelmente poderia voltar com você em umdia ou dois. Enquanto isso você deixará estes papéis comigo, e penso que é muito provável quepossa brevemente fazer-lhe uma visita e lançar alguma luz em seu caso.

Sherlock Holmes preservou a sua tranqüila maneira profissional até a partida de nosso visitante, emborafosse fácil para mim – que o conhecia tão bem – notar que ele estava profundamente excitado. No momentoem que os ombros largos de Hilton Cubitt desapareceram pela porta, meu camarada voltou apressado àmesa, dispôs todos os recortes de papel contendo os dançarinos à sua frente e lançou-se num cálculocomplexo e elaborado. Durante duas horas eu o observei cobrir folha após folha de papel com figuras eletras, tão completamente absorto em sua tarefa que evidentemente havia se esquecido da minha presença.Às vezes ele fazia progresso e assobiava ou cantava enquanto trabalhava; às vezes ficava confuso e entãosentava-se por longos períodos com as sobrancelhas arqueadas e um olhar vago. Finalmente ele saltou desua cadeira com um grito de satisfação e caminhou pelo quarto para cima e para baixo, esfregando as mãos.

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Então ele escreveu um longo telegrama em um formulário.– Se a minha resposta a isto for como espero, você terá um caso muito bonito para acrescentar à sua

coleção, Watson, – ele disse. – Espero que possamos ir a Norfolk amanhã e levar ao nosso amigoalgumas notícias muito definidas quanto ao segredo dos seus aborrecimentos.

Eu confesso que estava cheio de curiosidade, mas sabia que Holmes gostava de fazer as suas revelaçõesna ocasião apropriada e à sua própria maneira; assim, aguardei o momento em que deveria voltar-me a suaconfiança.

Mas houve uma demora na resposta ao telegrama e seguiram-se dois dias de impaciência durante osquais Holmes empinava as orelhas a cada toque de campainha. Na segunda noite chegou uma carta deHilton Cubitt. Tudo estava bem com ele, exceto que uma longa inscrição tinha aparecido aquela manhã nopedestal do relógio de sol. Ele anexou uma cópia dela, que vai aqui reproduzida:

Holmes curvou-se durante alguns minutos sobre esse friso grotesco e então, repentinamente, levantou-se de um salto com uma exclamação de surpresa e desânimo. Seu rosto estava desfigurado pela ansiedade.

– Nós deixamos este negócio ir muito longe, – ele disse. – Há um trem para North Walsham estanoite?

Eu peguei o horário de trens. O último tinha partido há pouco.– Então tomaremos o desjejum bem cedo e pegaremos o primeiro da manhã, – disse Holmes. –

Nossa presença é urgentemente necessária. Ah! aqui está o esperado cabograma. Um momento,sra. Hudson, pode haver uma resposta. Não; isto é exatamente como eu esperava. Esta mensagemtorna até mesmo mais essencial que não percamos uma hora sem deixar Hilton Cubitt a par doassunto, pois é uma teia singular e perigosa essa na qual o nosso simples escudeiro de Norfolk estáemaranhado.

Realmente, assim foi demonstrado, e conforme chego à conclusão de uma história obscura que a mimhavia parecido apenas infantil e esdrúxula, experimento uma vez mais o desânimo e o horror de que estavacheio. Eu preferiria dispor de algum final mais brilhante para comunicar aos meus leitores, mas estas são ascrônicas do fatos e eu devo prosseguir à sombria crise da estranha cadeia de eventos que durante algunsdias fizeram de Riding Thorpe Manor uma expressão familiar por toda a extensão da Inglaterra.

Mal havíamos descido em Norte Walsham e mencionado o nome de nosso destino quando o chefe daestação apressou-se em nos encontrar.

– Suponho que vocês são os detetives de Londres? – ele disse.Um olhar de contrariedade passou pelo rosto de Holmes.

– O que o faz pensar tal coisa?– Porque o inspetor Martin de Norwich passou há pouco. Mas talvez vocês sejam os médicos. Ela não

está morta – ou não estava, pelas últimas notícias. Contudo, vocês podem ter tempo de salvá-la –entretanto, é para a forca.

As sobrancelhas de Holmes estavam contraídas de ansiedade.– Nós vamos para Riding Thorpe Manor, – ele disse, – mas nada ouvimos do que se passou lá.– É um negócio terrível, – disse o chefe de estação. – Eles foram alvejados, o sr. Hilton Cubitt e a

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esposa. Ela atirou nele e então em si mesma –assim dizem os criados. Ele está morto e ela emcondição desesperadora. Meu Deus, uma dasfamílias mais antigas do condado de Norfolk, euma das mais honradas.

Sem dizer palavra Holmes chamou umacarruagem apressadamente e durante as setelongas milhas do percurso ele não abriu a boca.Raramente tive oportunidade de vê-lo tãototalmente desesperado. Ele estivera intranqüilodurante toda a nossa viagem da cidade e eu

observei que ele tinha lido os jornais matutinos comatenção ansiosa, mas agora esta súbita concretização

dos seus piores receios o deixaram numa melancoliavazia. Ele recostou-se em seu assento, perdido em

mórbida especulação. Ao redor ainda havia muito paranos interessar, porque estávamos agora atravessando uma

zona rural como qualquer outra da Inglaterra, onde algumascabanas espalhadas representavam a população do dia-a-dia,

enquanto de cada lado sobressaíam-se as enormes torres quadradas das igrejas eriçadas sobre a paisagemde planícies verdes, falando da glória e da prosperidade da antiga East Anglia. Afinal a beirada violácea doMar do Norte apareceu por cima da extremidade verde da costa de Norfolk e o condutor apontou com ochicote os antigos blocos de tijolo e os coruchéus de madeira que se projetavam de um arvoredo frutífero.

– Isso é Riding Thorpe Manor, – ele disse.Conforme chegamos ao pórtico frontal, observei em frente a ele, ao lado do gramado de tênis, a casa de

ferramentas negra e o relógio de sol com pedestal com os quais tivemos as mais estranhas associações. Umhomenzinho esperto, de modos rápidos, alerta e com um bigode encerado, acabava de apear de um cabrioléalto. Ele se apresentou como inspetor Martin, da polícia distrital de Norfolk, e ficou consideravelmentesurpreso ao ouvir o nome do meu companheiro.

– Por que, sr. Holmes, o crime só foi cometido às três horas desta madrugada. Como você poderiaouvir falar dele em Londres e chegar ao local junto comigo?

– Eu o antecipei, e vim na esperança de preveni-lo.– Então você deve ter uma evidência importante, a qual ignoramos, porque se diz que eles formavam

um casal muito unido.– Eu tenho apenas a evidência dos dançarinos, – disse Holmes. Depois lhe explicarei o assunto.

Enquanto isso, desde que é muito tarde para prevenir essa tragédia, estou muito ansioso e devoempregar o conhecimento que possuo para assegurar que a justiça seja feita. Você se associará amim em sua investigação ou prefere que eu aja independentemente?

– Eu deveria sentir-me orgulhoso de trabalharmos juntos, sr. Holmes, – disse o inspetor comsinceridade.

– Neste caso eu ficaria satisfeito em ouvir as evidências e examinar as premissas sem um momentode desnecessária demora.

O inspetor Martin teve o bom-senso de permitir que o meu amigo fizesse as coisas do seu próprio jeito,contentando-se em anotar cuidadosamente todos os resultados. O médico local, um homem idoso, decabeleira branca, descera há pouco do quarto da sra. Hilton Cubitt, e informou que os ferimentos dela eram

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sérios, mas não necessariamente fatais. A bala tinha atravessado a parte frontal do seu cérebro e provavelmenteseria necessário algum tempo antes que ela pudesse recuperar a consciência. Se ela tinha sido alvejada ouhavia atirado em si mesma, nessa questão ele não aventurava expressar qualquer opinião definitiva. Certamentea bala tinha sido disparada a curta distância. Só foi encontrada uma pistola no quarto, com dois cartuchosdeflagrados. O sr. Hilton Cubitt fora atingido no coração. Era igualmente concebível que ele tivesse atiradonela e então em si mesmo, ou que ela tenha sido a criminosa, pois a arma estava no chão, numa posiçãointermediária entre os dois.

– Alguma coisa foi movida? – perguntou Holmes.– Nada foi movido, exceto a senhora. Não podíamos deixá-la ferida, deitada no chão.– Há quanto tempo está aqui, doutor?– Desde as quatro horas.– Havia mais alguém?– Sim, o policial aqui.– E você não tocou em nada?– Nada.– Você agiu com grande discrição. Quem o chamou?– A criada da casa, Saunders.– Foi ela quem deu o alarme?– Ela e a sra. King, a cozinheira.– Onde estão elas agora?– Na cozinha, creio eu.– Então eu penso que é melhor ouvirmos imediatamente a história delas.

O antigo corredor, apainelado em carvalho e de grandes janelas, tinha se transformado num tribunal deinquérito. Holmes sentou-se numa cadeira grande, antiquada, com os olhos inexoráveis vislumbrando daface desfigurada. Eu poderia ler neles um propósito fixo de dedicar a sua vida a esta investigação até que ocliente – a quem ele não pôde salvar – afinal fosse vingado. O bem disposto inspetor Martin, o velho médicorural de cabeça acinzentada, eu e um estólido policial de aldeia completávamos aquela estranha companhia.

As duas mulheres contaram as suashistórias com bastante clareza. Elas foramdespertadas do seu sono pelo som de umaexplosão, seguida um minuto depois por umasegunda. Elas dormiam em quartos adjacen-tes e a sra. King entrou rapidamente no quartoda sra. Saunders. Elas desceram juntas osdegraus. A porta do escritório estava abertae uma vela ardia sobre a mesa. Seu patrãojazia de frente no centro do quarto; ele jáestava morto. Sua esposa estava agachadapróximo à janela, com a cabeça apoiadacontra a parede. Encontrava-se horrivelmenteferida e a lateral do seu rosto estava vermelhacom o sangue. Ela respirava pesadamente,mas era incapaz de dizer qualquer coisa. Apassagem, assim como o quarto, estavamcheios de fumaça e cheiravam a pólvora. A

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janela certamente estava fechada e trancada por dentro. Ambas as mulheres eram positivas quanto a esseponto. Elas chamaram imediatamente o médico e o policial. Então, com a ajuda do cavalariço e do garoto doestábulo, carregaram a sua patroa ferida para o quarto dela. Ela e o marido tinham ocupado a cama. Elaestava vestida com a sua camisola e ele com seu roupão de dormir. Nada fora mexido no escritório. Até ondeelas sabiam, nunca tinha havido qualquer disputa entre o marido e a esposa. Elas sempre os tinham vistocomo um casal muito unido.

Estes eram os pontos principais no testemunho das criadas. Em resposta ao inspetor Martin elas esclare-ceram que todas as porta se encontravam trancadas por dentro e que ninguém poderia ter fugido da casa.Em resposta a Holmes, ambas se lembraram que estavam conscientes do cheiro de pólvora no momento emque saíram dos seus quartos, no andar superior.

– Eu recomendo esse fato muito cuidadosamente à sua atenção, – disse Holmes ao colega de profissão.– E agora suponho que estamos em posição de empreender um completo exame do quarto.

O escritório mostrou-se uma pequena câmara, forrado de livros por três lados, com uma escrivaninha defrente para uma janela comum, de onde se avistava o jardim. Nossa atenção foi primeiramente despertadapelo corpo do infeliz escudeiro, cujo enorme corpo se estendia pelo quarto. Suas roupas em desordemevidenciavam que ele fora despertado bruscamente do seu sono. A bala tinha penetrado nele pela frente eainda permanecia em seu corpo, depois de perfurar o coração. Sua morte certamente tinha sido instantâneae indolor. Não havia nenhuma marca de pólvora no roupão ou nas mãos dele. De acordo com o médicorural, a senhora tinha manchas em sua face, mas nenhuma nas mãos.

– A ausência dos últimos nada significa; entretanto, sua presença pode significar tudo, – disse Holmes.– A menos que aconteça da pólvora de um cartucho mal preenchido espirrar para trás, a pessoapode dar muitos tiros sem deixar um sinal. Eu sugeriria que o corpo do sr. Cubitt fosse removidoagora. Suponho, doutor, que você não recuperou a bala que feriu a senhora?

– Antes que isso seja feito será necessária uma séria cirurgia. Mas ainda há quatro cartuchos norevólver. Duas balas foram deflagradas e duas feridas infligidas, de forma que cada uma das balaspode ser considerada.

– Assim pareceria, – disse Holmes. – Talvez você também possa responder pela bala que tão obviamenteatingiu a extremidade da janela.

Ele tinha se voltado repentinamente e o seu dedo longo e magro apontava um buraco que tinha perfuradodiretamente a folha inferior da janela, uma polegada acima da base.

– Por George! – exclamou o inspetor. – Como você conseguiu vê-lo?– Porque eu procurei por ele.– Maravilhoso! – disse o médico rural. – Certamente você tem razão, senhor. Então um terceiro tiro

foi disparado; então, uma terceira pessoa devia estar presente. Mas quem poderia ter sido, e comoela pôde escapar?

– Esse é o problema que nós estamos a ponto de resolver agora, – disse Sherlock Holmes. – Você selembra, inspetor Martin, quando as criadas afirmaram que ao deixar os seus quartos elas estavambem conscientes do cheiro de pólvora, e eu observei que era um ponto de extrema importância?

– Sim, senhor; mas confesso que não o acompanhei completamente.– Isso sugere que na hora do tiro a janela estava aberta, bem como a porta do quarto; caso contrário

os fumos de pólvora não poderiam ser difundidos tão rapidamente pela casa. Para tanto era neces-sária uma corrente de ar no quarto. Contudo, a porta e janela só foram abertas por um períodomuito curto.

– Como você pode prová-lo?– Porque a vela não estava escorrida.

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– Fundamental! – exclamou o inspetor. – Fundamental!– Percebendo seguramente que a janela tinha ficado aberta na hora da tragédia, concebi que poderia

ter havido uma terceira pessoa presente ao incidente, a qual se ergueu por fora desta abertura eatirou através dela. Qualquer tiro dirigido a essa pessoa poderia atingir a folha da janela. Eu inspecionei,e lá, com bastante certeza, estava a marca da bala!

– Mas como a janela veio a ser fechada e trancada por dentro?– O primeiro instinto da mulher seria fechar e trancar a janela. Mas, epa! O que é isto?

Era uma bolsa-de-mão feminina que se achava sobre a mesa de estudo – uma pequena bolsa em bomestado, de pele de crocodilo e fecho de prata. Holmes a abriu e exibiu o seu conteúdo. Havia vinte notas decinqüenta libras do Banco da Inglaterra, unidas por uma tira de borracha indiana – e nada mais.

– Isto precisa ser preservado, pois constará do julgamento – disse Holmes, enquanto passava a bolsacom o seu conteúdo para o inspetor. – É agora necessário que tentemos lançar alguma luz sobreessa terceira bala que, tendo lascado a madeira, evidentemente foi disparada de dentro do quarto.Eu gostaria de entrevistar novamente a sra. King, a cozinheira. Você afirmou, sra. King, que foidespertada por uma explosão alta. Quando disse isso você quis dizer que lhe pareceu ser mais altaque a segunda?

– Bem, senhor, ela acordou-me do meu sono, e assim é difícil avaliar. Mas parecia muito alta.– Você não acha que poderiam ter sido dois tiros disparados quase ao mesmo tempo?– Estou segura de não poder afirmá-lo, senhor.– Eu acredito que foi indubitavelmente assim. Penso também, inspetor Martin, que agora esgotamos

tudo aquilo que este quarto podia nos ensinar. Se você fizer a gentileza de dar uma volta comigo,veremos que novas evidências o jardim tem a oferecer.

Uma camada de flores estendia-se até a janela do escritório, e todos nós rompemos numa exclamaçãoquando de lá nos aproximamos. As flores foram pisoteadas e a terra macia estava por toda parte impressacom marcas de pés. Eram pés grandes, masculinos, com dedospeculiarmente longos e estreitos. Holmes procurou entre agrama e as folhas como um cão de caça por um pássaroferido. Então, com um grito de satisfação, curvou-se paraa frente e apanhou um pequeno cilindro de latão.

– Eu pensei nisso, – ele disse, – o revólver tinhaum ejetor, e este aqui é o terceiro cartucho.Inspetor Martin, realmente penso que o nossocaso está quase completo.

A face do inspetor rural exibia o seu imenso espantoquanto ao rápido progresso e a destreza da investigaçãode Holmes. A princípio ele tinha mostrado algumadisposição para afirmar a sua própria posição, mas agorafora superado com admiração e sem dúvida estava prontopara seguir onde quer que Holmes o conduzisse.

– De quem você suspeita? – perguntou ele.– Eu chego lá. Há vários aspectos deste problema que

ainda não pude lhe explicar. Agora que estou tão longe,devo proceder o melhor possível segundo os meus próprioscritérios, e então esclarecer a questão de uma vez por todas.

– Como quiser, sr. Holmes, contanto que possamos apanhar

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o nosso homem.– Eu não tenho nenhum ensejo de criar mistério, mas no momento de ação é impossível entrar em

longas e complexas explicações. Eu tenho todas as linhas deste caso em minhas mãos. Mesmo seesta senhora nunca vier a recuperar a consciência, ainda poderemos reconstituir os eventos deontem à noite e assegurar que a justiça seja feita. Em primeiro lugar, desejo saber se nas proximidadeshá uma hospedaria conhecida como ‘Elrige’?

Os criados foram reinquiridos, mas nenhum deles tinha ouvido falar de tal lugar. O garoto do estábulolançou alguma luz, lembrando-se que um fazendeiro com aquele nome vivia a algumas milhas de distância,na direção de East Ruston.

– É uma fazenda solitária?– Muito isolada, senhor.– Talvez eles ainda não tenham ouvido falar de tudo o que se passou aqui durante a noite?– Talvez não, senhor.

Holmes pensou por um momento e então um curioso sorriso brilhou em seu rosto.– Sele um cavalo, meu rapaz, – ele disse. – Eu gostaria que levasse um recado à Fazenda Elrige.

Ele tirou do bolso diversas papeletas com desenhos dos dançarinos. Com estas à sua frente, trabalhoudurante algum tempo à mesa de estudo. Finalmente ele deu uma nota ao garoto com a orientação de entregá-la nas mãos da pessoa a quem fora endereçado e, especialmente, não responder a nenhuma pergunta dequalquer tipo que poderiam lhe fazer. Por fora da nota eu vi que fora em endereçada com caracteres dispersos,irregulares, muito diferentes da habitual escrita precisa de Holmes. Foi consignada ao sr. Abe Slaney, ElrigesFarm, East Ruston, Norfolk.

– Eu penso, inspetor, – observou Holmes, – que você faria bem em telegrafar pedindo uma escolta,pois, se os meus cálculos provarem estar corretos, você pode ter um prisioneiro particularmenteperigoso para conduzir à prisão do condado. O garoto que leva o recado poderia sem dúvida enviaro seu telegrama. Se há um trem à tarde para a cidade, Watson, acho que faríamos bem em pegá-lo,pois eu tenho uma análise química de um certo interesse para terminar, e esta investigação chegarapidamente ao fim.

Quando o jovem partiu com a nota despachada, Sherlock Holmes deu suas instruções aos criados. Sequalquer visita pedisse pela sra. Hilton Cubitt, nenhuma informação deveria ser dada sobre as condiçõesdela, mas o escritório seria imediatamente a mostrado a essa pessoa. Ele destacou estes pontos com extremaseriedade. Finalmente ele dirigiu-se ao escritório, observando que agora o negócio estava fora de nossasmãos e que o melhor a fazer era deixar passar o tempo até podermos ver o que nos estava reservado. Omédico havia partido para atender os seus pacientes e só permanecemos o inspetor e eu.

– Suponho que posso ajudá-lo a passar uma hora de forma interessante e lucrativa, – disse Holmes,enquanto puxava a sua cadeira para a mesa e esparramava à sua frente os diversos documentos emque foram registradas as artimanhas dos dançarinos. – A você, amigo Watson, eu devo todacompensação por ter permitido que a sua curiosidade natural permanecesse por tanto tempoinsatisfeita. A você, inspetor, o incidente todo pode interessar como um notável estudo profissional.Em primeiro lugar, devo lhes falar das interessantes circunstâncias ligadas às consultas prévias queo sr. Hilton Cubitt teve comigo em Baker Street.

Ele então recapitulou os fatos que já foram brevemente registrados.– Tenho aqui diante de mim estas singulares produções, das quais poderíamos rir, não tivessem

demonstrado que foram as precursoras de tão terrível tragédia. Estou bastante familiarizado comtodas as formas de escrita secreta, e sou eu mesmo o autor de uma insignificante monografia sobrea matéria, na qual analiso cento e sessenta criptogramas separados, mas confesso que isto é

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completamente novo para mim. O objetivo daqueles que inventaram o sistema aparentemente foiesconder que estes caracteres carregam uma mensagem, passando a idéia que são meros esboçosaleatórios de crianças.“Contudo, tendo uma vez reconhecido que os símbolos representam letras e aplicado as regras quenos guiam em todas as formas de escritas secretas, a solução era bastante fácil. A primeira mensagema mim submetida era tão curta que foi impossível fazer mais que dizer, com uma certa confiança,que o símbolo XXX representava o E. Como todos sabemos, E é a letra mais comum na escritainglesa, e de tão predominante extensão que até mesmo em uma frase curta deve-se esperar encontrá-la com freqüência. Dos quinze símbolos na primeira mensagem, quatro se repetiam; assim, erarazoável considerá-lo como E. É verdade que em alguns casos a figura estava segurando uma bandeira,em outros, não; mas era provável, pelo modo como as bandeiras foram distribuídas, que elas foramempregadas para quebrar a sentença em palavras. Aceitei isto como hipótese e anotei que o E erarepresentado por:

– Mas agora chegamos à verdadeira dificuldade da investigação. Depois do E, a ordem das letras naescrituração inglesa não é de forma alguma determinada, e qualquer preponderância que possa serexibida em média numa folha impressa, pode ser revertida numa única sentença curta. Falandogrosseiramente, T, A, O, I, N, S, H, R, D e L é a ordem numérica na qual letras ocorrem, mas T, A, Oe I são muito próximas umas das outras, e seria uma tarefa infindável tentar cada uma das combinaçõespossíveis até alcançar um significado; então, esperei por novo material. Em minha segunda entrevistacom o sr. Hilton Cubitt ele pôde me dar duas outras sentenças curtas e uma mensagem que mepareceu – desde que não havia nenhuma bandeira – ser uma única palavra. Aqui estão os símbolos:

“Agora, numa única expressão eu tenho dois E, vindo em segundo e quarto lugar numa palavra decinco letras. Poderia ser ‘sever’ [dividir], ‘lever’ [alavanca] ou ‘never’ [nunca]. Não pode haver dúvidaque a última é uma resposta que de longe atrai como a mais provável, e as circunstâncias apontampara isso como sendo a resposta a uma comunicação da senhora. Aceitando isso como correto,podemos agora dizer que os símbolos

representam respectivamente N, V, e R.“Mesmo agora eu me encontrava em considerável dificuldade, mas um pensamento feliz me colocoude posse de várias outras letras. Ocorreu-me que se esses apelos vieram, como eu conjeturava, dealguém que tinha sido íntimo da senhora em sua vida precoce, uma seqüência que contivesse umacombinação de dois E com outras três letras entre elas poderia muito bem representar o nome

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‘ELSIE’. Examinando eu encontrei aquela tal combinação formando o final da mensagem, que erarepetida três vezes. Isso era certamente algum apelo a ‘Elsie’. Desse modo eu obtive os meus L, S,e I. Mas que apelo poderia ser? Havia apenas quatro letras na palavra que precedia ‘Elsie,’ e elaterminava em E. Seguramente, a palavra deve ser ‘COME’ [venha]. Tentei com todas as outras letrase terminando em E, mas não pude encontrar nenhuma que se ajustasse ao caso. Então, agora euestava de posse de C, O, e M, e tinha condições de atacar mais uma vez a primeira mensagem,dividindo-a em palavras e colocando pontos para cada símbolo ainda desconhecido. Assim tratando,a solução seria:

.M .ERE ..E SL.NE.– Agora, a primeira letra pode ser apenas A, o que é uma descoberta muito útil desde que ocorre nada

menos de três vezes nesta curta sentença, e o H também aparece na segunda palavra. Então asolução se torna:

AM HERE A.E SLANE. [A.E SLANE. ESTÁ AQUI]Ou, preenchendo os óbvios espaços vagos:

ABE SLANEY ESTÁ AQUIEu tinha agora tantas letras que podia proceder com considerável confiança à interpretação da segundamensagem, que traduzi assim:

A. ELRI. ES.Aqui só poderia fazer sentido colocar T e G substituindo as letras ausentes, e conjeturando que onome era de alguma casa ou hotel em que o escritor estava hospedado.

O inspetor Martin e eu tínhamos ouvido com extremo interesse a explanação clara e completa de comoo meu amigo havia produzido os resultados que tinham levado a tão completo comando sobre as nossasdificuldades.

– O que você fez então, senhor? – perguntou o inspetor.– Eu tinha todas as razões para supor que esse Abe Slaney era um americano, desde que Abe é uma

contração tipicamente americana, e que uma carta da América tinha figurado no ponto de partida detodo o problema. Também tive todos os motivos para pensar que havia algum segredo criminosoenvolvido no caso. As alusões da senhora ao seu passado e a recusa dela em confiar no marido,ambos apontavam naquela direção. Eu então telegrafei para o meu amigo, Wilson Hargreave, doNew York Police Bureau, que mais de uma vez fez uso do meu conhecimento do crime em Londres.Perguntei se o nome de Abe Slaney lhe era conhecido. Aqui está a resposta dele: ‘É o trapaceiromais perigoso de Chicago’. Na mesma noite em que recebi essa resposta, Hilton Cubitt enviou-mea última mensagem de Slaney. Trabalhando com as letras conhecidas, assim a interpretei:

ELSIE .RE.ARE TO MEET THY GO.[ELSIE PREPARE-SE PARA ENCONTRAR DEUS]

A adição de um P e um D completou uma mensagem, mostrando-me que o biltre estava evolvendoda persuasão à ameaça, e o conhecimento dos trapaceiros de Chicago preparou-me para supor queele poderia colocar as suas palavras em ação muito rapidamente. Vim imediatamente para Norfolkcom meu amigo e colega, o dr. Watson, mas, infelizmente, apenas a tempo de verificar que o pior jáhavia acontecido.

– É um privilégio estar associado a você na condução de um caso, – disse o inspetor, calorosamente.– Você vai me perdoar, contudo, se eu lhe falo francamente. Você é responsável somente por simesmo, mas eu devo responder aos meus superiores. Se esse Abe Slaney, vivendo em Elrige, érealmente o assassino, e se ele empreendeu fuga enquanto eu estava aqui sentado, devo certamenteficar em sérias dificuldades.

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– Você não precisa se preocupar; ele não tentará escapar.– Como você sabe?– Voar seria uma confissão de culpa.– Então, deixe-nos ir prendê-lo.– Eu o espero aqui a qualquer momento.– Mas por que ele deveria vir.– Porque eu escrevi e lhe pedi.– Mas isso é incrível, sr. Holmes! Por que ele deveria vir apenas para atender à sua solicitação? Tal

pedido preferivelmente não despertaria as suspeitas dele e o faria voar?– Acho que soube modelar a carta, – disse Sherlock Holmes. – Na realidade, se não sou muito

equivocado, aí está o próprio cavalheiro surgindo na trilha.Um homem avançava a largos passos o caminho que conduzia à porta. Era um sujeito alto, bonito,

moreno, trajando um terno de flanela cinza e um chapéu Panamá, com uma barba negra eriçada e um narizgrande, curvo e agressivo, e ostentando um chicote enquanto caminhava. Ele andava de modo afetado,como se o lugar lhe pertencesse, e ouvimos o seu toque estrepitoso e confiante na campainha da porta.

– Eu penso, cavalheiros, – disse Holmes, discre-tamente, – que estaremos melhor posicionados atrásda porta. Toda precaução é necessária ao lidar comtal pessoa. Você precisará das suas algemas, inspetor.Pode deixar que eu trato com ele.

Nós esperamos em silêncio por um minuto – um dessesminutos que jamais se pode esquecer. Então a porta abriu eo homem pisou no interior do quarto. Num instante Holmeslevou a pistola à sua cabeça e o inspetor Martin deslizou asalgemas em seus pulsos. Foi tudo tão rapidamente executadoe com tanta destreza que o camarada viu-se impotente antesperceber que fora atacado. Ele encarou cada um de nós comum par de olhos negros ardentes e então explodiu em umriso amargo.

– Bem, cavalheiros, você levaram a melhor nestemomento. Eu pareço ter batido contra algo duro.Mas eu entrei aqui em resposta a uma carta dasra. Hilton Cubitt. Não me digam que ela estánisto? Não me digam que ela ajudou a prepararuma armadilha para mim?

– Sra. Hilton Cubitt está seriamente ferida, às portasda morte.

O homem deu um grito rouco de aflição que ecooupela casa.

– Você está louco! – ele exclamou, furiosamente. –Era ele quem estava ferido, não ela. Quem teria ferido a pequeno Elsie? Eu posso tê-la ameaçado –que Deus me perdoe! – mas eu não teria tocado num fio de cabelo da sua linda cabeça. Retire o quevocê disse! Diga que ela não está ferida!

– Ela foi encontrada seriamente ferida, ao lado do marido morto.Ele afundou no canapé com um gemido profundo e enterrou a face em suas mãos algemadas. Durante

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uns cinco minutos ele permaneceu calado. Então ergueua cabeça mais uma vez e falou com a fria composturado desespero.

– Eu não tenho nada a ocultar de vocês, cavalheiros,– ele disse. – Se eu atirei no homem que primeiroatirou em mim, não há nisso nenhum assassinato.Mas se vocês pensam que eu poderia ter feridoaquela mulher, então vocês não me conhecemou a ela. Eu lhes digo, jamais houve um homemneste mundo que tivesse amado uma mulhermais do que eu a amei. Eu tinha direito a ela. Elame foi prometida anos atrás. Quem era este inglêspara se colocar entre nós? Eu lhes afirmo que tivedireito a ela primeiro, e que estava apenasreivindicando esse direito.

– Ela se libertou da sua influência quandodescobriu o tipo homem que você é, – disseHolmes severamente. – Ela fugiu da América paraevitá-lo e casou-se na Inglaterra com umcavalheiro honrado. Você a seguiu e a caçou;tornou a vida dela miserável para induzi-laabandonar o marido a quem ela amava e

respeitava para fugir com você, a quem temia eodiava. Você acabou provocando a morte de umhomem nobre e levando a sua esposa ao suicídio.Esse é o seu registro neste negócio, sr. Abe Slaney,e por isto você responderá à lei. – Se Elsie morrer, não me preocupo com nada doque me resta, – disse o americano. Ele abriu umadas mãos e olhou para uma nota amarrotada emsua palma. – Veja aqui, senhor! ele exclamou, comum vislumbre de suspeita em seus olhos, – vocênão está tentando me assustar com isso, não é?Se a senhora está ferida tão gravemente quantovocê diz, quem foi que escreveu esta nota? – Elançou o recado sobre a mesa. – Eu escrevi isso para trazê-lo aqui. – Você o escreveu? Não havia ninguém em todaa terra, fora da Junta, que conhecesse o segredodos dançarinos. Como você pôde escrever isso? – O que um homem pode inventar, outro podedescobrir, – disse Holmes. – Há um táxi para levá-lo a Norwich, sr. Slaney. Mas enquanto isso vocêtem tempo para fazer alguma pequena reparação

ao prejuízo que causou. Você está ciente que a sra. Hilton Cubitt esteve sob séria suspeita do

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assassinato do marido, e que somente aminha presença aqui, e o conhecimento queme aconteceu possuir, salvou-a da acu-sação? O mínimo que você pode fazer éesclarecer para o mundo inteiro que ela nãofoi de maneira alguma, direta ou indireta-mente, responsável pelo trágico fim domarido.

– Nada mais desejo além disso, – disse oamericano. – Estimo que o melhor queposso fazer por mim mesmo neste caso étrazer a verdade absolutamente nua.

– É meu dever adverti-lo que o seu depoi-mento poderá ser usado contra você, –exclamou o inspetor, com a magníficajusteza da lei criminal britânica.

Slaney encolheu os ombros.– Vou correr o risco, – ele disse. – Em primeiro

lugar, quero que os cavalheiros compre-endam que eu conhecia esta senhora desdeque ela era uma criança. Havia sete de nós em uma gangue de Chicago, e o pai de Elsie era o chefeda Junta. O velho Patrick era um homem inteligente. Foi ele quem inventou aquela escrita quepassaria por um rabisco de criança a menos que você conhecesse a sua chave. Bem, Elsie aprendeualguns dos nossos truques, mas não podia participar do negócio, e dispunha de um pouco de dinheirohonesto dela mesma, assim ela escapou de nós e fugiu para Londres. Nós havíamos noivado e elateria se casado comigo, creio, se eu tivesse assumido outra profissão, mas ela não teria nada a vercom qualquer coisa desonesta. Só pude descobrir onde ela estava quando se casou com esse inglês.Eu lhe escrevi, mas não obtive resposta. Depois disso eu vim para cá e, como as cartas não eramconvenientes, pus as minhas mensagens onde sabia que ela as poderia ler.“Bem, agora faz um mês que estou aqui. Hospedei-me naquela fazenda abaixo, onde tinha umquarto independente, podendo entrar e sair todas as noites sem ninguém saber. Tentei tudo o quepude para persuadir Elsie a fugir comigo. Eu sabia que ela havia lido as mensagens, por uma ocasiãoem ela escreveu uma resposta abaixo de uma delas. Então a minha paciência se esgotou e eu comeceia ameaçá-la. Ela então enviou-me uma carta, implorando que eu fosse embora e dizendo que partiriao seu coração se qualquer escândalo surpreendesse o seu marido. Ela disse que desceria quando omarido estivesse adormecido, às três da manhã, e falaria comigo através da janela do escritório, seeu depois fosse embora e a deixasse em paz. Ela desceu e trouxe dinheiro com ela, tentando mesubornar para que eu partisse. Isso me deixou furioso; eu peguei o braço dela e tentei puxá-la pelajanela. Naquele momento o marido apareceu impetuosamente, com o revólver em sua mão. Elsietinha escorregado para o chão e nós ficamos cara a cara. Eu também estava prevenido; segurei aminha arma para espantá-lo e me permitir escapar. Ele atirou na minha direção e errou. Eu atireiquase no mesmo instante; ele foi atingido e caiu. Eu fugi pelo jardim, e assim que sai pude ouvir ajanela sendo fechada atrás de mim. Por Deus, essa é toda a verdade, cavalheiros, cada palavra disto,e nada mais soube do assunto até vir aquele rapaz simplório a cavalo com a nota que aqui me trouxeàs suas mãos”.

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Enquanto o americano ainda estava falando, um táxi havia chegado com dois policial uniformizados. Oinspetor Martin subiu e tocou no ombro do seu prisioneiro.

– Está na hora de irmos.– Posso vê-la primeiro?– Não, ela está inconsciente. Sr. Sherlock Holmes, só espero que se aparecer novamente um caso

importante, eu tenha a boa fortuna de tê-lo do meu lado.Nós levantamos a janela e vimos o táxi partir. Assim que me voltei, meus olhos foram atraídos pela

bolinha de papel que o prisioneiro tinha lançado sobre a mesa. Era a nota com que Holmes o havia atraído.– Veja se pode ler isso, Watson, – ele disse, com um sorriso.

Não continha nenhuma palavra, mas esta pequena linha de dançarinos:

– Se você empregar o código como lhe expliquei, – disse Holmes, – descobrirá que significa simples-mente ‘venha aqui imediatamente’. Eu estava convencido que era um convite que ele não recusaria,desde que ele nunca poderia imaginar que viria de qualquer outra pessoa, e sim da senhora. Eassim, meu caro Watson, terminamos voltando os dançarinos para o bem quando eles têm sido tãofreqüentemente agentes do mal, e penso que cumpri a minha promessa de lhe dar algo incomumpara o seu caderno. O nosso trem é às três e quarenta, e suponho que deveremos estar de volta àBaker Street para o jantar.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Somente uma palavra de epílogo. No inverno, o americano, Abe Slaney, foi condenado à morte pelo

tribunal de Norwich, mas a sua sentença foi comutada para servidão penal em virtude de circunstânciasatenuantes, e a certeza de que Hilton Cubitt tinha disparado o primeiro tiro. Da sra. Hilton Cubitt sei apenaso que ouvi – que ela se recuperou completamente e que ainda permanece viúva, dedicando toda a sua vidaao cuidado dos pobres e à administração das propriedades do marido.

O CICLISTA SOLITÁRIOEntre os anos de 1894 a 1901, inclusive, o sr. Sherlock Holmes foi um homem muito atarefado. É seguro

dizer que não houve nenhum caso público de alguma complexidade em que ele não fosse consultado duranteaqueles oito anos, e ainda se sucederam centenas de casos particulares – algum deles apresentando enredoscomplicados e extraordinários – nos quais ele exerceu um papel proeminente. O resultado desse longoperíodo de trabalho contínuo foram muitos sucessos surpreendentes e alguns inevitáveis fracassos. Comoeu preservei muitas anotações completas de todos esses casos – e estive pessoalmente envolvido em muitosdeles – pode-se imaginar que não é um trabalho fácil saber o que deveria selecionar para expor diante dopúblico. Irei, contudo, preservar a minha regra anterior, e dar preferência àqueles casos que derivam o seuinteresse não tanto da brutalidade do crime quanto da ingenuidade e qualidade dramática da solução. Porisso agora deleitarei o leitor diante dos fatos ligados à senhorita Violet Smith, a ciclista solitária de Charlington,e as curiosas conseqüências de nossa investigação que culminou numa inesperada tragédia. É verdade queas circunstâncias não admitiram qualquer exemplo daqueles notáveis poderes pelos quais o meu amigo era

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tão famoso, mas houve alguns pontos sobre ocaso que o fizeram salientar-se entre estes longosregistros de crimes dos quais eu colho materialpara estas curtas narrativas.

Revendo o meu caderno de anotações do anode 1895, encontro que foi num em sábado, 23de abril, que ouvimos falar pela primeira vez dasenhorita Violet Smith. Recordo que a sua visitafoi extremamente mal recebida por Holmes,porque ele no momento estava imerso numproblema muito abstruso e complexo, relativo àestranha perseguição à qual havia se sujeitadoJohn Vincent Harden, o notório milionário dotabaco. Meu amigo, que amava acima de tudo aprecisão e a concentração do pensamento,ressentia-se contra qualquer coisa que lhedistraísse a atenção do assunto em mãos. E ainda,sem a rispidez que era estranha à sua natureza,era impossível recusar ouvir a história da moçajovem, bonita, alta, graciosa e majestosa, que

apresentou-se na Baker Street ao entardecer e implorou por sua ajuda e conselho. Foi inútil urgir que o seutempo já estava completamente tomado, porque a jovem senhorita tinha vindo com a determinação decontar a sua história, e era evidente que nada exceto a força poderia tirá-la do quarto até que o tivesse feito.Com um ar resignado e um sorriso um pouco cansado, Holmes implorou que a linda intrusa se sentasse enos informasse o que era que a estava a aborrecendo.

– Pelo menos não pode ser a sua saúde, – ele disse, como os olhos agudos dardejando em cima damoça, – uma ciclista tão ardente deve estarcheia de energia.

Ela olhou surpresa para os seus próprios sapatose eu observei o leve encrespamento lateral da sola,causado pela fricção com a extremidade do pedal.

– Sim, eu ando bastante de bicicleta, sr.Holmes, e isso tem alguma relação com estaminha visita.

Meu amigo pegou a mão sem luva da moça e aexaminou com cuidadosa atenção e com um poucodo sentimento que um cientista dedicaria a umespécime.

– Você irá desculpar-me, estou certo. Este éo meu negócio, – ele disse, quando a soltou.– Eu quase cometi o erro de supor que vocêera datilógrafa. Naturalmente, é claro que émúsica. Você observa as pontas dos dedosespatuladas, Watson, que é comum a ambas asprofissões? Contudo há uma certa espiritualidade sobre

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a face – ela virou o rosto suavemente para a luz – a qual uma máquina de escrever não produz. Estasenhora é música.

– Sim, sr. Holmes, eu ensino música.– No interior, eu presumo, pela sua compleição.– Sim, senhor; perto de Farnham, nos limites de Surrey.– Uma bonita região, plena das mais interessantes associações. Você se lembra, Watson, que foi

próximo de lá que prendemos Archie Stamford, o falsificador. Agora, senhorita Violet, o que aconteceua você perto de Farnham, nos limites de Surrey?

A jovem senhorita, com grande clareza e compostura, fez o curioso relato seguinte:– Meu pai está morto, sr. Holmes. Ele foi James Smith, que regeu a orquestra do antigo Teatro Imperial.

Minha mãe e eu fomos deixadas sem parentes no mundo, excetuando-se um tio, Ralph Smith, quefoi para a África vinte e cinco anos atrás e do qual nunca tivemos uma palavra desde então. Quandopapai morreu, ficamos muito pobres, mas um dia nos contaram que havia um anúncio no Timesperguntando por nosso paradeiro. Você pode imaginar como nos entusiasmamos, porque achamosque alguém tinha deixado uma fortuna para nós. Fomos imediatamente ao advogado cujo nome eracitado no jornal. Lá conhecemos dois cavalheiros, os senhores Carruthers e Woodley, que retornavamao lar de uma visita à África do Sul. Eles disseram que o meu tio fora amigo deles, que ele haviamorrido alguns meses antes em Johannesburg, em grande pobreza, e que lhes tinha pedido com oseu último suspiro para procurar pelos seus parentes e ver se eles não tinham nenhuma necessidade.Pareceu-nos estranho que o Tio Ralph, que não mandou nenhuma notícia enquanto vivo, tivessetanto cuidado para nos atender quando estava morto, mas o sr. Carruthers explicou que a razãodisso é que o meu tio soubera há pouco da morte do seu irmão, e assim sentia-se responsável pelonosso destino.

– Com licença, – disse Holmes. – Quando foi essa entrevista?– Em dezembro passado – quatro meses atrás.– Rogo-lhe que prossiga.– O sr. Woodley pareceu-me ser uma pessoa das mais odiosas. Ele estava sempre de olho em mim –

era um homem jovem, grosseiro, de aspecto pretensioso, com um bigode vermelho e cabelosemplastados de cada lado da testa. Eu achei que ele era perfeitamente detestável – e estava certaque Cyril não desejaria que eu conhecesse tal pessoa.

– Oh, é Cyril o nome dele! – disse Holmes, sorrindo.A jovem senhorita corou e sorriu.

– Sim, sr. Holmes; Cyril Morton, engenheiro elétrico, e esperamos nos casar no fim do verão. Puxa,como acabei falando sobre ele? O que eu queria dizer é que o sr. Woodley era perfeitamente odioso,mas que o sr. Carruthers era um homem muito mais velho e mais agradável. Era uma pessoa sombria,pálida, bem barbeada, silenciosa, mas tinha modos corteses e um sorriso simpático. Ele perguntousobre a nossa situação e, achando que éramos muito pobres, sugeriu que eu devia ir e ensinarmúsica à sua única filha, de dez anos. Eu disse que não gostaria de deixar a minha mãe; ele entãopropôs que eu fosse para a casa dela todos os fins de semana, e ofereceu-me cem libras por ano –o que certamente era um esplêndido salário. Assim eu acabei aceitando e fui para a Granja Chiltern,distante cerca de seis milhas de Farnham. O sr. Carruthers era viúvo, mas estava noivo da governanta,uma pessoa idosa e muito respeitável, chamada sra. Dixon, que cuidava do seu estabelecimento. Acriança era muito estimada e bastante promissora. O sr. Carruthers era de natureza muito musical epassamos juntos diversas noites agradáveis. Todos os fins de semana eu voltava para a casa deminha mãe, na cidade.

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“A primeira mancha na minha felicidade foi a chegada do sr. Woodley de bigode vermelho. Eleveio para uma visita de uma semana, e oh! me pareceram três meses. Ele era uma pessoa terrível– um tirano para todo mundo, mas algo infinitamente pior para mim. Ele desenvolveu um amorodioso por mim, ostentando a sua riqueza, dizendo que se o desposasse eu poderia ter os melhoresdiamantes de Londres. Finalmente, quando eu deixei claro que não queria ter nada a ver com ele,agarrou-me em seus braços um dia, depois do jantar – ele era terrivelmente forte – e jurou quenão me deixaria ir até que eu o beijasse. O sr. Carruthers entrou e afastou-o de mim; ele se voltoucontra o próprio anfitrião, derrubando-o e cortando a sua face. Isso foi o fim da visita dele, comovocê pode imaginar. O sr. Carruthers desculpou-se comigo no dia seguinte e me assegurou que eujamais seria novamente exposta a tal insulto. Não vi o sr. Woodley desde então.“E agora, sr. Holmes, chego afinal àquela coisa especial que me fez vir hoje pedir o seu conselho.Você deve saber que toda manhã de sábado eu monto em minha bicicleta e vou à estação deFarnham pegar o trem das 12:22 para a cidade. A estrada da Granja Chiltern é solitária e em umponto é particularmente assim, pois fica a uma milha entre Charlington Heath de um lado e osbosques que circundam Charlington Hall do outro. Você não consegue encontrar uma área de estradamais isolada em qualquer lugar, e é bastante raro encontrar-se com um carro ou um camponês atéalcançar a rodovia perto de Crooksbury Hill. Duas semanas atrás eu estava passando por esse lugarquando por acaso olhei sobre o meu ombro e vi um homem atrás de mim, também numa bicicleta,a aproximadamente duzentas jardas. Ele parecia ser um homem de meia-idade, com uma barbacurta, escura. Eu olhei para trás antes de chegar a Farnham, mas o homem havia desaparecido;assim, não pensei mais nada sobre isso. Mas você pode imaginar como fiquei surpresa, sr. Holmes,quando em meu retorno na segunda-feira, vi o mesmo homem no mesmo trecho da estrada. Meuespanto foi aumentado quando o incidente ocorreu de novo, exatamente como antes, no sábado ena segunda-feira seguintes. Ele sempre semanteve a distância e não me molestou dequalquer forma, mas ainda era certamentemuito estranho. Mencionei isso ao sr.Carruthers, que pareceu interessado no queeu disse e contou-me que havia encomen-dado um cavalo e um cabriolé, de forma queno futuro eu não teria de trafegar por essasestradas solitárias sem alguma companhia.“O cavalo e o cabriolé teriam vindo estasemana, mas por alguma razão não foramentregues, e novamente tive de vir à estaçãode bicicleta. Isso foi nesta manhã. Você podeimaginar que quando vinha para CharlingtonHeath eu olhei e lá estava o homem, bastanteseguro, exatamente como havia sido nas duassemanas anteriores. Ele sempre se mantinhalonge de mim para que eu não pudesse verclaramente o seu rosto, mas certamente era alguém que eunão conhecia. Ele trajava um terno escuro com um boné detecido. A única coisa sobre a face dele que eu pude verclaramente era a barba escura. Hoje eu não estava alarmada,

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mas sim cheia de curiosidade, e determinei-me a descobrir quem ele era e o que desejava. Eu reduzia velocidade da minha máquina, mas ele também diminuiu a dele. Então eu parei completamente,mas ele também parou. Aí eu preparei uma armadilha para ele. Há uma curva fechada na estrada; eupedalei muito rapidamente para contorná-la e então parei e esperei. Eu esperava que ele fizesse acurva e passasse por mim antes de conseguir parar, mas ele nunca apareceu. Então retornei e olheia estrada antes da curva. Dali podia ver uma milha de estrada, mas ele não estava nela. Para tornarisso ainda mais extraordinário, não havia nenhuma estrada lateral pela qual ele pudesse ter seguidonaquele momento”.

Holmes riu e esfregou suas mãos.– Este caso certamente apresenta algumas características próprias, – ele disse. – Quanto tempo decorreu

entre o seu contorno da curva e a sua constatação de que a estrada estava deserta?– Dois ou três minutos.– Então ele não poderia ter retornado pela estrada, e você diz que não há nenhuma estrada lateral?– Nenhuma.– Então é certo que ele tomou uma trilha de um lado ou de outro.– Não poderia ter ido para o lado do paul, ou eu o teria visto.– Assim, pelo processo de exclusão, chegamos ao fato que ele fez o seu caminho para Charlington

Hall, o qual, conforme entendi, está localizado na mesma área, em um lado da estrada. Algumaoutra coisa?

– Nada, sr. Holmes, salvo que eu estava tão perplexa que sentia que não deveria me satisfazer atépoder vê-lo e obter o seu conselho.

Holmes sentou-se em silêncio durante algum pequeno tempo.– Onde trabalha o cavalheiro com quem você está comprometida? – ele afinal perguntou.– Ele trabalha na Midland Electrical Company, em Coventry.– Ele não lhe faria uma visita de surpresa?– Oh, sr. Holmes! Como se eu não fosse reconhecê-lo!– Você teve quaisquer outros admiradores?– Vários, antes de conhecer Cyril.– E desde então?– Houve esse homem terrível, Woodley, se você pode chamá-lo de admirador.– Ninguém mais?

Nossa linda cliente parecia um pouco confusa.– Quem era ele? – perguntou Holmes.– Oh, pode ser mera fantasia minha, mas às vezes me pareceu que o meu empregador, sr. Carruthers,

manifesta grande interesse por mim. Nós participamos juntos de muitas atividades. Eu o acompanhoem jogos à noite, mas ele nunca me disse qualquer coisa; é um perfeito cavalheiro. Mas umamulher sempre sabe.

– Ha! – Holmes parecia sério. – O que ele faz para viver?– Ele é um homem rico.– Nenhuma carruagem ou cavalos?– Bem, pelo menos ele é bastante próspero. Mas ele vai à cidade duas ou três vezes por semana. Está

profundamente interessado nas ações das minas de ouro sul-africanas.– Você me deixará saber de qualquer novo desenvolvimento, senhorita Smith. Estou mesmo muito

ocupado no momento, mas encontrarei tempo para fazer algumas investigações em seu caso.Enquanto isso, não dê nenhum passo sem me avisar. Adeus; eu confio que não teremos nada

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mais que boas notícias de você.– Faz parte da ordem estabelecida da Natureza que tal garota tenha seguidores, – disse Holmes,

aspirando o seu cachimbo meditativamente – mas por opção, e não em bicicletas, em estradasrurais isoladas. Algum amante reservado, além de qualquer dúvida. Mas há detalhes curiosos esugestivos sobre o caso, Watson.

– Que deveria aparecer apenas naquele ponto?– Exatamente. Nosso primeiro esforço deve ser descobrir quem são os inquilinos de Charlington Hall.

Então, novamente, como estabelecer uma conexão entre Carruthers e Woodley, desde que parecemser homens de uma natureza tão diferente? Como viram ambos observar relações tão próximas deRalph Smith? Mais um ponto. Que tipo de administrador é aquele que paga o dobro do preço demercado por uma governanta mas não mantém um cavalo, embora resida a seis milhas da estação?Estranho, Watson – muito estranho!

– Você quer ir?– Não, meu caro companheiro, você irá. Pode ser apenas uma intriga insignificante, e eu não posso

abandonar as minhas outras importantes pesquisas por causa disso. Na segunda-feira você chegarácedo em Farnham; você se esconderá perto de Charlington Heath; você observará esses fatos por simesmo e agirá conforme o seu próprio julgamento aconselhar. Então, tendo inquirido sobre osocupantes do Hall, você voltará a mim e relatará. E agora, Watson, nenhuma outra palavra sobre oassunto até que tenhamos algumas pedras mais sólidas onde pisar, as quais podemos esperar parachegar à nossa solução.

Tínhamos apurado da senhora que ela deixaria Waterloo na segunda-feira pelo trem das 9:50; assim eucomecei cedo e peguei o das 9:13. Da estação de Farnham não tive nenhuma dificuldade em dirigir-me paraCharlington Heath. Era impossível confundir a cena da aventura da jovem senhorita, pois estrada corriaentre o paul aberto de um lado e uma cerca viva de velhos teixos do outro, cercando um parque onde seespalhavam árvores magníficas. Havia um portal principal de pedras guarnecidas de líquens; cada pilarlateral era encimado por emblemas heráldicos moldados, mas além dessa trilha de carruagem central euobservei vários pontos onde havia aberturas na cerca viva e caminhos que levavam através dela. A casa erainvisível da estrada, mas todo o ambiente em redor inspirava melancolia e decadência.

O paul estava recoberto com faixas douradas de arbustos florescentes, cintilando magnificamente à luzbrilhante do sol primaveril. Assumi posição atrás de uma dessas touceiras, podendo visualizar o portal doHall e uma longa extensão da estrada em ambas as direções. A estrada estava deserta quando a deixei, masagora podia ver um ciclista que se aproximava da direção oposta àquela em que eu tinha vindo. Ele vestia umterno escuro e vi que tinha uma barba negra. Chegando ao fim da área de Charlington ele saltou da suamáquina e a conduziu através de uma abertura na cerca viva, desaparecendo da minha visão.

Um quarto de hora se passou e então apareceu um segundo ciclista. Desta vez era a jovem senhorita queregressava da estação. Eu a vi olhar em volta assim que chegou à cerca viva de Charlington. Um momentodepois o homem emergiu do lugar onde se ocultara, montou em sua bicicleta e a seguiu. Em toda a vastapaisagem eram aquelas as únicas figuras em atividade, a garota graciosa sentada muito reta em sua máquinae o homem atrás dela, curvando-se sobre o guidão da bicicleta com uma sugestão curiosamente furtiva acada movimento. Ela olhou para trás, viu-o e reduziu a velocidade do seu passo; ele também reduziu avelocidade. Ela parou; ele também, mantendo umas duzentas jardas de distância. O próximo movimento damoça foi tão inesperado quão corajoso. Ela acelerou bruscamente a sua máquina e colidiu diretamentecontra o homem. Todavia, ele foi tão rápido quanto ela e disparou numa fuga desesperada. Então ela voltounovamente para a estrada, a cabeça erguida com altivez, não condescendendo sofrer qualquer reparo adicionaldo seu silencioso acompanhante. Ele também havia se voltado e ainda mantinha distância, até que a curva da

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estrada os ocultou da minha visão.Eu permaneci em meu esconderijo, e foi bom tê-lo feito, pois agora o homem reapareceu lá atrás,

pedalando lentamente. Ele voltou ao portão do Hall e desmontou da sua máquina. Durante alguns minutoseu pude vê-lo de pé entre as árvores. As mãos dele estavam erguidas e ele parecia estar arrumando agravata. Então ele montou novamente na bicicleta e pedalou para longe de mim, descendo pela entradapavimentada do Hall. Eu corri pelo paul e investiguei através das árvores. Pude vislumbrar à distância ovelho edifício cinza com suas chaminés Tudor eriçadas, mas o passeio cruzava um denso matagal e eu nãovi mais o meu homem.

Pareceu-me, porém, que havia feito um trabalho matutino razoavelmente bom, e voltei para Farnhamcom o espírito elevado. O corretor de imóveis local nada pôde me dizer sobre Charlington Hall e recomendou-me a uma firma bem conhecida em Pall Mall. Parei lá no caminho para casa e encontrei-me com a cortesia doagente. Não, eu não podia dispor de Charlington Hall durante o verão. Eu estava apenas muito atrasado.Devia ter vindo há um mês, aproximadamente. Williamson era o nome do inquilino. Ele era um cavalheirorespeitável, já idoso. O polido corretor receava que nada mais poderia dizer, pois os negócios dos seusclientes não eram temas que ele pudesse discutir.

O sr. Sherlock Holmes ouviu com atenção o longo relatório que eu pude lhe apresentar aquela noite, masnão consegui extrair aquela curta palavra de elogio que eu havia esperado e teria valorizado. Pelo contrário,sua face austera estava até mesmo mais severa que o habitual quando comentou as coisas que fiz e as coisasque deixei de fazer.

– O local do seu esconderijo, meu caro Watson, foi muito impróprio. Você devia ter ficado atrás dacerca viva; então poderia ter uma visão mais próxima dessa interessante pessoa. Do modo que fez,você estava a algumas centenas de jardas e pode me contar até mesmo menos que a senhoritaSmith. Ela pensa que não conhece o homem; estou convencido que sim. Caso contrário, por que eleestaria tão desesperadamente ansioso para que ela não se aproximasse dele e observasse as suasfeições? Você o descreve como se curvando sobre o guidão. Encobrimento novamente, você vê.Realmente você agiu de forma notavelmente inadequada. Ele retorna à casa e você quer encontrá-lofora dela. Você vem a um corretor de imóveis em Londres!

– E o que eu deveria ter feito? – exclamei, com alguma vivacidade.– Chegar mais perto do pessoal da casa. Esse é o centro dos mexericos rurais. Eles teriam lhe dado

todos os nomes, do professor à copeira. Williamson? Não me traz nada à mente. Se ele é umhomem idoso não pode ser esse ciclista ativo que foge à perseguição atlética daquela jovem senho-rita. O que nós ganhamos com a sua expedição? O conhecimento de que a história da menina éverdadeira; disso eu nunca duvidei. Que há uma conexão entre o ciclista e o Hall; disso também eununca duvidei. Que o Hall foi alugado por Williamson. Quem é o melhor para isso? Bem, bem, meucaro senhor, não me olhe tão deprimido. Pouco mais podemos fazer até sábado que vem; enquantoisso eu posso fazer uma ou duas investigações por mim mesmo.

Na manhã seguinte recebemos um recado da senhorita Smith, recontando aqueles mesmos incidentesque eu havia testemunhado brevemente e com precisão, mas o cerne da carta residia no pós-escrito:

“Estou segura que você respeitará a minha confidência, sr. Holmes, quando lhedisser que o meu lugar aqui ficou difícil, devido ao fato que o meu empregadorme propôs casamento. Convenci-me de que os sentimentos dele são muitoprofundos e os mais honrados. Ao mesmo tempo, é evidente que o meucompromisso já está determinado. Ele tomou a minha recusa muito a sério, mastambém com muita suavidade; porém, você pode compreender que a situação éum tanto constrangedora”.

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– Nossa jovem amiga parece estar penetrando em águas profundas, – disse Holmes, pensativo, quandoterminou de ler a carta. – O caso certamente apresenta mais características de interesse e maiorespossibilidade de desenvolvimento do que eu havia imaginado inicialmente. Eu não seria prejudicadopor um dia calmo e tranqüilo no interior, e estou propenso a partir esta tarde e testar uma ou duasteorias que desenvolvi.

O dia quieto de Holmes no interior teve um final singular, porque ele chegou tarde à Baker Street naquelanoite, com o lábio cortado e um caroço esbranquiçado na testa, além de um ar de dissipação generalizadaque teria feito dele mesmo um objeto de investigação da Scotland Yard. Ele estava imensamente excitadocom suas próprias aventuras e riu cordialmente enquanto me contava.

– Faço tão pouco exercício ativo que sempre é um deleite – ele disse. – Você sabe que tenho algumaproficiência no bom e antigo esporte britânico do boxe. Ocasionalmente, faz parte do trabalho;hoje, por exemplo, eu teria passado uma aflição muito infame sem ela.

Eu lhe implorei que me contasse o que tinha acontecido.– Eu localizei aquele pub rural que já lhe havia

recomendado e lá desenvolvi as minhasdiscretas investigações. Eu estava no bar e umestalajadeiro tagarela me deu tudo aquilo quedesejei. Williamson é um homem de barbabranca; ele vive só, com um pequeno grupo decriados no Hall. Há um certo rumor de que eleé ou foi clérigo, mas um ou dois incidentesdurante a curta residência dele no Hall mechamaram a atenção como peculiarmente nãoeclesiásticos. Já fiz algumas investigações emuma agência clerical e me disseram que haviaum homem com aquele nome na ordem, cujacarreira foi singularmente obscura. Depois oproprietário me informou que normalmente hávisitas de fim-de-semana – ‘um grupo animado,senhor’ – no Hall, especialmente um cavalheirode bigode vermelho, chamado sr. Woodley, queestava sempre por lá. Nós continuamos nissoquando então quem se aproxima senão opróprio cavalheiro, que estivera bebendo a suacerveja no balcão e tinha ouvido toda a conversação. Quem era eu? O que eu queria? Por que eufazia perguntas? Ele tem uma boa fluência de linguagem e os seus adjetivos foram muito vigorosos.Ele encerrou uma enfiada de insultos com um golpe malicioso que eu não pude evitar completamente.Os minutos seguintes foram deliciosos. O rufião tomou tal direto de esquerda que teve dificuldadepara caminhar. Eu sai como você me vê; o sr. Woodley foi para casa em um carro. Assim terminoua minha viagem rural e deve-se confessar que, embora agradável, meu dia nos limites de Surrey nãofoi muito mais lucrativo que o seu.

A quinta-feira trouxe-nos outra carta da nossa cliente.“Você não ficará surpreso, sr. Holmes – dizia ela, – de saber que estou deixando oemprego com o sr. Carruthers. Nem mesmo um pagamento elevado pode reconciliar-me aos desconfortos da minha situação. No sábado eu vou à cidade e não pretendo

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retornar. O sr. Carruthers recebeu o seu cabriolé; portanto, os perigos da estradasolitária, se é que algum perigo havia, agora terminaram.“Sobre a causa especial de minha partida, não é somente a situação embaraçosacom o sr. Carruthers, mas a reaparição daquele homem odioso, o sr. Woodley. Elesempre foi horrível, mas agora tem um olhar ainda mais terrível que antes, porqueparece ter sofrido algum acidente e está muito desfigurado. Eu o vi fora da janela,mas estou feliz de dizer que não o encontrei. Ele teve uma longa conversa com o sr.Carruthers, que depois parecia muito excitado. Woodley deve ter ficado nasvizinhanças, porque não dormiu aqui, e ainda o vi de relance novamente esta manhã,enquanto se esquivava pelo matagal. Preferia antes ter um animal selvagem à soltapelo lugar. Eu o detesto e temo mais do que posso dizer. Como o sr. Carrutherspode suportar tal criatura por um só momento? Contudo, todas as minhasdificuldades terminarão no sábado”.

– Assim espero, Watson, assim espero, – disse Holmes com gravidade. – Em torno dessa mocinhaestá em andamento alguma intriga profunda, e é nosso dever assegurar que ninguém a molestenessa última viagem. Presumo que teremos tempo livre para viajar na manhã de sábado e juntosnos certificarmos que esta curiosa e inclusiva investigação não tenha um desfecho desfavorável.

Confesso que até agora não tinha captado uma visão muito séria do caso, que me parecera antesgrotesco e bizarro que perigoso. Que um homem fique de emboscada e siga uma mulher tão bonita não éuma coisa sem precedentes, e se ele tem tão pouca audácia que não apenas evita dirigir-se a ela, mas atémesmo foge da sua aproximação, não se trata de um assaltante muito formidável. O desordeiro Woodleyera uma pessoa muito diferente, mas, à exceção de uma ocasião, não havia molestado a nossa cliente, eele agora visitava a casa de Carruthers sem se intrometer com a moça. O homem da bicicleta era certamenteum participante daqueles festas de fim-de-semana no Hall, das quais o taverneiro havia falado, mas dequem se tratava ou o que ele queria, permanecia tão obscuro quanto antes. Foi a severidade das maneirasde Holmes (e o fato que ele escorregou um revólver disfarçadamente para o bolso antes de deixarmos osnossos quartos) que me impressionaram com o sentimento de tragédia que poderia se ocultar por trásdessa curiosa sucessão de eventos.

À noite chuvosa seguiu-se uma manhã gloriosa e a zona rural coberta de pauis, com as moitas de arbustosflorescentes, parecia ainda mais bonita a olhos que estavam cansados dos tons pardos e cinzentos de Londres.Holmes e eu caminhamos ao longo da estrada larga e arenosa, inalando a revigorante brisa matutina, ouvindocom satisfação a música dos pássaros e sentindo a respiração fresca da primavera. De uma elevação daestrada na saliência de Crooksbury Hill podíamos ver o Hall austero erguendo-se por entre os carvalhosseculares que, antigos como podiam ser, eram ainda mais jovens que o edifício que cercavam. Holmesapontou abaixo o trecho preocupante da estrada, uma faixa amarela-avermelhada, entre o marrom do paul eo verde que brotava dos bosques. Ao longe, num ponto negro, podíamos ver um veículo que se deslocavaem nossa direção. Holmes fez uma exclamação de impaciência.

– Eu dei uma margem de meia hora, – ele disse. – Se aquele cabriolé for a da senhorita Smith, ela deveter vindo num trem adiantado. Receio, Watson, que ela possivelmente terá ultrapassado Charlingtonantes que consigamos interceptá-la.

No instante em que passamos a elevação já não podíamos ver o veículo, mas aceleramos para a frentenum passo tal que a minha vida sedentária começou a se manifestar e fui compelido a ficar para trás.Holmes, contudo, estava sempre treinando, pois ele dispunha de inesgotáveis estoques de energia nervosaaos quais recorrer. Seu passo elástico não reduziu a velocidade até que repentinamente, quando estava cemjardas à minha frente, ele parou, e o vi lançar as mãos para cima com um gesto de aflição e desespero. Ao

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mesmo tempo um cabriolé vazio, com o cavalo arrastando as rédeas a meio-galope, apareceu contornando a curva da estrada e passou rapidamente por nós,chacoalhando

– Muito tarde, Watson, muito tarde! – exclamouHolmes, enquanto eu corria arquejando ao seu lado.– Tolo que fui não considerando a possibilidade deum trem anterior! É seqüestro, Watson –seqüestro! Assassinato! Deus sabe o quê!Bloqueie a estrada! Pare o cavalo! Está correto.Agora, salte para dentro e deixe-nos ver seposso reparar as conseqüências da minhaprópria asneira.

Nós havíamos subido no cabriolé e Holmes, depois devirar o cavalo, deu-lhe uma rápida cutilada com o chicote enós voamos pela estrada. Assim que contornamos a curva vimosque toda a extensão da estrada, entre o Hall e o paul, estavadeserta. Eu agarrei o braço de Holmes.

– É o homem! – eu disse, ofegante.Um ciclista solitário estava vindo em nossa direção. Estava de

cabeça abaixada e com os ombros encurvados, como se pusessecada grama da energia que possuía nos pedais. Ele voava como sedisputasse uma corrida. De repente ele ergueu a face barbuda,viu-nos perto dele e parou, saltando de sua máquina. Aquela barba negra de carvão fazia um singular contrastecom os olhos que brilhavam como se estivesse com febre. Ele nos encarou e ao cabriolé; então um olhar deassombro veio à sua face.

– Epa! Alto lá! – ele gritou, enquanto segurava a sua bicicleta de forma a impedir a nossa passagem. –Onde você conseguiu esse cabriolé? Pare, homem! – ele gritou, sacando uma pistola da sua lateral.– Pare, eu digo, ou, por George, colocarei uma bala no seu cavalo.

Holmes lançou as rédeas em meu colo e saltou do veículo.– Você é o homem que queremos ver. Onde está a senhorita Violet Smith? – ele disse, do seu jeito

rápido e claro.– Isso sou eu que lhe pergunto. Você está no cabriolé dela; deveria saber onde ela está.– Encontramos o cabriolé na estrada. Não havia ninguém nele. Nós o dirigimos de volta para ajudar a

jovem senhorita.– Bom Senhor! Bom Senhor! O que farei? – exclamou o estranho, num êxtase de desespero. – Eles a

têm, aquele cão do inferno Woodley e o pastor salafrário. Venha, homem, venha, se você é realmenteamigo dela. Fique comigo e nós a salvaremos, ainda que eu tenha de deixar a minha carcaça emCharlington Wood.

Ele correu loucamente, de pistola na mão, para uma abertura na cerca viva. Holmes o seguiu e eu, deixandoo cavalo pastando ao lado da estrada, segui Holmes.

– Foi por aqui que eles passaram, – ele disse, apontando as diversas marcas de pés no caminhobarrento. – Epa! Espere um pouco! Quem é esse no arbusto?

Era um camarada jovem, de aproximadamente dezessete anos, vestido como um rapaz de estrebaria,com cordas de couro e perneiras. Ele jazia de costas, com os joelhos juntos, e um terrível corte na cabeça.Ele estava sem sentidos, mas ainda vivo. Num relance percebi que a sua ferida não havia penetrado o osso.

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– Esse é Peter, o cavalariço, – exclamou o estranho. – Ele dirigia o cabriolé. Aquelas bestas o puxarampara fora e o agrediram. Deixem-no descansar; não podemos fazer nada melhor, mas podemossalvá-la do pior destino que pode suceder a uma mulher.

Nós corremos freneticamente abaixo, pelo caminho que se abria entre as árvores. Havíamos chegado aomatagal que cercava a casa quando Holmes estacou.

– Eles não foram para a casa. Aqui estão as marcas deles à esquerda – aqui, ao lado dos arbustos deloureiros. Ah! Eu disse!

Assim que ele falou, o grito estridente de uma mulher – um grito que vibrou com um frenesi de horror –irrompeu da espessa moita de arbustos verdes à nossa frente. Ele terminou repentinamente, em sua notamais alta, com um som de asfixia e um gargolejo.

– Por aqui! Por aqui! Eles estão na pista de boliche, – exclamou o estranho, arremessando-se entre osarbustos. – Ah, os cachorros covardes! Sigam-me, cavalheiros! Muito tarde! muito tarde! Pelo Jingovivente!

Nós tínhamos chegado subitamente a uma adorável clareira no bosque de céspedes, cercada por árvoresantigas. No seu lado mais distante, à sombra de um poderoso carvalho, achava-se um grupo singular de trêspessoas. Uma delas era uma mulher, a nossa cliente, prostrada e desfalecida, com um lenço em torno daboca. Diante dela estava um homem jovem e mal encarado, de bigode vermelho e aspecto brutal, com aspernas separadas, uma das mãos no quadril e a outra afagando o cabo de um chicote de equitação, toda asua atitude sugestiva de desafio triunfante. Entre eles havia um ancião, um homem de barba cinza, trajandouma sobrepeliz curta sobre um tweed de lã clara, o qual evidentemente tinha encerrado naquele instante acerimônia de casamento, porque embolsou o seu livro de orações assim que nós aparecemos, e deu umtapinha jovial nas costas do sinistro noivo em congratulação.

– Eles estão casados! – eu arfei. – Venham! – exclamou o nosso guia, – venham!

Ele atravessou a clareira apressadamente, comHolmes e eu em seus calcanhares. Conforme nosaproximamos a senhora cambaleou contra o troncoda árvore em busca de apoio. Williamson, o ex-clérigo,curvou-se para nós com uma falsa cortesia, e Woodley,ameaçador, avançou com um grito brutal e umagargalhada triunfante. – Você pode remover a sua barba, Bob, – ele disse. –Eu bem o conheço. Bem, você e os seus camaradasvieram apenas a tempo de eu apresentá-los à sra.Woodley.

A resposta do nosso guia foi peculiar. Ele retirou abarba escura que o havia disfarçado e lançou-a no chão,revelando um rosto longo, pálido e bem barbeadodebaixo dela. Então ergueu o revólver e enquadrou ojovem rufião que estava avançando em sua direção

com o perigoso chicote de equitação balançando em sua mão. – Sim, – disse o nosso aliado, – eu sou Bob Carruthers, e vereiesta mulher justiçada, ainda que tenha de balançar depois disso.Eu lhe disse o que faria se você a molestasse, e, pelo Senhor!Estarei à altura da minha palavra.

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– Você está muito atrasado. Ela já é minha esposa.– Não, ela é sua viúva.

O revólver dele disparou e eu vi o sangue jorrar dafrente do colete de Woodley. Ele girou com um grito ecaiu de costas, com sua horrorosa face vermelhaassumindo rapidamente uma terrível palidez mos-queada. O ancião, ainda com a sua sobrepeliz,irrompeu em tal corrente de pragas sujas como eujamais tinha ouvido, e puxou um revólver próprio, masantes que pudesse erguê-lo ele estava olhando para ocano da arma de Holmes.

– Basta disso, – disse o meu amigo, friamente. –Largue a pistola! Watson, apanhe-a! Mire nacabeça dele. Obrigado. Você, Carruthers, dê-me esse revólver. Não teremos mais nenhumaviolência. Vamos, entregue-se!

– Quem é você, então?– Meu nome é Sherlock Holmes.– Bom Senhor!– Vejo que já ouviu falar de mim. Eu representarei

a polícia oficial até a sua chegada. Aqui, você!– ele gritou para o noivo amedrontado que tinhaaparecido na extremidade da clareira. – Venhaaqui. Leve esta nota a Farnham o mais rápidoque puder. Holmes rabiscou algumas palavras numa folha do seu caderno. – Dê ao superintendenteno posto policial. Até que ele chegue, devo detê-los sob a minha custódia pessoal.

A personalidade forte e imperiosa de Holmes dominou a cena trágica, e todos eram igualmente bonecosem suas mãos. Williamson e Carruthers viram-se carregando Woodley ferido para a casa e eu dei o meubraço à garota assustada. O homem baleado foi colocado em uma cama e eu o examinei a pedido de Holmes.Levei o meu relatório para onde ele se sentara, na sala de jantar recoberta de antigas tapeçarias, com os seusdois prisioneiros diante dele.

– Ele viverá, – eu disse.– O quê! – exclamou Carruthers, pulando de sua cadeira. – Eu subirei a escada e terminarei o que

comecei. Você me diz que aquele anjo ficará amarrado a Jack Woodley Rugidor por toda a vida?– Você não precisa se preocupar com isso, – disse Holmes. – Há duas razões muito boas para que ela

não seja esposa dele de modo algum. Em primeiro lugar, estamos muito seguros em questionar odireito que tem o sr. Williamson para celebrar um casamento.

– Eu fui ordenado, – exclamou o velho cafajeste.– E também foi destituído.– Uma vez clérigo, sempre clérigo.– Eu penso que não. E quanto à licença?– Tínhamos uma licença para o casamento. Eu a tenho aqui no meu bolso.– Então você adquiriu isso através de fraude. Mas, em todo caso, um casamento forçado não é um

casamento, mas um delito muito grave, como você irá descobrir antes de terminarmos. Você terátempo para refletir sobre o assunto no mínimo durante os próximos dez anos, a menos que eu

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esteja enganado. Quanto a você, Carruthers, teria feito melhor mantendo a sua pistola no bolso.– Eu começo a achar que sim, sr. Holmes, mas quando pensei em todas as precauções que tomei para

proteger essa menina – porque, sr. Holmes, eu a amei e foi a única vez que soube o que era amor –fiquei furioso de imaginar que ela estaria em poder do maior bruto e salafrário da África do Sul – umhomem cujo nome é um terror sagrado de Kimberley a Johannesburg. Por que, sr. Holmes, vocêdificilmente acreditará nisto, mas desde que aquela menina veio para este emprego, nunca a deixeisair desta casa – pois soube que os velhacos a estavam espreitando, – sem segui-la em minhabicicleta e certificar-me que ela não viria a sofrer alguma injúria. Eu me mantive distante dela e useiuma barba falsa, de forma que ela não me reconhecesse, porque ela é uma menina muito boa eespirituosa, e não teria ficado no emprego por muito tempo se pensasse que eu a estava seguindopelas estradas do campo.

– Por que você não lhe contou sobre o perigo que ela corria?– Porque então, novamente, ela teria me deixado, e eu não suportaria enfrentar essa eventualidade.

Mesmo se ela não pudesse me amar, para mim era uma coisa muito boa vê-la cuidar da casa da suamaneira delicada e ouvir o som da sua voz.

– Bem, – eu disse, – você chama isso de amor, sr. Carruthers, mas eu chamaria de egoísmo.– Talvez as duas coisas venham juntas. De qualquer forma, não pude deixá-la ir. Além disso, com esta

multidão em volta, bem que ela deveria ter alguém próximo para olhar por dela. Então, quando veioo telegrama, eu soube que eles foram compelidos a fazer um movimento.

– Que telegrama?Carruthers tirou um papel do bolso.

– É isto, – ele disse.O telegrama era curto e conciso:

O VELHO ESTÁ MORTO.– Caramba! – disse Holmes. – Penso que consigo perceber como as coisas sucederam e posso com-

preender como esta mensagem logrou, como você diz, fazê-lo perder a cabeça. Mas enquantoespera você poderia me contar o que puder.

O velho réprobo com a sobrepeliz explodiu em uma salva de xingamentos.– Pelo céu! – ele disse, – se você nos delatar, Bob Carruthers, eu o servirei como você serviu a Jack

Woodley. Você pode berrar sobre a menina para deleitar o seu coração, pois isso é uma questãoparticular sua, mas se você envolver os seus camaradas com os tiras uniformizados, será o piortrabalho que um dia você já fez.

– Vossa reverência não precisa ser estimulada, – disse Holmes, enquanto acendia um cigarro. – Ocaso contra você é bastante claro, e tudo o que pergunto são alguns detalhes para satisfazer a minhacuriosidade pessoal. Contudo, se houver qualquer dificuldade em me contar, eu irei narrando, eentão você verá o quão distante passa a sua oportunidade de esconder os seus segredos. Em pri-meiro lugar, três de vocês entraram nesse jogo na África do Sul – Williamson, Carruthers e Woodley.

– Mentira número um, – disse o velho; – eu nunca vi qualquer um deles até dois meses atrás, enunca em minha vida estive na África; assim você pode pôr isso em seu cachimbo e fumá-lo, sr.Intrometido Holmes!

– O que ele diz é verdade, – disse Carruthers.– Bem, bem; dois de vocês foram. Então vossa reverência é o nosso elemento caseiro. Você conheceu

Ralph Smith na África do Sul e teve razões para acreditar que ele não viveria muito tempo. Vocêdescobriu que a sobrinha dele herdaria toda a fortuna dele. Foi isso?

Carruthers aquiesceu e Williamson praguejou.

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– Ela era o parente mais próximo, sem dúvida, e você sabia que o velho camarada não faria nenhumtestamento.

– Ele não podia ler ou escrever, – disse Carruthers.– Então você veio, dois de vocês, e caçaram a garota. O plano era que um de vocês se casaria com ela

e o outro teria uma parte no butim. Por alguma razão, Woodley foi escolhido para ser o marido.Como foi isso?

– Nós a disputamos nas cartas durante a viagem. Ele venceu.– Sei. Você fez a jovem senhorita entrar para o seu serviço e lá estava Woodley para fazer-lhe a corte.

Ela reconheceu o bêbado brutal que ele era e não queria ter nada a ver com ele. Enquanto isso, seuarranjo ficou bastante perturbado pelo fato de você ter se apaixonado pela senhorita. Você já nãopodia suportar a idéia desse rufião possui-la?

– Não, por George; eu não pude!– Houve uma disputa entre vocês. Ele o deixou com raiva e começou a fazer os seus próprios planos

independentemente de você.– Aflige-me, Williamson, que não há muito que possamos dizer a este cavalheiro, – exclamou

Carruthers, com um sorriso amargo. – Sim, nós disputamos e ele me derrubou. Nisso eu estounivelado com ele, de qualquer forma. Então eu o perdi de vista. Isso foi quando ele se aliou a estepadre proscrito aqui. Eu achei que juntos eles haviam preparado uma armadilha neste lugar docaminho por onde ela devia passar para ir à estação. Depois disso eu mantive os meus olhos nela,pois adivinhava que havia alguma diabrura no ar. Eu os via de vez em quando, porque estava ansiosopara saber o que eles pretendiam. Dois dias atrás Woodley trouxe à minha casa este telegramaatestando que Ralph Smith estava morto. Ele me perguntou se eu aceitaria uma barganha; eu recusei.Ele me perguntou se eu lhe daria uma parte se me casasse com a menina. Eu disse que o faria de boavontade, mas que ela não me queria. Ele disse, ‘Primeiro nós a casaremos e depois de uma ou duassemanas ela pode ver as coisas um pouco diferentes’. Eu disse que nãoqueria me envolver com qualquer violência. Então ele foi emboraamaldiçoando, como o vilão sujo e falastrão que era, jurando que aindaassim a teria. Ela estava deixando o serviço neste fim-de-semana e eupreparei um cabriolé para levá-la à estação, mas estava com amente tão intranqüila que a segui em minha bicicleta. Contudo,ela se adiantou e antes que eu pudesse apanhá-la, oprejuízo estava feito. A primeira coisa que eu soubesobre isso foi quando vi os dois cavalheirosque traziam o cabriolé dela de volta.

Holmes levantou-se e lançou a ponta do cigarrona lareira.

– Eu fui muito obtuso, Watson, – ele disse. –Quando em seu relatório disse-me quepensou ter visto o ciclista arrumando a gravatano matagal; somente isso deveria ter-meexplicado tudo. Contudo, podemos nos felicitarpor um caso muito curioso e, em alguns aspectos,sem igual. Vejo três homens da polícia distrital do condado nocaminho, e estou feliz de saber que o rapazinho da estrebaria podemanter passo com eles; assim é provável que nem ele nem o

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interessante noivo fiquem permanentemente prejudicados pelas aventuras desta manhã. Suponho,Watson, que com a sua habilidade médica você poderia aguardar a senhorita Smith e dizer-lhe quese ela está suficientemente recuperada, ficaremos felizes de escoltá-la de volta à casa de sua mãe. Seela não estiver convalescida o bastante, você descobrirá que a sugestão de que estávamos a pontode telegrafar a um jovem eletricista nas Midlands é provavelmente um meio eficaz de completar asua cura. Quanto a você, sr. Carruthers, penso que fez o que pôde para compensar a sua participaçãonuma horrível conspiração. Eis o meu cartão, senhor, e se a minha evidência puder ser de ajuda emseu julgamento, estarei à sua disposição.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .No giro das nossas incessantes atividades, freqüentemente me foi difícil – como provavelmente terá

observado o leitor – encerrar as minhas narrativas e fornecer aqueles detalhes finais que o curioso poderiaesperar. Cada caso serviu de prelúdio a outro e, passada a crise, os atores saíam para sempre de nossasvidas atarefadas. Todavia, no fim do meu manuscrito que tratava deste caso, encontrei uma nota curta naqual registrei que senhorita Violet Smith realmente herdou uma grande fortuna e que ela é agora a esposade Cyril Morton, principal acionista da Morton & Kennedy, os famosos eletricistas de Westminster.Williamson e Woodley foram ambos julgados por seqüestro e assalto, o primeiro recebeu uma sentençade sete anos; o segundo, dez anos. Do destino de Carruthers não tenho nenhum registro, mas estou certoque a agressão dele não foi vista com muito rigor pelo tribunal, desde que Woodley tinha a reputação deser um rufião dos mais perigosos, e suponho que alguns meses de detenção seriam suficientes parasatisfazer as demandas de justiça.

A ESCOLA DO PRIORADOHolmes e eu tivemos algumas entradas e saídas

dramáticas em nosso curto estágio na Baker Street,mas não consigo lembrar de nada mais súbito esurpreendente do que a primeira visita de Thorney-croft Huxtable, M.A., Ph.D., etc. Seu cartão (queparecia muito pequeno para comportar o peso dassuas distinções acadêmicas) precedeu-o por algunssegundos, e então ele mesmo entrou – tão grande,tão pomposo e tão cheio de dignidade que era umaverdadeira encarnação de auto-confiança e solidez.E a sua primeira atitude, assim que a porta se fe-chara atrás dele, foi cambalear contra a mesa, deonde escorregou até o chão; e lá estava aquelamajestosa figura prostrada e insensível em nossocarpete de pele de urso.

Erguemo-nos de um salto e, por algunsmomentos, encaramos em silencioso espantoaquele maciço destroço que falava de algumaborrasca súbita e fatal pelos oceanos da vida. EntãoHolmes apressou-se pegando uma almofada paraa cabeça dele, e eu com um trago de conhaque

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para os seus lábios. A face branca e pesada estava vincada por linhas depreocupação; as bolsas pendentes sob os olhos fechados apresentavam

uma cor plúmbea; a boca relaxada inclinava-se dolorosamente noscantos; o queixo ondulante não estava barbeado. O colarinho e

a camisa carregavam o encardido de uma longa viagem, e oscabelos eriçados davam um aspecto desleixado à cabeça

bem conformada. Era um homem extremamentehostilizado aquele que jazia diante de nós.

– O que é isso, Watson? – perguntou Holmes.– Esgotamento absoluto; possivelmente apenas

fome e fadiga, – eu disse, com o dedo no pulsoimperceptível onde o fluxo de vida gotejavafraco e superficial.– Passagem de volta para Mackleton, nonorte da Inglaterra, – disse Holmes,retirando-a do bolsinho do relógio. –

Contudo, ainda não são doze horas. Ele écertamente um madrugador.

As pálpebras enrugadas haviam começado a tremer e agora um par de olhos cinzentos inexpressivosolhavam para nós. Um momento depois o homem havia levantado, com o rosto vermelho de vergonha.

– Perdoe-me esta fraqueza, sr. Holmes; estou um tanto exausto. Obrigado; se eu pudesse desfrutarum copo de leite e um biscoito, não tenho nenhuma dúvida que ficaria bem melhor. Eu vim pesso-almente, sr. Holmes para me assegurar que você voltaria comigo. Temi que nenhum telegrama oconvencesse da absoluta urgência do caso.

– Quando você estiver completamente restabelecido...– Já estou em forma de novo. Não posso imaginar como fiquei tão enfraquecido. Sr. Holmes, desejo

que venha a Mackleton comigo pelo próximo trem.Meu amigo sacudiu a cabeça.

– Meu colega, dr. Watson, poderia lhe dizer que estamos muito ocupados no momento. Estou retidono caso dos Documentos Ferrers, e o assassinato de Abergavenny está indo a julgamento. Somenteum assunto de extrema importância poderia me afastar de Londres neste momento.

– Importante! – Nosso visitante lançou as mãos para cima. – Não ouviu falar nada do seqüestro dofilho único do Duque de Holdernesse?

– O quê! O último Ministro do Gabinete?– Exatamente. Tentamos manter o assunto fora dos periódicos, mas houve algum rumor ontem à

noite no Globe. Pensei que poderia ter alcançado os seus ouvidos.Holmes espichou o seu braço longo e delgado e apanhou o Volume H da sua enciclopédia de referência.

“‘Holdernesse, 6º Duque, K.G., P.C’. – metade do alfabeto! ‘Barão Beverley, Conde de Carston’ –meu caro, isso é que é lista! ‘Lord Comandante de Hallamshire desde 1900. Casado com Edith, filhade Sir Charles Appledore, 1888. Um único filho e herdeiro, Lord Saltire. Possui aproximadamenteduzentos e cinqüenta mil acres. Prospecção de minérios em Lancashire e Gales. Endereço: CarltonHouse Terrace; Holdernesse Hall, Hallamshire; Carston Castle, Bangor, Wales. Lord do Almiranta-do, 1872; Secretário de Estado Supremo para...’ Bem, bem; este homem é certamente um dosmaiores súditos da Coroa!”

– O maior e talvez o mais rico. Estou sabendo, sr. Holmes, que você assume um linha de procedimento

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muito elevada nos assuntos profissionais, e que está preparado para trabalhar gratuitamente poruma causa justa. Contudo, posso assegurar que Sua Graça já anunciou que um cheque de cinco millibras será entregue à pessoa que puder lhe informar onde está o seu filho, e outras mil libras paraaquele que apontar o homem ou homens que o levaram.

– É uma oferta principesca, – disse Holmes. – Watson, acho que acompanharemos o dr. Huxtable aonorte da Inglaterra. E agora, dr. Huxtable, enquanto bebe esse leite, por favor conte-me o que,quando e como aconteceu, e, finalmente, o que o dr. Thorneycroft Huxtable, da Escola do Priorado,próxima de Mackleton, tem a ver com tal assunto, e por que ele vem três dias depois do evento – oestado do seu queixo dá a data – solicitar os meus humildes serviços.

Nosso visitante já tinha consumido o seu leite com biscoitos. A luz havia voltado aos seus olhos e a cor àssuas bochechas, e assim ele se aprumou com grande vigor e lucidez para explicar a situação.

– Devo informá-los, cavalheiros, que a Escola do Priorado é um estabelecimento do qual sou fundadore diretor. O HUXTABLE’S SIDELIGHTS ON HORACE possivelmente pode trazer o meu nome às suaslembranças. O Priorado é, sem exceção, a melhor e mais seleta escola preparatória da Inglaterra.Lorde Leverstoke, o Conde de Blackwater, Sir Cathcart Soames – todos eles têm deixado os seusfilhos aos meus cuidados; mas eu senti que a minha escola tinha alcançado o seu zênite quando,semanas atrás, o Duque de Holdernesse enviou o sr. James Wilder, secretário dele, sugerindo que ojovem Lord Saltire, de dez anos de idade, seu único filho e herdeiro, estava prestes a ser confiado àminha responsabilidade. Jamais imaginei que este seria o prelúdio do mais esmagador infortúnio daminha vida.“O menino chegou no dia 1° de maio, que marca o início das aulas de verão. Era um jovem encan-tador e logo sentiu-se à vontade. Posso lhe dizer – e creio que eu não estou sendo indiscreto, poismeias-verdades são absurdas em tal caso – que ele não era completamente feliz em casa. É umsegredo aberto que a vida de casado do Duque não tinha sido tranqüila, e o assunto tinha terminadonuma separação por mútuo consentimento; a Duquesa mudou-se para a sua residência no sul daFrança. Isso havia ocorrido pouco tempo antes, e sabia-se que a simpatia do menino era fortementevoltada para a mãe. Ele lamentou muito depois que a mãe partiu de Holdernesse Hall, e foi por issoque o Duque desejou enviá-lo ao meu estabelecimento. Em uma quinzena o menino estava total-mente adaptado conosco e, pelo menos na aparência, absolutamente feliz.“Ele foi visto pela última vez na noite de 13 de maio – ou seja, segunda-feira passada. O quarto deleficava no segundo andar, próximo de outro quarto maior no qual dois meninos dormiam. Essesmeninos nada ouviram ou viram, de forma que é certo que jovem Saltire não passou pelo corredor.A janela dele estava aberta e há uma robusta hera que conduz ao chão. Não pudemos encontrarnenhuma pegada abaixo, mas é seguro que aquela seria a única saída possível.“A ausência dele foi detectada às sete horas da manhã de terça-feira. Sua cama tinha sido utilizada.Antes de sair ele tinha se vestido completamente com o seu terno escolar habitual, a jaqueta pretade Eton e as calças compridas cinza-escuras. Não havia nenhum sinal de que alguém tivesse entradono quarto, e é bastante certo que qualquer coisa tal como gritos ou barulho de luta seriam ouvidos,desde que Caunter, o menino mais velho do quarto interno, tem um sono muito leve.“Quando o desaparecimento de Lorde Saltire foi descoberto, fiz imediatamente uma chamada geralno estabelecimento – estudantes, professores e criados. Averiguamos então que Lorde Saltire nãoestivera só em sua fuga. Heidegger, o professor alemão, estava ausente. O quarto dele fica nosegundo andar, numa extremidade mais distante do edifício, voltado para o mesmo lado que o deLorde Saltire. Sua cama também fora usada, mas ele aparentemente tinha ido embora parcialmentevestido, pois sua camisa e meias foram deixadas no chão. Ele desceu indubitavelmente pela hera,

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porque podíamos ver as marcas dos seus pés no lugar onde havia alcançado o gramado. Sua bicicletaera guardada num pequeno abrigo ao lado desse gramado, e também desaparecera.“Ele já estava comigo há dois anos, e veio com as melhores referências, mas era um homem silen-cioso, sombrio, não muito popular entre os meninos ou com os outros professores. Não se pôdeencontrar nenhum rastro dos fugitivos e agora, na manhã de quinta-feira, estamos ainda tão igno-rantes quanto estávamos na terça-feira. Evidentemente, realizou-se uma investigação imediata emHoldernesse Hall. A mansão fica somente alguns milhas adiante e imaginamos que, em algumsúbito ataque de nostalgia, ele teria regressado ao lar paterno, mas ninguém tinha ouvido falar dele.O Duque está muito agitado; quanto a mim, você viu o estado de prostração nervosa a que estesuspense e responsabilidade me reduziram. Sr. Holmes, se alguma vez você já fez uso completodos seus poderes, imploro-lhe que o faça agora, pois nunca em sua vida você teve um caso quefosse mais merecedor deles”.

Sherlock Holmes tinha escutado a explanação do infeliz professor com extrema presteza. Suas sobrancelhasfranzidas e o profundo sulco entre elas mostravam que ele não precisou de nenhuma exortação adicionalpara concentrar toda a sua atenção em um problema que, além dos tremendos interesses envolvidos, deviaapelar muito diretamente à sua paixão pelo complexo e o incomum. Ele então retirou o seu caderno eanotou um ou dois memorandos.

– Você foi muito negligente não vindo aqui antes, – ele disse, severamente. – Você inicia a minhainvestigação com um impedimento muito sério. Por exemplo, é inconcebível que essa hera e essegramado nada tivessem oferecido a um observador arguto.

– Não tenho culpa, sr. Holmes. Sua Graça desejava extremamente evitar qualquer escândalo público.Ele receava que a sua infelicidade familiar fosse arrastada diante do mundo. Ele tem um profundohorror a qualquer coisa dessa natureza.

– Mas houve alguma investigação oficial?– Sim, senhor, e tem se mostrado muito insatisfatória. Uma pista aparente foi obtida de imediato,

desde que um menino e um homem jovem foram vistos bem cedo pegando um trem numa estaçãodas vizinhanças. Somente ontem à noite recebemos a notícia de que o par havia sido capturado emLiverpool, mas provaram não ter nenhuma ligação com o assunto em pauta. Então, em meu desesperoe decepção, depois de uma noite insone, vim diretamente a você pelo primeiro trem da manhã.

– Suponho que a investigação foi relaxada enquanto seguiam essa falsa pista?– Ela foi completamente abandonada.– De forma que três dias foram perdidos. A maioria das oportunidades foi tratada deploravelmente.– Eu sinto por isso e o admito.– E o problema ainda deve possibilitar uma conclusão definitiva. Ficarei muito feliz de inspecioná-lo

minuciosamente. Você pôde encontrar alguma ligação entre o menino desaparecido e esse professoralemão?

– Absolutamente nenhuma.– Ele estava na classe do professor?– Não; o menino jamais trocou uma palavra com ele, até onde fui informado.– Isso é certamente muito singular. O menino tinha uma bicicleta?– Não.– Desapareceu alguma outra bicicleta?– Não.– Isso é fora de dúvida?– Totalmente.

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– Bem, você não pretende sugerirseriamente que esse alemão fugiuem uma bicicleta, na calada danoite, carregando o menino nosbraços?

– Certamente que não.– Então, que teoria tem em mente?– A bicicleta pode ter sido um

disfarce. Ela pode estar escondidaem algum lugar, e o par ido a pé.

– Isso mesmo, mas parece umadisfarce bastante absurdo, não é?Havia outras bicicletas nesseabrigo.

– Diversas.– Ele não teria escondido um par, se

quisesse dar a idéia que haviampartido nelas?

– Suponho que o faria.– Claro que sim. A teoria da cortina não é aplicável, mas o incidente é um admirável ponto de partida

para uma investigação. Afinal de contas, uma bicicleta não é uma coisa fácil de esconder ou destruir.Uma outra pergunta: alguém pediu para ver o menino no dia anterior ao desaparecimento?

– Não.– Ele recebeu alguma correspondência?– Sim, uma carta.– De quem?– Do seu pai.– Você abre as cartas dos meninos?– Não.– Como sabe que era do pai dele?– O brasão de armas estava no envelope, e foi endereçado com a peculiar escrita formal do Duque.

Além disso, o Duque se lembra de tê-la enviado.– Quando ele recebeu uma carta antes dessa ocasião?– Não por muitos dias.– Ele já recebeu alguma da França?– Não; nunca.– Você percebe o enfoque das minhas perguntas, evidentemente. Ou o menino foi levado à força ou

ele partiu por sua livre vontade. No último caso, poderíamos esperar que alguma indução externaseria necessária para compelir um rapaz tão jovem a tomar tal atitude. Se ele não recebeu nenhumavisita, uma carta deve tê-lo induzido; conseqüentemente, devo localizar os correspondentes dele.

– Temo que não possa ajudá-lo muito. O único correspondente dele, até onde sei, era o próprio pai.– Que escreveu a ele no mesmo dia do seu desaparecimento. As relações entre pai e filho eram muito

amigáveis?– Sua Graça nunca é muito amigável com ninguém. Ele está completamente absorto em grandes

questões públicas, e é bastante refratário a todas as emoções ordinárias. Mas ele sempre foi amável

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com o menino, à sua própria moda.– Mas a afinidade do menino era com a mãe?– Sim.– Ele disse isso?– Não.– O Duque, então?– Pelos céus, não!– Então, como você pôde saber?– Eu tive algumas entrevistas confidenciais com o sr. James Wilder, secretário de Sua Graça. Foi ele

quem me informou sobre os sentimentos de Lorde Saltire.– Percebo. A propósito, aquela última carta do Duque foi encontrada no quarto do menino depois de

sua partida?– Não; ele a levou consigo. Penso, sr. Holmes, que é tempo de partirmos para Euston.– Chamarei uma carruagem; em um quarto de hora estaremos à sua disposição. Se vai telegrafar

para casa, sr. Huxtable, seria conveniente deixar que as pessoas da sua vizinhança pensem que ainvestigação ainda está restrita a Liverpool, ou para onde quer que imagine que se possa desviar oassunto. Enquanto isso eu farei um pequeno trabalho silencioso em suas próprias portas, e talveza pista não esteja tão fria que dois velhos cães de caça como Watson e eu não possam dar umaboa cheirada nela.

Aquela noite foi nos encontrar na atmosfera fria e tonificante da região de Peak, na qual está localizadaa famosa escola do dr. Huxtable. Já estava escuro quando chegamos. Um cartão fora deixado na mesa dasala e o mordomo sussurrou algo ao seu patrão, que voltou-se para nós com a agitação estampada naface abatida.

– O Duque está aqui, – ele disse. – O Duque e osr. Wilder estão no escritório. Venham, cavalhei-ros; eu os apresentarei.

Eu estava familiarizado com os retratos do famosoestadista, evidentemente, mas o próprio homem eramuito diferente daquelas representações. Era um homemalto e imponente, escrupulosamente trajado, com umrosto estreito e um nariz que era grotescamente longo ecurvo. Sua compleição era de uma palidez mortal, queainda mais contrastava com a barba de um vermelhovívido (que escorria por cima do seu colete branco) ecom a corrente do relógio que cintilava sob a suaextremidade. Era assim a presença imponente que olhouinflexível para nós do centro do tapete do dr. Huxtable.Ao lado dele ergueu-se um homem muito jovem que euadivinhei tratar-se de Wilder, o secretário particular. Esteera pequeno, nervoso e alerta, com olhos azuis luminosose inteligentes e feições móveis. Foi ele quem, imediata-mente e num tom incisivo e positivo, iniciou aconversação.

– Esta manhã eu o procurei, dr. Huxtable, tardedemais para impedi-lo de partir para Londres.

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Fui informado que o seu objetivo era convidar o sr. Sherlock Holmes a empreender a conduçãodeste caso. Sua Graça está surpreso, dr. Huxtable, de que você pudesse ter dado tal passo semconsultá-lo.

– Quando soube que a polícia havia falhado...– Sua Graça não está de modo algum convencido que a polícia falhou.– Mas seguramente, sr. Wilder...– Você está bem consciente, dr. Huxtable, que Sua Graça está particularmente ansioso para evitar

qualquer escândalo público. Ele prefere contar com o mínimo possível de pessoas de sua confiança.– O assunto pode ser facilmente remediado, – disse o doutor com as sobrancelhas franzidas; – o sr.

Sherlock Holmes pode retornar a Londres pelo trem da manhã.– Dificilmente, doutor, dificilmente, – disse Holmes, com sua voz mais insípida. – Este ar do norte é

revigorante e agradável; assim eu proponho passar alguns dias em seus pântanos e ocupar a minhamente o melhor que puder. Se terei o abrigo do seu teto ou o da hospedaria da aldeia, evidentemente,é você quem deve decidir.

Eu pude ver que o infeliz doutor estava na última fase de indecisão, da qual foi salvo pela voz profunda esonora do Duque de barba vermelha, que ressoou como gongo.

– Eu concordo com o sr. Wilder, dr. Huxtable, que seria judicioso de sua parte consultar-me. Mas,desde que o sr. Holmes já goza de sua confiança, seria realmente absurdo que não devêssemos nosutilizar dos serviços dele. Longe de ir para a hospedaria, sr. Holmes; eu ficaria honrado se vocêviesse e ficasse comigo em Holdernesse Hall.

– Eu agradeço a Sua Graça. Tendo em vista o propósito da minha investigação, penso que seria maissábio permanecer na cena do mistério.

– Como você desejar, sr. Holmes. Evidentemente, se há qualquer informação que o sr. Wilder ou eupossamos lhe dar, estamos à sua disposição.

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– Provavelmente será necessário que eu veja o Hall, – disse Holmes. – Eu somente lhe perguntaria,senhor, se você já formou em sua própria mente alguma explicação quanto ao misterioso desapare-cimento de seu filho?

– Não, senhor; eu não tenho idéia.– Escuso-me se aludo a algo que lhe é doloroso, mas não tenho nenhuma alternativa: você acha que

a Duquesa teve qualquer coisa a ver com o assunto?O grande ministro hesitou perceptivelmente.

– Eu não penso assim, – ele disse, afinal.– A outra explicação mais óbvia é que a criança foi seqüestrada com a finalidade de arrecadar resgate.

Você não recebeu qualquer demanda nesse sentido?– Não, senhor.– Mais uma pergunta, Sua Graça. Eu entendi que você escreveu a seu filho no dia em que ocorreu

esse incidente.– Não; eu escrevi no dia anterior.– Exatamente. Mas ele recebeu a correspondência naquele dia?– Sim.– Havia qualquer coisa em sua carta que poderia tê-lo desequilibrado ou induzido a dar tal passo?– Não, senhor; certamente não.– Você postou a carta pessoalmente?

A resposta do nobre foi interrompida pelo secretário, com certa rispidez.– Sua Graça não tem o hábito de postar a sua correspondência, – ele disse. – Essa carta foi deixada

com outras na mesa de estudo e eu as coloquei na mala do correio.– Você tem certeza de que ela estava entre as outras?– Sim; eu o observei.– Quantas cartas Sua Graça escreveu naquele dia?– Umas vinte ou trinta. Eu tenho uma correspondência volumosa. Mas seguramente isso é um tanto

irrelevante.– Não completamente, – disse Holmes.– De minha própria parte, – prosseguiu o Duque, – aconselhei à polícia que voltasse a sua atenção

para o sul da França. Já disse que não acredito que a Duquesa encorajaria uma ação tão monstruosa,mas o rapaz tem as opiniões mais obstinadas, e é possível que ele tenha fugido para ela, ajudado einstigado por esse alemão. Acho que retornaremos agora ao Hall, dr. Huxtable.

Pude perceber que havia outras perguntas que Holmes desejaria ter feito, mas a maneira abrupta donobre mostrou que a entrevista estava encerrada. Ficou evidente que, para a sua natureza intensamentearistocrática, essa discussão das intimidades familiares com um estranho era muito constrangedora, e tambémtemia que qualquer nova pergunta lançasse uma luz mais impetuosa nos cantos discretamente sombreadosda sua história de ducal.

Quando o nobre e o secretário partiram, meu amigo arremessou-se imediatamente na investigação, coma ânsia característica.

A câmara do menino foi cuidadosamente examinada e nada rendeu, exceto a absoluta convicção de queele somente poderia ter escapado pela janela. O quarto e os móveis do professor alemão não forneceramnenhuma pista adicional, mas uma trepadeira (hera) havia cedido sob o seu peso, e vimos pela luz de umalanterna, no gramado abaixo, a marca onde os calcanhares dele tinham pousado. Aquele vestígio na gramabaixa e verde era o único testemunho material deixado por essa inexplicável fuga noturna.

Sherlock Holmes deixou a casa sozinho e só voltou depois das onze horas. Ele tinha conseguido um

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grande mapa militar das redondezas, trouxe-o ao meu quarto, estendeu-o na cama e, tendo equilibrado alâmpada no meio dele, começou a fumar e ocasionalmente me apontava objetos de interesse com a pontade âmbar do seu cachimbo.

– Esse caso está crescendo, Watson, – ele disse. – Há decididamente alguns pontos de interesseligados a ele. Quero que você observe essas características geográficas que podem ter uma boarelação com a nossa investigação, nesta fase precoce.“Olhe este mapa. Esse quadrado escuro é a Escola do Priorado. Porei um alfinete nele. Agora, estalinha é a estrada principal. Você vê que ela corre de leste para oeste, passando pela escola, e tambémvê que por uma milha não há nenhuma estrada lateral de qualquer lado. Se essas duas personagensfugiram por uma estrada, foi esta estrada”.

– Exatamente.– Por uma singular e feliz casualidade, podemos até certo ponto reconstituir o que se passou ao longo

dessa estrada durante a noite em questão. Um policial do condado estava de plantão, da meia-noiteàs seis, nesse ponto onde o meu cachimbo agora repousa. Como você pode observar, é o primeirocruzamento da estrada no lado leste. Esse homem declara que não se ausentou do seu posto em porum momento, e é positivo em afirmar que nem um menino nem um homem poderiam ter passadodespercebidos. Eu conversei com o policial da noite e ele me pareceu uma pessoa de absolutaconfiança. Isso bloqueia esta saída. Agora temos de verificar a outra. Há uma estalagem aqui, o RedBull, cuja proprietária estava adoentada. Ela mandou chamar um médico em Mackleton, mas eleesteve ausente até a manhã seguinte, atendendo outro paciente. Os hóspedes da estalagempermaneceram alertas toda a noite, aguardando a chegada do médico, e parece que um ou outro

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deles ficou continuamente com um olho na estrada. Eles afirmam que ninguém passou. Se a evidênciadeles for boa, então somos afortunados o bastante para poder bloquear também o oeste e assegurarque os fugitivos não utilizaram nenhuma estrada.

– Mas a bicicleta? – eu objetei.– Isso mesmo; agora chegamos à bicicleta. Para prosseguir em nosso raciocínio: se essas pessoas não

passaram pela estrada, elas devem ter atravessado o campo ao norte ou ao sul da escola; isso éóbvio. Deixe-nos pesar um contra o outro. Ao sul da escola há, como você percebe, um grandedistrito de terras cultiváveis, repicado de pequenos campos, com paredes de pedra entre eles. Lá,eu admito que uma bicicleta é impossível; podemos rejeitar essa hipótese. Voltamo-nos para ocampo ao norte. Aqui se localiza um bosque de árvores, denominado Ragged Shaw e, no lado maisafastado, há um grande pântano, o Lower Gill, que se estende por dez milhas e inclina-se gradualmentepara cima. Aqui, num extremidade do pântano, está Holdernesse Hall, distante dez milhas pelaestrada, mas apenas seis pelo pântano. É uma planície peculiarmente desolada. Alguns fazendeirosdo pântano têm pequenas propriedades onde criam ovelhas e vacas. Excluindo estes, as tarambolase os maçaricos são os únicos habitantes até chegar à rodovia de Chesterfield. Há uma igreja lá, vocêvê; algumas cabanas e uma hospedaria. Além daqui as colinas tornam-se escarpadas. É seguramenteaqui ao norte que a nossa indagação deve ter resposta.

– Mas a bicicleta? – eu persisti.– Bem, bem! – disse Holmes, impacientemente. – Um bom ciclista não precisa de uma auto-estrada.

O pântano é cruzado por caminhos estreitos, e era noite de lua cheia. Epa! o que é isto?Houve uma batida agitada à porta e um momento depois o dr. Huxtable estava no quarto. Segurava em

sua mão um boné de críquete azul com uma divisa branco no topo.– Afinal temos uma pista! – ele exclamou. – Agradeça ao céu! afinal pisamos um passo no rastro do

querido menino! É o boné dele.– Onde foi encontrado?– No carroção dos ciganos que estavam acampados no pântano. Eles partiram na terça-feira. Hoje a

polícia os localizou e examinou a sua caravana, e acharam isto.– Como eles o explicam?– Eles tergiversaram e mentiram: disseram que o acharam no pântano na manhã de terça-feira. Os

tratantes sabem onde está o menino! Graças à bondade divina eles estão trancados a sete chaves. Oreceio da lei ou a bolsa do Duque certamente extrairá tudo o que eles sabem.

– Até aqui, tudo bem, – disse Holmes, quando afinal o doutor tinha deixado o quarto. – Pelo menosconfirma a teoria de que estão nas adjacências do pântano Lower Gill, onde já esperávamos resultados.A polícia local não fez realmente nada, salvo a apreensão desses ciganos. Olhe aqui, Watson! Há umcurso d’água que atravessa o pântano. Você o vê marcado aqui no mapa. Em algumas partes ele sealarga em um paul, particularmente na região entre Holdernesse Hall e a escola. É inútil procurarpor rastros em outro lugar neste tempo seco, mas naquele ponto há certamente uma chance de quealgum registro fosse deixado. Vou chamá-lo amanhã bem cedo e, se pudermos, nós dois tentaremoslançar um raio de luz nesse mistério.

O dia estava apenas raiando quando acordei para encontrar a figura alta e magra de Holmes ao lado daminha cama. Ele estava completamente vestido e aparentemente já estivera fora.

– Eu já vi o gramado e o abrigo da bicicleta, – disse ele. – Também passei por Ragged Shaw. Agora,Watson, há chocolate pronto no quarto ao lado. Devo lhe que implorar que se apresse, pois temosum dia longo pela frente.

Seus olhos brilhavam e suas bochechas estavam coradas com a alegria do mestre que vê o seu trabalho

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disposto diante dele. Um Holmes muito diferente, este homem ativo e alerta, daquele sonhador introspec-tivo e pálido da Baker Street. Eu senti, assim que olhei para aquela figura flexível, viva e vibrante de energia,que era realmente um dia estrênuo que nos esperava.

E ainda começou com a mais negra decepção. Com elevadas esperanças investimos através do pântanoturfoso, cor de ferrugem, cruzado por mil trilhas de ovelhas, até que chegamos ao largo cinturão de umverde luminoso que demarca o paul entre nós e Holdernesse. Se o rapaz tinha voltado para casa, certamentedevia ter passado por ali, e não poderia passar sem deixar um rastro. Mas não se pôde ver nenhum sinal deleou do alemão. Com o semblante pesaroso o meu amigo avançou a passos largos ao longo da margem,observando avidamente cada mancha barrenta na superfície musgosa. Marcas de ovelha havia em profusãoe, em um lugar algumas milhas abaixo, algumas vacas tinham deixado os seus rastros. Nada mais.

– Verificação número um, – disse Holmes, enquanto examinava com tristeza a extensão do pântano.– Há outro paul abaixo, e uma língua de terra entre eles. Epa! epa! epa! o que nós temos aqui?

Tínhamos vindo por uma estreita faixa negra de terra firme. No meio dela, claramente delineado na terraencharcada, estava o rastro de uma bicicleta.

– Hurra! – eu exclamei. – Nós o temos.Mas Holmes estava balançando a cabeça; em seu rosto havia confusão e expectativa em lugar de jovialidade.

– Uma bicicleta, certamente, mas não a bicicleta, – ele disse. – Estou familiarizado com quarenta eduas diferentes impressões deixadas por pneus. Este, como você percebe, é um Dunlop, com umremendo na cobertura externa. Os pneus de Heidegger eram Palmer, que deixa faixas longitudinais.Aveling, o mestre matemático, estava seguro neste ponto. Então, não é o rastro de Heidegger.

– O menino, então?– Possivelmente, se pudéssemos provar que estava de posse de uma bicicleta; mas isso nós falhamos

totalmente em fazer. Este rastro, como você percebe, foi feito por um ciclista que vinha da direçãoda escola.

– Ou ia para ela?– Não, não, meu caro Watson. A impressão mais

profunda é, evidentemente, a da roda traseira,sobre a qual o peso se apóia. Você observadiversos lugares por onde ela passou e obliterou amarca mais superficial da roda dianteira. Ela estavase distanciando da escola, indubitavelmente. Podeou não estar ligada à nossa investigação, mas nós aseguiremos de trás para a frente antes de irmosadiante.

Assim fizemos e perdemos a pista ao fim de algumascentenas de jardas, assim que emergimos da parte alagadado pântano. Seguindo o caminho contrário, escolhemosoutro ponto onde gotejava uma fonte. Aqui estava, uma vezmais, a marca da bicicleta, entretanto quase obliterada peloscascos de vacas. Depois não havia nenhum sinal, mas ocaminho apontava diretamente para Ragged Shaw, a florestaque ficava nos fundos da escola. A bicicleta deve ter saído dessafloresta. Holmes sentou-se num bloco rochoso e descansou oqueixo nas mãos. Eu fumei dois cigarros antes que ele se movesse.

– Bem, bem, – disse ele, afinal. – É perfeitamente cabível

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que um homem sagaz possa alterar os pneus da sua bicicleta para deixar rastros pouco familiares.Um criminoso capaz de tal reflexão é um homem com quem eu deveria estar orgulhoso de tratar.Aceitaremos que esta pergunta fique sem resposta e retornaremos novamente ao nosso paul, porquedeixamos uma boa parte inexplorada.

Continuamos a nossa pesquisa sistemática da extremidade da porção encharcada do pântano e logo anossa perseverança era gloriosamente recompensada: existia um caminho lamacento, direto através daparte mais baixa do paul. Holmes deu um grito de regozijo quando aproximou-se dele. Uma impressãosemelhante a um feixe de fios telegráficos corria pelo centro do atalho. Eram pneus Palmer.

– Aqui está Herr Heidegger, seguramente! – exclamou Holmes, exultante. – Meu raciocínio parece tersido muito sensato, Watson.

– Eu o felicito.– Mas nós ainda temos um longo trajeto a percorrer. O caminho foi esclarecedor; agora vamos seguir

o rastro. Temo que não nos levará muito longe.Assim que avançamos por essa parte do pântano, constatamos que ela é cruzada por faixas de terreno

mais moles; entretanto, freqüentemente perdemos o rastro de vista, mas sempre tivemos sucesso em apanhá-lo mais uma vez.

– Você observa, – disse Holmes, – que agora o ciclista sem dúvida está forçando o passo? Não podehaver nenhuma incerteza disso. Olhe para esta impressão, onde você vê claramente ambos ospneus. O primeiro é tão profundo quanto o outro. Isto só pode significar que o ciclista está lançan-do o seu peso sobre o guidão, como faz um homem quando está correndo. Por Júpiter! ele sofreuuma queda.

Havia uma mancha larga e irregular a algumas jardas do rastro; então algumas marcas de pés, e o pneureapareceu mais uma vez.

– Uma derrapagem, – eu sugeri.Holmes ergueu um ramo amassado de um arbusto espinhoso florescente. Para meu horror, percebi que

as flores amarelas estavam todas borrifadas de vermelho. Também no caminho e entre as urzes havia man-chas escuras de sangue coagulado.

– Mau! – disse Holmes. – Mau! Saia do caminho, Watson! Nem um passo desnecessário! O que euleio aqui? Ele cai ferido – ele se levanta – ele montou novamente – ele prosseguiu. Mas não hánenhum outro rastro. Gado neste caminho lateral. Ele certamente não foi chifrado por um touro?Impossível! Mas eu não vejo qualquer outro rastro. Temos de acelerar, Watson. Seguramente, comas manchas e também os rastro para nos guiar, agora ele não nos pode escapar.

Nossa procura não foi uma muito longa. Os rastros de pneus começaram a encurvar fantasticamente nocaminho úmido e brilhante. De repente, conforme olhei para a frente, um reflexo de metal atingiu os meusolhos por entre os espessos arbustos espinhentos. Arrastamos para fora deles uma bicicleta de pneus Palmercom um pedal torto e toda a frente horrivelmente coberta com sangue escorrido. Um sapato estava projetadodo outro lado dos arbustos. Nós corremos desviando dos obstáculos e lá jazia o ciclista infeliz. Era umhomem alto, de barba cheia, com óculos, nos quais falava uma lente. A causa da sua morte fora um medonhogolpe na cabeça que lhe havia esmagado parte do crânio. Que ele pudesse continuar depois de receber talferimento dizia muito da vitalidade e da coragem do homem. Ele usava sapatos, mas sem meias; o casacoentreaberto mostrava uma camisola por baixo. Era o professor alemão, com toda a certeza.

Holmes virou o corpo para cima reverentemente e examinou-o com grande atenção. Então sentou-se emprofundo pensamento durante algum tempo; eu podia ver pelas suas sobrancelhas arqueadas que esta gravedescoberta não tinha, na opinião dele, nos trazido muito avanço em nossa investigação.

– É um pouco difícil saber o que fazer, Watson, – ele disse, afinal. – Minhas próprias inclinações são

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de impulsionar o andamento desta investigação,porque já perdemos tanto tempo que não pode-mos nos dar ao luxo de desperdiçar outra hora.Por outro lado, estamos condicionados a infor-mar a polícia desta descoberta, providenciandoque o corpo deste pobre camarada receba osdevidos cuidados. – Eu poderia levar um recado de volta. – Mas eu preciso de sua ajuda e companhia.Espere um pouco! Há um homem cortando turfalá em cima. Traga-o aqui, e ele guiará a polícia.

Eu trouxe o camponês e Holmes despachou ohomem amedrontado com uma nota para o dr.Huxtable. – Agora, Watson, – ele disse, – nós apanhamos

duas pistas esta manhã. Uma é a bicicleta com opneu Palmer, e vimos onde ela nos levou. Outra é a

bicicleta com o pneu Dunlop consertado. Antes decomeçarmos a investigar, vamos tentar avaliar o que já

sabemos, para fazer o melhor com isto e separar o essencial do acidental.“Em primeiro lugar eu desejo convencê-lo que o menino certamente partiu por sua livre vontade.Ele desceu pela janela e foi embora, só ou com mais alguém. Isso é certo.

Eu assenti.– Bem; agora voltemos a esse infeliz professor alemão. O menino estava completamente vestido

quando fugiu. Então, ele previu o que faria. Mas o alemão saiu sem as suas meias. Ele certamenteagiu muito em cima da hora.

– Incontestavelmente.– Por quê ele saiu? Porque, da janela do seu quarto, ele viu a fuga do menino, porque ele desejou

alcançá-lo e trazê-lo de volta. Ele pegou sua bicicleta e perseguiu o rapaz, e nessa perseguiçãoencontrou a morte.

– Assim parece.– Agora eu chego à parte crítica do meu argumento. A ação natural de um homem procurando um

menino pequeno seria correr atrás dele. Ele sabia que poderia alcançá-lo. Mas o alemão não fezassim. Ele veio de bicicleta. Disseram-me que ele era um excelente ciclista. Ele não faria isto se nãovisse que o menino dispunha de algum meio rápido de fuga.

– A outra bicicleta.– Deixe-nos continuar a nossa reconstrução. Ele encontra a sua morte a cinco milhas da escola – não

por uma bala, observe, a qual até mesmo um rapaz poderia concebivelmente disparar, mas por umgolpe selvático, facultado por um braço vigoroso. O menino, então, teve um companheiro em suafuga. E a fuga foi rápida, visto que um ciclista experimentado percorreu cinco milhas antes de poderalcançá-los. Nós ainda inspecionamos o círculo de chão à volta da cena da tragédia. E o que achamos?Alguns rastros de gado, nada mais. Eu estabeleci um largo círculo de varredura, e não há nenhumcaminho dentro de cinqüenta jardas. Outro ciclista não poderia ter tido nada a ver com o presenteassassinato, nem havia qualquer marca de pé humano na área.

– Holmes, – eu exclamei, – isto é impossível!

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– Admirável! – ele disse. – Uma observação iluminada. É impossível como eu reconstitui; então, devoter um pouco de humildade e admitir que estou errado. Você viu por si mesmo. Pode sugerir algumafalácia?

– Ele não poderia ter fraturado o crânio devido a uma queda?– Em um pântano, Watson?– Estou no limite do meu entendimento.– Nada disso, nada disso; nós já resolvemos alguns problemas piores. Pelo menos dispomos de bastante

material, se pudermos usar apenas isso. Venha, então, e, tendo exaurido o Palmer, vejamos o que oDunlop com a cobertura consertada tem a nos oferecer.

Pegamos o rastro e o seguimos à frente até uma certa distância, mas logo o pântano ascendia numa curvalonga, alcochoado de moitas de urze, e deixamos o curso d’água para trás. Não se podia esperar nenhumauxílio de rastros adicionais. O ponto onde vimos o último sinal do pneu Dunlop poderia conduzir igual-mente para Holdernesse Hall – as imponentes torres que se erguiam algumas milhas à nossa esquerda –, oua um vilarejo baixo, cinza, que se estendia à nossa frente e marcava a posição da rodovia de Chesterfield.

Conforme nos aproximamos da desagradável e esquálida hospedaria, com o símbolo de um galo de brigasobre a porta, Holmes deu um gemido súbito e apoiou-se no meu ombro para não cair. Ele havia sofrido umadessas violentas contorções de tornozelo que deixam um homem desamparado. Com dificuldade ele mancouaté a porta onde um homem velho e escuro estava agachado fumando um cachimbo de barro preto.

– Como vai você, sr. Reuben Hayes? – disseHolmes.

– Quem é você, e como descobriu o meu nomeassim prontamente? – respondeu o camponês,com um lampejo de suspeita num par de olhosastutos.

– Bem, está impresso na tabuleta sobre a suacabeça. É fácil perceber um homem que é omestre em sua própria casa. Suponho que vocênão tem uma coisa tal como uma carruagem emseus estábulos?

– Não, eu não tenho.– Eu quase não posso pôr o meu pé no chão.– Não ponha o pé no chão.– Mas eu não posso andar.– Bem; então pule.

A maneira do sr. Reuben Hayes estava longe de sercortês, mas Holmes tomou isso com admirável bom-humor.

– Olhe aqui, meu homem, – ele disse. – Este é umdilema realmente embaraçoso para mim. Não seicomo prosseguir.

– Nem eu, – disse o taciturno proprietário.– O assunto é muito importante. Eu lhe ofereço

um soberano pelo uso de uma bicicleta.O proprietário esticou suas orelhas.

– Onde você quer ir?

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– A Holdernesse Hall.– Colegas do Dook, eu suponho? – disse o proprietário, enquanto inspecionava com olhar irônico as

nossas vestes salpicadas de lama.Holmes riu de boa índole.

– Ele ficará alegre de nos ver, de qualquer forma.– Por quê?– Porque lhe trazemos notícias do filho perdido.

O proprietário teve um visível sobressalto.– O quê; você está no rastro dele?– Foi visto em Liverpool. Esperam por ele a qualquer momento.

Novamente uma rápida mudança passou por aquela face rústica, por barbear. Repentinamente as maneirasdele tornaram-se cordiais.

– Eu tenho menos razão para desejar o bem do Dook que a maioria dos homens, – ele disse, – porquefui uma vez o seu cocheiro principal e ele me tratou de forma cruel. Ele me despediu sem referênciaspela conversa de um comerciante de trigo mentiroso. Mas estou feliz por que o jovem senhor foiavistado em Liverpool, e o ajudarei a levar as notícias ao Hall.

– Obrigado, – disse Holmes. – Bem, primeiro precisamos de um pouco de comida. Então você podenos trazer a bicicleta.

– Mas eu não tenho uma bicicleta.Holmes ergueu um soberano.

– Eu lhe digo, homem que não tenho como adquirir uma. Posso ceder-lhe dois cavalos para ir atéo Hall.

– Bem, bem, – disse Holmes, – conversaremos melhor sobre isso quando tivermos algo para comer.Quando fomos deixados a sós na cozinha pavimentada com pedras, fiquei surpreso como ele recuperou

rapidamente o tornozelo deslocado. Estava quase anoitecendo e não tínhamos comido nada desde o inícioda manhã, de modo que gastamos algum tempo com a nossa refeição. Holmes estava perdido em pensamentose uma ou duas vezes caminhou para a janela e olhou seriamente para fora. Ela se abria para um pátio infame.Num canto distante havia uma ferraria onde um rapaz sujo estava trabalhando; do outro lado estavam osestábulos. Holmes sentara-se novamente depois de uma dessas perambulações, quando de repente pulouda cadeira com uma sonora exclamação.

– Pelo céu, Watson, acredito que o peguei! – ele exclamou. – Sim, sim, deve ser isso. Watson, você selembra de ter visto qualquer rastro de vaca hoje?

– Sim, vários.– Foi?– Bem, por toda a parte. Eles estavam no pântano, novamente no caminho, e outra vez próximo de

onde o pobre Heidegger encontrou o seu destino.– Exatamente. Bem; agora, Watson, quantas vacas você viu no pântano?– Não me lembro de ter visto uma sequer.– Estranho, Watson, que desde o princípio tenhamos observado rastros em nossa pesquisa, mas

nunca uma única vaca em todo o pântano. Muito estranho, Watson, eh?– Sim, é estranho.– Agora, Watson, faça um esforço; atrase a sua mente. Você pode ver esses rastros no caminho?– Sim, eu posso.

– Você pode recordar como esses rastros às vezes eram assim, Watson – ele distribuiu vários pedacinhosde miolo de pão desta forma [ : : : : : : : ] – e às vezes eram assim – [ : . : . : . : . : . : . ] – e ocasionalmente

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eram assim [ .·.·.·.·.·.·.·. ] – Você pode lembrar-se disso?– Não, eu não consigo.– Mas eu posso. Eu poderia jurá-lo. Contudo, voltaremos ao nosso lazer e verificaremos isso. Que

besouro cego eu fui por não tirar a minha conclusão.– E qual é a sua conclusão?– Apenas que é notável que uma vaca marche, trote e galope. Por George! Watson, não foi nenhum

cérebro de taverneiro rude que idealizou tal subterfúgio. A costa parece estar livre, exceto poraquele rapaz na ferraria. Vamos deslizar para fora e ver o que podemos encontrar.

Havia dois cavalos de pêlos ásperos e desgrenhados dentro do estábulo prestes a ruir. Holmes ergueu aperna traseira de um deles e riu em voz alta.

– Sapatos velhos, mas recentemente calçados; sapatos velhos, mas novas unhas. Este caso merecetornar-se um clássico. Vamos até a ferraria.

O rapaz continuou o seu trabalho indiferente à nossa presença. Eu vi o olho de Holmes dardejando àdireita e à esquerda por entre a confusão de ferro e madeira que se espalhavam pelo chão. Porém, derepente ouvimos passos atrás de nós e lá estava o proprietário, com suas sobrancelhas pesadas puxadaspara cima dos olhos selvagens e suas feições trigueiras convulsionadas pela emoção. Ele segurava em suamão uma bengala curta, com cabeça de metal, e avançou de um modo ameaçador; assim, fiquei feliz sentindoo cabo do revólver em meu bolso.

– Seus espiões infernais! – o homem exclamou. – O que fazem aqui?– Por que razão, sr. Reuben Hayes, – disse Holmes, calmamente, – alguém poderia pensar que você

estava com medo que achássemos alguma coisa.O homem dominou-se com um esforço violento e sua boca severa relaxou num sorriso falso que era

ainda mais ameaçador que a sua carranca.– Você é bem-vindo a tudo o que possa descobrir em minha ferraria, – ele disse. – Mas veja bem,

senhor, não quero o populacho escarafunchando o meu lugar sem a minha licença; assim, quantomais cedo você liquidar a sua conta e der o fora daqui, mais eu lhe serei grato.

– Certo, sr. Hayes; não temos más intenções, – disse Holmes. – Nós demos uma olhada nos seuscavalos, mas penso que irei caminhando, afinal de contas. Não é muito longe, creio.

– Não mais de duas milhas até os portões do Hall, pela estrada à esquerda.Ele nos observou com olhos sombrios até deixarmos a sua propriedade.Não chegamos muito longe, ao longo da estrada, quando Holmes parou no ponto em que a curva nos

ocultou da visão do proprietário.– Nós estávamos mornos, como dizem as crianças, naquela hospedaria, – ele disse. – Eu pareço ficar

mais frio a cada passo que eu dou para longe dela. Não, não; eu talvez não possa deixá-la.– Estou convencido, – eu disse, – que esse Reuben Hayes sabe de alguma coisa. Jamais vi um biltre

mais patente.– Oh! ele o impressionou tanto assim, Watson? Há os cavalos, há a ferraria. Sim, é um lugar interes-

sante, esse Fighting Cock [Galo de Briga]. Penso que teremos de observá-lo novamente de ummodo mais discreto.

Atrás de nós estendia-se uma ladeira longa e abrupta, pontilhada de blocos de pedra calcária cinza. Tínha-mos saído da estrada e estávamos subindo a colina quando, olhando na direção de Holdernesse Hall, vi umciclista que se aproximava rapidamente.

– Abaixe-se, Watson! – exclamou Holmes, com a mão pesada no meu ombro.Quase não tínhamos saído de vista quando o homem voou além de nós pela estrada. Entre uma nuvem

turbilhonante de pó, vislumbrei rapidamente uma face pálida, agitada – uma face com o horror em cada

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contorno, a boca aberta, os olhos fixos para a frente deuma forma selvagem. Era como uma caricatura bizarrado garboso James Wilder quem tínhamos visto na noiteanterior.

– O secretário do Duque! – exclamou Holmes. –Venha, Watson, vamos ver o que ele faz.

Nós subimos de pedra em pedra em alguns momentosaté atingir um ponto do qual podíamos visualizar a portada frente da hospedaria. A bicicleta de Wilder estavaencostada na parede ao lado da porta. Não havia nenhummovimento na casa, nem conseguíamos vislumbrarqualquer rosto às janelas. Lentamente o sol afundou portrás das altas torres de Holdernesse Hall e veio ocrepúsculo. Então, na escuridão, vimos acenderem asduas lâmpadas laterais de uma carruagem no pátio doestábulo da hospedaria e, pouco depois, ouvimos oestrépito de cascos e rodas fora da estrada, arrancandonum passo furioso na direção de Chesterfield.

– O que você pensa disso, Watson? – disse Holmesnum sussurro.

– Parece uma fuga.– Um único homem em um cabriolé, até onde

pude ver. Bem, certamente não era James Wilder,pois lá está ele à porta.

Um retângulo de luz vermelha destacava-se daescuridão. No meio dele estava a figura escura dosecretário, com a cabeça projetada para a frente,perscrutando a noite. Era evidente que esperava alguém.Afinal, ouvimos passos na estrada; uma segunda figuraficou visível por um momento contra a luz, então a portase fechou e estava tudo mais uma vez em completaescuridão. Cinco minutos depois um lâmpada foi acesanum quarto no primeiro andar.– Parece ser uma curiosa classe de costumes que sepratica no Fighting Cock – disse Holmes.– A entrada fica do outro lado.– Isso mesmo. Esses são o que se pode chamar deconvidados privados. Agora, que diabos poderia o sr.James Wilder estar fazendo naquela espelunca a esta horade noite, e quem é o camarada que lá foi encontrar?Venha, Watson, nós realmente temos de correr um riscoe tentar investigar isso um pouco mais de perto.

Voltamos juntos à estrada e rastejamos até a porta dahospedaria. A bicicleta ainda estava apoiada contra aparede. Holmes riscou um fósforo e iluminou a roda

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traseira da bicicleta, e eu o ouvi rir assim que a luz caiu sobre um pneu Dunlop consertado. Acima de nósestava a janela iluminada.

– Eu devo espreitar isso, Watson. Se você se dobrar para trás e apoiar na parede, acho que possoconseguir.

Um momento depois os pés dele estavam em meus ombros, mas ele subiu com dificuldade e logo aseguir desceu novamente.

– Venha, meu amigo, – ele disse, – o nosso dia de trabalho foi bastante prolongado. Penso que juntamostudo aquilo que pudemos. É um passeio longo até a escola e quanto mais cedo começarmos, melhor.

Ele praticamente não abriu os lábios durante aquela marcha cansativa através do pântano, nem entrou naescola quando a alcançamos, mas prosseguiu até Mackleton Station, de onde poderia enviar alguns telegramas.Tarde da noite eu o ouvi consolando o dr. Huxtable, prostrado pela trágica morte do professor, e aindadepois disso ele entrou no meu quarto tão alerta e vigoroso quanto estava pela manhã, ao começarmos.

– Tudo vai bem, meu amigo, – ele disse. – Prometo que antes da noite de amanhã teremos chegado àsolução do mistério.

Às onze horas da manhã seguinte meu amigo e eu caminhávamos pela famosa avenida de teixos deHoldernesse Hall. Fomos conduzidos pela magnífica entrada elizabetana ao escritório de Sua Graça. Láencontramos o sr. James Wilder, agora recatado e elegante, mas alguns traços daquele terror selvagem danoite anterior ainda espreitava dos seus olhos furtivos e em suas feições contraídas.

– Você veio ver Sua Graça? Sinto muito, mas o fato é que o Duque se encontra extremamente indisposto.Ele ficou muito aborrecido com as trágicas notícias. Ontem à tarde recebemos um telegrama do dr.Huxtable, relatando-nos a sua descoberta.

– Eu preciso ver o Duque, sr. Wilder.– Mas ele está em seu quarto.– Então eu devo ir ao quarto dele.– Acredito que ele ainda esteja na cama.– Eu o verei lá.

A frieza e a maneira inexorável de Holmes mostraram ao secretário que era inútil discutir com ele.– Muito bem, sr. Holmes; eu lhe direi que você está aqui.

Após a demora de uma hora, o grande nobre surgiu. Sua face estava mais cadavérica que nunca, osombros curvos; ele me pareceu um homem extremamente mais idoso do que aquele que vi na manhãanterior. Ele nos cumprimentou com uma cortesia imponente e sentou-se à escrivaninha, com a barbavermelha fluindo por baixo da mesa.

– Bem, sr. Holmes? – ele disse.Mas o olhos do meu amigo estavam fixos no secretário que se levantou de sua poltrona.

– Eu penso, Sua Graça, que poderia lhe falar mais livremente na ausência do sr. Wilder.O homem adquiriu uma tonalidade muito pálida e lançou um olhar maligno em Holmes.

– Se Sua Graça deseja...– Sim, sim; é melhor você ir. Agora, sr. Holmes, o que tem a dizer?

Meu amigo esperou até que a porta tivesse fechado atrás do secretário que se retirava.– O fato é, Sua Graça, – ele disse, – que meu colega, dr. Watson, e eu recebemos do dr. Huxtable a

garantia de que uma recompensa tinha sido oferecida neste caso. Eu gostaria de ter isso confirmadodos seus próprios lábios.

– Certamente, sr. Holmes.– Se estou corretamente informado, montava a cinco mil libras para qualquer um que lhe dissesse

onde o seu filho está?

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– Exatamente.– E outros mil para o homem que designasse a pessoa ou pessoas que o mantêm sob custódia?– Exatamente.– Sob o último título se inclui, sem dúvida, não somente aqueles que podem tê-lo levado embora,

mas também os que conspiraram para mantê-lo na sua presente posição?– Sim, sim, – exclamou o Duque, impacientemente. – Se você fizer bem o seu trabalho, sr. Sherlock

Holmes, não terá nenhuma razão para reclamar de um tratamento mesquinho.Meu amigo esfregou as mãos magras com uma aparência de avidez que era novidade para mim, que bem

conhecia os seus apetites frugais.– Imagino que estou vendo o talão de cheques de Sua Graça sobre a mesa, – ele disse. – Eu ficaria

satisfeito se você me preenchesse um cheque de seis mil libras. Seria melhor, talvez, cruzá-lo. Obanco Capital and Counties, filial da Oxford Street, é o meu agente.

Sua Graça sentou-se muito rígido e ereto em sua cadeira e olhou empedernido para o meu amigo.– Isto é uma piada, sr. Holmes? O assunto dificilmente se presta a gracejos.– Não, Sua Graça. Jamais falei mais sério em toda a minha vida.– O que isso quer dizer, então?– Quero dizer que ganhei a recompensa. Sei onde está o seu filho e sei pelo menos quem são alguns

dos que o estão confinando.A barba do Duque pareceu ter ficado ainda mais agressivamente vermelha contra a sua assustadora face

branca.– Onde ele está? – ele disse, ofegante.– Ele está, ou estava ontem à noite, na hospedaria Fighting Cock, a cerca de duas milhas do portão do

seu parque.O Duque levantou-se bruscamente da cadeira.

– E quem você acusa?A resposta de Sherlock Holmes foi a mais surpreendente. Ele aproximou-se rapidamente do Duque e

tocou no seu ombro.– Eu acuso você, – ele disse. – E agora, Sua Graça, devo incomodá-lo novamente quanto àquele

cheque.Nunca poderei esquecer a aparência do Duque quando ele pulou para cima e se arranhou com as próprias

mãos, como alguém que está afundando num abismo. Então, com um extraordinário esforço de autodomínioaristocrático, sentou-se e afundou o rosto entre as mãos. Somente alguns minutos depois ele pôde falar.

– Quanto você sabe? – ele afinal perguntou, sem levantar a cabeça.– Eu os vi juntos ontem à noite.– Ninguém mais sabe, além do seu amigo?– Não contei a ninguém.

O Duque pegou uma caneta entre os dedos trêmulos e abriu o talão de cheques.– Eu serei fiel à minha palavra, sr. Holmes. Estou a ponto de preencher o seu cheque; todavia, as

informações que você obteve podem ser inoportunas para mim. Na ocasião em que fiz a oferta,pouco refleti na reviravolta a que os eventos poderiam levar. Mas você e seu amigo são homens dediscrição, sr. Holmes?

– Não compreendo, Sua Graça.– Eu tenho que deixar isso bem claro, sr. Holmes. Se apenas vocês dois conhecem este incidente,

não há nenhuma razão por que deveria ir mais longe. Penso que lhe devo a soma de doze millibras , não é?

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Mas Holmes sorriu e abanou a cabeça.– Receio, Sua Graça, ser altamente improvável que se possa resolver o assunto com tanta facilidade.

Deve-se considerar a morte desse professor.– Mas James não sabia nada disso. Você não pode responsabilizá-lo. Foi o trabalho desse rufião brutal

que ele teve o infortúnio de empregar.– Devo ter em vista, Sua Graça, que quando um homem embarca numa conspiração criminosa, ele é

moralmente culpado de qualquer outro crime que daí possa advir.– Moralmente, sr. Holmes; sem dúvida você tem razão. Mas não aos olhos da lei, seguramente. Um

homem não pode ser condenado por um assassinato ao qual não estava presente e o qual eledetesta e abomina tanto quanto você mesmo. No momento em que ouviu falar disso ele me fezuma confissão completa, tão cheio estava de remorso e horror. Ele não perdeu uma hora rompendocompletamente com o assassino. Oh, sr. Holmes, você tem de salvá-lo – você tem de salvá-lo! Eulhe digo que você tem de salvá-lo!

O Duque havia renunciado à última tentativa de autodomínio, andando pelo quarto com a face convulsi-onada e apertando as mãos no ar, em delírio. Afinal ele conseguiu se controlar e sentou-se novamente àescrivaninha.

– Eu aprecio a sua conduta vindo aqui antes de falar a qualquer outro, – ele disse. – Pelo menospoderemos deliberar sobre o que fazer e até onde minimizar este horroroso escândalo.

– Exatamente, – disse Holmes. – Eu penso, Sua Graça, que isso somente pode ser feito com absolutafranqueza entre nós. Estou disposto a ajudar Sua Graça com o melhor da minha habilidade, maspara fazê-lo, devo compreender o incidente até o último detalhe. Percebo que as suas palavras seaplicam ao sr. James Wilder, e que ele não é o assassino.

– Não; o assassino fugiu.Sherlock Holmes sorriu modestamente.

– Sua Graça possivelmente não ouviu falar dequalquer pequena reputação que eu possuo, ounão imaginaria que é tão fácil escapar-me. O sr.Reuben Hayes foi detido em Chesterfield, pelaminha informação, às onze horas da noite deontem. Recebi um telegrama do chefe da polícialocal antes de deixar a escola esta manhã.

O Duque reclinou em sua cadeira e olhou maravilhadopara o meu amigo.

– Você parece ter poderes que dificilmente sepode atribuir a humanos, – ele disse. – EntãoReuben Hayes está preso? Tenho razão em ficarcontente de ouvi-lo, se isso não recair sobre odestino de James.

– Seu secretário?– Não, senhor; meu filho.

Era a vez de Holmes parecer surpreso.– Confesso que isso é completamente novo para

mim, Sua Graça. Devo lhe implorar que sejamais explícito.

– Nada lhe esconderei. Concordo com você

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quanto àquela completa franqueza, por mais doloroso que me possa ser; é a melhor política nestasituação desesperada a que a loucura e o ciúme de James nos reduziu. Quando era muito jovem, sr.Holmes, eu amei com um amor tal como só acontece uma vez na vida. Eu pedi a senhora emmatrimônio, mas ela recusou em circunstâncias tais que a sua partida poderia arruinar a minhacarreira. Se ela tivesse vivido, certamente eu nunca teria me casado com qualquer outra. Ela morreue deixou aqui este único filho, a quem por ela eu estimava e de quem cuidei. Não pude reconhecera paternidade perante o mundo, mas dei-lhe a melhor educação, e desde que ele veio ao mundo,mantive-o próximo a mim. Ele descobriu o meu segredo e desde então presumiu que seria detestávela mim, pela reivindicação que tem sobre mim e pelo seu poder de provocar um escândalo. A presençadele teve algo a ver com o infeliz episódio do meu casamento. Acima de tudo ele odiava o meujovem herdeiro legítimo com uma persistente aversão. Você bem pode me questionar por que,dadas as circunstâncias, ainda mantive James sob o meu teto. Eu respondo que era porque eu podiaver a face da mãe dele na sua, e que por causa dela não haveria nenhum fim para o meu longosofrimento. Também todas as suas bonitas maneiras – não havia nenhuma delas que não pudessesugeri-la e trazê-la de volta à minha memória. Não pude despachá-lo, mas receei tanto que elecausasse a Arthur – quer dizer, Lorde Saltire – uma injúria, que o mandei para a segurança da escolado dr. Huxtable.“James entrou em contato com esse tal Hayes porque o homem era um inquilino meu, e Jamesatuou como agente. Desde o princípio o sujeito era um tratante, mas, por alguma razão extraordinária,James tornou-se íntimo dele. Ele sempre teve um gosto por companhias vulgares. Quando Jamesdecidiu seqüestrar Lorde Saltire, foi aos serviços desse homem que ele recorreu. Você se lembraque eu escrevi a Arthur sobre nisso no dia anterior. Bem; James abriu a carta e inseriu um recadopedindo que Arthur o encontrasse num pequeno bosque chamado o Ragged Shaw, próximo à escola.Ele usou o nome da Duquesa, e assim conseguiu que o menino fosse. Naquela noite James saiu debicicleta – estou lhe contando o que ele me confessou – e disse a Arthur, a quem ele encontrou nobosque, que sua mãe desejava vê-lo e que o estaria esperando no pântano, e que se ele voltasse aobosque à meia-noite, encontraria um homem a cavalo que o levaria a ela. O pobre Arthur caiu naarmadilha. Ele foi na hora marcada e encontrou Hayes conduzindo um pônei. Arthur montou e elespartiram juntos. Parece – embora James só o tenha ouvido ontem – que eles foram perseguidos, queHayes atacou o perseguidor com o seu bastão, e que o homem morreu em virtude dos ferimentos.Hayes trouxe Arthur para a sua hospedaria, o Fighting Cock, onde ele foi confinado num quartosuperior, aos cuidados da sra. Hayes, que é uma mulher bondosa, embora completamente submissaao marido brutal.“Bem, sr. Holmes, esta era a situação quando o vi pela primeira vez, dois dias atrás. Não tive melhoridéia da verdade do que você. Talvez me pergunte sobre os motivos que levaram James a tal atitude.Eu respondo que houve uma boa oportunidade, que o ódio que ele carregava do meu herdeiro erafanático e irracional. Na sua visão, era ele quem devia herdar todas as minhas propriedades, e ele seressentia profundamente com essas leis sociais que tornavam isso impossível. Ao mesmo tempo,ele também teve um motivo definido. Ele estava ansioso para que eu quebrasse o morgadio [vínculohereditário] e tinha a opinião que estava em meu poder fazê-lo. Ele pretendeu fazer uma barganhacomigo – restabelecer Arthur se eu quebrasse o vínculo, assim tornando possível que as propriedadesfossem deixadas para ele através de testamento. Ele bem sabia que eu nunca haveria de invocar aajuda da polícia contra ele de boa vontade. Digo que ele teria proposto tal barganha, mas ele não fezde fato assim, porque os eventos sucederam-se muito rapidamente e ele não teve tempo para pôros seus planos em prática.

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“O que pôs a perder todo o maligno esquema foi a sua descoberta do corpo assassinado dessehomem, Heidegger. James foi pego de surpresa e horrorizou-se com as notícias. Ele veio a nósontem, como estamos aqui juntos neste escritório. O dr. Huxtable tinha enviado um telegrama.James ficou subjugado, tão aflito e agitado que as minhas suspeitas – que nunca tinham permanecidocompletamente ausentes – imediatamente ascenderam a uma certeza, e eu lhe cobrei uma explicação.Ele fez uma confissão voluntária completa. Ele então me implorou que mantivesse o segredo pornão mais de três dias, para dar para ao seu miserável cúmplice uma chance de salvar a sua vidaculpada. Eu me rendi – como sempre fiz – às suas súplicas, e James se dirigiu imediatamente aoFighting Cock para advertir Hayes e dar-lhe os meios de fuga. Eu não podia passar por lá à luz do diasem provocar comentários, mas assim que noite caiu apressei-me para ver o meu querido Arthur.Eu o encontrei bem e seguro, mas horrorizado além de qualquer descrição pelo ato terrível quehavia testemunhado. Em deferência à minha promessa, e muito contra a minha vontade, consentiem deixá-lo naquele lugar por três dias, sob a custódia da sra. Hayes, desde que era obviamenteimpossível informar a polícia onde ele estava sem também lhes contar quem era o assassino, e eunão pude ver como aquele criminoso poderia ser castigado sem a ruína do meu infeliz James. Vocêpediu franqueza, sr. Holmes, e eu acreditei em sua palavra, porque agora contei-lhe tudo semnenhuma tentativa de circunlocução ou encobrimento. Em troca, seja franco comigo”.

– Eu serei, – disse Holmes. – Em primeiro lugar, Sua Graça, sou compelido a lhe dizer que você secolocou numa posição muito séria aos olhos da lei. Você fechou os olhos a um crime grave, eajudou a fuga de um assassino, porque não posso duvidar que qualquer dinheiro que JamesWilder tenha levado para ajudar o seu cúmplice tenha vindo da bolsa de Sua Graça.

O Duque se curvou em assentimento.– Isto é, realmente, uma questão mais séria. Até mesmo mais culpável em minha opinião, Sua Graça,

é a sua atitude em relação ao seu filho mais jovem. Você o deixou naquele antro durante três dias!– Sob solenes promessas...– O que são promessas de gente como essa? Você não tem nenhuma garantia de encontrá-lo vivo

novamente. Pelo capricho do filho culpado você expôs o menino inocente a um perigo iminente edesnecessário. É uma postura das mais injustificáveis.

O orgulhoso senhor de Holdernesse não estava acostumado a ser assim censurado em sua própria man-são ducal. O sangue corou a sua testa elevada, mas a consciência o manteve em silêncio.

– Eu o ajudarei, mas apenas com uma condição. É que você toque a campainha chamando o criado eme deixe dar as ordens como eu quiser.

Sem uma palavra, o Duque apertou o interruptor. Um criado entrou na sala.– Você ficará feliz em ouvir, – disse Holmes, – que o seu jovem mestre foi encontrado. O Duque

deseja que a carruagem vá imediatamente à hospedaria Fighting Cock e traga Lorde Saltire para casa.– Agora, – disse Holmes, quando o rejubilante lacaio havia desaparecido, – tendo assegurado o

futuro, podemos ser mais condescendentes com o passado. Eu não estou em uma posição oficiale não há nenhuma razão, desde que a finalidade da justiça seja servida, para que revele tudoaquilo que sei. Sobre Hayes, eu nada digo. A forca o espera, e eu não faria nada para salvá-lo dessedestino. O que ele divulgará eu não posso dizer, mas não tenho nenhuma dúvida que Sua Graçapoderá fazê-lo entender que é do interesse dele manter-se calado. Do ponto de vista policial, eleterá seqüestrado o menino com a finalidade de obter resgate. Se eles mesmos não descobriremisso, não vejo nenhuma razão para que eu os incite a assumir um ponto de vista mais abrangente.Todavia, eu advertiria Sua Graça que a presença continuada do sr. James Wilder em sua casa sópode conduzir ao infortúnio.

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– Eu compreendo, sr. Holmes, e já está resolvido que ele me deixará para sempre, indo buscar a suaprópria fortuna na Austrália.

– Nesse caso, Sua Graça, desde que você afirmou quequalquer infelicidade em sua vida de casado foiprovocada pela presença dele, eu sugeriria que vocêcompensasse como puder à Duquesa, e quetentasse retomar essas relações que infelizmenteforam assim interrompidas.

– Isso também foi providenciado, sr. Holmes. Euescrevi à Duquesa esta manhã.

– Assim sendo, – disse Holmes, enquanto se erguia,– penso que meu amigo e eu podemos noscongratular pelos resultados (na maioria felizes)de nossa curta visita ao Norte. Há um outropequeno ponto sobre o qual eu desejaria algumesclarecimento. Este tal Hayes calçou os seuscavalos com sapatos que imitavam os rastros devacas. Foi do sr. Wilder que ele aprendeu umexpediente tão extraordinário?

O Duque refletiu por um momento, com um olhar deintensa surpresa estampado em sua face. Então ele abriuuma porta e nos mostrou um grande quarto mobiliado comoum museu. Ele se dirigiu a uma caixa de vidro num dos cantose apontou para a inscrição.

– Estes sapatos, – explicou, – foram desenterrados nofosso de Holdernesse Hall. São para o uso de cavalos, masforam moldados com um pé de ferro fissípede, para lançar os perseguidores fora da pista. Conjetura-se que tenham pertencido a algum dos Barões saqueadores de Holdernesse da Idade Média.

Holmes abriu a caixa e, umedecendo o seu dedo, passou-o ao longo do sapato. Um delgado filme de lamarecente foi deixado em sua pele.

– Obrigado, – ele disse, assim que recolocou o vidro. – É o segundo objeto mais interessante que euvi no Norte.

– E qual foi o primeiro?Holmes dobrou o cheque e colocou-o cuidadosamente em seu caderno.

– Eu sou um homem pobre, – ele disse; deu uma pancadinha leve e afetuosa no caderno e empurrou-o para as profundidades do seu bolso interno.

BLACK PETEREu nunca soube que o meu amigo estivesse em forma melhor, física e mental, que lá pelo ano de 1895.

Sua fama em crescimento tinha trazido com ela uma prática imensa, e eu seria culpado de indiscrição sefosse apontar a identidade sequer de alguns dos ilustres clientes que atravessaram o nosso humilde limiarna Baker Street. Todavia, Holmes, como todos os grandes artistas, viveu exclusivamente em vista de suaarte; salvo no caso do Duque de Holdernesse, raramente o vi reivindicar qualquer grande recompensa pelos

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seu inestimáveis serviços. Ele era tão abnegado – ou tão caprichoso – que freqüentemente recusava ajudaros ricos e poderosos quando o problema em questão não apelasse às suas afinidades, enquanto dedicavasemanas da mais intensa aplicação aos negócios de algum cliente humilde cujo caso apresentasse aquelasqualidades estranhas e dramáticas que atraíam a sua imaginação e desafiavam a sua criatividade.

Nesse memorável ano de 1895, uma curiosa e incongruente sucessão de casos tinha ocupado a suaatenção, variando da famosa investigação da morte súbita do cardeal Tosca – um inquérito que foi levado acabo por ele sob o desejo expresso de Sua Santidade, o Papa – até a apreensão de Wilson, o notório treinadorde canários que removeu um foco de pestilência do East End de Londres. Acompanhei de perto esses doiscasos famosos oriundos da tragédia de Woodman’s Lee e as circunstâncias muito obscuras que cercaram amorte do capitão Peter Carey. Nenhum registro das atividades de sr. Sherlock Holmes estaria completo senão incluísse um relato desses casos muito invulgares.

Durante a primeira semana de julho o meu amigo estivera ausente com tanta freqüência e tão distantedos nossos alojamentos que eu sabia que ele tinha alguma coisa em mãos. O fato que durante aqueleperíodo diversos homens de maneiras ríspidas ligaram perguntando pelo capitão Basil me fez compreenderque Holmes estava trabalhando em algum lugar sob um dos numerosos disfarces e nomes com que eleocultava a sua própria identidade formidável. Eledispunha de pelo menos cinco pequenos refúgiosem diferentes partes de Londres, nos quais ele podiamudar a sua personalidade. Ele nada me disse sobreo assunto, e não era meu hábito forçar umaconfidência. O primeiro sinal positivo que ele medeu da direção que a sua investigação estavatomando foi deveras extraordinário. Holmes tinhasaído antes do seu desjejum e eu havia me sentadopara o meu quando ele escarranchou no quarto, comum chapéu na cabeça e um enorme arpão de pontafarpada comprimido como um guarda-chuvadebaixo do braço.

– Muito gracioso, Holmes! – eu exclamei. –Você não pretende dizer que tem caminhadopor Londres com essa coisa?

– Peguei-o com o açougueiro.– O açougueiro?– E eu volto com um apetite excepcional. Não

pode haver nenhuma dúvida, meu caroWatson, do valor de um exercício físico antes docafé da manhã. Mas estou preparado para apostar quevocê não adivinhará a forma que o meu exercício tomou.

– Nem vou tentar.Ele riu enquanto servia o café.

– Se você pudesse ter espiado atrás loja de Allardyce, teria visto um porco morto balançando de umgancho no teto e um cavalheiro em mangas de camisa apunhalando-o furiosamente com esta arma.Eu fui aquela pessoa enérgica e me satisfiz, sem nenhum empenho de minha força, conseguindotransfixar o porco com um único sopro. Talvez você quisesse tentar?

– Por nada neste mundo. Mas por que você estava fazendo isso?

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– Porque me pareceu ter uma relação indiretacom o mistério de Woodman’s Lee. Ah,Hopkins; eu recebi o seu telegrama ontemà noite e estou à sua espera. Venha e junte-se a nós.

Nosso visitante era um homem sumamentealerta, de uns trinta anos de idade, vestido com umterno de tecido de lã clara, mas retendo ainda oporte ereto de alguém que esteve habituado a umuniforme militar. Imediatamente o reconheci comoStanley Hopkins, um jovem inspetor de polícia, dequem Holmes tinha elevadas esperanças de futuro,enquanto em troca ele professava a admiração e orespeito de um aluno pelos métodos científicos doamador famoso. As sobrancelhas de Hopkinsestavam franzidas e ele se sentou com um ar deprofundo abatimento.

– Não, obrigado, senhor. Eu tomei o meudesjejum antes de vir. Passei a noite nacidade, pois vim ontem para relatar.

– E o que o tinha a relatar?– Fracasso, senhor; fracasso absoluto.– Você não fez nenhum progresso?– Nenhum.– Meu caro! Eu devo dar uma olhada nesse caso.– Eu agradeço aos céus que você o faça, sr. Holmes. É a minha primeira grande oportunidade e estou

no limite das minhas possibilidades. Pelo amor de Deus, ajude-me sr. Holmes.– Bem, bem, acontece que eu já li há pouco toda a evidência disponível, inclusive o relatório do

inquérito, com um certo cuidado. A propósito, o que você acha daquela bolsa de tabaco encontradana cena do crime? Não há nenhuma pista nela?

Hopkins parecia surpreso.– A bolsa pertencia ao homem, senhor. Suas iniciais estavam dentro dela. Ela é de pele de foca, – e ele

era um velho caçador de focas.– Mas ele não tinha nenhum cachimbo.– Não, senhor; não pudemos encontrar nenhum. Realmente, ele fumava muito pouco, e ainda poderia

ter guardado algum tabaco para os seus amigos.– Sem dúvida. Só menciono isso porque, se eu estivesse encarregado do caso, estaria inclinado a

fazer disso o ponto de partida da minha investigação. Todavia o meu amigo, dr. Watson, nada sabedesse assunto, e não me faria mal ouvir mais uma vez a sucessão dos eventos. Dê-nos apenas umresumo dos fatos essenciais.

Stanley Hopkins tirou uma papeleta do bolso.– Tenho aqui alguns dados sobre a carreira do homem morto, capitão Peter Carey. Ele nasceu em

1845 – teria cinqüenta anos de idade. Era o peleiro mais ousado e próspero e também pescador debaleias. Em 1883 ele comandou um barco a vapor para pesca de focas, o Sea Unicorn, de Dundee.Fez então diversas viagens prósperas em sucessão e no ano seguinte, 1884, aposentou-se. Depois

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disso ele viajou por alguns anos e finalmente comprou um pequeno imóvel chamado Woodman’sLee, próximo de Forest Row, em Sussex. Lá ele viveu durante seis anos e lá faleceu, apenas umasemana atrás.“Havia alguns pontos muito singulares sobre o homem. Em sua vida ordinária ele era um puritanoestrito – um camarada silencioso, taciturno. Seu lar consistia na esposa, uma filha de vinte anos eduas criadas. Estas últimas estavam mudando continuamente; para elas nunca foi uma situaçãomuito conveniente e às vezes ficou realmente insuportável. O homem era um bêbado intermitentee quando estava embriagado tornava-se um perfeito demônio. Ele era conhecido por levar a esposae a filha para fora de casa no meio da noite e açoitá-las através do parque até que toda a aldeia alémdos portões fosse despertada pelos gritos delas.“Uma vez ele foi intimado devido a uma selvagem agressão ao vigário idoso que o havia interpeladopara protestar contra a sua conduta. Em poucas palavras, sr. Holmes, você iria longe antes de poderencontrar um homem mais perigoso que Peter Carey, e eu soube que ele exibia o mesmo caráter nocomando do seu navio. Ele foi conhecido no comércio como Black Peter e o nome era bem adequado,não apenas por causa das suas feições morenas e pela cor da enorme barba, mas pelos humoresque fizeram dele o terror das redondezas. Não preciso dizer que ele era detestado e evitado portodos os vizinhos, e que não ouvi uma única palavra de tristeza pelo terrível fim que ele sofreu.“Você deve ter lido sobre a cabana do homem no relatório do inquérito, sr. Holmes, mas talvez oseu amigo aqui ainda não tenha ouvido falar disso. Ele havia construído um telheiro de madeira parasi mesmo – ele sempre chamou isso de ‘cabina’ – a algumas centenas de jardas de sua casa, e eraaqui que ele dormia todas as noites. A cabana era pequena, de um único cômodo, com dezesseispés por dez [cerca de 5 x 3 metros]. Ele mantinha a chave em seu bolso, arrumava a própria cama,limpava tudo pessoalmente e não permitia que nenhum outro pé cruzasse o limiar. Há pequenasjanelas de cada lado, que estavam cobertas por cortinas e nunca eram abertas. Uma dessas janelasvoltava-se para a rodovia e quando à noite a luz brilhava no interior, os aldeões costumavam apontá-la uns para os outros e admirar-se do que o Black Peter estava fazendo lá. Foi essa janela, sr. Holmes,que nos forneceu uma das escassas partículas de evidência positiva que saiu no inquérito.“Você se lembra que um canteiro chamado Slater, caminhando por Forest Row cerca de uma horada manhã – dois dias antes do assassinato – parou assim que passou pelo terreno em torno da casae olhou para o quadrado de luz que ainda brilhava entre as árvores. Ele jura que a sombra da cabeçade um homem vista de perfil era claramente visível na cortina, e que tal sombra certamente não eraa de Peter Carey, que ele conhecia bem. Era a silhueta de um homem barbudo, mas de barba curtae eriçada para a frente, de certo modo muito diferente daquela do capitão. Assim ele afirma, masestivera na taverna por duas horas e há uma certa distância da estrada até a janela. Além do mais,isto se refere à segunda-feira, enquanto o crime foi praticado na quarta-feira.“Na terça-feira Peter Carey estava em um dos seus humores mais negros, mergulhou na bebida eficou tão perigoso quanto uma besta selvagem. Ele perambulou até a casa e as mulheres fugiramquando o ouviram chegando. Tarde da noite ele voltou para sua própria cabana. Aproximadamenteàs duas horas da manhã seguinte a sua filha, que dormia com a janela aberta, ouviu um grito aterro-rizado vindo daquela direção, mas como não era uma coisa incomum ele gritar e berrar quandoestava bêbado, nenhuma providência foi tomada. Uma das empregadas levantou-se às sete horas epercebeu que a porta da cabana estava aberta, mas era tão grande o terror que o homem inspiravaque até meio-dia ninguém se aventurou em saber o que lhe havia sucedido. Espiando pela portaaberta, presenciaram uma visão que as enviou voando, com as faces brancas, para a aldeia. Dentrode uma hora eu estava naquele lugar assumia o caso.

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“Bem, eu tenho bons nervos, como você sabe, sr. Holmes, mas dou-lhe a minha palavra que fiqueitrêmulo quando pus a minha cabeça naquela casinha. Havia um zumbido como um harmônio demoscas e varejeiras azuis; o chão e as paredes estavam como as de um matadouro. Ele havia chamadoisso de cabina, e uma cabina era, seguramente, pois você pensaria que estava em um navio. Haviaum beliche numa extremidade, um baú marítimo, mapas e quadros, um retrato do Sea Unicorn,uma fileira de diários de bordo em uma estante, tudo exatamente o que se esperaria encontrar nosaposentos de um capitão. E lá, no meio disso tudo, estava o próprio homem – o rosto distorcidocomo uma alma perdida em tormento, e a longa barba grisalha grudada para cima em sua agonia.Um arpão de aço fora lançado no lado direito do seu peito largo, e tinha penetrado profundamentena madeira da parede atrás dele. Ele foi fixado como um besouro em um cartão. É evidente que eleestava bem morto, e havia sido assim desde o momento em que proferira o último grito de agonia.“Conheço os seus métodos, senhor, e os apliquei. Antes não permiti que se movesse qualquercoisa, examinei cuidadosamente o chão do lado de fora e também o piso do quarto. Não havianenhuma pegada”.

– Significando que você não viu nenhuma?– Eu lhe asseguro, senhor; não havia nenhuma.– Meu bom Hopkins, eu já investiguei muitos crimes; contudo, jamais vi um que fosse cometido por

uma criatura voadora. Contanto que criminoso permaneça sobre duas pernas, deve restar algumentalhe, alguma abrasão, algum deslocamento insignificante que pode ser detectado pelo pesquisadorcientífico. É incrível que esse quarto salpicado de sangue não contenha nenhum rastro que poderiater-nos ajudado. Todavia, pelo inquérito compreendo que houve alguns objetos que você nãonegligenciou?

O jovem inspetor estremeceu ao comentário irônico do meu companheiro.– Fui um tolo por não chamá-lo na ocasião, sr. Holmes. Porém, não há mais esperança quanto a

isso. Sim, havia diversos objetos no quarto que solicitavam atenção especial. Um deles era oarpão com que o ato foi perpetrado. Fora retirado de uma prateleira na parede; dois outros lápermaneciam e havia um lugar desocupado para o terceiro. Na prateleira havia uma gravação ‘SS.Sea Unicorn, Dundee’. Isso parecia estabelecer que o crime foi executado num momento de fúria,e que o assassino havia agarrado a primeira arma que viu pela frente. O fato que o crime foracometido às duas horas da manhã e Peter Carey ainda estava completamente vestido sugeria queele teve um compromisso com o assassino, o que é confirmado pela garrafa de rum e dois copossujos encontrados sobre a mesa.

– Sim, – disse Holmes; – penso que ambas as conclusões são admissíveis. Havia qualquer outrabebida no quarto além do rum?

– Sim; havia conhaque e uísque no baú. Isso não é de nenhuma importância para nós, contudo, vistoque as garrafas estavam cheias e não tinha sido tocadas.

– Apesar disso, sua presença tem alguma significância, – disse Holmes. – Porém, deixe-nos ouvir umpouco mais sobre os objetos que lhe pareceram relacionar-se ao caso.

– Havia esta bolsa de tabaco sobre a mesa.– Que parte da mesa?– Foi deixada no meio. É de pele de foca bem grossa – a própria pele cabeluda, com uma correia de

couro para prendê-la. Dentro dela, na borda, havia a marca ‘P.C’.. Continha meia onça do tabacoforte de marinheiro.

– Excelente! O que mais?Stanley Hopkins tirou do seu bolso um caderno de capa parda. O exterior era áspero e maltratado, as

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folhas descoradas. Na primeira página foram escritas as iniciais “J.H.N.” e a data “1883”. Holmes colocou-o sobre a mesa e o examinou do seu jeito minucioso enquanto Hopkins e eu observávamos por cima dosseus dois ombros. Na segunda página estavam impressas as letras “C.P.R.” e então seguiam-se várias folhascom números. Outro título era “Argentina”; outro “Costa Rica”; outro “São Paulo” – cada um seguido porpáginas de sinais e figuras.

– O que acha disso? – perguntou Holmes.– Parecem listas de apólices da Bolsa de Valores. Eu pensei que ‘J.H.N’. fossem as iniciais de um

corretor, e aquele ‘C.P.R’. poderia ser um cliente dele.– Tente Canadian Pacific Railway, – disse Holmes.

Stanley Hopkins praguejou entre os dentes e golpeou a sua coxa com o punho fechado.– Que tolo fui! – ele exclamou. – Evidentemente, é

como você disse. Então ‘J.H.N’. são as únicasiniciais que nos resta descobrir. Eu já examineia lista antiga da Bolsa de Valores e nãoconsegui encontrar ninguém em 1883, nacasa ou entre os corretores externos, cujasiniciais correspondessem a essas. Aindasinto que esta é a pista mais importante emmeu poder. Você há de admitir, sr. Holmes,que existe uma possibilidade de que essasiniciais sejam da segunda pessoa que estavapresente – em outras palavras, do assassino.Eu também urgiria que a introdução no caso deum documento relativo a grandes volumes de apólicesvaliosas pela primeira vez nos dá pela alguma indicação de ummotivo para o crime.

A face de Sherlock Holmes mostrou que ele fora completamente surpreendidopor esse novo desenvolvimento.

– Tenho de admitir ambos os seus pontos, – ele disse. – Confesso que estecaderno, que não apareceu no inquérito, modifica qualquer ponto de vistaque eu possa ter formado. Eu havia chegado a uma teoria do crime na qualnão consigo achar nenhum lugar para isso. Você se esforçou para localizar quaisquer das apólicesaqui mencionadas?

– Investigações estão sendo feitas agora nos escritórios, mas temo que o registro completo dosacionistas dessas companhias sul-americanas estejam na América do Sul, e que algumas semanasdevem decorrer antes que possamos localizar as partes.

Holmes estivera examinando a capa do caderno com a sua lupa.– Seguramente há alguma descoloração aqui, – ele disse.– Sim, senhor; é uma mancha de sangue. Eu lhe disse que recolhi o livro do chão.– A mancha de sangue estava para cima ou para baixo?– Para baixo, no lado próximo às tábuas.– O que prova, evidentemente, que o livro caiu depois que o crime foi cometido.– Exatamente, sr. Holmes. Eu avaliei esse detalhe e conjeturei que o livro foi derrubado pelo assassino

em sua fuga apressada. Ele foi deixado perto da porta.– Suponho que nenhum destas apólices foi encontrada entre os bens do homem morto?

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– Não, senhor.– Há alguma razão para suspeitar-se de roubo?– Não, senhor. Nada parecia ter sido tocado.– Meu caro, é certamente um caso muito interessante. Então havia uma faca, não é?– Uma faca de bainha, ainda em sua capa. Foi deixada aos pés do homem morto. A sra. Carey identi-

ficou-a como propriedade do marido.Holmes permaneceu durante algum tempo perdido em pensamentos.

– Bem, – ele disse, afinal, – suponho que terei de sair e ver isso pessoalmente.Stanley Hopkins deu um grito de alegria.

– Obrigado, senhor. Isso realmente tira um peso da minha cabeça.Holmes sacudiu o seu dedo para o inspetor.

– Teria sido uma tarefa bem mais fácil uma semana atrás, – ele disse. – Por outro lado, minha visitaagora pode não ser completamente infrutífera. Watson, se você puder dispor de algum tempo,ficarei muito feliz com a sua companhia. Se você chamar uma carruagem, Hopkins, estaremosprontos para começar em Forest Row num quarto de hora.

Descendo na pequena estação ao lado da estrada, guiamos por algumas milhas entre os remanescentesdos bosques espalhados que uma vez fizeram parte daquela grande floresta que por tanto tempo manteveos invasores saxônios à distância – o impenetrável “weald,” durante sessenta anos o bastião da Inglaterra.Vastas seções dela foram limpas, pois foi aqui o primeiro assentamento da indústria do ferro no país, e asárvores foram derrubadas para fundir o minério. Atualmente os campos mais ricos do Norte absorveramtodo o comércio e nada, exceto esses arvoredos saqueados e as grandes cicatrizes na terra, exibem o trabalhodo passado. Aqui, numa clareira sobre a encosta verde de uma colina, havia uma casa de pedra, comprida,baixa, próxima de uma curva no caminho que atravessa os campos. Mais próximo à estrada e rodeada dearbustos em três lados, havia uma pequena cabana, comuma janela e uma porta voltadas em nossa direção. Eraa cena do assassinato.

Stanley Hopkins conduziu-nos primeiro para a casaonde nos apresentou à viúva do homem assassinado:uma mulher desfigurada, grisalha, cuja face magra esulcada, o olhar furtivo de terror nas profundezas dosolhos debruados de vermelho, falavam dos anos desofrimento e maus tratos que ela havia suportado. Comela estava a filha, uma garota loura e pálida, cujos olhosbrilharam desafiadoramente para nós enquanto elacontava que estava feliz pela morte do pai, e que elaabençoava a mão que o havia golpeado. Era um larterrível aquele que Carey Black Peter havia construídopara si mesmo, e foi com um sentimento de alívio quenos encontramos novamente sob a luz do sol,percorrendo o espaço ao longo de um caminho, do outrolado dos campos, que fora outrora pisado pelos pés dohomem morto.

A cabana era a mais simples das habitações, comparedes e telhado de madeira, uma janela ao lado daporta e outra no lado mais distante. Stanley Hopkins

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tirou a chave do bolso e curvou-se para a fechadura quando hesitou, com um olhar atento e surpreso emseu rosto.

– Alguém mexeu nisto, – ele disse.Não poderia haver nenhuma dúvida do fato. O madeiramento estava cortado e os arranhões mostravam

o branco através da pintura, como se tivessem sido feitos naquele momento. Holmes estivera examinandoa janela.

– Alguém tentou forçar aqui também. Seja como for, não obteve sucesso no seu intento. Deve ter sidoum assaltante muito medíocre.

– Isso é a coisa mais extraordinária, – disse o inspetor, – eu poderia jurar que estas marcas nãoestavam aqui ontem noite.

– Talvez algum curioso da aldeia, – eu sugeri.– É pouco provável. Poucos deles ousariam pisar este chão, muito menos tentar forçar a sua entrada

na cabana. O que você pensa disso, sr. Holmes?– Penso que nossa sorte está mudando.– Você quer dizer que o sujeito virá novamente?– É muito provável. Ele veio esperando encontrar a porta aberta. Tentou forçar a fechadura com a

lâmina de um canivete muito pequeno, mas não obteve sucesso. O que ele faria então?– Voltaria na noite seguinte com uma ferramenta mais adequada.– É o que eu ia dizer. Será falha nossa se não estivermos lá para recebê-lo. Enquanto isso, vamos ver

o interior da cabana.Os rastros da tragédia tinham sido afastados mas a mobília dentro do pequeno quarto fora conservada no

mesmo estado da noite do crime. Durante duas horas, com a mais intensa concentração, Holmes examinoucada objeto ao redor, mas a sua face demonstrava que a pesquisa não obtivera sucesso. Uma única vez eleinterrompeu a sua paciente investigação.

– Nada foi tirado da estante, Hopkins?– Não; eu não mexi em nada.– Algo foi levado. Há menos pó neste canto

da estante que em outro lugar. Pode tersido um livro deitado de lado. Pode tersido uma caixa. Bem, bem; nada maisposso fazer. Vamos penetrar nessesbonitos bosques, Watson, e concederalgumas horas aos pássaros e às flores.Nós o encontraremos aqui depois,Hopkins, e veremos se conseguimos nostornar mais íntimos do cavalheiro que fezessa visita noturna.

Passava um pouco das onze horas quandoformamos a nossa pequena emboscada. Hopkinspropunha deixar aberta a porta da cabana, masHolmes era de opinião que isso despertaria assuspeitas do estranho. A fechadura era absoluta-mente simples e somente requeria uma lâmina forte para empurrá-la para trás. Holmes também sugeriu quedevíamos esperar, não dentro da cabana, mas fora dela, entre os arbustos que cresciam em volta da janelamais distante. Desse modo poderíamos ver o nosso homem se ele acendesse alguma luz e descobriríamos

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o objetivo dessa furtiva visita noturna.Foi uma vigília longa e melancólica e ainda trouxe consigo algo da emoção que o caçador sente quando

espreita ao lado da fonte, esperando a vinda da besta sedenta. Qual era a criatura selvagem que poderia nosroubar na escuridão? Era um feroz tigre do crime que só poderia ser dominado numa luta difícil com presasbrilhantes e garras, ou provaria ser um covarde chacal, perigoso apenas para o fraco e desprotegido?

Abaixamo-nos entre os arbustos em absoluto silêncio, esperando por tudo que pudesse vir. No início ospassos de alguns aldeões atrasados ou o som de vozes na aldeia aliviaram a nossa vigília, mas uma a umaessas interrupções se extinguiram e uma absoluta quietude caiu sobre nós, exceto pelos carrilhões da igrejadistante que nos falava do avanço da noite e pelo sussurro e farfalhar de uma chuva fina que caía entre afolhagem que nos cobria.

Passara há pouco o repique das duas; era a hora mais escura que precede o amanhecer, quando todosouvimos um estalo baixo mas distinto vindo da direção do portão. Alguém havia penetrado no passeio. Aseguir houve um longo silêncio e eu tinha começado a temer que era um falso alarme quando um passofurtivo foi ouvido no outro lado da cabana, e um momento depois um tinido metálico de raspagem. Ohomem estava tentando forçar a fechadura. Nesse período a habilidade dele tornou-se maior ou a sua ferra-menta era melhor, pois ouvimos um súbito estalo e o rangido das dobradiças. Então um fósforo foi riscado eno próximo instante a luz firme de uma vela encheu o interior da cabana. Através da cortina de névoa, osnossos olhos estavam todos cravados na cena interior.

A visita noturna era um rapaz jovem, delicado eesbelto, com um bigode negro que intensificava a palidezmortal do seu rosto. Ele não podia ter muito mais devinte anos de idade. Jamais vi qualquer ser humano queexibisse um temor tão lastimável, pois os seus dentesbatiam visivelmente e todos os seus membros tremiam.Ele estava trajado como um cavalheiro, numa jaqueta deNorfolk e calções folgados, com um boné de pano nacabeça. Nós o vimos observar ao redor com olhosamedrontados. Então ele pôs o toco de vela sobre a mesae desapareceu de nossa visão em um dos cantos. Elevoltou com um livro grande, um dos diários de bordoque se alinhavam na estante. Apoiando-o na mesa elevirou rapidamente as folhas desse volume até chegar àentrada que procurava. Então, com um gesto irritado desua mão fechada, fechou o livro, recolocou-o no canto eapagou a luz. Ele ainda não tinha praticamente se viradopara deixar a cabana e a mão de Hopkins já estava emseu colarinho; eu ouvi o seu suspiro aterrorizado quandoele compreendeu que fora apanhado. A vela foinovamente acesa e lá estava o nosso infame cativo,tremendo e se encolhendo ao aperto do detetive. Ele afundou sobre o baú e olhou desamparado de um paraoutro de nós.

– Agora, meu bom companheiro, – disse Stanley Hopkins, – quem é você, e o que quer aqui?O rapaz recuperou o seu autodomínio e nos enfrentou, num esforço de compostura.

– Vocês são detetives, eu suponho? – ele disse. – Imaginam que estou envolvido na morte do capitãoPeter Carey. Eu lhes garanto que sou inocente.

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– Nós cuidaremos disso, – disse o Hopkins. –Em primeiro lugar, qual é o seu nome?

– Sou John Hopley Neligan.Eu vi Holmes e Hopkins trocarem um rápido olhar.

– O que você está fazendo aqui?– Eu posso falar confidencialmente?– Não; certamente não.– Por que eu deveria lhe falar?– Se você não tiver nenhuma resposta, isso pode

ser ruim para você no julgamento.O rapaz estremeceu.

– Bem, eu falarei, – ele disse. – Por que não fazê-lo? E ainda odeio pensar neste antigo escândaloganhando um novo sopro de vida. Vocês jáouviram falar de Dawson e Neligan?

Pude ver pela face de Hopkins que ele nada sabia,mas Holmes parecia vivamente interessado.

– Você se refere aos banqueiros de West Country,– ele disse. – Eles deram um desfalque demilhão, arruinaram metade das famílias docondado de Cornwall, e Neligan desapareceu.

– Exatamente. Neligan era meu pai.Afinal estávamos obtendo algo de positivo, mas ainda parecia haver uma extensa lacuna entre um banqueiro

fugitivo e o capitão Peter Carey fixado contra a parede com um dos seus próprios arpões. Todos escutamosatentamente as palavras do rapaz.

– Era meu pai quem estava realmente interessado. Dawson havia se aposentado. Na ocasião eu tinhaapenas dez anos de idade, mas era maduro o bastante para sentir a vergonha e o horror de tudo.Sempre se disse que o meu pai roubou todas as apólices e fugiu. Não é verdade. Era convicção deleque se fosse dado um tempo suficiente para realizá-las, tudo ficaria bem e todos os credores seriamcompletamente indenizados. Ele partiu em seu pequeno iate para a Noruega logo antes de seremitida a autorização para a sua prisão. Posso lembrar-me disso como se fosse ontem à noite,quando ele veio despedir-se de minha mãe. Ele nos deixou uma lista das apólices que estava levando,jurou que voltaria com a sua honra restabelecida e que ninguém que houvesse confiado nele iriasofrer. Bem, nenhuma palavra foi ouvida dele desde então. Ele e o iate desapareceram completamente.Nós acreditamos, minha mãe e eu, que tanto ele quanto as apólices que havia levado estavam nofundo do mar. Todavia, tínhamos um amigo fiel que é um empresário, e foi ele que um tempo atrásdescobriu que algumas das apólices que o meu pai portava consigo haviam reaparecido no mercadode Londres. Você pode imaginar o nosso assombro. Eu gastei meses tentando localizá-las, e afinal,depois de muitas dúvidas e dificuldades, descobri que o vendedor original tinha sido o capitão PeterCarey, o proprietário desta cabana.“Naturalmente, fiz algumas investigações sobre o homem. Descobri que ele estivera a cargo deuma baleeira que retornava dos mares árticos na mesma época em que meu pai estava atravessandopara a Noruega. O outono daquele ano fora tempestuoso e houve uma longa sucessão de ventosfortes do sul. O iate do meu pai pode ter sido empurrado bem para o norte e lá se encontrou com onavio do capitão Peter Carey. Se fosse assim que aconteceu, o que havia restado do meu pai? Em

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todo caso, se eu pudesse apresentar a evidência de Peter Carey de como essas apólices vieram aomercado, isso constituiria uma prova de que meu pai não lhas tinha vendido, e que ele não tinhanenhuma perspectiva de lucro pessoal quando as levou.“Eu estava em Sussex com a intenção de ver o capitão, mas foi naquele momento que a ocorreu asua morte terrível. Eu li no inquérito uma descrição da sua cabana, na qual se declarava que osantigos diários de bordo do seu barco foram preservados. Estarreceu-me que se pudesse ver o queaconteceu no mês de agosto de 1883 a bordo do Sea Unicorn, eu poderia resolver o mistério dodestino de meu pai. Eu tentei chegar a esse diário de bordo ontem à noite, mas não consegui abrira porta. Eu hoje tentei novamente e obtive sucesso, mas acho que as páginas que tratam daquelemês foram arrancadas do livro. Foi naquele momento que me tornei um prisioneiro em suas mãos”.

– É isso é tudo? – perguntou Hopkins.– Sim, é tudo. – Seus olhos desviaram quando ele disse isto.– E você nada mais tem a nos dizer?

Ele hesitou.– Não; não há nada mais.– Você não esteve aqui antes da noite de ontem?– Não.– Então como você explica isto? – exclamou Hopkins, sustentando o caderno condenatório com as

iniciais de nosso prisioneiro na primeira folha e a mancha de sangue na capa.O jovem infeliz desmoronou. Ele afundou a face em suas mãos e tremia por toda parte.

– Onde você conseguiu isso? – ele gemeu. – Eu não sabia. Pensei que o tivesse perdido no hotel.– Isso é o bastante, – disse Hopkins, duramente. – Tudo mais que você tenha a dizer, deverá fazê-lo

tribunal. Agora você virá comigo para o posto policial. Bem, sr. Holmes, agradeço muito a você e aseu amigo por ajudar-me. A evolução do caso demonstrou que a sua presença era desnecessária; eupoderia tê-lo resolvido com sucesso sem você, mas de qualquer maneira fico-lhe grato. Foramreservados quartos para vocês no Hotel Brambletye, assim caminharemos juntos até a aldeia.

– Bem, Watson, o que pensa você disso? – perguntou Holmes assim que retornamos na manhã seguinte.– Posso ver que você não está satisfeito.– Oh, sim, meu caro Watson, estou perfeitamente satisfeito. Ao mesmo tempo, os métodos de Stanley

Hopkins não são recomendáveis para mim. Estou desapontado com Hopkins. Teria esperado coisasmelhores dele. Deve-se sempre procurar uma alternativa possível e prover-se antecipadamentecontra ela. Esta é a primeira regra da investigação criminal.

– Qual é a alternativa, então?– A linha de investigação que eu me propus está prosseguindo. Pode não dar em nada. Eu não posso

lhe contar. Mas pelo menos eu a seguirei até o fim.Várias cartas esperavam por Holmes na Baker Street. Ele apanhou uma delas, abriu-a e explodiu numa

gargalhada de triunfo.– Excelente, Watson! A alternativa evolui. Temos formulários de telegrama? Apenas escreva um par

de mensagens para mim: ‘Sumner, Agente de Despacho, Rodovia de Ratcliff. Mande três homens;chegar amanhã às dez da manhã. – Basil’. Esse é o meu nome naquelas bandas. O outro é: ‘InspetorStanley Hopkins, 46 Lord Street, Brixton. Venha amanhã para o desjejum às nove e trinta. Importan-te. Telegrafe se não puder vir. – Sherlock Holmes’. Veja, Watson; esse caso infernal me assombroudurante dez dias, por isso eu o expulsei completamente da minha presença. Confio que amanhãouviremos falar dele pela última vez.

O inspetor Stanley Hopkins apareceu exatamente na hora combinada e nos sentamos juntos para o

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excelente café da manhã que a sra. Hudson havia preparado. O jovem detetive estava com a alma leve emvirtude do seu sucesso.

– Você realmente acha que a sua solução deve estar correta? – perguntou Holmes.– Não posso imaginar um caso mais completo.– A mim pareceu inconclusivo.– Você me surpreende, sr. Holmes. O que mais alguém poderia questionar?– A sua explanação cobre todos os pontos?– Sem dúvida. Acho que o jovem Neligan chegou ao Hotel Brambletye no mesmo dia do crime. Ele

veio a pretexto de jogar golfe. O quarto dele era ao rés do chão, de onde poderia sair à vontade.Naquela mesma noite ele foi a Woodman’s Lee, viu Peter Carey na cabana, discutiu com ele e omatou com o arpão. Então, horrorizado pelo que havia feito, evadiu-se da cabana, deixando cair ocaderno que tinha trazido consigo para questionar Peter Carey sobre essas apólices diferentes.Você pode ter observado que algumas delas estavam marcadas com sinais e as outras – a grandemaioria – não estava. Aquelas marcadas foram localizadas no mercado de Londres, mas as outras,presumivelmente, ainda estavam na posse de Carey, e o jovem Neligan, de acordo com a suaprópria narrativa, estava ansioso para recuperá-las e fazer a coisa certa pelos credores do seu pai.Depois da fuga ele não ousou aproximar-se novamente da cabana durante algum tempo, masafinal se forçou a fazê-lo para obter a informação de que necessitava. Seguramente, isso tudo nãoé simples e óbvio?

Holmes sorriu e balançou a cabeça.– Parece-me ter apenas uma desvantagem, Hopkins: que isso é intrinsecamente impossível. Você já

tentou arremessar um arpão através de um corpo? Não? Oh, meu caro senhor, você realmente deveprestar atenção a esses detalhes. Meu amigo Watson poderia lhe dizer que eu passei uma manhãinteira naquele exercício. Não é não uma coisa fácil e requer um braço forte e experiente, mas essegolpe foi dado com tal violência que a ponta da arma penetrou profundamente na parede. Vocêimagina que esse jovem anêmico seria capaz de uma agressão tão pavorosa? Ele é o homem quebebeu rum e água acompanhando Black Peter na calada da noite? Era esse o perfil que vimos deleatravés da cortina duas noites antes? Não, não, Hopkins; é outra e a mais formidável pessoa essaque devemos procurar.

A face do detetive havia espichado mais e mais durante o monólogo de Holmes. As suas esperanças eambições estavam todas se desintegrando sobre ele. Mas ele não abandonaria a sua posição sem uma luta.

– Você não pode negar que Neligan estivesse presente naquela noite, sr. Holmes. O livro provaráisso. Suponho ter evidências suficientes para satisfazer um júri, mesmo se você pude encontrardefeito nelas. Além disso, sr. Holmes, eu deitei a mão em meu homem. E quanto à sua pessoaterrível, onde ela está?

– Eu imagino que ela está na escada, – disse Holmes, serenamente. – Penso, Watson, que você fariabem deixando aquele revólver onde possa alcançá-lo. – Ele se levantou e colocou um papel escritosobre a mesa lateral. – Agora nós estamos prontos, – ele disse.

Tínhamos ouvido algumas vozes ásperas falando do lado de fora e agora a sra. Hudson abriu a porta paradizer que havia três homens que perguntavam pelo capitão Basil.

– Faça que entrem um de cada vez, – disse Holmes.O primeiro a entrar era uma pequena maravilha de homem, com bochechas coradas e bigodes laterais

brancos e fofos. Holmes havia tirado uma carta do bolso.– Qual é o nome? – ele perguntou.– James Lancaster.

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– Sinto muito, Lancaster, mas a cabina está cheia. Aquiestá meio soberano pelo seu transtorno. Apenasentre nesse quarto e aguarde por alguns minutos.

O segundo homem era uma criatura comprida, ressequi-da, com cabelos finos e bochechas pálidas. O nome dele eraHugh Pattins. Ele também recebeu a sua dispensa, o meiosoberano e a ordem para aguardar.

O terceiro candidato era um homem de aparêncianotável. Uma face de buldogue feroz fora amoldada numentrelaçamento de barba e cabelos e dotada de dois olhoscorajosos e escuros que espreitavam por trás da coberturadas sobrancelhas penduradas em grossos tufos. Ele saudoue perfilou-se à moda dos marinheiros, girando o quepe emsuas mãos.

– Seu nome? – perguntou Holmes.– Patrick Cairns.– Arpoador?– Sim, senhor. Vinte e seis viagens.– Dundee, eu suponho?– Sim, senhor.– E pronto para partir com um navio de exploração?– Sim, senhor.– Qual é o salário?

– Oito libras por mês. – Você poderia começar imediatamente?

– Assim que adquirir meu equipamento. – Tem os seus documentos?

– Sim, senhor.Ele tirou um maço de papéis gastos e engordurados

do bolso. Holmes olhou-os superficialmente e osdevolveu.

– Você é justamente o homem que eu quero, –ele disse. – Aqui está o contrato na mesa lateral.Se você assiná-lo, todo o assunto estará resolvido.

O marinheiro atravessou a sala e pegou a caneta. – Devo assinar aqui? – ele perguntou, enquantose inclinava sobre a mesa.

Holmes apoiou-se no ombro dele e passouambas as mãos em volta do seu pescoço. – Faça isso, – ele disse.

Eu ouvi um estalo metálico e um berro como ode um touro enfurecido. No instante seguinteHolmes e o marinheiro estavam rolando pelochão. Ele era um homem de uma força tãoprodigiosa que mesmo com as algemas que

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Holmes colocara destramente em seus pulsos, teria dominado muito depressa o meu amigo se Hopkins eeu não nos apressássemos em acudi-lo. Somente quando eu pressionei o cano gelado do revólver em suatêmpora ele afinal compreendeu que toda resistência era inútil. Amarramos os tornozelos dele com cordase nos erguemos ofegantes pela luta.

– Eu realmente devo me desculpar, Hopkins, – disse Sherlock Holmes. – Temo que os nossos ovosmexidos estejam frios. Contudo você desfrutará bem melhor o restante do seu desjejum, eu espero,com o pensamento de que trouxe uma triunfante conclusão ao seu caso.

Stanley Hopkins estava mudo de espanto.– Não sei o que dizer, sr. Holmes, – ele disse afinal, bruscamente e com o rosto muito vermelho. –

Parece-me que tenho feito um tolo de mim mesmo desde o princípio. Eu agora entendo o quenunca deveria ter esquecido: que eu sou o aluno e você é o mestre. Mesmo agora, vendo o quevocê fez, ainda não sei como o fez ou o que isso significa.

– Bem, bem, – disse Holmes, bem-humorado. – Todos nós aprendemos com a experiência, e sualição de hoje é que você nunca deve perder a alternativa de vista. Você estava tão absorto nojovem Neligan que não pôde dedicar um pensamento a Patrick Cairns, o verdadeiro assassino dePeter Carey.

A voz rouca do marinheiro interrompeu a nossa conversação.– Veja aqui, senhor, – ele disse, – eu não faço nenhuma queixa por estar manietado desta forma, mas

devo insistir que você chame as coisas pelos seus nomes corretos. Você diz que eu assassinei PeterCarey; eu digo que matei Peter Carey, e há um mundo de diferença. Talvez você não acredite no quedigo. Talvez você pense que estou apenas jogando uma história.

– Não, – disse Holmes. – Vamos ouvir o que você tem a dizer.– Falarei logo, e, pelo Senhor, cada palavra disto é verdade. Eu encontrei Black Peter e, quando ele

puxou a sua faca eu lancei um arpão afiado nele, porque sabia que era ele ou eu. Foi assim que elemorreu. Você pode chamar isso de homicídio. De qualquer maneira, tanto faz morrer com umcírculo de corda em meu pescoço ou com a faca de Black Peter em meu coração.

– Como você chegou lá? – perguntou Holmes.– Eu contarei a história desde o princípio. Apenas deixe-me sentar um pouco, para poder falar com

mais facilidade. Aconteceu em 1883 – em agosto daquele ano. Peter Carey era capitão do Sea Unicorne eu o arpoador de serviço. Estávamos saindo da banquisa em nosso trajeto para casa, com ventoscontrários e o forte vento do sul por uma semana, quando avistamos uma pequena embarcação quefora arrastada para o norte. Nela havia um homem – um marinheiro de água doce. A tripulaçãopensou que ela afundaria e levaria o escaler para a costa norueguesa. Eu adivinhei que todos eles seafogariam. Bem, nós o trouxemos a bordo, esse homem, e ele e o capitão tiveram algumas longasconversas na cabina. Toda a bagagem que recuperamos com ele foi uma caixa de metal. Até onde eusei, o nome do homem nunca foi citado, e na segunda noite ele desapareceu como se nunca tivesseexistido. Determinou-se que ele mesmo tinha se lançado pela borda ou havia caído em virtude domau tempo pesado que estávamos enfrentando. Apenas um homem sabia o que tinha acontecido aele, e isso eu sei, pois vi com os meus próprios olhos o capitão inclinar-se e colocá-lo em cima dagrade no meio da vigília em uma noite escura, dois dias antes de avistarmos as luzes de Shetland.“Bem, eu guardei o que sabia para mim mesmo e esperei para ver o que disso viria. Quando voltamospara a Escócia tudo foi facilmente silenciado; ninguém fez nenhuma pergunta. Um estranho morreuacidentalmente e não era do interesse de ninguém questionar. Logo depois Peter Carey deixou omar e passaram-se longos anos antes que eu conseguisse descobrir onde ele estava. Eu imagineique ele havia cometido aquela façanha por causa do que estava naquela caixa de metal, e que agora

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ele se dispusesse a me pagar bem para manter a minha boca fechada. Descobri o seu paradeiroatravés de um marinheiro que o encontrou em Londres e vim aqui para extorqui-lo. Na primeiranoite ele foi bastante razoável e estava pronto para me dar o que me tornaria livre do mar pelo restoda vida. Nós combinamos ajustar tudo duas noites depois. Quando cheguei, encontrei-o quasetotalmente bêbado em com um temperamento vil. Nós nos sentamos e bebemos e falamos sobreos velhos tempos, mas quanto mais ele bebia, menos eu apreciava o olhar em sua face. Eu localizeiaquele arpão na parede e pensei que poderia precisar dele antes que tudo estivesse terminado.Então, afinal ele desabafou em cima de mim, cuspindo e amaldiçoando, com o assassinato nosolhos e uma grande navalha na mão. Ele não teve tempo para tirar a arma da bainha antes que eu otivesse atravessado com o arpão. Céus! que grito ele deu! e a expressão dele ainda me vem emmeus sonhos. Eu estava lá de pé, com o sangue dele espirrando à minha volta; esperei um pouco,mas tudo estava quieto; assim, tomei coragem mais uma vez. Olhei em volta e vi a caixa de metal naestante. Eu tinha tanto direito a ela quanto Peter Carey; de qualquer maneira, levei-a comigo quandodeixei a cabana. Estupidamente, deixei a minha bolsa de fumo sobre a mesa.“Agora eu lhes contarei a parte mais esquisita de toda a história. Eu havia acabado de sair da cabanaquando ouvi alguém vindo, e escondi-me entre os arbustos. Um homem chegou, esquivando-se,entrou na cabana e deu um grito como se tivesse visto um fantasma; então ele passou sebo nascanelas com tanto empenho quanto pôde, e correu até estar fora da minha vista. Quem ele era ou oque procurava é mais do que eu posso dizer. De minha parte, caminhei dez milhas, tomei um trempara Tunbridge Wells e assim cheguei a Londres, e não sei de mais nada.“Bem, quando examinei a caixa descobri que não havia nenhum dinheiro nela, nada mais que papéisque eu não ousaria vender. Eu tinha perdido a minha carga na cabana de Black Peter e estava encalhadoem Londres sem um xelim. Restava-me apenasa minha habilidade profissional. Eu li essesanúncios pedindo arpoadores, e os bons salários,assim procurei os agentes de despacho e elesme enviaram aqui. Isso é tudo o que sei, e digonovamente que se matei Black Peter, a lei deveriame agradecer, porque eu lhes poupei o desper-dício de uma boa corda de cânhamo”.

– Uma confissão muito clara, – disse Holmes,levantando-se e acendendo o seu cachimbo. –Penso, Hopkins que você não deveria perdernenhum tempo em levar o seu prisioneiro paraum lugar seguro. Este aposento não é tãoadequado quanto uma cela, e o sr. Patrick Cairnsocupa uma proporção muito grande do nossotapete.

– Sr. Holmes, – disse Hopkins, – não sei comoexpressar a minha gratidão. Ainda agora nãoentendo como você alcançou este resultado.

– Simplesmente tendo a boa fortuna de obter apista correta desde o princípio. É bem possívelse eu tivesse conhecimento desse caderno, issopoderia ter desviado o meu pensamento, como fez com o seu. Mas tudo o que ouvi apontava na

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mesma direção. A força surpreendente, a prática no uso do arpão, o rum e a água, a bolsa de pele defoca com o tabaco grosseiro – tudo apontava para um marinheiro, e um que havia sido baleeiro.Estava convencido que as iniciais ‘P.C’. na bolsa fossem uma coincidência, e não as de Peter Carey,desde que ele raramente fumava, e nenhum cachimbo foi encontrado em sua cabana. Você deve selembrar que eu perguntei se havia uísque e conhaque na cabana. Você disse que sim. Se lá estivessemhomens de terra (ou marujos de água doce), quem beberia rum se pudessem obter essas outrasbebidas? Sim, eu tinha certeza que era um marinheiro.

– E como você o encontrou?– Meu caro senhor, o problema tinha se tornado muito simples. Se fosse um marinheiro, somente

poderia ser um marinheiro que tivesse viajado com ele no Sea Unicorn. Até onde pude saber, elenão tinha velejado em nenhum outro navio. Eu passei três dias telegrafando a Dundee, e ao términodaquele tempo tinha averiguado os nomes de toda a tripulação do Sea Unicorn em 1883. Quandodescobri o nome de Patrick Cairns entre os arpoadores, minha pesquisa se aproximava do seu final.Eu deduzi que o homem estava provavelmente em Londres, e que ele desejaria deixar o país poralgum tempo. Então gastei alguns dias no East End, inventando uma expedição ao Ártico, inserindocondições tentadoras para arpoadores que iriam servir sob as ordens do capitão Basil – e veja oresultado!

– Maravilhoso! – exclamou Hopkins. – Maravilhoso!– Você deve obter a liberação do jovem Neligan o mais rápido possível, – disse Holmes. – Confesso

pensar que você deve algumas desculpas a ele. A caixa de metal deve ser devolvida a ele, mas,evidentemente, as apólices que Peter Carey vendeu estão perdidas para sempre. Lá está o táxi,Hopkins, e você pode remover o seu prisioneiro. Se precisar de mim para o julgamento, meu endereçoe o de Watson será em algum lugar na Noruega – depois lhe enviarei os detalhes.

CHARLES AUGUSTUS MILVERTONFaz anos que aconteceram os fatos que vou narrar, mas, mesmo assim, é com certo constrangimento que

os evoco. Durante muito tempo teria sido impossível torná-los públicos, mesmo discretamente, mas agoraa principal personagem está fora do alcance da justiça humana, e, com a devida reserva, a história poderá serrelatada sem prejuízo de quem quer que seja. Foi uma experiência única na vida de Sherlock Holmes e naminha. O leitor me perdoará por ocultar datas ou quaisquer outros fatos que possam levá-lo a reconhecerpessoas ou lugares.

Holmes e eu tínhamos saído para o nosso passeio habitual, voltando mais ou menos às seis horas, numatarde fria. Quando meu amigo acendeu a luz, vimos um cartão sobre a mesa. Holmes olhou-o e depois, numgesto de repulsa, atirou-o ao chão. Apanhei-o e li:

“CHARLES AUGUSTUS MILVERTONAppledore Towers

HampsteadAGENTE”

– Quem é ele? – perguntei.– O maior canalha de Londres – respondeu Holmes, sentando-se e esticando as pernas diante do

fogo. – Há alguma coisa escrita no verso do cartão?Virei o cartão e li:

“Estarei aí às seis e meia – C. A. M”.

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– Hum!... – resmungou Holmes. – Deve estar chegando. Você não tem uma sensação de nojo, Watson,quando vê as serpentes no Jardim Zoológico, aqueles animais viscosos, furtivos, venenosos, deolhos assassinos e cabeças chatas e repulsivas? Pois bem, é essa a impressão que me causa Milverton.Já lidei com cinqüenta assassinos em minha carreira, mas o pior deles jamais me causou a sensaçãode repulsa que esse sujeito me inspira. Apesar de tudo, não posso deixar de negociar com ele, e,para ser franco, Milverton vem aqui a meu pedido.

– Mas quem é ele?– Vou contar-lhe, Watson. É o rei dos chantagistas. Deus ajude o homem e, principalmente, a mulher

cujo segredo caia nas mãos daquele homem! Com rosto sorridente e coração de pedra, ele ossugará, até deixá-los completamente exangues. O homem é um gênio, à sua moda, e teria alcançadosucesso num negócio menos sórdido. Seu método é o seguinte: faz com que se saiba que pagaráum preço muito alto por cartas que comprometam pessoas de dinheiro e posição. A mercadoria lheé entregue não somente por criadas e lacaios desleais, como também por malandros que conseguiramconquistar a afeição de mulheres que confiam neles. Ele nada tem de mesquinho, quando paga. Seique deu setecentas libras a um lacaio por um bilhete de duas linhas, e o resultado foi a ruína de umafamília nobre. Tudo o que existe no mercado, nesse gênero, vai parar nas mãos de Milverton, e hánesta cidade centenas de pessoas que empalidecem ao ouvir seu nome. Ninguém sabe onde a suaespada cairá, pois, sendo muito rico e astuto, não age precipitadamente. Às vezes guarda um bilhetedurante anos, à espera do momento oportuno para ameaçar a vítima. Eu lhe disse, Watson, que eleé o maior canalha de Londres. O bandoleiro que mata o comparsa no calor de uma briga não podeser comparado a esse miserável Milverton, que, com método e sem pressa, tortura a alma e dilaceraos nervos das criaturas, para aumentar sua já considerável fortuna.

Eu nunca ouvira meu amigo falar com semelhante excitação.– Mas esse homem não está ao alcance da lei? – perguntei.– Tecnicamente, sim, mas não na prática. De que adiantaria a uma mulher, por exemplo, fazer com

que ele fosse passar uns meses na cadeia, se isso causasse a sua própria ruína? As vítimas deMilverton não ousam reagir. Se algum dia ele tentasse chantagear uma pessoa inocente, aí sim nóspoderíamos agarrá-lo. Mas o sujeito é esperto como o diabo. Não, não; temos de encontrar outrosmeios de lutar contra ele.

– Mas por que ele vem aqui?– Porque uma ilustre cliente me confiou seu triste caso. Trata-se de lady Eva Brackwell, a mais linda

debutante do ano passado. Deve casar-se, daqui a quinze dias, com o conde de Dovercourt. Aquelebandido tem em seu poder algumas cartas levianas – levianas, apenas, Watson, nada mais – queforam escritas a um nobre sem fortuna, do interior. As cartas bastariam para fazer com que o noivadofosse desfeito. Milverton mandará as cartas para o conde, a não ser que lhe paguem uma grandequantia. Recebi uma procuração para tratar com ele e tentar o melhor entendimento possível.

Nesse momento, ouvimos um ruído de patas de cavalo do lado de fora. Olhando pela janela, vi umaimponente carruagem, puxada por dois soberbos animais. Um lacaio abriu a porta e avistei um homembaixo, gordo, de casaco de astracã. Dali a segundos ele entrava na sala.

Milverton era um homem de cinqüenta anos, com uma cabeça grande, ar de intelectual, rosto barbeado,um sorriso gélido perpetuamente nos lábios e dois perspicazes olhos cinzentos, que brilhavam por trás deóculos de aros dourados. Havia nele um ar benevolente, prejudicado apenas pela hipocrisia do sorriso fixo epelo brilho duro dos olhos inquietos e penetrantes. Sua voz era macia e suave. Avançou para nós, estendendoa mão gorda, dizendo lamentar não nos ter encontrado quando de sua primeira visita.

Holmes ignorou a mão estendida e olhou-o com expressão gélida. O sorriso de Milverton alargou-se.

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Encolheu os ombros, tirou o sobretudo, dobrou-o com ardeliberado sobre as costas da cadeira e sentou-se.

Com um gesto em minha direção, disse:– Este cavalheiro... será discreto?... Não haverá

problema?– O Dr. Watson é meu amigo e sócio – declarou

Holmes.– Muito bem, sr. Holmes. Falei apenas no interesse de

sua cliente. O assunto é tão delicado...– O Dr. Watson está a par da situação.– Então podemos tratar do negócio. O senhor diz que

representa lady Eva. Ela lhe deu poderes para aceitaras minhas condições?

– Quais são elas?– Sete mil libras.– E a alternativa?– Caro senhor, é-me penoso discuti-la. Mas, se o

dinheiro não me for entregue até o dia 14, certamentenão haverá casamento no dia 18.

O sorriso do homem pareceu-me mais complacente doque nunca. Holmes refletiu durante alguns segundos.

– Parece-me que o senhor está muito seguro de si – dissefinalmente.– Conheço, já sesabe, os termos das cartas. Minha cliente fará, sem amenor dúvida, o que eu lhe recomendar. Vouaconselhá-la a contar tudo ao noivo e apelar para asua generosidade.

Milverton deu uma risadinha irônica:– Vê-se que não conhece o conde – disse ele.

Pela expressão de Holmes percebi que o conhecia.– Que mal há naquelas cartas? – perguntou o meuamigo.– São expressivas, muito expressivas – respondeuMilverton. – A jovem era uma correspondenteencantadora, mas posso garantir-lhe que o conde deDovercourt não apreciaria tal qualidade. Enfim, já quea sua opinião é outra, vamos deixar as coisas comoestão. Se o senhor achar que lady Eva não ficaráprejudicada caso as cartas sejam entregues ao conde,então seria tolice pagar por elas uma tão elevadaquantia.

O homem ergueu-se e apanhou o sobretudo deastracã. Holmes estava pálido de cólera e humilhação.– Espere um pouco – disse ele. – Não tenha pressa.

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Claro que faríamos tudo para evitar um escândalo, tratando-se de assunto tão delicado.Milverton tornou a sentar-se.

– Tinha a certeza de que compreenderia a situação – disse ele.– Ao mesmo tempo, lady Eva não é rica – continuou Holmes. – Posso garantir-lhe que duas mil libras

abririam um rombo em seus recursos, mas a soma que o senhor indicou está completamente forade discussão. Peço-lhe, portanto, que modere suas exigências e devolva as cartas ao preço queestipulei, o mais alto que poderá obter.

O sorriso de Milverton alargou-se, e os olhos assumiram um brilho divertido.– Sei que me diz a verdade, quanto aos recursos da nobre dama – disse ele. – Ao mesmo tempo, o

senhor deve compreender que o casamento de uma jovem é ocasião propícia para amigos e parentesfazerem um esforço em sua honra. Pode ser que hesitem na escolha de um presente. Mas possogarantir-lhe que aquele maço de cartas daria mais prazer à noiva do que todos os candelabros emanteigueiras de Londres.

– É impossível – declarou Holmes.– Ora, ora – disse Milverton, tirando do bolso uma carteira. – Não posso deixar de achar que as

mulheres agem mal, recusando-se a fazer um esforço. Veja isto aqui!Milverton mostrou um envelope onde havia um brasão e continuou:

– Isto pertence... pois bem, não acho justo dizer o nome até amanhã de manhã. A esta hora, já estaránas mãos do marido. E tudo porque uma ilustre dama não encontrou a miserável quantia que poderiaobter numa hora, trocando seus brilhantes verdadeiros por falsos. É pena. Lembra-se do súbitorompimento do noivado da ilustre srta. Miles com o coronel Dorking? Apenas dois dias antes docasamento, saiu um parágrafo no Morning Post anunciando esse rompimento. E por quê? Pareceincrível, mas a absurda soma de mil e duzentas libras teria resolvido o assunto. E aqui está o senhor,um homem sensato, regateando, quando o futuro e a honra de sua cliente estão em jogo. O senhorsurpreende-me, sr. Holmes.

– O que digo é verdade – declarou Holmes. – O dinheiro não pode ser arranjado. Certamente épreferível aceitar a substancial quantia que lheofereço a arruinar a vida dessa mulher, o quenenhum proveito lhe traria.

– Engana-se nesse ponto, sr. Holmes. Umescândalo me traria, indiretamente,grandes vantagens. Tenho oito ou dezcasos em andamento. Se os interessadosficarem sabendo que não poupei ladyEva, procurarão, sem dúvida, mostrar-se mais razoáveis. Compreende o meuponto de vista?

Holmes levantou-se de um salto.– Ponha-se atrás dele, Watson. Não o deixe

sair daqui! Agora, senhor, vamos ver oconteúdo dessa carteira.

Ágil como um rato, Milverton escorregara paraum canto da sala, e estava de costas para a parede.

– Sr. Holmes, sr. Holmes! – disse, abrindo ocasaco e mostrando o cano de um revólver,

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que se projetava de um bolso interno. – Estava à espera de que fizesse algo original. Já tentaram issotantas vezes, e com que vantagem? Asseguro-lhe que estou armado até os dentes e pronto a usar aminha arma, pois sei que a lei estaria do meu lado. Além disso, está completamente enganado sepensa que eu iria trazer a carta. Nunca faria tal loucura. Agora, senhores, tenho mais uma ou duasentrevistas hoje à noite, e é uma longa viagem até Hampstead.

O homem adiantou-se, apanhou o sobretudo, segurou o revólver e virou-se para a porta. Peguei umacadeira, mas Holmes sacudiu a cabeça e larguei-a de novo. Com uma curvatura, um sorriso e um brilho noolhar, Milverton saiu da sala. Momentos depois, ouvimos o ruído da carruagem que se afastava.

Holmes ficou imóvel perto do fogo, as mãos enfiadas nos bolsos das calças, o queixo sobre o peito, osolhos fixos nas cinzas. Por meia hora permaneceu imóvel e em silêncio. Depois, com o gesto de quem tomauma resolução, levantou-se de um salto e dirigiu-se para o quarto. Dali a pouco vi sair dali um operário de arinsolente, barbicha e andar bamboleante, que acendeu o cachimbo de barro antes de sair para a rua.

– Não sei a que horas voltarei, Watson – disse ele, desaparecendo no meio da noite.Compreendi que declarara guerra contra Charles Augustus Milverton, embora pouco soubesse do estranho

rumo que tomariam os acontecimentos.Durante alguns dias Holmes entrava e saía a qualquer hora vestido daquela forma; mas, excetuando-se a

informação de que passava o tempo em Hampstead, eu nada sabia de seus movimentos. Finalmente, numanoite tempestuosa, voltou de sua última expedição. Depois de tirar o disfarce, sentou-se diante do fogo eriu, à sua maneira silenciosa, para dentro.

– Não me julga um galante, não é verdade, Watson?– Não, claro que não!– Creio que gostará de saber que estou noivo...– Caro amigo! Parabéns...– ... da empregada de Milverton.– Deus do céu, Holmes!– Eu queria informações, Watson.– Mas não terá ido longe demais?– Era necessário. Sou um encanador, dirijo um negócio próspero, e meu nome é Scott. Tenho saído

com ela todas as noites e temos conversado muito. Santo Deus, aquelas conversas! Em todo caso,consegui o que queria. Conheço a casa de Milverton como a palma da minha mão.

– Mas e a moça, Holmes?Meu amigo encolheu os ombros.

– Não há remédio, Watson. Temos de lutar com as armas à nossa disposição, quando está em jogoum assunto tão importante. Mas folgo em dizer-lhe que tenho um temível rival que, sem a menordúvida, me substituirá assim que eu virar as costas. Que linda noite!...

– Gosta deste tempo?– Serve para meus desígnios, Watson. Pretendo invadir a casa de Milverton hoje à noite.

Senti um frio na espinha ao ouvir tais palavras, pronunciadas lentamente e em tom de firme resolução.Assim como um relâmpago, à noite, mostra de relance todos os pormenores de uma paisagem, num segundovi as conseqüências de tal aventura – prisão, a honrada carreira de meu amigo arruinada para sempre, eHolmes à mercê do detestável Milverton.

– Pelo amor de Deus, Holmes, pense no que vai fazer! – exclamei.– Caro amigo, já pensei bastante. Não sou precipitado e não teria tomado uma resolução tão enérgica

e perigosa se houvesse alternativa. Vejamos as coisas com clareza e sangue-frio. Você há de reconhecerque o ato é moralmente justificável, embora tecnicamente criminoso. Invadir a casa de Milverton

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não é pior do que roubar-lhe a carteira... e, nisso, você estava disposto a ajudar-me.Pesei o argumento durante alguns segundos.

– Sim, moralmente justificável, contanto que o nosso objetivo seja subtrair unicamente objetos quese pretenda usar para fins ilegais.

– Exatamente. Já que é moralmente justificável, tenho apenas de considerar o risco pessoal. Não hádúvida de que um cavalheiro não deve pensar nisso, quando uma dama precisa desesperadamentede auxílio, não é verdade?

– Você ficará em posição muito incômoda.– Bem, isso faz parte do risco. Não há outra maneira de conseguir as cartas. A pobre jovem não tem

o dinheiro e não pode se abrir com ninguém da família. Amanhã é o último dia para o pagamento e,a não ser que recuperemos as cartas hoje à noite, aquele miserável cumprirá a sua ameaça e fará ainfelicidade de lady Eva. Cá entre nós, Watson, é um duelo entre Milverton e este seu amigo. Comovocê viu, o chantagista teve vantagem no primeiro encontro, mas a minha reputação e o meu amor-próprio estão envolvidos na luta.

– Bem, não gosto nada disso, mas, se tem de ser, paciência. A que horas vamos?– Você não vai – disse Holmes.– Então você também não vai – declarei. – Dou-lhe minha palavra de honra (e jamais a quebrei,

durante toda a vida) que tomarei um carro até a polícia e lá o denunciarei, a não ser que queira levar-me em sua aventura noturna.

– Você em nada poderá ajudar-me – disse Holmes.– Como sabe? Ninguém pode prever o que vai acontecer. De qualquer maneira, minha resolução está

tomada. Há outras pessoas, além de você, que têm amor-próprio e reputação.Holmes parecera aborrecido, mas seu rosto desanuviou-se, e bateu no meu ombro.

– Bem, bem, caro amigo, vá lá, então. Compartilhamos do mesmo quarto durante anos e seria inte-ressante se acabássemos compartilhando a mesma cela. Sabe, Watson, confesso que sempre acheique eu poderia ser um criminoso muito eficiente! É esta a oportunidade de minha vida, nesse setor.

Holmes tirou uma pequena pasta de couro de uma gaveta, abriu-a e exibiu uma porção de instrumentosreluzentes.

– Aqui está um estojo de arrombamento, de primeira classe, com as mais modernas ferramentas.Aqui está também a minha lanterna. Tudo em ordem. Tem um par de sapatos que não façam barulho?

– Tenho tênis.– Ótimo. E máscara?– Posso fazer uma, com seda preta.– Vejo que tem vocação para a coisa. Muito bem: as máscaras ficam por sua conta. Faremos uma

refeição fria antes de partir. São nove e trinta. Às onze iremos até a Church Row. É uma caminhadade um quarto de hora de lá até Appledore Towers. Estaremos trabalhando antes da meia-noite.Milverton tem um sono muito pesado e vai para a cama pontualmente às dez e meia. Com sorteestaremos de volta às duas horas, com as cartas de lady Eva no bolso.

Holmes e eu nos vestimos de maneira a parecermos dois cavalheiros regressando do teatro. Na OxfordStreet, apanhamos um carro e demos um endereço em Hampstead. Ali pagamos o carro e, de sobretudoabotoado, pois fazia muito frio e soprava um vento cortante, caminhamos ao longo da margem do Heath.

– É um negócio que precisa ser tratado com delicadeza – disse Holmes. – Os documentos estão numcofre, no escritório do homem, e o escritório é uma antecâmara do seu quarto de dormir. Por outrolado, como todos esses homenzinhos que se tratam bem, ele tem um sono muito pesado. Agatha,minha noiva, diz que já é motivo de troça, entre os empregados, o fato de ser impossível acordar o

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patrão. Ele tem um secretário muitodedicado, que não arreda pé do escritóriodurante o dia; é por isso que vamos ànoite. Há também um cão terrível, queronda por ali a noite toda. Encontrei-mecom Agatha muito tarde, nestas duasúltimas noites, e ela prende o animal parame dar liberdade. A casa é aquela, grande,no meio de um parque. Vamos atravessaro portão. Agora, à direita, por entre osloureiros. Creio que chegou o momentode pormos as máscaras. Veja, não há umaréstia de luz em nenhuma das janelas.Tudo corre às mil maravilhas.

Com as máscaras de seda preta, que nostransformaram em dois temíveis bandidos,dirigimo-nos para a casa silenciosa. Uma espéciede varanda se estendia de um dos lados da casa epara ela davam duas portas e várias janelas.

– É logo ali o quarto dele – murmurouHolmes. – Esta porta dá para o escritório.Seria melhor entrarmos por aqui, mas estátrancada e faríamos muito barulho. Venha. Há uma estufa que dá para o salão.

A estufa estava fechada, mas Holmes cortou um quadrado de vidro da porta, enfiou a mão pelo buraco edeu a volta à chave, lá dentro. Momentos depois, fechou a porta atrás de nós e, com isso, transformou-nosem infratores da lei. Sentimos o ar quente da estufa e o aroma das plantas exóticas. Holmes segurou a minhamão, no escuro, e conduziu-me rapidamente por entre as plantas que nos roçavam o rosto. Meu amigo tinhao extraordinário dom, cuidadosamente cultivado, de enxergar no escuro. Ainda segurando minha mão, abriuuma porta, e tive a impressão de entrar num quarto grande, onde haviam fumado um charuto há pouco. Eleprocurou orientar-se em meio à mobília, abriu outra porta e fechou-a. Estendendo a mão, percebi que haviavários casacos pendurados na parede, e compreendi que estávamos num corredor. Caminhamos por ele eHolmes abriu de mansinho uma porta à direita. Alguma coisa passou por nós e meu coração parou, masquase deixei escapar uma risada ao concluir que fora apenas um gato. Nesse aposento a lareira estava acesae senti de novo o cheiro forte de tabaco. Holmes entrou nas pontas dos pés, esperou que eu o seguisse efechou de mansinho a porta. Estávamos no escritório de Milverton. Uma cortina pesada, na outra extremidade,indicava a entrada do quarto.

O fogo, forte, iluminava o aposento. Perto da porta, vi o brilho de um comutador, mas era desnecessárioacender a luz, mesmo havendo algum perigo. De um lado da lareira havia uma cortina pesada, que vedava ajanela saliente que tínhamos visto de fora. Do outro lado, uma porta que se comunicava com a varanda. Nocentro havia uma escrivaninha, com cadeira giratória de cabedal vermelho. Do outro lado, uma estante,encimada por um busto de Atena. A um canto, entre a estante e a parede, vimos um alto cofre verde, emcujas maçanetas de bronze se refletia a luz da lareira. Holmes atravessou a sala e examinou o cofre. Foidepois até a porta do quarto e, a cabeça de lado, ficou atentamente à escuta.

Nenhum som veio de lá. Nesse meio tempo, ocorreu-me que seria de bom alvitre preparar nossa retiradapela porta externa, de modo que fui examiná-la. Vi, com espanto, que não estava trancada nem fechada à

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chave. Bati de leve no braço de Holmes e ele olhou naqueladireção. Teve um sobressalto, mostrando-se quase tãosurpreso quanto eu.

– Não gosto nada disso – murmurou ao meu ouvido.– Não entendo. De qualquer maneira, não temos

tempo a perder.– Quer que eu faça alguma coisa?– Sim, fique perto da porta. Se ouvir alguém chegar,

tranque-a, e poderemos sair por onde entramos.Se vierem pelo outro lado, poderemos sair pelaporta, se nossa missão estiver cumprida, ouesconder-nos atrás das cortinas da janela. Está bem?

Concordei com a cabeça e fiquei perto da porta. Passadoo primeiro receio, senti um prazer maior do que jamaissentira quando éramos os defensores da lei, em vez deinfratores. O elevado propósito de nossa missão, a certezade que era desinteressada e cavalheiresca, o caráter vil denosso adversário, tudo isso se acrescentava ao interessedesportivo da aventura. Em vez de me sentir culpado, alegrei-me, exultando com o perigo. Cheio de admiração, vi Holmesabrir a pasta de ferramentas e escolher uma delas, com calma,com a perícia do cirurgião que vai realizar uma operação

delicada. Eu já conhecia a sua habilidade em abrir cofrese imaginei o prazer que sentia ao defrontar-se com aquelemonstro verde e dourado que encerrava, em sua goelavoraz, a reputação de numerosas damas. Dobrando ospunhos do casaco (ele tirara o sobretudo), Holmes dispôsa seu lado as ferramentas. Fiquei junto à porta central,vigiando com o olhar as outras duas, pronto a agir numaemergência, embora meus planos fossem vagos quantoà minha atuação, caso fôssemos interrompidos. Durantemeia hora Holmes trabalhou com empenho, largando umaferramenta e apanhando outra, manejando todas elas coma força e a delicadeza de um perito. Finalmente ouvi umclique, a porta verde abriu-se e divisei dentro do cofrevários maços de papéis, cada um amarrado, lacrado emarcado com uma inscrição. Holmes pegou um deles,mas era difícil ler, à luz da lareira, de modo que tirou dobolso sua lanterninha, pois seria perigoso acender a luzcom Milverton no quarto contíguo. De repente, vi-o parare ficar à escuta. Imediatamente fechou o cofre, apanhouas ferramentas e o sobretudo e escondeu-se atrás dascortinas, fazendo-me sinal para que o imitasse.

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Somente quando me reuni a ele notei o som que os seus sentidos aguçados haviam captado. Havia umruído qualquer na casa. Uma porta bateu ao longe. Depois, houve um murmúrio confuso, que se definiu empassos que se aproximavam, soando no corredor. A porta abriu-se. Ouvimos o ruído do comutador. A portafechou-se novamente e sentimos um cheiro forte de charuto. Depois, passos que iam e vinham, iam evinham, perto de nós. Finalmente, o ruído de uma cadeira. Os passos cessaram. Depois, um estalido defechadura e um ranger de papéis. Até então eu não ousara espreitar, mas nesse momento entreabri muito deleve as cortinas. Pela pressão do ombro de Holmes contra o meu, percebi que também ele estava observando.Bem em frente, quase a nosso alcance, estavam as costas largas de Milverton. Claro que tínhamos calculadomal os seus movimentos; ele não tinha estado no quarto, e sim sentado em alguma sala do outro lado dacasa, cujas janelas não tínhamos visto. Ele estava reclinado na cadeira vermelha, de pernas estendidas, umcharuto longo e negro projetando-se do canto da boca. Usava uma jaqueta caseira, de gola de veludo. Tinhana mão um documento e lia-o com displicência, enquanto fumava. A maneira como se comportava e suaatitude tranqüila indicavam que não tinha pressa em se retirar.

Senti a mão de Holmes apertar a minha, animando-me, como que a garantir-me que poderia dominar asituação e estava calmo. Eu não sabia se ele percebera que a porta do cofre estava mal fechada, e que aqualquer momento Milverton poderia aperceber-se disso. Em meu íntimo, resolvera que, se por umenrijecimento em suas feições eu percebesse que Milverton vira o cofre aberto, cobri-lo-ia com o sobretudo,prendendo-o e deixando o resto por conta de Holmes. Mas Milverton não ergueu os olhos. Estavalanguidamente interessado nos papéis que lia, página após página, como quem acompanha os argumentosde um advogado.

Pensei que, quando acabasse de ler e fumar o charuto, iria para o quarto, mas antes que tal se dessehouve um incidente que alterou o rumo de nossos pensamentos.

Várias vezes Milverton olhara para o relógio e uma vez chegou a levantar-se, com gesto impaciente.Jamais me ocorrera a idéia de que tivesse marcado entrevista com alguém, em hora tão imprópria, até ouvirum leve ruído na varanda. Milverton largou os papéis e ficou rígido. Ouviu-se um novo ruído. Logo emseguida, um bater leve à porta. O homem levantou-se e foi abri-la.

– Muito bem – disse ele. – Está com meiahora de atraso.

Então era essa a explicação da vigília deMilverton e da porta que não fora trancada. Ouvio farfalhar de um vestido de mulher. Eu fechara acortina entreaberta quando Milverton se viroupara nosso lado, mas então aventurei-me aespreitar de novo. Ele voltou a sentar-se, decharuto na boca, numa atitude insolente. Diantedele, bem iluminada pela luz elétrica, estava umamulher alta, magra, morena, com um véu sobreo rosto e uma capa nos ombros, à altura doqueixo. Respirava ofegantemente, parecendopresa de grande emoção.

– E então – disse Milverton. – Fez-meperder horas de descanso, minha cara.Espero que me prove que valeu a pena.Não pôde vir mais cedo, hein?

A mulher sacudiu a cabeça.

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– Bem, se não pôde, paciência. Se a condessa for uma patroa rigorosa, você terá oportunidade de sevingar dela. Ora, ora, menina, por que está tremendo tanto? Domine-se. Vamos ao que interessa.

O homem tirou um bilhete da gaveta da escrivaninha e continuou:– Diz que tem cinco cartas comprometedoras da condessa d’Albert. Quer vendê-las? Quero comprá-

las. Até aqui, muito bem. Basta combinarmos o preço. Claro que preciso examinar as cartas. Seforem realmente bons espécimes... – Santo Deus, é você?

A mulher erguera o véu sem uma palavra e deixara cair a capa atirada sobre o ombro. Era uma mulherbonita, morena, de traços definidos, nariz curvo e lábios finos, onde havia um sorriso perigoso.

– Sim, sou eu, a mulher cuja vida você desgraçou.Milverton riu, mas havia medo em seu riso.

– Você foi tão teimosa – disse ele. – Por que me levou àquele extremo? Garanto-lhe que não faria mala uma mosca propositadamente, mas cada homem tem o seu negócio, e o que eu poderia fazer?Exigi um preço ao seu alcance. Você não quis pagar...

– E então mandou as cartas para meu marido, e ele, o homem mais nobre que jamais existiu, de quemeu não era digna nem mesmo de engraxar os sapatos... ficou desesperado e morreu. Você se lembrada última noite, quando passei por essa porta e lhe pedi piedade, e você riu, riu na minha cara, comoestá tentando fazer agora? Mas seu coração covarde não pode impedir seus lábios de tremerem.Sim, nunca pensou que tornaria a ver-me, mas aquela noite ensinou-me como poderia encontrá-lofrente a frente, e a sós. Então, Charles Milverton, o que tem a dizer?

– Não pense que me assusta – disse ele, levantando-se. – Basta que eu erga a voz para que acorrammeus empregados e você seja presa. Mas vou dar um desconto à sua cólera. Saia imediatamente, enada mais será dito.

A mulher continuava com o mesmo sorriso ameaçador.– Não arruinará outras vidas como fez com a

minha. Não torturará corações como torturouo meu. Livrarei o mundo de um ser venenoso.Tome, seu canalha, tome, tome!

Ela apontara um revolverzinho e atirava agora no peitode Milverton, a uma distância de apenas sessenta cen-tímetros. Ele recuou, depois caiu sobre a escrivaninha,tossindo e agarrando-se aos documentos. Ergueu-se,cambaleando, levou outro tiro e caiu ao chão.

– Você me liquidou – disse, e ficou imóvel.A mulher olhou-o atentamente; depois calcou-lhe o

rosto com o salto do sapato. Olhou de novo, mas nãohouve som ou movimento. Ouvi um rumor bruscoquando o ar noturno entrou na sala aquecida e percebique a vingadora havia partido.

Nenhuma interferência nossa teria salvo o homemde seu destino, mas, ao ver a mulher disparar tiroapós tiro sobre Milverton, eu teria pulado se Holmesnão me segurasse pelo braço. Compreendi o que que-ria dizer aquela pressão firme: que o assunto não nosdizia respeito; que a justiça apanhara um miserável;que tínhamos um dever a cumprir, e dele não nos

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podíamos esquecer.Mal a mulher saíra da sala, Holmes deixou o esconderijo a passos rápidos e silenciosos. Dirigiu-se para a

porta e fechou-a à chave. No mesmo instante, ouvimos vozes e som de passos apressados. Os tiros tinhamacordado a criadagem. Perfeitamente calmo, Holmes foi até o cofre, pegou uma braçada de documentos eatirou-os ao fogo. Fez isso várias vezes, até o cofre ficar vazio. Alguém virou a maçaneta e começou a baterna porta. Holmes olhou rapidamente à volta. A carta que fora a mensageira da morte para Milverton estavasobre a escrivaninha, toda manchada de sangue. Holmes lançou-a no meio das outras. Em seguida, tirou achave da porta exterior e fechou-a por fora depois que a atravessamos.

– Por aqui, Watson – disse ele. – Podemos galgar o muro do jardim.Nunca pensei que um alarme se espalhasse tão depressa. Olhando para trás, vimos a imensa casa toda

iluminada. A porta da frente estava aberta e vinham vultos correndo pela alameda. O jardim estava cheio degente. Um criado gritou quando saímos da varanda e veio em nosso encalço. Holmes parecia conhecerperfeitamente o terreno, orientando-se sem dificuldade no meio das arvorezinhas, seguido por mim e, apouca distância, por nosso perseguidor. Chegamos a um muro de um metro e oitenta de altura, mas Holmespulou para o topo e passou para o outro lado. Quando tentei fazer o mesmo, senti a mão do criado agarrar-me o tornozelo, mas livrei-me dela com um pontapé e pulei. Caí de cara nuns arbustos, mas Holmes ajudou-me imediatamente a levantar e juntos corremos pela vastidão de Hampstead Heath. Tínhamos corrido maisde três quilômetros, pelos meus cálculos, quando Holmes parou e ficou à escuta. Silêncio absoluto atrás denós. Tínhamo-nos livrado dos perseguidores, e estávamos salvos.

Terminada a nossa refeição da manhã, estávamos fumando, no dia seguinte a essa memorável aventura,quando o inspetor Lestrade, da Scotland Yard, entrou em nossa sala, solene e sisudo.

– Bom dia, sr. Holmes – disse ele. – Bom dia... Será que estão muito ocupados no momento?– Não para o senhor – disse Holmes.– Achei que, se não tivesse nada de especial a fazer, talvez quisesse ajudar-me no caso mais extraor-

dinário de minha carreira, ocorrido ontem, em Hampstead.– Ora, ora – exclamou Holmes –, o que houve?– Assassinato... o mais dramático e o mais estranho. Sei como o senhor se interessa por essas coisas,

e ficaria agradecido se quisesse acompanhar-me ao local para me dar a sua valiosa opinião. Não éum crime comum. Há tempo que estamos de olho nesse Milverton, cá entre nós, um canalha. Sabe-se que vivia de chantagem. Seus documentos foram todos queimados pelos assassinos. Nãodesapareceu nenhum objeto de valor e é provável que os criminosos sejam homens de posição,cujo único objetivo tenha sido evitar um escândalo.

– Criminosos? – disse Holmes. – No plural?– Sim, eram dois. Quase foram presos em flagrante. Temos as suas pegadas e a descrição deles; é

quase certo que os apanharemos. O primeiro foi muito ágil, mas o segundo quase foi apanhado pelojardineiro e escapou com dificuldade. Era um homem de estatura mediana, forte, queixo quadrado,pescoço grosso, bigode e máscara sobre os olhos.

– Um tanto vago – observou Holmes. – Olhe, podia ser a descrição de Watson!– É verdade – concordou Lestrade, com ar divertido. – Podia ser.– Bem, infelizmente creio que não estou em condições de auxiliá-la, Lestrade – disse Holmes. – O

fato é que conheci esse tal Milverton e considerava-o um dos homens mais perigosos de Londres.Sei que certos crimes não podem ser alcançados pela lei, e, nesse caso, justifica-se a vingançaprivada. Não adianta insistir; estou resolvido. Minha simpatia está do lado dos criminosos, não davítima, e não aceito o caso.

Holmes não dissera uma palavra sobre a tragédia que tínhamos presenciado, mas notei que toda a manhã

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ficou pensativo, dando-me a impressão, a julgar pelo ar vago, de que procurava recordar qualquer coisa.Estávamos no meio do almoço quando de repente ele se pôs de pé.

– Com os diabos, Watson, lembrei-me! – exclamou. – Apanhe seu chapéu! Venha comigo!

Corremos pela Baker Street e a Oxford Street, até chegar ao Regent Circus. À esquerda havia uma vitrinacom fotografias das celebridades do momento. O olhar de Holmes fixou-se numa delas. Vi o retrato de umasenhora imponente, em traje de gala, com uma tiara de diamantes na cabeça. Olhei para o nariz levementecurvo, para as sobrancelhas bem-feitas, a boca firme e o queixo decidido. Fiquei sem respiração quando li onome nobre e honrado do grande aristocrata de quem ela fora esposa. Meus olhos encontraram os deHolmes e ele pôs o dedo nos lábios quando nos viramos para regressar a casa.

OS SEIS BUSTOS DE NAPOLEÃOEra comum que o inspetor Lestrade, da Scotland Yard, viesse ver-nos à tardinha, e Sherlock Holmes

gostava de suas visitas, pois faziam com que ficasse a par de tudo o que se passava na Scotland Yard. Parapagar as notícias que Lestrade lhe trazia, Holmes estava sempre pronto a ouvir com atenção os pormenoresdos casos que ocupavam o detetive no momento, podendo às vezes, sem interferência ativa, fazer algumasugestão baseada nos seus conhecimentos e em sua experiência.

Naquela noite Lestrade falou do tempo e das notícias publicadas nos jornais. Depois ficou em silêncio,fumando pensativamente. Holmes fitou-o com atenção.

– Alguma coisa extraordinária, no momento? – perguntou.

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– Oh, não, sr. Holmes, nada especial.– Então, conte-me tudo.

Lestrade riu.– Pois bem, sr. Holmes, não adianta negar que há alguma coisa. Mas é tão absurdo o que está

acontecendo que hesitei em vir importuná-lo. Por outro lado, embora seja insignificante, é indubi-tavelmente estranho, e sei que o senhor aprecia tudo o que é fora do comum. Mas, em minhaopinião, é mais assunto para o Dr. Watson do que para o senhor.

– Doença? – perguntei.– Loucura, no mínimo. E uma estranha espécie de loucura! Ninguém iria pensar que em nossa época

pudesse existir uma pessoa com tal ódio a Napoleão I, a ponto de quebrar todas as imagens quedele encontra.

Holmes afundou-se na cadeira e observou:– Isso não é assunto para mim.– Exatamente. Foi o que eu disse. Mas quando o homem invade uma propriedade para quebrar essas

imagens, que não lhe pertencem, o caso passa da alçada do médico para a da polícia.Holmes empertigou-se novamente.

– Roubo! É interessante. Ouçamos os pormenores.Lestrade tirou um livrinho do bolso, para avivar a

memória.– A primeira queixa foi há quatro dias – disse

ele. – O fato deu-se na loja de MorseHudson, que vende quadros e estatuetasna Kennington Road. O empregadosaíra da loja por um instante quandoouviu um estardalhaço. Veio ver o queacontecera e encontrou um busto deNapoleão, que estava em cima dobalcão ao lado de outros objetos dearte, completamente espatifado, nochão. Correu para a rua, mas, emboramuitos transeuntes dissessem tervisto um homem saindo às pressasda loja, não viu ninguém que pudesseidentificar como o malandro. O fato foitomado como um desses inexplicáveis atosde vandalismo que ocorrem de vez em quando,e a polícia foi notificada. O busto não valia mais quealguns xelins e o assunto parecia muito infantil para merecer uma investigação.

Lestrade fez uma pausa e continuou:– Mas o segundo caso foi mais extraordinário e também mais singular. Ocorreu ontem à noite, na

Kennington Road. A algumas centenas de metros da loja de Morse Hudson mora um médicoconhecido, o Dr. Barnicot, que tem uma das maiores clientelas daquele bairro. Mora e tem o seuprincipal consultório na Kennington Road, mas tem também uma clínica cirúrgica e um dispensáriona Lower Brixton Road, a três quilômetros de distância. Esse Dr. Barnicot é um entusiástico admiradorde Napoleão e sua casa está cheia de livros, retratos e relíquias do imperador francês. Há algum

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tempo comprou dois bustos de Napoleão na loja de Morse, numa reprodução do célebre trabalhodo escultor Devine. Um deles foi colocado no vestíbulo de sua casa na Kennington Road; o outrosobre a lareira da clínica, na Lower Brixton. Pois bem, o Dr. Barnicot ficou admirado, ao descer hojede manhã, quando verificou que um ladrão entrara em sua casa durante a noite, mas nada levara anão ser o busto de Napoleão. Este foi carregado até o jardim e despedaçado contra o muro, perto doqual foram encontrados os fragmentos.

Holmes esfregou as mãos.– Não há dúvida de que é uma novidade – disse ele.– Achei que o caso o interessaria. Mas isso ainda não é tudo. O Dr. Barnicot devia chegar à clínica ao

meio-dia, e o senhor pode imaginar o seu espanto quando, ao entrar ali, viu que a janela foraquebrada durante a noite, e que as peças da outra estatueta de Napoleão estavam espalhadas pelochão! Em nenhum dos casos havia indícios do criminoso, ou louco, que agira tão absurdamente.Agora, sr. Holmes, já conhece os fatos.

– Singulares, para não dizer grotescos – declarou Holmes. – Posso perguntar-lhe se os dois bustospertencentes ao Dr. Barnicot eram duplicatas daquele que foi destruído na loja de Morse Hudson?

– Tinham sido feitos a partir da mesma forma.– Isso depõe contra a teoria de que o homem agira impulsionado por um ódio a Napoleão. Levando-

se em conta o número de estátuas do grande imperador que existem em Londres, é absurdoacreditarmos na coincidência de o iconoclasta ter começado por três bustos iguais.

– Foi o que também pensei – disse Lestrade. – Por outro lado, o negociante de estatuetas naquelebairro é Morse Hudson, e aquelas três eram as únicas que teve na loja durante anos. Sendo assim,embora haja, como o senhor diz, centenas de outras estátuas de Napoleão em Londres, aquelaseram as únicas no distrito. Um fanático começaria por elas. Que diz a isso, Dr. Watson?

– Não há limite para as possibilidades da monomania – respondi. – Existe o quadro clínico a que osmodernos psicólogos franceses chamam de idée fixe, que pode ser acompanhada por absolutasanidade em tudo o mais. Um homem que tivesse lido muito a respeito de Napoleão, ou tivessesofrido alguma seqüela naquela grande guerra, poderia vir a ter uma idéia fixa, tornando-se capazdos atos mais disparatados.

– Isso não serve, caro Watson – disse Holmes, sacudindo a cabeça. – Por maior que fosse a idée fixe,não permitiria a seu interessante monomaníaco saber onde se encontravam os bustos.

– Então, como explica você o fato?– Não pretendo explicá-lo. Observo, apenas, que há método no excêntrico procedimento do sujeito.

Por exemplo, no saguão do Dr. Barnicot, onde o barulho poderia acordar a família, o busto não foiquebrado, e sim levado para fora, ao passo que na clínica, onde havia menos perigo de alarme, foiquebrado no local. Parece absurdamente trivial, mas eu não ousaria chamar qualquer coisa de trivialao lembrar-me de que muitos de meus casos mais importantes tiveram um princípio insignificante.Você deve recordar-se, Watson, de que o terrível caso da família Abernetty me chamou a atençãoquando notei como a salsa se enterrara profundamente na manteiga, num dia quente. Não posso,portanto, sorrir perante os três bustos quebrados, Lestrade, e ficarei muito agradecido se vier contar-me todas as novidades de tão singular cadeia de acontecimentos.

As novidades vieram depressa, e eram mais trágicas do que Holmes poderia ter imaginado. Eu estava mevestindo, na manhã seguinte, quando ouvi bater à porta. Holmes entrou com um telegrama na mão. Leu-oem voz alta.

“Venha imediatamente à Pitt Street, 113, Kensington.Lestrade”.

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– Que será? – perguntei.– Não sei. Pode ser... qualquer coisa. Mas creio que é a seqüência do caso dos bustos. Se assim for,

nosso amigo iconoclasta começou a operar em outro ponto de Londres. O café está na mesa, Watson,e há um carro à nossa espera.

Dali a meia hora, estávamos na Pitt Street. O número 113 era uma casa entre uma fileira de outrasresidências retilíneas, respeitáveis e pouco românticas. Quando nos aproximamos, vimos um grupo decuriosos. Holmes assobiou.

– Com os diabos, houve pelo menos uma tentativa de assassinato. Só isso deteria o transeunte londrino.Nos ombros redondos e no pescoço esticado daquele sujeito há uma sugestão de violência. Que éisso, Watson? Os degraus de cima estão úmidos, e os outros, secos. Pegadas, pelo menos. Bem,bem, lá está Lestrade à janela; já saberemos do que se trata.

O detetive recebeu-nos com expressão grave, fazendo-nos entrar numa saleta onde um senhor idoso,muito agitado e em desalinho, metido num roupão de flanela, andava de um lado para outro. Foi-nos apre-sentado como o dono da casa, sr. Horace Harker, da Associação Central de Imprensa.

– É o caso dos bustos novamente – avisouLestrade. – Pareceu-me interessado ontem ànoite, sr. Holmes, de modo que achei quegostaria de estar presente, agora que o casotomou um rumo muito mais sério.

– Que rumo?– Assassinato. Sr. Harker, quer fazer o favor de

contar a estes senhores o que aconteceu?O homem de roupão voltou-se para nós com ar

profundamente melancólico.– É incrível que eu, que toda a vida procurei

coligir notícias sobre os outros, me sintaconfuso agora que há uma notícia sensacionalà minha porta, a ponto de não conseguirescrever duas palavras. Se eu tivesse vindoaqui como jornalista teria entrevistado o donoda casa e publicado duas coluna, em todosos jornais da tarde. Da forma como corremas coisas, estou desperdiçando uma notíciaimportante, relatando os acontecimentos aum sem-número de pessoas diferentes, semsaber tirar proveito disso. Mas conheço-o denome, sr. Holmes, e, se puder explicar-me o que significa esse fato tão bizarro, eu me sentireipago pelo trabalho de lhe contar a história.

Holmes sentou-se e ouviu.– Parece que tudo gira em torno do busto de Napoleão que comprei para esta sala, há quatro meses.

Comprei-o muito barato na Harding Brothers, a dois passos da estação da High Street. Grande partedo meu trabalho de jornalista é feito à noite, e às vezes escrevo até de madrugada. Foi o queaconteceu hoje. Eu estava sentado em meu escritório, que fica nos fundos da casa, mais ou menosàs três horas da manhã, quando tive a certeza de ter ouvido um ruído embaixo. Fiquei à escuta, maso barulho não se repetiu, de modo que deduzi que provinha da rua. Então, cinco minutos mais

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tarde, ouvi um grito horrível, o mais pavoroso da minha vida, sr. Holmes. Dele não me esquecereienquanto viver. Fiquei imóvel, horrorizado, durante alguns segundos. Depois, agarrei um atiçador edesci. Quando cheguei a esta sala, vi a janela aberta e reparei que o busto desaparecera de cima dalareira. Por que quereria um ladrão levar tal objeto é coisa que está acima da minha compreensão,pois não tinha o mínimo valor.

O homem respirou fundo e continuou:– O senhor verificará que qualquer pessoa que saia pela janela aberta poderá alcançar o patamar da

escada com um passo largo. Foi isso, sem dúvida, o que fez o ladrão, de modo que dei a volta e fuiabrir a porta. Ao dar um passo para fora, no escuro, quase tropecei num corpo que ali estava. Entreicorrendo para buscar uma lanterna e vi um pobre homem, com a garganta aberta, numa poça desangue. Estava de costas, os joelhos encolhidos, a boca horrivelmente aberta. Mal tive tempo detocar um apito para chamar a polícia e devo ter desmaiado, pois não me lembro de mais nada, atéver um guarda debruçado sobre mim, no saguão.

– Quem era a vítima? – perguntou Holmes.– Não há nada que indique sua identidade – disse Lestrade.

– O senhor verá o corpo no necrotério, mas até agoranada descobrimos. Era um homem alto, moreno,muito forte, que não devia ter mais de trintaanos. Estava pobremente vestido, mas nãoparecia operário. Na poça de sangue a seulado havia uma faca de cabo de osso. Não seise pertencia ao morto ou ao assassino. Nãohavia marca alguma nas roupas e nada nosbolsos, a não ser uma maçã, um pedaço debarbante, um mapa barato de Londres e umafotografia. Aqui está ela.

Era um instantâneo pequeno. Vimos um homemde expressão viva, traços definidos, grossas sobran-celhas, a parte de baixo do rosto projetando-se comoa de um macaco.

– E que fim levou o busto? – perguntouHolmes, após examinar cuidadosamente afotografia.

– Tivemos notícias dele pouco antes de o senhor chegar.Foi encontrado no jardim de uma casa vazia, na CampdenHouse Road. Estava quebrado. Vou agora examiná-lo. Quer ir?

– Sem dúvida. Mas primeiro quero dar uma olhada por aqui. – Holmes examinou o tapete e a janela.– Ou o sujeito tinha pernas muito compridas, ou era muito ágil – observou meu amigo. – Comaquele espaço ali debaixo, não foi fácil alcançar o parapeito e abrir a janela. Depois disso, sair deveter sido relativamente simples. Vem conosco ver os fragmentos do busto, sr. Harker?

O inconsolável jornalista sentara-se à escrivaninha.– Tenho de tentar escrever alguma coisa – disse ele. – Mas garanto que as primeiras edições dos

jornais da tarde já deram todos os pormenores. Que falta de sorte! Lembra-se de quando caiu aplataforma em Doncaster? Pois bem, eu era o único jornalista presente, e meu jornal foi também oúnico a não publicar a notícia, pois fiquei abalado demais para poder escrever qualquer coisa! E

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agora, com um crime à minha porta, também vou chegar tarde demais.Enquanto saímos dali, ouvimos o ruído da pena correndo furiosamente sobre o papel.O local onde haviam sido encontrados os fragmentos do busto ficava a apenas alguns metros dali. Pela

primeira vez nossos olhos viram o busto do imperador, que parecia despertar o implacável ódio do destruidordesconhecido. Os pedaços estavam espalhados pelo chão. Holmes apanhou alguns e examinou-oscuidadosamente. Eu estava convencido, pela sua expressão concentrada, de que finalmente atinara comqualquer coisa.

– Então? – perguntou Lestrade.Holmes encolheu os ombros.

– Ainda temos muito o que caminhar – disse ele. – E no entanto... no entanto... Pois bem, temosalguns fatos muito sugestivos como ponto de partida. A posse desta ninharia valia mais, aosolhos do criminoso, do que uma vida humana. Temos aí uma constatação. Há depois o fatosingular de ele ter quebrado o busto dentro dacasa, ou imediatamente fora da casa, como fariase o seu objetivo fosse apenas destrui-lo.

– Ele ficou nervoso por ter encontrado outra pessoa.Mal sabia o que estava fazendo.

– É provável. Mas quero chamar a sua atençãoparticularmente para a posição da casa, no jardimonde o busto foi quebrado.

Lestrade olhou à volta.– É uma casa vazia, de modo que ninguém o inco-

modaria no jardim – observou.– Sim, mas há outra casa desocupada, por onde ele

deve ter passado antes de chegar a esta. Por quenão quebrou o busto ali, já que cada passo quedava aumentava o risco que corria?

– Desisto – confessou Lestrade.Holmes apontou para o lampião da rua sobre nossas

cabeças.– Aqui ele podia ver o que fazia; mais além, não. E

esta a razão.– Por Deus, é verdade – concordou o detetive. –

Agora que penso nisso, o busto do Dr. Barnicotnão foi quebrado muito longe do seu candeeirovermelho. Pois bem, sr. Holmes; que fazemoscom esta descoberta?

– Fica guardada para ser lembrada. Mais tarde, talvez encontremos alguma coisa que elucide esseponto. Que pretende fazer agora, Lestrade?

– O mais prático, na minha opinião, é identificar o morto. Não deve haver dificuldade. Depois dedescobrir quem é ele e quais são seus comparsas, não será difícil saber o que estava fazendo na PittStreet, a noite passada, quem se encontrou com ele e quem o matou na soleira da casa do sr. Harker.Não acha?

– Sem dúvida, mas não seria essa a minha maneira de iniciar a investigação.– Que faria o senhor?

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– Oh, não deve deixar que eu o influencie. Proponho que atue à sua maneira, e eu, à minha. Depois,poderemos comparar nossas notas – e as de um completarão as do outro.

– Muito bem – disse Lestrade.– Se vai voltar para a Pitt Street, verá o sr. Harker. Diga-lhe que estou certo de que um louco invadiu

sua casa a noite passada. Isso será útil para o artigo dele.Lestrade encarou Holmes.

– Não acredita nisso seriamente?Holmes sorriu.

– Não?... Pois bem, talvez não. Mas tenho certeza de que a notícia interessará o sr. Harker e os seusleitores. Agora, Watson, creio que temos um dia longo e complexo à nossa frente. Lestrade, peço-lhe que venha ver-nos na Baker Street, às seis da tarde. Até lá, gostaria de guardar o retrato do mortocomigo. É possível que tenha de pedir a sua companhia e a sua assistência, Lestrade, numa pequenaaventura hoje à noite, se o meu raciocínio estiver correto. Até lá, passe muito bem e felicidades.

Sherlock Holmes e eu fomos até a High Street, parando na loja Harding Brothers, onde o busto foracomprado. Um empregado informou-nos que o sr. Harding estava ausente e só voltaria à tarde, que era novona casa e nada poderia nos informar. Holmes pareceu-me decepcionado e aborrecido.

– Bem, bem, não podemos esperar que tudo corra às mil maravilhas, Watson – disse finalmente. –Voltaremos à tarde, então. Como você deve ter percebido, estou procurando descobrir a origemdos bustos, para ver se há algo peculiar que justifique a sua destruição. Vamos entrevistar o sr.Morse Hudson, na Kennington Road, para ver se ele pode dar-nos esclarecimentos.

Dali a uma hora, entrávamos na loja do sr. Hudson. Era um homem pequeno, atarracado, de rosto vermelho,muito vivaz.

– Sim, senhor – disse ele. – Aqui no meu balcão. Não sei para que pagamos imposto, já que qualquermandrião pode entrar em nossa casa e danificar nossos artigos. Sim senhor, vendi as duas estatuetasao Dr. Barnicot. É uma vergonha! Algum plano niilista, sem a menor dúvida. Somente um anarquistasairia por aí quebrando estátuas. Republicanos vermelhos, é o que eu diria. De quem recebi asestatuetas? Não sei o que isso tem a ver com o caso. Pois bem; se realmente deseja saber, comprei-as à Gelder & Co., na Church Street, em Stepney. Firma muito conhecida, há vinte anos. Quantas eutinha? Três – duas e uma são três – duas do Dr. Barnicot e uma quebrada, em pleno dia, no meubalcão. Se conheço o homem da fotografia? Não, não o conheço. Sim, sim, conheço... Oh, é Beppo,um artesão italiano que ajudava aqui na loja. Sabia entalhar e dourar uma moldura, e outras coisasmais. Saiu a semana passada e não tive mais notícias suas. Não, não sei de onde veio nem para ondeia. Nada tive contra ele enquanto esteve aqui. Saiu dois dias antes de ser quebrado o busto.

Ao deixarmos a loja, Holmes disse:– Bem, é tudo o que poderíamos esperar de Morse. Temos Beppo como um fator comum, tanto na

Kennington como em Kensington, e isso valeu a viagem de dezesseis quilômetros. Agora, Watson,vamos à Gelder & Co., de onde vieram as estatuetas. Vou ficar admirado se não conseguirmosalguma coisa lá.

Em rápida sucessão, passamos pela Londres elegante, a Londres dos hotéis, dos teatros, da literatura e docomércio, até chegarmos a uma cidadezinha à beira do rio, de cem mil almas, com feias casas onde pululamos párias da Europa. Ali, numa rua larga onde antigamente residiam ricos comerciantes, encontramos afábrica de objetos artísticos que procurávamos. Fora havia um imenso pátio, com estátuas monumentais.Dentro, uma sala grande, onde cinco operários entalhavam e modelavam. O gerente, um alemão louro,recebeu-nos cortesmente, respondendo com clareza a todas as perguntas de Holmes. Olhando nos livros,viu que tinham sido feitas, em gesso, centenas de cópias de um busto de Napoleão de mármore, por Devine.

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Mas as três que haviam sido enviadas a Morse Hudson, um ano antes, faziam parte de uma fornada de seis,sendo que as outras três haviam sido vendidas à Harding Brothers, em Kensington. Não havia razão para queessas seis fossem diferentes das outras. Não atinava com a causa de alguém querer destrui-las e achava aidéia risível. O preço por atacado era de seis xelins, mas o revendedor poderia conseguir doze, ou mais. Aestatueta era feita com dois moldes, tomados de cada lado do rosto, e depois unidos para formar o busto,trabalho geralmente feito por italianos, naquela sala onde estávamos. Depois de prontos, os bustos eramcolocados no corredor para secar, sendo então arma-zenados. Era só o que nos podia dizer.

Mas a fotografia teve extraordinário efeito sobre ogerente. Seu rosto ficou vermelho, o olhar, sombrio.

– Ah, o bandido! – exclamou. – Sim, conheço-omuito bem. Isso aqui sempre foi uma casarespeitável e a única vez que tivemos a políciaaqui dentro foi por causa desse sujeito. Hámais de um ano, ele esfaqueou outro italianona rua, depois veio trabalhar com a polícia emseu encalço, e foi preso. Chamava-se Beppo,mas não conheço o sobrenome. Levei umalição por ter dado emprego a um sujeito comessa cara. Mas era um bom operário, um dosmelhores.

– Qual foi sua pena?– O sujeito que ele esfaqueou não morreu, de

modo que a sentença foi de um ano. Tenhocerteza de que já está livre, mas não ousouaparecer por aqui. Um primo dele trabalhaconosco; certamente poderá informá-lo deseu paradeiro.

– Não, não – protestou Holmes. – Nem uma palavra ao primo, por favor. O assunto é muito sério e,quanto mais avanço, mais sério me parece. Quando o senhor procurou a data da venda dasestatuetas, vi que era 3 de junho do ano passado. Pode dizer-me quando Beppo foi preso?

– Posso saber, mais ou menos, pela folha de pagamento – respondeu o gerente. Virou umas páginas einformou. – O último salário foi pago no dia 20 de maio.

– Muito obrigado – disse Holmes. – Creio que não preciso abusar mais de sua paciência e de seutempo.

Insistindo de novo em que o gerente nada dissesse ao primo de Beppo, Holmes levou-me dali.A tarde ia adiantada quando encomendamos um almoço rápido num restaurante. Num cartaz à entrada,

lemos: ‘Assalto em Kensington. Assassinato cometido por um louco’. A notícia provou-nos que o sr. HoraceHarker conseguira escrever, afinal de contas. Duas colunas relatavam, em termos bombásticos, o sensacionalincidente. Holmes leu enquanto comia. Uma ou duas vezes riu.

– Ouça isto, Watson:Felizmente, não há divergência de opinião neste caso, uma vez que o inspetorLestrade, um dos mais competentes membros da Scotland Yard, assim como o sr.Sherlock Holmes, o conhecido perito, chegaram à conclusão de que a grotescasérie de incidentes, que terminou de maneira tão trágica, é obra de um louco e não

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de um criminoso deliberado. Nenhuma explicação pode existir, a não ser aaberração mental.

Holmes olhou-me e continuou:– A imprensa, caro Watson, é uma valiosa instituição, quando a gente sabe usá-la. E agora, se tiver

terminado o seu almoço, vamos voltar para Kensington, a fim de ouvir o que o gerente da HardingBrothers tem a dizer.

O fundador e proprietário daquela grande casa era um homenzinho vivo, muito bem-vestido, de cérebroágil e língua solta.

– Sim, senhor, li o que dizem os jornais da tarde. O sr. Horace Harker é nosso freguês. O busto foi-lhevendido há alguns meses. Encomendamos três iguais à Gelder & Co., de Stepney. Foram todosvendidos. A quem...? Creio que será fácil informá-lo, consultando nossos livros de vendas. Sim,aqui está. Um ao sr. Harker, um ao sr. Josiah Brown, de Laburnum Lodge, em Laburnum Vale,Chiswick, e o terceiro ao sr. Sandeford, da Lower Grove Road, Reading. Não, nunca vi o homem dafotografia. Não é rosto que se esqueça, não é verdade?... Nunca vi nada de mais feio. Se temosmuitos italianos entre nossos empregados? Sim, senhor, temos muitos, entre operários e serventes.Sim, creio que poderiam olhar o livro de vendas, se o desejarem. Não há motivo para guardarmos olivro à chave. Sim, sim, é um caso estranho, e gostaria que o senhor me avisasse ao chegar a umaconclusão.

Holmes tomara várias notas durante a entrevista e percebi que estava satisfeito com o desenvolvimentodo caso. Mas não fez observação alguma, a não ser que precisávamos nos apressar se quiséssemos chegara tempo ao nosso encontro com Lestrade.

E de fato, quando chegamos à Baker Street, lá estava o detetive, andando de um lado para outro da sala,com impaciência. O ar de importância indicava que o seu dia não fora perdido.

– Então? Teve sorte, sr. Holmes? – perguntou.– Tivemos um dia muito ocupado e não de todo inútil – explicou meu amigo. – Entrevistamos os dois

revendedores e também os fabricantes. Conheço, portanto, a origem dos bustos.– Ora, os bustos! – exclamou Lestrade. – Pois bem, o senhor tem seus métodos, sr. Holmes, e não

sou eu que falarei mal deles, mas creio que tive um dia mais proveitoso do que o seu. Identifiquei omorto.

– Não me diga!– E encontrei um motivo para o crime.– Ótimo!– Temos um inspetor que se especializou em Saffron Hill e nos bairros italianos. Pois bem, o morto

tinha uma medalha católica no pescoço, e isso, aliado à sua cor, fez-me pensar que era do sul daEuropa. O inspetor Hill reconheceu-o no momento em que lhe mostrei o cadáver. Chamava-sePietro Venucci, de Nápoles, e era um dos piores bandidos de Londres. Tinha relações com a Máfia,que, como o senhor sabe, é uma sociedade secreta que pune a desobediência com a morte. Vemosagora que o caso começa a ficar claro. Provavelmente, o outro também era membro da Máfia, edeve ter cometido alguma falta. Pietro foi mandado em seu encalço. Provavelmente, a fotografia queencontramos no bolso dele era a do homem que deveria matar, trazendo-a consigo para não seenganar. Ele encontra o sujeito e, vendo-o entrar na casa, espera-o do lado de fora. Na briga, é feridoe morre. Que tal, sr. Sherlock Holmes?

Holmes bateu palmas.– Magnífico, Lestrade, magnífico! Mas não percebi como explica a destruição dos bustos.– Os bustos! O senhor não consegue esquecê-los! Afinal de contas, é coisa insignificante, roubo

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miúdo, seis meses de cadeia, no máximo. O crime de morte, sim, é que nos interessa, e digo-lheque estou achando o fio da meada.

– E o próximo passo?– Muito simples. Irei com Hill ao bairro italiano, procurarei o homem da fotografia e acabarei por

prendê-lo, sob acusação de assassinato. Quer vir conosco?– Creio que não. Penso que atingiremos o nosso fim de maneira mais simples. Não posso dizer ao

certo, porque tudo depende de um fator completamente fora de nossa alçada. Mas tenho grandeesperança... Para falar a verdade, creio que a probabilidade é exatamente de dois contra um deprender o sujeito hoje à noite, se você nos acompanhar.

– Ao bairro italiano?– Não. Creio que Chiswick é o endereço onde poderemos encontrá-lo. Se me acompanhar até lá hoje

à noite, Lestrade, prometo que irei com você amanhã ao bairro italiano, e nada se perderá com ademora. Agora, acho que algumas horas de sono nos farão bem, pois não pretendo sair antes dasonze horas, e é provável que não estejamos de volta antes da madrugada. Se jantar conosco, Lestrade,poderá dormir no sofá até a hora da partida. Nesse meio tempo, Watson, gostaria que você chamasseum mensageiro expresso, pois tenho de mandar uma carta e é necessário que siga imediatamente.

Holmes passou a noite remexendo no arquivo de jornais velhos, no sótão. Quando finalmente desceu,vinha com ar de triunfo, mas nada nos contou acerca do resultado de sua busca. Quanto a mim, que seguiratodos os seus passos na investigação de caso tão complexo, embora não sabendo aonde queria chegar,compreendi que ele esperava que o criminoso fosse em busca dos dois bustos que faltavam. E, como muitobem sabíamos, um deles estava em Chiswick...

Indubitavelmente, nosso objetivo seria apanhá-lo em flagrante. Não pude deixar de admirar a habilidadecom que meu amigo fizera sair nos jornais uma notícia falsa, para que o criminoso pensasse que poderiacontinuar a agir impunemente. Não admirei quandoHolmes me sugeriu que levasse o revólver. Quanto aele, apanhara um chicote, sua arma favorita.

Às onze horas um carro estava à porta, à nossaespera. Levou-nos para o outro lado da ponte deHammersmith, e uma vez ali, Holmes ordenou aococheiro que esperasse. Uma caminhada curta levou-nos a uma rua isolada, com casas agradáveis no meiode jardins. À luz de um lampião de rua, lemos‘Laburnum Villa’ sobre o portão de entrada de umadelas. Evidentemente, o pessoal da casa já se retirara,pois estava tudo às escuras, a não ser por uma réstiade luz que se coava pela porta da frente e punha umamancha redonda na alameda do jardim. A cerca demadeira que separava o jardim da rua lançava umasombra negra na parte de dentro, e foi ali que nosescondemos.

– Receio que tenhamos muito o que esperar –murmurou Holmes. – Devemos agradeceraos deuses por não estar chovendo. Infeliz-mente, nem fumar podemos. Mas espero queo sacrifício seja recompensado.

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Nossa vigília não foi tão longa quanto receara Holmes,terminando de maneira súbita e singular. De repente,sem que o menor som anunciasse a sua aproximação,um vulto escuro abriu o portão e um homem ágil comoum macaco correu pelo jardim. Vimo-lo passar pelocírculo de luz e desaparecer na sombra projetada pelacasa.

Houve uma longa pausa em que ficamos de respiraçãosuspensa, depois ouvimos um rangido leve. A janela foraaberta; houve de novo um longo silêncio. Vimos o brilhorápido de uma lanterna dentro de casa. O homem nãoencontrara o que procurava, pois vimos a luz brilhar emoutra janela e depois em outra.

– Vamos até a janela aberta para agarrá-lo quandosair – murmurou Lestrade.

Mas, antes que déssemos um passo, o homem surgirade novo. Quando passou pelo círculo de luz, vimos quecarregava alguma coisa debaixo do braço. Olhoucautelosamente à volta. O silêncio da rua desertatranqüilizou-o. Voltando-nos as costas, depositou oobjeto no chão e, no momento seguinte, ouvimos uma

pancada e o somde algo que se partia. O homem estava tão atento ao que fazia quenão ouviu nossos passos, quando atravessamos furtivamente o relvado.Holmes pulou sobre ele como um tigre e, no momento seguinte,Lestrade e eu segurávamos seus pulsos, algemando-o sem demora.Vimos então um rosto pavoroso, lívido, com expressão furiosa, epercebi que era de fato o homem da fotografia. Mas não era aoprisioneiro que Holmes dava atenção. Agachado na soleira da porta,examinava cuidadosamente o objeto que o homem roubara. Era umbusto de Napoleão, como o que tínhamos visto de manhã, e estavareduzido a pedaços. Holmes levou-os, um a um, para perto da luz,examinando-os com atenção. Quando terminou, uma luz acendeu-seno vestíbulo, a porta abriu-se e apareceu o dono da casa, em camisa ecalças, com expressão jovial no rosto rotundo. – Sr. Josiah Brown, suponho – disse Holmes.– Em pessoa. Sem dúvida, estou falando com o sr. Sherlock Holmes.Recebi a carta que me mandou pelo mensageiro e cumpri exatamentesuas instruções. Fechamos todas as portas por dentro, e ficamos àespera dos acontecimentos. Estou muito satisfeito por ver que apanhouo bandido. Espero, senhores, que me dêem o prazer de entrar paratomar alguma coisa.

Mas Lestrade estava ansioso por levar o homem para lugar seguro,de modo que mandamos chamar nosso carro e, dali a pouco,estávamos a caminho de Londres. Nosso prisioneiro não quis dizer

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uma palavra, mas olhava-nos por sob os cabelos emaranhados e, em dado momento, quando minha mãoapareceu ao seu alcance, pulou sobre ela como um lobo.

Ficamos na polícia o tempo suficiente para saber que ele trazia apenas alguns xelins e um punhal nabainha, em cujo cabo havia vestígios de sangue recente.

– Muito bem – disse Lestrade. – Hill conhece toda essa gente e saberá o nome do sujeito. Os senhoresverão que a minha teoria sobre a Máfia estava certa. Mas sou-lhe muito grato, sr. Holmes, pelaperícia com que conseguiu deitar as mãos ao homem. Ainda não sei como.

– Creio que é muito tarde para explicações – disse Holmes. – Além disso, há um ou dois pormenoresainda por elucidar, e este caso é dos que merecem ser levados até o fim. Se vier de novo à minhacasa amanhã às seis da tarde, creio que poderei provar-lhe que ainda não atinou com o significadodeste caso, que apresenta aspectos inéditos na história do crime. Se algum dia eu lhe permitir querelate mais alguns de meus feitos, Watson, creio que suas páginas adquirirão mais vida se contar asingular aventura dos bustos de Napoleão.

Quando tornamos a nos encontrar, no dia seguinte, Lestrade vinha cheio de informações a respeito doprisioneiro. Chamava-se Beppo, mas o sobrenome era desconhecido. Tornara-se tristemente famoso nacolônia italiana. Fora hábil escultor, ganhando a vida honestamente, mas desviara-se do bom caminho eestivera na cadeia duas vezes, uma delas por ter esfaqueado um patrício. Falava perfeitamente o inglês.Ainda não sabíamos quais as suas razões para destruir os bustos, e ele se recusava a responder, mas a políciaachava que os bustos provavelmente tinham sido feitos por ele, uma vez que fora empregado da firmaGelder & Co.

Todas essas informações, muitas das quais já eram de nosso conhecimento, Holmes as ouviu com atençãocortês. Mas eu, que o conhecia, sabia que seus pensamentos estavam longe dali, e percebia um misto deinquietação e expectativa sob a máscara que apresentava.

Finalmente, empertigou-se na cadeira e seus olhos brilharam. Soara a campainha da rua. Minutos depoisouvimos passos na escada. Surgiu na sala um homem idoso, de rosto rubicundo e suíças grisalhas. Trazia namão uma sacola antiquada, que depositou sobre a mesa.

– O sr. Sherlock Holmes está presente?– perguntou.

Meu amigo inclinou-se e sorriu.– Sr. Sandeford, de Reading, suponho?– Sim, senhor. Creio estar um pouco

atrasado, mas os trens são assimmesmo. O senhor escreveu-me arespeito de um busto que possuo.

– Exatamente.– Tenho aqui sua carta. Diz: ‘Desejo

possuir uma cópia do busto de Napo-leão, de Devine, e estou pronto a pagardez libras pela que o senhor possui’.Não é isso?

– Exatamente – respondeu Holmes.– Fiquei muito admirado com a sua carta,

pois não consegui perceber comosoube que eu possuía tal objeto.

– Claro que deve ter ficado admirado,

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mas a explicação é simples. O sr. Harding, da Harding Brothers, disse que lhe vendera o últimoexemplar, e deu-me o seu endereço.

– Ah, então foi assim? Ele disse quanto paguei pelo objeto?– Não, não disse.– Pois bem, sou um homem honesto, embora não seja rico. Paguei apenas quinze xelins pelo busto, e

acho que devo dar-lhe essa informação antes de aceitar dez libras por ele.– O escrúpulo honra-o, sr. Sandeford, mas fiz minha oferta e sustento-a.– É muito gentil de sua parte, sr. Holmes. Trouxe o busto conforme me pediu. Aqui está.

O homem abriu a sacola e vimos sobre a mesa uma duplicata do busto que mais de uma vez tínhamosvisto em pedaços.

Holmes tirou um papel do bolso e colocou na mesa uma nota de dez libras.– Queira assinar este papel, sr. Sandeford, na presença destas testemunhas. Diz simplesmente que

o senhor me transfere todos os direitos sobre este busto. Sou um homem metódico, e a gentenunca sabe o que pode acontecer.Muito agradecido, sr. Sandeford. Aquiestá seu dinheiro. Passe muito bem.

Depois que o homem partiu, os movi-mentos de Holmes chamaram-nos a atenção.Começou por tirar do armário uma toalha lim-pa, estendendo-a sobre a mesa. Colocou de-pois o busto ao centro, apanhou um bastão ecom ele deu uma pancada seca no meio dacabeça de Napoleão. O busto quebrou-se eHolmes inclinou-se avidamente por sobre osfragmentos. No momento seguinte, soltouuma exclamação de triunfo, erguendo um pe-daço onde se via um objeto escuro, redondo,como a ameixa em um pudim.

– Senhores, permitam que lhes apresen-te a famosa pérola negra dos Bórgias!– disse ele.

Lestrade e eu ficamos em silêncio durantealguns momentos; depois, impulsivamente,batemos palmas, como ao final de umespetáculo. O sangue subiu ao rosto de Holmes, e ele inclinou-se, como o ator dramático que recebe ahomenagem da assistência. Era nesses momentos que ele deixava de ser uma máquina pensante e traía oseu amor pela admiração e pelo aplauso. A mesma criatura orgulhosa e reservada, que detestava notoriedade,ficava emocionada ao receber o elogio dos amigos.

– Sim, senhores, a pérola mais famosa do mundo, e foi sorte minha ter podido segui-la, por umacadeia de raciocínio indutivo, desde o quarto de dormir do príncipe de Colonna, no Hotel Dacre,onde foi perdida, até o interior deste objeto, o último dos seis bustos de Napoleão feitos pela Gelder& Co. Você deve estar lembrado, Lestrade, da sensação que causou o desaparecimento desta jóia, edos vãos esforços da polícia londrina para descobri-la. Eu próprio fui consultado, na ocasião, masnada consegui averiguar. Suspeitaram da criada da princesa, que era italiana; ficou provado que elatinha um irmão em Londres, mas não obtivemos provas contra nenhum deles. O nome da criada era

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Lucrécia Venucci e não duvido que seu irmão seja o homem assassinado por Beppo. Estive relendoos jornais da época e verifiquei que a pérola desaparecera exatamente dois dias antes da prisão deBeppo por crime violento, sendo que ele foi preso na fábrica Gelder & Co. no momento em que osbustos estavam sendo feitos. Vocês percebem claramente a série de acontecimentos, embora ossigam, naturalmente, na ordem inversa da que a mim se apresentou. Beppo tinha a pérola. Pode serque a tenha roubado de Pietro Venucci, pode ser que fossem comparsas, ou talvez Beppo tenha sidoapenas mensageiro entre o irmão e a irmã. Tanto se nos dá.

Holmes fez uma pausa.– O importante é que ele tinha a pérola, e naquele momento, quando a levava, foi perseguido pela

polícia. Dirigiu-se para a fábrica onde trabalhava, sabendo que tinha apenas alguns segundos paraesconder a valiosa jóia, que seria fatalmente encontrada quando o revistassem. Seis bustos deNapoleão estavam secando no corredor. Um deles ainda estava mole. Num minuto, Beppo, que erahábil artesão, fez um furo na massa, enfiou a pérola e, com alguns toques, cobriu de novo o vão. Eraum admirável esconderijo. Ninguém a encontraria ali. Mas Beppo ficou um ano na cadeia e, nessemeio tempo, os bustos se espalharam por Londres. Ele não podia saber qual deles continha a pérola.Saberia somente se os quebrasse, pois sacudi-los não adiantaria, uma vez que a pérola devia teraderido à massa, como de fato tinha. Beppo não se desesperou. Por intermédio de um primo, quetrabalhava na fábrica, soube quais firmas haviam comprado os bustos. Conseguiu emprego comMorse Hudson, e assim ficou sabendo quais os donos de três bustos. Não encontrou a pérola.Depois, com o auxílio de um empregado italiano, soube onde se achavam os outros três. O primeiroestava em casa de Harker. Mas ali Beppo foi seguido pelo comparsa, que o responsabilizou pelaperda da pérola. Brigaram, e Beppo matou o outro.

– Se eram comparsas, por que Pietro estava com a fotografia de Beppo?– Era um meio de procurá-lo, se tivesse de perguntar por ele a outras pessoas. Não pode haver outra

razão. Pois bem; depois do crime, achei que seria mais provável que Beppo se apressasse. Receava,certamente, que a polícia descobrisse o seu segredo. Claro que eu não podia saber se ele encontraraou não a pérola no busto de Harker. Nem mesmo chegara à conclusão de que era a pérola que eleprocurava, mas evidentemente estava à procura de alguma coisa, uma vez que levava os bustospara um lugar onde houvesse luz. Sendo o busto de Harker um em três, as probabilidades eram asque lhes disse: uma chance contra duas de que a pérola estivesse dentro dele. Faltavam dois bustose evidentemente o homem iria procurar o de Londres em primeiro lugar. Avisei o pessoal da casapara evitar outra tragédia e fomos para lá, com ótimo resultado. A essa altura eu tinha a certeza,claro, de que se tratava da pérola dos Bórgias. Restava um busto, em Reading, e a pérola devia estarnele. Comprei-o do seu dono, na presença de vocês, e aqui está.

Ficamos em silêncio por alguns momentos.– Pois bem, já o vi trabalhar em muitos casos, sr. Holmes – disse Lestrade. – Mas nunca com tal

perícia... Não temos inveja do senhor, na Scotland Yard. Não, senhor, temos mesmo muito orgulhoe, se for até lá amanhã, não haverá um homem, desde o mais velho inspetor até o guarda mais novo,que não tenha prazer em apertar-lhe a mão.

– Muito obrigado – disse Holmes. – Muito obrigado!Virou-se e, por um momento, tive a impressão de que estava profundamente emocionado. Dali a pouco,

voltara a ser o homem frio e prático de sempre.– Ponha a pérola no cofre, Watson – disse ele. – E faça o favor de tirar dali os documentos do caso

Conk-Singleton. Adeus, Lestrade. Se lhe surgir algum problema no caminho, terei muito prazer emfazer uma ou duas sugestões quanto à solução.

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OS TRÊS ESTUDANTESNo ano de 1895, Sherlock Holmes e eu tivemos de passar uns dias numa de nossas cidades universitárias

por motivo que não é necessário esclarecer. Foi nessa ocasião que nos aconteceu a aventurazinha quepretendo narrar. Não há dúvida de que serão excluídos os pormenores que poderiam fazer com que o leitoridentificasse a faculdade ou o criminoso, pois isso seria supérfluo e ofensivo; escândalo tão penoso deveficar esquecido. Mas, com a devida reserva, o incidente em si pode ser narrado, pois serve para ilustrar, umavez mais, as extraordinárias qualidades do meu amigo Holmes. Procurarei evitar os termos que possamlimitar os acontecimentos a determinado lugar ou dar uma indicação das pessoas envolvidas.

Estávamos, na ocasião, morando em quartos mobiliados, perto de uma biblioteca onde Sherlock Holmesfazia estudos sobre as antigas Constituições inglesas, busca que o levou a resultados tão extraordinários quetalvez me sirvam de assunto para futuras narrativas. Foi ali que, certa noite, recebemos a visita de umconhecido, o sr. Hilton Soames, lente do College of St. Luke’s. O sr. Soames era um homem magro, alto, detemperamento nervoso e excitável. Sempre o conhecera como homem inquieto, mas naquele momentoestava em tal estado de agitação que demonstrava claramente que algo estranho acontecera.

– Espero, sr. Holmes, que possa dedicar-me algumas horas do seu precioso tempo. Tivemos umincidente desagradável no St. Luke’s, e, se não fosse a feliz coincidência de sua presença em nossacidade, eu ficaria sem saber o que fazer.

– Estou muito ocupado atualmente, e não desejo desviar a minha atenção do assunto que me prende– disse Holmes. – Preferiria que o senhor pedisse o auxílio da polícia.

– Não, não, caro senhor, isso é de todo impossível. Quando a lei é chamada, não pode depois serafastada, e trata-se de um caso em que, pela honra da instituição, é necessário que se evite umescândalo. Sua discrição é tão afamada quanto a sua competência, sr. Holmes, e o senhor é o único

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homem no mundo que poderá me ajudar. Suplico-lhe, pois, que faça o possível.O humor do meu amigo não melhorara desde que se vira privado da atmosfera familiar da Baker

Street. Sem os seus produtos químicos e a sua desordem, era um homem infeliz. Encolheu os ombros,concordando de má vontade, e nosso visitante começou a contar a sua história, com palavras apressadase gestos nervosos.

– Preciso explicar-lhe, sr. Holmes, que amanhã é o primeiro dia do exame para a Bolsa de EstudosFortescue. Sou um dos examinadores. Minha matéria é o grego, e um dos primeiros pontos é umgrande trecho de tradução que os candidatos desconhecem. Esse trecho está impresso no papel doexame e, naturalmente, seria de grande vantagem para o aluno poder prepará-lo de antemão. Poresse motivo, são tomadas todas as providências para que o texto fique em segredo.“Hoje, mais ou menos às três horas, os papéis chegaram da tipografia. O exercício consta de meiocapítulo de Tucídides. Tive de relê-lo cuidadosamente, pois o texto deve estar absolutamente correto.Às quatro e trinta, meu trabalho ainda não estava terminado. Eu prometera ir tomar chá nos aposentosde um amigo, de modo que deixei as provas sobre a escrivaninha. Fiquei ausente mais de uma hora.O senhor sabe, sr. Holmes, que as portas de nosso colégio são duplas, uma leve, por dentro, e outrade pesado carvalho, por fora. Quando me aproximei da porta externa, fiquei admirado por ver umachave na fechadura. Por um momento julguei ter deixado ali a minha, mas, ao procurar no bolso, vique tal não se dera. A única duplicata que existia, ao que me constava, pertencia ao meu criadoBannister, que há dez anos cuida de meus aposentos e é de uma honestidade acima de qualquersuspeita. Verifiquei que a chave era sua, que ele entrara no quarto para saber se eu queria chá e que,descuidadamente, deixara a chave na fechadura ao sair. Sua ida ao meu quarto deve ter sido logoapós a minha saída. O esquecimento teria tido pouca importância noutra ocasião, mas neste diateve as mais deploráveis conseqüências.“No momento em que pus os olhos na escrivaninha, percebi que alguém andara remexendo osmeus papéis. As provas para o exame constavam de três longas folhas de papel, que eu deixaratodas juntas. Vi que uma delas estava nochão, outra na mesinha perto da janela eoutra onde eu a deixara”.

Holmes moveu-se pela primeira vez.– A primeira no chão, a segunda perto da

janela e a terceira onde o senhor a deixara– disse ele.

– Espantoso, sr. Holmes. Como pôde sabera posição das folhas exatamente? Faça ofavor de continuar sua interessanteexposição.

– Por um momento pensei que Bannistertivesse tomado a imperdoável liberdadede examinar os meus papéis, mas elenegou o fato com muita sinceridade, efiquei convencido de que falava a verdade.A outra hipótese era de que alguém houvessepassado pela porta e, ao ver a chave, tivesseentrado para examinar os papéis. Uma grandequantia está em jogo, sr. Holmes, pois a bolsa de

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estudos é valiosa, e um homem sem escrúpulos poderia arriscar-se para ter vantagens sobre osoutros concorrentes.“Bannister ficou muito perturbado com o incidente. Quase desmaiou quando percebemos quehaviam mexido nas provas. Dei-lhe um pouco do conhaque e deixei-o caído numa cadeira, enquantoexaminava cuidadosamente o quarto. Logo verifiquei que o intruso deixara outros vestígios de suapresença, além de papéis em desordem. Na mesinha próxima à janela havia várias aparas da madeirade um lápis que fora apontado. Havia também um pedaço da ponta, quebrada. Evidentemente, omalandro copiou a prova às pressas, quebrou a ponta do lápis e apontou-o de novo”.

– Ótimo! – disse Holmes, a quem voltara o bom humor à medida que seu interesse aumentava. – Odestino foi seu amigo.

– Não é só isso. Minha escrivaninha é nova, coberta de couro vermelho. Estou pronto a jurar, assimcomo Bannister, que a superfície era macia e sem manchas. Pois apresenta um corte de oito centí-metros de comprimento! Não apenas um risco, mas um corte. Além disso, encontrei na mesa umtorrãozinho de argila, com pontinhos que pareciam serragem. Tenho certeza de que esses vestígiosforam deixados pelo homem que remexeu nos papéis. Não havia pegadas nem outros sinais de suaidentidade. Fiquei sem saber o que fazer, mas, felizmente, lembrei-me de que o senhor estava nacidade, de modo que vim imediatamente procurá-lo. Por favor, ajude-me, sr. Holmes! Compreendao meu dilema. Tenho de encontrar o homem, ou o exame terá de ser adiado até que se preparemnovas provas. Uma vez que isso não pode ser feito sem explicações, haverá um terrível escândalo,que atingirá não somente a faculdade, mas toda a universidade. Antes de mais nada, desejo quetudo seja feito discretamente.

– Terei muito prazer em investigar e auxiliá-lo no que puder – disse Holmes, erguendo-se e vestindoo sobretudo. – O caso não é destituído de interesse. Alguém visitou seus aposentos, depois que ospapéis lhe foram entregues?

– Sim, Daulat, um estudante indiano que mora no mesmo andar e veio me pedir explicações sobre oexame.

– É um dos candidatos?– É, sim, senhor.– E os papéis estavam sobre a mesa?– Pelo que me lembro, estavam enrolados.– Mas ele poderia ter reconhecido as provas?– É possível.– Ninguém mais foi vê-lo?– Não.– Alguém sabia que as provas estariam lá?– Pergunta se alguém, além do tipógrafo...?– Bannister sabia? – perguntou Holmes.– Não, claro que não. Ninguém sabia.– Onde está Bannister, agora?– Estava se sentindo muito mal, o coitado! Deixei-o caído numa cadeira. Eu estava ansioso por vir

procurá-lo.– Deixou a porta aberta?– Primeiro fechei os papéis à chave.– Então, chegamos a isto, sr. Soames: a não ser que o estudante indiano tenha reconhecido o rolo

como sendo as provas, o homem que as examinou deu com elas por acaso, sem saber que

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estavam ali.– É o que parece.

Holmes deu um sorriso enigmático.– Muito bem, vamos até lá – disse ele. – Não é um caso para você, Watson – é mental, não físico.

Muito bem, venha, se quiser. Agora, sr. Soames – às suas ordens!. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O escritório de nosso cliente dava para o pátio coberto de líquen da velha faculdade, onde havia umajanela longa, baixa, gradeada. Uma porta gótica conduzia a uma desgastada escada de pedra. No andartérreo ficavam os aposentos do professor. Em cima, moravam três estudantes, um em cada andar. Escureciaquando lá chegamos. Holmes parou e olhou atentamente para a janela. Depois, aproximou-se e, pondo-senas pontas dos pés, de pescoço esticado, olhou para dentro do quarto.

– Ele deve ter entrado pela porta – observounosso guia.

– Realmente? – exclamou Holmes, sorrindo sin-gularmente e olhando de relance para nossocompanheiro. – Bem, já que nada encontra-mos aqui, é melhor procurar lá dentro.

O professor abriu a porta e fez-nos entrar em seusaposentos. Ficamos à entrada, enquanto Holmesexaminava o tapete.

– Infelizmente, creio que não há marcas aqui –disse ele. – Não se poderia mesmo esperarpor elas, em dia tão seco. Parece que o seuempregado já está bem. O senhor diz que odeixou numa cadeira. Que cadeira?

– Perto da janela.– Compreendo. Ao lado desta mesinha. Podem

entrar, agora. Acabei com o tapete. Vamosexaminar a mesinha. Não é difícil saber o queaconteceu. O homem entrou e apanhou asprovas, folha por folha, na escrivaninha.Levou-as para a mesa próxima à janela, deonde veria o senhor atravessar o pátio,podendo então fugir.

– Para ser exato, não poderia – disse o professor.– Entrei pela porta do lado.

– Ah, ótimo! Mas, em todo caso, era essa a idéia dele. Deixe-me ver as folhas. Nada de impressõesdigitais. Pois bem, apanhou a primeira e copiou-a. Quanto tempo levaria, por mais esperto quefosse? Quinze minutos, nunca menos. Depois, deitou-a fora e apanhou outra. Estava no meio,quando sua chegada, sr. Soames, o obrigou a uma retirada apressada, muito apressada, uma vezque não teve tempo de guardar as provas no lugar certo, o que indicaria ao senhor que alguémestivera em seu quarto. Não ouviu passos apressados na escada, quando passou pela porta exterior?

– Não, não ouvi.– Pois bem, ele escrevia tão furiosamente que quebrou o lápis, tendo de apontá-lo novamente. Isso é

interessante, Watson. O lápis não era do tipo comum. Era de tamanho invulgar, mole; a parte de

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fora, azul-escura, mostra o nome do fabricante em letras prateadas, e o pedaço que sobra é deapenas quatro centímetros. Procure esse lápis, sr. Soames, e terá o seu homem. Quando eu acres-centar que ele possui uma faca afiada e grande, o senhor terá mais um indício.

O sr. Soames estava atônito com as informações.– Posso compreender o resto – disse ele. – Mas, quanto ao comprimento do lápis...

Holmes ergueu uma das lascas, onde se viam as letras NN e um espaço de madeira livre depois delas.– Vê? – perguntou.– Nem mesmo assim...

Holmes explicou:– Que poderia significar NN? É o final de uma palavra, Watson. Você sabe que Johann Faber é a marca

mais comum de lápis. Não vê que o que sobra do lápis é exatamente a parte em que não estáimpresso o nome Johann? – Holmes virou a mesinha de lado para a luz elétrica. – Tinha esperançasde que, se o papel onde ele escreveu fosse fino, ficasse qualquer marca na superfície polida damesa. Mas nada vejo. Creio que nada mais podemos apurar aqui. Vamos ver a escrivaninha. Suponhoque este torrão seja aquele a que o senhor se referiu. Triangular. Parece que há nele grãos de serragem.Interessante, não há dúvida. E o corte no couro é um rasgão, pelo que vejo. Começa com um riscoe acaba num buraco. Fico-lhe muito grato por ter me chamado a atenção para este fato, sr. Soames.Para onde dá aquela porta?

– Para o meu quarto.– Esteve lá após sua descoberta?– Não, senhor, fui pedir o seu auxílio imediatamente.– Gostaria de vê-lo... Que quarto encantador, antigo! Peço-lhe que espere um minuto enquanto examino

o soalho. Não, não descubro coisa alguma. E esta cortina! Ah, vejo que guarda as suas roupas atrásdela. Se alguém tivesse de se esconder no quarto, só poderia ser aqui, já que a cama é muito baixa,e o armário, muito estreito. Ninguém aqui, creio eu?

Quando Holmes abriu a cortina, vi pela rigidez que estava preparado para qualquer emergência. Mas alinada havia, além de três ou quatro ternos de homem. Holmes virou-se e de repente abaixou-se paraexaminar o chão.

– Oh, o que é isto?Era um torrãozinho escuro, igual ao que víramos na escrivaninha.

Holmes colocou-o na palma da mão e examinou-o.– O visitante deixou vestígios em seu quarto, assim como no

escritório, sr. Soames.– O que ele poderia querer aqui?– Parece-me simples. O senhor surgiu inesperadamente e ele

não o notou até o senhor chegar à porta. Que poderia fazer?Agarrou em tudo o que denunciasse a sua presença eescondeu-se no quarto.

– Deus do céu, sr. Holmes, quer dizer que, enquanto eu falavacom Bannister nesta sala, poderíamos ter apanhado o homemno quarto?

– É a minha opinião.– Mas ainda há outra possibilidade, sr. Holmes. Parece-me que

o senhor não examinou a janela do meu quarto.– Sim, examinei, e sei que daria passagem a um homem.

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– Exatamente. E dá para um ângulo do pátio, de modo que fica parcialmente escondida. O homempoderia ter entrado por ali, deixando vestígios ao passar pelo quarto, e ter saído depois pela porta,ao encontrá-la aberta.

Holmes sacudiu a cabeça com impaciência.– Sejamos práticos – disse ele. – Creio tê-lo ouvido dizer que três estudantes se servem desta escada

e costumam passar diante de sua porta.– Exatamente.– E todos os três estão inscritos no exame de amanhã?– Estão.– Tem algum motivo para suspeitar de algum deles em especial?

Soames hesitou.– É uma pergunta muito delicada – disse ele. – Ninguém gosta de lançar suspeitas sem provas.– Ouçamos as suspeitas. Deixe as provas por minha conta.– Falarei, então, sobre o caráter dos três rapazes. O do andar de baixo é Gilchrist, bom estudante e

ótimo atleta; joga rúgbi e críquete pela faculdade. É um rapaz distinto, viril. Seu pai foi o célebre sirJabez Gilchrist, que se arruinou nas corridas de cavalos. O filho ficou muito pobre, mas é estudiosoe aplicado. Fará um bom exame.“No segundo andar mora Daulat Ras, o indiano. É um rapaz quieto, reservado, como em geral todosos seus compatriotas. Está preparado, embora grego seja o seu ponto fraco. Rapaz firme e metódico.“No andar de cima mora Miles McLaren. É brilhante quando se lembra de estudar, uma das maisvivas inteligências da universidade, mas é desorganizado e sem grandes princípios. Quase foi expulsono primeiro ano por causa de um jogo de cartas. Vadiou durante todo o semestre e creio que receiao exame de amanhã”.

– Então é dele que o senhor suspeita?– Não irei tão longe. Mas, dos três, é o mais provável.– Perfeitamente, sr. Soames. Agora, gostaria de falar com o seu criado, Bannister.

Bannister era um homem pequeno, barbeado, de cabelos grisalhos, aparentando mais ou menos cinqüentaanos. Ainda parecia sofrer as conseqüências dofato que perturbara a calma rotina de sua vida.Seu rosto apresentava contrações nervosas e asmãos tremiam-lhe.

– Estamos investigando o desagradávelincidente, Bannister – disse-lhe o patrão.

– Sim, senhor.– Pelo que entendi, deixou a chave na porta

– interveio Holmes.– Sim, senhor.– Não é estranho que tenha feito isso

justamente no dia em que as provas seencontravam no quarto?

– Foi uma infelicidade, senhor. Mas não é aprimeira vez que acontece.

– Quando foi que entrou no quarto?– Mais ou menos às quatro e meia. Era a

hora do chá do sr. Soames.

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– Quanto tempo ficou?– Ao ver que ele não estava, saí imediatamente.– Olhou os papéis que estavam na escrivaninha?– Não, senhor, claro que não.– Por que deixou a chave na porta?– Estava com a bandeja de chá nas mãos. Pensei em voltar para levar a chave, mas esqueci-me de

fazê-lo.– A porta de fora tem fechadura com trinco?– Não, senhor.– Então ficou aberta todo o tempo?– Sim, senhor.– Qualquer pessoa que estivesse no quarto poderia sair?– Sim, senhor.– Quando o sr. Soames voltou e o chamou, ficou muito perturbado?– Sim, senhor. Nunca aconteceu coisa igual, durante todos os anos que tenho estado aqui. Quase

desmaiei.– Foi o que me disseram. Onde estava, quando começou a se sentir mal?– Onde estava, senhor? Bem... aqui, perto da porta.– É estranho, pois foi sentar-se naquela cadeira, do outro lado. Por que passou por todas estas outras

cadeiras?– Não sei, senhor. Não me fazia diferença a cadeira onde me sentasse.

O professor interveio.– Não creio que ele possa dizer muita coisa, sr. Holmes. Estava muito perturbado, branco como um

lençol.– Ficou aqui depois que o seu patrão saiu?– Apenas um minuto ou dois. Depois fechei o quarto e fui para o meu.– De quem você desconfia?– Oh, eu não ousaria dizer, senhor. Não creio que haja um rapaz, nesta universidade, capaz de se

beneficiar com tal ato. Não, senhor, não posso acreditar.– Muito obrigado. É tudo – disse Holmes. – Oh, mais uma coisa. Não disse a nenhum dos três rapazes

o que tinha acontecido?– Não, senhor, nem uma palavra.– Não viu nenhum deles?– Não, senhor.– Muito bem. Agora, sr. Soames, vamos dar uma volta pelo pátio.

Três quadrados amarelos de luz brilhavam acima de nossas cabeças quando nos vimos no pátio, no meioda tarde que caía.

– Seus três pássaros estão no ninho – disse Holmes, erguendo os olhos. – Ora, ora! Parece que umdeles está muito agitado.

Era o indiano, cuja negra silhueta se desenhara de repente na cortina. Andava de um lado para outrodo quarto.

– Gostaria de dar uma olhada em cada um deles – disse Holmes. – Seria possível?– Sem a menor dúvida – disse o professor. – Esses quartos são os mais velhos da faculdade, e não é

raro virem visitá-los. Vamos, eu o apresentarei.– Nada de nomes, por favor! – pediu Holmes, quando chegamos à porta de Gilchrist.

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Fomos recebidos por um rapaz alto, magro, decabelos claros, que nos acolheu cordialmente,quando soube a que vínhamos. A arquiteturamedieval era de fato atraente. Holmes estava tãointeressado que insistiu em copiar algunsdesenhos em seu caderno de apontamentos, masquebrou o lápis e teve de pedir um emprestadoao dono do quarto, acabando por pedir uma facapara apontá-lo. A mesma coisa aconteceu noquarto do indiano, um rapaz quieto, de narizadunco, que nos olhou sem amabilidade e ficousatisfeito quando Holmes acabou com seusestudos arquitetônicos. Não achei que Holmestivesse obtido resultado em nenhum dos casos.Somente no terceiro é que nossa visita não surtiuefeito. Quando batemos, não somente não nosabriram a porta, como ainda ouvimos impropérios.

– Não me importa quem sejam! – gritou osujeito. – Podem ir para o inferno! Oexame é amanhã e não quero que meperturbem.

– Sujeito grosseiro – disse o professor, vermelho de cólera, quando nos afastamos. – Claro que nãosabia que era eu quem estava batendo, mas, de qualquer maneira, foi muito pouco amável, econvenhamos que a sua atitude é suspeita, dadas as circunstâncias.

A reação de Holmes foi curiosa.– Pode dizer-me qual a altura do rapaz? – perguntou.– Francamente, sr. Holmes, não posso dizer ao certo. É mais alto do que o indiano, não tanto como

Gilchrist. Creio que tem um metro e sessenta e cinco, aproximadamente.– Isso é muito importante – disse Holmes. – E agora, boa noite, sr. Soames.

O professor pareceu consternado.– Deus do céu, sr. Holmes, o senhor vai abandonar-me assim tão bruscamente? Não parece compre-

ender a situação. O exame é amanhã. Preciso tomar sérias providências hoje à noite. Não possopermitir que o exame se realize, uma vez que houve tão grande irregularidade. Temos de enfrentara situação.

– Deixe as coisas como estão. Virei aqui amanhã cedo e conversaremos sobre o caso. É possível queentão possa lhe indicar uma maneira de agir. Neste meio tempo, não faça nada. Nada.

– Muito bem, sr. Holmes.– Pode ficar tranqüilo, pois encontraremos uma saída. Levarei comigo o torrão de argila, assim como

as aparas do lápis. Até amanhã.Quando nos vimos na escuridão do pátio, erguemos de novo os olhos para as janelas. O indiano ainda

passeava para lá e para cá. Os outros estavam invisíveis.– Então, Watson, o que me diz? – perguntou Holmes quando chegamos à rua. – Jogo de salão, hein?

O truque das três cartas. Lá estão seus três homens. Escolha um. Qual deles?– O sujeito malcriado, do andar de cima. É o que tem a pior ficha. Mas o indiano também pareceu um

sujeito dissimulado. Por que haveria de andar de um lado para outro, o tempo todo?

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– Isso não quer dizer nada. Muitas pessoas gostam de andar, quando estão decorando qualquer coisa.– Ele olhou-nos de maneira estranha.– Você faria o mesmo se um bando de desconhecidos lhe caísse em cima, na véspera do exame,

quando cada minuto tem importância. Não, nada vejo aí. Lápis e facas, tudo em ordem. Mas aquelesujeito deixa-me perplexo.

– Quem?– Bannister, o criado. Qual será o seu jogo?– Pareceu-me um homem honesto.– A mim também. Isso é que me deixa perplexo. Por que haveria um homem honesto de... bem, ali

está uma papelaria. Começaremos nossa busca por aqui.Havia apenas quatro papelarias de alguma importância na cidade. Em todas elas, Holmes mostrou as

aparas de lápis e pediu um lápis da mesma marca. Todos disseram que poderiam encomendar, mas que nãoeram de tamanho comum, e que nunca tinham tido daquele tipo em estoque. Holmes não pareceu aborrecidocom o fracasso. Encolheu os ombros, resignado.

– Não adianta, Watson. Era nossa melhor pista, e deu em nada! Mas creio que o caso se manterá depé, mesmo sem isso. Deus meu! São quase nove horas e a senhoria falou em servir ervilhas àssete e meia. Com a sua mania de fumar, Watson, e a sua falta de pontualidade às refeições, creioque logo receberá o bilhete azul, e terei de lhe fazer companhia. Mas nunca antes de termosresolvido o problema do professor nervoso, do criado descuidado e dos três estudantes audaciosos.

Holmes não fez mais alusão ao caso, embora tivesse ficado pensativo durante muito tempo, após nossotardio jantar.

No dia seguinte, às oito da manhã, entrou em meu quarto, justamente quando eu acabava de me vestir.– Bem, Watson, está na hora de irmos para a universidade. Pode passar sem seu café?– Claro que sim.– Soames deve estar sobre brasas, à espera de que eu lhe diga algo positivo.– E tem alguma coisa de positivo para lhe dizer?– Creio que sim.– Chegou a uma conclusão?– Sim, caro Watson. Resolvi o mistério.– Mas que novos indícios conseguiu?– Ah!... Não foi à toa que saí da cama a hora tão imprópria: seis da manhã! Trabalhei duramente, e

caminhei pelo menos oito quilômetros. Mas o resultado valeu a pena. Olhe para isto aqui!Holmes abriu a mão, e nela vi três torrõezinhos de terra escura.

– Mas, Holmes, ontem você só tinha dois!– E mais um hoje de manhã. Creio que tenho um bom argumento: de onde veio o número 3, vieram

também os números 1 e 2. Então, Watson?... Vamos tranqüilizar o amigo Soames.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O infeliz professor estava em um deplorável estado de agitação, quando o visitamos em seus aposentos.Dali a poucas horas começaria o exame e ele ainda se encontrava num dilema, sem saber se cancelaria aprova, tornando o fato público, ou se permitiria que o culpado concorresse à bolsa de estudos. Mal podiamanter-se de pé, tal a sua agitação, e correu para Holmes de mãos estendidas, assim que o viu aparecer.

– Graças a Deus, chegou! Receei que tivesse desistido por não ter esperanças. Que devo fazer? Permitirque o exame se realize?

– Sem a menor dúvida.– Mas... e o malandro?

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– Ele não concorrerá.– O senhor sabe quem é?– Creio que sim. Para que o caso não se torne público, temos de nos atribuir certos poderes e organizar

uma pequena corte marcial. Fique ali, Soames. Watson, você aqui! Ficarei na poltrona do centro.Creio que estamos suficientemente imponentes para lançar o terror numa alma culpada. Faça ofavor de tocar a campainha.

Bannister apareceu, mas recuou, surpreso e amedrontado, ante nossa aparência de juízes.– Faça o favor de fechar a porta – disse Holmes. – Agora, Bannister, quer ter a bondade de contar a

verdade sobre o incidente de ontem?O homem empalideceu.

– Contei tudo, senhor.– Nada tem a acrescentar?– Nada, senhor.– Então, vou fazer algumas sugestões. Quando você se sentou naquela cadeira, ontem, não o fez para

esconder um objeto que teria denunciado quem estivesse no quarto?Bannister estava simplesmente lívido.

– Não, senhor, claro que não.– É apenas uma sugestão – disse Holmes suavemente. – Confesso que nada poderia provar. Mas

parece plausível, já que, assim que o sr. Soames virou as costas, você libertou o homem que estavano outro quarto.

Bannister molhou os lábios secos.– Não havia homem nenhum, senhor.– É uma pena, Bannister. Até aqui, você falou a verdade, mas agora sei que mentiu.

O criado tinha um ar de sombrio desafio.– Não havia homem nenhum, senhor.– Vamos, Bannister.– Não, senhor, não havia ninguém.– Nesse caso, não pode dar-nos nenhuma

informação. Quer fazer o favor de ficarnesta sala? Agora, Soames, gostaria quefosse até o quarto do estudante Gilchrist,para pedir-lhe que venha até aqui.

Dali a momentos, o professor voltou com oaluno. Era um rapaz simpático, alto, ágil, de andarvivo e rosto franco. Os olhos azuis viram-nos derelance, parecendo perturbados, e finalmentedetiveram-se, com expressão consternada, emBannister, que estava a um canto.

– Feche a porta – disse Holmes. – Agora,sr. Gilchrist, estamos sós, e ninguémjamais precisará saber o que se passouaqui entre nós. Podemos falar comabsoluta franqueza. Queremos saber, sr.Gilchrist, como o senhor, um homemhonrado, chegou a cometer um ato como

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o de ontem.O infeliz rapaz cambaleou, olhando para Bannister

com horror e censura.– Não, não, sr. Gilchrist, não disse uma palavra,

nem uma palavra! – gritou o criado.– Não; mas disse agora – declarou Holmes. –

Vamos, rapaz, pode ver pelas palavras deBannister que a sua situação é melindrosa e quesua única esperança está numa confissão franca.

De mãos erguidas, Gilchrist tentou, durante algunssegundos, dominar-se. Depois, atirou-se de joelhos aochão, ao lado da escrivaninha, escondeu o rosto nas mãose rompeu em soluços.

– Vamos, vamos – disse Holmes bondosamente.– Errar é humano, e pelo menos ninguém podeacusá-lo de ser reincidente. Talvez ache melhorque eu conte ao sr. Soames o que aconteceu.Poderá corrigir-me, se eu estiver enganado.Posso começar? Bem, não precisa responder.Ouça, e verá que não sou injusto.

Holmes dirigiu-se ao professor.– No momento em que me disse que ninguém,

nem mesmo Bannister, poderia saber que as

provas se encontravam em seu quarto, sr. Soames, ocaso começou a definir-se em minha mente. Quantoao tipógrafo, claro que devia ser afastado. Ele poderiater examinado as provas na oficina. Também não penseino indiano. Se as provas estavam enroladas, ele nãopoderia tê-las reconhecido quando veio ao seu quarto.Por outro lado, parecia uma incrível coincidência queum rapaz ousasse entrar em seu quarto e que por acasoencontrasse ali as provas nesse dia. Afastei essa idéia.Mas, então, como poderia ele ter sabido?

“Quando me aproximei do seu quarto, examinei ajanela. O senhor divertiu-me, supondo que eu admitiaa hipótese de alguém ter ousado penetrar aqui em plenodia, à vista dos outros quartos. A idéia era absurda. Masna verdade eu estava tentando verificar de que alturaprecisaria ser um homem para poder enxergar, ao passarpela janela, as provas que se encontravam sobre aescrivaninha. Tenho um metro e oitenta de altura, e sóo consegui com dificuldade. Nenhum homem maisbaixo poderia espreitar para dentro do quarto. Achei,portanto, que se um dos seus estudantes fosse muito

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alto, era sobre ele que deveriam recair as nossas suspeitas. Entrei em seu quarto, sr. Soames, e aodescrever-me os estudantes o senhor disse que Gilchrist era atleta, saltador. Vi imediatamente comotudo se dera. Precisava apenas obter provas, o que não me foi difícil.“Eis o que aconteceu. O rapaz passara a tarde no campo de atletismo, exercitando-se em salto.Voltou, calçando os sapatos de atletismo, os quais, como o senhor sabe, têm solas com travas. Aopassar por sua janela, viu, por ser muito alto, que as provas estavam sobre a escrivaninha. Nada demau teria acontecido se ele não tivesse visto, ao passar pela porta, a chave que o criado ali esquecera.Teve a súbita tentação de entrar, para ver se realmente eram as provas. Não era muito arriscado,pois sempre poderia dizer que entrara para fazer uma pergunta.“Pois bem, quando viu que eram realmente as provas, sucumbiu à tentação. Pôs os sapatos naescrivaninha”. Holmes dirigiu-se ao rapaz: – O que foi que pôs na cadeira perto da janela?

– As luvas – respondeu Gilchrist.Holmes olhou para Bannister com ar de triunfo.

– Pôs as luvas na cadeira e levou as provas, uma a uma, para copiá-las perto da janela. Calculou que oprofessor voltaria pelo portão principal e que dali poderia vê-lo chegar. Mas, como sabemos, o sr.Soames entrou pelo portão lateral. De repente, o rapaz ouviu-o à porta. Não podia fugir. Esqueceuas luvas, mas agarrou os sapatos e escondeu-se no quarto de dormir. Podem ver que o rasgo daescrivaninha é leve de um lado, mas que se aprofunda na direção do quarto. Isso basta para nosprovar que foi esse o rumo que o culpado tomou. A terra à volta de uma trava ficou na escrivaninha,e um segundo torrão caiu no quarto. Participo-lhes que fui a pé até o campo de atletismo, hoje demanhã, vi a argila escura que existe no campo de treino de saltos e trouxe uma amostra, salpicadada serragem que usam para que os atletas não escorreguem. Disse a verdade, sr. Gilchrist?

O estudante erguera-se.– Sim, senhor, é a verdade.– Deus do céu, nada mais tem a dizer? – exclamou Soames.– Sim, senhor, tenho, mas o choque deixou-me perturbado. Tenho aqui uma carta, sr. Soames, que lhe

escrevi no meio de uma noite inquieta.Foi escrita antes de saber que o meu crimefora descoberto. Aqui está. O senhor veráo que escrevi: ‘Resolvi não fazer o exame.Ofereceram-me um lugar na polícia daRodésia, e sigo imediatamente para aÁfrica do Sul’.

– Fico satisfeito por ver que não pretendiaaproveitar-se da vantagem que obteve –disse Soames. – Mas por que mudou deidéia?

Gilchrist indicou Bannister.– Ali está o homem que me pôs no bom

caminho – disse ele.– Vamos lá, Bannister – disse Holmes. –

Pelo que eu disse, bem vê que a únicapessoa que poderia libertar o rapaz seriavocê mesmo, já que ficou aqui no quartoe fechou a porta depois de sair. Quanto à

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hipótese de ele ter saltado pela janela, é inadmissível. Não quer esclarecer esse último ponto domistério e explicar a razão do seu ato?

– Era muito simples, mas há um fato que, apesar de toda a sua inteligência, o senhor não poderiasaber. Durante um certo tempo fui mordomo de sir Jabez Gilchrist, pai do rapaz. Quando ele perdeua fortuna, vim ser criado aqui na universidade, mas não me esqueci de meu patrão, pelo fato deestar por baixo na vida. Cuidei do filho dele como pude, por amor aos velhos tempos. Pois bem,senhor, quando ontem vim até aqui, depois do incidente, a primeira coisa que vi foram as luvas dosr. Gilchrist naquela cadeira. Conhecia as luvas e sabia o que a sua presença significava. Se o sr.Soames as visse, estaria tudo perdido. Caí na cadeira e ninguém dali me tiraria, até o sr. Soames sairà sua procura. Depois, meu patrãozinho saiu do quarto, ele que eu carregara ao colo, e confessou-me tudo. Não era natural que eu o salvasse, e não era também natural que eu lhe falasse como o seuvelho pai teria feito, se fosse vivo? Procurei fazer com que compreendesse que não poderia aproveitar-se do que fizera. O senhor censurar-me-ia?

– Não, nunca! – exclamou Holmes, erguendo-se. – Pois bem, Soames, desvendamos o mistério, eo café está à nossa espera. Venha, Watson. Quanto ao senhor, sr. Gilchrist, espero que tenha umbrilhante futuro na Rodésia. Por uma vez, deixou-se cair; vejamos a que altura poderá elevar-seno futuro.

O PINCENÊ DOURADOQuando olho para os três maciços volumes onde estão registradas as nossas atividades do ano de 1894,

confesso que tenho dificuldade em escolher, entre tão rico material, os casos mais interessantes e que aomesmo tempo possam evidenciar as extraordinárias qualidades que tornaram Sherlock Holmes famoso. Aovirar as páginas, encontro minhas notas sobre a repulsiva história da sanguessuga vermelha e sobre a horrívelmorte do banqueiro Crosby. Vejo também a tragédia Addleton e a famosa herança de Smith-Mortimer, assimcomo a prisão de Huret, o assassino do bulevar – este último caso valeu a Holmes uma carta de agradecimento

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escrita de próprio punho do presidente da França, bem como a Legião de Honra.Cada um desses casos daria uma história, mas, em minha opinião, nenhum deles reúne pontos tão singu-

lares como o episódio de Yoxley Old Place, onde estão incluídos não somente a lamentável morte do jovemWilloughby Smith como os acontecimentos seguintes, que fizeram luz sobre as causas do crime.

Era uma noite tempestuosa, em fins de novembro. Holmes e eu tínhamos ficado em silêncio durante todaa noite, ele decifrando com uma lente a inscrição original de um palimpsesto, e eu lendo um novo tratadosobre cirurgia. O vento ululava na Baker Street e a chuva batia furiosamente nas janelas. Estranho que ali, nomeio da cidade, cercados pelos produtos do esforço humano num raio de quinze quilômetros, pudéssemossentir a natureza e saber que, para a força dos elementos, Londres não era mais do que os moinhos de ventoespalhados pelos campos. Fui até a janela e olhei para a rua deserta. Vinha um único carro, do lado daOxford Street.

– Ainda bem que não temos de sair hoje à noite, Watson – disse Holmes, largando a lente e o palimp-sesto. – Já trabalhei bastante. É serviço que cansa os olhos. Pelo que parece, não há nada nele demuito interessante. Data da segunda metade do século XV. Ora, mas o que é isso?

Em meio aos gemidos do vento, ouvimos o ruído de patas de cavalo e de uma roda raspando a guia. Ocarro que eu vira parou à nossa porta.

– O que quererá ele? – perguntei, quando vi um homem descer.– O que quer ele? Procura-nos – respondeu Holmes. – E nós, caro Watson, queremos sobretudos,

galochas e todas as coisas que os homens inventaram para lutar contra o tempo. Espere um pouco!O carro vai embora. Ainda há esperança. Ele o teria feito esperar se quisesse que o acompanhásse-mos. Vá abrir a porta, caro amigo, pois as pessoas virtuosas já estão na cama há muito tempo.

Quando a luz da lâmpada do vestíbulo caiu sobre ovisitante, não tive dificuldade em reconhecê-lo. EraStanley Hopkins, um detetive de futuro, por quemHolmes muito se interessava.

– Ele está? – perguntou-me o rapaz ansiosamente.– Suba, caro senhor – disse Holmes lá de cima. –

Espero que não tenha desígnios a nossorespeito, em noite tão tempestuosa.

O detetive subiu a escada e a luz brilhou em seuimpermeável molhado. Ajudei-o a retirá-lo enquantoHolmes avivava o fogo na lareira.

– Agora, caro Hopkins, venha aquecer-se – disseHolmes. – Tome um charuto; o doutor tem umareceita de água quente e limão que é ótima parauma noite assim. Deve ser importante oassunto que o trouxe aqui, com esse tempo.

– É verdade, sr. Holmes. Tive uma tarde cheia,pode estar certo. Leu alguma coisa, nos jornaisda tarde, sobre o caso Yoxley?

– Hoje não passei do século XV – disse Holmes.– Pois bem, saiu apenas um parágrafo e mesmo

assim errado, de modo que não perdeu nada.O caso deu-se em Kent, a onze quilômetros deChatham e a cinco da linha férrea. Recebi um

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telegrama às três e quinze, cheguei a Yoxley Old Place às cinco, fiz as minhas investigações e depoisvim diretamente para cá, pelo último trem.

– E isso quer dizer que não tem grande certeza quanto ao caso?– Quer dizer que, para mim, ele não tem pé nem cabeça. A julgar pelas aparências, é o caso mais

complicado que já tive, embora a princípio parecesse muito simples. Não existe motivo, sr. Holmes;é o que me aborrece. Não existe o menor motivo. Temos um homem morto... disso não há dúvida;mas, ao que parece, ninguém no mundo tinha razões para desejar a sua morte.

Holmes acendeu o charuto e recostou-se na cadeira.– Vamos ouvir a história – disse ele.– Os fatos são muito claros – explicou Stanley Hopkins. – Só o que quero saber é o que significam. A

história é a seguinte: há anos, essa casa de campo, Yoxley Old Place, foi alugada por um homem deidade, que disse chamar-se professor Coram. É um inválido que passa a maior parte do tempo nacama e o resto a andar pela casa com sua bengala, ou empurrado numa cadeira de rodas pelojardineiro. Causou boa impressão aos poucos vizinhos que o visitaram, tendo a reputação de sermuito culto. Na casa há duas empregadas, a governanta; a sra. Marker, já de idade, e uma criadinha,Susan Tarlton. Estão com ele desde que chegou e parecem pessoas muito dignas. O professor estáescrevendo um livro e achou necessário, há um ano, empregar um secretário. Os dois primeirosque ele escolheu não serviram. Mas o terceiro, o sr. Willoughby Smith, um rapaz recém-saído dauniversidade, parece que agradou muito ao professor. Sua função era escrever, a manhã inteira, oque o professor lhe ditava, e geralmente passava a tarde à procura de passagens e referências quepudessem ser de interesse para o trabalho do dia seguinte. Esse Willoughby Smith era um bomsujeito, e nada encontramos em seu desabono, nem em criança, como aluno em Uppingham, nemcomo rapaz, em Cambridge. Sempre foi estudioso, sem nenhuma falha de caráter. E no entanto, foiesse rapaz que encontrou a morte hoje de manhã, no escritório do professor, em circunstâncias queindicam tratar-se de assassinato.

O vento gemia contra as janelas. Holmes e eu aproximamo-nos ainda mais do fogo, enquanto o detetivecontinuava sua singular narrativa.

– Se o senhor tivesse de procurar em toda a Inglaterra, não creio que pudesse encontrar um lar maiscalmo e livre de influências estranhas – continuou Hopkins. – Durante semanas, nenhuma daspessoas da casa ia além do portão do jardim. O professor ficava mergulhado no trabalho; nada maisexistia para ele. O secretário não conhecia ninguém na vizinhança e levava a mesma vida do patrão.As duas mulheres também não saíam. Mortimer, o jardineiro, que é quem empurra a cadeira derodas, é um velho soldado da Guerra da Criméia e ótimo sujeito. Não mora na casa, mas numadependência na extremidade do jardim. São as únicas pessoas que o senhor encontrará em YoxleyOld Place. Por outro lado, o portão do jardim fica a cem metros da estrada que liga Londres aChatham. Tem um trinco, e nada impediria que qualquer pessoa entrasse por ali.“Vou agora contar-lhes as declarações de Susan Tarlton, a única pessoa que pode dizer algo positivo.O fato deu-se entre as onze horas e o meio-dia. Ela estava ocupada colocando umas cortinas noquarto da frente, no andar de cima. O professor Coram ainda estava na cama, pois, com o mautempo, raramente se levanta antes do meio-dia. A governanta estava trabalhando nos fundos dacasa. Willoughby Smith estivera em seu quarto, que servia também de saleta, mas a criada ouvira-opassar pelo corredor e descer para o escritório, logo por baixo da sala onde ela se encontrava. Ajovem não o viu, mas disse que não poderia enganar-se quanto aos passos firmes, rápidos. Nãoouviu a porta do escritório fechar-se, mas dois ou três minutos depois ouviu um grito horrível,partindo de lá. Grito tão pavoroso, rouco e estranho, que tanto poderia ser de homem como de

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mulher. Logo em seguida houve um ruído pesado, que sacudiu a casa; depois, silêncio. A criadaficou petrificada por um momento, mas depois, enchendo-se de coragem, correu para baixo. Aporta do escritório estava fechada. A moça abriu-a. O secretário, Willoughby Smith, estava estendidono chão. A princípio não percebeu que ele estava ferido e procurou erguê-lo, mas depois viu que osangue lhe jorrava do pescoço. Havia ali um corte pequeno, mas profundo, que abrira a carótida. Aarma do crime estava no tapete, ao lado do rapaz. Era uma dessas faquinhas usadas para lacrarcartas, que se encontra em todas as escrivaninhas antigas, de cabo de marfim e lâmina afiada. Faziaparte dos objetos da escrivaninha do professor Coram.“A princípio a criada pensou que o rapaz estivesse morto, mas depois, ao molhar-lhe a fronte comágua da jarra, viu-o abrir os olhos por um instante. ‘O professor... foi ela’, murmurou o secretário. Acriada está pronta a jurar que foram exatamente estas as palavras. Ele tentou desesperadamentedizer alguma coisa, com a mão direita erguida, mas logo em seguida caiu morto.“Entrementes, a governanta também chegara, mas não a tempo de ouvir as últimas palavras dorapaz. Deixando Susan com o cadáver, correu para o quarto do professor. Encontrou-o sentado nacama, muito agitado, pois ouvira o suficiente para estar convencido de que algo terrível acontecera.A sra. Marker está pronta a jurar que o professor ainda estava com as roupas de dormir, e de fato é-lhe impossível vestir-se sem o auxílio de Mortimer, que tinha por obrigação subir ao meio-dia. Oprofessor declara que ouviu o grito, mas nada mais pôde informar. Não sabe explicar as últimaspalavras do rapaz, ‘o professor... foi ela’, mas imagina que tenham sido ditas inconscientemente. Emsua opinião, o secretário não tinha um inimigo sequer, e não pode atinar com um motivo para ocrime. Seu primeiro cuidado foi mandar Mortimer, o jardineiro, avisar a polícia. O inspetor dalocalidade mandou logo chamar-me. Não tinham tocado em nada até eu chegar, e haviam sidodadas ordens peremptórias para que ninguém andasse na alameda que conduzia à casa. Teria sidoótima oportunidade para o senhor pôr em prática suas teorias, sr. Sherlock Holmes. Não faltavacoisa alguma”.

– Com exceção de Sherlock Holmes! – disse meu amigo, com um sorriso um tanto amargo. – Poisbem, ouçamos o fim. Que fez você?

– Primeiro, quero que veja esta planta, meio rabiscada, que lhe dará uma idéia da posição dos quartos.Creio que isso o ajudará a acompanhar os passos que dei na investigação.

Hopkins abriu a planta e estendeu-a sobre os joelhos de Holmes. Levantei-me e fui postar-me ao lado domeu amigo.

– É apenas um rabisco, para mostrar os pontos que julgo essenciais. O resto o senhor verá mais tardepor si mesmo. Agora, em primeiro lugar, presumindo-se que o assassino tenha entrado na casa, por

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onde entrou? Sem dúvida, pela alameda do jardim e pela porta do fundo, de onde se tem acessodireto ao escritório. Qualquer outra entrada teria sido muito complicada. A fuga deve ter-se dadotambém por aí, pois as duas outras saídas não serviam, visto que uma estava bloqueada por Susan,que descera correndo, e a outra conduz ao quarto do professor. Posto isso, dediquei toda a atençãoà alameda do jardim, que estava molhada por chuva recente e onde certamente haveria pegadas.“O exame mostrou-me que estava lidando com um criminoso cauteloso e sabido. Não havia pegadas,mas alguém andara pela relva que margina a alameda, e essa pessoa agira assim para não deixarvestígios. Não encontrei impressões distintas, mas a relva estava pisada, indicando que alguémpassara por ali. Só poderia ter sido o assassino, já que ninguém, nem mesmo o jardineiro, andarapor ali naquela manhã, e a chuva caíra durante a noite”.

– Um momento – interrompeu Holmes. – Aonde conduz essa alameda?– À estrada.– Qual a distância?– Uns cem metros, mais ou menos.– Mas no trecho em que a alameda passa pelo portão, sem dúvida você poderia encontrar pegadas.– A alameda é calçada naquele ponto, infelizmente.– E na estrada?– Também não. A lama estava toda pisada.– Mas as pegadas na relva... iam, ou vinham?– Impossível dizer. Eram imprecisas.– Pé grande ou pequeno?– Não dava para ver.

Holmes teve um gesto impaciente.– Tem chovido e ventado desde então – disse ele. – Agora, seria mais difícil ler o que está escrito ali do

que neste palimpsesto. Paciência. Mas o quevocê fez, Hopkins, depois que se certificoude que não tinha se certificado de coisaalguma?

– Creio que me certifiquei de muita coisa, sr.Holmes. Sabia que alguém entrara na casacom cuidado. Examinei em seguida o cor-redor. Ali há um tapete de crina, de modoque não há qualquer espécie de marca. Ocorredor levou-me ao escritório, escassa-mente mobiliado. A peça principal é umavasta escrivaninha; há também um arqui-vo. Este consta de uma dupla coluna de ga-vetas, com um armariozinho central entreelas. As gavetas estavam abertas, o arma-riozinho, fechado. Parece que as gavetasnunca são fechadas à chave, pois nada exis-te de valor dentro delas. No armariozinhohavia alguns documentos importantes, masnão tinham sido tocados, e o professor ga-rantiu-me que nada faltava. Não há dúvida

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de que não houve roubo.“Chegamos agora ao cadáver: foi encontradono escritório perto da escrivaninha, um poucoà esquerda, como está marcado no mapa. Oferimento, no lado direito do pescoço, vemde trás para diante, de modo que é impossíveltratar-se de suicídio”.

– A não ser que ele tenha caído sobre a faca –observou Holmes.

– Exatamente. Também pensei nisso; mas a facafoi encontrada um pouco longe do corpo, demodo que essa hipótese pode ser afastada.Além disso, temos de levar em consideraçãoas últimas palavras do rapaz. E, finalmente,temos esse indício importante, encontradona mão fechada do rapaz.

Hopkins tirou um embrulhozinho do bolso. Abriu-o e mostrou-nos um pincenê dourado, do qualpendiam dois pedaços de cadarço de seda preta.

– Willoughby Smith tinha uma ótima vista –disse ele. – Não há dúvida de que o pincenêfoi arrancado à pessoa que o matou.

Sherlock Holmes apanhou o pincenê e examinou-o com grande interesse. Colocou-o sobre o nariz, tentouler com ele, foi até a janela e olhou a rua através das lentes, examinou-o sob a lâmpada da sala e finalmente,com um estalido da língua, sentou-se e escreveu qualquer coisa num papel, que entregou depois a StanleyHopkins.

– É o máximo que posso fazer por você – disse ele. – Pode ser que adiante.O atônito detetive leu em voz alta:

“Procura-se uma mulher bem-vestida. Nariz grosso, olhos muito juntos um dooutro. Testa franzida, pálpebras contraídas e, provavelmente, ombros arredondados.É de se prever que tenha procurado um oculista pelo menos duas vezes nos últimosmeses. Como as lentes são muito fortes e os oculistas pouco numerosos, não haverádificuldade em encontrar-lhe a pista”.

Holmes sorriu do espanto de Hopkins, que se refletia em meu rosto.– Minhas deduções são muito simples – disse ele. – Não há melhor artigo do que um par de óculos

para o campo das deduções, e mais ainda quando são óculos extraordinários como estes aqui.Suponho que pertençam a uma mulher, por sua delicadeza e também pelas últimas palavras davítima. Quanto a ser pessoa de gosto e bem-vestida, você poderá deduzi-lo pelo pincenê de ouromaciço, e é inadmissível que uma pessoa que use tais óculos seja descuidada em outros pontos.Pode ver, Hopkins, que o cavalete do pincenê é largo demais para seu nariz, o que indica que o narizda dama em questão é muito grosso. Esse tipo de nariz geralmente é curto e comum, mas háexceções, de modo que não quis ser dogmático e não insisti nesse particular em minha descrição.Meu rosto é fino e, mesmo assim, não consigo focalizar o olhar no centro das lentes. Portanto,chego à conclusão de que os olhos da dama são muito próximos do nariz. Bem vê, Watson, que aslentes são côncavas e muito fortes. Uma pessoa que tenha tão grande deficiência visual deve ter as

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características dessa deficiência, de onde deduzi a testa franzida e os ombros arredondados.– Sim, compreendo – respondi. – Mas confesso que não sei como você conseguiu chegar à conclusão

das duas visitas ao oculista.Holmes mostrou-me o pincenê.

– Veja que os dois suportes do cavalete são forrados de cortiça, para suavizar a pressão da mola sobreo nariz. Um deles está gasto, mas o outro, novo. Evidentemente, um caiu e foi substituído. Masparece-me que o mais velho tem poucos meses de uso. Ambos são iguais, de modo que calculo quea mulher tenha voltado à mesma ótica.

– Meu Deus, é admirável! – exclamou Hopkins. – Pensar que tive todos esses indícios nas mãos e nãosoube aproveitá-los! Mas eu pretendia procurar os oculistas de Londres.

– Claro que pretendia. Nesse meio tempo, tem mais alguma coisa a contar-nos?– Nada, sr. Holmes. Creio que o senhor sabe tanto quanto eu, ou talvez mais. Mandei indagar a

respeito de qualquer estranho nas redondezas ou nas estações de trem. Nada apuramos. O queme causa espanto é a ausência absoluta de motivos para o crime. Ninguém pode sugerir o menorque seja.

– Ah, nesse ponto não posso ajudá-lo. Mas tenho certeza de que deseja que o acompanhemos amanhã.– Se não for pedir demais, sr. Holmes. Sai um trem para Chatham às seis da manhã e chegaríamos a

Yoxley Old Place entre as oito e as nove horas.– Então, está combinado. O caso é interessante, e terei prazer em auxiliá-lo. Pois bem, é quase uma

hora e acho que devemos procurar dormir um pouco. Parece-me que você ficará bem aí no sofá,diante da lareira. Acenderei a espiriteira e dar-lhe-ei uma xícara de café antes de partirmos.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .O vento cessara de soprar no dia seguinte, mas o tempo ainda continuava feio quando partimos. Vimos o

frio sol de inverno sobre os pântanos que ladeiam o Tâmisa, e que sempre me lembrarão os primeiros diasde nossa carreira. Após uma viagem cansativa, descemos numa estaçãozinha a alguns quilômetros de Chatham.Enquanto atrelavam um carro, fizemos uma refeição rápida na estalagem local, e, quando chegamos à casado crime, estávamos prontos a iniciar nosso trabalho. Um policial recebeu-nos no jardim.

– Então, Wilson, há novidades?– Não, senhor, nada.– Nenhuma notícia a respeito de um estranho nas redondezas?– Nada. Na estação todos têm certeza de que não chegou nem partiu nenhum estranho, ontem.– Mandou saber nas estalagens e pensões?– Mandei, senhor, e nada apuramos.– Pois bem, não é muito grande a caminhada até Chatham. Qualquer pessoa poderia ter ficado lá, ou

apanhado um trem, sem ser notada. Aqui está a alameda de que lhe falei, sr. Holmes. Posso garantir-lhe que nela não havia pegadas ontem.

– De que lado da relva estavam as marcas?– Deste lado. Há uma pequena faixa de relva entre a alameda e o canteiro. Agora não as distingo, mas

ontem podiam ser notadas.– Sim, sim, alguém passou por aqui – disse Holmes, inclinando-se sobre a relva. – A mulher deve ter

caminhado com cuidado, pois viu que, de um lado, deixaria pegadas na alameda e, do outro, nocanteiro. Não é isso mesmo?

– Sim, senhor, deve ter usado de cautela.Vi uma expressão de interesse no rosto de Holmes.

– Então você acha que ela voltou por aqui?

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– Sim, senhor, não há outro caminho.– Por esta faixa de relva?– Sem dúvida, sr. Holmes.– Hum... Feito extraordinário, sem a menor dúvida. Pois bem, acho que não há mais nada para se

ver aqui. Vamos continuar. Esta porta para o jardim geralmente fica aberta, não é verdade? Entãoa visitante não teve dificuldade em entrar. A idéia do crime não estava em seu espírito, pois docontrário teria trazido uma arma, em vez de apanhar a faca na escrivaninha. Ela passou pelocorredor sem deixar marcas na passadeira. Depois, viu-se no escritório. Quanto tempo ficou ali?Não podemos saber.

– Apenas alguns minutos. Esqueci-me de dizer que a sra. Marker, a governanta, ali estivera pouco antespondo as coisas em ordem. Um quarto de hora antes, pelo que ela calcula.

– Bem, isso nos dá um limite. A mulher entra no escritório. Vai até a escrivaninha. Para quê? Não pararemexer nas gavetas. Ela estava interessada no compartimento superior do móvel, que fica trancado.Esperem, que risco é este? Acenda um fósforo, Watson. Por que não me falou nisso, Hopkins?

A marca que ele examinava começava no metal, do lado direito da fechadura, e estendia-se por onzecentímetros, invadindo o verniz da madeira.

– Eu tinha notado o risco, sr. Holmes. Mas a gente sempre encontra riscos perto de fechaduras.– Este é recente, bem recente. Veja como o metal está brilhante, no ponto onde foi riscado. Um risco

antigo teria a mesma cor da superfície. Examine-o com minha lente. Veja também o pó do verniz, decada lado do sulco. A sra. Marker está aqui?

Dali a pouco surgiu uma senhora de idade, de aparência tristonha.– A senhora limpou este móvel ontem? – perguntou Holmes.– Sim, senhor.– Notou este risco?– Não, senhor.– Tenho certeza de que não, pois o espanador

teria tirado este pozinho de verniz. Quemguarda a chave deste móvel?

– O professor a leva na corrente do relógio.– É uma chave simples?– Não, senhor, é uma chave de cadeado.– Muito bem. Pode se retirar, sra. Marker.

Holmes voltou-se para nós:– Estamos fazendo alguns progressos. A mulher

entra no escritório, avança para o arquivo eabre-o, ou tenta abri-lo. É surpreendida pelosecretário, Willoughby Smith. Na pressa deretirar a chave, risca a madeira. O rapazsegura-a, e ela, agarrando o primeiro objetoque encontra, e que acontece ser a faca,golpeia-o para que a solte. O ferimento é fatal.O rapaz cai e ela foge, com ou sem o objetoque veio procurar. Querem fazer o favor de chamar Susan, a criada?

Susan apareceu imediatamente, e Holmes perguntou-lhe:– Alguém podia ter fugido por aquela porta depois de você ter ouvido o grito, Susan?

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– Não, senhor. Impossível. Antes de descer a escada, eu teria visto qualquer pessoa que estivesse nocorredor. Além disso, a porta não foi aberta, pois do contrário eu teria ouvido o ruído.

– Então, esse meio de fuga está fora de cogitação. Não há dúvida de que a mulher saiu por ondeentrou. Parece que este outro corredor conduz ao quarto do professor. Não há saída por este lado?

– Não, senhor.– Vamos conhecer o professor. Ora, Hopkins, isso é importante, muito importante! O corredor do

professor também tem passadeira de crina.– É verdade, mas o que tem isso?– Não vê a importância que tem no caso? Bem, bem, não insisto, então. Com certeza estou enganado.

Mas parece-me sugestivo. Venha apresentar-nos ao dono da casa.Passamos pelo corredor, que era do mesmo comprimento do outro que levava ao jardim. Nosso guia

bateu, fazendo-nos depois entrar no quarto do professor.Era um quarto grande, com muitos livros. Como não cabiam todos nas prateleiras, havia pilhas nos

cantos e no chão, na base das estantes. A cama estava no centro do quarto, e ali, recostado contra ostravesseiros, encontramos o dono da casa. Nunca vi pessoa mais extraordinária. Rosto esquálido, aquilino,olhos negros, fundos e penetrantes, sob grossas sobrancelhas. A barba e os cabelos eram brancos, mas aprimeira estava amarelada à volta da boca. Um cigarro pendia em meio à barba e a atmosfera do quartoera pesada devido ao cheiro de sarro. Quando ele estendeu a mão a Holmes, notei que tinha uma manchaamarela causada pela nicotina.

– Fuma, sr. Holmes? – perguntou ele, num inglês cuidado e um tanto pedante. – Aceite um cigarro.E o senhor?... Posso recomendar estes cigarros, pois foram preparados especialmente para mimpor Ionides, de Alexandria. Ele me manda mil de cada vez, e é com pesar que digo que faço umaencomenda de quinze em quinze dias. Mau, mau, senhor, mas um velho tem poucos prazeres navida! O fumo e o meu trabalho... é só o que me resta.

Holmes acendera um cigarro e lançava olhares rápidos por todo o quarto.– O fumo e o meu trabalho, mas agora somente o fumo – continuou o velho. – Ah, que triste interrupção!

Quem poderia prever semelhante catástrofe? Um rapaz tão distinto! Posso dizer-lhe que, apósalguns meses de experiência, era um ótimo auxiliar. Que pensa do caso, sr. Holmes?

– Ainda não tenho opinião formada.– Ficar-lhe-ei muito grato se puder lançar um raio de luz num caso tão obscuro. Para um pobre

inválido, amante de livros, como eu, é um golpe paralisante. Tenho a sensação de ter perdido afaculdade de pensar. Mas o senhor é um homem de ação. Isso faz parte da rotina de sua vida. Osenhor conserva o sangue-frio, seja qual for a emergência. Temos sorte em contar com o seu auxílio.

Holmes andava de um lado para outro do quarto, enquanto o professor falava. Notei que fumava comgrande rapidez. Não havia dúvida de que gostava dos cigarros de Alexandria.

– Sim, senhor, foi um golpe terrível – continuou o velho. – Eis meu magnum opus, aquela pilha depapéis na mesinha, ali adiante. É a minha análise dos documentos encontrados nos mosteiros cópticosda Síria e do Egito, um trabalho que abalará as raízes da religião revelada. Com minha pouca saúde,não sei se conseguirei terminar a obra, agora que meu assistente me foi roubado. Deus do céu, sr.Holmes, o senhor fuma ainda mais depressa do que eu.

Holmes sorriu.– Sou um conhecedor – disse ele, tirando outro cigarro da caixa (o quarto) e acendendo-o com o toco

daquele que acabara de fumar. – Não vou aborrecê-lo com um interrogatório, professor Coram, jáque me disseram que o senhor estava na cama no momento do crime, e nada poderia contar. Sóuma pergunta. Que acha o senhor que o pobre rapaz queria dizer com: ‘O professor... foi ela’?

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O professor sacudiu a cabeça.– Susan é uma camponesa – disse ele. – O

senhor conhece a ignorância dessa classe.Com certeza o pobre rapaz murmuroupalavras incoerentes e ela as interpretoudessa forma.

– Compreendo. O senhor não oferecenenhuma explicação para a tragédia?

– Talvez tenha sido acidente. Ou talvez (sóouso murmurá-lo aqui entre nós) suicí-dio. Os rapazes têm os seus aborrecimen-tos secretos, talvez qualquer complica-ção amorosa de que não tivéssemos co-nhecimento. É mais provável do que as-sassinato.

– Mas, e o pincenê?– Ah, sou apenas um estudioso, um sonha-

dor. Não posso explicar as coisas práticasda vida. Mas sabemos que os penhores de amor são variados. Pois não, pode fumar outro cigarro. Éum prazer encontrar alguém que os aprecie a esse ponto. Um leque, uma luva, um par de óculos,quem imaginará os objetos que podem ser guardados como lembrança e acariciados na hora emque um homem se lembra de pôr fim à vida?“Esse senhor mencionou passos na relva, mas é fácil enganar-se nesse ponto. Quanto à faca, épossível que tenha saltado para longe quando o infeliz caiu. Pode ser que eu esteja dizendo tolices,mas parece-me que Willoughby Smith pôs fim à vida voluntariamente”.

Holmes pareceu impressionado com essa teoria e continuou andando de um lado para outro durantealgum tempo, perdido em seus pensamentos e fumando sem parar.

– Diga-me, professor Coram, o que há naquele compartimento trancado da escrivaninha?– Nada que pudesse interessar a um ladrão. Documentos de família, cartas de minha pobre esposa,

diplomas das universidades que me conferiram essa honra. Aqui está a chave. Pode vê-lo, se quiser.Holmes pegou a chave e examinou-a durante alguns instantes, devolvendo-a em seguida.

– Não, creio que de nada adiantaria – disse ele. – Prefiro ir passear pelo jardim e refletir sobre o caso.A teoria do suicídio não deixa de ser interessante. Devemos pedir-lhe desculpas por tê-lo incomo-dado, professor Coram, e prometo-lhe que só voltaremos depois do almoço. Às duas horas viremosdar-lhe notícias do que houvermos constatado.

Holmes estava muito pensativo e passeamos em silêncio pelo jardim.– Tem alguma pista? – perguntei finalmente.– Depende daqueles cigarros que fumei – disse ele. – É possível que eu esteja enganado. Os cigarros

dirão.– Caro Holmes, como é possível?...– Bem, bem, você verá por si próprio. E se nada acontecer, não haverá mal nenhum. É verdade que

sempre temos o recurso do oculista; mas prefiro tomar um atalho quando o encontro. Ah, aqui estáa boa sra. Marker. Vamos gozar de cinco minutos de conversa instrutiva com ela.

Creio que já disse que Holmes, quando o desejava, tinha um jeito especial para agradar às mulheres,conseguindo sem dificuldade que confiassem nele. Em poucos minutos estava conversando com a governanta

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como se a conhecesse há muito tempo.– Sim, sr. Holmes, tem razão. Ele fuma demais. O dia todo e às vezes a noite inteira. Tenho visto

aquele quarto de manhã... pois bem, é como se a gente estivesse no meio da neblina de Londres.Pobre sr. Smith, também era fumante, mas não tanto quanto o professor. A saúde dele?... Pois bem,não sei se melhora ou piora com o fumo.

– Ah! – exclamou Holmes. – Mas tira o apetite.– Oh, não sei, não o creio, senhor.– Com certeza, o professor deve comer pouquíssimo.– Bem, isso varia muito, não há dúvida.– Garanto que não tomou a refeição da manhã e não quererá saber do almoço, depois de todos

aqueles cigarros que fumou.– Nisso o senhor se engana, pois tomou um café bem farto hoje de manhã. Nunca o vi comer tão

bem, e, além disso, encomendou um bom prato de costeletas para o almoço. Fiquei admirada, pois,desde que entrei no escritório e vi o pobre sr. Smith morto, não pude mais olhar para comida. Bem,há de tudo neste mundo, e o professor não deixou que isso lhe tirasse o apetite.

Passamos a manhã no jardim. Stanley Hopkins fora à vila averiguar a verdade de um boato sobre umamulher desconhecida que fora vista na estrada de Chatham, na manhã anterior, por algumas crianças. Quantoa Holmes, parecia que a sua habitual energia o abandonara; nunca o vira tratar de um caso com tão poucointeresse. Hopkins voltou, dizendo que as crianças tinham visto uma mulher com as características descritaspor Holmes e que usava óculos, mas nem isso despertou o interesse do meu amigo. Ficou mais atentoquando Susan, que nos servia o almoço, disse achar que o sr. Smith houvesse saído para um passeio a pé namanhã anterior, voltando apenas meia hora antes da tragédia. Eu não podia entender a importância desseincidente, mas vi que Holmes lhe dava valor. De repente, levantou-se, olhando o relógio.

– Duas horas, senhores. Vamos liquidar o caso com o professor.O velho acabara de almoçar e o prato vazio provava que eram verdadeiras as palavras da governanta

sobre o seu apetite. Era um tipo estranho, com sua juba branca e os olhos brilhantes, o eterno cigarropendurado nos lábios. Estava vestido e sentado numa poltrona diante do fogo.

– Então, sr. Holmes, solucionou o mistério? – perguntou, empurrando para o meu amigo a caixa decigarros que estava sobre a mesinha.

Holmes estendeu a mão ao mesmo tempo e, com isso, a caixa de estanho caiu ao chão. No momentoseguinte, estávamos todos de joelhos para apanhar os cigarros. Quando nos levantamos, notei que os olhosde Holmes brilhavam e que ele estava com o rosto corado. Somente em momentos de crise lhe vira essessinais de luta.

– Sim, solucionei-o – respondeu ele.Stanley Hopkins e eu olhamos para Holmes, atônitos. No rosto do professor havia uma expressão de

desprezo.– Realmente! No jardim!– Não. Aqui.– Aqui? Quando?– Neste instante.– Deve estar brincando, sr. Holmes. O senhor obriga-me a dizer que o assunto é sério demais para ser

tratado dessa forma.– Experimentei todos os elos da corrente, professor Coram, e tenho certeza de que são fortes. Quais

os seus motivos e que parte representa o senhor em tudo isso é o que não sei dizer. Daqui a algunsminutos, provavelmente ouvirei a história de seus próprios lábios. Entretanto, vou reconstituir o

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caso, para que o senhor saiba quais as informações que ainda desejo obter.Holmes fez uma pausa e continuou:

– Uma senhora entrou ontem em seu escritório. Veio com a intenção de se apossar de alguns docu-mentos que estavam no arquivo. Tinha uma chave própria. Tive a oportunidade de examinar a sua,professor Coram, e não encontrei a leve descoloração que teria sido produzida pelo risco feito noverniz. O senhor não era, portanto, cúmplice, e, ao que parece, ela veio roubá-lo sem que o senhorsoubesse disso.

O professor tirou uma baforada do cigarro.– Muito interessante e muito instrutivo – disse ele. – Nada mais tem a acrescentar? Depois de ter ido

tão longe com certeza deve saber o que aconteceu a essa senhora.– Já chego lá. Em primeiro lugar, a mulher foi surpreendida por seu secretário e golpeou-o, para livrar-

se dele. Considero a morte do sr. Smith como um acidente infeliz, pois estou convencido de que elanão pretendia matá-lo. O assassino vem sempre armado. Horrorizada com o que fizera, ela fugiu dacena do crime. Infelizmente perdera os óculos na luta e, como era muito míope, quase nada via semeles. Correu por um corredor, que imaginou ser o mesmo por onde entrara (ambos têm passadeirade crina), e somente quando era tarde demais compreendeu que enveredara por outro lado e nãomais poderia escapar. Que fazer? Não podia voltar. Continuou. Subiu uma escada, abriu uma portae viu-se em seu quarto, professor Coram.

O velho olhava para Holmes de boca aberta. Em seu rosto via-se estupefação e medo. Fez um esforçopara dominar-se, encolheu os ombros e soltou uma risada falsa.

– Muito interessante, sr. Holmes. Mas há uma pequena falha em tão magnífica teoria. Eu estava noquarto, e dele não saí durante toda a tarde.

– Sei disso, professor Coram.– E seria possível que, deitado em minha cama, eu

não notasse a entrada de uma mulher em meupróprio quarto?

– Eu não disse isso. O senhor notou-a. Falou comela. Ajudou-a.

O professor riu nervosamente. Erguera-se, e seus olhosluziam como brasas.

– Está louco! – exclamou. – Ajudei-a a fugir? Ondeestará ela agora?

– Está aqui – disse Holmes, apontando para umaestante alta, a um canto do quarto.

O velho ergueu os braços para o ar, de rosto convulso, ecaiu na cadeira. No mesmo momento a estante que Holmesindicara moveu-se e uma mulher surgiu no quarto.

– Tem razão – disse uma voz estrangeira. – Temrazão. Estou aqui.

Ela estava cheia de pó e de teias de aranha, ao sair doesconderijo. Também o rosto estava sujo e nem mesmoem seus melhores dias poderia ter sido bonita, pois tinhaas características adivinhadas por Holmes e, além disso,um queixo longo e teimoso. Devido à sua miopia e àmudança da escuridão para a luz, parecia atordoada,

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piscando para ver melhor. Mas, apesar de todas essas desvantagens, havia nela nobreza, uma coragem noqueixo provocante e na cabeça erguida que merecia respeito e admiração. Stanley Hopkins pôs a mão nobraço da desconhecida e declarou-a sua prisioneira, mas a mulher afastou-o com uma dignidade que impunhaobediência. O velho continuava caído na cadeira, muito perturbado.

– Sim, senhor, sou sua prisioneira. Do meu esconderijo ouvi tudo o que disseram, e sei que conhecema verdade. Matei o rapaz. Mas o senhor tem razão quando disse que foi acidente. Eu nem mesmosabia que era uma faca o que tinha na mão, pois agarrei-a num momento de desespero e dei umgolpe no rapaz para que me soltasse. É esta a verdade.

– Minha senhora, tenho certeza disso – declarou Holmes. – Creio que a senhora não se sente bem.Ela ficara mortalmente pálida, e por isso sentara-se na beira da cama.

– Tenho pouco tempo de vida – disse. – Mas quero que saibam toda a verdade. Sou a esposa destehomem. Ele não é inglês. É russo. Seu nome, não direi qual é.

O velho moveu-se pela primeira vez.– Deus a abençoe, Anna! – exclamou. – Deus a abençoe!

A mulher lançou-lhe um olhar de profundo desdém.– Por que se apega tanto a esta vida miserável, Sergius? – disse ela. – Causou mal a muitos, e bem a

ninguém... nem mesmo a você. Em todo caso, não me compete romper o frágil fio de vida antes queseja essa a vontade de Deus. Tenho um grande peso na consciência desde que atravessei o umbraldesta casa amaldiçoada. Mas preciso falar, senão depois será tarde demais.

Houve um minuto de silêncio.– Já lhes disse, senhores, que sou a esposa deste homem – continuou a mulher. – Ele tinha cinqüenta

anos e eu era uma jovem desmiolada de dezoito, quando nos casamos. Foi numa cidade da Rússia,numa universidade... não direi qual.

– Deus a abençoe, Anna! – repetiu o velho.– Éramos reformadores, revolucionários, niilistas, os senhores compreendem. Ele, eu e muitos outros.

Depois, veio uma época infeliz. Um policial foi morto, houve prisões e as autoridades precisavamde provas. E, para salvar a vida e ganhar uma grande recompensa, meu marido atraiçoou a própriaesposa e os seus companheiros. Sim, fomos todos presos por sua causa. Alguns foram executados,outros, mandados para a Sibéria. Euestava entre estes últimos, mas nãofui condenada à prisão perpétua. Meumarido veio para a Inglaterra com odinheiro ganho tão miseravelmente,e vinha levando uma vida retirada,pois sabia que se a Irmandade desco-brisse onde se encontrava, nãopassaria uma semana sem que sefizesse justiça.

O homem estendeu a mão trêmula e pegouum cigarro.

– Estou em suas mãos, Anna – disse ele.– Você sempre foi boa para mim.

– Ainda não lhes contei o máximo desua vilania – continuou a mulher. –Entre nossos camaradas da Ordem,

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havia um que era meu amigo do coração. Nobre, desprendido, carinhoso... tinha todas asqualidades que faltavam ao meu marido. Detestava a violência. Todos nós éramos culpados,mas não ele. Escreveu-me muitas vezes procurando dissuadir-me. Aquelas cartas tê-lo-iamsalvo. E também meu diário, onde eu registrara os meus sentimentos por ele e o modo depensar de cada um de nós. Meu marido encontrou as cartas e o diário e apossou-se deles.Escondeu-os e fez tudo para que o rapaz perdesse a vida. Não o conseguiu, mas Alexis foimandado para a Sibéria e agora trabalha numa mina de sal. Pense nisso, miserável, pensenisso! Atualmente, Alexis, cujo nome você não é digno de pronunciar, trabalha numa minacomo escravo, e eu tenho sua vida nas mãos e não o denuncio!

– Você sempre foi uma mulher nobre, Anna – disse o velho, fumando.Ela erguera-se, mas caiu com um grito de dor.

– Preciso terminar – disse. – Cumprida a minha pena, resolvi procurar o diário e as cartas, a fimde mandá-los ao governo russo para que meu amigo fosse libertado. Sabia que o meu maridoviera para a Inglaterra. Após meses de busca, descobri onde se encontrava. Sabia que aindatinha o diário em seu poder, pois, quando eu estava na Sibéria, recebi uma carta delecensurando-me e citando trechos do diário. Mas não ignorava que, com seu gênio vingativo,jamais o entregaria de livre vontade. Era preciso que eu própria o recuperasse. Com esseobjetivo arranjei um detetive particular, que aqui se empregou como secretário, seu segundosecretário, Sergius, aquele que saiu em pouco tempo. Ele descobriu que no armariozinho doarquivo estavam guardados alguns documentos e tirou um molde da fechadura. Não quisfazer mais do que isso. Deu-me a planta da casa e disse-me que, ao meio-dia, o escritórioestava sempre vazio, pois o secre-tário trabalhava aqui com você.Criei coragem e vim à procura dospapéis. Obtive resultado, mas a quepreço!

A mulher fez uma pequena pausa.– Eu acabara de fechar o armário

quando o rapaz me agarrou. Já ovira de manhã, na estrada, quandolhe perguntei onde morava o pro-fessor Coram, sem saber que eraseu secretário.

– É isso! Exatamente! – exclamouHolmes. – O secretário voltou efalou ao professor na mulher queencontrara. E então, ao morrer,procurou mandar uma mensagemao professor – ‘foi ela’ –, isto é, amulher de quem tinham acabadode falar.

– Deixem-me continuar – interveio amulher, em tom imperativo, o rostocontraído pela dor. – Depois que elecaiu, saí correndo da sala, passei

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pela porta errada e vi-me no quarto de meu marido. Ele falou em entregar-me à polícia.Respondi que, se o fizesse, sua vida estaria em minhas mãos. Se ele me entregasse àpolícia, eu o entregaria à Irmandade. Não que eu tivesse amor à vida, mas queria cumpriro que prometera a mim própria. Ele viu que eu faria o que disse, que a sua vida dependiada minha. Por esse motivo, e por nenhum outro, protegeu-me. Enfiou-me naqueleesconderijo escuro, relíquia dos tempos antigos, que só ele conhecia. Tomava as refeiçõesno quarto, de modo que dividia a comida comigo. Ficou combinado que, depois que apolícia saísse definitivamente daqui, eu fugiria no meio da noite para nunca mais voltar.Mas o senhor adivinhou o que aconteceu.

A mulher tirou do seio um pacotinho.– São estas as minhas últimas recomendações – disse a Holmes. – Estas cartas salvarão

Alexis. Confio-as à sua honra e senso de justiça. O senhor as entregará ao embaixador daRússia. Agora que cumpri meu dever...

– Não a deixem fazer isso! – gritou Holmes, dando um salto para o lado dela e tomando-lhe um frasco da mão.

– Tarde demais – disse a mulher, caindo na cama. – Tarde demais! Tomei o veneno antes desair do esconderijo. Sinto a cabeça girando! Estou morrendo! Senhor, recomendo-lheque não se esqueça do pacote.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .– Um caso simples, mas de certo modo instrutivo – disse-nos Holmes quando voltamos

para Londres. – Desde o princípio, dependia do pincenê. Se por azar o rapaz não houvesseagarrado o pincenê antes de morrer, não sei se conseguiríamos desvendar o caso. Pelaslentes, vi que o dono devia ser quase cego e que ficaria inutilizado, se privado dos óculos.Quando você me disse, Hopkins, que ela andara pela relva sem dar um passo em falso,observei, como deve estar lembrado, que isso era um fato extraordinário. No íntimo,achava um fato impossível, a não ser que ela tivesse outro par de óculos. Por isso, passeia considerar seriamente a hipótese de ela ter continuado na casa. Ao notar a semelhançaentre os dois corredores, ocorreu-me que ela poderia ter-se enganado e, nesse caso,entrado no quarto do professor. Fiquei portanto alerta, à espera de alguma coisa queconfirmasse essa suposição. Examinei o quarto à procura de um esconderijo. O tapeteestava firmemente pregado no chão, de modo que afastei a hipótese de um alçapão.Podia haver um nicho atrás das estantes. Bem sabe que isso era comum nas bibliotecasantigas. Notei que havia livros no chão por toda parte, menos diante de uma determinadaestante. Então, a porta devia ser ali. Não vi marcas, mas o tapete tinha uma cor parda,que se presta muito a exame. Fumei, portanto, grande número daqueles ótimos cigarros,deixando a cinza cair diante da estante suspeita. Foi um truque simples, mas de grandeefeito. Descemos, e na sua frente, Watson, embora você não se apercebesse disso, fizperguntas a respeito do consumo de comida do professor Coram, e fiquei sabendo queaumentara, o que é natural quando se está alimentando outra pessoa. Subimos de novoao quarto e, ao deixar cair a caixa de cigarros, pude examinar perfeitamente o chão. Vi,pelas marcas na cinza dos cigarros, que em nossa ausência a prisioneira saíra doesconderijo. Bem, Hopkins, cá está Charing Cross, e dou-lhe os parabéns por ter concluídocom sucesso seu caso. Com certeza vai para a Scotland Yard. Quanto a nós, Watson,creio que nosso destino é a embaixada russa.

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O ATLETA DESAPARECIDOEstávamos habituados, na Baker Street, a receber estranhos telegramas, mas lembro-me especialmente

de um que nos foi entregue numa feia manhã de fevereiro, há sete ou oito anos, e que deixou SherlockHolmes pensativo durante um quarto de hora. Era endereçado a ele e dizia:

“Favor esperar-me. Grande infelicidade.Jogador ala direita desaparecido.Indispensável amanhã.

Overton”– Carimbo do Strand, expedido às dez e trinta e seis – disse Holmes, relendo-o. – O sr. Overton

evidentemente estava muito excitado quando o mandou, e por isso se mostra incoerente. Bem,bem, ele já terá chegado quando eu acabar de ler o Times, e ficaremos a par de tudo. O maisinsignificante dos problemas será bem recebido, nestes dias de ociosidade.

Os negócios estavam realmente parados e eu aprendera a temer os períodos de inação, pois sabia que amente do meu amigo era tão ativa que seria perigoso deixá-la sem material com que se ocupar.

Há vários anos convivia com ele na maior intimidade. Como médico, zelava por sua saúde; como amigo,acompanhava com muito interesse a sua brilhante carreira. Conhecia-lhe, pois, todos os hábitos e caracte-rísticas individuais.

Holmes tinha um sono leve, acordando várias vezes no meio da noite. Freqüentemente, em períodos deinação, surpreendia em seu rosto ascético um ar abatido e nos olhos inescrutáveis uma expressão sonha-dora; por isso abençoei o sr. Overton, fosse ele quem fosse, já que viera, com sua enigmática mensagem,quebrar a monótona calma que, para Holmes, era mais perigosa do que todas as tempestades de suatormentosa existência.

Conforme esperávamos, o telegrama foi logo seguido da pessoa que o mandara. O cartão do sr. CyrilOverton, do Trinity College, Cambridge, anunciou a chegada de um rapaz enorme, sólido e musculoso,

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cujos ombros quase tocavam os dois lados do batente. Olhou-nos de um para o outro, com rosto simpático,mas onde havia uma expressão ansiosa.

– Sr. Sherlock Holmes? – perguntou.O meu amigo inclinou-se.

– Estive na Scotland Yard, sr. Holmes. Falei com o inspetor Hopkins. Ele me aconselhou a vir procurá-lo. Disse que o caso, ao que lhe parece, era mais para o senhor do que para a polícia oficial.

– Por favor, sente-se e conte-me o que se passou.– É horrível, sr. Holmes, simplesmente horrível! Não sei como não fiquei com os cabelos brancos.

Godfrey Staunton... Ouviu falar nele, com certeza... Ele é simplesmente o cabeça de toda a equipeda escola. Eu preferiria ficar privado de dois outros jogadores a perder Godfrey. Para passar a bola,atacar ou marcar os adversários, ninguém o iguala. Além disso, tem cabeça, e faz com que todosjoguem com equilíbrio. O que vou fazer? É o que lhe pergunto, sr. Holmes. Temos Moorhouse, oprimeiro reserva, mas foi treinado como centro-avante e mete-se sempre no barulho, em vez deficar na ponta. É um bom jogador, não há dúvida, mas não tem cabeça e não sabe correr. Ora,Morton ou Johnson, da equipe de Oxford, poderiam dar-lhe um baile! Stevenson é suficientementerápido, mas tem grandes defeitos e não merece um lugar de responsabilidade. Não, sr. Holmes,estamos perdidos, a não ser que nos ajude a encontrar Godfrey Staunton.

Holmes ouvira com ar de divertida surpresa esse longo discurso, pronunciado com sinceridade e energia,e a todo momento reforçado pelo rapaz com uma palmada da mão musculosa no joelho. Depois que nossovisitante se calara, Holmes estendeu a mão e pegou um livro, procurando a letra S. Dessa vez, procurou emvão naquela variada fonte de informações.

– Temos Arthur H. Staunton, o próspero falsificador– disse Holmes. – E Henry Staunton, que ajudeia mandar para a forca, mas não encontro nenhumGodfrey Staunton.

Foi a vez de nosso visitante ficar admirado.– Oh, sr. Holmes, pensei que o senhor soubesse

tudo – disse ele. – Então, se nunca ouviu falarem Godfrey Staunton, com certeza também nãoconhece Cyril Overton.

Holmes sacudiu a cabeça, bem-humorado.– Santo Deus! – exclamou o atleta. – Oh, fui

primeiro reserva da Inglaterra contra Gales ecapitão da equipe da universidade, durante o anointeiro. Isso ainda não é nada, mas pensei quenão houvesse uma alma na Inglaterra que nãoconhecesse Godfrey Staunton, o maior craquede Cambridge, Blackheath e cinco internacionais.Santo Deus, sr. Holmes, onde o senhor temvivido?

Holmes riu do ingênuo espanto do rapaz.– O senhor vive num mundo diferente do meu, sr.

Overton, um mundo melhor e mais sadio. Meutrabalho ramifica-se por muitas seções dasociedade, mas, sinto prazer em dizê-lo, nunca

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atingiu o esporte amador, que é o que há de melhor e de mais sadio na Inglaterra. Mas a suainesperada visita hoje de manhã prova-me que, mesmo nesse mundo de ar fresco e jogo limpo,pode haver trabalho para mim. E agora, caro senhor, peço-lhe que me conte lentamente e comexatidão o que aconteceu, e de que maneira deseja o meu auxílio.

O rosto de Overton adquiriu a expressão de um homem que está mais habituado a usar os músculos doque o cérebro, mas, pouco a pouco, com muita repetição e falta de clareza (que vou omitir na minha narrativa),contou-nos esta estranha história.

– Foi assim, sr. Holmes. Como disse, sou o capitão da equipe de rúgbi da Universidade de Cambridgee Godfrey Staunton é o meu melhor homem. Amanhã vamos jogar contra Oxford. Chegamos aLondres ontem e instalamo-nos no Hotel Bentley. Às dez horas, fui ver se os rapazes estavam nacama, pois acho necessário muito sono e disciplina para que um grupo se conserve em forma. Faleicom Godfrey antes de ir vê-lo na cama. Pareceu-me pálido e preocupado. Perguntei-lhe o que havia.Respondeu-me que estava bem, apenas com um pouco de dor de cabeça. Dei-lhe boa-noite edeixei-o. Meia hora mais tarde o porteiro contou-me que um homem de aparência rude, de barba,viera trazer um bilhete para Godfrey. O porteiro levou o bilhete ao quarto do rapaz. Godfrey leu-o ecaiu numa cadeira, como que fulminado. O porteiro ficou tão assustado que quis chamar-me, masGodfrey impediu-o, bebeu um gole de água e pareceu melhor. Depois, desceu, disse umas palavrasao homem que trouxera o bilhete e saíram juntos. O porteiro viu-os sair quase correndo, na direçãodo Strand. Hoje de manhã, Godfrey não foi encontrado no quarto, a cama dele não fora desfeita eestava tudo como na noite anterior. Depois de ter saído inesperadamente com aquele homem, nãoouvimos mais uma palavra a respeito dele. Não creio que ainda volte. Era um esportista, sr. Holmes,até a raiz dos cabelos, e não teria interrompido o treino e abandonado o seu capitão se não houvesseum motivo muito forte. Não. Creio que se foi de uma vez para sempre, e que nunca mais o veremos.

Holmes ouviu com o maior interesse a estranha narrativa e, por fim, perguntou:– Que providências o senhor tomou?– Telegrafei para Cambridge, para saber se tinham tido notícias dele. Já veio a resposta. Não sabem de

nada.– Ele poderia ter voltado para Cambridge?– Sim, havia um trem muito tarde, às onze e quinze.– Mas, ao que lhe consta, o rapaz não o tomou, não?– Não; ninguém o viu.– O que o senhor fez em seguida?– Telegrafei para lorde Mount-James.– Por quê?– Godfrey é órfão, e lorde Mount-James é seu parente mais próximo; seu tio, creio.– Ora! Isso dá outro aspecto ao caso. Lorde Mount-James é um dos homens mais ricos da Inglaterra.– Foi o que Godfrey me disse.– E seu amigo é o parente mais próximo?– Sim, é o herdeiro. O velho tem quase oitenta anos e sofre de gota, ainda por cima. Nunca deu um

níquel a Godfrey em toda a vida, pois é um grande avarento, mas o dinheiro acabará por ser do meuamigo, disso não há dúvida.

– Recebeu resposta de lorde Mount-James?– Não.– Que motivos seu amigo poderia ter para procurar o tio?– Pois bem, alguma coisa o preocupava ontem à noite, e, se o problema era dinheiro, é possível que

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recorresse ao parente mais próximo, que tem tanto, embora sem grande probabilidade de êxito,pelo que tenho ouvido dizer do velho. Godfrey não gosta do tio. Não iria procurá-lo se houvesseoutra alternativa.

– Pois bem, isso é fácil de averiguar. Se o seu amigo foi ver lorde Mount-James, temos então deexplicar a visita do homem de aparência rude que o procurou tão tarde, e a agitação que causou.

Overton apertou a cabeça entre as mãos.– Não entendo nada – disse ele.– Bem, bem, tenho o dia livre e posso tratar do caso – prometeu Holmes. – Aconselho-o a continuar

os preparativos para o jogo sem contar com o rapaz. Como o senhor próprio disse, somente ummotivo de força maior o afastaria, e é possível que esse mesmo motivo o detenha. Vamos até ohotel para ver se o porteiro pode dar mais alguma informação.

Holmes era um artista para fazer uma testemunha humilde ficar à vontade. Na intimidade do quartoabandonado de Godfrey, arrancou tudo o que o porteiro tinha a dizer. O visitante da véspera não era umcavalheiro, nem um operário. Era o que o porteiro descrevia como ‘pessoa de aparência mediana’: homemde cinqüenta anos, barba grisalha, rosto pálido, vestido discretamente. Também ele parecia agitado. O porteironotara que a mão lhe tremia, ao entregar o bilhete. Staunton enfiara o bilhete no bolso. Não apertara a mãodo homem no vestíbulo. Tinham trocado palavras, das quais o porteiro distinguira apenas uma: ‘tempo’.Depois saíram apressadamente. O relógio da entrada marcava dez e meia.

– Deixe-me ver – disse Holmes, sentando-se na cama de Staunton. – Você é o porteiro do dia, não é?– Sim, senhor. Saio às onze.– O porteiro da noite não viu coisa alguma, suponho.– Não, senhor. Um grupo vindo do teatro che-

gou tarde. Ninguém mais.– Você esteve em serviço durante todo o dia,

ontem?– Sim, senhor.– Levou algum recado ao sr. Staunton?– Sim, senhor, um telegrama.– Oh, isso é interessante. Que horas eram?– Mais ou menos seis.– Onde estava o sr. Staunton, quando recebeu o

telegrama?– Aqui no quarto.– Estava presente quando ele o abriu?– Sim, senhor; esperei para ver se havia resposta.– E houve?– Sim, senhor. Ele escreveu um bilhete.– Você o levou?– Não, senhor, ele próprio foi levá-lo.– Mas escreveu-o em sua presença?– Sim, senhor. Eu estava perto da porta, e depois

de escrevê-lo, de costas para mim, diantedaquela mesa, ele disse: ‘Muito bem, porteiro,eu próprio vou levá-lo’.

– Com que ele escreveu?

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– Com uma caneta.– O talão para preenchimento do telegrama era um desses que estão sobre a mesa?– Sim, senhor. Era o de cima.

Holmes ergueu-se. Pegou o talão e levou-o para perto da janela, examinando com cuidado a folha decima.

– Pena ele não ter escrito a lápis – disse, atirando-o de novo sobre a mesa com um gesto de desapon-tamento. – Como sabe, Watson, a impressão muitas vezes fica na folha de baixo, fato esse quedesmanchou muito casamento feliz. Mas nada encontro aqui. Fico porém satisfeito por ver queescreveu com uma pena de ponta larga, e espero encontrar algumas impressões no mata-borrão.Ah, sim, é isso mesmo.

Holmes arrancou uma folha do mata-borrão e mostrou-nos o que estava impresso ali.

Cyril Overton ficou muito excitado.

– Ponha diante do espelho – disse.– Não é necessário – observou Holmes. – O papel é fino. Virando-o, podemos ler o que está escrito.

Vejam.Virou o papel e lemos:

– É o final do telegrama que Godfrey expediu, poucas horas antes de desaparecer. Pelo menos seispalavras escaparam-nos. Mas o que restou: ‘Ajude-nos, pelo amor de Deus’, indica que o rapazsoube que um horrível perigo o ameaçava, e que uma pessoa poderia protegê-lo. ‘Ajude-nos’. Notembem o nos. Outra pessoa estava envolvida. Quem haveria de ser, senão o homem de barba queparecia tão agitado? Qual a relação entre esse homem e Staunton? E qual a terceira pessoa queambos procuraram, pedindo proteção contra o perigo? É o que temos de averiguar.

– Basta descobrir a quem foi enviado o telegrama – observei.– Exatamente, caro Watson. Sua idéia, embora profunda, já me ocorrera. Mas talvez já tenha notado

que, se você for ao telégrafo e pedir para ler um telegrama mandado por outra pessoa, os empregadosnão o atenderão com boa vontade. Há tanta burocracia! Mas creio que, com um pouco de delicadezae fineza, conseguiremos nosso intento. Neste meio tempo, gostaria de examinar em sua presença,sr. Overton, os papéis deixados sobre a mesa.

Havia algumas cartas, contas e cadernos de apontamentos, que Holmes examinou com dedos nervosose olhos penetrantes.

– Nada aqui – disse, finalmente. – A propósito, espero que seu amigo seja um rapaz sadio!– Forte como um touro.– Já ouviu falar que tivesse estado doente?– Nunca. Certa vez ficou de repouso, por causa do joelho, mas não foi nada de importância.

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– Talvez não seja tão forte como o senhor supõe. Creio que temqualquer doença. Com sua permissão, vou levar estes papéis,caso venham a ter relação com nossas futuras investigações.

– Um momento, um momento! – disse uma voz fanhosa.Olhamos para a porta e ali vimos um velhinho esquisito, gesticulando.

Estava com um terno preto e surrado, chapéu de aba larga e gravatabranca, solta, dando a impressão de um párocode aldeia ou de um agente funerário. Mas, apesarde mal-vestido e de sua absurda aparência, a vozera firme, e sabia impor sua presença.

– Quem é o senhor, e com que direito mexe nospapéis do rapaz? – perguntou.

– Sou um detetive particular, e estou procurando explicaro seu desaparecimento.

– Ah, é? E quem o chamou, senhor?– Este cavalheiro, amigo do sr. Staunton, que me procurou

por indicação da Scotland Yard.– Quem é o senhor? – perguntou o velho ao rapaz.– Sou Cyril Overton.– Então foi o senhor que me mandou o telegrama. Sou

lorde Mount-James. Vim assim que pude. Quer dizer quechamou um detetive? – Sim, senhor. – E está disposto a arcar com a despesa? – Tenho certeza, senhor, de que meu amigo Godfrey, quandofor encontrado, estará pronto a fazê-lo. – Mas e se nunca for encontrado, hein? Responda. – Nesse caso, sem dúvida a família... – Nada disso, cavalheiro! – gritou o velho. – Não esperem demim nem um centavo! Nem um centavo! Compreenda isso,senhor detetive! Sou a única família que o rapaz tem, e digo-lheque não sou responsável. Se ele tem expectativas, é pelo fatode eu nunca ter desperdiçado dinheiro, e não pretendo começara fazê-lo agora. Quanto aos papéis que o senhor examinava comtanto desembaraço, aviso-o de que, se houver alguma coisa devalor no meio deles, ficará responsável pelo que lhes acontecer. – Muito bem – disse Sherlock Holmes. – Nesse meio tempo,posso perguntar-lhe se tem alguma teoria a respeito do desapa-recimento do rapaz? – Não, senhor, não tenho. Ele tem idade bastante e tamanhosuficiente para tomar conta de si próprio, e, se é tonto a pontode se perder, recuso-me a assumir a responsabilidade de mandarprocurá-lo. – Compreendo perfeitamente a sua posição – disse Holmes,com um brilho malicioso no olhar. – Talvez o senhor não

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compreenda a minha. Parece que Godfrey Staunton é um homem pobre. Se foi raptado, não podeter sido pelo que possui. Mas a fama de sua riqueza atravessou os mares, lorde Mount-James, e épossível que uma quadrilha de ladrões tenha raptado seu sobrinho para obter informações quanto àsua casa, seus hábitos e seus tesouros.

O nosso desagradável visitante ficou branco como um lençol.– Deus do céu, que idéia! Nunca pensei em tamanha patifaria! Que bandidos desumanos há neste

mundo! Mas Godfrey é um bom rapaz, um rapaz direito. Nada o induziria a trair seu velho tio.Mandarei as pratas da casa para o banco hoje mesmo. Nesse meio tempo, não poupe esforços,senhor detetive. Suplico-lhe que não deixe pedra sobre pedra para fazê-lo voltar. Quanto ao dinheiro,pois bem, se for questão de cinco libras, ou mesmo dez, pode contar comigo.

Mesmo nessa mansa disposição de espírito, o nobre avarento não pôde dar informação que nos valesse,pois pouco sabia da vida particular do sobrinho. Nossa única pista era o telegrama, e, com uma cópia do quelera, Holmes saiu à procura do segundo elo da corrente. Tínhamo-nos livrado de lorde Mount-James eOverton fora consultar os outros membros da equipe, a respeito da desventura que se abatera sobre eles.Havia uma agência de telégrafo a pequena distância do hotel. Paramos diante dela.

– Vale a pena tentar, Watson – disse Holmes. – Claro que, com uma ordem da polícia, poderíamosexigir que nos mostrassem as cópias dos telegramas já expedidos, mas ainda não chegamos a esseponto. Não creio que se lembrem de fisionomias em lugar tão movimentado. Vamos experimentar.

– Sinto incomodá-la – disse ele com sua voz mais suave, à jovem atrás da grade. – Houve um pequenoengano no telegrama que mandei ontem. Não obtive resposta, mas receio ter omitido o meu nomeno final. Pode dizer-me se foi isso o que aconteceu?

A moça folheou um maço de cópias.– A que horas foi? – perguntou.– Um pouco depois das seis.– O que estava escrito?

Holmes pôs o dedo nos lábios e olhou de relance para mim.– As últimas palavras eram ‘pelo amor de Deus’ – murmurou ele confidencialmente. – Estou muito

aflito por não ter tido resposta.A jovem separou uma das cópias.

– É esta. Não tem assinatura – disse ela, empurrando o papel sobre o balcão.– Então é por isso que não recebi resposta – exclamou Holmes. – Deus do céu, que estupidez a

minha! Até logo, minha senhora, e muito obrigado por ter aliviado o meu o espírito.Quando nos vimos na rua, Holmes deu uma risadinha, esfregando as mãos.

– Então? – perguntei.– Progredimos, Watson, progredimos. Eu tinha sete diferentes planos para dar uma olhada no telegrama,

mas não esperava obter sucesso logo no primeiro.– E que ganhou com isso?– O ponto de partida de nossa investigação – respondeu Holmes, chamando uma carruagem. – Para

a estação King’s Cross – ordenou ele ao cocheiro.– Então, vamos viajar? – perguntei.– Sim, creio que temos de ir a Cambridge. Tudo aponta nessa direção.– Diga-me, tem alguma suspeita quanto à causa do desaparecimento? Em todos os casos que inves-

tigamos, não me lembro de nenhum cujos motivos fossem mais obscuros. Você não desconfia,realmente, que ele tenha sido raptado para dar informações quanto à fortuna do tio, não é?

– Confesso, caro Watson, que isso não me atrai como provável explicação. Mas pareceu-me a única

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capaz de interessar àquela desagradável criatura.– E com resultado. Mas quais as alternativas?– Posso mencionar várias. Você deve reconhecer que é curioso o incidente ter ocorrido justamente na

véspera de um jogo importante, envolvendo o único homem cuja presença parece essencial para avitória do time. Pode ser coincidência, mas é interessante. Oficialmente, não se fazem apostas noesporte amador; mas há um grande número de apostas entre o público, e é possível que o seudesaparecimento interessasse a alguém. Esta é uma hipótese. A segunda é que o rapaz é de fato oherdeiro de uma grande fortuna, por mais modestos que sejam atualmente os seus meios, e não éimpossível que o tenham raptado para efeitos de resgate.

– Essas teorias não explicam o telegrama.– É verdade, Watson. O telegrama ainda é a única coisa sólida que temos, e não devemos permitir que

nossa atenção se afaste dele. É para descobrir o que há no telegrama que nos dirigimos a Cam-bridge. O caminho da nossa investigação ainda é obscuro, mas ficarei muito admirado se antes docair da noite não tivermos lançado nele um raio de luz.

Já era quase noite quando chegamos à velha cidade universitária. Holmes apanhou uma carruagem naestação e pediu ao homem que nos levasse à residência do Dr. Leslie Armstrong. Minutos depois, parávamosdiante de uma grande mansão, na rua mais movimentada das redondezas. Depois de longa espera, fizeram-nos entrar no consultório, onde encontramos o médico sentado à escrivaninha.

A prova de que eu perdera contato com os meus colegas estava no fato de Leslie Armstrong ser um nomedesconhecido para mim. Sei agora que não somente é um dos chefes da escola médica da universidade, masum pensador afamado em toda a Europa, em mais de um ramo da ciência. Mas, mesmo sem conhecer suabrilhante carreira, não se podia deixar de ficar impressionado com o homem – rosto maciço, quadrado,expressão sonhadora sob as grossas sobrancelhas, queixo firme. Homem profundo, de mente alerta, decidida,controlada, formidável – foi o que li no Dr. Armstrong. Ele tinha na mão o cartão de Holmes e ergueu osolhos com expressão descontente no rosto severo.

– Conheço-o de nome, sr. Sherlock Holmes, e sei qual é asua profissão, embora ela não mereça minha aprovação– disse ele.

– Nisso o senhor está de acordo com todos oscriminosos do país, doutor – replicou Holmestranqüilamente.

– Enquanto os seus esforços se dirigem contraos criminosos, senhor, eles têm de merecer oapoio da comunidade, embora eu não duvidede que a máquina oficial tenha competênciapara combatê-los. Mas o senhor se expõe àcrítica quando se mete nos segredos departiculares, quando traz à tona assuntos defamília que seria preferível deixar ocultos, equando desperdiça o tempo de homens maisocupados do que o senhor. No momento presente,por exemplo, eu devia estar escrevendo um tratado,em vez de estar conversando com o senhor.

– Sem dúvida, doutor, mas talvez a conversa venha a ser maisimportante do que o tratado. Entretanto, afirmo-lhe que estamos

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fazendo o contrário daquilo que o senhor critica, e procuramos evitar que venham a público assuntosprivados, o que fatalmente aconteceria se o caso fosse parar nas mãos da polícia. O senhor podeconsiderar-me simplesmente como um soldado irregular que vai à frente das forças regulares. Vimpedir-lhe notícias do sr. Godfrey Staunton.

– Que há com ele?– O senhor o conhece, não é verdade?– É meu amigo íntimo.– Ele desapareceu.– Ah, sim? – exclamou o médico, sem que sua expressão se alterasse.– Saiu do hotel ontem à noite e ainda não deu notícias.– Com certeza voltará.– Amanhã realiza-se o jogo da universidade.– Não ligo para esses jogos infantis. A sorte do rapaz interessa-me profundamente, uma vez que o

conheço e estimo. O esporte não entra na minha esfera de ação.– Peço-lhe, então, que se interesse pelo assunto, agora que vou fazer investigações quanto ao desapa-

recimento do rapaz. Sabe onde ele está?– De forma nenhuma.– Não o viu desde ontem?– Não, não o vi.– O sr. Staunton é um homem sadio?– Certamente.– Já o viu doente alguma vez?– Nunca.

Holmes colocou uma folha de papel diante do médico.– Então talvez o senhor explique esse recibo de treze guinéus, pagos pelo sr. Godfrey Staunton, o mês

passado, ao Dr. Leslie Armstrong, de Cambridge. Encontrei-o no meio dos papéis do rapaz.O médico ficou vermelho de cólera.

– Não vejo razão para lhe dar explica-ções, sr. Holmes.

Holmes guardou de novo a conta nobolso.

– Se preferir uma explicação pública,terá de ser dada, cedo ou tarde –replicou ele. – Já lhe disse que pos-so abafar aquilo que outros teriamde publicar. O senhor faria bem seconfiasse em mim.

– Nada sei.– Recebeu comunicação de seu

amigo, de Londres?– Claro que não.– Deus meu, o telégrafo novamente!

– suspirou Holmes. – Um telegramaurgente foi-lhe mandado de Londrespor Godfrey Staunton, às seis e

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pouco, ontem à tarde... telegrama indubitavelmente ligado ao seu desaparecimento, e o senhor nãoo recebeu! É incrível. Faço questão de ir ao telégrafo daqui para registrar a queixa.

O Dr. Armstrong pulou da cadeira, furioso.– Peço-lhe o favor de sair de minha casa, senhor – disse ele. – E pode dizer a seu patrão, lorde Mount-

James, que não quero saber dele, nem de seus representantes. Não, senhor, nem mais uma palavra!– O médico tocou furiosamente a campainha e disse ao criado que apareceu: – John, acompanheesses senhores à porta.

Um mordomo imponente acompanhou-nos com ar severo e dali a segundos vimo-nos na rua. Holmescomeçou a rir.

– Não há dúvida de que o Dr. Armstrong é pessoa de energia e de caráter – disse ele. – Nunca vihomem que, se dirigisse seu talento para outro lado, estivesse mais apto a preencher a lacunadeixada pelo ilustre professor Moriarty. E agora, caro Watson, aqui estamos, perdidos e sem amigos,nesta cidade pouco hospitaleira. E não podemos abandoná-la sem abandonar o nosso caso. Aquelehotelzinho diante da casa de Armstrong adapta-se singularmente a nossos planos. Se você quiserreservar um quarto da frente e comprar os artigos necessários para aqui passarmos a noite, creioque terei tempo de fazer algumas investigações.

As investigações, porém, foram mais longas do que Holmes imaginara, pois não voltou antes das novehoras. Estava pálido e abatido, sujo de pó e exaurido pela fome e pelo cansaço. Uma ceia fria esperava-o, edepois que o apetite foi satisfeito e o cachimbo aceso, ele já estava disposto a tomar aquela atitude filosóficae meio cômica que adotava quando os negócios lhe corriam mal. Um ruído de rodas fez com que se erguessee fosse espreitar à janela.

Um carro puxado por dois cavalos cinzentos estava à porta do médico, sob a luz do lampião da rua.– Esteve fora durante três horas – observou Holmes. – Saiu às seis e meia e está de volta. Isto nos dá

uma área de dezesseis a vinte quilômetros, e ele faz a viagem uma ou duas vezes por dia.– Nada de extraordinário, para um médico que esteja clinicando.– Mas Armstrong não é propriamente um clínico. É conferencista e consultor, e não gosta de clinicar,

pois isso o afasta de seus trabalhos literários. Por que então faz essas longas viagens, que devemirritá-lo, e a quem vai ele visitar?

– O cocheiro...– Caro Watson, duvida que o tenha procurado em primeiro lugar? Não sei se foi por causa de sua

natureza maldosa, ou por instigação do patrão, mas o homem soltou um cão em meu encalço. Nemo cão nem o homem gostaram da aparência de minha bengala, de modo que as coisas pararam poraí. Nossas relações ficaram frias depois disso, de modo que nada mais ousei indagar. Tudo o que seiconsegui por intermédio de um rapaz amável, que trabalha no quintal de nosso hotel. Foi quem mefalou dos hábitos do médico e de suas viagens diárias. No momento em que me contava isso, acarruagem justamente parava à porta.

– Não poderia segui-la?– Excelente, caro Watson! Você hoje está brilhante. A idéia ocorreu-me. Como deve ter observado, há

uma loja de bicicletas ao lado do hotel. Corri para lá, aluguei uma, e consegui partir antes que acarruagem tivesse desaparecido de vista. Aproximei-me e, conservando uma discreta distância decem metros, segui as luzes traseiras até sairmos da cidade. Já estávamos longe quando aconteceuum incidente humilhante para mim. O carro parou, o médico desceu, caminhou apressadamenteaté o ponto onde eu também parara e, de maneira sardônica, disse que achava que a estrada era umtanto estreita e que a carruagem estava impedindo a passagem da bicicleta. Passei imediatamente àfrente e, conservando-me na estrada, pedalei durante alguns quilômetros, escondendo-me depois

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num lugar conveniente para ver se a carruagem passava. Não vi sinal dela, de modo que,evidentemente, enveredara por um dos muitos atalhos lá existentes. Voltei, mas nem sinal do carro,o qual, como você viu, chegou aqui depois de mim. Claro que, a princípio, eu não tinha base paraligar esses fatos ao desaparecimento de Staunton, e estava apenas investigando de um modo geral,pois tudo o que diz respeito ao Dr. Armstrong nos interessa. Mas agora vejo que ele toma tantasprecauções para não ser observado nessas excursões que o caso me parece muito mais sério, e nãopretendo abandoná-lo enquanto não estiver tudo claro.

– Podemos segui-lo amanhã – sugeri.– Podemos? Não é tão fácil como pensa. Você não está familiarizado com a topografia de Cambridge,

não é? Ela não se presta a esconderijos. O terreno por onde passei é plano como a palma de minhamão, e o homem que estamos seguindo não é tolo, como provou hoje à tarde. Telegrafei a Overton,dando nosso endereço e pedindo-lhe que me comunique qualquer novidade. Nesse meio tempo,temos de nos concentrar no Dr. Armstrong, cujo nome a prestimosa jovem do telégrafo me deixouler no telegrama. Ele sabe onde está Staunton, disso não há dúvida e, já que sabe, será culpa nossase não conseguirmos descobrir o rapaz. De momento, temos de admitir que os melhores trunfosestão com ele, mas você bem sabe, Watson, que não costumo deixar o jogo muito tempo nessascondições.

Mas o dia seguinte não nos levou à solução do mistério. À tarde, vieram trazer-nos um bilhete. Holmesleu-o e entregou-o a mim com um sorriso.

“Senhor, posso garantir-lhe que está perdendo seu tempo a espiar-me. Tenho, comodeve ter percebido ontem, uma janela na parte de trás da carruagem, e, se o senhordesejar fazer um passeio de quarenta quilômetros, que o trará de volta ao ponto departida, é só seguir-me. Nesse meio tempo, informo-o de que o fato de me seguirnão ajudará em nada o sr. Godfrey Staunton, e estou convencido de que, se quiserfavorecer o rapaz, o melhor que tem a fazer é voltar para Londres e dizer a seupatrão que não conseguiu encontrá-lo. Não há dúvida de que está perdendo tempoem Cambridge. Atenciosamente,

Leslie Armstrong”.– Antagonista franco e despachado, o doutor – observou Holmes. – Bem, bem, ele desperta minha

curiosidade, e preciso descobrir mais alguma coisa antes de lhe dizer adeus.– A carruagem está à porta – disse eu. – O médico está subindo nela. Vi-o olhar para cá. Quer que

experimente segui-lo de bicicleta?– Não, não, caro Watson! Com o devido respeito pela sua natural perspicácia, não me parece que seja

antagonista para o doutor. Creio que posso atingir os meus fins à minha moda. Tenho de deixá-lo só,caro amigo, pois a presença de dois estranhos curiosos na campina sonolenta iria provocar comen-tários que desejo evitar. Com certeza encontrará belas vistas nessa venerável cidade, e espero trazermelhores notícias antes que chegue a tarde.

Mas meu amigo iria mais uma vez ficar decepcionado. Voltou à noite, cansado e derrotado.– Dia perdido, Watson. Sabendo qual o rumo que tem tomado o médico, visitei todas as vilazinhas

perto de Cambridge, pedindo notícias aos freqüentadores das tabernas e outros locais públicos.Estive em Chesterton, Histon, Waterbeach e Oakington, e nada consegui apurar. A aparição diáriade uma carruagem não poderia deixar de chamar a atenção naqueles lugares mortos. O médicolavrou outro tento. Algum telegrama para mim?

– Sim; abri-o. Aqui está. ‘Procure Pompey, de Jeremy Dixon, Trinity College’. Não compreendo, Holmes.– Para mim é muito claro. É nosso amigo Overton, em resposta a uma pergunta minha. Vou mandar

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um bilhete ao sr. Jeremy Dixon e tenho certeza de que a nossa sorte mudará. Por falar nisso, hánotícias do jogo?

– Sim, o jornal local dá uma ótima descrição da partida, na última edição. Oxford ganhou. O últimoparágrafo diz:

“A derrota de Cambridge pode ser atribuída inteiramente à infeliz ausência dogrande esportista internacional Godfrey Staunton, cuja falta se fez sentir a cadaminuto, apesar dos esforços do valoroso time”.

– Então os receios do nosso amigo Overton justificaram-se – disse Holmes. – Pessoalmente, estou deacordo com o Dr. Armstrong, pois esse esporte não me atrai. Vamos cedo para a cama hoje, Watson,pois creio que amanhã teremos um dia cheio.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Na manhã seguinte encontrei Holmes diante da lareira, com uma seringa na mão. Ante minha expressão

de curiosidade, ele explicou:– Neste momento, esta seringa será a chave que abrirá as portas do misterioso caso. Nela estão

minhas esperanças. Acabo de voltar de uma excursão, e tudo vai bem. Faça uma boa refeição,Watson, pois pretendo seguir o Dr. Armstrong hoje e, uma vez no seu encalço, não pretendo comernem descansar enquanto não tiver descoberto a sua toca.

– Nesse caso, é melhor levarmos conosco nossa refeição da manhã – sugeri. – O médico vai sair cedo.A carruagem já está à porta.

– Não se incomode. Deixe-o partir. Será muito inteligente se conseguir chegar aonde eu não o possaseguir. Depois de terminar o café, venha comigo para baixo e eu lhe apresentarei um detetive que éeminente especialista no trabalho que está à nossa frente.

Depois que descemos, segui Holmes à cocheira. Ele abriu a porta de uma caixa e dali saiu um cão atarracado,de orelhas caídas.

– Permita que o apresente a Pompey – disse ele.– Pompey é o orgulho dos cães de fila, nãogrande corredor, como o seu corpo indica, masum cão firme, que nunca abandona uma pista.Pois bem, Pompey, você não é corredor, mascreio que, mesmo assim, correrá mais quedois cavalheiros de meia-idade, e vou tomara liberdade de pôr-lhe esta correia ao pescoço.Bem, rapaz, venha mostrar do que é capaz.

Holmes levou-o até a porta do médico. O cão farejoupor um instante e depois, com um ganido excitado,saiu pela rua, puxando a correia, esforçando-se para irmais depressa. Em meia hora tínhamos deixado a cidadee seguíamos por uma estrada rural.

– Que fez você, Holmes?– Adotei um truque muito conhecido, mas útil.

Fui ao quintal do médico hoje de manhã einjetei uma seringa cheia de essência de anisna roda de trás da carruagem. Um cão de filaseguirá o cheiro de anis até o fim do mundo;nosso amigo Armstrong jamais conseguiria

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escapar a Pompey. Oh, o diabo é esperto! Foiaqui que ele me iludiu na outra noite.

O cão saíra de repente da estrada principal,enveredando por um atalho verdejante. Oitocentosmetros adiante, entramos em outra estrada larga e ocão virou à direita, em direção à cidade queacabávamos de deixar. A estrada subiu para o sul dacidade, continuando na direção oposta àquela de ondetínhamos vindo.

– Então esta volta foi em nosso benefício? –observou Holmes. – Não é de admirar queminhas indagações nas outras cidades tenhamdado em nada. Certamente o médico tinharazão para isso, e eu gostaria de saber qualseria, para se dar ao trabalho de tanta dissimu-lação. Ali deve ser o vilarejo Trumpington, àdireita. Por Deus, lá vem a carruagem.Depressa, Watson, ou estamos perdidos!

Holmes entrou num campo, passando por umportão, e puxou o relutante Pompey. Mal nos tínhamosescondido atrás da sebe, a carruagem passou por nós,vindo em direção oposta. Vimos de relance o Dr.Armstrong, de ombros caídos, cabeça entre as mãos, a verdadeira imagem do desespero. Pela expressãograve de Holmes notei que ele também o vira.

– Receio que nossa investigação tenha um fim negro – disse ele. – Mas depois saberemos. Vamos,Pompey, deve ser aquela casa no campo.

Chegáramos ao fim da jornada, sem dúvida.Pompey corria de um lado para outro e gania dolado de fora do portão, onde ainda se viam, nochão, as marcas das rodas da carruagem. Umcaminho conduzia à vivenda isolada. Holmesamarrou o cão à sebe. Continuamos. Meu amigobateu à porta sem obter resposta, e tornou abater. Mas a casa não estava deserta, pois chegoua nossos ouvidos um som baixo – um gemido dedesespero, incrivelmente melancólico. Holmesparou, irresoluto, depois olhou de novo para aestrada de onde tínhamos vindo. Uma carruagemaparecera, e não havia dúvida quanto àquelescavalos cinzentos. – Por Deus, o médico está de volta! – excla-mou Holmes. – Então, está decidido. Temos deaveriguar o que há antes que ele chegue.

Holmes abriu a porta e entramos no vestíbulo.O gemido pareceu-nos mais forte, até se tornar

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um grito de desespero. Vinha de cima; Holmes subiu e acompanhei-o. Ele empurrou uma porta semi-aberta e ambos ficamos atônitos com o que vimos.

Uma mulher morta, jovem e bela, estava deitada na cama. O rosto calmo, pálido, de olhos azuiscompletamente abertos, era emoldurado por cabelos dourados. Aos pés da cama, meio sentado, meioajoelhado, com o rosto escondido nas roupas da cama, vimos um rapaz que se sacudia em soluços. Tãoperturbado estava que não ergueu os olhos, até Holmes bater em seu ombro.

– O senhor é o sr. Godfrey Staunton? – perguntou.– Sim, senhor, mas chegou tarde demais. Ela morreu.

Estava tão fora de si que não conseguiu compreender que não éramos médicos mandados para ajudá-lo.Holmes tentava dizer algumas palavras de consolação e explicar o alarme que o seu desaparecimento pro-vocara nos amigos, quando ouvimos passos na escada, e apareceu à porta o rosto severo e indagador do Dr.Armstrong.

– Então, senhores, atingiram o seu objetivo e escolheram um momento delicado para a intrusão. Nãome agrada perder a calma em presença da morte, mas asseguro-lhes que, se fosse mais jovem, talconduta não deixaria de ser punida.

– Desculpe-me, Dr. Armstrong. Creio que há entre nós um mal-entendido – disse Holmes com digni-dade. – Se quiser descer conosco, poderemos esclarecer-nos mutuamente a respeito deste assunto.

Momentos depois o médico e nós estávamos na sala de baixo.– Então? – perguntou ele.– Quero que compreenda, em primeiro lugar, que não estou a serviço de lorde Mount-James e que

não tenho nenhuma simpatia por aquele senhor. Quando um homem desaparece, é meu deverinvestigar o fato. Mas, ao encontrá-lo, fica terminada minha missão e, contanto que não haja atocriminoso, prefiro abafar um escândalo particular a dar-lhe publicidade. Se, como imagino, a leinão foi infringida, pode contar com minha discrição e com minha cooperação para que os jornaisnada publiquem.

O Dr. Armstrong deu um passo rápido à frente e apertou a mão de Holmes.– É uma boa pessoa – disse ele. – Tinha-o julgado mal. Agradeço aos céus pelo fato de meu remorso

não ter permitido que deixasse só o pobre Staunton, e por ter-me feito voltar, pois assim possoconhecê-lo melhor, sr. Holmes. Sabendo o que sabe, a situação é fácil de ser explicada. Há um ano,Godfrey Staunton passou uma temporada em Londres e ficou apaixonado pela filha da senhoria,com quem se casou. Ela era boa, além de bonita e inteligente. Nenhum homem teria de se envergonharde tal esposa. Mas Godfrey era herdeiro daquele velho malvado, e não há dúvida de que a notícia deseu casamento seria o fim da herança. Eu conhecia bem o rapaz e estimava-o pelas suas excelentesqualidades. Procurei ajudá-lo. Fizemos o possível para que o casamento ficasse secreto, pois, quandohá um murmúrio, as pessoas acabam sabendo. Graças a esta casa isolada e à discrição de Godfrey,até agora nada transpirou. Os únicos que sabiam desse segredo éramos eu e um criado fiel, que foiagora a Trumpington buscar socorro. Mas a esposa de meu amigo contraiu uma moléstia terrível,uma tuberculose gravíssima. O pobre rapaz ficou desesperado, mas tinha de ir para Londres porcausa daquele jogo e não podia esquivar-se sem dizer o motivo que revelaria seu segredo. Tenteianimá-la com um telegrama e ele mandou-me outro, implorando-me que fizesse o possível. Foiesse o telegrama que, de maneira inexplicável, parece que o senhor viu. Não contei ao rapaz agravidade do perigo, pois sabia que ele aqui nada poderia fazer, mas telegrafei contando a verdadeao pai da jovem e ele, levianamente, comunicou o fato a Godfrey. O resultado foi a vinda do rapaz,num estado de quase alucinação, e assim ele ficou, desde então, ajoelhado aos pés da cama, até quehoje de manhã a morte pôs fim aos sofrimentos da pobre jovem. É tudo, sr. Holmes, e tenho a

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certeza de que posso contar com sua discrição e a de seu amigo.Holmes apertou a mão do médico.

– Venha, Watson – disse ele.Saímos daquela casa de dor para a claridade dúbia de um pálido sol de inverno.

ABBEY GRANGE

Numa fria e nevoenta manhã de inverno, em 1897, acordeicom um puxão em meu ombro. Era Holmes. A vela que elesegurava iluminava-lhe o rosto ansioso, e eu soube imediata-mente que acontecera alguma coisa.– Venha, Watson, venha! O jogo começou! Nem umapalavra! Vista-se e venha!

Dez minutos mais tarde estávamos numacarruagem, atravessando ruas silenciosas acaminho da estação de Charing Cross. Osprimeiros sinais da madrugada apareciam evíamos de vez em quando um vulto deoperário. Holmes estava silencioso, encolhidoem seu vasto sobretudo, e eu também, pois ofrio era cortante e nenhum de nós tomara café

antes de sair. Só depois de termos tomado umchá bem quente na estação, e já sentados no trem,

é que ele se sentiu disposto a falar, e eu, a ouvir.

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Holmes tirou um papel do bolso e leu em voz alta:“Abbey Grange, Marsham, Kent, 3:30 h.Caro sr. Holmes – Ficaria muito satisfeito se pudesse vir imediatamente em meuauxílio, num caso que promete ser realmente extraordinário. É algo de suaespecialidade. A não ser para libertar a dama, farei com que tudo fique exatamentecomo foi encontrado, e peço-lhe que não perca um instante, pois é difícil deixar sirEustace lá.

Sinceramente,Stanley Hopkins”.

– Hopkins pediu meu auxílio sete vezes, e todas elas se justificaram – disse Holmes. – Creio que oscasos de nosso amigo fazem parte da sua coleção, Watson, e devo confessar que você tem um domde seleção que desculpa muita coisa deplorável, a meu ver, em suas narrativas. Seu hábito fatal deolhar para tudo como uma história, em vez de um exercício científico, arruinou o que poderia tersido uma instrutiva e até mesmo clássica série de demonstrações. Refere-se por alto a um trabalhode grande astúcia e delicadeza, e apóia-se em pormenores sensacionalistas, que podem excitar masnão instruir o leitor.

– Por que não escreve você mesmo os seus casos? – repliquei, um tanto azedamente.– Escreverei, caro Watson, escreverei. No momento presente, estou muito ocupado, como sabe, mas

pretendo dedicar a velhice à composição de um livro que focalizará toda a arte detetivesca numúnico volume. Nosso caso presente parece ser de assassinato.

– Acha, então, que sir Eustace está morto?– Creio que sim. A letra de Hopkins denota grande agitação, e ele é emotivo. Sim, acho que houve

violência e que o corpo está à nossa espera para um exame. Um simples suicídio não faria com queHopkins me chamasse. Quanto a dizer que libertou a dama, parece que ela esteve presa no quartodurante a tragédia. Estamos nos movendo na alta sociedade. Veja, Watson, o papel, o monograma E.

B., o brasão, o pitoresco endereço. Creio que nosso amigo Hopkins estará à altura da situação, eque vamos ter uma manhã interessante. O crime foi cometido antes da meia-noite de ontem.

– Como sabe?– Por um exame dos trens e uma avaliação do tempo. A polícia local foi chamada, mas comunicou-se

com a Scotland Yard. Hopkins foi para lá e, por sua vez, chamou-me. Tudo isso leva bem uma noitede trabalho. Bem, cá está a estação de Chislehurst, e já o saberemos.

Um trajeto de três quilômetros, por estreitas azinhagas, levou-nos a um portão grande, aberto por umhomem que parecia aflito — provavelmente por causa da tragédia. A alameda cortava um parque antigo, nomeio de velhos olmos, e ia acabar diante de uma casa baixa, esparramada, com pilares na frente. A partecentral era, evidentemente, muito antiga, coberta de hera, mas as janelas largas indicavam que houverareforma, e uma ala da casa parecia completamente nova. O inspetor Stanley Hopkins, com seu vulto joveme expressão viva, esperava-nos à porta.

– Estou muito satisfeito por ter vindo, sr. Holmes. E também o senhor, Dr. Watson! Mas, se pudessevoltar atrás, não os teria incomodado, pois a dona da casa, depois que voltou a si, fez-nos umadescrição tão clara do incidente que não nos resta muito o que fazer. Lembra-se daquele grupo deladrões de Lewisham?

– Refere-se aos três Randalls?– Exatamente: o pai e os dois filhos. É obra deles, não tenho a menor dúvida. Fizeram um trabalhinho

em Sydenham, há quinze dias, e foram vistos e descritos. É uma audácia fazer outro logo em seguida,mas foram eles. Desta vez, é a forca que os espera.

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– Quer dizer que sir Eustace morreu?– Sim, esmagaram-lhe a cabeça com o atiçador da lareira de sua própria casa.– O cocheiro disse-me que se trata de sir Eustace Brackenstall.– Realmente; era um dos homens mais ricos de Kent. Lady Brackenstall está na saleta. Pobre senhora,

passou por uma terrível prova. Parecia mais morta do que viva quando cheguei. Creio que é melhorouvi-la contar os fatos. Depois iremos examinar a sala de jantar.

Lady Brackenstall não era uma pessoa vulgar. Raras vezes tenho visto mulher tão graciosa, tão feminina,tão bela. Loura, com cabelos dourados, olhos azuis; teria, naturalmente, a tez perfeita que geralmente acom-panha esse tipo, se a experiência daquela noite não a tivesse deixado tão desfeita. Os sofrimentos eramtanto físicos como mentais, pois um lado da testa estava roxo e inchado, e era constantemente banhado comágua e vinagre por uma criada alta e austera. A dona da casa estava estendida, exausta, num divã, mas o olharvivo, observador, a expressão alerta no belo rosto indicavam que nem o intelecto nem a coragem tinhamficado prejudicados com a terrível experiência. Vestia uma camisola solta, azul e prateada, mas havia a seulado um vestido preto de jantar.

– Já lhe contei tudo o que aconteceu, sr. Hopkins – disse ela, com voz cansada. – Se posso repetir?Bem, se achar necessário, repetirei para esses senhores. Já estiveram na sala de jantar?

– Achei melhor ouvirem primeiro a sua história.– Ficarei satisfeita assim que o senhor tomar todas as providências. É horrível pensar nele lá. – Estre-

meceu, escondendo o rosto nas mãos. Ao fazê-lo, a manga solta caiu, mostrando o antebraço.Holmes soltou uma exclamação.

– Tem outros ferimentos, minha senhora! O que é isso?Duas manchas vermelhas marcavam o braço claro e roliço. A jovem ocul-

tou-as imediatamente.– Não é nada – disse ela. – Nada tem a ver com o horrível acidente de ontemà noite. Façam o favor de se sentar, e eu contarei o que houve.

“Sou esposa de sir Eustace Brackenstall. Casei-me há um ano. É inútil querer ocultar o fatode ter sido um casamento infeliz. Todos osvizinhos poderiam informá-lo, senhor, mesmoque eu tentasse negar. Talvez a culpa seja, emparte, minha. Fui educada na atmosfera maislivre e menos convencional do sul da Austrália;adapto-me mal à vida na Inglaterra, com seuspreconceitos e tabus. Mas a razão principalestava num fato de todos conhecido, isto é,sir Eustace era um bêbado inveterado.Conviver com um homem assim, mesmo poruma hora, é desagradável. Pode imaginar o queera, para uma mulher sensível e voluntariosa,viver presa a ele dia e noite? É um sacrilégio,

um crime, dizer que tal casamento é indissolúvel. Essas leis monstruosas trarão maldição ao país.Deus não permitirá que tanta maldade persista”.

Ela sentou-se por um momento, de rosto corado, os olhos brilhando sob a marca na fronte. Depois, amão forte e macia da criada fez com que se deitasse de novo, e a cólera foi substituída por soluços. Final-mente, continuou:

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– Vou contar-lhes o que aconteceu a noite passada. Talvez saibamque todos os empregados dormem na ala nova. Neste blococentral ficam os dormitórios, com a cozinha atrás enosso quarto em cima. Minha empregada, Theresa,dorme num quarto acima do meu. Não há maisninguém, e nenhum som perturbaria os quedormem na outra ala. Isso devia ser doconhecimento dos ladrões, pois de contrárionão teriam agido como agiram.“Meu marido foi para o quarto às dez emeia, mais ou menos. Os empregados jáse haviam recolhido. Somente minhacriada estava acordada e ela costuma ficarem seu quarto, em cima, aguardando queeu a chame. Fiquei aqui nesta sala atédepois das onze horas, absorta num livro.Depois dei uma volta para ver se estavatudo em ordem, antes de subir. Era meuhábito fazê-lo pessoalmente, pois não se podiaconfiar em sir Eustace. Fui à cozinha, à copa, à salade armas, à sala de bilhar, à sala de visitas e, finalmente, àsala de jantar. Ao aproximar-me da porta-janela, coberta por uma cortina pesada, senti de repenteum golpe de vento no rosto, o que indicava que ela estava aberta. Abri a cortina e dei com umhomem idoso, de ombros fortes, que acabara de entrar na sala. A porta-janela é larga e dá para umrelvado. Eu tinha na mão a minha vela de quarto e, à luz dela, vi atrás do homem outros dois, queiam entrando. Recuei, mas o primeiro sujeito avançou. Agarrou-me primeiro pelos pulsos, depoispelo pescoço. Abri a boca para gritar, mas recebi um soco no olho e caí. Devo ter ficado inconscientepor alguns minutos, pois, quando dei por mim, vi que tinham rebentado o cordão da campainha eme haviam amarrado na cadeira de carvalho que fica à cabeceira da mesa. Estava tão bem presa quenão podia mover-me, e uma mordaça impedia-me de gritar. Foi nesse momento que o meu pobremarido entrou na sala. Evidentemente, ouvira sons e viera preparado para o que quer que fosse.Estava de calça e camisa, e tinha na mão sua bengala favorita. Correu para um dos ladrões, mas ooutro, o sujeito de idade, inclinou-se, apanhou o atiçador da lareira e desferiu-lhe um terrível golpe.Meu marido caiu sem um gemido e não mais se moveu. Desmaiei de novo, mas deve ter sidoapenas por alguns minutos. Quando abri os olhos, vi que tinham tirado as pratas de cima do aparadore uma garrafa de vinho que lá estava. Cada um deles tinha um copo na mão. Já lhe disse que um eraidoso, com barba; os outros dois, rapazinhos imberbes. Poderiam ser pai e filhos. Falavam pormurmúrios. Depois, aproximaram-se, verificando se eu estava bem amarrada. Finalmente saíram,fechando a janela. Só um quarto de hora depois consegui fazer com que a mordaça caísse. Gritei ea minha criada acudiu. Depois vieram os outros empregados e mandaram chamar a polícia, quealertou Londres imediatamente. É só o que posso dizer-lhes, senhores, e espero que não me sejanecessário repetir história tão dolorosa”.

– Alguma pergunta, sr. Holmes? – disse Hopkins.– Não quero abusar do tempo e da paciência de lady Brackenstall – declarou meu amigo. – Mas,

antes de ir para a sala de jantar, gostaria de ouvir o que a criada tem a dizer – continuou, voltando-

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se para ela.– Vi os homens antes de entrarem em casa – contou ela. – Sentada à minha janela, vi três homens ao

luar, perto do portão de entrada, mas não dei importância a isso, na ocasião. Somente uma horadepois é que ouvi minha patroa gritar e corri para baixo, encontrando-a, coitadinha, como ela já lhescontou, e ele caído no chão, todo ensangüentado. Era de deixar uma mulher louca, ali amarrada, ovestido manchado com o sangue do próprio marido, mas nunca lhe faltou coragem, à srta. MaryFraser, de Adelaide... e lady Brackenstall, de Abbey Grange, não é diferente. Já a interrogaram bastante,senhores, e agora ela vai para o quarto, com sua velha Theresa, à procura do descanso que necessita.

Com ternura de mãe, a mulher magra e abatida pôs os braços à volta da patroa e levou-a.– Está com ela desde criança – contou Hopkins. – Foi sua ama, e veio com lady Brackenstall para a

Inglaterra, quando deixaram a Austrália há dezoito meses. Chama-se Theresa Wright e é o tipo deempregada que não se encontra hoje em dia. Por aqui, sr. Holmes, por favor!

A expressão de interesse desaparecera do rosto deHolmes, e percebi que, uma vez que não existia misté-rio, o caso não o atraía. Ainda precisava ser efetuada umaprisão, mas quem eram aqueles malandros vulgares paraque Holmes sujasse as suas mãos na tarefa de capturá-los? Um grande especialista que fosse chamado para umcaso de sarampo teria a mesma expressão aborrecidaque vi no rosto do meu amigo. Mas a cena na sala dejantar foi suficientemente estranha para lhe chamar aatenção e reavivar-lhe o interesse.

Era uma sala grande e de pé-direito alto, com teto elambris de carvalho, uma bela coleção de cabeças deveado e armas antigas nas paredes. Na parede oposta àporta de entrada vimos a porta-janela de que nos tinhamfalado. Três janelas menores, do lado direito, deixavamentrar o pálido sol de inverno. À esquerda havia umalareira grande, funda, com um pesado tampo decarvalho. Ao lado da lareira, uma pesada cadeira decarvalho, de braços e com pés cruzados embaixo. Namadeira trabalhada via-se enrolada uma corda vermelha,amarrada embaixo, nos pés cruzados. Ao soltarem adona da casa a corda escorregara, mas permaneceramos nós que a tinham prendido. Esses pormenores sónos chamaram a atenção mais tarde, pois nossos olhosfixaram-se no terrível espetáculo oferecido pelo homem estendido no chão, sobre uma pele de tigre.

Era o corpo de um homem alto, bem-feito, de mais ou menos quarenta anos de idade. Estava de costas,o rosto para cima, os dentes brancos como que arreganhados no meio da barba preta. As duas mãos contraídasestavam erguidas acima da cabeça, e no meio delas via-se uma pesada bengala. O rosto escuro, aquilino,estava convulso, num espasmo de cólera vingativa, dando-lhe um ar diabólico. Evidentemente estava deitadoquando ouviu o barulho, pois usava um camisolão de dormir pretensioso, bordado, e os pés que saíam dascalças estavam nus. A cabeça estava horrivelmente machucada e toda a sala indicava a ferocidade do golpeque lhe fora desferido. A seu lado estava o atiçador, dobrado, devido ao impacto. Holmes examinou-o e aoterrível ferimento por ele causado.

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– Deve ser um homem muito forte, o tal Randall – observou.– É, sim – disse Hopkins. – Sei muito bem quem é, um sujeito perigoso.– Não lhe será difícil apanhá-lo.– Claro que não. Temos andado à sua procura e ouvíramos dizer que fugira para a América. Agora que

sabemos que o bando está aqui, não poderá escapar-nos. Mandamos aviso para todos os portos eserá oferecida uma recompensa antes que caia a noite. O que me admira é como podem ter feito talloucura, sabendo que lady Brackenstall os descreveria e que não poderíamos deixar de reconhecera descrição.

– Exatamente. Seria de esperar que tivessem também procurado obter o silêncio de lady Brackenstall.– Talvez não tenham percebido que ela voltara a si.– Provavelmente. Estando ela inconsciente, não lhe tirariam a vida. Que me diz deste infeliz, Hopkins?

Lembro-me de ter ouvido estranhas histórias a seu respeito.– Era um bom homem, quando sóbrio, mas um demônio quando bêbado, ou antes, meio bêbado,

pois raramente se embriagava por completo. O demônio parecia tomar conta dele, nessas ocasiões,e era capaz de tudo. Pelo que ouvi dizer, apesar da fortuna e do título, uma ou duas vezes quase semeteu com a polícia. Houve um escândalo, pois dizem ter derramado gasolina num cão, ateando-lhe fogo... o cão da esposa, o que é pior, e só com dificuldade o caso foi abafado. Depois, atirou umajarra na cabeça da criada, Theresa. Também isso lhe trouxe aborrecimentos. Cá entre nós, a atmosferaaqui ficará mais leve sem ele. O que está procurando agora?

Holmes estava de joelhos, examinando com grande atenção os nós da corda vermelha que haviam imo-bilizado a dona da casa. Depois examinou o cordão da campainha, que fora arrancado.

– Quando tiraram o cordão, a campainha deveter tocado alto na cozinha – disse ele.

– Ninguém poderia ter ouvido. A cozinha ficamuito no fundo.

– Como o ladrão poderia saber que ninguémouviria? Como ousou arrancar um cordão decampainha dessa maneira temerária?

– É verdade, sr. Holmes, é verdade. O senhorformula a pergunta que, mais de uma vez, fiz amim próprio. Não há dúvida de que esse sujeitoconhecia a casa e os seus hábitos. Devia saberque os criados estariam deitados àquela horada noite, e que ninguém ouviria a campainhana cozinha. Deve, portanto, ter tido algumcriado como cúmplice. Mas são oito, e todoscom boas referências.

– Em princípio a suspeita recairia sobre a criadaem quem o patrão atirou a jarra. Mas isso seriatrair a patroa, a quem ela parece tão dedicada.Bem, bem, isso não tem importância, e, quandoRandall estiver preso, você não terá dificuldadeem saber o nome dos cúmplices. A históriacontada pela dona da casa parece corroborada pelo que vemosdiante de nós. – Holmes foi até a porta-janela e abriu-a. –

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Aqui não há pegadas; mas o chão é duro e não seria o caso de esperar encontrá-las. Vejo que asvelas sobre a lareira foram acesas.

– Sim, foi por esta luz e pela vela que a senhora trazia que os ladrões puderam orientar-se.– E o que foi que levaram?– Oh, não roubaram grande coisa. Apenas algumas peças de prata, de cima do aparador. Lady Brackenstall

acha que ficaram tão perturbados com a morte de sir Eustace, que não fizeram a limpeza que pretendiamfazer.

– Deve ser verdade. Apesar disso, beberam vinho, pelo que vejo.– Para retemperar os nervos.– Exatamente. Ninguém tocou nesses três copos

sobre o aparador, não é?– Não. E também a garrafa está como foi deixada.– Vamos ver. Ora, ora, o que é isso?

Os três copos estavam agrupados, todos tintos devinho, e um deles continha borra. A garrafa estava perto,três quartos cheia, e, ao lado, uma rolha longa, manchada.Sua aparência e o pó na garrafa indicavam que os ladrõesnão tinham aberto uma garrafa comum.

A atitude de Holmes mudou. Perdeu a expressãodistraída, e vi de novo uma luz de interesse em seusolhos profundos. Ele ergueu a rolha e examinou-aatentamente.

– Como a tiraram? – perguntou.Hopkins apontou para uma gaveta aberta pela metade.

Havia ali roupa de mesa e um grande saca-rolhas.– Lady Brackenstall disse que o saca-rolhas foi

usado?– Não. O senhor deve lembrar-se de que ela estava

inconsciente no momento em que a garrafa foiaberta.

– Isso mesmo. Por falar nisso, o saca-rolhas nãofoi usado. A garrafa foi aberta com um saca-rolhas de bolso, provavelmente desse tipo quevem junto com um canivete e que não tem mais de quatro centímetros de comprimento. Seexaminar a parte de cima da rolha, verá que foi furada três vezes, até que conseguissem tirá-la.Não foi trespassada. Esse saca-rolhas grande teria trespassado a rolha, que sairia com um sóarranco. Quando encontrar o ladrão, verá que possui um desses canivetes.

– Ótimo! – disse Hopkins.– Mas confesso que estes copos me deixam perplexo. Lady Brackenstall viu os homens beberem, não

é verdade?– Sim, foi clara a esse respeito.– Então, está acabado. Que mais se pode dizer? Apesar de tudo, deve reconhecer que os três copos

são extraordinários, Hopkins! Ora, não vê nada estranho? Bem, bem, vá lá. É possível que, quandoum homem possui dons e poderes extraordinários, como eu, seja levado a procurar uma explicaçãocomplexa quando tem uma simples à mão. Talvez seja coincidência a respeito dos copos. Pois bem,

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até logo, Hopkins. Não creio que possa ajudá-lo;parece-me que o caso está bem claro. Avise-mequando Randall for preso, ou se houver qualqueroutra novidade. Espero poder dar-lhe logo osparabéns por uma feliz conclusão. Venha, Watson,creio que poderemos aplicar melhor nosso tempoem casa.

Na viagem de regresso percebi, pela expressão deHolmes, que ele estava muito preocupado com algo queobservara. De vez em quando, com esforço, procuravadesfazer essa impressão e conversar como se o casoestivesse liquidado, mas depois ficava de novo pensativo.Finalmente, com súbito impulso, assim que nosso trem saiude uma estação de subúrbio, pulou para a plataforma epuxou-me.

– Desculpe-me, caro amigo – disse, quando vimos otrem virar a curva. – Sinto torná-lo vítima do quetalvez seja apenas um capricho, mas, por Deus,Watson, não posso deixar o caso como está. Todosos meus instintos gritam contra isso. Está errado,está errado, está tudo errado. E, no entanto, ahistória da dona da casa está completa, foicorroborada pela empregada, cada pormenorparece absolutamente exato. Que tenho eu a opora isso? Três copos de vinho, apenas. Mas, caso eu não tivesse tomado as coisas como certas, setivesse examinado tudo com o cuidado de quem começa uma investigação com a cabeça fresca,sem ter ouvido uma história, não teria encontrado algo mais definido? Claro que teria. Sente-seneste banco, Watson, até que chegue um trem de Chislehurst, e permita-me que ponha os indíciosdiante de você, implorando-lhe, em primeiro lugar, que afaste do pensamento a idéia de que os fatoscontados pela dona da casa e pela criada sejam necessariamente verdadeiros. A encantadorapersonalidade da dama não deve influir em nosso julgamento.“Na história de lady Brackenstall existem certamente pormenores que, examinados a sangue-frio,excitariam as nossas suspeitas. Esses ladrões cometeram um considerável roubo em Sydenham, háquinze dias. Saiu nos jornais a descrição do pai e dos filhos, e ela logo ocorreria a quem desejasseinventar uma história na qual bandidos imaginários tomassem parte. Em geral, os ladrões que fizeramum bom negócio dão-se por felizes de aproveitar em paz as vantagens do roubo, em vez de semeterem em outra perigosa aventura. Além disso, não é natural que atuem tão cedo, no princípio danoite; em geral não espancam uma mulher para evitar que grite, pois seria esse o meio mais fácil defazê-la gritar; não é comum assassinarem um homem, quando são em número suficiente paradominá-lo; é extraordinário que se contentem com pouca coisa, quando têm muita a seu alcance; e,finalmente, asseguro-lhe que é estranho que tais homens deixem uma garrafa de vinho pela metade.Que acha, Watson?”

– O efeito acumulado de tudo isso é de fato considerável, mas cada um dos pontos em separado éadmissível – respondi. – O mais estranho, para mim, é que ela tenha sido amarrada.

– Pois bem, isso não é assim tão estranho, Watson, pois é evidente que teriam de matá-la, ou amarrá-

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la, para que não desse imediatamente o alarme da fuga. E, acima de tudo, vem o incidente dos trêscopos de vinho.

– Que têm eles?– Não pode se recordar deles?– Claro que posso.– Disseram-nos que os três homens beberam. Acha isso provável?– Por que não? Havia vinho em todos os copos.– Exatamente. Mas havia borra em apenas um deles. Deve ter notado essa particularidade. O que lhe

sugere?– O último copo servido provavelmente foi o que recebeu a borra.– Claro. A garrafa estava cheia dela, e é inconcebível que dois copos estivessem sem nada, e o outro,

cheio dela. Há duas explicações, e apenas duas. Uma, que a garrafa foi violentamente agitada depoisde ser servido o segundo copo, de modo que o terceiro apanhou a borra. Isso não parece provável.Não, não, tenho certeza de que tenho razão.

– Então, qual é sua suposição?– De que somente dois copos foram usados e que os restos dos dois foram vertidos no terceiro copo,

para dar a impressão de que havia três pessoas. Dessa maneira, toda a borra iria para o terceirocopo, não é verdade? Sim, estou convencido de que foi isso. Mas, se acertei na explicação dessepequeno pormenor, então o caso passa do comum para o extraordinário, pois significa apenas quelady Brackenstall e sua criada tentaram deliberadamente mentir-nos, e não devemos acreditar numasó palavra de sua história; elas têm motivos para ocultar o verdadeiro criminoso e devemos inves-tigar nosso caso sem o auxílio delas. É esta a nossa missão, Watson, e aqui está o trem.

O pessoal da casa ficou muito admirado com a nossa volta, mas Holmes, vendo que Hopkins saíra parafazer seu relatório, tomou conta da sala de jantar, fechou a porta por dentro e dedicou-se, durante duashoras, à minuciosa investigação que era a base em que se firmava o brilhante edifício de suas deduções.Sentado a um canto, como o estudante interessado que observava a demonstração do professor, acompa-nhei todos os passos de sua extraordinária busca. A janela, as cortinas, o tapete, a cadeira, a corda – cadaobjeto foi examinado minuciosamente, e seu valor, ponderado.

O corpo do infeliz baronete fora removido, mas o resto continuava em seus lugares. Depois, com espanto,vi Holmes subir na maciça lareira. Acima de sua cabeça pendiam alguns centímetros de corda, ainda presaao arame. Durante muito tempo ele olhou para cima, e, tentando chegar mais perto, apoiou o joelho namão-francesa da parede. Isso permitiu que sua mão chegasse muito perto da ponta da corda, mas foi a mão-francesa o que mais lhe prendeu a atenção. Finalmente, desceu com uma exclamação satisfeita.

– Está certo, Watson – disse ele. – Este caso é um dos mais extraordinários de nossa coleção. Mas,Deus do céu, como fui inepto, quase chegando a cometer a maior falta de minha vida! Acho, agora,que os poucos elos que faltam à corrente estão quase à nossa mão.

– Sabe quem são os homens?– O homem, Watson, o homem. Apenas um, mas uma formidável criatura. Forte como um touro,

basta ver a violência com que o atiçador foi dobrado. Um metro e noventa de altura, ágil como umesquilo, e de dedos hábeis. Finalmente, homem de muito sangue-frio, pois esta história engenhosaé de sua autoria. Sim, Watson, temos aqui o trabalho de um sujeito extraordinário. Mas com a cordaele nos dá uma pista que não deixa dúvidas.

– Que pista?– Pois bem, se você tivesse de puxar aquela corda, Watson, onde esperaria que ela rebentasse?

Certamente no ponto onde se prende ao arame. Por que haveria de partir-se a oito centímetros da

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extremidade de cima, como aconteceu com esta aqui?– Pelo fato de estar gasta?– Exatamente. Esta ponta aqui está gasta. Ele teve a inteligência decortá-la com uma faca, mas a outra parte não está desfiada. Não se

podia observar isso daqui de baixo, mas subindo nalareira pude ver que a ponta da parte superior estácortada firmemente, sem sinais de desgaste. Podemosreconstituir os fatos. O homem precisava da corda. Nãoquis arrancá-la, com medo do alarme da campainha. Oque fez, então? Pulou para a lareira, não pôde alcançara corda, pôs o joelho na mão-francesa, como você podever pela marca na poeira, e cortou a corda com a faca.Faltam oito centímetros para que eu alcance aextremidade, de modo que calculo que ele seja oitocentímetros mais alto do que eu. Veja esta marca nacadeira de carvalho! O que é? – Sangue. – Claro que é sangue. Só isso desmente a história dadona da casa. Se ela estava sentada nesta cadeira quandoo crime foi cometido, como pode haver aqui esta marca?Não, não, ela foi posta na cadeira após a morte domarido. Garanto que há uma marca correspondente emseu vestido preto. Ainda não encontramos o nosso

Waterloo, mas isso aqui é a nossa Marengo, pois começa com derrota e termina com vitória. Gostariade trocar uma palavra com Theresa, a criada. Temos de nos acautelar, a princípio, se quisermos ainformação que desejamos.

Era interessante aquela australiana de ar severo: taciturna, desconfiada, pouco amável. Holmes levoutempo para, com a sua amabilidade e aceitação de tudo o que ela dizia, conseguir que se abrisse. A mulhernão tentou ocultar seu ódio pelo antigo patrão.

– Sim, senhor, é verdade que ele arremessou a jarra contra mim. Quando o ouvi chamar minha patroapor certo nome, eu lhe disse que ele não ousaria falar assim se o irmão dela estivesse presente. Foientão que ele a atirou. Poderia atirar uma dúzia, contanto que deixasse minha menina em paz. Eleestava sempre maltratando-a, e ela era orgulhosa demais para se queixar; ela nunca vai chegar a mecontar tudo o que o marido lhe fez. Não me falou sobre aquelas marcas no braço que o senhor viuesta manhã, mas eu sei que foram feitas com um alfinete de chapéu. O miserável! Deus me perdoepor falar assim, agora que está morto, mas jamais existiu demônio igual na terra. Era todo mel,quando o conhecemos, há dezoito meses apenas, mas parece que foram dezoito anos. Ela acabarade chegar a Londres. Era a sua primeira viagem, nunca saíra da Austrália. Ele conquistou-a com seutítulo, seu dinheiro e suas falsas maneiras londrinas. Se a coitada cometeu um erro, pagou caro. Emque mês o conhecemos? Logo que chegamos. Chegamos em junho, e ela conheceu-o em julho.Casaram-se em janeiro do ano passado. Sim, ela está na saleta agora e creio que o receberá, mas osenhor deve poupá-la, pois já agüentou o máximo que uma criatura pode suportar.

Lady Brackenstall estava reclinada no mesmo divã, mas parecia mais animada. A criada entrou conosco erecomeçou a pôr compressas na mancha da testa da patroa.

– Espero que não tenham vindo interrogar-me de novo – disse a dona da casa.

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– Não – respondeu Holmes com sua voz mais suave. – Não quero incomodá-la desnecessariamente,lady Brackenstall. O meu desejo é facilitar-lhe as coisas, pois estou convencido de que sofreu muito.Se quiser tratar-me como amigo e confiar em mim, creio que não se arrependerá dessa confiança.

– O que quer que eu faça?– Conte-me a verdade.– Sr. Holmes!– Não, não, lady Brackenstall, não adianta. Talvez conheça minha reputação. Pois renuncio a ela se a

sua história não for pura invenção.Patroa e empregada olharam para Holmes, pálidas e amedrontadas.

– O senhor é ousado! – exclamou Theresa. – Está querendo dizer que a minha patroa mentiu?Holmes ergueu-se.

– Nada tem a dizer-me? – perguntou.– Já lhe disse tudo.– Pense um pouco, lady Brackenstall. Não seria melhor ser franca?

Por um instante, houve hesitação no belo rosto. Depois, um pensamento mais forte fez com que ele setransformasse numa máscara.

– Contei-lhe tudo o que sabia.Holmes pegou o chapéu e encolheu os ombros.

– Sinto muito, minha senhora – disse ele.E, sem mais palavras, saiu da sala e dacasa.

Havia um tanque no jardim e foi para lá quemeu amigo me conduziu. Estava gelado, mas nocentro havia uma abertura cômoda para um cisnesolitário. Holmes fitou-o e em seguida atravessouo portão de entrada. Escreveu um bilhete aHopkins e entregou-o ao porteiro.

– Pode ser que acerte, pode ser que não,porém temos de fazer alguma coisa peloamigo Hopkins a fim de justificar estasegunda visita – disse ele. – Mas aindanão quero fazer-lhe confidências. Nossopróximo centro de operações vai ser oescritório da agência de navegação dalinha Adelaide - Southampton, que fica naextremidade da Pall Mall, se bem melembro. Há outra linha de vapores que ligaa Austrália à Inglaterra, mas primeiro investigaremos a mais importante.

O cartão de Holmes, mandado ao gerente, fez com que fosse atendido imediatamente, e não tardou emobter a informação que desejava. Em junho de 1895, somente um navio daquela linha aportara na Inglaterra.Era o Rock of Gibraltar, o maior e melhor da companhia. O exame da lista de passageiros revelou-nos onome da srta. Fraser, de Adelaide, que viajava com sua criada. A tripulação ainda era a mesma de 1895, comuma exceção. O primeiro-oficial, o sr. Jack Croker, fora feito capitão, e devia assumir o comando de novonavio, o Bass Rock, que sairia dali a dois dias de Southampton. Morava em Sydenham, mas talvez tivessevindo receber instruções. Desejávamos falar com ele?

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Não, o sr. Holmes não desejava vê-lo, mas gostaria de saber alguma coisa a respeito de sua carreira e doseu caráter.

Sua ficha era magnífica. Não havia, na frota, oficial que se lhe comparasse. Quanto ao caráter, ele eradigno de confiança quando em seu posto; fora do navio era um sujeito violento, exaltado, facilmente excitável,mas leal, honesto e de bom coração. Foram essas as informações que Holmes colheu na companhia denavegação. Dali foi para a Scotland Yard, mas, em vez de entrar, ficou sentado na carruagem, mergulhado emseus pensamentos. Finalmente, foi ao telégrafo da Charing Cross e mandou um telegrama. Dali a poucopúnhamo-nos a caminho da Baker Street.

– Não, não pude fazê-lo, Watson – disse ele. – Uma vez expedido o mandado de prisão, nada mais osalvaria. Uma ou duas vezes durante a minha carreira, achei que o mal que eu tinha feito, ao revelaro criminoso, era maior do que o que ele próprio fizera. Aprendi a ser cauteloso, e prefiro prejudicara lei inglesa a prejudicar a minha consciência. Precisamos saber mais alguma coisa antes de agir.

Ao anoitecer recebemos a visita do inspetor Hopkins. As coisas não lhe corriam bem.– Creio que o senhor é um feiticeiro, sr. Holmes. As vezes acho realmente que tem poderes sobrena-

turais. Como pôde saber que as pratas roubadas estavam no fundo do tanque?– Não sabia.– Mas aconselhou-me a verificar.– Encontrou-as, então?– Encontrei-as, sim.– Fico muito satisfeito por tê-lo ajudado.– Mas não me ajudou. Tornou o caso mais difícil ainda. Que espécie de bandidos são esses, que

roubam pratas para atirá-las ao tanque?– Não há dúvida de que é uma excentricidade. Calculei apenas que, se as pratas tivessem sido roubadas

por pessoas que não as quisessem, e que as tivessem levado apenas para despistar (como foi o queaconteceu), essas pessoas ficariam desejosas de se ver livres delas.

– Mas por que lhe ocorreu tal idéia?– Pois bem, achei possível. Quando eles saíram pela porta-janela, viram o tanque com um buraco

bem no meio. Poderia haver melhor esconderijo?– Ah, esconderijo, isso é outra coisa! – exclamou Hopkins. – Sim, sim, agora vejo tudo! Era cedo,

havia gente nas estradas, eles tiveram medo de ser vistos com as pratas, de modo que as atiraram aotanque, pretendendo voltar quando as coisas se acalmassem. Excelente, sr. Holmes, melhor do quesua idéia da pista falsa.

– Isso mesmo. Tem aí uma admirável teoria. Reconheço que minhas idéias são fantásticas, mas levei-o a descobrir as pratas.

– Sim, sim, foi graças ao senhor. Mas tive um contratempo.– Um contratempo!?– Sim, sim, sr. Holmes. O bando de Randall foi preso hoje de manhã, em... Nova York.– Que diabo, Hopkins, isso vai contra a sua teoria de que eles teriam cometido um assassinato em

Kent na noite passada.– É um golpe, sr. Holmes, um golpe fatal. Enfim, sempre há outras quadrilhas, ou talvez se trate de

uma que a polícia não conheça.– É muito possível. O quê, já vai embora?– Sim, sr. Holmes. Não descansarei enquanto não chegar ao fim deste caso. Suponho que não tem

nenhuma pista a dar-me!– Já lhe dei uma.

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– Qual?– Pois bem, falei em pista falsa.– Ora, sr. Holmes, ora!– É essa a questão, naturalmente. Mas dou-lhe a

sugestão. Talvez perceba que tem algumfundamento. Não quer jantar? Então adeus, edê-me notícias.

O jantar terminara quando Holmes aludiu de novo aocaso. Acendeu o cachimbo e aproximou os pés do fogo.De repente, olhou para o relógio.

– Estou à espera de novidades, Watson.– Quando?– Daqui a alguns minutos. Acha que agi mal com

Hopkins, agora há pouco?– Confio em você.– Resposta muito sensata, Watson. Pode encarar

o caso desta maneira: o que sei não é oficial;posso, portanto, agir à minha moda, mas ele...mas ele, não. Hopkins tem de revelar tudo, paraser leal ao seu emprego. Havendo dúvidas, eunão gostaria de deixá-lo em posição difícil, demodo que reservo minha informação até ter absoluta certeza.

– Mas quando será?– Chegou a hora. Vai presenciar a última cena de um dramazinho

extraordinário.Ouvimos passos na escada e a nossa porta abriu-se para dar entrada ao mais belo tipo de homem que

jamais vi. Era um rapaz muito alto, de bigodelouro, olhos azuis, pele queimada pelo sol dostrópicos e um andar que indicava ser ele ágil eforte. Fechou a porta, ficou de mãos contraídase peito ofegante, parecendo profundamenteemocionado. – Sente-se, capitão Croker. Vejo que recebeuo meu telegrama.

Nosso visitante caiu numa poltrona, olhan-do-nos com ar interrogador. – Recebi e vim à hora que o senhor marcou.Soube que esteve na companhia de navegação.Não havia maneira de lhe escapar. Ouçamos opior. Que vai fazer de mim? Prender-me? Fale,homem! Não pode ficar aí sentado, brincandode gato e rato comigo. – Tome um charuto – disse Holmes. – Fume,e não se deixe dominar pelos nervos, capitãoCroker. Eu não estaria aqui sentado, fumando,

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se o considerasse um criminoso vulgar, pode estar certo disso. Seja franco comigo etalvez resolvamos o caso. Mas se procura enganar-me, liquido-o.

– Que deseja que eu faça?– Conte-me exatamente o que aconteceu em Abbey Grange, a noite passada... a história

verdadeira, sem nada acrescentar ou diminuir. Se o senhor se desviar da verdade umcentímetro que seja, tocarei este apito de polícia à janela, e o caso sairá para sempre deminhas mãos.

O marinheiro pensou por um momento. Depois bateu na perna com a mão queimada de sol.– Arrisco-me. Acredito que o senhor seja um homem honrado e de palavra, e vou contar-

lhe a história. Mas direi uma coisa em primeiro lugar. Pelo que me diz respeito, de nadame arrependo e nada temo. Maldita seja aquela fera; se tivesse dezenas de vidas, detodas elas teria de me prestar contas! Mas existe aquela senhora, Mary, Mary Fraser, poisnunca a chamarei pelo maldito sobrenome do marido. Quando penso que posso prejudicá-la, eu, que daria a vida só para vê-la sorrir, fico com o coração partido. E no entanto, noentanto... o que eu poderia ter feito? Vou contar-lhes a história, senhores, e depois lhesperguntarei de homem para homem se poderia ter feito outra coisa.“Tenho de retroceder um pouco. Parece que sabem tudo, de modo que com certeza nãoignoram que a conheci quando era primeiro-oficial, a bordo do Rock of Gibraltar. Desdeo primeiro dia, não existiu no mundo outra mulher para mim. Cada dia a amava mais, emuitas vezes, desde então, ajoelhei-me no tombadilho, na escuridão da noite, e beijei ochão, por saber que ela passara por ali. Ela tratou-me com toda a lealdade. Não tenho doque me queixar. Era amor do meu lado e camaradagem e amizade do lado dela. Quandonos despedimos, Mary era livre, mas eu nunca mais seria um homem livre.“Quando regressei da minha última viagem, soube que ela estava casada. Por que nãohaveria de se casar com quem quisesse? Título e dinheiro, quem mais do que ela mereceriaser feliz? Nasceu para as coisas bonitas e caras. Não lamentei o casamento dela, não eraegoísta até esse ponto. Alegrei-me por ter tido sorte, em vez de desperdiçar a vida comum marinheiro sem vintém. Era assim que eu amava Mary Fraser.“Pois bem, pensava nunca mais tornar a vê-la, mas quando cheguei fui promovido, demodo que tive de esperar meu navio alguns meses, em Sydenham. Um dia, no campo,encontrei-me com Theresa, a criada de Mary. Ela contou-me tudo sobre Mary, o marido,tudo. Garanto-lhes, senhores, que fiquei como louco. Aquele bêbado miserável ousarerguer a mão para a mulher cujos sapatos ele não merecia beijar! Encontrei Theresa denovo. E encontrei Mary várias vezes. Depois, ela não quis voltar a ver-me. Há algunsdias, recebi a comunicação de que meu navio ia partir dentro de uma semana e resolvi irvê-la mais uma vez. Theresa sempre foi minha amiga, pois era afeiçoada a Mary e detestavaaquele vilão tanto quanto eu. Através dela fiquei conhecendo a casa e os seus hábitos.Mary costumava ler embaixo, na saleta. Fui de mansinho até lá, ontem à noite, e bati najanela. A princípio ela não quis abrir, mas no fundo do coração eu sabia que ela me amavae que não me deixaria fora de casa, numa noite gélida. Ela disse-me que fosse até a portagrande da frente. Entrei na sala de jantar. Ouvi de novo, de seus próprios lábios, coisasque me fizeram ferver o sangue, e amaldiçoei o bandido que assim maltratava a mulherque eu amava. Pois bem, senhores, estava ali com ela, inocentemente, tomo a Deus portestemunha! Quando ele entrou como louco na sala, chamou-a pelo nome mais baixoque um homem pode atirar a uma mulher e deu-lhe no rosto com a bengala que tinha na

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mão. Eu agarrei o atiçador, e houve uma luta leal entre nós dois. Veja aqui em meu braço o pontoonde ele me feriu em primeiro lugar. Chegou então a minha vez e avancei, como se ele fosse umverme. Pensam que estou arrependido? Nunca! Era a minha vida ou a dele, e mais do que isso, eraa dele ou a dela, pois como eu poderia deixá-la em poder daquele louco? Pois bem, o que ossenhores teriam feito se estivessem no meu lugar?”

O capitão Croker continuou:– Ela gritou quando ele lhe bateu, e isso fez com que Theresa acorresse. Havia uma garrafa de vinho

no aparador. Abri-a, fiz Mary tomar um gole, pois estava mais morta do que viva. Depois, tambémtomei um gole. Theresa conservara absoluto sangue-frio, e o plano foi tanto dela como meu.Tínhamos de dar a impressão de que houvera ladrões em casa. Theresa repetia a história à patroa,enquanto eu subia na lareira para cortar a corda. Amarrei Mary a uma cadeira, desfiando a cordapara que parecesse gasta, pois do contrário pensariam: como poderia um ladrão subir para cortá-la? Depois, apanhei algumas peças de prata para reforçar a idéia de roubo, e saí, recomendandoque dessem o alarme um quarto de hora após minha partida. Atirei as pratas no tanque e dirigi-me a Sydenham, achando que, ao menos uma vez na vida, agira com justiça. É esta a verdade etoda a verdade, sr. Holmes, mesmo que eu tenha de ir para a forca.

Holmes fumou em silêncio durante algum tempo. Depois atravessou a sala e apertou a mão dovisitante.

– É isso o que penso – disse ele. – Sei que cada palavra sua é verdadeira, pois não disse uma únicaque eu já não conhecesse. Ninguém a não ser um acrobata, ou marinheiro, poderia ter alcançadoa corda apoiando-se na mão-francesa; e ninguém, a não ser um marinheiro, teria feito aquelesnós na corda. Somente uma vez lady Brackenstall estivera em contato com marinheiros, isto é,naquela viagem, e devia ser alguém de sua classe, pois ela fazia tudo para protegê-lo, mostrandoassim que o amava. Bem vê como foi fácil descobri-lo, uma vez que me pus na pista certa.

– Calculei que a polícia nunca pudesse descobrir a trama.– E não descobriu nem descobrirá, ao que penso. Agora, escute, capitão, este assunto é sério e

estou pronto a reconhecer que o senhor agiu sob grande provocação. Não sei se, alegandolegítima defesa, seria ou não absolvido; isso compete ao júri. Mas simpatizo tanto com o seucaso que, se o senhor desaparecer dentro de vinte e quatro horas, prometo que ninguém oimpedirá de fazê-lo.

– E depois tudo virá a público?– Claro que sim.

O marinheiro ficou vermelho de cólera.– Que espécie de proposta é essa para se fazer a um homem? Conheço bastante a lei para saber

que Mary seria considerada cúmplice. Acha que a deixaria só para enfrentar tudo, enquanto eufugisse? Não, senhor, que me façam o pior, mas, pelo amor de Deus, sr. Holmes, arranje umaforma de deixar Mary fora de tudo isso.

Pela segunda vez, Holmes estendeu-lhe a mão.– Eu estava pondo-o à prova e, também agora, cada uma de suas palavras soou verdadeira. Pois bem,

é uma grande responsabilidade que tomo, mas fiz uma alusão a Hopkins e, se ele não a aproveitar,paciência. Ouça, capitão Croker, vamos fazer isso a exemplo da lei. O senhor é o prisioneiro.Watson, você é o júri britânico... e jamais encontrei pessoa mais apta para representá-la. Eu sou ojuiz. Agora, senhores jurados, conhecem o processo. Consideram o réu culpado ou inocente?

– Inocente, meritíssimo juiz – respondi.– Vox populi, vox Dei. Está absolvido, capitão Croker. Enquanto a lei não encontrar outra vítima, o

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senhor poderá ficar tranqüilo. Venha buscar a sua dama dentro de um ano, e que o futuro de ambosjustifique a sentença que hoje pronunciamos.

A SEGUNDA MANCHAEra minha intenção encerrar a narração das aventuras do meu amigo Holmes com Abbey Grange. Essa

resolução não foi tomada por falta de material, pois tenho anotações sobre centenas de casos aos quaisnunca aludi; tampouco devido ao desinteresse por parte dos leitores a respeito da singular personalidade edos extraordinários métodos daquele homem. A verdadeira razão foi a má vontade de Holmes em relação aque eu continuasse a publicar as suas experiências. Enquanto ele exercia a profissão, a narrativa de seussucessos sempre lhe valia alguma coisa, mas desde que se retirou para uma fazenda de criação de abelhas,em Sussex Downs, tomou aversão à notoriedade e recomendou-me seriamente que obedecesse a seusdesejos. Somente quando argumentei que prometera contar a história de A segunda mancha quando chegassea ocasião propícia, insistindo em que a série devia terminar com a mais interessante, de importânciainternacional, é que ele me deu o seu consentimento. Se eu, ao contar a história, parecer um tanto vagoquanto aos pormenores, o público deverá reconhecer que há excelentes razões para essa reserva.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Foi, então, num ano (ou mesmo numa década, que não direi qual é) que, numa terça-feira de manhã, no

outono, vimos dois visitantes, famosos em toda a Europa, sentados em nossa humilde sala, na Baker Street.Um, austero, de nariz adunco, olhos de águia, dominador, não era outro senão o ilustre lorde Bellinger, duasvezes primeiro-ministro da Inglaterra. O outro, moreno, elegante, quase de meia-idade, ostentando umasingular beleza de corpo e espírito, era o honorabilíssimo Trelawney Hope, secretário dos Negócios Europeus,o mais promissor dos estadistas da época. Sentaram-se lado a lado em nosso sofá cheio de papéis, e não foidifícil ver, pela expressão ansiosa de ambos, que o assunto que ali os trazia era muito grave. As mãos do

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primeiro-ministro, finas, de veias azuladas,comprimiam o castão de marfim do guarda-chuva, enquanto o rosto de asceta olhavasombriamente de Holmes para mim. O outropuxava nervosamente o bigode e mexia nacorrente do relógio.

– Quando descobri o desaparecimento,sr. Holmes, hoje às oito da manhã,pus-me imediatamente em contatocom o primeiro-ministro. Foi porsugestão sua que ambos viemosprocurá-lo.

– Já informaram a polícia?– Não – respondeu o ministro, com a

maneira viva, incisiva, que era detodos conhecida. – Não o fizemos, enão é possível procurar a polícia. Issoseria, no fim das contas, informar opúblico, coisa que particularmentedesejamos evitar.

– E por quê, senhor ministro?– Porque o documento desaparecido é de tal importância que a sua publicação poderia facilmente

(posso quase dizer provavelmente) levar a complicações internacionais. Não é exagero dizer quedele podem depender a paz ou a guerra. A não ser que seja recuperado dentro do maior sigilo, nãoadianta ser encontrado, pois o objetivo daqueles que o apreenderam é justamente torná-lo conhecido.

– Compreendo. Agora, sr. Trelawney Hope, ficaria muito grato se me contasse exatamente em quecircunstâncias desapareceu o documento.

– Posso fazê-lo em poucas palavras, sr. Holmes. A carta... pois trata-se de uma carta de um potentadoestrangeiro, chegou há seis dias. Era tão importante que não a deixei no cofre, mas levava-a, todasas noites, do Whitehall Terrace para minha casa, e guardava-a em meu quarto, numa pasta fechada.Lá estava a noite passada, disso tenho certeza. Abri a pasta enquanto me vestia para jantar e vi odocumento. Hoje de manhã havia desaparecido. A pasta ficou em minha mesinha-de-cabeceira anoite toda. Tenho o sono leve; minha esposa, também. Estamos prontos a jurar que ninguém entrouno quarto, durante a noite. Mas, repito: o documento desapareceu.

– A que horas jantaram?– Às sete e meia.– Quanto tempo depois foi para a cama?– Minha mulher tinha ido ao teatro. Esperei-a. Fomos para a cama às onze e meia.– Então, durante quatro horas, a pasta ficou desprotegida?– Ninguém tem licença de entrar no quarto, a não ser, de manhã, a mulher da limpeza; durante o dia,

meu criado particular ou a criada de minha mulher. Esses dois são de toda a confiança e estão hátempos a nosso serviço. Além disso, nenhum deles podia saber que havia na pasta um documentomais importante do que os papéis que despacho diariamente.

– Quem sabia da existência da carta?– Ninguém em casa.

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– Mas, sem dúvida, sua mulher sabia, não?– Não, senhor. Nada contei à minha mulher, até dar pela falta do documento, hoje de manhã.

O ministro aprovou com a cabeça.– Há muito que sei como é grande a sua noção do dever público – declarou. – Estou convencido de

que, num caso de tão grande importância, o segredo paira acima dos laços de família.O secretário inclinou a cabeça.

– O senhor realmente faz-me justiça – disse ele. – Até hoje de manhã, não tinha feito a mínima alusãosobre isso à minha esposa.

– Ela poderia ter suspeitado?– Não, sr. Holmes, nem ela nem qualquer outra pessoa em casa.– Perdeu algum documento antes disso?– Nunca.– Quem, na Inglaterra, sabia da existência da carta?– Todos os membros do gabinete foram informados, ontem; mas a obrigação de guardar segredo,

rotineira em todas as reuniões do gabinete, foi solenemente reforçada por recomendação do primeiro-ministro. Deus do céu, pensar que, dali a poucas horas, eu próprio iria perdê-la!

Seu belo rosto estava desfigurado por uma expressão de desespero, e o homem puxou os cabelos. Porum momento ficamos conhecendo seu verdadeiro ‘eu’: impulsivo, ardente, sensível. No momento seguinte,surgiu a máscara do aristocrata, e ouvimos de novo sua voz suave:

– Além dos membros do gabinete, há dois, talvez três empregados do departamento que sabiam daexistência da carta – continuou ele. – Ninguém mais na Inglaterra, garanto-lhe, sr. Holmes.

– E no estrangeiro?– Creio que ninguém, a não ser o homem que a escreveu. Estou convencido de que os seus ministros

ou os canais oficiais não foram empregados para a entrega da carta.– Holmes refletiu durante alguns segundos.– Agora, senhores, posso saber o que

há nesse documento, e por que razãoo seu desaparecimento pode ter tãodesastrosas conseqüências?

Os dois estadistas entreolharam-se rapi-damente, e o primeiro-ministro contraiu assobrancelhas.

– Sr. Holmes, trata-se de um envelopelongo, fino, azul-claro. Há um sinetede lacre vermelho, com um leãodeitado. A letra é larga, ousada.

– Creio que, por mais interessantesque sejam esses pormenores, tenhode ir à raiz do fato. O que havia nacarta?

– É um segredo de Estado de grandeimportância, e receio não podercontá-lo ao senhor, nem vejo neces-sidade disso. Se, auxiliado pelos donsque reconhecidamente possui, o

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senhor puder descobrir esse envelope e o seu conteúdo, merecerá a gratidão do seu país e arecompensa que estiver a nosso alcance poder lhe conceder.

Sherlock Holmes ergueu-se com um sorriso.– Os senhores são os dois homens mais ocupados da nação – disse ele. – E, em meu setor, também

tenho muito o que fazer. Lamento não poder ajudá-los; a continuação desta entrevista seria umaperda de tempo.

O primeiro-ministro pulou, com aquele brilho rápido e feroz nos olhos que os membros do gabinetetinham aprendido a temer.

– Não estou habituado... – começou ele.Mas dominou a cólera e tornou a sentar-se. Por um minuto, todos ficamos em silêncio. O velho estadista

encolheu os ombros.– Temos de aceitar as suas condições, sr. Holmes. Certamente tem razão, e não podemos esperar que

comece a agir a não ser que mereça a nossa absoluta confiança.– Estou de acordo – disse o secretário.– Então vou contar-lhe, sr. Holmes, confiando em sua honra e na de seu colega, o Dr. Watson. Apelo

também para o seu patriotismo, pois não seria possível imaginar maior desventura para o nossopaís do que a revelação deste incidente.

– Pode ter absoluta confiança em nós.– A carta é de certo potentado, que ficou irritado com alguns recentes acontecimentos em nossas

colônias. Foi escrita às pressas e sob sua única responsabilidade. Certas investigações provaramque os seus ministros nada sabem a esse respeito. Por outro lado, está redigida de modo tão infelize certas frases são tão provocantes, que a sua publicação levaria nosso país a um perigoso estado decoisas. Haveria tal revolta, senhor, que não hesito em dizer que, uma semana após sua divulgação,nos veríamos envolvidos numa guerra.

Holmes escreveu um nome num pedaço de papel e entregou-o ao primeiro-ministro.– Exatamente. Foi ele. E foi essa carta, essa carta que pode significar o gasto de milhões de libras e a

perda de milhares de vidas, que se extraviou de maneira tão inexplicável.– Informaram o homem que a escreveu?– Sim, mandamos um telegrama cifrado.– Talvez ele deseje a divulgação da carta.– Não, senhor. Temos razões para supor que ele já compreendeu ter agido de maneira indiscreta e

impensada. Se a carta se tornar conhecida, o golpe será maior para ele e para o seu país do quepara nós.

– Nesse caso, quem tem interesse em que a carta apareça? Por que razão desejariam roubá-la, oupublicá-la?

– Agora, sr. Holmes, o senhor leva-nos às regiões da alta política internacional. Mas, se observar asituação da Europa, não terá dificuldade em conhecer o motivo. A Europa inteira está em pé deguerra. Há uma dupla aliança, que estabelece um equilíbrio de poder militar. A Grã-Bretanha é o fielda balança. Se a Inglaterra fosse levada à guerra contra uma das confederações, daria supremacia àoutra, quer esta entrasse na guerra ou não. Compreende?

– Perfeitamente. Os inimigos desse potentado têm, portanto, interesse em publicar a carta, de maneiraa causar um rompimento entre o seu país e o nosso?

– Exatamente.– E a quem seria o documento mandado, se caísse nas mãos de um inimigo?– A qualquer uma das grandes chancelarias da Europa. Provavelmente está a caminho de uma delas,

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neste momento.O sr. Trelawney Hope deixou a cabeça cair sobre o peito e soltou um gemido. O primeiro-ministro pôs

bondosamente a mão em seu ombro.– Foi infelicidade sua, meu amigo. Ninguém pode censurá-lo. Não houve precaução que não tomasse.

Agora, sr. Holmes, está de posse de todos os fatos. O que nos aconselha?Holmes sacudiu a cabeça, desanimado.

– Os senhores acham que, a não ser que o documento seja recuperado, haverá uma guerra?– É muito provável.– Então, preparem-se para a guerra.– Está sendo duro, sr. Holmes.– Considere os fatos, senhor. É inconcebível que a carta tenha sido roubada depois das onze e meia da

noite, uma vez que o sr. Hope e sua esposa estiveram no quarto desde essa hora até o momento emque notaram a sua falta. Então foi roubada ontem, entre as sete e meia e as onze e meia, provavel-mente mais perto das sete e meia, pois quem a tirou sabia que ela estava ali e tinha interesse emlevá-la o mais depressa possível. Agora, senhores, se um documento dessa importância foi roubadoa essa hora, onde poderá estar agora? Ninguém tem motivos para guardá-lo. Deve ter sido entregueimediatamente àqueles que o cobiçavam. Que probabilidades temos de encontrá-lo? Está fora denosso alcance.

O primeiro-ministro ergueu-se.– O que diz é perfeitamente lógico, sr. Holmes. Receio que o caso tenha saído de nossas mãos.– Vamos supor, só para argumentar, que a carta tenha sido roubada pelo criado ou pela mulher da

limpeza...– São empregados antigos e de toda a confiança.– Pelo que deduzi, seu quarto fica no segundo andar, não tem entrada por fora, e ninguém poderia

chegar até lá sem ser visto. Deve, então, ter sido pessoa da casa. A quem levariam a carta? A algumdos vários espiões internacionais e agentes secretos cujos nomes são mais ou menos conhecidos.Há três que talvez possam ser considerados os mais atilados na profissão. Começarei minha inves-tigação procurando-os a todos. Se algum estiver fora, principalmente se tiver desaparecido ontem ànoite, teremos um indício sobre o destino do documento.

– Por que o homem haveria de ter desaparecido? – perguntou o secretário. – Bastaria levar a carta aalguma embaixada em Londres.

– Não creio. Esses agentes trabalham por conta própria e, muitas vezes, suas relações com as embai-xadas são tensas.

O primeiro-ministro aprovou com a cabeça.– Creio que tem razão, sr. Holmes. Ele deveria levar tão valiosa prenda pessoalmente ao quartel-

general. Acho que sua sugestão é ótima. Nesse meio tempo, Hope, não podemos abandonar nossosafazeres por causa deste incidente. Se houver alguma novidade, nós o avisaremos, sr. Holmes; e osenhor, por sua vez, certamente nos manterá informados.

Os dois estadistas ergueram-se, inclinaram-se e saíram, com ar grave.Holmes acendeu o cachimbo em silêncio e ficou durante algum tempo perdido em meditação. Eu abrira

o jornal da manhã e estava imerso na leitura de um crime sensacional que ocorrera na noite anterior, quandomeu amigo soltou uma exclamação, deu um salto da cadeira e colocou o cachimbo sobre a lareira.

– Não há melhor maneira de começar a investigação – disse ele. – A situação é difícil, mas não deses-peradora. Mesmo agora, se eu soubesse ao certo qual deles tem a carta, há a possibilidade de queainda não a tenha mandado... Afinal de contas, é uma questão de dinheiro com essa gente, e tenho

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o Banco da Inglaterra atrás de mim. Se a carta estiver no mercado, compro-a, mesmo que issovenha a significar mais um centavo nos futuros impostos. É possível que o homem guarde a cartapara ver qual é a oferta de nosso lado antes de oferecê-la ao outro. Há apenas três homens capazesde jogo tão ousado: Oberstein, La Rothiere e Eduardo Lucas. Irei vê-los.

Olhei para o jornal da manhã.– Eduardo Lucas mora na Godolphin Street?– Mora.– Então não o verá.– Por que não?– Porque foi assassinado em sua casa, a noite passada.

Meu amigo tem-me surpreendido tantas vezes, em nossa carreira, que foi com imenso prazer que percebitê-lo deixado atônito. Olhou-me por um segundo, depois arrancou-me o jornal das mãos. Era este o parágrafoque eu estivera lendo:

“ASSASSINATO EM WESTMINSTERUm crime misterioso foi cometido a noite passada, no número 16 da Godolphin

Street, uma das casas antigas do século XVIII, quase à sombra da grande torre doParlamento. A pequena mas fina mansão era habitada, há alguns anos, pelo sr. EduardoLucas, conhecido nos círculos sociais pela sua encantadora personalidade e pelamerecida reputação de ser um dos melhores tenores do país.O sr. Lucas era solteiro e tinha trinta e quatro anos de idade.Havia dois empregados em casa, a sra. Pringle,governanta já idosa, e Mitton, o mordomo.A governanta deita-se cedo e dorme nosótão. O mordomo tinha saído, para visitarum amigo, em Hammersmith. Das dezhoras em diante o sr. Lucas estava só emcasa. Não se sabe o que ocorreu nesseintervalo, mas, às quinze para a meia-noite,o policial Barret, ao passar pelo número16 da Godolphin Street, notou que a portaestava escancarada. Bateu, mas não obteveresposta. Vendo luz na sala da frente,adiantou-se e bateu de novo, sem resultado.Empurrou a porta e entrou. A sala estavaem grande desordem, a mobília fora levadapara um canto e uma cadeira estavatombada de costas, ao centro. Ao lado dacadeira, ainda agarrado a uma das pernas,estava o infeliz dono da casa. Foraapunhalado no coração e sua morte deve ter sido instantânea. A arma do crime erauma adaga indiana, curva, arrancada a uma coleção de troféus orientais que adornavamas paredes. O roubo não parece ter sido o móvel do crime, pois não houve tentativa delevar os objetos de valor da sala. O sr. Eduardo Lucas era muito conhecido e popular;sua morte violenta e misteriosa causou pesar em seu círculo de relações”.

– Então, Watson, o que você me diz a isso? – perguntou Holmes, após longa pausa.

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– É uma estranha coincidência.– Coincidência! Temos aqui um dos homens que citamos como um dos possíveis atores do drama, e

ele encontra uma morte violenta justamente no momento em que sabemos que o drama está sendoencenado. Tudo indica que não se trata de coincidência. Não, caro Watson, os dois acontecimentosestão ligados, têm de estar ligados. Cabe-nos encontrar a relação existente entre eles.

– Mas agora a polícia oficial já deve saber tudo.– De forma nenhuma. Sabem, apenas, do que se passou na Godolphin Street. Nada sabem, e nem

saberão, do que se passa no Whitehall Terrace. Somente nós conhecemos os dois fatos e podemosrelacioná-los. Há um ponto que, de qualquer maneira, faria com que minhas suspeitas se voltassemcontra Eduardo Lucas. A Godolphin Street, em Westminster, fica apenas a alguns passos do White-hall Terrace. Os outros agentes a que me referi moram muito mais longe. Portanto, seria fácil aLucas estabelecer contato ou receber uma mensagem da casa do secretário, algo insignificante masque poderia ser provado como essencial, quando os acontecimentos se precipitassem. Ei, o quetemos aqui?

A sra. Hudson aparecera, trazendo na salva o cartão de uma senhora.Holmes olhou para o nome, ergueu as sobrancelhas e passou-me o cartão.

– Diga a lady Hilda Trelawney Hope que faça o favor de entrar.No momento seguinte nosso apartamento, já tão honrado naquela

manhã, foi novamente distinguido com a presença de uma dasmulheres mais lindas de Londres. Eu já ouvira falar na beleza dafilha mais nova do duque de Belminster, mas nenhuma descriçãoou fotografia me preparara para a beleza delicada e o sutil encantoda mulher que estava à nossa frente. Mas o rosto que vimos naquelamanhã de outono não era de beleza que impressionasse à primeiravista. Rosto belo, mas pálido de emoção; os olhos brilhavam, mascom um brilho febril; a boca sensível estava tensa, num esforço deautodomínio. Terror, não beleza, era o que havia no olhar de nossavisitante, quando surgiu à porta.

– Meu marido esteve aqui, sr. Holmes?– Sim, minha senhora, esteve.– Sr. Holmes, suplico-lhe que não lhe diga que vim a sua

casa.Holmes inclinou-se friamente e indicou-lhe uma cadeira.

– Minha senhora, está me colocando numa situação delicada.Peço-lhe que se sente e me diga o que tem a dizer, masreceio não poder fazer promessas incondicionais.

Ela entrou e sentou-se de costas para a janela. Era uma presençarégia – alta, graciosa e essencialmente feminina.

Abrindo e fechando as mãos enluvadas de branco, começou:– Vou falar-lhe com franqueza, na esperança de que também

seja franco comigo. Há absoluta confiança entre mim e meumarido, em todos os assuntos, a não ser num: a política. Nesseponto, seus lábios são mudos; ele nada me conta, mas vim a saber que houve um lamentávelincidente em nossa casa, a noite passada, com o desaparecimento de um documento importante.Como é de natureza política, meu marido recusa-se a fazer-me confidências. Mas é essencial...

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essencial, compreenda-me, que eu saiba o que aconteceu. O senhor é a única pessoa, além daquelespolíticos, a conhecer a verdade exata. Suplico-lhe, sr. Holmes, diga-me do que se trata e quais aspossíveis conseqüências. Conte-me tudo, sr. Holmes. Não permita que o interesse de seu cliente ofaça calar-se, pois garanto que o interesse dele, se pudesse saber da verdade, seria justamente queeu ficasse sabendo de tudo. Que documento era esse que foi roubado?

– Minha senhora, pede-me o impossível.Ela gemeu e escondeu o rosto nas mãos.

– Deve compreender, minha senhora: se o seu marido acha que nada lhe deve revelar, não competea mim, que fiquei a par dos fatos sob juramento de segredo, contar-lhe o que ele ocultou. É a ele quedeve perguntar.

– Perguntei-lhe. Venho ter com o senhor como último recurso. Mas, sem me dizer nada definitivo,far-me-ia um grande favor se me esclarecesse um ponto.

– Qual, minha senhora?– A carreira política de meu marido poderia ficar comprometida por esse incidente?– Pois bem, a não ser que o caso seja favoravelmente solucionado, terá gravíssimas conseqüências.– Ah! – Ela suspirou, como quem tivesse tomado uma resolução. – Mais uma pergunta, sr. Holmes.

Por uma frase que meu marido deixou escapar, no primeiro momento de choque, deduzi que terríveisconseqüências públicas poderiam surgir pela perda do documento.

– Se ele o disse, não posso negar o fato.– De que natureza é o perigo?– Agora, minha senhora, está perguntando mais do que posso responder.– Então, não lhe tomarei mais tempo. Não posso

censurá-lo, sr. Holmes, por se ter recusado a falar maislivremente, e espero que não pense mal de mim pordesejar, contra a vontade de meu marido, participarde sua aflição. Suplico-lhe, mais uma vez, que nãolhe fale de minha visita.

Ela olhou-nos da porta e tive novamente a visão de umrosto belo, ansioso, os olhos assustados e a boca tensa. Depois,desapareceu.

– Agora, caro Watson, o belo sexo é sua especialidade– disse Holmes com um sorriso. – Qual o jogo daquelasenhora? Que desejava ela realmente?

– Não há dúvida de que a sua ansiedade era sincera.– Hum... Pense em sua aparência, Watson, a excitação,

o ar inquieto, a tenacidade das perguntas. Lembre-sede que pertence a uma classe que não demonstraemoção facilmente.

– Não há dúvida de que estava emocionada.– Lembre-se, também, da curiosa insistência com que

disse o que precisava saber, no interesse do marido.Que queria dizer com isso? E deve ter observado queela procurou ficar de costas para a janela. Não quisque lhe víssemos a expressão do rosto.

– Sim, ela escolheu aquela cadeira.

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– Apesar de tudo, os motivos das mulheres são inescrutáveis. Lembre-se da mulher de Margate, dequem suspeitei pela mesma razão. Não tinha pó no rosto – foi essa a solução correta. Como épossível construir sobre areia movediça? O ato mais trivial pode significar muito, a mais extraordi-nária atitude pode depender de um grampo ou de um alfinete. Até logo, Watson.

– Vai sair?– Sim, vou passar a manhã na Godolphin Street, com nossos amigos da polícia oficial. Em Eduardo

Lucas está a solução do mistério, e confesso que tenho um palpite a respeito do rumo que os fatostomarão. É um grande erro estabelecer teorias antes dos acontecimentos. Fique de guarda, caroWatson, e receba os visitantes que aparecerem. Virei almoçar, se me for possível.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Holmes mostrou-se taciturno durante todo esse dia e no seguinte. Entrava e saía, fumava sem cessar,

devorava sanduíches fora de hora, caía em meditação e mal respondia às minhas perguntas. Não haviadúvida de que as coisas não corriam muito bem. Não quis me contar nada; eu soube dos pormenores doinquérito através dos jornais. Li sobre a prisão e a soltura do mordomo de Lucas. O médico-legista declarou:‘Assassinato, por pessoa ou pessoas desconhecidas’. Nenhum móvel do crime foi apresentado. Havia nasala objetos de valor, mas não foram roubados. Não haviam mexido nos documentos do morto. Estes foramexaminados e ficou provado que ele era um estudioso de assuntos internacionais, um extraordinário lingüista,e mantinha vasta correspondência. Fora íntimo dos maiores políticos de vários países. Mas nada de sensacionalfoi descoberto entre os documentos guardados nas gavetas. Quanto às suas relações com mulheres, pareceque haviam sido variadas, mas superficiais. Tinha muitas conhecidas, mas poucas amigas, e não amavanenhuma. Seus hábitos eram regulares; sua conduta, inofensiva. A sua morte era um mistério, e assimpermaneceria.

Quanto à prisão de John Mitton, o mordomo, fora um gesto de desespero por parte da polícia, só paranão deixar de fazer alguma coisa. Nada havia contra ele. Tinha um álibi perfeito. Era verdade que voltara paracasa a uma hora que lhe permitiria chegar antes do momento do crime, mas sua alegação de que fizera partedo caminho a pé era aceitável, em vista da beleza da noite. Chegara em casa à meia-noite e mostrara-seconsternado com a tragédia. Sempre se dera bem com o patrão. Alguns objetos do morto – entre eles umaparelho de barba – foram encontrados em seu poder, mas explicou que eram presentes do patrão e agovernanta confirmou suas palavras. Havia três anos que Mitton trabalhava com Lucas. O patrão nunca olevara nas suas viagens ao continente. Às vezes passava três meses em Paris, mas o mordomo ficava tomandoconta da casa em Londres. Quanto à governanta, nada ouvira na noite do crime. Se viera alguma visita, deviater sido recebida pelo próprio patrão.

O mistério continuou durante três manhãs, pelo que li nos jornais. Se Holmes sabia de alguma coisa,nada me contou, a não ser que estava em contato com o inspetor Lestrade. No quarto dia chegou umtelegrama de Paris que parecia conter a solução do problema.

“A polícia parisiense acaba de fazer uma descoberta (disse o Daily Telegraph) queergueu o véu sobre a trágica morte do sr. Eduardo Lucas, assassinado na segunda-feira, na Godolphin Street, em Westminster. Nossos leitores devem estar lembradosde que ele foi encontrado morto em sua sala, havendo suspeitas contra o mordomo,que provou ter um álibi. Ontem, uma senhora conhecida como Mme. HenriFournaye, que mora numa vila na Rue Austerlitz, foi denunciada como louca, àpolícia, pelos seus empregados. O exame provou que sofria de mania de perseguição.A polícia descobriu que essa senhora voltara de Londres na última terça-feira, e hárazões para relacioná-la com o crime de Westminster. Uma comparação defotografias demonstrou que o sr. Henry Fournaye e Eduardo Lucas são a mesma

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pessoa, e que o morto levava vida dupla, em Londres e Paris. Mme. Fournaye, queé de origem crioula, possui natureza excitável, pois teve no passado crises de ciúmeque se assemelhavam à loucura. Supõe-se que, numa delas, tenha cometido o crimeque emocionou Londres inteira. Seus movimentos na noite de segunda-feira aindanão foram reconstituídos, mas sabe-se que uma mulher cuja descrição se adapta àsua chamou muito a atenção na estação de Charing Cross, na terça-feira de manhã,pela aparência desordenada e gestos frenéticos. Portanto, é provável que o crimetenha sido cometido num momento de loucura, e a infeliz mulher teria ficado coma mente irremediavelmente prejudicada. De momento, não está em condições deprestar declarações, e os médicos não têm esperanças de que volte à normalidade.Sabe-se que uma mulher, que pela descrição poderia ter sido ela, andou espiandoa casa da Godolphin Street durante algumas horas, na segunda-feira à noite”.

– Que pensa disso, Holmes? – perguntei, ao terminar a leitura em voz alta, enquanto ele acabava seucafé da manhã.

Holmes ergueu-se e pôs-se a passear pela sala.– Caro Watson, você é muito paciente, mas, se nada lhe contei, foi porque nada havia a contar nestes

três últimos dias. Mesmo agora, esta notícia de Paris de nada nos adianta.– Mas é definitiva, quanto à morte do homem.– A morte de Lucas é um mero incidente, um episódio trivial, em comparação com nossa verdadeira

missão, que é encontrar o documento para evitar uma catástrofe na Europa. Somente uma coisaimportante aconteceu nestes três últimos dias: precisamente o fato de nada ter acontecido. Tenhorecebido notícias de hora em hora do governo, e não há dúvida de que não há sinal de crise naEuropa. Ora, se a carta estivesse perdida... Mas não pode estar perdida. E, não estando perdida,onde está? Quem a tem em seu poder? E por que a conserva, sem se servir dela? É essa a questãoque não me sai do pensamento. Terá sido mesmo coincidência o fato de Lucas falecer na mesmanoite em que a carta desapareceu? Teria a carta chegado às suas mãos? Nesse caso, por que não estáentre os seus documentos? A esposa louca teria levado a carta para Paris? Nesse caso, estará em suacasa? Como eu poderia procurá-la sem despertar as suspeitas da polícia francesa? Trata-se de umcaso, Watson, em que a lei é tão perigosa quanto os criminosos. Estão todos contra nós, e, noentanto, esse é um caso de tremenda importância. Se eu conseguir ser bem sucedido, será o apogeude minha carreira. Agora, as últimas notícias da frente de batalha!...

Holmes leu de relance o bilhete que lhe fora entregue e continuou:– Ora, ora! Parece que Lestrade observou algo interessante. Pegue seu chapéu, Watson, e vamos para

Westminster.Era a minha primeira visita à cena do crime. Lestrade olhou-nos da janela da frente e saudou-nos cordial-

mente, quando um policial alto e forte nos abriu a porta. Entramos na sala onde Lucas fora morto, mas já nãohavia sinais da tragédia, a não ser uma mancha feia, irregular, no tapete. Era um tapete quadrado, pequeno,no centro da sala, cercado por um soalho antigo, de tacos quadrados e muito bem encerado. Sobre a lareirahavia uma magnífica coleção de armas, uma das quais servira de instrumento do crime. Perto da janela, umasuntuosa escrivaninha; tudo indicava o gosto e o luxo do proprietário.

– Viu as notícias de Paris? – perguntou Lestrade.Holmes inclinou a cabeça.

– Parece que nossos amigos franceses acertaram dessa vez. Não há dúvida de que deve ter sidoconforme eles pensaram. Ela bateu à porta sem ser aguardada, pois parece que o homem levavauma existência dupla. Lucas fê-la entrar; não podia deixá-la na rua. Discutiram, ela recriminou-o,

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uma coisa levou a outra e ali estavam as armas, à disposição de qualquer um. Não foi coisa rápida,pois a desordem da sala indicava luta, e as cadeiras estavam todas empurradas para um canto.

Holmes ergueu as sobrancelhas.– Apesar disso, você mandou me chamar?– Ah, sim, há um pormenor, coisa insignificante, mas dessas que despertam o interesse. Nada tem a

ver com o fato principal, ao que parece.– Então o que é?– Pois bem, o senhor sabe que, depois de um crime desses, temos o máximo cuidado em manter as

coisas nos devidos lugares. O policial de guarda não arredou pé daqui. Hoje de manhã, depois doenterro, como a investigação terminara, achamos que podíamos pôr um pouco de ordem na sala.Veja o tapete. Não está preso ao soalho. Quando o erguemos, encontramos...

– Sim? Encontraram...Havia ansiedade no rosto de Holmes.

– Pois bem, creio que o senhor nunca adivinharia. Vê esta mancha, no tapete? Muito sangue deve tê-la atravessado, não é verdade?

– Sem dúvida.– Pois bem, vai ficar admirado por saber que não havia mancha correspondente no soalho.– Não havia mancha! Mas deve haver!– Era de supor, mas não há.

Lestrade virou o tapete para provar o que dizia.– Mas a parte de cima está tão marcada como a de baixo.

Deve haver uma mancha no soalho.Lestrade riu, satisfeito por deixar perplexo o

grande perito.– Agora, a explicação. Há uma segunda

mancha, mas não corresponde à primeira.Veja.

Lestrade puxou o tapete, e de fato havia umagrande mancha escura no outro lado do soalho.

– A polícia não precisa do senhor, sr.Holmes, para encontrar essa explicação.As manchas são idênticas, como podemosconstatar virando o tapete e colocandouma sobre a outra. Mas desejo saber quemvirou o tapete e por quê.

Vi pela expressão de Holmes que ele estavavibrante de excitação.

– Escute, Lestrade, o policial permaneceu deguarda o tempo todo?

– Sim, ficou.– Então, ouça meu conselho. Interrogue-o minuciosamente. Não o faça diante de nós. Esperaremos

aqui. É mais fácil conseguir uma confissão sem testemunhas. Pergunte-lhe como ousou deixar entraruma pessoa aqui, deixando-a só nesta sala. Não pergunte se ele o fez; afirme-o como coisa certa.Diga-lhe que sabe que alguém esteve aqui. Pressione-o. Diga que uma confissão será sua únicaesperança de perdão. Faça como lhe digo.

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– Por Deus, se ele souber eu o farei confessar! – exclamou Lestrade, saindo apressadamente.Logo em seguida ouvimo-lo no quarto dos fundos interrogando o policial.

– Agora, Watson! – exclamou Holmes, com frenesi.Todas as forças diabólicas daquele homem, ocultas sob a máscara da frieza, irromperam num paroxismo

de energia. Puxou para um lado o tapete e pôs-se de joelhos, apalpando todos os tacos do soalho. Um delesmoveu-se, como a tampa de uma caixa. Vimos uma pequena cavidade escura. Holmes enfiou a mão ansio-samente, mas retirou-a com uma exclamação de desapontamento. Nada encontrara.

– Depressa, Watson, vamos pôr o tapete nolugar! – disse ele.

Dali a minutos, ouvimos a voz de Lestrade nocorredor. Encontrou Holmes apoiado languidamente àlareira, com ar entediado.

– Desculpe-me tê-lo feito esperar, sr. Holmes –disse ele. – Vejo que está aborrecido com essahistória toda. Pois bem, o homem confessou.Venha cá, MacPherson. Que estes senhoresfiquem sabendo de sua imperdoável conduta.

Vermelho e arrependido, o policial entrou na sala.– Não o fiz por mal, senhor, pode estar certo. A

jovem veio a noite passada, tinha-se enganadode casa, foi o que aconteceu. Começamos aconversar. É triste quando se fica no posto odia inteiro.

– E depois o que houve?– Ela queria ver a cena do crime, tinha lido a

respeito do caso nos jornais, disse ela. Eramuito respeitável, muito fina, de modo que nãovi mal em deixá-la entrar. Quando viu a manchano tapete, caiu desmaiada no chão, ali ficandocomo morta. Corri para os fundos e trouxe umcopo de água, mas não consegui fazê-la voltar a si. Fui então até a taberna da esquina buscar umpouco de conhaque. Quando voltei, a jovem já partira, muito envergonhada, creio eu, sem tercoragem de me encarar.

– E o tapete?– Pois bem, estava um pouco enrugado, não há dúvida, mas a moça tinha caído em cima dele.

Endireitei-o.– É uma lição para provar que não pode me enganar, MacPherson – disse Lestrade com dignidade. –

Com certeza pensou que a sua falta nunca seria descoberta, mas bastou-me olhar para o tapete paraver que alguma coisa acontecera. Felizmente para você, nada falta, do contrário a coisa não ficavapor aqui. Sinto tê-lo chamado por assunto tão trivial, sr. Holmes, mas achei que o fato de umamancha não coincidir com a outra iria interessá-lo.

– Sim, de fato. A mulher só esteve aqui uma vez?– Sim, apenas uma vez – respondeu o guarda.– Quem era ela?– Não a conheço, senhor. Estava bem vestida. Creio que se pode dizer que era bonita. Alguns diriam

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muito bonita, mesmo. ‘Oh, chefe, deixe-me dar só uma olhadinha!’, disse ela. Tinha um jeitinhoespecial, como se costuma dizer, e pensei que não havia mal em deixá-la espiar da porta.

– Como estava vestida?– Discretamente, com um manto longo até os pés.– Que horas eram?– Era noitinha. Estavam acendendo as luzes quando voltei com o conhaque.– Muito bem – disse Holmes. – Agora, Watson, creio que temos coisas mais importantes a fazer.

Saímos dali, deixando Lestrade na sala, enquanto o arrependido policial nos acompanhava até a porta.Holmes virou-se e mostrou-lhe um papel. O homem olhou atentamente.

– Deus do céu! – exclamou, atônito.Holmes pôs o dedo nos lábios, guardou de novo o papel no bolso e saiu rindo pela rua.

– Ótimo! – disse ele. – Venha, Watson, a cortina ergue-se para o último ato. Você vai ficar satisfeitopor saber que não haverá guerra, que a carreira do honorabilíssimo Trelawney Hope não sofrerádanos, que o indiscreto potentado não pagará por sua indiscrição, que o primeiro-ministro não severá a braços com complicações européias e que, com um pouco de tato de nossa parte, ninguémficará prejudicado com o que poderia ter sido um incidente muito desagradável.

Minha admiração por aquele homem extraordinário aumentava sem cessar.– Você resolveu o problema! – exclamei.

– Não é bem isso, caro Watson. Há pontos obscuros, como no princípio.Mas temos já tanta coisa que será culpa nossa se não desvendarmos o

mistério. Vamos para o Whitehall Terrace decidir ocaso.

Quando chegamos à casa do secretário deEstado, foi por lady Trelawney que Holmesperguntou. Fizeram-nos entrar na sala de visitas. – Sr. Holmes! – disse ela, rubra de indignação. –Isso é injusto e pouco generoso de sua parte. De-sejava, conforme lhe disse, que a visita que lhe fizpermanecesse secreta, para que meu marido nãojulgasse que me intrometo em seus assuntos. Maso senhor me compromete vindo procurar-me edemonstrando ter relações profissionais comigo. – Infelizmente, minha senhora, não tenho outraalternativa. Fui contratado para recuperar umimportante documento. Tenho, portanto, de lhepedir que o entregue a mim.

Ela pulou da cadeira e a cor desapareceu-lhe dorosto. Tive a impressão de que ia desmaiar. Depois,

com grande esforço, dominou-se, e a surpresa e a indignação não deixaramlugar a outra expressão.

– O senhor insulta-me, sr. Holmes. – Vamos, vamos, minha senhora, entregue-me a carta.

Ela adiantou-se para a campainha. – O mordomo os conduzirá à porta. – Não toque nisso, lady Hilda. Se o fizer, verei frustrados os meus esforços para evitar um escândalo.

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Dê-me a carta e as coisas ficarão no seu lugar. Se cooperar, farei com que tudo fique em ordem. Se sepuser contra mim, serei obrigado a denunciá-la.

Ela ficou de pé, provocadora, figura régia, os olhos fixos em Holmes, como se quisesse ler a sua alma. Suamão pousava na campainha, mas recusou-se a tocá-la.

– Está procurando amedrontar-me. Não é muito nobre de sua parte, sr. Holmes, vir aqui ameaçar umamulher. Diz que sabe alguma coisa. O que sabe?

– Faça o favor de se sentar, minha senhora. Poderá machucar-se se cair. Não falarei, até então. Obrigado.– Dou-lhe cinco minutos, sr. Holmes.– Basta um, lady Hilda. Sei de sua visita a Eduardo Lucas, sei que lhe entregou o documento, sei de

sua engenhosa visita à sala, a noite passada e de que maneira recuperou a carta, tirando-a do escon-derijo sob o tapete.

Ela olhou para meu amigo com o rosto lívido e engoliu em seco, uma ou duas vezes, antes de falar.– Está louco, sr. Holmes, está louco!

Holmes tirou do bolso um pedaço de papelão. Vimos o rosto de uma mulher recortado de uma fotografia.– Trouxe isto comigo por achar que me seria útil – disse ele. – O policial reconheceu-a.

Ela soltou um gemido, a cabeça caída sobre o peito.– Vamos, lady Hilda. A senhora tem a carta em seu poder. O caso pode ser remediado. Não tenho

interesse em prejudicá-la. Meu dever terminará no momento em que devolvê-la ao seu marido. Sigao meu conselho e seja franca comigo; é a sua única oportunidade.

A coragem dela foi admirável. Nem mesmo então se reconheceu derrotada.– Repito, sr. Sherlock Holmes, que está completamente iludido.Holmes ergueu-se.

– Sinto muito pela senhora, lady Hilda. Fiz opossível, mas vejo que foi em vão.

Holmes tocou a campainha. O mordomo apareceu.– O sr. Trelawney já chegou?– Deve chegar às quinze para a uma, senhor.

Holmes olhou para o relógio.– Faltam quinze minutos. Muito bem. Esperarei.

Mal o mordomo fechou a porta, lady Hilda atirou-se de joelhos diante de Holmes, as mãos estendidas,o lindo rosto úmido de lágrimas.

– Oh, poupe-me, sr. Holmes! Poupe-me! –suplicou ela. – Pelo amor de Deus, não lheconte! Amo-o tanto! Não era meu desejocausar-lhe o menor desgosto, pois isso lhepartiria o coração.

Holmes obrigou-a a erguer-se.– Fico satisfeito, minha senhora, por ver que

recuperou o bom senso, embora no últimomomento. Não há um segundo a perder. Ondeestá a carta?

Ela correu para a escrivaninha, abriu-a e tirou de lá umlongo envelope azul.

– Aqui está, sr. Holmes. Antes nunca o tivesse visto.

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– Como poderemos devolvê-lo? – murmurou Holmes. – Depressa, depressa, temos de encontrar ummeio! Onde está a pasta?

– Ainda está no quarto.– Que sorte! Depressa, minha senhora, vá buscá-la.

No momento seguinte ela voltou com a pasta.– Como foi que a abriu? Tem uma chave? Claro que deve ter. Abra a pasta.

Lady Hilda tirou uma chave do seio e abriu a pasta. Ela estava cheia de documentos. Holmes enfiou oenvelope no meio deles. A pasta foi fechada e novamente levada para o quarto.

– Agora estamos prontos para receber o seu marido – disse Holmes. – Ainda nos sobram dez minutos.Estou indo longe demais para protegê-la, lady Hilda. Em troca, quero que me conte francamente osignificado de tudo isso.

– Sr. Holmes, vou contar-lhe tudo! – exclamou a infeliz senhora. – Oh, sr. Holmes, preferia perder amão direita a dar a meu marido um momento de desgosto. Não há, em Londres, mulher que tenhamaior amor ao marido, e, se ele soubesse o que fiz, o que fui obrigada a fazer, nunca me perdoaria.Coloca tão alto a sua honra que não perdoaria um deslize em outra pessoa. Ajude-me, sr. Holmes!Minha felicidade e a dele estão em jogo!

– Depressa, minha senhora, o tempo voa.– Foi uma carta minha, sr. Holmes, uma carta indiscreta, antes de meu casamento. Carta de menina

tola, impulsiva. Não havia mal, mas poderia causar má impressão. Se ele a lesse, perderia parasempre a confiança em mim. Faz anos que escrevi essa carta. Pensei que estivesse tudo esquecido,mas fiquei sabendo que estava nas mãos daquele homem, Lucas, e que ele estava disposto a apresentá-la ao meu marido. Pedi-lhe misericórdia. Ele respondeu que me daria a carta se eu lhe entregassecerto documento que se encontrava na pasta de meu marido. Ele tinha um espião, no escritório, quelhe falou na existência do documento. Ponha-se na minha posição, sr. Holmes! Que podia eu fazer?

– Abrir-se com seu marido.– Não podia, não podia, sr. Holmes! De um lado, a ruína certa; do outro, por terrível que parecesse

tirar um documento a meu marido, em matéria de política eu não podia medir as conseqüências, aopasso que, numa questão de amor, tudo estava claro ante os meus olhos. Concordei, sr. Holmes!Tirei um molde da fechadura e Lucas mandou fazer a chave. Abri a pasta, tirei o documento e levei-o à Godolphin Street.

– Que aconteceu, então?– Bati à porta, como combinado. Lucas abriu-a. Segui-o até a sala, deixando a porta da rua aberta, por

medo de ficar a sós com ele. Lembro-me de ter visto uma mulher na calçada quando entrei. Nossonegócio foi rápido. Ele entregou-me a carta e eu lhe dei o documento. Nesse momento, ouvimosum ruído no corredor. Lucas virou rapidamente o tapete e enfiou o documento num esconderijo,cobrindo-o de novo com o tapete.“O que aconteceu em seguida parece um pesadelo. Vi um rosto de mulher, moreno, desesperado,e uma voz gritou em francês: ‘Minha espera não foi em vão. Finalmente encontro você com ela!’Houve luta. Vi-o com uma cadeira nas mãos, ela com uma faca. Saí dali correndo e, no dia seguinte,li a notícia do crime nos jornais. Senti-me feliz, naquela noite, pois tinha minha carta, mas não sabiao que o futuro me reservava.“Na manhã seguinte compreendi que trocara um aborrecimento por outro. O desespero do meumarido, ao perceber que o documento desaparecera, cortou-me o coração. Mal pude conter oímpeto de me ajoelhar a seus pés e confessar-lhe tudo, mas isso seria confessar também o passado.Fui então procurá-lo, sr. Holmes, para que compreendesse a extensão do meu ato. Depois disso não

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pensei em outra coisa a não ser em recuperar o documento. Devia estar no mesmo lugar, pois otapete cobria-o quando a mulher chegara. Se ela não tivesse aparecido eu nunca saberia do escon-derijo. Como eu poderia entrar lá? Durante dois dias observei a casa, mas a porta nunca estavaaberta. A noite passada fiz a última tentativa. O senhor sabe o que aconteceu. Trouxe o documentoe pensei em destrui-lo, pois não via meio de devolvê-lo sem confessar tudo a meu marido. Céus,ouço passos na escada!”

O sr. Hope entrou excitadamente na sala.– Tem alguma novidade, sr. Holmes?– Tenho esperanças.– Ah, graças a Deus! – exclamou ele, radiante. – O primeiro-ministro vem almoçar comigo. Posso

contar-lhe? Ele tem nervos de aço, mas sei que mal dormiu desde aquele dia fatídico. Jacobs, querpedir ao ministro que venha até aqui? Quanto a você, minha querida, desculpe-nos, mas trata-se deassunto político. Iremos a seu encontro na sala de jantar, daqui a alguns minutos.

O primeiro-ministro estava calmo, mas, pelo brilho dos olhos e pela contração das mãos magras, percebique estava tão excitado como seu colega.

– Tem mesmo alguma novidade, sr. Holmes? – perguntou ele.– Negativa, por enquanto – disse Holmes. – Investiguei em todos os lugares prováveis e tenho certeza

de que não há perigo de ter sido roubada.– Mas isso não basta, sr. Holmes. Não podemos viver para sempre sobre um vulcão. Precisamos de

algo concreto.– Tenho esperanças disso; é por esse motivo que

estou aqui. Quanto mais penso no caso, mais meconvenço de que a carta não saiu desta casa.

– Sr. Holmes!– Se tivesse saído, já teria sido divulgada.– Mas por que a teriam roubado se quisessem

conservá-la aqui?– Não estou convencido de que a tenham

roubado.– Então, como poderia ter saído da pasta?– Estou convencido de que não chegou a sair da

pasta.– Sr. Holmes, a brincadeira é inoportuna. Garanto

que não estava na pasta.– O senhor examinou a pasta depois de terça-feira

de manhã?– Não; não era necessário.– É possível que se haja enganado, na precipitação da

busca.– Impossível.– Pois estou convencido disso – declarou Holmes. – Não seria

a primeira vez que uma coisa dessas acontece. Suponho queos outros documentos ainda se encontrem lá. É possível que esteja no meio de um deles.

– Estava em cima.– Alguém pode ter sacudido a pasta, deslocando-o.

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– Não, não, tirei tudo da pasta.– Mas é fácil verificar, Hope! – exclamou o primeiro-ministro. – Mande buscar a pasta.

Hope tocou a campainha e o mordomo apareceu.– Jacobs, traga a minha pasta. É pura perda de tempo, Holmes, mas, se insiste... Obrigado, Jacobs,

ponha a pasta aí. A chave está sempre na corrente do meu relógio. Aqui temos os documentos.Carta de lorde Merrow, relatório de sir Charles Hardy, memorando de Belgrado, nota russo-germânicasobre o imposto do trigo, carta de Madri, nota de lorde Flowers... Santo Deus, o que é isto? LordeBellinger! Lorde Bellinger!

O primeiro-ministro arrancou das mãos do outro o envelope azul.– Sim, sim, é a carta, intacta. Hope, meus parabéns!– Muito obrigado! Muito obrigado! Que peso me saiu do coração! Mas é inconcebível! Impossível!

Sr. Holmes, o senhor é um mágico, um feiticeiro! Como soube que estava lá?– Porque sabia que não estava em outro lugar.– Mal posso acreditar em meus próprios olhos! – Hope foi correndo para a porta à procura da mulher.

– Hilda, Hilda! Preciso lhe contar, Hilda!Ouvimos ainda a sua voz, na escada.O primeiro-ministro olhou para Holmes com um brilho nos olhos.

– Vamos lá, sr. Holmes, o senhor ainda não disse tudo. Como a carta foi parar dentro da pasta?Holmes sorriu ante a expressão perscrutadora daqueles olhos profundos.

– Também temos os nossos segredos diplomáticos respondeu.E, pegando o chapéu, dirigiu-se para a porta.

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O AUTOR E SUA OBRAArthur Conan Doyle nasceu em Picardy Place, Edimburgo (Escócia)

no dia 22 de maio de 1859. Seu pai, Charles Altamont Doyle, era funcio-nário público no Edinburgh Office of Works. Ele sofria de epilepsia ealcoolismo e foi institucionalizado, vindo a falecer num asilo em 1893.Sua mãe, Mary (Foley) Doyle mantinha uma pensão. Ambos tinham des-cendência irlandesa e eram católicos de origem normanda.

A criatividade era patente na ascendência de Doyle: seu avô foi umcriativo caricaturista; seu tio, um famoso ilustrador. O pai de Doyle eraarquiteto, desenhista e ilustrador de livros. O próprio Doyle foi admira-dor de Edgar Allan Poe e Emile Gaboriau.

Ainda criança, Arthur freqüentou colégios jesuítas no continente (Áus-tria) e na própria Grã-Bretanha. Em outubro de 1876, aos dezesseis anos,ingressou na Universidade de Edimburgo, onde em 1882 se diplomariaem medicina, especializando-se em oftalmologia.

Na Universidade de Edimburgo, Doyle conheceu o Dr. Joseph Bell (aquem descreveria como uma pessoa com fisionomia de águia, maneiras bizarras e o estranho dom deobservar certos detalhes), cirurgião do Hospital de Edimburgo e professor na Universidade, cujos surpreen-dentes métodos de dedução e análise serviram de grande inspiração na futura criação do seu célebre dete-tive. De maneira similar a Holmes, o Dr. Bell diagnosticava os pacientes, explicava os seus sintomas e atémesmo lhes contava detalhes de suas vidas antes que eles pronunciassem sequer uma palavra sobre suasaflições. Também Sir Henry Littlejohn, que ensinou medicina forense a Doyle, deixou-lhe uma profundaimpressão e contribuiu para o desenvolvimento do caráter de Holmes.

Foi nas horas de ócio em seu consultório médico que Doyle começou a esboçar o que mais tarde seria oseu detetive. A atividade médica o ocuparia por dez anos, até 1891. Quando Doyle se lembrou do professorBell, ganhava muito pouco, numa modesta clínica que possuía, nos arredores de Portsmouth.

Pressionado pela necessidade e incentivado pelos conselhos de um amigo (que mencionara como as suascartas eram expressivas), Doyle percebeu que poderia ganhar algum dinheiro fora do campo da medicina ecedeu lugar à literatura, ou melhor, a dois tipos de literatura: os livros policiais, que lhe deram popularidadee fortuna – os quais não hesitava em definir como ‘obras indignas’ de sua alma cristã –, e os romanceshistóricos, cuja redação o levou a estudar durante anos o período em que se desenvolveriam as suas histó-rias, que lembravam as de Walter Scott.

Sua primeira história, O Mistério de Sassassa Valley, foi publicada anonimamente (por míseros três gui-néus) no Chamber’s Journal, em 1879. O conto revela a sua precoce idéia da aparição de uma ‘besta demo-níaca’, tema que ele mais tarde explorou na mais famosa história de Sherlock Holmes, O Cão dos Baskervilles.

Depois de muitas tentativas e frustrações, Doyle conseguiu que fosse publicada a sua primeira históriaestrelando o detetive e o seu escudeiro Watson. Um Estudo em Vermelho apareceu na Beeton’s ChristmasAnnual, em 1887. A boa aceitação do público levou-o a escrever a segunda história de Holmes, O Signo dos

Quatro, que foi publicada na Lippincott’s Magazine. O detetive começava a chamar a atenção, aos poucosatraindo o que mais tarde se tornaria uma legião de leitores fiéis.

A personagem – inicialmente Sherringford Holmes, com o nome logo mudado para Sherlock Holmes –era ao mesmo tempo o professor Bell, Auguste Dupin, de Poe, e M. Lecoq, de Gaboriau, mas era sobretudoHolmes, a mais perfeita máquina de raciocínio e dedução que o mundo conheceu, sempre ao lado de seuamigo e auxiliar, o dr. Watson.

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O sobrenome do detetive pode ter sido baseado no jurista americano e colega médico Oliver WendellHolmes; o primeiro nome pode ter vindo de Alfred Sherlock, violinista proeminente em sua época. O Dr.John Watson, médico de Southsea e membro da Sociedade Científica de Portsmouth (que serviu na Man-chúria por algum tempo) teve a honra de dar o nome ao companheiro de Holmes.

As características que tornaram Holmes atraente aos leitores – sua integridade, probidade, sensibilidade,determinação racional, ausência de sentimentalismo e superioridade intelectual – são avaliadas e relatadaspor Watson, médico como Doyle, concedendo humanidade a Holmes, que sem considerar a indulgência deWatson, torna-se frio, inacessível e desagradável. “Pode ser que você não seja luminoso”, diz Holmes aWatson, “mas você é um condutor de luz. Algumas pessoas, mesmo sem possuir gênio, têm um notávelpoder de estimular isso nos outros”.

O método sherlockiano é típico da análise científica: ao deparar com o crime, ele não se ocupa da psico-logia da vítima ou dos suspeitos. A linguagem dos fatos é soberana e as pistas concretas levarão infalivel-mente às causas que as produziram. A famosa personagem realmente acreditava na infalibilidade da ciência.

Nos intervalos das histórias do detetive, Doyle dedicou-se a obras ‘mais sérias’, mais apreciadas peloescritor, como A Companhia Branca, As Façanhas do Brigadeiro Gerard e Miquéias Clarke; este último,um grande sucesso. Doyle acabou, assim, abandonando a medicina para seguir definitivamente a carreiraliterária.

As histórias de Sherlock Holmes tornavam-se mais e mais populares, obrigando Conan Doyle a continuarcriando aventuras para o seu detetive. E quanto mais vezes o detetive expunha as suas habilidades para opúblico estupefato, mais as outras obras de Doyle tornavam-se obscurecidas. Em 1891 ele escreveu à suamãe: “Tenho pensado em matar Holmes... e livrar-me dele para sempre. Ele mantém a minha mente afasta-da de coisas melhores”.

A idéia de acabar com Holmes permanecera com Doyle. Durante a sua visita à Suíça, em 1893, eleconheceu as cataratas Reichenbach, local que escolheu como palco para o encontro fatal entre Holmes e oProfessor Moriarty. Pretendia, assim, pôr um fim às histórias de Holmes e dar espaço às suas obras maisclássicas.

Na última narrativa das Memórias de Sherlock Holmes, O Problema Final, de 1893, o detetive e um vilão,o professor Moriarty, despencam num abismo dos Alpes. Para a grande surpresa de Doyle, a morte deSherlock Holmes chocou milhares de pessoas de todos os cantos do mundo. Muitos marcharam em lutopelas ruas de Londres, em protesto. O público não se conformava e clamava pela volta do detetive.

A despeito das queixas de toda a Grã-Bretanha, Holmes continuou morto por dez anos. Em 1903, ceden-do mais uma vez ao apelo dos editores – que lhe ofereciam propostas irrecusáveis – Doyle ressuscitou odetetive, que não caíra no precipício, mas escalara o outro lado do paredão. Assim, em meio a um turbilhãode protestos e insultos, Doyle trouxe de volta o seu detetive no episódio A Casa Vazia, em 1903. Era a provade que a criatura tornara-se mais forte do que o criador: Sherlock Holmes tinha se tornado imortal.

No final de 1899 o iminente conflito entre a Inglaterra e a África do Sul deu a Doyle, patriota fervoroso, aoportunidade de auxiliar o seu país. Durante a Guerra dos Bôeres ele exerceu a sua profissão supervisionan-do o hospital de Langman Field, na África, posto que assumiu em 1900.

Juntamente com a guerra, veio de todo o mundo um surto de críticas contra a conduta do Império Britâ-nico. Coube a Doyle defender os interesses de sua pátria no panfleto amplamente traduzido A Guerra naÁfrica do Sul: Suas Causas e Conduta.

Pelos seus esforços na defesa dos interesses do seu país, Conan Doyle recebeu, em 1902, o título denobreza do Império. Passou, então, a portar o soberbo título Sir antecedendo seu nome.

Em 1912, Doyle introduziu no mundo da literatura o célebre Professor Challenger, de O Mundo Perdido,um conto sobre o renascimento da pré-história num lugar remoto da América do Sul.

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Apesar da hostilidade do criador pela criatura, Holmes tornou-se sempre mais popular, em livros, adapta-ções para o teatro e, mais tarde, para o cinema. Até hoje chegam cartas ao número 221-B da Baker Street, emLondres, onde era seu escritório.

Dotado de espírito aventureiro, Doyle participou de diversas expedições às regiões árticas e à África.Sua primeira esposa, Louise Hawkins, com quem havia se casado em 1884, faleceu em 1906. Ele se casou

com Jean Leckie em 1907.Doyle concorreu sem sucesso para Parlamento em 1900 e em 1906.Em seus últimos anos de vida – e de certo modo contradizendo as atitudes de seu imortal herói – Doyle

converteu-se ao espiritualismo e foi um pregador incansável de sua fé, dedicando-se ao seu estudo aprofun-dado, tema sobre o qual escreveu à exaustão. O espiritismo tornou-se para ele uma religião e o levou apromover palestras em vários países, como a Austrália e África do Sul. Em 1922, declarou que a famosa fotodas fadas de Cottingley era autêntica.

Sir Arthur Conan Doyle faleceu em Windlesham (Sussex, Grã-Bretanha) a 7 de Julho de 1930, debilitadopor um ataque cardíaco que o afligira meses antes. Ele escreveu mais de sessenta histórias e também não-ficção, jogos, versos, memórias, contos e vários romances históricos e sobrenaturais, além de ficçãoespeculativa.


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