UNIVERSIDADE SO FRANCISCO
DOUTORADO EM EDUCAO
SANDRA MEMARI TRAVA
O TRABALHO DOCENTE DE UMA PROFESSORA:
PRTICAS DE LEITURA EM FOCO
Itatiba
2015
SANDRA MEMARI TRAVA RA 002201100546
O TRABALHO DOCENTE DE UMA PROFESSORA:
PRTICAS DE LEITURA EM FOCO
Tese apresentada ao Programa de Ps Graduao
Stricto Sensu em Educao da Universidade So
Francisco, como requisito parcial para obteno do
ttulo de Doutor em Educao.
rea de Concentrao: Linguagem, Discurso e
Prticas Educativas.
Orientadora: Prof. Dr.. Luzia Bueno
Itatiba
2015
Ficha catalogrfica elaborada pelas Bibliotecrias do Setor de
Processamento Tcnico da Universidade So Francisco.
37.015.319 Trava, Sandra Memari.
T711t O trabalho docente de uma professora: prticas de
leitura em foco / Sandra Memari Trava. -- Itatiba,
2015.
179 p.
Tese (Doutorado) Programa de Ps-Graduao
Stricto Sensu em Educao da Universidade So
Francisco.
Orientao de: Luzia Bueno.
1. Autoconfrontao simples. 2. Interacionismo
sociodiscursivo. 3. Trabalho docente. 4. Prticas de
leitura. I. Bueno, Luzia. II Ttulo.
A Deus por me iluminar nesta caminhada.
Aos meus pais, Alberto Memari Filho (in memorian) e
a minha me pelo exemplo de coragem e
determinao, as minhas filhas Camila, Bruna e
Georgia pelo amor e compreenso e ao meu marido
por me apoiar nos momentos mais difceis.
Luzia, pelo incentivo e dedicao.
AGRADECIMENTOS
minha orientadora, Luzia Bueno, por ter, desde o incio, acreditado no meu
trabalho. Por sua dedicao, pacincia e exigncia. Pelo grande aprendizado que me
proporcionou: intelectual, pessoal e espiritual!
Aos professores doutores Mrcia Aparecida Amador Mascia, Ermelinda Barricelli,
Daniela Dias dos Anjos, Jackeline Rodrigues Mendes, que participaram da banca do exame de
qualificao, trazendo importantes contribuies para o desenvolvimento desta pesquisa, e
professora doutora Milena Moretto por ter aceitado participar da banca do exame de defesa.
As colegas do Grupo de Anlise de Linguagem, Trabalho Educacional e suas Relaes
(ALTER) - Grupo ALTER/USP, o qual participei como aluna, em especial as professoras
doutoras Eliane Lousada e Luzia Bueno, pelas oportunidades de discusses e aprendizados.
s colegas do Grupo ALTER/USF, no qual participo como integrante, pelas
contribuies e discusses sobre esta tese.
Aos professores do Programa de Ps Graduao Stricto Sensu em Educao da
Universidade So Francisco, pelas contribuies advindas nas disciplinas cursadas.
s secretrias do curso de Ps Graduao Stricto Sensu, por estarem sempre dispostas
a ajudar.
Capes, pela bolsa de estudos, sem a qual no seria possvel o desenvolvimento desta
pesquisa.
professora Renata, pessoa especial e muito querida, que se prontificou a participar
desta pesquisa, desde o incio do doutorado. Obrigada pelo carinho e pela confiana!
s amigas Graa Sandi, Silvana Alvim, Audrey e demais professoras e professores da
E.E. Ayr Picano Barbosa de Almeida, por me escutar e incentivar nesses quatro anos de
estudos.
Ao meu marido, Ademir, por ter me apoiado e participado das minhas angstias e das
minhas alegrias.
Aos trs tesouros da minha vida, minhas filhas: Camila, Bruna e Georgia, pelos
momentos que muitas vezes lhes foram negados, por eu estar trabalhando no meu texto.
Amo vocs!
minha irm, Alessandra, ao meu cunhado Genival, e aos meus sobrinhos Giovana e
Alberto, pelas palavras motivadoras.
Ao meu irmo, Lus Alberto, por fazer parte da minha famlia, e ao o meu genro,
Marcos, por ajudar na formatao e na leitura do texto
minha querida e amada me, Angelina, que na sua simplicidade sempre me
incentivou a estudar. Exemplo de fora, coragem e determinao. Obrigada pelas palavras de
nimo e f.
E, acima de tudo, a Deus, por me iluminar, proteger e me amar imensamente!
Na leitura da lio no se busca o que o leitor sabe, mas
o que o texto pensa. Ou seja, o que o texto leva a pensar.
Por isso, depois da leitura, o importante no o que ns
saibamos do texto o que ns pensamos do texto, mas o
que com o texto, ou contra o texto ou a partir do texto
ns sejamos capazes de pensar.
(Jorge Larrosa, Pedagogia Profana, 2004, p.142)
RESUMO
Essa pesquisa tem por objetivo refletir sobre o trabalho docente com a leitura,
especificamente, o trabalho de uma professora do Ciclo I, do Ensino Fundamental, que
leciona nas sries iniciais da Rede Pblica de So Jos dos Campos. Procuramos depreender
os aspectos tematizados sobre o trabalho com a leitura nos textos de uma entrevista
semiestruturada e de uma entrevista de autoconfrontao simples. Para isso, evidenciamos os
pressupostos terico-metodolgico do Interacionismo Sociodiscursivo, que apresenta a
linguagem como papel fundamental no/para o desenvolvimento humano, tendo como fontes
de referncias os estudos de Bronckart (2003, 2006, 2009); Machado (2004); Bueno (2007,
2011), juntamente aos aportes tericos da Ergonomia da Atividade (AMIGUES, 2004;
SAUJAT, 2004) e aos aportes tericos da Clinica da Atividade (CLOT, 2010; FATA, 2002).
A coleta de dados foi realizada em uma escola pblica da Rede Estadual de Ensino paulista,
tendo como sujeito de pesquisa uma professora alfabetizadora voluntria. Os dados foram
coletados por meio de entrevistas semiestruturada, videogravao das aulas e posteriormente
a realizao da entrevista de autoconfrontao simples. As anlises foram constitudas por
recortes do texto das entrevistas semiestruturada e autoconfrontao simples, nas quais
procuramos observar o contexto de produo e os aspectos tematizados pela professora em
relao ao trabalho com a leitura. Os resultados nos permitem enfatizar a complexidade do
trabalho docente com a leitura e a necessidade que o professor tem em responder as vrias
demandas que lhe so impostas como: ministrar todo o contedo proposto, seguir o livro
didtico, o planejamento, os projetos oferecidos pelos rgos como: Secretaria da Educao,
Oficinas pedaggicas, etc. Esperamos que as reflexes realizadas possam contribuir para a
compreenso do trabalho docente, principalmente com prticas de leitura e para a percepo
da importncia de se observar o trabalho concreto do professor tanto em sala de aula como
fora do horrio escolar.
Palavras-chave: Autoconfrontao simples; Interacionismo Sociodiscursivo; Trabalho
docente; Prticas de leitura em sala de aula.
ABSTRACT
This research aims to reflect the teaching work with reading in the work of a teacher Cycle I
of the Elementary School who teaches in the early grades of the So Jos dos Campos
Public System. We try to infer the themed aspects of the work with read in texts of a semi-
structured interview and a simple self-confrontation interview. For that , we noted the
theoretical and methodological assumptions of Interactionism Sociodiscursivo that has the
language as an essential role in / for human development We used as reference the sources
studies of Bronckart ( 2003, 2006 , 2009) ; Machado (2004); Bueno ( 2007, 2011 ) , together
with the theoretical contributions of Activity Ergonomics (Amigues , 2004; SAUJAT , 2004)
and the theoretical contributions of Activity Clinic ( CLOT , 2010; Faita , 2002) . The Data
collection was obtained in a public school in So Paulo Public Education System, having as a
research subject a volunteer literacy teacher. The Data were collected through semi-structured
interviews , video recording of classes and later through the realization of a simple self-
confrontation interview. The analysis were consisted of text clippings of semi-structured
interviews and simple self-confrontation , in which we tried to observe the context of
production and the aspects thematized by the teacher in relation to work with reading. The
results allow us to emphasize the complexity of teaching with reading and the need that
teacher has to answer the various demands imposed on him such as ministering all the
proposed content , ( to) follow the textbook , to plan projects offered by the organs like
Secretary of Education , educational workshops , etc. We hope that these reflections
could)contribute to the understanding of teaching , especially with reading practices and to the
awareness of the importance of observing the concrete work of the teacher both in the
classroom and outside of school hours.
Keywords: simple self-confrontation, sociodiscursivo interactionism, teaching, reading
practices in the classroom
SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................................................... 15
CAPTULO 1- TRABALHO E TRABALHO DOCENTE ............................................................. 23
1.1. Conceito de trabalho e desenvolvimento humano ao longo da Histria ................................... 23
1.2. O trabalho na vertente da ergonomia ........................................................................................ 27
1.3. Pressupostos da Clnica da Atividade ....................................................................................... 30
1.4. Trabalho docente ....................................................................................................................... 34
CAPTULO 2- PROPOSTA DO INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO ISD- PARA
ANLISE DE TEXTOS SOBRE O TRABALHO DOCENTE ...................................................... 44
2.1. Os princpios do ISD ................................................................................................................. 44
2.2. A linguagem e o agir ................................................................................................................ 47
2.3. O modelo de anlise de textos proposto pelo ISD ................................................................... 50
2.3.1. Contexto de produo ....................................................................................................... 50
2.3.2. Arquitetura interna ........................................................................................................... 51
2.3.3. Figuras de ao ................................................................................................................. 57
2.3.4. Mecanismos de textualizao ............................................................................................ 60
2.3.5. Mecanismos de enunciao ............................................................................................... 62
CAPTULO 3- CONCEPES DE LEITURA E LETRAMENTO ........................................... 64
3.1. Leitura na escola ....................................................................................................................... 64
3.2. Modelos tericos de leitura ....................................................................................................... 68
3.2.1. Modelo Ascendente (Bottom-up) ...................................................................................... 68
3.2.2 Modelo descendente (top down) ........................................................................................ 69
3.2.3. Modelo interativo de leitura .............................................................................................. 70
3.3. Abordagem de leitura como prtica interativa e discursiva ...................................................... 71
3.4. Letramento ................................................................................................................................ 73
3.4.1. Letramento: papel do professor ........................................................................................ 77
CAPTULO 4- OS CAMINHOS DA PESQUISA PROCEDIMENTOS METODOLGICOS
............................................................................................................................................................... 80
4.1. Objetivos e pergunta da pesquisa .............................................................................................. 80
4.2. Procedimentos de anlise dos dados ......................................................................................... 80
4.3. Gerao de dados: entrevista e autoconfrontao ..................................................................... 81
4.3.1. Entrevista semiestruturada ............................................................................................... 81
4.3.2. Metodologia da autoconfrontao simples ....................................................................... 83
4.4. O contexto da pesquisa.............................................................................................................. 85
4.4.1. Local da Pesquisa ............................................................................................................. 87
4.4.2. Pesquisadora ..................................................................................................................... 89
4.4.3. Professora sujeito da pesquisa........................................................................................... 90
4.5. Filmagem das aulas ................................................................................................................... 91
4.6. Autoconfrontao simples e conflitos experienciados .............................................................. 92
CAPTULO 5- ANLISE DOS SEGMENTOS TEMATIZADOS COM A LEITURA EM UM
TEXTO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA ...................................................................... 95
5.1. Anlise do contexto da produo do texto da entrevista semiestruturada ................................. 95
5.2. A infraestrutura geral do texto e contedo temtico ................................................................. 97
5.2.1. Anlise dos temas levantados pela professora e dos modos de dizer empregados (tipos de
discurso e figuras de ao) .......................................................................................................... 99
5.2.1.1. Tema: Condies de trabalho no espao escolar para realizar a leitura .................. 103
5.2.1.2 . Tema: o trabalho com a leitura .............................................................................. 105
5.2.1.3. Tema: O trabalho com textos na aula .................................................................... 107
5.2.1.4. Tema: Prescries: o planejamento, o livro didtico, o livro Projeto Ler e escrever
............................................................................................................................................. 110
5.2.1.5. Tema: O preparo das aulas e a busca de material de leitura nos sites na casa da
professora ............................................................................................................................. 112
5.3. Sntese dos resultados da entrevista semiestruturada .............................................................. 113
CAPTULO 6 - ANLISE DO TEXTO DA AUTOCONFRONTAO SIMPLES ................. 114
6.1. Anlise do contexto da produo Autoconfrontao Simples (ACS) .................................. 114
6.2. A infraestrutura geral do texto e contedo temtico ............................................................... 116
6.2.1. Anlise dos temas levantados pela professora e dos modos de dizer (tipos de discurso e
figuras de ao) ......................................................................................................................... 119
6.2.1.1. Modos de dizer: tipos de discurso ........................................................................... 119
6.2.1.2. As figuras de ao .................................................................................................. 121
6.2.1.3. Aspectos da leitura oral .......................................................................................... 124
6.2.1.4. Aspectos da leitura silenciosa e interativa ............................................................. 129
6.2.1.5. Tema: Prescries seguidas .................................................................................... 133
6.2.1.6. Tema: A organizao de sentar em pares para um ajudar o outro na aprendizagem,
pontuao e leitura ............................................................................................................... 136
6.2.1.7 . Tema: O uso do livro e o gasto com Xerox ........................................................... 137
6.2.1.8. Tema: A mudana da prtica da professora com a leitura ...................................... 139
6.3. Sntese dos resultados da entrevista de autoconfrontao simples .......................................... 140
CAPTULO 7- CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 142
7.1. As contribuies metodolgicas ............................................................................................. 143
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................................ 146
ANEXO 1: ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA ................................................................... 156
ANEXO 2: TRANSCRIO DA AUTOCONFRONTAO- JUNHO 2013 ............................ 161
ANEXO 3: NORMAS DE TRANSCRIO 178
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Os elementos do trabalho Fonte Machado (2009)....................................40
Figura 2: Esquematizao do trabalho do professor - Fonte: Machado ( 2009,
p.39)...............................................................................................................................41
Figura 3: Esquema do trabalho da professora...............................................................42
LISTA DE QUADROS
Quadro 1: Dados do IDESP- 2008, 2009 ................................................................................. 18
Quadro 2: Dados do IDESP- 2009, 2010 ................................................................................. 18
Quadro 3: Dados do IDESP- 2010, 2011 ................................................................................. 18
Quadro 4: Tipos de Discurso (adaptado de Bronckart - 1999, p. 157) ................................... 53
Quadro 5: Levantamento quantitativo de palavras trocadas entre a pesquisadora e a
professora. ................................................................................................................................ 96
Quadro 6: Temas introduzidos pela pesquisadora e pela professora Entrevista
semiestruturada. ....................................................................................................................... 99
Quadro 7: Tipos de discursos interativo e marcas lingusticas ................................................ 99
Quadro 8: Tipos de relato interativo e marcas lingusticas .................................................... 100
Quadro 9: Exemplos da ACS (autoconfrontao simples) .................................................... 101
Quadro 10: Exemplos da ACS ............................................................................................... 102
Quadro 11: Materiais e textos adequados e inadequados para a professora .......................... 108
Quadro 12: Contexto de produo da professora e pesquisadora .......................................... 115
Quadro 13: Levantamento quantitativo de palavras trocadas entre a pesquisadora e a
professora- ACS ..................................................................................................................... 116
Quadro 14: Temas introduzidos pela pesquisadora e pela professora- ACS ......................... 119
Quadro 15: Tipos de discurso interativo e marcas lingusticas .............................................. 120
Quadro 16: Tipos de relato interativo e marcas lingusticas .................................................. 121
Quadro 17: Figura de ao ocorrncia- ACS ......................................................................... 122
Quadro 18: Figuras de ao experincia -ACS ...................................................................... 123
15
INTRODUO
Nesta introduo apresentaremos os objetivos desta tese e, posteriormente, a trajetria
acadmica da pesquisadora que motivou a estudar este tema e a problemtica na qual este
trabalho se insere. Apresentaremos tambm resumidamente o quadro terico e, por fim, a
questo norteadora e a organizao da tese.
O objetivo desta tese refletir sobre o trabalho docente com a leitura,
especificamente, o trabalho de uma professora do Ciclo I, do Ensino Fundamental, que
leciona nas sries iniciais da Rede Pblica de So Jos dos Campos. Procuramos depreender
os aspectos tematizados sobre o trabalho com a leitura nos textos de uma entrevista
semiestruturada e de uma entrevista de autoconfrontao simples.
Vale ressaltar que essa pesquisa faz parte de um estudo maior realizado pelo grupo
ALTER (Anlise da Linguagem, Trabalho Educacional e suas Relaes) cujas pesquisas tm
por objetivo colaborar com o desenvolvimento do quadro terico metodolgico do
interacionismo sociodiscursivo, buscando compreender as relaes entre linguagem e trabalho
e, especificamente, linguagem e trabalho educacional (MACHADO, 2009). Esse grupo foi
coordenado e idealizado pela professora Dr.. Anna Rachel Machado, cuja vertente,
ALTER/USF coordenado pela professora Luzia Bueno da Universidade So Francisco e do
qual a pesquisadora faz parte.
O interesse por essa temtica surgiu ao longo da minha1 trajetria profissional como
professora de Lngua Portuguesa por mais de vinte anos, bem como minha trajetria no
campo acadmico, primeiro como aluna do mestrado e com interesse no trabalho do professor
com prticas de leitura e, no momento, como doutoranda. As questes que geraram
inquietao em relao temtica foram aparecendo mais amplamente durante os trabalhos
realizados como formadora de professores das sries iniciais, onde pude perceber a angstia
de alguns educadores que relatavam sobre as experincias vivenciadas no contexto escolar,
como: a sobrecarga de trabalho dentro e fora da escola, as prescries dos documentos
oficiais como PCNs (Parmetros Curriculares Nacionais), planejamentos, etc, e as
dificuldades que os professores enfrentavam em relao aos processos de aprendizagem da
1 Em alguns momentos no texto empregarei o pronome em 1 pessoa para relatar as experincias da minha
trajetria como professora e pesquisadora.
16
leitura por parte dos alunos, alguns professores relatavam que seus alunos no conseguiam
ler.
Em 1983, formei-me no curso de Letras e j lecionava como professora eventual. No
ano de 1985, mudei-me para Osasco-SP, cidade em que lecionei em vrias escolas de periferia
e central, e na qual fui percebendo a necessidade de aprofundar cada vez mais a minha
formao acadmica no intuito de contribuir na/para aprendizagem dos meus alunos. Nesse
perodo, os conhecimentos sobre a linguagem apresentavam-se com forte nfase no
construtivismo e com foco no ensino de leitura. Desse modo, muitos cursos eram
oferecidos pelo governo do Estado de So Paulo por meio da SEE- ( Secretaria da Educao)
e FDE (Fundao para o Desenvolvimento da Educao), como cursos de: Leitura e
Produo de Textos, Encontro de autores, Ensino da Gramtica, Arte, Conhecimento e
Educao, dentre outros, dos quais eu participava, pois j tinha interesse em aprimorar o meu
conhecimento e a minha prtica no trabalho com a leitura (TRAVA, 2006).
Nessa jornada, em 1996, j residindo em So Jos dos Campos e trabalhando em uma
escola padro, iniciei uma ps-graduao Lato Sensu em Leitura e Produo de Textos pela
UNITAU- Universidade de Taubat. Escrevi o meu primeiro projeto intitulado O prazer da
leitura.
Em 1997, ingressei em um curso de especializao tambm Lato Sensu na rea da
Educao: Currculo e Prticas Educativas, pela PUC/RJ. Assim, o meu interesse pelas
prticas de leitura, educao, formao de professores aumentou ainda mais. Nesse perodo,
fiz o Mestrado em Educao e senti a necessidade de estudar mais detalhadamente o trabalho
do professor com prticas de leitura na escola.
Iniciei o Mestrado em Educao pela Universidade So Francisco, em 2004, fui
beneficiada pela Bolsa Mestrado, programa oferecido pelo Governo do Estado de So
Paulo aos professores que lecionam na Rede Estadual de Ensino. No primeiro ano de estudos,
me afastei da sala de aula para trabalhar na Oficina Pedaggica de So Jos dos Campos. Foi
um ano de muitas experincias, trabalhei em conjunto com a ATP (Assistente Tcnico
Pedaggica), ministrando cursos de formao para professores do Ensino Fundamental, Ciclo
I, fiquei responsvel pela formao sobre competncias leitoras, tomei por base terica os
estudos de Roxane Rojo (2004), Kleiman, (1992), Schneuwly e Dolz (2004).
Nessa poca, as oficinas foram realizadas em dois perodos e abrangiam as 80 escolas
de So Jos dos Campos. Tive um contato maior com os professores das sries iniciais e pude
perceber a problemtica que se instala claramente na rea de formao de professores,
especificamente, no trabalho com a leitura. De acordo com Rojo (2004), falar de formao do
17
leitor oferecer aos alunos a capacidade necessria ao exerccio da plena compreenso. No
entanto, a leitura escolar parece ter parado no incio da 2 metade do sculo passado (ROJO,
2004, p.04).
Em 2005, voltei para a sala de aula, na escola em que lecionava, a E.E. Professora
Ayr Picano Barbosa de Almeida, agora como professora de Lngua Portuguesa e de Leitura,
pois, tambm nesse perodo, foi implantado pelo Governo do Estado de So Paulo um
Projeto de Leitura na Rede Estadual de Ensino. O professor assumia a carga horria de quatro
aulas de Lngua Portuguesa e duas aulas de Leitura, somando um total de seis horas-aula por
srie. Esse fato contribuiu para instigar ainda mais o meu interesse pelo trabalho do professor
com a leitura, pois em minha pesquisa de Mestrado, resolvi estudar como se dava as prticas
de leitura na escola e tomei como objeto de pesquisa os alunos que cursavam, no ano de 2004,
a quarta-srie e, no ano de 2005, a quinta-srie, sala cuja eu era professora de leitura.
Defendi a minha dissertao de mestrado em 2006, no incio da pesquisa, o meu
interesse centrava-se na interao professor/texto/aluno, porm, no decorrer dos estudos, o
foco foi se modificando e a pesquisa centrou-se na anlise da minha prpria prtica com
leitura em sala de aula. No princpio, houve uma certa resistncia, pois no conseguia ter um
olhar de estranhamento para minha prpria prtica, mas, com o tempo e com as orientaes
recebidas de minha professora orientadora e as contribuies da banca de qualificao, e ao
analisar as oficinas de leitura realizadas com as turmas de quarta e quinta sries, pude
perceber a importncia do professor refletir sobre o prprio trabalho, assim consegui me
distanciar e observar o meu processo de trabalho com as prticas de leitura (TRAVA, 2006).
Os resultados dessa pesquisa conduziram-me a pensar na rea de formao de
professores e na necessidade de se observar o trabalho do professor de forma mais reflexiva
com o intuito de melhorar as prticas pedaggicas e a ao desse professor em aula.
Assim, ao trmino do mestrado, fui convidada pela direo da escola na qual leciono
para realizar oficinas de leitura e interpretao de textos para os professores das sries iniciais
do Ciclo I. A preocupao por parte da equipe gestora centrava-se nos dados apresentados
pelos IDESP (ndice de Desenvolvimento da Educao do Estado de So Paulo), que se
apresentavam abaixo do esperado.
O IDESP indica e avalia a qualidade das escolas estaduais paulistas em cada ciclo, e
permite fixar metas atuais para o aprimoramento da qualidade da educao. Para esclarecer
melhor, segue abaixo a tabela dos dados referentes aos anos de 2008 a 2011, da escola
pesquisada, resultados apresentados na disciplina de Lngua Portuguesa, no final do Ciclo I-
Ensino Fundamental.
18
IDESP 2008 IDESP 2009
METAS PARCELA
CUMPRIDA
DA META
4 SRIE Lngua
Portuguesa
4,9 5,32 5,0 120,00
Quadro 1: Dados do IDESP- 2008, 2009
Fonte: www.idesp.edunet.sp.goc.br/boletim_esola.asp?
IDESP 2009 IDESP 2010 METAS PARCELA
CUMPRIDA
DA META
4 SRIE Lngua
Portuguesa
5,32 5,2 5,40 0,00
Quadro 2: Dados do IDESP- 2009, 2010
Fonte: www.idesp.edunet.sp.goc.br/boletim_esola.asp?
IDESP 2010 IDESP 2011 METAS PARCELA
CUMPRIDA
DA META
5ANO Lngua
Portuguesa
5,21 5,66 5,31 120,00
Quadro 3: Dados do IDESP- 2010, 2011
Fonte: www.idesp.edunet.sp.goc.br/boletim_esola.asp?
Nos anos de 2009 e 2011, a metas foram atingidas, porm, no ano de 2010, os alunos
apresentaram um ndice abaixo do esperado (5,20) e no conseguiram atingir a meta proposta
de 5,40. Desse modo, a diretora, preocupada com a qualidade da escola, acreditava que, com a
formao oferecida aos professores, tendo por prioridade as competncias leitora e escritora,
os alunos teriam um bom desenvolvimento na aprendizagem e, consequentemente, nas
prticas de leitura.
http://www.idesp.edunet.sp.goc.br/boletim_esola.asp
19
Sendo assim, nos anos de 2009, 2010 e 2011, alm de ministrar a minha carga horria
como professora, trabalhei com formao de professores em conjunto com a coordenadora
pedaggica do Ciclo I, nos horrios de HTPC (Horrio de Trabalho Pedaggico Coletivo) das
professoras do primrio. Naquela ocasio, a minha preocupao centrava-se em realizar
oficinas de leitura aos professores com abrangncia nos gneros e tipos textuais, produo de
textos e a questo da reescrita dos textos.
Nesses encontros, em muitos momentos, as professoras compartilhavam suas
experincias em sala de aula, no entanto, a reclamao constante de muitas era que a maioria
dos alunos realizava uma leitura superficial e no conseguiam entender o sentido do texto.
Elas buscavam orientaes nas prescries sugeridas pelos documentos como PCNs,
Propostas Pedaggicas, livros didticos, dentre outros, mas, mesmo assim, no conseguiam
atingir os objetivos a que se propunham. Tambm eu, como formadora estava centrada nas
propostas estabelecidas pelas prescries, pois a preocupao era que os alunos conseguissem
um bom desempenho nas avaliaes externas como: Saresp e Prova Brasil.
Ao trabalhar com formao de professores pude perceber o complexo cotidiano das
professoras, principalmente, das sries iniciais, caracterizado pelas angstias, o excesso de
trabalho tanto em sala de aula como fora do contexto escolar como por exemplo: correo
de provas e cadernos de alunos, preparao das aulas, pesquisas de novos contedos e pelo
constante desejo de cumprir todo o contedo proposto, dentre outros aspectos. Muitas
comentaram estar com problemas de sade e sendo medicadas para conseguir dar aula. Todo
trabalho gera sofrimento, mas a possibilidade de mudar o sentido desse sofrimento est
relacionado com o reconhecimento do outro; este que pode transformar o sofrimento em
prazer (DEJOURS, 2007).
Foi nesse contexto de constatao da complexidade do trabalho docente e de tanas
implicaes exercidas sobre ele que, no ano de 2011, ingressei no Doutorado em Educao
pela Universidade So Francisco. Com os estudos realizados, procurei me apropriar dos
pressupostos tericos do ISD (Interacionismo Sociodiscursivo) que fazem parte do
embasamento desta pesquisa, cujos autores destacamos (BRONCKART, 1999-2012, 2006,
2008; BULEA,2010; MACHADO, 2009). A proposta do ISD busca auxiliar nas questes
prticas de linguagem que envolvem as capacidades dos saberes e da ordem do agir das
pessoas como um todo, considerando o contexto scio histrico no qual o indivduo est
inserido. O ISD est articulado s concepes de Vigotski que apresenta a linguagem como
fator fundamental no desenvolvimento e construo das atividades coletivas, das formaes
20
sociais, dos mundos representados, nas mediaes formativas e transformadoras dos
indivduos (BRONCKART, 2008).
Outros pressupostos que embasam esta pesquisa e que tambm fizeram parte das
disciplinas do doutorado so os estudos voltados para a Psicologia do Trabalho, como os
conceitos da Clnica da Atividade, coordenada pelo pesquisador Yves Clot (2010) e os
estudos seguidos pelo Grupo Ergonomie de lActivit ds Professionnels de lEducation
(ERGAPE) de Marselha, Frana, do qual podemos citar Ren Amigues (2004), Frdric
Saujat (2004) e Daniel Fata (2004), dentre outros, que sero explicitados mais
detalhadamente no captulo 1.
Ainda no doutorado tive a oportunidade de participar de estudos do GRUPO
ALTER/AGE-USP, coordenado pelas professoras Eliane Lousada e Luzia Bueno, e tambm
fazer parte do grupo ALTER-USF, coordenado pela professora Luzia Bueno, como j citamos
acima. Nesses encontros, pude ter um contato maior com os integrantes do grupo ALTER,
bem como ler textos sobre o trabalho do professor, desenvolvidos por pesquisadores nas teses
de Lousada (2006), Abreu-Tardelli (2006) e Mazzillo (2006), Muniz-Oliveira (2011), Anjos
(2013), Danthas-Longhi (2013), e nas dissertaes de Barricelli (2007), Rocha (2013), entre
outros.
Com essas leituras e as discusses realizadas no doutorado e no grupo ALTER, fui
compreendendo um pouco mais sobre o quadro do ISD e me apropriando dos instrumentos
produo de dados advindos da Ergonomia da Atividade e Clnica da Atividade, estes
denominados autoconfrontao. Tive interesse em realizar a autoconfrontao simples, que
consiste em filmar as aulas do professor para, posteriormente, realizar a autoconfrontao na
presena de um pesquisador, o que explicitaremos com mais detalhes no captulo 4, da
metodologia.
Partimos da tese de que preciso propiciar ao trabalhador meios para recuperar o seu
poder de agir, conforme Clot (2010) descreve nos trabalhos da Clnica da Atividade,
e de que a linguagem pode permitir isso, dada a sua importncia na constituio humana, de
acordo com Bronckart (1999, 2006, 2008) nas discusses do Interacionismo Sociodiscursivo.
Para situarmos melhor sobre a utilizao do instrumento de coleta autoconfrontao
simples, realizamos uma pesquisa no banco de dados da CAPES, no perodo de 2010 a 2013.
Inicialmente, colocamos na busca as palavras trabalho docente e encontramos 1910
resumos. Ao inserirmos tambm a palavra leitura, detectamos 213 trabalhos, sendo 168 de
mestrado acadmico, 5 de mestrado profissional e 40 trabalhos de teses de doutorado.
21
Desses trabalhos, 61 dissertaes de mestrado apresentam no ttulo uma dessas
palavras, oito estudos esto relacionados ao trabalho do professor alfabetizador, com
predominncia na metodologia qualitativa, dois trabalhos apresentam como referencial terico
a perspectiva scio-histrica cultural e a Clnica da Atividade e Ergonomia da Atividade, e
um trabalho com o ttulo: Atividade docente: os sentidos e significados que uma professora
alfabetizadora atribui aquisio da escrita, apresenta como metodologia a
autoconfrontaes simples.
Encontramos 40 resumos de teses de doutorado, sendo que 19 apresentam no ttulo
uma ou mais dessas trs palavras: trabalho docente leitura. Trs tratam da questo do
professor alfabetizador com metodologia qualitativa e nenhum apresentou a metodologia da
autoconfrontao.
Procurando filtrar ainda mais nossa pesquisa, inserimos as palavras: trabalho docente,
leitura e autoconfrontao, encontramos uma tese de doutorado, na rea de Letras,
denominada Emoo na sala de aula: impactos na interao professor/aluno/objeto de
ensino, em que aparece como metodologia a autoconfrontao simples. Assim no
encontramos trabalhos que se referem ao trabalho docente, leitura e autoconfrontao simples,
o que nos permite dizer que a metodologia da autoconfrontao simples um instrumento
novo de coleta de dados no meio acadmico.
Entendemos que o que inova essa pesquisa a metodologia, pois os dados sero
analisados, como citamos acima, em dois momentos: anlise da entrevista semiestruturada e
da entrevista de autoconfrontao simples, haja vista que algumas pesquisas se orientam,
muitas vezes, apenas pela anlise de um dos dados. Como j citamos, partimos do princpio
de que necessrio se observar os trabalhador nas diferentes situaes de trabalho do dia a dia
e procurar compreender como se configura o seu trabalho a partir dos textos produzidos por
ele mesmo. De acordo com Bronckart e Machado (2004), os textos produzidos pelo professor
nas diversas situaes cotidianas de trabalho permitem compreender como ele realiza,
interpreta e avalia o seu prprio trabalho, possibilitando perceber os modos de agir desse
profissional.
Acreditamos tambm que esse trabalho possa contribuir para que mais pesquisadores
voltem seu olhar para as prticas discursivas dos educadores e, assim, possam entender o
trabalho docente de modo mais global, gerando mais conhecimentos que possam contribuir
para a recuperao do poder de agir do professor.
22
Para atingir o objetivo desta pesquisa, escolhemos uma professora que leciona no
Ensino Fundamental I, nas sries iniciais, com turmas de 2 srie (atual 3 ano no Ensino
Fundamental de 9 anos) de uma escola da Rede Estadual de Ensino de So Jos dos Campos -
SP. Realizamos, a princpio, uma entrevista semiestruturada, em um segundo momento,
filmamos algumas aulas da professora para, posteriormente, realizarmos a entrevista de
autoconfrontao simples.
De posse desses dados, procuramos analis-los respondendo a seguinte questo:
Que aspectos do trabalho docente com a leitura so tematizados nos dois textos:
entrevista semiestruturada e autoconfrontao simples?
Para respondermos a essa questo e atingirmos o nosso objetivo, dividimos nossa tese
em sete partes. No captulo 1, abordaremos a questo do trabalho em geral, e os pressupostos
tericos Ergonomia da Atividade e Clnica da Atividade, que embasam a nossa pesquisa e,
por fim, os conceitos sobre o trabalho docente.
Aps essa discusso, apresentaremos no captulo 2, o quadro terico do ISD, j que
esse quadro nos permite uma viso do agir humano na/pela linguagem, discutindo as
interpretaes desse agir, a partir dos textos produzidos pela professora. Alm disso, a partir
desse quadro terico, possvel realizar uma anlise do ponto de vista organizacional e
textual.
No captulo 3, para que possamos compreender melhor o trabalho do professor dos
anos iniciais com prticas de leitura na escola, apresentaremos os modos de leitura propostos
pela escola, os modelos tericos de leitura que vo desde as prticas de leitura tradicionais at
prticas de leituras interativas; e tambm conceitos sobre o letramento, e letramento e a
prtica do professor.
No captulo 4, apresentaremos a metodologia de pesquisa, o contexto de pesquisa,
participantes, exposio dos procedimentos de gerao de dados e a metodologia da
autoconfrontao simples.
No captulo 5, discutiremos a anlise dos dados da entrevista semiestruturada, e no 6
os dados da autoconfrontao simples, apresentando o contexto de produo e os segmentos
tematizados relacionados ao trabalho da professora com prticas de leitura.
Por fim, no captulo 7, apresentaremos as concluses buscando realizar uma reflexo
sobre o trabalho do professor, especificamente de uma professora dos anos iniciais e as
contribuies do referencial terico assumido nesta tese.
23
CAPTULO 1- TRABALHO E TRABALHO DOCENTE
O trabalho est presente em todas as fases da vida humana, desde os primrdios at os
dias atuais, porm ao longo dos anos vem sofrendo modificaes, principalmente em relao
ao trabalho do professor, assim, consideramos importante compreender qual a concepo de
trabalho, em geral, e de trabalho docente assumida nessa tese.
Neste captulo, abordaremos o conceito de trabalho e desenvolvimento humano, e os
conceitos de trabalho numa viso de Ergonomia da Atividade (AMIGUES, 2004; SAUJAT,
2004), da Clnica da Atividade (CLOT, 2010; MACHADO, 2007), que apresentam pesquisas
sobre diferentes situaes de trabalho, e, por fim, apresentaremos uma seo referente ao
trabalho docente.
1.1. Conceito de trabalho e desenvolvimento humano ao longo da Histria
O trabalho tem grande importncia na vida e no desenvolvimento do ser humano, pois
historicamente o homem passa a maior parte do seu tempo exercendo atividades voltadas para
o trabalho. De acordo com Luria (1991), o trabalho representa uma forma de atividade
consciente do homem, o que o difere do comportamento do animal.
O autor apresenta trs aspectos fundamentais dessa diferena: o primeiro deles que a
atividade consciente do homem no est ligada a aspectos biolgicos, pois o ser humano
apresenta necessidades complexas ou intelectuais que o incentivam a buscar conhecimentos.
Luria (1991) cita como exemplo a prpria prtica do trabalho, pois enquanto o animal caa
para suprir as necessidades biolgicas (sua e de sua prole), o homem trabalha no s para
alimentar a si e a sua famlia, mas para exercer o papel social de provedor.
Outro ponto que Luria (1991) destaca a caracterstica consciente do homem que se
apresenta na capacidade de interpretar e adquirir um conhecimento mais profundo das
diversas situaes. Sabe-se que o homem pode refletir as condies do meio de modo
imediatamente mais profundo do que o animal. Ele pode abstrair a impresso imediata [...]
(LURIA, 1991, p. 72). O autor cita como exemplo a capacidade do ser humano, que mesmo
ao ver que o dia est bonito, ao verificar a disposio de algumas nuvens no cu, ele se
previne levando um guarda-chuva. O homem capaz de abstrair de sua memria e
pensamento a percepo de que provavelmente chover.
24
O terceiro fato refere-se aprendizagem que se forma por meio da histria social [...]
a grande maioria dos conhecimentos e habilidades do homem se forma por meio da
assimilao da experincia de toda humanidade, acumulada no processo da histria social e
transmissvel no processo de aprendizagem (LURIA, 1991, p. 73).
Para Luria (1991, p.73), a questo principal tem sido como explicar os traos da
atividade consciente do homem?. O autor apresenta em seu texto que a Filosofia e a
Psicologia tm procurado explicar esse comportamento. A primeira considera que a
conscincia do homem deveria ser considerada como manifestao de um princpio espiritual
e este est ausente nos animais; j a Psicologia baseia-se na teoria evolucionista (Darwin) e
coloca que a atividade consciente do homem resultado da evoluo do animal.
No entanto, Luria (1991), procurando compreender as verdadeiras razes do
surgimento da atividade consciente do homem que o diferencia do animal, destaca a questo
do trabalho e da linguagem.
importante salientar que o trabalho e a linguagem apresentam-se como papel
mediador entre o homem e a natureza, torna-se fonte importante para o desenvolvimento do
ser humano conduzindo o sujeito a aes que envolvem comunicao e interao. De acordo
com Palangana (1995), a convivncia do homem em coletividade e a diviso de tarefas geram
necessidade de comunicao. O aparecimento da conscincia humana encontra-se
indissoluvelmente unida atividade laborativa. Segundo Thao, apud Palangana (1995), no
no trabalho espordico de adaptao dos antropoides que se deve buscar a origem da
conscincia e sim no estgio em que o trabalho de adaptao j se ps como hbito, ainda que
sem a forma da produo caracterstica da sociedade humana. O trabalho fora o homem
comunicao, nessas condies, tem dupla funo: produtiva e a de comunicao.
Sendo assim, a linguagem desempenha importante papel nas atividades conscientes do
homem, ela representa uma raiz histrico-social da atividade consciente que diferencia o
comportamento do homem do comportamento do animal. A linguagem torna-se fator
imprescindvel: [...] a linguagem reorganiza substancialmente os processos de percepo do
mundo exterior e cria novas leis de percepo (LURIA, 1991, p. 82).
Tambm nessa perspectiva, para Vigotski (2003a), o desenvolvimento humano
acontece a partir das relaes que se estabelecem na e pela linguagem em processos
denominados pelo autor de mediao (pelo instrumento, pelo signo, pelo outro) e
internalizao, em que ocorrem transformaes, primeiro no nvel social depois no nvel
individual. O caminho do objeto at a criana e desta at o objeto passa atravs de outra
pessoa. Essa estrutura humana complexa produto de um processo de desenvolvimento
25
profundamente enraizado nas ligaes entre histria individual e histria social (VIGOTSKI,
2003, p. 40).
Retomando a questo do trabalho, Engels (1876) numa viso marxista, j havia
apontado que o trabalho como prtica social o que difere o homem do animal. Em seu texto
intitulado O papel do trabalho na transformao do macaco e Homem, considera que o
trabalho a condio bsica e fundamental de toda a vida humana, chegando a afirmar que o
trabalho criou o prprio homem. Para reforar esta afirmao, faz uma retrospectiva histrica
buscando apresentar as diferenas e semelhanas entre o macaco e o homem.
O trabalho visto como o motor das transformaes fsicas. O que diferencia o
homem do animal a mo [v]emos, pois, que a mo no apenas o rgo do trabalho;
tambm produto dele (ENGELS, 1876, p.3). Esse rgo permite ao homem empunhar e criar
ferramentas. O trabalho comea com a elaborao de instrumentos (ENGELS, 1876, p. 06).
Nessa concepo marxista, o trabalho se constitui por trs elementos bsicos: a
atividade pessoal do homem, o objeto sobre o qual o homem trabalha e a ferramenta ou os
meios que utiliza para efetuar a transformao do objeto.
Desse modo, com o desenvolvimento das mos, da linguagem e do crebro, o homem
- no individualmente, mas em sociedade - foi executando operaes cada vez mais
complexas e procurando atingir seu objetivo. O trabalho mesmo se diversificava e
aperfeioava de gerao em gerao, estendendo-se cada vez a novas atividades (ENGELS,
1876, p. 8).
Saviani (2007), tomando por base a perspectiva de Marx, considera que o agir do
homem transformando a natureza em funo das suas necessidades o que conhecemos com
o nome de trabalho.
O autor [Marx] afirma que o homem no nasce homem, ele forma-se
homem, aprendendo a produzir. Nas comunidades primitivas, o ponto
de partida da relao trabalho e educao est na relao de
identidade. Os homens apropriavam-se coletivamente dos meios de
produo da existncia e nesse processo educavam-se e educavam as
novas geraes (SAVIANI, 2007, p. 155).
Nessa fuso, encontram-se os fundamentos histrico-ontolgicos da relao trabalho-
educao. Histrico pelo processo produzido e desenvolvido ao longo do tempo pelos
prprios homens, e ontolgicos porque o produto dessa ao resultado desse processo
(SAVIANI, 2007).
26
Pensando ainda na complexidade do trabalho, e no trabalho do professor, podemos
citar os estudos realizados por Machado (2007), que buscou apresentar as modificaes
ocorridas na sociedade ao longo dos tempos, as formas e os sentidos do trabalho. Em sua
pesquisa, a autora traa um panorama sobre o trabalho comeando pelo sentido que se
manifestou na Bblia, o trabalho era um agir com uma conotao negativa, como
consequncia do pecado de Ado e Eva.
No entanto, de acordo com Marton (2005), mesmo dentro da tradio judaico-crist
h outras vertentes de narraes bblicas que valorizam o trabalho, diferentemente da
expulso de Ado e Eva, pois o trabalho realizado pelo prprio criador. Assim, o trabalho
apresenta uma conotao, s vezes negativa, s vezes positiva (ABREU TARDELLI, 2006).
Ainda, segundo Machado (2007), na sociedade greco-romana, a atividade econmica
de subsistncia e de bens materiais eram reservadas apenas aos escravos e no a cidados
livres, desse modo, o termo trabalho s apareceu nas lnguas romnicas a partir do sculo
XVI, derivando-se de tripaluim, o instrumento de tortura destinado a punir os escravos.
No sculo XVIII, com a emergncia e a organizao do processo fabril que o termo
trabalho se consolida como um valor positivo. Segundo a autora, [] tambm nessa poca
que Malthus (1820/1990) props chamar de servio a atividade que no fosse produtora de
riqueza, contraposta ao verdadeiro trabalho ( MACHADO, 2007, p. 84).
Como j citamos, Machado refora que, no sculo XIX, surgem as ideias de Engels
(1876) e de Marx (1867), conceitualizando o trabalho
como a condio bsica e fundamental de qualquer vida humana, fundadora
do humano e do social, como atividade universal e criativa, de expresso e
de realizao do ser humano, em que o homem, ao mesmo tempo em que
coloca nos objetos externos todas as suas potencialidades subjetivas, vai
descobrindo e desenvolvendo a sua prpria realidade (MACHADO, 2007, p.
84).
J no sculo XX, a forma de organizao do trabalho industrial ganhou sua primeira
formalizao com Taylor (1965), que priorizava uma cincia do trabalho, concebida como um
conjunto de procedimentos e de tcnicas para a anlise minuciosa das tarefas a serem
desempenhadas pelos trabalhadores nas fbricas, de cada movimento elementar a ser feito e
do tempo a ser despendido, visando ao controle total de sua execuo e uma maior
produtividade e maiores lucros. O taylorismo intensificou o processo de trabalho sem
apresentar alteraes significativas na estrutura tecnolgica. Um operador era responsvel por
operar vrias mquinas, mesmo que estas realizassem tarefas diferentes. A intensificao do
27
trabalho a possibilidade encontrada pelo capital para produzir mais valor sem aumentar o
nmero de trabalhadores para realizar as tarefas.
O trabalho representado como a simples execuo do que prescrito, tornando-se
sinnimo de tarefa. Assim, a aplicao dos princpios da organizao cientfica do trabalho
se deu, na mesma poca, com o fordismo, aplicado sobretudo na indstria automobilstica
norte-americana, onde os trabalhadores especializados e divididos em cadeia produtiva e em
vrios postos de trabalhos iam agregando partes ao produto, at chegar ao produto final
(MACHADO, 2007).
Esse modelo de organizao do trabalho centrado no consumo de bens e produtos,
implicou em uma nova preocupao por parte dos empregadores, surgindo alguns
questionamentos, dentre eles, o de como melhorar o rendimento desse trabalhador.
Em meio a essas transformaes, comeam a despontar estudos sobre a ergonomia de
vertente francesa centrada na anlise da atividade humana em situao de trabalho, com foco
no funcionamento global do trabalhador, no apenas no que dele temos de observvel, mas
em toda a sua dimensionalidade, que envolve o funcionamento fisiolgico, cognitivo, afetivo
e social (FERREIRA, 2000), ou seja, o trabalho intelectual passou a ser considerado, no
como produtor de bens materiais, mas como objeto legtimo de estudo.
Essas alteraes do trabalho tm nos mostrado que preciso compreender melhor as
profisses, especificamente o trabalho docente. Acreditamos que o trabalho do professor
complexo e vai alm relao professor/ aluno ou contedo proposto.
Assim, aps esse panorama sobre o trabalho, apresentaremos, na seo a seguir, os
conceitos de ergonomia e da clnica da atividade, que nos auxiliaram em nossa pesquisa.
1.2. O trabalho na vertente da ergonomia
Para que possamos entender melhor o conceito de trabalho na viso da Ergonomia,
iniciaremos explicando o que vem a ser ergonomia, seu contexto histrico e seu
desenvolvimento, procurando compreender o contexto histrico em que acontecem as
construes e modificaes desse conceito.
De acordo com Souza-e-Silva (2004), o termo ergonomia constitudo dos radicais,
ergon, que designa a cincia do trabalho e nomos, originalmente, sinnimo de maior
conforto na relao homem/objeto do cotidiano, usado, em muitos casos, como adjetivo:
cadeira ergonmica; teclado ergonmico. J na viso dos ergonomistas, principalmente dos
28
que se formaram na escola francfona, a palavra ergonomia, entendida como arte, cincia,
mtodo ou disciplina, e tem por objetivo a atividade de trabalho.
Esse termo apresenta uma pluralidade de sentidos. Concordando com Souza e Silva, a
qual se insere na categoria dos ergonomistas, tomaremos em nossa pesquisa a noo de
ergonomia como:
[...] um conjunto de conhecimentos sobre o ser humano no trabalho e
uma prtica de ao que relaciona intimamente a compreenso do
trabalho e sua transformao. Apoiando-se em uma pluralidade de
contribuies advindas de diferentes disciplinas e ancorando seu corpo
de conhecimento no binmio trabalho prescrito ou tarefa/trabalho
realizado ou atividade, a ergonomia procura amalgamar
conhecimentos gerais sobre o trabalho com conhecimentos especficos
co-produzidos pelo coletivo de trabalho. (SOUZA-E-SILVA, 2004, p.
89)
A ergonomia surgiu na Gr-Bretanha, em 1947, como resultado de pesquisa
desenvolvida a servio da Defesa Nacional Britnica, durante a Segunda Guerra Mundial, por
uma equipe interdisciplinar, com o objetivo de amenizar os esforos humanos em situaes
extremas (SOUZA-E-SILVA, 2004).
Segundo os manuais de ergonomia, essa disciplina foi consequncia da atuao
conjunta de engenheiros, psiclogos e fisiologistas para remodelarem o cockpit (cabine de
pilotagem) dos avies de caa ingleses. Essa experincia interdisciplinar deu certo e passou a
ser expandida para o mundo industrial (FERREIRA, 2000).
Simultaneamente, tambm surge na Frana pesquisas direcionadas para a observao
do trabalho humano. Essas pesquisas mostravam a complexidade das atividades de trabalho.
Nos dois pases, os estudos dialogavam com outras reas do saber. Na Gr-Bretanha, a
ergonomia visava adaptao da mquina ao homem, levando em conta os fatores humanos
na concepo de dispositivos tcnicos, equipamentos, mquinas e instrumentos, a ergonomia
abordava o trabalho na relao homem/mquina. J na Frana, a preocupao central era com
a adaptao do trabalho ao homem, motivo pelo qual surgiram estudos direcionados
observao do trabalho humano, procurando mostrar a complexidade das atividades do
trabalho.
Os pesquisadores franceses j no aceitavam as teorias e prticas desenvolvidas nos
Estados Unidos, [...] invertendo-se o objetivo perseguido em suas prticas: no se tratava
mais de adaptar os indivduos ao trabalho, mas de melhorar as condies de trabalho para
esses indivduos (MACHADO, 2007, p, 86).
29
No comeo dos anos 70, de acordo com Souza e Silva (2004), o modelo taylorismo,
preconizava a diviso do trabalho em diferentes tarefas, de um lado, o perito que concebe e
prepara o trabalho e, de outro, o executante que o realiza. Assim, se a atividade fosse diferente
da tarefa apresentada, havia duas possibilidades: ou o trabalhador no havia realizado sua
tarefa corretamente ou teria ocorrido falha no sistema. O modelo taylorista foi acusado de
anular a competncia dos trabalhadores, e os trabalhadores franceses comearam a contestar
essa organizao de trabalho recusando a abordagem mecanicista, segundo a qual o homem,
como a mquina, pode ser reduzido atividade que executa.
Desse modo, de acordo com Machado (2007), a ergonomia tomou o seu maior
impulso em uma contraposio ao taylorismo. Muitas pesquisas realizadas vem
demonstrando como o modelo taylorista de se prescrever as tarefas dos trabalhadores em seus
mnimos detalhes era totalmente inexequvel, dada a distncia entre a prescrio e a atividade
real do trabalhador. Foi, nesse contexto, que, segundo Machado (2007), construram duas
noes centrais da ergonomia francesa: [...] a de trabalho prescrito e a de trabalho
realizado, que at hoje tm sido muito produtivas para as pesquisas, mesmo que
reelaboradas, passando a considerar o trabalhador como um verdadeiro ator e no como um
mero executor das prescries (MACHADO, 2007, p. 86).
Tambm para Ferreira (2008), a ergonomia tem como preocupao a melhoria e o bem
estar dos trabalhadores e a eficcia dos processos produtivos, levando-se em conta a
adaptao do contexto de trabalho a quem nele opera. Visa transformao dos ambientes de
trabalho buscando conforto e preveno sade dos trabalhadores.
Ainda segundo Ferreira (2000), a evoluo das definies da ergonomia coloca em
evidncia algumas de suas caractersticas: o carter multidisciplinar e aplicado; o foco no
bem-estar dos trabalhadores e na eficcia dos processos produtivos; a adaptao do contexto
de trabalho, buscando conforto e preveno de agravos sade dos trabalhadores, e o mais
importante, segundo o autor, o objeto de estudo, anlise e interveno da ergonomia da
atividade: a interao entre os indivduos em um determinado contexto de trabalho.
Assim,
Pode-se depreender que a razo de ser da Ergonomia compreender
os problemas (contradies) que obstaculizam a interao (mediao)
dos trabalhadores com o ambiente de trabalho, cuja perspectiva
promover o bem-estar de quem trabalha e o alcance dos objetivos
organizacionais (FERREIRA, 2000, p. 91).
30
Desse modo, o foco do olhar terico-metodolgico da Ergonomia da Atividade est
voltado para a singularidade do ato de trabalhar de cada ser humano em contextos
semelhantes ou diferentes. Em ergonomia da atividade, o indivduo sujeito ativo que pensa,
age e sente; por meio de sua atividade de trabalho, constri e reconstri sua experincia de
trabalho cotidianamente (FERREIRA, 2000, p. 93).
Desta forma, a Ergonomia da Atividade tem contribudo com as vrias pesquisas que
vem sendo desenvolvidas na rea da educao, especificamente no que se refere a mostrar que
h distncia entre o trabalho prescrito e o trabalho realizado, visto que essa distncia torna-se
fonte de conhecimento, centra-se no trabalho efetivo (problemas reais, em situaes
reais, em tempo real) (SOUZA-E-SILVA, 2004).
Percebemos que vrias disciplinas avanam em suas descobertas, como a Ergologia
(SCHWARTZ, 1996), a Psicologia do Trabalho (LE GUILLANT, 1984) e a Psicologia
Clnica do Trabalho, que se constitui em duas correntes importantes: a Psicodinmica do
trabalho (DEJOURS, 2008) e a Clnica da Atividade (CLOT,2010).
A ergonomia e a Clinica da atividade nos proporcionam aportes tericos que visam
observar o agir do trabalhador in loco, nas diversas situaes de trabalho. Esses conceitos tm
contribudo na ampliao do conceito de real da atividade, e tem avanado nos estudos da
Ergonomia da atividade no que se refere ao conceito de trabalho. Desse modo, nos auxiliam
em nossa pesquisa permitindo observar e analisar os vrios elementos do trabalho tematizados
nos textos escritos.
Por isso, na seo seguinte, discorremos sobre a Clnica da Atividade abordando seus
pressuposto, o que indispensvel para nossa pesquisa.
1.3. Pressupostos da Clnica da Atividade
De acordo com Machado (2007), as transformaes do mundo do trabalho e a
emergncia de novos objetos de estudo: a linguagem em situao de trabalho e o trabalho do
professor comearam a exigir mais dos trabalhadores. Segundo Lazzarato (1992, s/p),[...]
preciso que ele se exprima, que fale, que comunique, que coopere. , nesse sentido, que, na
Frana, surge o interesse das cincias do trabalho pela questo da linguagem e tambm na
lingustica surge o interesse pelo estudo da linguagem nas situaes de trabalho, o que
apresentaremos mais adiante.
31
Vale esclarecer, como j citamos, que o autor que deu incio aos estudos da Clnica da
atividade foi Yves Clot, professor de Psicologia que leciona Psicologia do Trabalho no
Conservatoire National ds Arts et Mtier (CNAM), onde dirige a equipe de Clnica da
Atividade do Laboratrio de Psicologia do Trabalho e da Ao (Laboratoire de Psychologie
Du Travail et de l` Action). Clot (2010) tem pautado suas reflexes nas contribuies da
Psicologia Scio-histrica de Vigotski, Leontiev e Luria, bem como nos estudos lingusticos
de Bakhtin em torno anlise do discurso, com o objetivo de compreender o processo das
relaes entre a psicopatologia do trabalho e clnica da atividade, ou seja, as relaes entre a
atividade e subjetividade presentes no contexto do ofcio do trabalhador.
Assim, os conceitos da Clnica da atividade so importantes no sentido de buscar
compreender as subjetividades nas relaes pessoais e coletivas dos trabalhadores, pois a ao
transformadora deve se consolidar pela ao dos prprios coletivos de trabalho.
Dentre os conceitos importantes, procuramos destacar trs: o real da atividade, o
gnero de atividade e o estilo da ao (CLOT, 2010).
O real da atividade se refere atividade do indivduo sobre si mesmo, a atividade do
trabalhador precisa proporcionar um sentido para a vida dele prprio, assim, o autor amplia a
atividade prescrita e realizada, apresentada pela Ergonomia da Atividade, acrescentando o real
da atividade, ou seja, aquilo que pode ser feito, mas no se faz.
[...] o real da atividade tambm aquilo que no se faz, aquilo que no
se pode fazer, aquilo que se busca fazer sem conseguir - os fracassos -,
aquilo que se teria querido fazer ou podido fazer, aquilo que se pensa
ou que se sonha poder fazer [...] aquilo que se faz para no fazer
aquilo que se tem a fazer ou ainda aquilo que se faz sem querer fazer
(CLOT, 2010, p. 116).
Clot (2010) apresenta o sujeito como o ncleo de contradies vitais procura de
significao e, para compreender a atividade realizada e o real da atividade, preciso
compreender que as exigncias da atividade devem-se confrontar com os conflitos vividos
pelo trabalhador. As atividades recalcadas formam resduos incontrolveis (CLOT, 2010,
p. 103). E ainda, [a] atividade uma provocao subjetiva mediante a qual o individuo avalia
a si prprio e aos outros para ter a oportunidade de vir a realizar o que deve ser feito. As
atividades suspensas, contrariadas e impedidas - at mesmo, as contra-atividades devem ser
includas na anlise (CLOT, 2010, p. 104).
No que diz respeito Clnica da Atividade, o autor afirma que o sujeito diante do
conflito no permanece passivo. Isso foi constatado, por exemplo, nos estudos dos
32
condutores de trem, onde alguns profissionais buscavam alternativas para superar a rotina,
como no exemplo do depoimento de um dos operrios de trem que utilizava os freios como
um esporte.
Ao fazer disso um esporte, o condutor realiza um objetivo surgido dos
conflitos vitais da atividade, aos quais ele deseja escapar: em
psicologia de trabalho, essa atribuio de novas funes s
ferramentas, o uso deslocado e inventivo de um dispositivo,
designado por catacrese (Clot, 1997a). A etimologia grega indica que
a catacrese consiste, de algum modo, em puxar a brasa para sua
sardinha (CLOT, 2010, p. 106).
Para o autor, os trabalhadores apresentam mecanismos de defesa, no para eliminar os
sofrimentos, mas impedir que eles se transformem em doenas.
Ali onde o sofrimento um sentimento de vida contrariado, a sade
esse sentimento de vida reencontrado. Nossa tentativa de fazer falar o
ofcio, graas restaurao dos debates entre escolas, das
controvrsias e dos dilogos entre profissionais, temos conseguido, s
vezes, transformar a experincia mal vivida em meio de viver outras
experincias (CLOT, 2010, p. 116).
Em relao ao gnero da atividade, para Clot (2010) um sistema de instrumentos
coletivamente construdos e que se encontra no interior da atividade individual. Um gnero
est sempre ligado a uma situao de mundo social, uma vez que o sujeito escolhe os tipos de
gneros para se comunicar em determinadas situaes, organizando as falas. Seria possvel
dizer que os gneros de discurso e os gneros de tcnicas formam conjuntamente, o que se
pode designar por gneros de atividades (CLOT, 2010, p. 123). Alm disso, Clot (2010)
acrescenta que
A renncia ao gnero, por qualquer razo que se possa imaginar,
sempre o incio de uma desordem da ao individual. Ele desempenha,
portanto, uma funo psicolgica na atividade de cada um. Vamos
defender, ento, esta tese: em seu aspecto essencialmente
transpessoal que o gnero profissional exerce uma funo psicolgica
na atividade de cada um. (CLOT, 2010, p. 125)
Sendo assim, Clot (2010) afirma a necessidade que o ser humano tem de recriar nos
contextos de trabalho e o como o gnero auxilia nesse processo. O gnero um meio para agir
com eficcia e sua estabilidade sempre transitria, pois quando necessrio os sujeitos
ajustam ou modificam esses gneros que so considerados como criaes estilsticas, no
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sentido de que a ao sempre endereada a algum em um dado contexto. importante,
segundo o autor, cultivar o gnero nas suas diversas variantes para que ele permanea vivo.
Com efeito, a distncia tomada em relao aos gneros sociais insuficiente para definir os
estilos de ao pessoal (CLOT,2010, p. 128).
O estilo justamente a distncia que o profissional coloca entre a sua ao e a sua
prpria histria. O estilo a forma que cada sujeito se utiliza para se interpor entre ele e
gnero coletivo. Clot (2010) aponta Vigotski como o que primeiro compreendeu a questo do
externo e interno no desenvolvimento humano. Segundo Clot (2010), o estilo favorece o
enriquecimento dos contatos sociais consigo mesmo, e o das relaes pessoais estabelecidas
com os outros - que na perspectiva vigotskiana seria definida como conscincia. Assim, a
mola propulsora da abordagem metodolgica para os pesquisadores da atividade aprofundar
nas contribuies dos estudos lingusticos.
mais que provvel que o enunciado dito libere, na ordem sequencial,
sob a influncia de diversas interferncias e de mltiplas dependncias
condicionais, mensagens construdas ao longo de um desenrolar linear
do discurso - contendo hesitaes, rupturas e retornos sobre si - mas
que, simultaneamente, ele venha a abrir portas pelas quais se
manifestem ou emerjam os vestgios dos alhures e das outras
coisas coexistentes. (CLOT, 2010, p,123)
Alm da importncia dos espaos em que se d a ao dos discursos, importante
tambm se observar o movimento dialgico apresentado nas situaes de interao.
O movimento dialgico cria: relaes renovadas, de situao em
situao, entre o falante sujeito e os outros, assim como entre esse
mesmo falante e aquele que ele havia sido na situao precedente,
alm do modo como ele o havia sido. Procedendo assim, ele
transforma, manifesta e revela, no sentido fotogrfico de termo as
posies dos interlocutores que se elaboram no decorrer do
movimento, at mesmo se desestruturam sob o efeito de contradies
engendradas por esse movimento dialgico. (CLOT, 2010, p.135)
Em nossa pesquisa optamos pela autoconfrontao simples que tem por base filmar as
aulas da professora, e posteriormente, professora, juntamente com a pesquisadora assistir ao
vdeo, realizando intervenes quando necessrio. Esse processo proporciona uma relao
dialgica com o objeto filmado, com o sujeito envolvido na pesquisa e com o pesquisador.
Como j citamos, a autoconfrontao simples uma metodologia cujo princpio fazer da
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atividade vivida o objeto de outra experincia, ou a atividade presente por meio da linguagem,
provocando o sujeito a pensar na atividade e ressignific-la (CLOT, 2010).
Vale ressaltar que apresentaremos no captulo metodolgico as contribuies da
Clnica da Atividade relacionada autoconfrontao simples, processo que ser utilizado para
nossas anlises.
Assim, aps a essa breve explanao dos conceitos da Clnica da Atividade, na seo
abaixo, discorreremos sobre o trabalho docente.
1.4. Trabalho docente
Nas sees acima apresentamos o conceito de trabalho, em geral, e os pressupostos de
acordo com a Ergonomia da Atividade e Clnica da Atividade. Nesta seo, partiremos desses
conceitos para apresentar os estudos que vm sendo realizados, especificamente em relao ao
trabalho docente.
Como vimos, at o momento, a temtica do trabalho, especificamente, do trabalho do
professor, vem se redefinindo ao longo da histria e nos trabalhos de pesquisadores que se
empenham nesse campo. O conceito de trabalho docente tem se modificado em virtude das
vrias transformaes nos sistemas de produo, que incluem a substituio do trabalho
material e fsico pelo imaterial ou de prestao de servio.
Logo, estamos diante de uma nova organizao e diviso do trabalho escolar. A
profisso docente est em mutao, e o trabalho do professor est negligenciado, a
docncia tornou-se um trabalho mais extenuante e mais difcil. (TARDIF E LESSARD,
2011).
Tardif e Lessard (2011) afirmam que a diferena entre o trabalho realizado por um
trabalhador da indstria e o trabalho docente est na importncia do objeto de trabalho (os
alunos), isso significa que esse objeto portador de indeterminaes, uma vez que cada
indivduo apresenta singularidades. O professor no pode agir seno levando em conta as
diferenas individuais. Mesmo trabalhando com coletividades os professores no podem
tratar os indivduos que compem essas coletividades como elementos de uma srie
homognea de objetos (TARDIF e LESSARD, 2011, p. 257).
O trabalho docente no cotidiano constitui-se de um conjunto de interaes
personalizadas com os alunos, a fim de obter a participao deles no prprio processo de
formao. Ensinar, portanto, colocar sua prpria pessoa em jogo como parte integrante nas
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interaes com os estudantes. [...] Queira ou no, o professor ser o nico mediador entre a
organizao escolar e os estudantes (TARDIF e LESSARD, 2011, p. 268).
Para os autores, o objetivo do trabalho docente coletivo e pblico, pois um professor
trabalha com seres humanos e estes seres humanos so dotados de capacidade de liberdade, de
autonomia. Por esse motivo que a relao entre professor e aluno no pode se reduzir ao
vnculo instrumental do sujeito humano com o seu objeto material. Assim, ensinar
confrontar-se com problemas e dilemas ticos que se tornam ainda mais delicados quando se
encontram num contexto de relaes face a face (TARDIF E LESSARD, p. 71).
De acordo com Tardif e Lessard (2011), nas pesquisas sobre trabalho docente, a
presena do objeto humano modifica profundamente a prpria natureza do trabalho e
atividade do trabalhador, j que
[...] todo trabalho sobre e com seres humanos faz retornar sobre si a
humanidade de seu objeto: o trabalhador pode assumir ou negar essa
humanidade de mil maneiras, mas ela incontornvel para ele, pelo
simples fato de interrogar sua prpria humanidade. O tratamento
reservado ao objeto, assim, no pode mais se reduzir sua
transformao objetiva tcnica, instrumental; ele levanta as questes
complexas do poder, da afetividade e da tica, que so inerentes
interao humana, relao com o outro. (TARDIF E LESSARD,
2011, p. 30)
Assim, os autores defendem a ideia de que o trabalho docente constitui a chave para a
compreenso das transformaes atuais das sociedades do trabalho. Eles se apoiam em quatro
constataes:
1: desde os anos cinquenta, a categoria dos trabalhadores produtores de bens
materiais est declinando, em todas as sociedades modernas avanadas;
2: os grupos de profissionais, cientistas e tcnicos ocupam progressivamente posies
importantes e at dominantes em relao aos produtores de materiais;
3: essas novas atividades de trabalho esto relacionadas historicamente s profisses
e aos profissionais que so representantes de novos grupos de especialistas na gesto de
problemas econmicos e sociais;
4 : a constatao em meio a essas transformaes se observa o crescente status de que
gozam, na organizao socioeconmica, os ofcios e profisses que tm esses seres humanos
como objeto de trabalho.
Amigues (2004) e Saujat (2004), ambos da Ergonomia da Atividade, buscam
apresentar uma concepo ampliada da noo de atividade. Para eles, o trabalho do professor
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complexo e vai alm de uma relao aluno/professor, ou contedo a ser ensinado, dirige-se
tambm instituio, aos pais, e a outros profissionais que constituem a histria do trabalho
desse profissional.
Saujat (2004), em seu texto O trabalho do professor nas pesquisas em educao: um
panorama, apresenta alguns pontos centrais das diferentes abordagens que tm alimentado a
reflexo acerca da eficcia do ensino e sobre como elas contriburam para a emergncia de um
objeto de pesquisa: o trabalho do professor.
As primeiras pesquisas sobre o ensino tinham carter pragmtico, de acordo com
Saujat (2004), nos Estados Unidos. Os estudos voltavam-se para a tentativa de identificar a
eficcia dos professores. Outros estudos reforavam a ideia do carter multideterminado das
aprendizagens escolares, bem como da importncia do papel que tm as aes dos
professores, o que promoveu a ideia de que o professor faz a diferena. Os estudos atuais,
mesmo conservando a hiptese de um efeito professor, passaram a considerar vrios tipos de
variveis e se inscreveram em uma concepo interativa da eficcia dos professores
(SAUJAT, 2004).
O autor faz uma breve apresentao das bases tericas dessas diferentes abordagens: o
paradigma processo-produto, o paradigma do pensamento dos professores, concepo do
prtico reflexivo, abordagem etnogrfica situando-as em perodos correspondentes a modelos
tericos distintos, com o objetivo de permitir ao leitor uma melhor apreenso do significado
das discusses no campo da pesquisa sobre o ensino e da natureza da contribuio que a
abordagem ergonmica da atividade do professor pode oferecer a esse debate.
Para Doyle (1986), no paradigma processo-produto tenta-se avaliar a eficcia
estudando-se as relaes entre a medida dos comportamentos dos professores em aula
(processo) e aprendizagem dos alunos (produto) (SAUJAT, 2004, p. 7).
Esse processo teve evoluo quando o processo-produto passou a considerar as
variveis mediadoras. Segundo Postic (1977), trs fatores apresentaram avano dessa
pesquisa: relevncia ao ensino como objeto, a constituio de um vasto corpus de
conhecimento com base em resultados de fiabilidade e evidenciaram o papel da formao na
obteno dos comportamentos disponveis dos professores. Mesmo com essa evoluo, para
Saujat (2004), possvel fazer crticas aos trabalhos nessa perspectiva.
O segundo paradigma apresentado pelo autor o paradigma do pensamento dos
professores, os primeiros trabalhos de pesquisa nessa perspectiva apresentam-se hbridos, pois
se baseavam tanto no cognitivismo quanto na abordagem etnogrfica. A imagem do professor
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a de um indivduo que reage aos acontecimentos da aula, que espera que eles ocorram para
efetuar uma escolha a partir de um repertrio de resposta possveis (DURAND, 1996).
Como afirmam os autores que se interessam pela maestria (TOCHON, 1993;
SAUJAT, 2004), tambm aparecem alguns limites com relao a esses trabalhos referentes ao
pensamento dos professores que so de ordem terica e epistemolgica. A maestria
caracterizada por uma reflexo baseada em imagens de casos interiorizados atravs da
experincia. Em relao a essa busca de eficcia e maestria foram desenvolvidos trabalhos
que favoreceram a emergncia da segunda fonte de paradigma do pensamento educacional: a
abordagem etnogrfica. Mais preocupada em apreender e explorar os diferentes componentes
da experincia profissional de cada professor do que com a melhoria da escola, essas
pesquisas apoiam-se em estudos de casos e recorrem a mtodos qualitativos (SAUJAT,
2004, p. 13).
Saujat (2004) tambm aponta que o quadro conceitual das histrias da experincia
situa-se no prolongamento da abordagem fenomenolgica e da pesquisa de campo, prprios
da etnometodologia, e apoia-se na colaborao narrativa com o pesquisador (TOCHON, apud
SAUJAT, 2004). Nessa corrente, temos autores como Connely e Clandini (1995).
A concepo do prtico reflexivo (SCHN, 1983) consiste na reflexo que incide
sobre a ao e sobre a conduta do profissional num determinado contexto. Assim, a
experincia profissional assimilada experimentao entendida
como uma forma de confrontao com o real produzindo-se no
contnuo de um curso de ao situado. Cada uma das experincias
realizadas em prol dessa confrontao alimentaria a dinmica de uma
reflexo na ao, articulada a uma reflexo sobre a ao conduzida a
posteriori, fonte de novos conhecimentos para o profissional
(SAUJAT, 2004, p. 14).
Uma outra abordagem apresentada pelo autor a abordagem ecolgica dos processos
interativos. Doyle (1986), props uma descrio ecolgica em que a tarefa do professor se
relaciona com os acontecimentos que ocorrem num contexto, e apresentam as seguintes
caractersticas: so mltiplas e simultneas marcadas pelo imediatismo e rapidez,
imprevisibilidade e so visveis, remetem a uma histria. Tardif e Lessard (2011) discutindo
a questo do que torna os acontecimentos da aula descritveis com a ajuda dessa
caracterizao ecolgica, propem duas novas categorias a de interatividade e a de
significao. Os autores consideram que nessas categorias se baseia a ecologia da aula.
Lerman (1997) destaca a importncia sobre a formao dos professores como fonte de
reflexo dos pesquisadores sobre as prticas dos professores, seus conhecimentos e as
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relaes com suas escolhas pedaggicas. A pesquisa sobre o professor encontra-se num
estgio emergente, com pouca confrontao de mtodos e de quadros tericos, a ponto de
Hoyles se perguntar, em 1992, se o professor era um objeto de estudo bem identificado.
(SAUJAT, 2004, p.25).
Mas esses questionamentos conduziram a reflexes metodolgicas e tericas
importantes que acompanharam os recentes trabalhos, principalmente na Frana, voltados
para estudar o trabalho do professor em aulas normais, em toda a sua complexidade, como:
determinar coeres e a margem de manobra do professor; buscar caractersticas da posio
do professor numa instituio didtica, identificar os meios utilizados pelo professor para
organizar seu projeto de ensino e o lugar que deixa para o aluno na realizao desse projeto,
buscar regularidades e variabilidade nas prticas dos professores, compreender como se
constroem esses conhecimentos, etc. (SAUJAT, 2004).
Saujat (2004) destaca tambm os pesquisadores que tentam promover a abordagem
didtica e ergonmica. Ele acredita que os estudos baseados numa perspectiva ergonmica
consideram o ensino como trabalho e as pesquisas voltadas para essa perspectiva apresentam
uma dualidade. De acordo com Daniellou (1996), os professores em trabalho tecem. De um
lado, a trama, que segundo este autor esto ligadas aos programas e instrues oficiais, s
ferramentas pedaggicas, s polticas educacionais, por outro, a tela, ligados prpria
histria, a uma imensa quantidade de experincias de trabalho e de vida, a vrios grupos
sociais. Assim:
o resultado do ofcio tambm dplice: de um lado, o trabalho dos
professores produz efeitos sobre seu objeto, a organizao do trabalho de
aprendizagem dos alunos. De outro, no deixa de ter efeitos sobre os
prprios professores, levando a novas experincias, a transformaes do
corpo dos saberes disponveis para serem, por sua vez, tecidos na obra da
vida (DANIELLOU, 1996, p.1)
Aps a explanao sobre o panorama das pesquisas que vem sendo realizadas nesses
ltimos anos, percebemos que so mltiplos os conceitos e as definies sobre o trabalho do
professor. Assim, concordamos com Machado (2007) que toma como base alguns conceitos
dos ergonomistas de que o trabalho do professor um enigma, dado que no temos
conceitos j prontos e definidos, mas sim, conceitualizaes provisrias que vo se
construindo e desconstruindo no confronto com os dados e com os resultados das pesquisas
(MACHADO, 2007, p. 91).
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Machado (2007) apresenta algumas caractersticas da atividade do trabalho do
professor:
a) uma atividade situada; pessoal e sempre nica, mas ao mesmo tempo impessoal,
no sentido de que no se desenvolve totalmente livre;
b) prefigurada pelo prprio trabalhador, na medida em que reelabora as prescries,
construindo prescries para si mesmo;
c) mediada por instrumentos materiais ou simblicos;
d) interacional, pois a interao da natureza multidimensional e de mo-dupla
d) interpessoal, pois envolve sempre uma interao com outrem (todos os outros
indivduos envolvidos direta ou indiretamente, presentes ou ausentes, todos os outros
interiorizados pelo sujeito);
e) conflituosa, pois o trabalhador deve permanentemente fazer escolhas para
(re)direcionar seu agir em diferentes situaes, diante de vozes contraditrias interiorizadas,
do agir dos outros envolvidos, do meio, dos artefatos, das prescries, etc. (MACHADO,
2007, p. 92) e pelo prprio fato de ser conflituosa, pode ser fonte para a aprendizagem de
novos conhecimentos e para o desenvolvimento de capacidades do trabalhador (ibidem, p.
91).
f) transpessoal, no sentido de que guiada por modelos do agir especficos de cada
mtier.
Com base nas caractersticas citadas, a autora apresenta os elementos bsicos do
trabalho do professor. Assim,
o trabalho docente, resumidamente, consiste em uma mobilizao,
pelo professor, de seu ser integral, em diferentes situaes - de
planejamento, de aula, de avaliao -, com o objetivo de criar um meio
que possibilite aos alunos a aprendizagem de um conjunto de
contedos de sua disciplina e o desenvolvimento de capacidades
especficas relacionadas a esses contedos, orientando-se por um
projeto de ensino que lhe prescrito por diferentes instncias
superiores e com a utilizao de instrumentos obtidos do meio social e
na interao com diferentes outros que, de forma direta ou indireta,
esto envolvidos na situao. (MACHADO, 2007, p. 93)
A autora considera que para que o professor realize de forma plena o trabalho para si
mesmo, precisa:
a) reelaborar constantemente as prescries;
b) escolher, manter ou reorientar o seu agir de acordo com as necessidades de cada
momento (IBID, p.93);
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c) apropriar-se de instrumentos, transformando-os em instrumentos por si e para si,
quando considerar teis e necessrios para seu agir;
d) selecionar instrumentos adequados a cada situao;
e) servir-se de modelos do agir scio historicamente construdos por seu coletivo;
f) encontrar solues para conflitos dos mais diversos. (MACHADO, 2007, p. 93).
Machado (2007), tomando por base as reflexes presentes no esquema de trabalho de
Clot (2010), procura chegar a uma representao do trabalho docente que permite ilustrar
qualquer atividade de trabalho, representada na figura abaixo:
Figura 1: Os elementos do trabalho - Fonte Machado (2009)
A relao entre os elementos do trabalho (sujeito, objeto e outros) no acontece de
forma pacfica, mas de forma conflituosa. Ao escolher a atividade dirigida como unidade
elementar de anlise na psicologia do trabalho, fazemos uma opo pelo conflito como ponto
de partida da pesquisa. [...] Essa atividade dirigida uma arena, ou melhor, um teatro de uma
luta (CLOT, 2010, p. 99).
Sendo assim, as contribuies de Clot (2010) so relevantes para os estudos do
trabalho docente, pois contribuem para pensar sobre os vrios aspectos que envolvem o
trabalho educacional. No entanto, mesmo considerando importante, Machado (2009) busca
reconfigurar o tringulo, levando em considerao que o trabalho docente constitui-se de uma
rede de relaes sociais.
Sujeito
Instrumento
Outro Objeto/meio
Artefatos
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A ilustrao que apresentaremos a seguir tem servido ao grupo ALTER (LAEL
Lingustica Aplicada e Estudos da Linguagem), como hiptese de trabal