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1 - INTRODUÇÃO:
A soma da linguagem verbal com a linguagem musical resulta em
uma nova linguagem: a linguagem da Canção.
Este trabalho é uma análise semiótica da canção “Último pau de
arara”, composta por “Venâncio e Corumbá”, gravada por “Raimundo
Fagner” no ano de 1.973, em seu primeiro LP intitulado: “Manera Fru Fru
Manera”.
A metodologia seguida é a da Teoria da Semiótica da Canção,
desenvolvida pelo lingüista, músico e professor de Semiótica Luis Tatit
(USP), que através da análise da letra (texto lingüístico), utilizando as
ferramentas teóricas do “Percurso Gerativo do Sentido”, e da melodia (texto
musical), busca evidenciar as relações de interação entre essas duas
formas de expressão, objetivando a construção do sentido pleno da canção
analisada.
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2 – ANÁLISE DA LETRA:
2.1 – Letra:
Último pau-de-arara
A vida aqui só é ruim / Quando não chove no chão
Mas se chover dá de tudo / Fartura tem de porção
Tomara que chova logo / Tomara, meu Deus, tomara
Só deixo o meu Cariri* / No último pau-de-arara**
Só deixo o meu Cariri* / No último pau-de-arara**
Enquanto a minha vaquinha / Tiver o couro e o osso
E puder com o chocalho / Pendurado no pescoço
Eu vou ficando por aqui / Que Deus do céu me ajude
Quem sai da terra natal / Em outros cantos não pára
Só deixo o meu Cariri* / No último pau-de-arara**
Só deixo o meu Cariri* / No último pau-de-arara**
Legenda: Fonte – Wikipedia (www.wikipedia.com.br).
* Cariri: A microrregião do Cariri é uma das microrregiões do estado brasileiro do Ceará
pertencente à mesorregião Sul Cearense.
** Pau-de-arara: Forma de transporte irregular, usado sobretudo na região Nordeste do
Brasil.
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2.2 – Análise da Letra – Nível Discursivo:
Analisando este texto em seu nível discursivo, o mais concreto e
superficial, é possível identificar o tema central, as personagens, e as
categorias de pessoa, tempo e espaço do enunciado.
Logo na primeira leitura desta letra, podemos perceber facilmente,
do primeiro ao último verso, expresso claramente pelo enunciador, sujeito
que assume os valores da narrativa, um desejo muito forte de permanecer
na terra onde nasceu e sua plena convicção de nela ficar até que sua
sobrevivência fique insustentável. A angústia e o sofrimento causado pela
seca ao sertanejo nordestino, é o ponto comum que atua como fio condutor
deste enredo. Também podemos identificar as personagens “eu”, “Deus”,
“Cariri”, “último pau de arara” e “vaquinha”.
Os versos “Tomara, meu Deus, tomara”, “Só deixo o meu Cariri”;
“Enquanto a minha vaquinha”, “Eu vou ficando por aqui / Que Deus do céu
me ajude”, e ainda mais especificamente as palavras grifadas “meu”,
“deixo”, “minha”, “eu vou” e “me”, apresentam o discurso na primeira
pessoa e ao não deixar claro se o enunciador é do sexo masculino ou
feminino, além de confundir-se com o narrador, criando um efeito de
aproximação com o leitor, torna marcante o caráter subjetivo do texto,
expressando e manifestando seus sentimentos, idéias e preferências
pessoais, apresentando-os de maneira universal, independente do gênero
a que pertence.
Explícitos no trecho “A vida aqui só é ruim / Quando não chove no
chão / Mas se chover dá de tudo, fartura tem de porção”, encontramos dois
aspectos diferentes do enunciado:
- O primeiro aspecto diz respeito à marcação de espaço, quando usa
a palavra grifada “aqui”, ligada diretamente ao “Cariri”, descrevendo um
ambiente puramente rural, ressaltando seus aspectos negativos e
positivos.
- O outro aspecto diz respeito à categoria de tempo, que apesar de
inicialmente não descrever uma marcação exata, pois estes versos
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carregam a idéia de que esta situação acontece sempre ou
periodicamente, quando complementados pelos versos “Tomara que chova
logo / Tomara, meu Deus, tomara”, assume o tempo presente, quando o
enunciador enfrenta dificuldades e espera por tempos melhores.
2.3 – Análise da Letra - Nível Narrativo:
Encontramos no Nível Narrativo, os elementos responsáveis pela
construção do esquema narrativo, através das ações realizadas por
sujeitos e das relações entre si.
Nos primeiros quatro versos da letra, “A vida aqui só é ruim /
Quando não chove no chão / Mas se chover dá de tudo / Fartura tem de
porção”, podemos perceber claramente que o sujeito “eu / narrador”,
expressa sua opinião pessoal sobre o lugar onde vive, conhece sua
dinâmica regida pelo frágil equilíbrio que a chuva ou a estiagem pode
causar na sua produtividade e é manipulado por forças da natureza que
fogem inteiramente ao seu controle. Apesar da chuva aparentemente ser o
sujeito que o manipula, o sujeito manipulador é algo maior que isso.
Nos versos, “Tomara que chova logo / Tomara, meu Deus, tomara”,
conseguimos identificar “Deus” como o sujeito manipulador da narrativa,
pois é para ele que o narrador, que não tem poderes para intervir na
natureza, dirige suas súplicas e pede ajuda para que forneça o único e
essencial recurso necessário representado aqui pela chuva, para que a
fartura se torne presente novamente em sua terra.
Nos versos “Só deixo o meu Cariri / No último pau-de-arara”, “Eu vou
ficando por aqui / Que Deus do céu me ajude” e “Quem sai da terra natal /
Em outros cantos não pára”, fica evidente que baseado no conhecimento
que possui sobre o Cariri, sua terra natal, e na fé que deposita em “Deus”,
o narrador julga que para ele, apesar das dificuldades que enfrenta no
momento atual, este ainda é o seu lugar ideal para viver. Também
expressa sua crença de que quem abandona sua terra natal não consegue
se fixar em qualquer outro local e só o abandonará no último momento
possível, quando sua sobrevivência se tornar impossível.
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Além de reafirmar essa idéia, os versos “Enquanto a minha vaquinha
/ Tiver o couro e o osso / E puder com o chocalho / Pendurado no
pescoço”, determinam um limite para o narrador, ligando-o diretamente à
sobrevivência de sua “vaquinha”, tratando-a como um símbolo referencial
de tempo.
Na narrativa desta letra, conseguimos perceber que a manipulação
periódica imposta pelo sujeito manipulador “Deus”, causa um grande
sentimento de angústia ao sujeito manipulado “eu / narrador”, que nada
pode fazer a não ser rezar, submetendo-se à vontade divina e contando
com a esperança de que suas preces sejam atendidas, para que seja
possível a concretização de seu maior desejo que é o de permanecer em
sua terra natal.
2.4 – Análise da Letra - Nível Fundamental:
Neste nível de análise, mais profundo e abstrato, encontramos os
valores que sustentam o texto, que são opostos entre si e indicam sua
positividade ou negatividade. Na letra analisada, podemos perceber que
fundamentalmente, os valores opostos que se apresentam são os de “Vida
VS Morte”, sendo que o valor “Vida” sustenta a positividade e o valor
“Morte” sustenta a negatividade. É importante ressaltar que a passagem
entre a vida e a morte, é um processo no texto que nunca ocorre
repentinamente e que sempre há uma narrativa sobre esse acontecimento.
Este processo, que na narrativa do texto analisado, descreve a
situação atual de nosso narrador que apresenta um sentimento de angústia
causada pela falta de fartura ou “não vida”, temendo pela sua
sobrevivência e caminhando contra a “Morte”, rezando a Deus lhe
proporcione chuva trazendo assim a fartura ou “Vida” de volta, pode ser
visualizado através do “Quadrado Semiótico” e de suas articulações:
+ -
Vida VS Morte
Não vida Não Morte
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3 – TRANSCRIÇÃO MELÓDICA:
Para tornar possível a visualização das interações que ocorrem entre letra
e melodia, será utilizado um diagrama que se apresenta da seguinte forma: O
número total de linhas da tabela corresponde à distância entre a nota mais grave
e a mais aguda encontrada nesta canção e cada linha da tabela corresponde à
distância de meio tom entre as notas musicais.
Parte A
Mi
Ré
Dó cho- Si qui ve no
Lá
Sol só não
Fá Mi vi é chão ruim do
Ré
Dó Si A da a- quan-
Mi
Ré
Dó tem Si ver de
Lá por- ção
Sol dá ra
Fá Mi se de tudo tu-
Ré
Dó Si mas cho- far-
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Mi
Ré que
Dó cho- meu Si ra va deus
Lá logo ra to- ma-
Sol mara ma-
Fá Mi To-
Ré to-
Dó Si
Parte B
Mi dei-
Ré
Dó úl- Si Só xô o meu ti-
Lá ri no mo cari-
Sol pau
Fá Mi rara de a-
Ré
Dó Si
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Parte C
Mi
Ré
Dó Si
Lá
Sol e o tiver o couro os-
Fá Mi Enquanto a minha vaqui- so nha
Ré
Dó Si
Mi
Ré
Dó Si do pes-
Lá cho- pendura- no co- ço
Sol E puder o ca- com lho
Fá Mi
Ré
Dó Si
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Mi
Ré cando
Dó por que deus do céu me ju Si fi- a- de
Lá qui vou
Sol a-
Fá Mi Eu
Ré
Dó Si
Mi
Ré ter-
Dó da ra Si Quem sai na- cantos não
Lá tal em outros pa-
Sol ra
Fá Mi
Ré
Dó Si
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Parte C’
Mi
Ré
Dó Si
Lá couro e o os-
Sol so nha tiver o
Fá Mi Enquanto a mi- vaqui- nha
Ré
Dó Si
Mi
Ré do pes-
Dó pendura- no co- Si E puder choca- ço
Lá lho
Sol com o
Fá Mi
Ré
Dó Si
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Mi
Ré cando céu me a-
Dó por que deus do ju Si fi- a- de
Lá qui vou
Sol
Fá Mi Eu
Ré
Dó Si
Mi
Ré ter-
Dó da ra can- Si Quem sai na- tros tos não
Lá tal em ou- pa-
Sol ra
Fá Mi
Ré
Dó Si
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4 – ANÁLISE DA CANÇÃO:
É impossível analisar uma canção sem tê-la ouvido ao menos uma vez. A
construção de seu sentido, as interações entre letra e melodia e as sensações
que despertam podem ser totalmente diferentes, dependendo do intérprete que a
executa. Logo na primeira audição desta canção, é possível sentir a tristeza, a
angústia e tensão crescente do narrador, que ganha vida graças à interpretação
extremamente passional de Raimundo Fagner, que em sua versão, consegue
despertar essas sensações através da intensidade e timbre de sua voz, do
andamento lento, do padrão e percurso melódico adotado.
A forma ou padrão melódico desta alterna as partes A, B, C e C’, da
seguinte maneira: ABB CBB C’BB (Finalizando com a repetição da parte B várias
vezes). Nesta configuração, a parte A, que é utilizada apenas uma vez na
canção, apresenta um panorama que justifica as idéias contidas nas partes C e C’
e também nos coloca pela primeira vez em contato com a idéia contida na parte
B, que é a mais forte desta canção, pois além de evidenciada ao se repetir várias
vezes ao longo da canção, também a finaliza. É interessante ressaltar que esta
finalização, que utiliza repetidas vezes a parte B que diz: “Só deixo o meu Cariri /
No último pau-de-arara”, é um ótimo exemplo de como age a interação entre o
texto musical e o texto lingüístico, já que a repetição do tema musical parece se
encaixar perfeitamente com a letra, servindo para reafirmar a convicção plena do
narrador de continuar resistindo até o fim, até a partida do último pau-de-arara.
A observação da transcrição melódica permite comparar as diferenças
estruturais entre as partes A, B, C e C’. Esta canção, de maneira geral, apresenta
um desenho melódico com ampla tessitura, com grande distância entre as notas
das frases musicais, mais evidentes nas partes A e B, mas também presente nas
partes C e C’. As partes C e C’, com pequenas variações entre si,
especificamente, apresentam um desenho melódico crescente, como degraus de
uma escada, com o início de cada frase em uma altura superior à da frase
anterior, que imprime na canção uma sensação de tensão que vai se tornando
cada vez maior e que encontra sua resolução na parte B.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Ao apresentar de maneira tocante, através de sua interpretação, as
dificuldades de sobrevivência causadas pela estiagem, que historicamente
afligem o povo sertanejo do Nordeste do Brasil, o intérprete consegue dar vida às
personagens e trazer à tona todos os sentimentos explícitos na letra. Esta versão
de Raimundo Fagner da canção “O último pau-de-arara”, é um dos melhores
exemplos de como um intérprete consegue tornar a interação de letra e melodia,
em sua maior ferramenta de expressão artística: um canal perfeito para despertar
emoções.
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO:
Sites:
http://www.raimundofagner.com.br, acesso em 24/05/2010, às 15:00 hs. http://pt.wikipedia.org/wiki/Microrregi%C3%A3o_do_Cariri, acesso em 24/05/2010, às 16:30 hs. http://pt.wikipedia.org/wiki/Pau_de_arara, acesso em 24/05/2010, às 16:37 hs.