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Ontologia NegativaOs obscurantistas do Iluminismo e a metafísica histórica da Modernidade

Robert Kurz

"Se o fosse de todo, a ontologia seria possível sob um ponto de vistairónico, como o supra-sumo da neatividade... Se quiséssemos esboçar

uma ontologia e, ao fazê-lo, ater-nos ao facto fundamental, cujarepetição faz dele uma invariante, o resultado seria o horror...; bom é

tão-só o que escapou à ontologia".

Theodor W. Adorno, Dialéctica Negativa

A libertação tem de ser repensada. Após o fim do marxismo e do socialismo do movimento operá -rio, não resta dúvida de que quanto a este postulado abstracto existe um consenso entre a maioriadas teóricas e dos teóricos de esquerda que ainda continuem a querer sê-lo. No entanto, mal se tratede definir o novo, que é o que se supõe estar em causa, este não se revela apenas regularmente comoo velho em traje novo, mas, antes de mais, como o mais vetusto de entre o velho; nomeadamente,como recaída para o que antecede o marxismo, para o seio da Filosofia iluminista burguesa, em vezde uma tentativa de ir para além do marxismo.

É certo que já o marxismo do movimento operário em todas as suas variantes, devido à sua forma dosujeito e do interesse, estritamente associada ao moderno sistema produtor de mercadorias, se man-teve apegado ao pensamento burguês do Iluminismo; no entanto, ao mesmo tempo, ele não deixoude o criticar como sendo burguês, mesmo que fosse apenas de um modo restrito ao prisma da socio-logia de classes, sem se aproximar de uma crítica categorial da Modernidade. Adorno, com a sua teo-ria transitória, até chegou, por momentos que fosse, a ir para além desta limitação abandonando oquadro de referência sociológico ("classista") e criticando o carácter do Iluminismo no que diz res-peito à sua lógica identitária e autodestrutividade sem, contudo, conseguir levar esta crítica até aofim. É precisamente o mesmo que tem de ser feito agora, mas é precisamente a esta tarefa que toda agente recusa sujeitar-se. Venham da estrebaria de esquerda que vierem, os que até à data foram osportadores da crítica de renome recuam perante este problema-obstáculo como cavalos que toma-ram os freios nos dentes.

E, no seu pânico cavalar, todos eles galopam de volta ao século XVIII, como se nem sequer tivesseexistido a redutora crítica marxista do pensamento iluminista. Numa azáfama febril debitam-se asfrases feitas mais decrépitas da constituição capitalista, como se fossem as mais recentes descobertasempolgantes da crítica radical do capitalismo. Há algo de lúgubre na forma como os resquícios dainteligentsia de esquerda competem com os arautos do capitalismo de linha dura, para saber quemconsegue apregoar mais alto os tópicos essenciais da ideologia do Iluminismo, que já há muito tem-

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po se tornaram insípidos e absurdos. Em que poderá ainda consistir o debate se dos dois lados se ou-vem as mesmas palavras de ordem? Pelos vistos já não se trata de nada de fundamental, mesmo quea crise mundial do sistema produtor de mercadorias se encontre, ao mesmo tempo, em plena efer-vescência e com tendência a alastrar.

Seja como for, não é assim que se repensa a libertação. Em primeiro lugar, um pensamento que quei-ra adequar-se a esta tarefa tem de libertar-se a si próprio do assim chamado Iluminismo. Tal não serápossível da noite para o dia, mas nesse caso simplesmente serão necessárias duas, três, muitas tenta-tivas. Em vez de continuar a papaguear irreflectidamente os conceitos do pensamento iluminista se-dimentados nos edifícios teóricos modernos, a crítica tem, antes de mais, de os virar de pernas parao ar, tem de sacudi-los e atirá-los para a lixeira da história intelectual.

O indivíduo abstracto no uniforme da chamada subjectividade

O pérfido carácter fanático da ideologia iluminista afirma-se precisamente no facto de ela enaltecerpermanentemente a "autonomia" e "liberdade" do "indivíduo" reclamando-as exclusivamente para si.Esta apoteose burguesa do individualismo, pela qual ainda se deixaram levar Adorno e os posterio-res adeptos de uma pretensa ortodoxia adorniana, pelo menos no que faz dele um "ideal" burguês,foi sempre legitimada de uma forma dupla: por um lado, contra a totalidade das sociedades agráriasde um contexto pré-moderno que eram sumariamente desqualificadas; por outro lado, contra o pró-prio absolutismo burguês dos primórdios da Modernidade, assim como contra os regimes totalitári-os de estado da história da imposição do capitalismo do século XX.

Ao mesmo tempo que as formas do fetiche pré-modernas são denunciadas, na ideologia iluministaideologicamente agudizada, a priori e sem qualquer investigação concreta, como o horror puro eduro de um "apego à natureza" supostamente total, elas evidenciam-se sob a forma da estrutura dasociedade similar à de uma torpe manada de gado que não teria admitido qualquer laivo de indivi-dualidade. Esta ideia caricata serve única e exclusivamente para desviar as atenções do facto de aprópria máquina produtora de mercadorias ainda ser uma sociedade fetichista e, mais concretamen-te, a primeira de cariz totalitário, cuja pretensão justamente imprime aos indivíduos, com uma vio-lência nunca antes vista, uma forma única: o "uniforme" do sujeito do trabalho, do dinheiro e daconcorrência.

A individualidade existiu em todas as sociedades históricas, uma vez que uma relação do ser huma-no particular para com uma forma social já se encontra estabelecida à partida com a segunda natu-reza e, daí, coincide com a humanização. Por isso, o ser humano particular também tinha de ser per-cepcionado enquanto tal, tendo os seus espaços de manobra, mesmo que essa individualidade se ex-primisse de formas diversas, consoante a mediação com relações de fetiche diversas da constituiçãosocial. A tensão entre o indivíduo e a sociedade pode, por isso, ser comprovada em qualquer partepela respectiva expressão cultural. Até a expressão "indivíduo" é, afinal, proveniente da Antiguidadeclássica (não constituindo, de modo algum, o protótipo do conceito moderno da individualidade);da mesma forma, o conceito do ser humano particular (individuitas) apresenta-se sob formas múlti-plas nas civilizações agrárias da assim chamada Idade Média. O mesmo também se aplica às socieda-

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des pré-modernas extra-europeias, mesmo que ali a individualidade se manifestasse sob formas ain-da outras que muitas vezes não eram visíveis ao olho ocidental, fixado na sua própria constituição.

O que a ideologia do Iluminismo faz passar pelo conceito único do indivíduo, reclamando-o para siou, então, para a Modernidade capitalista, é sem dúvida o "Eu" abstracto, ou seja, a forma especifica -mente moderna da individualidade abstracta. Neste sentido, "indivíduo" significa já a forma sob aqual os seres humanos particulares são pensados como sendo imediatamente idênticos com a rela-ção social compulsiva: nomeadamente, como seres socialmente separados, societariamente atomiza-dos que (em última análise, até à própria esfera da intimidade) já apenas são capazes de se mediaremmutuamente através da forma de relação coisificada e morta do dinheiro. Esta forma, porém, remetepara que tenha sido dada aos indivíduos reais, sensíveis, necessitados e sociais uma margem de ma-nobra maior face às sociedades pré-modernas, meramente sob a forma de uma amarração aindamais inexorável ao fetichismo moderno e coisificado. Os indivíduos apenas podem actuar de ummodo crescentemente independente da família, do clã, da condição social, da relação de fidelidadepessoal, porque na sua existência imediata se encontram condenados a serem o órgão executivo domovimento do fetiche geral: precisamente porque a máscara de carácter da forma social, relativa-mente solta no passado, se fundiu com a cara.

O aparente alargamento do espaço de manobra na Modernidade constitui, portanto, ao mesmo tem-po um extremo estreitamento. Este até foi originalmente sentido como tal, pelo que a sua imposição,desde a história europeia da constituição da Modernidade, nos séculos XV e XVI, até aos retardatári-os históricos que foram os regimes da "modernização a posteriori", em pleno século XX, apenas foipossível, contra resistências prolongadas e insurreições sangrentas das pessoas, com base em formasde violência estatal e burocrática. Assim sendo, as situações de coerção absolutistas e, mais tarde, to-talitárias de estado, não constituem, de forma alguma, o oposto exterior do indivíduo moderno "li-vre" e "autónomo" mas, longe disso, o seu próprio invólucro compulsivo. A autonomia e a liberdadereferem-se única e exclusivamente ao espaço interno da relação de valor e dissociação, em que o in-divíduo já se encontra abrangido pela forma do fetiche, não lhe sendo lícito qualquer desvio queseja. No molde da individualidade abstracta, o absolutismo social da forma e a existência real e sen-sível do indivíduo humano parecem coincidir de forma imediata.

Deste modo, os indivíduos modernos são destituídos de toda a sua originalidade: eles ameaçamtransformar-se em meros "exemplares" da forma do valor, em "seres humanos de confecção". Quantomais estridente se torna o discurso da maravilhosa "individualidade" moderna e ocidental, mais osseres humanos particulares tornados realmente abstractos se assemelham uns aos outros como umovo se assemelha a outro, até à postura exterior e mesmo até aos pensamentos e sentimentos, que sãocomandados mecanicamente pelas modas e pelos media, em conformidade com as conveniências dofetiche da valorização.

Sob este prisma é evidente que a individualidade moderna e abstracta não representa, de modo al-gum, uma fase de transição "necessária" e "progressiva" no processo da libertação da individualidadehumana de situações de um constrangimento social irracional. Antes pelo contrário, trata-se de queo carácter obrigatório da relação do fetiche chegou a colar-se à própria pele dos indivíduos. O espaçode actuação da "liberdade" burguesa deve-se essencialmente a uma ilusão óptica que deriva precisa-

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mente do facto de, contrariamente à situação pré moderna, o verdadeiro indivíduo e a sua forma so-cial serem definidos como quase idênticos. O que pode dizer-se em termos gerais sobre a Moderni-dade e a sua ideologia iluminista muito mais se aplica à individualidade abstracta moderna. Esta nãoconstitui um fundamento positivo alcançado de uma vez por todas e a partir do qual se pudesse con-tinuar a improvisar rumo à libertação (supostamente apenas "inacabada") do indivíduo mas, antespelo contrário, faz parte do monte de entulho do campo de ruínas global do capitalismo que tem deser desbastado e removido.

Neste sentido, no entanto, também tem de se redefinir a relação do indivíduo real, sensível e socialpara com a sua forma social negativa, relação esta que ficou obscurecida na constituição moderna daindividualidade abstracta. Desde o Iluminismo, as teorias modernas da sociedade definem os con-ceitos do indivíduo e do sujeito como sendo em grande medida sinónimos. Este modo de encarar ascoisas corresponde exactamente a essa ilusão óptica em que a forma do fetiche e a individualidadeparecem quase idênticas, de modo que a individualidade, de forma geral, apenas passe a ser conside-rada existente no âmbito da Modernidade produtora de mercadorias. Na realidade, o sujeito não éoutra coisa senão a forma que a relação de valor impõe aos indivíduos autênticos (reconhecendo estaforma do sujeito às mulheres, devido à relação de dissociação, apenas parcial e condicionadamente).O sujeito não é mais que o portador consciente (tanto individual como institucional) do movimentode valorização sem sujeito.

Mesmo assim, o indivíduo real, também na Modernidade, acaba por não se resumir por completo àsua forma social obrigatória de fetiche. Esta forma, porém, afinal é precisamente a forma do sujeito:Não o é, porventura, no sentido de se tratar de uma definição ontológica supra-histórica, correspon-dendo à forma moderna do sujeito outras formas do sujeito em sociedades anteriores; antes foi so-mente a moderna socialização do valor que produziu, de todo, a "forma sujeito"

É bem possível que nas antigas civilizações agrárias se detectem formas correspondentes de relaçõeshumanas face à natureza e à sociedade (o que teria de ser deixado a cargo de investigações mais de-talhadas), visto que sem dúvida qualquer sociedade humana, contrariamente aos agrupamentos cor-respondentes entre animais, produz uma relação de consciência activa para com os objectos que in-tegram o seu mundo. No entanto esta, tão-pouco como outras definições formais societárias, nãopode ser projectada retroactivamente a partir da realidade e do sistema conceptual correspondentedo moderno sistema produtor de mercadorias para a totalidade da História humana. Afinal é preci-samente nisso que consiste a ontologização por parte da teoria iluminista das definições fundamen-tais apenas produzidas pela moderna relação do valor e da dissociação. Antes do século XVI nãoexistia nem trabalho, nem economia, nem estado, nem política, e muito menos um sujeito (estrutu-ralmente "masculino"): estes termos foram em parte inventados de raiz e, em parte, totalmente revo-lucionados quanto ao seu significado; e talvez tal tenha sucedido da forma mais evidente com o con -ceito da subjectividade.

Encaradas assim as coisas, não é ao conceito de sujeito mas, antes de mais, ao de indivíduo que assis-te, de certo modo, um carácter supra-histórico. No entanto, tal não acontece, porventura, no sentidode um substrato imutável, de uma "essência" ontológica que se encontre oculta sob as sucessivas ca-madas históricas. A individualidade nunca existe por si só, mas sempre apenas com relação a uma

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forma social. É que só se pode ser individual enquanto ser social. Assim sendo, a individualidadenão significa outra coisa senão a tensão entre os seres humanos particulares reais e sensíveis e a for-ma social que se encontra plasmada a fogo no interior dos mesmos, a "brecha" vivida com sofrimen-to, a falta de encaixe das necessidades e sensações dentro dessa casca obrigatória. Através de múlti-plas formações volta sempre a transpirar o que esta contradição tem de tormentoso, de doloroso, deimpertinente, enquanto a sociedade for dominada por cegas formas de fetiche, em que os indivíduosnão se põem de acordo enquanto tais para formarem uma sociabilidade consciente de si própriamas, por assim dizer, como que numa espécie de transe da objectivação por eles próprios produzida,actuam de uma forma irracional e destrutiva no sentido das suas próprias necessidades e possibilida-des.

A possível "associação de seres humanos livres", assim designada por um Marx cheio de pressenti-mentos, seria, portanto, definida com mais precisão como uma "associação de indivíduos livres", istoé, uma sociedade de indivíduos que se medeiam conscientemente a si próprios na sua relação sociale natural e que se livraram da sua pele obrigatória da segunda natureza. No entanto, é precisamenteesta libertação que não pode, de modo algum, construir-se sobre a individualidade abstracta do Ho-mem produtor de mercadorias, que é justamente a escravizante forma do sujeito dos indivíduos mo-dernos, na qual eles se torturam tanto a si próprios como uns aos outros. O "Eu" abstracto da Moder-nidade constitui a forma da violência das condições do valor e da dissociação, extremas em termoshistóricos e totalitárias, em que o sofrimento e a insolência se agudizam até ao limiar do insuportá-vel.

Com isso, no entanto, apenas se torna nítida toda a crítica social elaborada até à data, que tencionavaalcançar a "libertação" logo através da "subjectividade", no que toca à dimensão mais profunda dasua estreita associação ao sistema da sociedade do valor e da dissociação. A subjectividade não é omodo da libertação mas, pelo contrário, a forma do agrilhoamento do indivíduo. Ao encararem-secomo sujeitos, os seres humanos já se encontram apanhados na dialéctica sujeito-objecto da consti-tuição moderna do fetiche.

Também aqui estamos novamente perante uma ilusão óptica: O sujeito apresenta-se como contráriodo objecto e, com isso, supostamente da objectivação pelos poderes anónimos da forma social, demodo que a subjectividade é invocada contra a coacção por eles exercida. Esta perspectiva superfici-al não se compenetra de que a relação de fetiche moderna pode mover-se unicamente em opostospolares que, ainda assim, designam uma identidade negativa. Assim sendo, o sujeito apenas entra emcontradição com a objectividade na medida em que aquele representa a voz activa própria desta,meia consciente e meia inconsciente, que é necessária justamente porque esta objectividade nem se-quer existe enquanto uma existência material "fora" da consciência dos indivíduos (pensamento e ac-ção estão coisificados, não sendo, no entanto, "coisas" independentes dos indivíduos). São-no, e aomesmo tempo não o são, na medida em que necessariamente não se resumem a isso. Só por isso éque a sua própria forma de percepção, conhecimento e actuação pode vir ao seu encontro nos seusresultados como um poder alheio, aparentemente exterior. Esta forma é precisamente a forma do su-jeito ( a "forma sujeito") em que elas executam a coacção da relação de fetiche. A dialéctica sujeito-objecto não é outra coisa senão o circuito da agregação em que os indivíduos se alienam de si pró-

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prios pela sua própria actuação, constituindo, em degraus cada vez mais altos da escada do desenvol-vimento, um resultado que os domina, acabando por aniquilá-los a eles próprios, sob a forma deuma objectividade aparentemente exterior.

Classes e lutas de classes como meras formas da subjectividade burguesa

Por ironia, foi precisamente o marxismo que, sem querer e, no fundo, de forma traiçoeira resumiuesta moderna dialéctica entre sujeito e objecto, e fê-lo de um modo positivo e afirmativo em vez decrítico. O proletariado, na versão marxista da ideologia iluminista, é a clássica coisa sujeito-objecto, aforma pura da consciência burguesa; e não o é tão-só na famosa formulação de Lukács que quiscompreender a "classe" como o "sujeito-objecto" da história. De facto, a forma da consciência, amar-rada à forma do valor, tal como ela se exprime nos interesses constituídos formas, é invariavelmenteas duas coisas ao mesmo tempo: objecto ou existência objectivada anterior a toda a reflexão própria;um ser que cegamente já dá consigo próprio numa determinada forma que não é reflectida enquantotal e que nem sequer é percepcionada como distinta – e, por outro lado, portador consciente de ac-ções inserido em precisamente essa forma.

É nesta medida que este ser social ou sujeito-objecto existe "em si", ou seja, de forma objectivada eindependente da sua própria consciência individual. Ao seguir os seus interesses constituídos forma,ou seja, ao percepcionar o mundo, ao pensar e actuar em consonância com a sua forma objectivada,torna-se "para si", ou seja, "consciente"; mas justamente apenas no sentido daquilo que já objectiva-mente é "em si". Trata-se precisamente da realização social e ideológica dessa reflexão hegeliana dasocialização do valor, em que esta descreve o movimento do espírito do mundo a vir "a si", ou seja,do valor que se valoriza a si próprio (que é a divindade secularizada e coisificada da Modernidade)como contexto sistémico processante. Marx não só andou a namoriscar o estilo hegeliano, o que elepróprio admitia, como, com a sua concepção de um desenvolvimento da consciência proletária deuma "classe em si" para uma "classe para si" desmistificou o aparente movimento espontâneo da for-ma do valor a um nível meramente "materialista" sem, no entanto, poder criticá-lo nesse ponto. Porisso, a teoria das classes faz parte, antes de muitos outros, dos componentes da reflexão marxista quese encontram estreitamente associados ao fetiche do valor e à correspondente teoria iluminista.

Daí também se torna compreensível que a deplorável "procura do sujeito" da esquerda radical após asegunda guerra mundial apenas possa ter acabado no ridículo, uma vez que ela não compreendeu onexo lógico da dialéctica do sujeito-objecto. Se o marxismo ocidental ainda queria invocar a "subjec-tividade proletária", a nova esquerda prosseguiu com uma série de sucedâneos para o sujeito-objectoem pleno desvanecimento (grupos marginais, mulheres, subsistência etc.) sem alguma vez conseguirsair do apego à forma da consciência constituída na relação de valor e dissociação: Sempre se andouà procura do sujeito precisamente por intermédio da questão da sua definição "objectiva", sem se re-parar que tal constituía um paradoxo, que desmentia a priori a própria pretensão de libertação; e quese tratava de uma definição que, embora fosse "certa", apenas o era enquanto descrição (tão incons-ciente quanto afirmativa) da relação de fetiche.

A procura do sujeito nem poderia ter sido outra coisa senão a procura desesperada do ponto, algures

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no infinito, onde se cruzam duas linhas paralelas: a procura de uma "objectividade" logicamente im-possível da libertação, ou seja, justamente de um sujeito-objecto suposto de conduzir para além daobjectivação negativa, embora ela própria não passe disso mesmo. Esta paradoxal "teoria da liberta-ção", que corresponde ao sujeito da dissociação masculino e dotado de uma lógica identitária, nãopodendo aspirar a ser mais que um reflexo da lógica do sistema, permanece até hoje fixada na mera-mente aparente oposição imanente entre o sujeito e o objecto, ou seja, na objectivação, ao passo quea única abordagem do problema capaz de rebentar o "espartilho de ferro" teria de partir de umameta-perspectiva, ou seja, assumir um ponto de vista exterior à problemática: então, a crítica radicalnão significaria porventura querer mobilizar o sujeito (ou um determinado sujeito-objecto predesti-nado) contra a escravizante objectivação mas, antes, mobilizar, através da "brecha" existente nos in-divíduos reais, a "individualidade organizada", que vai ganhando consciência do facto de não se en-caixar nas, nem se reduzir às, formas do fetiche, contra a compulsiva relação sujeito-objecto da cons-tituição moderna da forma.

O desmoronamento da subjectividade moderna em todas as suas variantes sociais, face ao peso es-magador da objectividade destruidora do mundo que ela própria produziu, mostra quão insustentá-vel se tornou a coisa chamada sujeito-objecto, que constitui a destrutiva forma de movimento domoderno sistema produtor de mercadorias. Mas é precisamente devido ao facto de a libertação domesmo não poder ser, por seu lado, de cariz "objectivo" que ela não pode tão-pouco ser levada acabo na forma do sujeito. Enquanto os indivíduos continuarem a deixar-se amarrar à forma do sujei-to, eles não poderão alcançar senão a própria perdição.

A igualdade para a morte: a universalidade negativa da forma jurídica como mecanismo de se-lecção

O mesmo que se aplica ao conceito da individualidade pode também constatar-se quanto ao concei-to da universalidade. Também a este respeito, a ideologia iluminista, juntamente com as suas objecti-vações, tem de ser destruída por, de forma fundamental, não corresponder à verdade nem compor-tar qualquer espécie de essência emancipatória. Tal como a individualidade moderna é associada,desde as palavras de ordem da Revolução francesa, à "liberdade" (autonomia), o moderno universa-lismo ocidental é associado à "igualdade". A ideologia da igualdade sugere o igual reconhecimentosem restrições de todos os indivíduos como "seres humanos enquanto tais", portadores de direitosinalienáveis (originalmente resumidos pelo termo "direito natural") que devem reflectir-se tanto nos"direitos humanos" universais como na forma dos sistemas jurídicos nacionais. Como é sabido, éprecisamente disto que se reclama o presente imperialismo ocidental dos direitos humanos, e maisdo que nunca, para justificar as suas atrocidades globais.

Mas, tal como a tanto invocada individualidade não é outra coisa senão o "Eu" abstracto, o indivíduomeramente abstracto e encerrado na moderna forma do sujeito que é a do valor, o universalismoocidental moderno não passa de um conceito abstracto e, assim sendo, negativo. Tal como os indiví-duos apenas são "livres" e "autónomos" na medida em que tomam as suas decisões no âmbito da for-ma capitalista, mantendo-se compatíveis com a "necessidade" da cega valorização do valor e as res-

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pectivas leis pseudo-naturais, eles apenas são "iguais" na medida em que se encontrem igualmentesubmetidos à forma do valor, sendo sujeitos da sua realização. O "ser humano enquanto tal" é o Ho-mem meramente abstracto; o Homem, na medida em que pode ser sujeito do valor. É apenas a issoque se reporta o seu "reconhecimento" enquanto Homem, e é apenas neste sentido que ele pode pos-suir "direitos do Homem" universais e ser um sujeito jurídico no âmbito de estruturas estatais. Daídecorre que no exterior disso, ou seja, fora do implacavelmente limitativo universo da forma do va-lor, ele deixa de ter qualquer semelhança com um ser humano, vendo-se reduzido ao patamar dosanimais ou da vil matéria. A capacidade legal geral e, por extensão, também a referente aos direitoshumanos, encontra-se assim vinculada à capacidade de valorização, de trabalho, de venda, de finan-ciamento ou, por uma palavra: à "rentabilidade" da existência que, para qualquer outro efeito, é de-clarada "objectivamente" nula.

Como a socialização do valor por si só, com a sua negatividade e com a concorrência universal queinstitui, não se conseguiria reproduzir nem por um dia, ela teve de desmentir a sua própria universa-lidade já pela relação de dissociação de contornos sexistas que lhe é própria. É por isso que o sujeitolegal, mesmo o dos direitos humanos, é à partida exclusivamente masculino. Embora, na maior partedos estados, se tenha imposto a equiparação jurídica e em termos de cidadania das mulheres em re-lação aos homens, esta apenas tem um sentido real na medida em que elas constituem sujeitos do va-lor, ao passo que os momentos dissociados exteriores à universalidade, que continuam a ser defini-dos como "femininos", permanecem em grande medida exteriores a qualquer ordem jurídica ou sesubtraem à forma do direito do universalismo abstracto e a reduzem ao absurdo. Em numerosos ca-sos particulares, regulamentos de pormenor, detalhes, assim como no que "não está escrito" nas en-trelinhas (ou seja, no âmbito da capacidade de interpretação) volta sempre a emergir a capacidadelegal diminuída das mulheres, onde o universo abstracto do valor esbarra com os truculentos mo-mentos da realidade sensível que não lhe possam ser adequados por completo.

A socialização do valor necessita dos momentos dissociados para de todo poder existir no mundosensível e social em geral, mas o seu abstracto universalismo da igualdade não quer admitir este fac-to. A promessa do universalismo jurídico ocidental dificilmente poderia ser mais sinistra: Trata-seda promessa de tornar todos os seres humanos "iguais" e de os "reconhecer" como assimilados à for-ma do valor, assim como de, à maneira de Procrustes, decepar-lhes tudo o que não couber dentrodessa forma. Mas como o mundo sensível, ao fim e ao cabo, nunca se deixa "igualizar" por completonesta forma de universalidade negativa, a pulsão de morte e destruição do sujeito dessensibilizadonão só conduz à destruição dos momentos dissociados necessários à sua própria reprodução como àdestruição do mundo em geral. Só então, o mundo, homogeneamente destruído, se torna inteira-mente livre e igual e universal.

O reconhecimento do Homem reduzido ao estado da subjectividade do valor é, por isso, idêntico aoseu fundamental não reconhecimento enquanto um ser que não se resume a esta última e que, aindapor cima, patenteia necessidades sensuais e sociais. A inclusão universal corresponde, ao mesmotempo, a uma exclusão universal. Na medida em que os momentos, as coisas e os seres excluídos nãodeixam de ser necessários à vitalidade social, e a pulsão de morte do sujeito do valor ainda não se te-nha desenvolvido plenamente, eles são dissociados, ou então são simplesmente ignorados ou mesmo

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aniquilados. O processo de reconhecimento do universalismo abstracto ocidental corresponde, as-sim, necessariamente a um processo de selecção e eliminação, e não é por acaso que este recorda o tãoburocrático quanto bárbaro "processo de reconhecimento" dos requerentes de asilo que, como toda agente sabe, na sua maioria são recusados. Também a associação com a rampa de selecção de Aus-chwitz de maldosa nada tem, cingindo-se a corresponder à essência da questão. Auschwitz foi ape-nas a variante mais extrema e brutal do "processo de reconhecimento" dos direitos humanos ociden-tais.

Qualquer um tem o direito de ser um sujeito do valor, de vender-se a si próprio ou uma coisa qual-quer etc. – mas apenas na medida em que for "apto" a tanto ou o for declarado; de outro modo, é me-nos que nada. Vamos reconhecer-te de tal maneira que te vai cortar a saliva e a respiração. Como umser sensível e social precedente à forma do valor e do dinheiro, o Homem ainda não é de modo al-gum reconhecido per se por parte do universalismo do valor e do direito, não passando para já deum pedaço de natureza, um naco de carne. Os ideólogos iluministas ocidentais desde sempre fize-ram de conta que os indivíduos saíam directamente do corpo da mãe sob a forma "natural" do sujei-to jurídico. Esta forma tanto tem de natural como um contrato de aluguer ou a cópia do projecto deum míssil intercontinental. Ela nem é natural, nem socialmente primária, constituindo antes umaforma secundária, derivada, da relação de valor enquanto relação de produção e de circulação.

Os ideólogos iluministas viraram a relação entre o sujeito do valor (no sentido restrito da relação deprodução) e o sujeito jurídico do avesso. Na realidade, a capacidade de valorização passa a integrar apromessa "jurídica" de reconhecimento como condição tácita. É precisamente por isso que os indiví-duos só se podem transformar em seres humanos e em sujeitos jurídicos após terem passado pelocrivo selectivo de um processo de reconhecimento, porque ainda não o são "em si", devido à suaexistência física. O processo de selecção pode ser "objectivo" (funcionando em função das leis da va-lorização e da situação no mercado) e pode, ainda, ser praticado de forma "subjectiva" (ideológica,baseada em critérios de estado). As gritantes contradições da socialização do valor, com toda a suairracionalidade e assimilação por uma ideologia assassina, concorrem tanto para este processo de se-lecção como a racionalidade intrínseca à economia industrial.

Por isso, o universalismo jurídico ocidental abstracto é, em princípio, tão compatível com a escrava-tura como com a marginalização ou o extermínio racista, antisemita ou nacionalista. Uma vez queentre a existência física e a capacidade jurídica enquanto sujeito do valor reconhecido se abre umabrecha sistemática, onde actua o processo de reconhecimento enquanto processo de selecção, estaexistência física pode ser recusada ou adstrita a uma utilização diferente, tal como uma mercadorianão "reconhecida" pelo mercado e que se prova ser "supérflua" para o capitalismo.

Se os fundadores dos EUA consideraram a escravatura dos negros certa ou até conforme às leis natu-rais, e se o bastião da "freedom and democracy" deveu o seu arranque económico ao trabalho escra-vo, tal não constituiu uma maior infracção contra o universalismo ocidental abstracto do que o factode os representantes da revolução francesa terem mandado esmagar a insurreição dos negros doHaiti com fogo de metralha, embora estes invocassem os princípios de igualdade da própria Revolu-ção francesa. Os ideólogos, ou ingénuos, ou pérfidos, do universalismo ocidental, até aos Habermase Companhia, interpretam estes factos regularmente como mera inconsequência ("fruto da época") e

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como mero sinal de imperfeição do projecto universalista, visto ignorarem sistematicamente o ca-rácter de selecção prévia objectivo-subjectiva do "reconhecimento".

Enquanto os negros apenas podiam encontrar um aproveitamento rentável enquanto objectos da va-lorização sob a forma da escravatura, para os negros dos EUA o processo de reconhecimento sim-plesmente acabava com um parecer negativo. A "libertação dos escravos", por outro lado, não sobre-veio como consequência final de um princípio universalista que já reconhecesse em si a existência fí-sica, mas porque a escravatura se tinha tornado disfuncional para o processo de valorização nosEUA. Isto, no entanto, não é uma mera história evolutiva que para todo o sempre tivesse acabadocom o estatuto do escravo. Nos dias de hoje, o processo global de valorização vai cuspindo cada vezmais "supérfluos" que, por isso, vão sendo continuamente seleccionados e dizimados no posteriorprocesso (permanente) de reconhecimento do universalismo abstracto. Da massa destes seres huma-nos objectivados como não-sujeitos, apenas físicos e já não "reconhecíveis", nascem novas situaçõesde escravatura ou semelhantes à escravatura, se é que não são abandonados à miséria pura e simplese à morte por inanição.

Se lermos as cláusulas escritas em letra miúda, a suja simpatia dos lutadores ocidentais pela liberda-de da actualidade não oferece aos marginalizados deste mundo quaisquer garantias de virem a serreconhecidos per se na sua existência física. Antes, a promessa, em toda a sua profunda perfídia, li-mita-se a dizer: Estamos cheios de pena que vocês (possivelmente por culpa própria, ou porque nãose esforçaram o suficiente e não adoptaram suficientemente os valores ocidentais etc.) tenham ficadoexcluídos da capacidade de valorização e, com ela, do universalismo do valor; e queremos fazer tudoo que esteja ao nosso alcance para que voltem a entrar, ou entrem pela primeira vez (se de futuro vosdominardes muito bem e agradecerdes todas as imposições como se de presentes se tratasse). Poisseria o máximo se todos os seres humanos no estado da maravilhosa subjectividade do valor (capa-cidade de trabalho e de se apresentar no mercado) pudessem ser reconhecidos como portadores dedireitos humanos inalienáveis.

No entanto isto, trocado por miúdos, também quer dizer: Se a reconstituição do vosso estatuto de re-conhecidos será bem sucedida, é uma questão em aberto (talvez porque ainda não vos esforçais o su-ficiente para terdes parte dessa honra). As condições são para se cumprir. A promessa, por isso, sem-pre já constitui uma ameaça: Se a condição não puder ser satisfeita (e, para a maioria das pessoas, elahoje já é "objectivamente" impossível de cumprir, mesmo que se esforcem até ao limiar do suplício),infelizmente, e creiam-nos que lamentamos imenso, também não pode haver lugar ao reconheci-mento. O fim da existência já apenas física dos "supérfluos" como dano colateral do mercado mundi-al está à vista.

De resto, isto não se aplica apenas às "supérfluas" massas do terceiro mundo. Um périplo pelas insta-lações da segurança social alemã ou pelas autoridades de assistência social dos EUA é o suficientepara descortinarmos por onde passam os limites da capacidade ocidental e universalista de ser reco-nhecido como ser humano. A capacidade de ser um sujeito jurídico, aqui, ainda não se encontra eli-minada por completo, porque estas pessoas ainda são referenciadas como "cidadãos", "eleitores" etc.,continuando assim a constituir uma micro-partícula do "soberano", do sujeito-objecto total ideal;mas esta capacidade legal mesmo assim já se encontra reduzida, como facilmente podemos depreen-

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der ao lidarmos com estes sujeitos menores do valor: estes vêem-se cada vez mais reduzidos a um es-tatuto de menoridade, de já não plenamente imputáveis, de uma espécie de animais falantes ou ferra-mentas tornadas inúteis, de "selvagens" ou de crianças que são tratados por "tu".

Precisamente os EUA, enquanto única superpotência global rendida à "liberdade e igualdade" volta-ram a criar, nos finais do século XX, sob as capas dos "jobs" (actividades miseráveis e relações de ser -vidão pessoal) e da "execução penal", situações próximas da escravatura em milhões de casos, emque o direito abstracto se converte bruscamente numa arbitrariedade terrorista. Os refugiados ou re-querentes do estatuto de asilo, que frequentemente nem sequer são cidadãos de estado algum, mas"expatriados" sem passaporte, perdem por completo o estatuto de seres humanos por via da respecti-va capacidade legal (para o que, de resto, já Hannah Arendt tinha chamado a atenção) e são tratadosliteralmente como animais, seja em relações de trabalho "ilegais", ou seja, despojadas de qualquer ga-rantia jurídica, ou em campos de internamento similares a campos de concentração.

Como no terreno da socialização do valor não há meio de escapar a esta lógica, o processo de reco-nhecimento e, com isso, de selecção sempre já se encontra também sujeito a uma concorrência "sub-jectiva". A concorrência universal como componente indissociável do universalismo jurídico é porisso, enquanto combate pela capacidade de sobreviver no mercado, necessariamente também umaluta pela capacidade de se fazer reconhecer, uma vez que todos sabem que nunca chega para todos.Isto nada tem a ver com a capacidade dos recursos sensíveis e materiais, e tudo com a falta de capa-cidade de absorção da forma de reprodução social que, afinal, não é menos que a base e o pressupos-to do universalismo jurídico abstracto e, com isso, a condição prévia de toda a sua lógica.

Sob essa condição tem de se formar uma tendência imanente de não deixar a universalidade jurídicana sua função de mecanismo de selecção meramente a cargo das vicissitudes das pré-existentes e ce-gas leis da valorização, mas de adicionar ao mui doloroso processo de reconhecimento, por assim di-zer a título de dispositivo de segurança, critérios nacionais, racistas etc. Nesta medida, a existênciada (velha e nova) escravatura nos EUA não constitui uma maior inconsequência do pensamento doque o facto de se encontrarem, nos enunciados de quase todos os heróis intelectuais da ideologia ilu-minista, invectivas racistas e antisemitas em barda. Também isso não constitui uma infracção contrao princípio moderno da universalidade mas, antes de mais, a sua própria consequência intrínsecaenquanto mecanismo de selecção.

O universalismo abstracto da socialização do valor e do respectivo pensamento iluminista, enquanto"igualdade" negativa e assassina, não constitui de forma alguma uma base em que pudesse assentar aconstrução de um projecto emancipatório. Também a este respeito não há nada que se pudesse"completar" ou desenvolver, restando unicamente a opção pelo derrube de toda esta relação. A capa-cidade de existência dos indivíduos reais, sensíveis e sociais, precisamente em toda a sua diferençaqualitativa enquanto evidência social que, por isso, não precisa sequer de qualquer estatuto jurídicode "reconhecimento", apenas pode ser alcançada a partir de uma oposição fundamental ao ocidentaluniversalismo de exclusão. Já a forma jurídica em si e enquanto tal, já a mera "necessidade" de umestatuto específico de reconhecimento, diz-nos que não se trata de um pressuposto nem de uma evi-dência mas, sim, de um resultado que sempre está sujeito a uma decisão prévia.

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O avesso do reconhecimento é, à partida, a exclusão. O pensamento inconsequente da emancipaçãono espartilho da forma jurídica burguesa, assim como o princípio desta da universalidade abstracta,assemelha-se, por isso, tal como acontece com relação à individualidade apenas abstracta e irreal, amais uma tentativa de chegar por meios empíricos ao ponto onde, no infinito, as linhas paralelasacabam por cruzar-se. De tudo isto resulta que nada, mas nada mesmo, do Iluminismo tem salvaçãopossível. A ideologia iluminista, juntamente com a constituição social subjacente, já apenas pode serliminarmente rejeitada.

Iluminismo e Contra-Iluminismo: a polaridade do desenvolvimento capitalista e a identidadedos contrários

Embora diversos aspectos de uma crítica radical emancipatória do Iluminismo tivessem teimado emfazer-se notar ao longo dos tempos, estes nunca foram pensados até ao fim de uma forma conse-quente, sendo abordados, na maior parte dos casos, apenas sob uma perspectiva parcelar ou (comofoi o caso de Adorno) de tal modo que, no momento decisivo, se opera uma inflexão em direcção àforma do sujeito definida pelo valor, se reclama face à realidade o ideal incompreendido, etc. A razãodisso é fácil de explicar: Ela consiste no facto de que contra o Iluminismo e a Modernidade sempreforam reclamados um "Anti-Iluminismo" e uma "Anti-Modernidade", do ponto de vista de um puta-tivo homem superior de direita, reaccionário, defensor de uma ideologia elitista, irracional, racista eantisemita etc. O facto de o pensamento emancipatório sempre voltar a deixar-se levar pelo Ilumi-nismo e cair na repetição dos respectivos tópicos centrais deve-se, por isso, ao medo de ir parar ao"lado errado" ou de ser interpretado dessa forma. Quem é que quer voltar, em nome da emancipa-ção, "às trevas da Idade Média" (ou mesmo à Idade da Pedra), quem quer ser insultado de reaccioná-rio ou expor-se à suspeição de querer responder ao universalismo ocidental com "diferenças" étnicasou raciais e à individualidade abstracta com a torpe comunidade de uma horda indistinta?

É precisamente este temor, que a qualquer altura pode ser provido de uma carga denunciatória porparte de políticos identitários de esquerda menos inovadores a nível teórico do que esforçados pordefenderem o seu estatuto (pelo que faz parte dos pratos fortes de todas as escaramuças no seio daesquerda designarem-se mutuamente como reaccionários), que impede invariavelmente o avançodecisivo contra a ideologia iluminista, paralisando o pensamento crítico mal este ameace franquear alinha de demarcação da ontologia burguesa.

No entanto, isto obscurece precisamente a relação intrínseca entre o Iluminismo e o Contra-Ilumi-nismo, a Modernidade e a Anti-Modernidade. Em vez de desenvolver uma meta-crítica desta relaçãointrínseca, desta identidade negativa de ambas as faces da história moderna e da socialização do va-lor, o pensamento refugia-se num lado pretensamente melhor, mais luminoso, a fim de não ficar dolado dos "maus". Para que este reflexo afirmativo possa finalmente ser superado, é necessário adop-tar-se uma abordagem inteiramente diferente que dirija o olhar para o todo da socialização do valor,para o sistema de referência comum das contradições existentes no seio desta forma, em vez de sedeixar condenar a uma tomada de partido a favor de um dos dois lados. Tem de ser rejeitado o todosocial, a comum forma do valor e da dissociação, que foi o que produziu estas oposições e em pri -

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meiro lugar estes partidos imanentemente antagónicos (através da consciência e dos actos dos indi-víduos).

A crítica do valor implica, já pelo próprio conceito, não mais se deixar envolver na disputa imanenteem torno de uma história ulterior da imposição do valor (já nem possível em termos reais), mas situ-ar a crítica radical a um nível "meta". Para tal, o conceito da crítica do valor e da dissociação tem, noentanto, ainda de ser desenvolvido. De uma forma incipiente, tal aconteceu até à data sobretudo noque diz respeito à assim chamada luta de classes entre "o capital" e "o trabalho". O marxismo do mo-vimento operário definiu esta oposição como absoluta, ontologizou o trabalho e, assim, se mantevecircunscrito à forma de movimento de um par de contrários no seio das categorias capitalistas. Doponto de vista da crítica do valor, esta oposição social converte-se numa oposição apenas relativa eimanente, num caso específico no seio da concorrência burguesa universal; o trabalho não é outracoisa senão a forma activa ou o estado "vivo" do próprio capital; "o capital" e "o trabalho" constituemem conjunto uma identidade negativa de ordem superior; o conceito do trabalho constitui apenasum aspecto inerente ao conceito do capital que se apresenta como sistema de referência de todas ascategorias sociais por ele constituídas. O capital tem de ser criticado e superado, não enquanto cate-goria social isolada, mas enquanto a forma sistémica do valor e da dissociação que, em vez disso, foientendida pelo movimento operário de um modo positivo e ontológico.

O desenvolvimento conceptual do nível "meta", no entanto, não pode ficar-se por esta crítica históri-ca da luta de classes enquanto mera forma de movimento e desenvolvimento do próprio capital. Éque a oposição entre "o capital" e "o trabalho" constitui apenas um dos aspectos de todo um sistemade polaridades, em que a socialização do valor tem de se representar e mover. É necessário traduzir -mos esta polaridade enquanto tal em conceitos, em vez de nos limitarmos a analisarmos uma a umaas suas manifestações.

A relação do valor é, em si, uma identidade negativa que, enquanto tal, não pode manter-se unida.Por isso, tem de se desdobrar permanentemente em oposições polares, tal como já no seu própriopressuposto se baseia numa cisão, configurada precisamente pela dissociação sexualmente determi-nada de todos os objectos, áreas da vida, etc. que não se enquadram na forma do valor. A relação dovalor enquanto relação de dissociação é, já em si, uma identidade dividida em si, definida pela pola-ridade. Esta identidade negativa constitui a raiz de onde não param de nascer cisões e, com elas, po-laridades sempre novas.

E não se trata de dualismos equilibrados e complementares, como por exemplo foi o caso das formasretratadas nos mitos das culturas pré-modernas, mas de polaridades renhidamente hostis que se en-contram numa permanente luta de extermínio embora não constituam mais que os dois lados damesma identidade. Estas polaridades são, nessa medida, o modo como se manifesta a pulsão demorte da subjectividade do valor: A luta até à exaustão e à destruição final entre contrários inimigosé a única forma de existência e forma imanente de movimento possível da relação de valor e dissoci-ação. No seu âmbito, os contrários polares vão-se sucessivamente convertendo nos respectivos con-trários e demonstram a sua identidade negativa até, no ponto final da história da modernização,coincidirem de forma imediata nesta identidade destrutiva. Isto aplica-se tanto à estrutura comoigualmente à dinâmica histórica da em si interrompida relação total. Já ao nível da relação de disso-

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ciação geral e sexualmente determinada podemos identificar uma série de semelhantes polaridades:

Sujeito – Objecto

Masculinidade – Feminilidade

Publicidade – Privacidade

Este sistema de polaridades hostis prossegue no âmbito da relação do valor de definição masculina:

Política - Economia

Estado – Mercado

Poder – Dinheiro

Planeamento – Concorrência

Trabalho – Capital

Teoria – Prática

Como é sabido, toda a história da modernização do valor no sentido mais restrito (politico-econó-mico) tem-se desenrolado como uma luta permanente entre estas polaridades; "mercado ouestado?", esse clássico de entre as pseudo-alternativas burguesas no espartilho da forma do valor, quecontudo sempre se limitam a representar a irremediável estrutura esquizóide desta sociedade in-consciente de si própria, ainda hoje é incansavelmente trauteado. Da mesma forma que a crítica dovalor actua para além da luta de classes meramente imanente entre o trabalho assalariado e o capital,ela também se desenvolve para lá da eterna disputa entre o mercado e o estado. O objecto da críticaapenas pode ser o comum sistema de referência do valor, ou seja, precisamente essa relação superiordo valor e da dissociação que foi o que, à partida, estabeleceu à sua imagem os contrastes entre tra -balho e capital, mercado e estado etc., constituindo a sua identidade negativa.

O contraste entre Iluminismo e Contra-Iluminismo, Modernidade e Contra-Modernidade enqua-dra-se na mesma classificação de polaridades imanentes da relação de valor e dissociação. Se não ob-servarmos apenas a basal relação de dissociação por um lado, e a relação do valor, por outro, cadauma por si, centrando-nos antes na relação total mais abrangente e intrinsecamente quebrada daidentidade negativa, podemos reconhecer uma série de outras polaridades que remetem precisamen-te para a estrutura esquizóide do Iluminismo enquanto forma de reflexão do valor:

Progresso – Reacção

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Racionalidade – Irracionalismo

Civilização – Barbárie

Cultura – Natureza

Liberdade – Servidão

Democracia – Ditadura

Indivíduo – Sociedade

Igualdade – Diferença

Sociedade – Comunidade

Existe uma quantidade de relações em que as polaridades hostis se movem por níveis diferentes, sal-tam de um nível para outro, se interpenetram, configurando apenas neste jogo dinamizado de con-trastes a totalidade negativa. Assim sendo, não é apenas a oposição entre sujeito e objecto, entre amasculinidade (adepta da lógica identitária) e a feminilidade (dissociada), ou entre o mercado e oestado que constitui a forma de movimento e existência da relação de valor e dissociação, mas igual-mente o contraste entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo, entre a Modernidade e a Contra-Modernidade. Esta oposição é a Modernidade da socialização do valor que, sendo desde sempre di-vidida e negativa, nem tem como alcançar uma identidade positiva e consolidada. Longe de repre-sentarem uma consciência pré- ou extra-iluminista, o Contra-Iluminismo e a Contra-Modernidadeconstituem partes integrantes do próprio Iluminismo e da Modernidade, que apenas pode existir napolaridade com a sua própria negação imanente.

O que acabamos de dizer também pode ser demonstrado de um modo historico-empírico. O Con-tra-Iluminismo nasceu do seio do próprio Iluminismo, não como uma reacção contrária vinda doexterior mas, de certo modo, como Atena da cabeça de Zeus: As ideias contra-iluministas e "antimo-dernas", tal como deixaram as suas marcas na história intelectual romântica e existencialista e ganha-ram influência prática em formas de expressão políticas, são, na sua origem, pensamentos do próprioIluminismo dotados da sua estrutura aporética originária. Isto não se aplica apenas ao racismo e aoantisemitismo, mas igualmente ao nacionalismo, biologismo, autoritarismo, irracionalismo, enquan-to o avesso da racionalidade constituída na forma do valor etc. Estes momentos imanentes do Ilumi-nismo foram isolados e aparentemente ganharam uma vida própria, mas sem alguma vez alcança-rem uma forma de consciência independente; antes, eles constituem o pólo oposto imanente da for-ma da consciência "esclarecida" do próprio sujeito-objecto.

Tal como o filão romântico e existencialista tentou repetidamente, sob formas e denominações diver-sas, desligar o sujeito da sua própria figura enquanto objecto recorrendo à heroicização e à estetiza-ção (não em último lugar no caso da política) a fim de supostamente escapar à aporia, o Contra-Ilu-minismo e a Contra-Modernidade tentaram, de um modo geral, isolar o lado "escuro" do pensamen-to iluminista nas suas diversas definições a fim de chegarem a uma identidade positiva supostamente

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livre de contradições no invólucro formal negativo. O resultado sempre apenas pôde consistir naagudização dessa mesma negatividade até ao extermínio; a campanha de extermínio é justamente aforma de movimento da aporia social.

Perante o pano de fundo desta origem também se torna evidente que, e por que razão, o Iluminismoburguês e o Contra-Iluminismo burguês operam, em parte, segundo padrões idênticos que se limi-tam a diferir um pouco mais ou menos quanto aos seus conteúdos; mas que, em parte, também seconvertem directamente uns nos outros, podendo respectivamente transformar-se na manifestaçãodo seu oposto imanente. Assim, tanto os representantes do Iluminismo como os do Contra-Ilumi-nismo idealizaram, para a sua própria legitimação, situações sociais pré-modernas: uns, as repúblicasda Antiguidade, os outros, a assim chamada Idade Média. E a mudança brusca do progresso para areacção, da racionalidade para a irracionalidade, da democracia para a ditadura etc. acompanhoutoda a história da modernização; e não o fez, porventura, sob a forma de "peripécias" na luta pelopoder de forças que fossem exteriores umas às outras, mas como manifestação da identidade negati-va, isto é, como manifestação do reaccionário no seio do próprio progresso (por exemplo, no que dizrespeito ao desenvolvimento do aparelho burocrático herdado do absolutismo por parte da revolu-ção francesa, para que já Tocqueville chamou a atenção), do irracional no seio da própria racionali -dade (por exemplo na lógica de externalização na economia industrial, na passagem inadvertida daconcorrência económica para a guerra etc.), de elementos ditatoriais na própria democracia (por ex-emplo na implementação de "leis de emergência", no tratamento de refugiados e de pessoas que vi-vem a cargo da segurança social e, de um modo geral, na administração burocrática de seres huma-nos). Em termos puramente fenomenológicos, este fenómeno da transição brusca de uma coisa paraoutra de sinal contrário foi repetidamente notado e recebido com o devido escândalo, mas pura esimplesmente nunca foram daí retiradas todas as ilações, porque de outro modo o embuste da oposi-ção imanente não poderia ter funcionado como justificação paradoxal do Iluminismo.

Tal como o progresso da socialização do valor e do Iluminismo sempre apresentou elementos reacci-onários, assim, de modo inverso, também a reacção e o Contra-Iluminismo, em forte contraste coma sua idealização ideológica de situações pré-modernas, campesinas etc., sempre também constituí-ram outro motor do progresso em direcção à e no seio da relação de valor e dissociação (assumindo-se, durante certos períodos, como concorrência ao movimento operário, mas precisamente apenascomo concorrência, o quer dizer que actua no interior da mesma forma comum). O romantismo,por exemplo, não se limitou a glorificar a chamada Idade Média, mas também fez progredir em mui-tos aspectos a ideologização positiva da moderna individualidade abstracta.

Também o nacional-socialismo, enquanto suposta incarnação de todo o pensamento reaccionário econtrário ao Iluminismo, foi, na realidade, a versão alemã do ímpeto fordista no seio da socializaçãoglobal do valor. Os nazis modernizaram, neste sentido, a indústria, a guerra, a relação entre os sexos,o consumo e o sujeito. A forma como os nacional-socialistas estruturaram a Alemanha constituiu atodos os níveis da sociedade o protótipo da sociedade democrática e economicista do pós-guerraalemão; isto foi nítido até ao ridículo no "Volkswagen" ["carro do povo"; N.d.Tr.], mas igualmente nodesenvolvimento ulterior da forma capitalista do sujeito. Justamente o núcleo da ideologia nacional-socialista, o antisemitismo, é um produto específico da Modernidade a que se recorreu em cada sur-

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to de crise da "modernização". É traiçoeiro o pormenor de que tanto os democratas conformistascomo uma esquerda radical ainda apegada à ideologia iluminista gostariam de reduzir o nacional-socialismo aos elementos antimodernos e de romantismo agrário da sua legitimação ideológica, umavez que para eles a "Modernidade" e a "modernização" têm conotações positivas, representando olado "bom", putativamente emancipatório do Iluminismo. No entanto, esta hipocrisia ideológica damodernização e do Iluminismo não tem nada, mas mesmo nada a ver com os factos históricos.

Se a identidade negativa entre o progresso e a reacção, entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo, setorna imediata nos finais do século XX, isso acontece em primeira linha porque entretanto se consu-miu a dinâmica interna da socialização do valor. As polaridades, em tempos inimigas de morte, to-cam-se na queda da crise, e a todos os níveis. O mercado, sob a forma de gigantescas organizaçõesempresariais, adopta cada vez mais funções do estado; os aparelhos estatais, por seu lado, vão-setransformando em empresas quase comerciais cada vez mais adaptadas à economia de mercado. Opúblico é privatizado sob a forma dos media capitalistas; o privado, por seu lado, é tornado públicode um modo voyeuresco no conteúdo ordinário desses mesmos media (desde a miséria pessoal dasvítimas até à vida sexual dos políticos). Também o progresso agora já não é meramente parcial etemporário, mas inteiramente idêntico com a reacção: toda a reforma limita-se a ser uma contra-reforma, e o pensamento correspondente apenas rejeita as ideologias do século XX para regressar àsdo século XVIII (e, com isso, às raízes da repressiva Modernidade). A marginalização racista já hámuito que se transformou numa política liberal e jurídica (incluindo a mais brutal violência policiale de deportação) que já apenas se distingue em pormenores do pensamento e da actuação dos gru-pos de malfeitores de extrema-direita, etc.

Na Alemanha, a crescente identidade imediata entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo mani-festa-se especificamente, por exemplo, no desenvolvimento da política intelectual e editorial da"Suhrkamp-Kultur". Esta editora que, no tempo do pós-guerra foi quase o símbolo de uma ofensivaburguesa esquerdista e iluminista como sinal de oposição "republicana" à hipoteca antimoderna econtra-iluminista da história alemã, dá hoje guarida a autores exclusivos e vedetas como MartinWalser, Botho Strauss e Peter Sloterdijk (este último até se viu promovido, numa sucessão bem sim-bólica a Habermas, ao spiritus rector da programação editorial) que representam aquela "viragem"intelectual em cujo seio, de uma forma despudorada e eloquente, já se anda a relativizar Auschwitz,se pratica uma crítica cultural reaccionária ao estilo de um elogio de "Trono e Altar" e se debate sobum prisma biologista o "melhoramento genético do Homem".

Esta viragem não representa uma "traição do Iluminismo" mas, sim, a queda da máscara do Ilumi-nismo no contexto da nova crise mundial da sociedade do valor e da dissociação. Por isso, não setrata de mais um problema especificamente alemão mas, sim, da direcção em que se move o mains-tream intelectual em todo o mundo ocidental. O sistema de "freedom and democracy" conduz a suaguerra mundial contra os fantasmas do terror por ele próprio criados em nome de um racismo cul-turalista (Huntington, Fukuyama & Cia.), sob a égide de uma figura como o presidente Bush, que é aimagem viva da coincidência do Iluminismo com o Contra-Iluminismo.

Os exemplos que corroboram a cada vez mais evidente identidade imediata destes dois pólos sãoinúmeros. O Iluminismo desvenda que desde sempre traz em si o seu suposto contrário definido por

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e a partir dele próprio, que agora tem de voltar a integrar em si e que ele próprio irreversivelmente éno âmbito da identidade negativa. Embora a velha polaridade hostil ainda continue a vigorar formal-mente, os contrastes vão empalidecendo progressivamente porque a partilha da identidade negativase vai tornando por demais evidente. É por isso que a polaridade imanente já nem sequer num con-texto conformista para com o sistema pode ser dotada de uma conotação pseudo-emancipatória. Jánão interessa minimamente (nem mesmo no sentido táctico) rebatermos os insípidos contrastes dadiferença imanente entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo; antes o pensamento emancipatóriojá apenas pode assinalar o que ambos têm em comum a fim de quebrar a relação total negativa.

A antimodernidade emancipatória nada tem a ver com a burguesa, visto que a sua crítica, enquantometa-crítica, atinge pela mesma medida ambos os lados das polaridades modernas: Rejeita o univer-salismo abstracto juntamente com a nação, as ideologias raciais etc.; o mercado juntamente com oestado; a individualidade abstracta de par com a ideologia da comunidade; a racionalidade modernajuntamente com o classicismo burguês; a masculinidade dissociadora juntamente com a feminilida-de dissociada; o progresso repressivo juntamente com a reacção repressiva; numa palavra: o Ilumi-nismo juntamente com o Contra-Iluminismo.

A metafísica histórica burguesa do "progresso" e o relativismo histórico burguês

Resta saber qual é a compreensão da história que tal antimodernidade emancipatória irá desenvol-ver. A ideia de um progresso "inevitável" (que seguiria uma suposta lei natural) com graus de desen-volvimento que pacificamente vão sucedendo uns aos outros com a Modernidade como seu expoen-te máximo está tão fora de questão como a glorificação e romantização de quaisquer relações de feti -che pré-modernas. É precisamente neste sentido que também o chamado materialismo histórico setorna insustentável, visto ter-se revelado como mero apêndice da metafísica histórica iluminista. Ul-trapassar o modus da lógica identitária também significa deixar de se construir um sistema fechadoda história que aparente ter pleno cabimento em si próprio. A metafísica histórica do Iluminismo, talcomo a moderna "forma do sujeito", não deve ser apenas substituída por outra qualquer, sendo, an-tes, de superar não só no que diz respeito ao seu conteúdo como igualmente enquanto forma de pen-samento.

Tudo o que Marx disse enquanto "materialista histórico" está, na sua essência, certo; o que se passa éque se aplica apenas ao capitalismo, à moderna socialização do valor, não passando de uma projec -ção em relação às formações sociais pré-modernas. O facto do esquema não resultar de forma algu-ma a este respeito já foi notado muitas vezes, mesmo da parte de marxistas; mas este problema nun-ca foi devidamente traduzido em conceitos, sendo invariavelmente, ou utilizado para legitimar oabandono da crítica económica radical de Marx, ou encoberto, na medida dos possíveis, por todo otipo de remendos conceptuais "dialécticos".

O modo mais óbvio de se desembaraçar aparentemente do problema consiste na adopção da posturade um relativismo e agnosticismo histórico. Não poderíamos simplesmente dizer a nós próprios queapenas temos a tarefa histórica de nos vermos livres do capitalismo, enquanto destrutiva sociedademundial da dissociação e do valor, e que podemos deixar o resto da História às impenetráveis bru-

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mas do passado e aos respectivos mortos? Assim ficaríamos com uma teoria apenas para a socializa-ção do valor da Modernidade, quedando-nos sem qualquer teoria para a história restante.

Mas não deverá ser assim tão fácil superarmos o modus da lógica identitária. Faz parte da essênciahumana querer-se ter uma ideia do passado. A arqueologia, a crítica dos textos históricos, a investi-gação das fontes etc. não irão acabar juntamente com a lógica do valor. As investigações puramenteempíricas, por outro lado, são uma impossibilidade lógica e prática, visto precisarem sempre de umenquadramento conceptual. Juntamente com o modus da lógica identitária, não pode acabar a gene-ralidade do pensamento conceptual da história.

Sobretudo, porém, um relativismo e agnosticismo histórico não é nada de novo, nem constitui umasuperação da metafísica histórica do Iluminismo, sendo antes sua parte integrante. Já o século XIXproduziu esse historicismo hermenêutico, cujo credo foi resumido pelo historiador alemão LeopoldRanke nas famosas palavras, segundo as quais "Qualquer época está igualmente perto de Deus", ouseja, tem respectivamente a sua lógica e o seu direito próprios que não devem ser medidos pela bito-la da Modernidade. Como demonstrou recentemente o colega de ofício de Ranke nosso contempo-râneo Reinhart Kosellek, o rasto desta "política da relativização" por parte da teoria histórica encon-tra-se já no pensamento iluminista do próprio século XVIII. Isso aponta no sentido de que o relati -vismo histórico não se encontra necessariamente em oposição à apoteose histórica da racionalidadeburguesa.

Na realidade, os enunciados centrais deste relativismo e agnosticismo são, antes de mais, banais. As-sim, ele afirma que não podemos formular qualquer juízo seguro acerca das situações pré-modernase pré-históricas, visto pura e simplesmente não estarmos na pele das gentes do passado. Nem a cha-mada de atenção um pouco mais reflectida para que qualquer teoria histórica reflecte, em certa me-dida, o "ponto" histórico em que nós próprios nos encontramos, uma vez que este determina a nossaperspectiva, resolve o problema de forma satisfatória. Isso deve-se sobretudo ao facto destas afirma-ções serem de um carácter pura e simplesmente afirmativo: Trata-se de um relativismo histórico se-gundo o pachorrento mote "viver e deixar viver", que se limita a complementar e a flanquear a meta -física histórica iluminista. Ao mesmo tempo, a euforia desenvolvimentista de Hegel transparece pe-las casas de todos os botões: Tem algo de repugnantemente arrogante a atitude de quem reconhece àssituações sociais do passado o seu respectivo direito próprio, a sua própria "proximidade de Deus", oseu próprio modus; é aproximadamente como se um adulto burguês maltratado pela sua racionali-dade condescendesse em admitir ao estádio da infância um jocoso "valor próprio". Ao fim e ao cabotudo vai dar à afirmação de que a maravilhosa Modernidade possui o seu valor próprio e o seu direi-to de existir tal como o passado que, no entanto, tem a vantagem de estar morto e enterrado e de nãopoder defender-se de semelhante jovialidade.

O que falta ao mero relativismo histórico é o sal na sopa, nomeadamente a crítica radical. Da pers-pectiva de uma crítica fundamental da Modernidade iluminista, porém, não pode haver lugar a umareconciliação jovial com a história pré-moderna, na qual a Modernidade afinal se encontra enraiza-da. O paradigma de uma antimodernidade emancipatória não se encontra, portanto, caracterizadopela glorificação, ou mesmo pelo branqueamento, mas, sim, pela crítica radical das formas sociaispré-modernas; uma crítica que se encontra logicamente integrada na crítica radical da Modernidade.

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Neste ponto ela distingue-se de forma fundamental da crítica iluminista da pré-modernidade por in-termédio da autoafirmação da Modernidade, assim como da crítica anti-iluminista da Modernidadeatravés da afirmação da sociedade agrária pré-moderna. A posição da antimodernidade emancipató-ria, pelo contrário, justifica a crítica da Modernidade pela crítica da pré-modernidade que nela seencontra incluída, e vice-versa.

A crítica fundamental das formações pré-modernas pode, sem dúvida, apoiar-se em um determina-do saber. Mesmo que as fontes sejam mais ou menos escassas, e mesmo que dificilmente possamosreviver a consciência do mundo das situações de um passado mais remoto, pode-se comprovar semmargem para dúvidas que o que sempre esteve em causa foram relações de domínio dotadas de po-tenciais destrutivos. Pode igualmente ser comprovado com base nos documentos e artefactos o sofri-mento permanente com estas situações em que os indivíduos nunca se puderam encaixar, nem mes-mo no passado pré-moderno.

As teorias ideológicas afirmativas da história da modernização habitualmente retiraram daí a ilaçãode que "o Homem" pura e simplesmente é assim e que a história da humanidade tem de ser uma his -tória permanente de sofrimento. De forma inversa, uma antimodernidade emancipatória incluirá nasua crítica da moderna relação de valor e dissociação a crítica desta falsa ontologia da história e, comisso, de um modo geral, a crítica de toda a história precedente, operando assim uma ruptura históri-ca de ordem superior. Contrariamente ao relativismo histórico (ele próprio de sinal iluminista), acrítica das situações pré-modernas não só é permitida como até é necessária; mas não o é do pontode vista e com a bitola da modernidade produtora de mercadorias, mas unicamente do ponto de vis -ta e com a bitola de uma crítica não menos radical dessa mesma Modernidade.

Despido da dimensão da crítica, demonstra-se o denominador afirmativo comum das diversas e apa-rentemente contrárias teorias históricas ou "filosofias históricas". Seja sob a forma de uma história doprogresso quase que obrigatório, em que as sociedades pré-modernas são desqualificadas como per-tencentes às trevas do apego à natureza e da irracionalidade; ou, ao contrário, sob a forma da glorifi-cação e romantização reaccionária de relações de fetiche e, assim sendo, de domínio; ou como "reco-nhecimento" arrogante da especificidade na mera relativização; ou ideologizada sob a forma do eter-no retorno do mesmo no que diz respeito ao sofrimento necessário por lei natural e ao domínio: In-variavelmente o conteúdo real da história e das formações históricas acaba por ser tão indiferente aeste pensamento como os objectos do mundo, de um modo geral, são indiferentes à abstracção dovalor, sempre se trata de um mero quiproquó, da instrumentalização da história para a legitimaçãodo existente, por muito contraditórias e divergentes que essas instrumentalizações possam ser.

A teoria histórica e a crítica reduzida do poder

Só na negatividade da crítica volta a tornar-se possível uma concepção da história geral em que a te-oria histórica coincida com uma crítica emancipatória do poder. Esta concepção não pode, no en-tanto, circunscrever-se ao entendimento convencional, apenas sociológico, das "relações de domina-ção". É um facto que o marxismo e o anarquismo não partilharam, mesmo assim, a restante ontolo -gia burguesa do conceito da dominação. Esta, de qualquer modo, deveria tender para ser abolida.

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Mas esta ideia permaneceu uma má utopia na medida em que ela não foi apresentada de uma formarealizável – devido ao apego, tanto marxista como anarquista, às formas da relação de valor e disso-ciação.

De qualquer modo, o marxismo situou esta utopia muito para além de todos os conflitos sociais re-ais, num futuro indeterminável, ao passo que o desenvolvimento da "necessidade histórica" deveriapassar primeiramente pelo proletariado tornado estado e, com isso, poder (e a respectiva "ditadura").Apenas nos momentos mais luminosos este estado era condecorado com o atributo de "já não o ser";o que, contudo, tinha o único efeito de tapar a contradição com uma formulação paradoxal. Na reali-dade, as ditaduras estatais do proletariado da periferia do capitalismo provaram ser ordinárias dita-duras burguesas de modernização. O anarquismo, pelo contrário, quis abolir de forma imediata o"poder" e, com ele, o estado mas, por isso mesmo, quis fazê-lo sem a mediação com a abolição da re-lação de valor e dissociação (não indo, a este respeito, mais longe do que o marxismo do movimentooperário).

Em ambos os casos, o "poder" apresentava-se apenas na sua dimensão social, sociológica e subjecti -va, ou seja, reduzida quanto ao problema da forma. Foi por isso que tanto o marxismo como o anar-quismo puderam adoptar o conceito da democracia de um modo ingenuamente positivo, emboranele já se encontre etimologicamente contido o conceito do domínio. Na medida em que a aboliçãodo poder devia realizar-se sob a forma de um final "autogoverno" ou "autodomínio do povo", na rea-lidade o conceito do domínio apenas foi trazido a si no sentido dos imperativos coisificados da rela-ção de valor e dissociação, tal como já havia muito tempo que os ideólogos mais militantes do Ilumi-nismo (Kant, Bentham, Hegel & Cia.) o tinham pensado em primeira mão. Assim, a crítica esquer-dista do poder apenas pôde ridicularizar-se a si própria.

Também em termos históricos, esta crítica reduzida das relação de dominação permanece apegadaao pensamento iluminista e às falsas ontologizações do mesmo. Por um lado, o conceito do domíniocom a sua redução ao estado apenas pôde ser estendido a condições pré-modernas na medida emque a estas foi estendido de forma projectiva, muito no sentido da deturpação da história praticadapelo Iluminismo, o conceito do estado, ao passo que o estado enquanto tal, na realidade, é apenasum produto da Modernidade. Por outro lado, onde, tal como nos estádios sociais mais primordiaiscomo o dos caçadores e recolectores nem o pensamento iluminista mais obstinado era capaz de des-cortinar algum estado, tinha de se atestar a essa assim chamada "sociedade primitiva" uma "liberta-ção do domínio", à qual, no grau supremo do desenvolvimento e, por isso, numa forma superior, osocialismo/comunismo haveria de regressar.

As incongruências de semelhante crítica do domínio apenas podem ser resolvidas a partir do mo-mento em que a relação de dominação é criticada como relação formal, ou seja, para lá de uma ob-servação sociológica meramente exterior. Neste sentido, a crítica da relação de valor e dissociação, aorecuperar o conceito marxiano da constituição do fetiche, contém em si já um novo e negativo con-ceito da totalidade da história pré-existente que, por isso mesmo, pode ser resumida, no sentidomarxiano, como "pré-história". Já não entendida de um modo sociologicamente reduzido como "his-tória de lutas de classes" mas, por inclusão da reflexão da forma, como "história de relações de feti-che", a um certo nível de abstracção torna-se discernível algo de negativamente abrangente que une

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as sociedades pré-modernas com as sociedades modernas. Sob este ponto de vista, é evidente quemesmo as chamadas "sociedades primitivas" representam constituições de fetiche e, assim sendo, re-lações de dominação, na medida em que o conceito do domínio já não se reporta a relações mera-mente exteriores de subordinação entre pessoas, mas à subordinação colectiva a relações formais ali-enadas e autonomizadas (como por exemplo o totemismo, o culto dos antepassados etc.).

A ontologia negativa como teoria da história negativa

Somente neste sentido de um conceito negativo da história pré-existente como uma história de rela-ções de fetiche o enunciado de Marx, segundo o qual as situações sociais pré-modernas poderiamser determinadas de forma retrospectiva a partir das modernas, tal como a anatomia do macaco opode ser a partir da do Homem, desvenda, de um modo que aponta o caminho para além da ideolo-gia iluminista, o seu verdadeiro significado. Neste contexto, a Modernidade já não figura como umabase positiva para a libertação de situações constrangidas mas, muito pelo contrário, como uma for-ma extrema do constrangimento que, por motivos que se prendem com a autopreservação, já apenaspode ser rebentada; não como desabrochar da libertação em resultado de um constante e "inevitável"desenvolvimento ascendente, mas como agudização da destrutividade das relações de fetiche em ge-ral até à ameaça da destruição do mundo.

Não precisamos de agradecer ao capitalismo por qualquer "missão civilizatória", tendo nós comoúnica obrigação a de o abolirmos enquanto resumo maligno de uma negativa história do sofrimentoda Humanidade (à qual não se descortina qualquer sentido metafísico positivo para tamanho sofri-mento, contrariamente ao que diria a religião sadomasoquista do cristianismo. Não há qualquer"mérito" no sentido de uma base positiva no facto de a moderna relação de valor e dissociação ter li-teralmente corrido e bombardeado a Humanidade até ao limiar da superação da pré-história das re-lações de fetiche; antes pelo contrário, esta situação de partida é puramente negativa (em WalterBenjamin encontram-se pensamentos neste sentido, sob uma forma ainda parcialmente mistificada).

A partir desta reavaliação da história também se clarifica a relação de uma crítica do valor e da dis -sociação ulteriormente desenvolvida para com o conceito da ontologia social. Tanto no seu uso filo-sófico mais restrito como no mais amplo emprego geral, este conceito é algo impreciso e plurissémi-co, visto remeter de forma indirecta para a relação de fetiche que não é palpável enquanto tal nas for-mas do fetiche. Por um lado são abrangidas por ele, num sentido quase que antropológico (naturali-zante) supostas condições supra-históricas da Humanidade que alegadamente constituiriam "o Ho-mem" ou a sua "essência" enquanto tal; por outro lado também parece tratar-se de ontologias históri-cas, de condições existenciais que, embora se suponha que em certas épocas possam ter sido gerais,não o são face à História na sua totalidade. No entanto trata-se sempre de ontologizações positivas(e, nessa medida, ideológicas) e, com isso, afirmativas de determinadas definições pré-existentes,quer se trate de uma ontologização meta-histórica do domínio e do trabalho, ou de uma ontologiza-ção histórica no sentido de uma ontologia especificamente moderna do sujeito (circulante) e da suaestranha "liberdade" transcendental.

Contrariamente a isto, o conceito da constituição do fetiche contém, enquanto parte integrante da

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crítica do valor e da dissociação, um momento ontológico no sentido do conceito marxiano da "pré-história" mas, lá está, trata-se de um momento puramente negativo. Toda a história pré-existente,não a história humana em geral (porque "o Homem", devido à sua essência, não seria capaz de outracoisa), é uma história de relações de fetiche, com cujo conceito, no entanto, também já se encontradefinida a sua crítica radical – e, assim, a possibilidade da sua superação.

Esta ontologia negativa de uma pré-história de relações de fetiche já não é capaz de retratar um siste-ma histórico que traz a marca da lógica identitária como o processo inevitável de um desenvolvi-mento ascendente positivo. Ela apenas é abrangente enquanto conceito que designa um todo de con-dições negativas descontínuas em que, de formas historicamente diversas, se desenvolve a contradi-ção entre os indivíduos sensíveis e sociais e a sua própria forma negativa, que são as constituições dofetiche, sendo, através de tormentosas lutas, consecutivamente reformulada. Aqui não vigora nenhu-ma lei natural teleológica nem nenhum plano divino, tratando-se antes de um contínuo, descontínuonas suas alterações históricas, de formas sociais em desavenças consigo próprias, em que ocorremmetamorfoses repentinas que não obedecem a nenhuma lei mecânica, visto serem produtos da cons-ciência a debater-se consigo própria e com a natureza, e não processos que apenas se desenrolem nanatureza.

Por isso, o momento da ontologia negativa, que reflecte este contínuo negativo, também não passa deum momento de uma determinada crítica histórica (nomeadamente, da crítica da relação de valor edissociação) e, nessa medida, constitui o momento de uma crítica que sabe e não deixa de ter emconta nas suas reflexões o ponto histórico em que ela própria se situa: ou seja, tudo menos uma filo-sofia histórica. Existe apenas uma única filosofia histórica, e esta é a ontologia positiva do Iluminis-mo burguês. A filosofia histórica enferma, pelo próprio conceito, de uma lógica identitária, ou seja, écausalista, preocupada com esquemas de desenvolvimento e totalitária; e a teoria marxiana apenastem características de uma filosofia histórica na medida em que argumenta no âmbito do materialis -mo histórico, ou seja, se mantém iluminista ao arrepio da sua própria concepção das relações de feti-che.

O acto (negativo e destrutivo) de se atingir o limite do contínuo da "pré-história" configura maisuma espécie de salto quântico do que um resultado de processos causais – tal como, de um modo ge-ral, o esquema de desenvolvimento da metafísica histórica do Iluminismo se desenrola em paralelo àmundividência mecanicista e causal da física sua contemporânea. O entendimento da natureza e oentendimento da sociedade sempre se encontram relacionados e, nesta medida, a ontologia negativada crítica do valor e da dissociação não pode deixar de lançar uma luz diferente sobre a natureza físi-ca e biológica. Na mesma medida em que a crítica social se aproxima das ciências da natureza da fí-sica quântica, talvez no futuro também o enigma da natureza física possa ser, ao menos, mais bementendido.

O fim da galeria dos antepassados e a superação da teoria positiva

Desde o ponto de vista de uma necessária crítica radical do Iluminismo e dos "valores ocidentais" éevidente que nem os coriféus da Filosofia iluminista podem escapar a uma avaliação nova e negativa.

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Que os pouco profundos pensadores do democratismo de esquerda, assim como os inculcadores ofi-ciais da máquina propagandística ocidental, democrática e guerreira mundial invoquem Kant eCompanhia de uma forma positiva entende-se por si. Mas quando uma reflexão que se entendecomo crítica do valor fica pouco aquém ao reconhecer aos senhores Kant, Hegel etc., numa espéciede deferência ritual, as "realizações do (respectivo) pensamento" (e isto também se aplica, de umaforma ou de outra, ao desenvolvimento que a abordagem crítica do valor sofreu até à data), tal de-monstra uma vez mais o apego ao modus da lógica identitária e à metafísica histórica iluminista.

Este modo de lidar com a filosofia iluminista (para a qual, sob este ponto de vista, Kant pode servirde sinónimo) diferencia-se apenas aparentemente do meramente afirmativo dos ideólogos democrá-ticos ao remeter para o facto que, por exemplo, os pensadores éticos de pacotilha que hoje temosnem compreenderiam Kant, porque nem sequer reparam que este se digladia a nível conceptual como problema da constituição da moderna socialização do valor apontando as antinomias ou aporiasque lhe são intrínsecas. Em vez disso, estes ideólogos tomariam a constituição da forma do valor e daforma jurídica problematizada por Kant já como um cego pressuposto, tal como entretanto se esta-beleceu na consciência quotidiana, deixando, justamente por isso, de percepcionar o problema le-vantado por Kant.

Isto, embora esteja certo, não é suficiente para a avaliação de Kant e do modo deste de "identificar osproblemas". Acontece que o pensamento de Kant, com o enorme alcance da sua reflexão, aparececomo que um precursor da crítica do valor que, passando pelos escalões intermédios Hegel e Marx,julga poder prolongar esta cadeia de reflexões. O que é omitido ou, de algum modo, posto de partepor não parecer ter importância, é o facto de Kant pura e simplesmente não ter sido apenas um pen-sador reflexivo, mas igualmente um militante ideólogo da imposição da socialização do valor.

Nesta omissão revela-se o apego ainda não superado à forma do valor e da dissociação e ao respecti-vo modo de pensar. Como já acontece no pensamento próprio de uma crítica do valor assim reduzi-da, assim também na avaliação de Kant e Cia. é nivelada a diferença decisiva entre uma mera refle-xão positiva e (no sentido de Hegel) uma mera "consciência em si reflectida" do assunto, por umlado, e a sua crítica radical teórica e prática, por outro. O necessário esforço próprio da crítica nosentido contrário, que se insurge justamente contra um curso dos acontecimentos apenas "necessá-rio" e prefigurado numa lógica objectivada, desaparece; e assim, Kant, em cujas obras principais apalavra crítica faz parte do título, mas que é o preciso oposto de um crítico da socialização do valor,pode ser incluído na galeria dos antepassados do pensamento crítico "em si e por si".

Este modo de ver as coisas também é possível porque um pensamento de crítica do valor que, elepróprio, ainda não superou a lógica identitária, ainda por cima se processa no estado da contempla-ção, ou seja, num regime de segregação sistemática da reprodução social embora, de um certo modo(que, no entanto, não é considerado na reflexão), também volte a fazer parte dela. Vai de si que tam-bém uma crítica do valor que já não proceda segundo os preceitos da lógica identitária tenha comoponto de partida a separação determinada pelo valor entre a teoria e a prática, tendo de começar porse mediar, num processo complexo, com a prática social. No entanto, o estado contemplativo tam-bém pode ser superado, aqui e ali (mas de modo algum de forma completa), no próprio pensamentoteórico, começando este já a deixar de ser um pensamento puramente teórico no sentido contempla-

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tivo da cisão burguesa; e, nomeadamente, por se converter num pensamento realmente crítico ao ní-vel da própria teoria em vez de não passar do estado positivamente reflexivo. A diferença consistetambém na inclusão na crítica do estado contemplativo enquanto tal (e, com ele, de mais um mo-mento da dimensão até agora "tácita" das relações de fetiche modernas).

Para já isto significa pormos a descoberto a real identidade negativa entre a teoria e a prática naconstelação burguesa da sua separação e polaridade hostil. É que, precisamente na negatividade ob-jectivada da sua segregação radical da prática reprodutiva, a teoria contemplativa, ao mesmo tempo,não deixa de ser uma forma sui generis da prática social; um momento radicalmente separado daprática na sua totalidade e, assim, uma prática de segunda ordem no seio dessa separação; no entan-to, é-o sem o saber conscientemente e sem incluir esse facto na reflexão. Afinal é precisamente nissoque consiste a cisão polarizadora e, com ela, o carácter contemplativo, separado da actuação, da teo-ria burguesa. O dito marxiano sobre os actores de relações de fetiche também aqui se aplica: "Não osabem, mas fazem-no". Onde a crítica do valor não se ampliou a uma crítica deste carácter, tambémlhe falta este nível de reflexão, de modo que tem de actuar, no que diz respeito ao pensamento teóri-co, como se realmente estivesse perante uma mera "história intelectual", cuja relevância prática não éconsiderada.

Na realidade, porém, a teoria, mesmo a separada pela contemplação, é desde sempre indirecta e, en-quanto prática de segunda ordem, também actua sobre a prática social integrando-se ela própria deuma forma objectivadora na realidade circundante. A este respeito aplica-se o mesmo que à dialécti-ca sujeito-objecto em geral: O que se passa na realidade não é, de modo algum, que de um lado te-nhamos apenas os factos puramente objectivos e, do outro, o pensamento teórico que se limita a re-flectir esta objectividade e que, por intermédio de um esforço de reflexão, se aproxima e se adequamais ou menos ao seu objecto. É o que parece a um teórico contemplativo, mas é precisamente esta aaparência fetichista.

Tal como as realidades autonomizadas em formas de fetiche não são objectivas, mas apenas objecti-vadas, ou seja, de um fabrico bem caseiro, mesmo que o sejam num modus não consciente, tambéma teoria contemplativamente separada se integra neste "fabrico". Ela, longe de se limitar a reagir, tam-bém age; ela não se limita a reflectir as situações uma vez criadas, mas também ajuda a criá-las. Ela,sendo a reflexão sobre objectivações passadas, é ao mesmo tempo o nascimento, a partir da cabeça,de futuras objectivações. As relações de fetiche objectivadas, portanto, nunca nasceram apenas de al-guma cabeça mas, também, nunca são meros objectos do pensamento exteriores ao mesmo. Tam-bém a teoria contemplativa "realiza-se" de certo modo convertendo-se em programa e incarnando-sea nível institucional, mesmo que, por outro lado, todas as instituições, formas de relacionamento etc.sejam em grande medida produtos de cegos processos práticos independentes da teoria.

Neste sentido, os filósofos do Iluminismo não podem deixar de ser encarados, também, como ideó-logos da imposição, para não dizer como criminosos da imposição da sociedade do valor e da disso -ciação. Todos eles são os criminosos de colarinho branco de uma história de sofrimento da Humani-dade insuportavelmente agudizada pelo sujeito do valor. E, enquanto tais, eles encontram-se bempresentes com os seus crimes intelectuais que passaram a fazer parte da objectivação capitalista e,por esta actividade criminosa tem de lhes ser feito o processo. A invocação apologética do "contexto

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temporal" equivale, neste caso, à defesa do processo de objectivação. É evidente que qualquer pensa-mento se desenrola inserido num qualquer "contexto temporal", mas isso ainda não o justifica. Im-porta saber a importância que esse pensamento tem na História.

Talvez se pudesse objectar que uma condenação sumária dos pensadores do Iluminismo sujeitariaesses senhores a um tratamento que obedeceria a uma lógica identitária injustificada, como se eles seresumissem totalmente ao seu crime intelectual negativo. Até certo ponto teremos mesmo de com-portar-nos em relação a eles dum modo assim tão supostamente "injusto" para finalmente nos livrar-mos desta pesada hipoteca ideal. Tal como os democratas musculados, como se sabe, espalham a pa-lavra de ordem "Nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade" (referindo-se com isso, semqualquer dúvida, mais à crítica emancipatória do que aos próprios familiares racistas), a crítica dovalor e da dissociação poderia proceder segundo o mote: "Nenhuma isenção do processo da lógicaidentitária para os ideólogos da lógica identitária" porque, de outro modo, nunca mais nos vemos li-vres deles.

É evidente que nesta aparente vertigem também a posição histórica da crítica do valor e da dissocia-ção entra como algo que inevitavelmente determina a perspectiva: Se for mesmo verdade que nosencontramos no limite da "pré-história" das relações de fetiche, todo o pensamento que faça partedessa pré-história de forma afirmativa (ou seja, se encontre apegado às relações de fetiche, as justifi-que e ajude a constituí-las) chegou ao fim do respectivo prazo de validade e, sob esse aspecto, tem deser negado.

No entanto, isto não quer dizer que o pensamento se encontre num zero absoluto e que todo o pen-samento desenvolvido até à data possa ser deitado para a lixeira da História sem mais considerações.O pensamento nunca se limitou a pensar e a representar a escravizante forma, tendo igualmenteabordado o sofrimento causado por ela, por muito distorcido ou pouco claro que tenha sido o modode o fazer. A este respeito, o que importa é elaborarmos uma nova diferenciação dos resultados dessepensamento, darmos à "história intelectual" pré-existente uma arrumação diferente que se coadunecom a nova perspectiva. E aí os pensadores do Iluminismo que afirmaram de forma militante a mo-derna forma do sujeito e, com isso, andaram a afirmar a moderna história de sofrimentos e imperti-nências acabam infinitamente mais mal vistos do que seria o caso numa crítica que apenas se enqua-drasse na história imanente da imposição da Modernidade e que ajudou a relação de valor e dissoci-ação a adquirir a sua autoconsciência em vez de a superar.

É precisamente nesta medida que a crítica do valor e da dissociação pode aferir a medida em que su-perou o modus da lógica identitária, de certa maneira, também pelo modo como se debate com aépoca do Iluminismo. Por um lado, trazendo à luz ideias dissidentes que até à data mereceram poucaatenção para lá da disputa imanente do Iluminismo e do Contra-Iluminismo a ele associado, debru-çando-se sobre as resistências sociais e os movimentos sociais etc. da época de um outro modo doque o faz a metafísica iluminista da história. A época do Iluminismo de modo algum se resume aoIluminismo.

Por outro lado também importa colocar em destaque a contraditoriedade interna da própria filosofiailuminista. Mas tal simplesmente não pode acontecer da mesma forma que até à data, tal como por

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exemplo até o próprio Adorno ainda tentou extrair desse corpo de ideias repressivo e caracterizadopor uma ideologia autoritária um elemento supostamente "bom" e emancipatório. Antes já podeapenas tratar-se de demonstrar como o Iluminismo se enreda em antinomias e aporias impossíveisde superar no seu próprio âmbito, assim desvendando involuntariamente como o totalitarismo dasocialização do valor não dá e nem pode dar certo.

Original alemão Negative Ontologie. Die Dunkelmänner der Aufklärung und die Geschichtsme-taphysik der Moderne in Revista KRISIS, nº 26, Janeiro de 2003.

Tradução de Lumir Nahodil, 05.03.2003.

http://planeta.clix.pt/obeco/

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