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  • ORAMENTO DO ESTADO:Contribuies para a transparncia oramental em Angola.

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    ORAMENTO DO ESTADO:Contribuies para a transparncia oramental em Angola.

    Dissertao de DoutoramentoCandidata: Elisa Rangel Nunes

    Orientador: Prof. Doutor Eduardo da Paz FerreiraSetembro de 2008.

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    Uma experincia eterna atesta que todo o homem que detm o poder tende a abusar do mesmo.Para que no se possa abusar desse poder, faz-se mister organizar a sociedade poltica de talforma que o poder seja um freio ao poder, limitando o poder pelo prprio poder, Charles deMontesquieu.

    Um pas que a cada passo pede dinheiro emprestado, ou para financiar o servio da dvida oupara financiar o dfice, fica nas mos dos seus credores, Jen Henriksson.

    O controlo ser sempre o primeiro problema de qualquer processo oramental, Allen Schick.

    Um pas pobre sobretudo se os nveis de corrupo so altos, Susan Rose-Ackermann.

    Se o actual processo oramental justificada ou injustificadamente considerado insatisfatrio,h ento que alterar de algum modo o sistema poltico do qual o oramento uma expresso. Nofaz sentido falar como se se pudesse alterar drasticamente o processo sem tambm se alterar adistribuio de influncia, Aaron Wildavsky e Naomi Caiden.

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    Resumo

    Uma das principais questes desta dissertao prende-se com a reflexo sobre a

    notria falta de transparncia que os responsveis incumbidos pela gesto dos

    recursos pblicos, partindo da deciso sobre a sua disponibilidade tomada no

    Oramento do Estado, vm demonstrando, em prejuzo dos interesses dos cidados,

    que maioritariamente e de boa f lhes conferem votos, em perodos eleitorais, neles

    confiando, porque os concebem como os mais esclarecidos e preparados para dirigir

    os destinos das naes a que pertencem.

    Este texto refere-se, tambm, a dois fenmenos sociais: a corrupo e a pobreza, que

    na sua inter relao constituem factores de menor transparncia em geral e em

    particular de transparncia oramental.

    Como se pretende que se trate de um estudo sobre a transparncia no processo de

    deciso oramental, no intuito de trazer contribuies para uma ordem jurdica

    concreta: a angolana; foram estabelecidos termos de comparao com diversos pases

    africanos e europeus, no domnio da deciso e da oramentao, sem descurar

    matrias analisadas numa perspectiva de natureza dogmtica.

    Finalmente, foram sugeridas consideraes em termos da filosofia a seguir em alguns

    aspectos do processo de deciso oramental angolano, tendo como objectivo uma

    maior transparncia (clareza e abertura).

    Palavras-chave: transparncia; transparncia oramental; corrupo; pobreza.

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    LISTA DE ABREVIATURAS

    AAFDUL Associao Acadmica da Faculdade de Direito de Lisboa;

    A.N. Assembleia Nacional;

    A.R. Assembleia da Repblica;

    BFDC Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra;

    BM Banco Mundial;

    BNA Banco Nacional de Angola;

    BPC Banco de Poupana e Crdito;

    CEMAC Comunidade Econmica e Monetria da frica Central;

    CGE Conta Geral do Estado;

    CUT Conta nica do Tesouro;

    CUT-MN Conta nica do Tesouro em Moeda Nacional;

    CUT-ME Conta nica do Tesouro em Moeda Estrangeira;

    FMI Fundo Monetrio Internacional;

    INSS Instituto Nacional de Segurana Social;

    LQOGE Lei-Quadro do Oramento Geral do Estado;

    MBO Managemnt by Objectives;

    Minfin Ministrio das Finanas;

    Minplan Ministrio do Plano;

    MPLA Movimento Popular de Libertao de Angola;

    MTEF Mdium Term Expenditure Framework;

    NCB Nota de Cabimentao;

    OCDE Organizao para o Crescimento e Desenvolvimento Econmico;

    OGE Oramento Geral do Estado;

    ONU Organizao das Naes Unidas;

    OSS Oramento da Segurana Social;

    OZB Oramento de Base Zero;

    PEC Pacto de Estabilidade e Crescimento;

    PIB Produto Interno Bruto;

    PIP Programa de Investimento Pblico;

    PPBS Planing Programming, Budget System;

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    SADC Comunidade para o Desenvolvimento da frica Austral;

    SADCC Conferncia de Coordenao para o Desenvolvimento da frica Austral;

    SIGFE Sistema Integrado de Gesto Financeira do Estado;

    SIGIP Sisitema Integrado de Gesto do Investimento Pblico;

    TCE Tratado da Comunidade Europeia;

    UE Unio Europeia;

    UEMOA Unio Econmica e Monetria Oeste Africana;

    ZBB Zero Base Budgeting.

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    Introduo

    1. O tema do Oramento do Estado tem merecido, cada vez mais, a ateno dos

    cultores de finanas pblicas, depois de um tempo em que esta instituio sofreu

    alguns reveses, fruto do papel que o Estado veio a ocupar na economia, aliado ao

    enfraquecimento do poder parlamentar perante um executivo que veio a impor-se e

    ainda crescente complexidade e tecnicidade dos mtodos de gesto financeira1,

    reapareceu bastante revigorada, porque tratando-se de um instrumento que permite o

    funcionamento da economia e de todos os outros sectores da vida social de cada pas,

    e por isso mesmo () o quadro geral bsico de toda a actividade financeira, na

    medida em que atravs dele se procura precisar a utilizao que dada aos dinheiros

    pblicos2, no obstante nem sempre ter vindo a ser objecto de uma gesto cuidada

    por parte daqueles de quem a sua gesto se encontra a cargo.

    2. A importncia de que hoje se reveste o Oramento do Estado, no mundo das

    finanas pblicas3, pelo volume de recursos retirados aos cidados e ao sector

    privado4/5 e o seu emprego, na realizao de despesas, tambm, em valores

    1 Cf. Antnio Luciano de Sousa Franco, Finanas Pblicas e Direito Financeiro, Vol. I, 4. edio, 11.reimpresso, Almedina, 2007, p.335.2 Cfr. Antnio Luciano de Sousa Franco, Finanas Pblicascit., p.336.3 A importncia do oramento pblico no caracterstica do mundo de hoje, nem to pouco releva aonvel apenas das finanas pblicas, seno mesmo e tambm da cincia do direito, e disso do-nos contaas vrias correntes doutrinrias que se desenvolveram em finais do sculo XIX, incio do sculo XX,que marcaram a relao entre a teoria jurdica do oramento e o direito constitucional e que incidiramsobre a polmica entre lei formal e lei material, sobre as relaes entre Governo e Parlamento, dentreoutras. Cfr. J.J. Gomes Canotilho, A Lei do Oramento na Teoria da Lei, in BFDC nmero especial,Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, II, 1979.4 Apesar de haver conscincia de as contribuies que so retiradas terem objectivos comunsdeterminados e determinveis e deverem ser extensivas a todos, nem sempre esse carcter socialmentetil das contribuies recai sobre aqueles que, embora demonstrando capacidade contributiva, a elas sefurtam a pretextos vrios, embora a lei no estabelea, nem confira a ningum, qualquer direitofundamental de no pagar impostos. Ver J. L. Saldanha Sanches, A Segurana Jurdica no EstadoSocial de Direito, conceitos indeterminados, analogia e retroactividade no Direito Tributrio, Cinciae Tcnica Fiscal, n.s 310-312, Outubro-Dezembro, 1984, pp.285 e ss, que nos fala, a propsito dosfenmenos de fuga e evitao fiscal, da necessidade de a Administrao fiscal aparecer dotada demeios legais para limitar tais fenmenos.5 J hoje no se coloca o pagamento de impostos como o exerccio de um poder por parte do Estadocom relao ao contribuinte, mas sim, como afirma Casalta Nabais, O Dever Fundamental de PagarImpostos, Almedina, 1998, p.185, o imposto no pode ser encarado, nem como mero poder para oEstado, nem simplesmente como um mero sacrifcio para os cidados, mas antes como o contributoindispensvel a uma vida em comum e prspera de todos os membros da comunidade organizada emEstado. No mesmo sentido, Eduardo Paz Ferreira, Os Tribunais e o Controlo dos Dinheiros Pblicos,in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. 2, 2001, p.153, quando afirma que, os impostos

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    avultadssimos6/7, incorporando um programa de poltica econmico-social8, tem sido

    matria que, cada vez mais, tem suscitado interesse na literatura de lngua portuguesa,

    na qual com cada vez mais acuidade, se colocam interrogaes quanto idoneidade e

    integridade (no) utilizadas na gesto dos recursos pblicos, j que esta, porque incide

    sobre recursos escassos, motivo de grande contestao, por no se observarem os

    resultados que, bastantes vezes, em perodos eleitoralistas so prometidos, e que aps

    a vitria de quem os promete, ficando, por isso mesmo, to somente, em vs

    promessas9.

    3. A gesto financeira pblica, por nos parecer uma misso que ao ser atribuda

    aos executivos, nem sempre tem sido cumprida com a destreza requerida, quer por

    razes de ineficcia e ineficincia, quer por motivos de prtica de actos ilegais e

    irregulares, por parte dos agentes pblicos, tem constitudo para ns uma grande e

    profunda preocupao, desencanto, seno mesmo uma desiluso, porque continuamos

    sem entender o que motiva os cidados eleitos, e, consequentemente, toda a mquina

    administrativa que movimentam e coordenam, que ao serem indicados para levar a

    termo a gesto dos recursos pblicos, em benefcio do interesse comum, legitimados

    correspondem, na definio genrica normalmente dada pela doutrina financista, a prestaes que oEstado reclama e que vo atingir parcelas da riqueza ou do rendimento dos cidados, no a ttulopunitivo, mas como forma de organizar a cobertura dos encargos pblicos, ou seja, de satisfazer asnecessidades colectivas.6 Cfr. Maria da Conceio da Costa Marques, A Prestao de Contas no Sector Pblico, Dislivro,2002, p.37, para quem a movimentao de grandes quantidades de recursos de natureza pblicacomorigem nas contribuies dos cidados, requerem por parte de um Estado democrtico mais rigor etransparncia na sua gesto.7 Como j afirmmos noutro lugar, Orao de sapincia, proferida, em 18 de Maro de 2006, porocasio da abertura oficial do ano lectivo de 2006 na Universidade Catlica de Angola, p.6, publicadana Revista da Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, n.7, o Estado afecta recursosescassos, cuja origem ptovm, principalmente, da cobrana de meios de financiamento aos cidados,com vista a satisfazer as necessidade da colectividade a que esses cidados pertencem. Logo, osgestores dos dinheiros pblicos, tendo a seu cargo a sua gesto e Administrao so meros agentes eprestadores de servios pblicos, agindo em nome e por conta dos cidados. O dinheiro que gerem nolhes pertence, mas colectividade, em nome de quem e para quem prestam servios, pelo que odinheiro pblico propriedade dos cidados, para ser utilizado para fins pblicos, tendo estes o direitoa beneficiar dos proventos que ele possa gerar. O dinheiro pblico destina-se obteno demercadorias, servios e a realizar investimentos para benefcio dos seus proprietrios, que so todos osque integram a colectividade. Por isso, todas as despesas pblicas devem ser realizadas, com vista abeneficiar a colectividade. Os meios de financiamento que permitem a realizao dessas despesas, nodevem em circunstncia alguma ser desperdiados, pois, dinheiro mal gasto dinheiro deitado fora e,este , no o devemos esquecer, um recurso escasso. Por isso as despesas pblicas devem ser eficazes eadequadas.8 Cfr.Antnio Braz Teixeira, Finanas Pblicas e Direito Financeiro, AAFDL, p.p.83-849 Tem-se observado que este tipo de posio assumida pelos cidados eleitos tem conduzido,principalmente, nas democracias mais antigas, a um movimento de abesteno cada vez maior por partedos cidados eleitores, por ocasio dos actos eleitorais. Exemplo recente dessa situao ocorreu,auqando das recentes eleies europeias, cujo grau de abstencionismo foi gritante.

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    pelo voto, ao invs de agirem nesse sentido, utilizam tcnicas, mtodos e at artifcios

    ou engenharias (como , hoje, comum dizer-se) que no esto ao alcance do

    conhecimento da maioria dos seus eleitores, a quem, falaciosamente, dado a

    entender que tudo o que fazem em observncia da melhoria, de um modo geral, das

    suas condies de vida10, quer promovendo melhores condies econmicas e

    financeiras, quer criando e incentivando melhores condies sociais11. E uma das

    nossas dvidas prende-se, no fundo, com a questo de saber porque razo no existe

    10 Cfr. A. Carvalhal Costa e Maria do Rosrio Tavares, Controlo e Avaliao da Gesto Pblica,Editora Rei do Livros, 1996, p. 54, sustentam que os Governos devem informar os cidados sobre autilizao dos meios econmicos que administram, tendo em vista demonstrar que os fundos pblicosesto a ser utlizados para os fins estabelecidos.11 Sobre esta matria pronunciou-se, a ttulo indito, Amilcare Puviani, denominando o comportamentodos Governos perante os seus eleitores de iluso financeira ou iluso fiscal, quando pretendeu que,em perodo eleitoral, os votos os reconduzam ao poder. O autor explicava na sua obra TeoriadellIllusione Finanziare, respondendo questo de saber como pode ser minimizada a resistncia doscontribuintes ao financiamento das aces governamentais?, que tal iluso financeira se fazia sentirtanto do lado das despesas como do lado das receitas oramentais. Para o caso das despesasoramentais, a iluso poder verificar-se, segundo o autor, atravs da verificao das seguintessituaes: a ocultao de montantes de despesas que, por exemplo, embora previstas para um exercciofinanceiro, que no apaream contabilizadas; ocultao de montantes de despesas cujos recursostenham sido cobrados para fim determinado, que acabam por ter um destino diverso, sem que disso sejadado conhecimento comunidade, para evitar a sua oposio. Para o caso das receitas oramentais, ailuso poder ocorrer nos seguintes casos: no publicao ou publicao em termos obscuros eincompletos de dados relativos s entradas pblicas; ocultao do nus das receitas tributadas, emrelao sua origem, o que significa dizer que o cidado no se d conta do facto que est na suaorigem; a cobrana de um imposto num momento particularmente agradvel para o contribuinte(pagamento de imposto sobre sucesses e doaes por ocasio do recebimento de uma herana);cobranas de impostos com fundamento no apelo a sentimentos de solidariedade ou de repulsa dacomunidade por determinada categoria de indivduos; recurso ao pagamento de taxas pela prestao deservios em ocasies determinadas que permitem mascarar o imposto subjacente; aceitao de umsacrifcio que pode consistir na cobrana de um novo tributo para evitar um mal maior, considerando-se, aquele, um mal menor; a cobrana de um imposto, cujos efeitos, porque se fraccionam ou diluem notempo parecem menos gravosos; a translaco do efeito do imposto dificulta a identificao docontribuinte que sobre ele recai. Cfr. Cesare Cosciani, Scienza delle Finanze, Utet-Libreria, 2003,pp.38-40; De acordo com James M. Buchanan, Public Finance in Democratic Process: FiscalInstitutions and Individual Choice, captulo 10, www.econlib.org/library/Buchanan p.p.128 e ss., queretomou a tese da iluso fiscal, o aumento do peso do sector pblico, atravs da minimizao daresistncia por parte do contribuinte/eleitor, d lugar ao resultado global da iluso fiscal. Ver RichardA. e Peggy B. Musgrave, Public Finance in Theory and Practice, fifth edition, Mcgraw-HillInternational Editions, 1989, p.100.Mais recentemente, Paulo Reis Mouro, The Consequences of Fiscal Illusion on Economic Growth,eJournal of Tax Research (2008), Vol.6, n.o 2, pp.82.89, estudando os efeitos da iluso fiscal nocrescimento econmico, concluiu que este fenmeno da iluso fiscal tanto mais acentuado, quantomenos desenvolvidas economicamente so as democracias. O autor sustenta que o combate ilusofiscal ao tornar as finanas pblicas mais transparentes importante para uma mais s organizao dooramento e para o crescimento econmico de um modo geral. Noutro estudo, A Iluso Fiscal e osCiclos Polticos Oramentais - um Estudo com Dados em Painel, 2007, stio:, o autor afirma que, asdemocracias mais jovens ou caracterizadas por nveis mais baixos de desenvolvimento econmico, sodemocracias, na sua generalidade, identificadas com um padro mais acentuado de iluso fiscal,tendendo a apresentar saldos oramentais mais negativos. Alm disso, sustenta ainda que a iluso fiscalafastar uma maior interligao com o ciclo das receitas pblicas em democracias mais amadurecidas,ao passo que ela se evidencia do lado das despesas pblicas, em democracias mais jovens, pelo facto deo eleitorado ser mais permevel aos sinais daqueles que pretendem ser reeleitos, ao promoverem arealizao de mais gastos pblicos.

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    transparncia na gesto financeira pblica, e mais propriamente, porque aumentam a

    carga fiscal e supostamente as despesas pblicas12 sem que aumente, na mesma

    proporo, a satisfao das necessidades pblicas. E, ligada a esta, uma outra dvida

    de saber o que motiva os homens e mulheres eleitos a faltar verdade e s promessas

    feitas durante os actos eleitorais. Mas o desencanto e desiluso apenas comeam aqui,

    pois, ao nvel do papel de controlo sobre as decises financeiras e oramentais, que

    cabe ao rgo parlamentar, muito fica por explicar, uma vez que os seus membros,

    mandatados para defender os interesses dos cidados, em ordem promoo e

    preservao de uma governao transparente13, nem por isso e nem sempre cumprem

    o dever importante que lhes assiste, demitindo-se de questionarem, em tempo

    oportuno, atravs do mecanismo da prestao de contas, o modo como so executadas

    as decises contidas no oramento, enquanto verdadeiras autorizaes concedidas ao

    poder governativo e sua Administrao.

    4. Num tema com a envolvncia do que aqui pretendemos tratar, no se pode

    deixar de lado tambm consideraes de natureza filosfica, ao fazer-se apelo a

    conceitos que deveriam estar inculcados na mentalidade daqueles, que por terem sido

    considerados os mais eslarecidos do ponto de vista econmico e scio-poltico, foram

    eleitos para liderar sobre valores de interesse pblico, mas que nem sempre tais

    conceitos so visveis na sua conduta ou apenas o so cum grano salis.

    5. O compromisso a que nos propusemos, na candidatura ao grau de Doutor em

    Direito levou-nos a escolher como tema de dissertao a transparncia no processo e

    deciso que tm por objecto o Oramento do Estado14, sendo como , este documento

    12 E afirmamos verificar-se supostamente um aumento nas despesas pblicas, para aqueles casos emque elas so oramentadas por determinado valor e/ou no so realizadas ou so realizadas por valorinferior, ficando o remanescente do valor oramentado, a fazer parte de um benefcio individual.13 Cfr. Toby Mendel, Parliament and Acess to Information: Working for Transparent Governance,World Bank Institute, 2004, p.p. 7-8, para quem o Parlamento um actor chave na promoo dagovernao aberta, havendo um nmero de meios atravs dos quais tanto os Parlamentos podem operartransparentemente e os parlamentares podem jogar um papel preponderante no asseguramento daabertura. At porque o Parlamento como se defendeu no encontro entre a Associao Parlamentar daCommonwealth e o Grupo de Estudo do Instituto do Banco Mundial sobre o Acesso Informao,realizado no Ghana em Julho de 2004, o particular papel do Parlamento, no s como rgo queaprova leis, mas tambm em termos de necessidade de ser ele transparente para si prprio, mas de o seupapel em promover uma transparncia mais aberta na sociedade e o seu papel de superviso em relao legislao.14 Esteve na base da deciso sobre este tema, o princpio da transparncia que, um pouco por todo olado, como princpio ou como mera norma de conduta tem sido reclamado, pelo ostracismo a que temsido devotado, e ao qual o Texto Constitucional angolano no atribuiu qualquer relevncia, tendo-o

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    um instrumento fundamental e imprescindvel gesto financeira pblica e que, por

    isso mesmo, tem de ser conduzido pelo Governo e em todos os nveis da sua

    Administrao Pblica, com muita percia, exactido, transparncia, seriedade,

    responsabilidade, um sem nmero de cuidados e requisitos, dado que esto em jogo

    interesses comuns, que s se constituem e so passveis de manter, a partir do

    sacrifcio daqueles que so privados das suas poupanas, com o intuito de servir

    aqueles interesses15. Do mesmo modo que se impe como dever fundamental, o

    pagamento de impostos16, justo que o Estado que os recebe tenha o dever de prestar

    contas do destino que lhes dado17. Tal como afirma Eduardo da Paz Ferreira, se, de

    facto, o Estado tem o dever de exigir dos contribuintes um comportamento correcto e

    de penalizar infraces fiscais, estes tm o direito de exigir do Estado que ponha de p

    mecanismos adequados a controlar a utilizao dos dinheiros pblicos e a actuao

    dos agentes de deciso financeira, bem como a sua efectiva responsabilizao. O

    controlo do cumprimento dos deveres fiscais pelos contribuintes e o controlo da

    utilizao dos dinheiros pblicos so, assim, dois aspectos essenciais para a aferio

    ignorado por completo, principalmente no que toca sua aplicao a matrias de ordem financeira emais especificamente, oramental. Por se vislumbrar que um pouco na esteira da ConstituioPortuguesa foi apresentado sociedade angolana um ante-projecto de Constituio, onde se pretendetornar mais visvel a relao entre os rgos de soberania, numa perspectiva de controlo no domniooramental, e porque, neste domnio, ainda de modo muito tmido ficam por dar largas queleprincpio, como demonstrao da necessidade de a gesto dos recursos pblicos aparecer com maisclareza aos olhos dos cidados, no nos pouparemos a esforos para cumprir a espinhosa, mas nobremisso de reflectir, neste trabalho, as nossas contribuies.15 Vtor Faveiro, O Estatuto do Contribuinte. A Pessoa do Contribuinte no Estado Social de Direito,Coimbra Editora, 2002, p.256 e ss, afirma, ao debruar-se sobre o poder estadual de tributar, serevidente que o fim a razo de ser do Estado a realizao efectiva do objecto, do interesse e dos finsda sociedade que o cria e o mantm; e se em toda a aco do Estado se reconhece uma delimitaonatural do exerccio do poder de criar e de aplicar o Direito a delimitao decorrente dos valores pr-positivos da sociedade tal delimitao tem a maior acuidade e evidncia no campo tributrio pois queo objecto de criao do direito fiscal, como do domnio comum a inter-afectao do interesseindividual e do interesse colectivo, e, portanto, tem como realidade e efeito, a afectao dasdisponibilidades de cada um realizao de todos.16 Cfr. Jos Casalta Nabais, O Dever Fundamental, pp.191 e ss, que a partir da ideia de estado fiscal,que diz caracterizar o tipo de estado dos pases desenvolvidos contemporneos, sustenta ser um estadocujas necessidades financeiras so essencialmente cobertas por impostos. O estado fiscal baseia-se ecaracteriza-se, por isso, no dever fundamental de pagar impostos.17 Cfr. Jos F.F. Tavares, Gesto Pblica, Cidadania e Cultura da Responsabilidade, in tica eAdministrao, cit., AAVV, p.25. A. Carvalhal Costa e Maria do Rosrio Tavares, Avaliao eControlo, cit., p.54. Maria da Conceio da Costa Marques, Prestao de Contas, cit., 37, JosFontes, Controlo Parlamentar da Administrao Pblica. Teoria Geral e Instrumentos deFiscalizao, Coimbra Editora, 2008, pp.38 e ss. Antnio Ribeiro Gameiro, O Controlo Parlamentardas Finanas Pblicas em Portugal (1976-2002), Almedina, 2004, p.p.79-80. Carlos Moreno, SistemaNacional de Controlo, Subsdios para a sua Apreenso Crtica, UAL, 1997, p.81 e Finanas Pblicas,Gesto e Controlo.Gesto Controlo e Auditoria dos Dinheiros Pblicos, UAL, p.p. 255 e ss.

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    da tica financeira pblica e da conformao concreta da actividade pblica com as

    normas do Estado de Direito Democrtico.18

    6. As inmeras questes que nos tm assaltado, ao reflectirmos sobre a razo de

    ser de tanto insucesso na gesto dos recursos pblicos, plasmados no Oramento do

    Estado, que embora escassos, sendo esta condio, uma escassez relativa, uma vez

    que, quando bem geridos conseguem dar frutos positivos e demonstrar queles que

    contribuem, a sua utilidade, foi o guia da investigao que subjaz a esta dissertao.

    Por isso, procurmos envolver-nos em meandros, que embora paream estar um

    pouco dispersos e desviados do objectivo dessa investigao foram teis para

    chegarmos anlise dos aspectos que, mais directamente, a ela se prendem.

    7. Tivemos, por isso, e desde logo que chamar lia, o conceito de Oramento

    do Estado19 e a questo da sua natureza jurdica20, que embora sabendo ns tratarem-

    se de questes j muito debatidas na doutrina e jurisprudncia estrangeiras, no nos

    pareceu ser de todo uma abordagem intil, e apenas foi essa a nossa pretenso,

    questes que demonstram, por um lado, a importncia que este intrumento sempre

    teve ao longo da sua histria e, por outro lado, o cuidado com que devem os poderes

    18 Os Tribunais e o Controlo, cit., p.p.152-153.19 Ver dentre outros, Armindo Monteiro, O OramentoPortugus, Vol.I, 1921, p.169, Antnio Lucianode Sousa Franco, Finanas Pblicas, VolI, cit., p.336, J.J. Teixeira Ribeiro, Lies de FinanasPblicas, 5. edio refundida e actualizada, Coimbra Editora, 1997, p.p.50 e ss, Antnio BrazTeixeira, Finanas Pblicas e Direito Financeiro, AAFDL, 1990, p.p.79 e ss, Juan Martn Queralt,Carmelo Lozano Serrano, Jos M. Tejerizo Lpez e Gabriel Casado Ollevo, Curso de DerechoFinanciero y Tributrio, Tecnos, 15. edio, 2005, p.p. 670 e ss, Fernando Carrera Raya, Manual deDerecho Financiero, Vol. III, Tecnos, 1995, p.p.13 e ss., Sainz de Bujanda, Sistema de DerechoFinanciero, I, Vol.II, Madrid, Facultad de Derecho de la Universidad Complutense, 1985, p.p.412-413Juan Ferreiro Lapatza, Curso de Derecho Financiero Espaol, Vol.I, Marcial Pons, 2000, p.p.289-292J.H. Gildenhuys, Public Financial Management, p.p. 392 e ss, Paul Marie Gaudemet e Joel Molinier,Finances Publiques.Politique Financire, Budget-Trsor, 4. edio, ditions Montchrestien, ISBN:2-7076-0279-5, p.p.250 e ss, Maurice Duverger, Finances Publiques, PUF, p.p.244 e ss , Louis Trottabase Jean-Marie Cotteret, Droit Budgtaire et Comptabilit Publique, 5. edio, Dalloz, p.p.65 e ss.20 Cfr. Paul Laband, Droit de lEmpire Allemand, Tomo II., Paris, V. Giard e E. Brire, 1901, p. 260 ess Armindo Monteiro, O Oramento Portugus, cit., p.p.90 e ss, J.J. Gomes Canotilho, A Lei doOramento, cit., p.p.546 e ss., Antnio Braz Teixeira, Conceito e Natureza Jurdica do Oramento,XXX Aniversrio, Centro de Estudos Fiscais, 1993, p.p.105 e ss., Afonso Vaz, Lei e Reserva de Lei. ACausa da Lei na Constituio Portuguesa de 1976, Teses, Porto, 1996, p.p. 113 e ss, Tiago Duarte, ALei por Detrs do Oramento. A Questo Constitucional da Lei do Oramento, Coleco Teses,Almedina, 2007, pp. 25 e ss e Paul Laband e a Crise Oramental Prussiana, in Estudos Jurdicos eEconmicos em Homenagem ao Prof. Doutor Antnio de Sousa Franco, Vol.III, FDUL, CoimbraEditora, 2006, p.p.1071 e ss.

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    pblicos lidar ainda hoje com o mesmo, cuja importncia no se esfumou no tempo,

    dado que em seu torno se desenrola toda a vida pblica21.

    8. Por isso, numa parte de frica onde se fala Portugus, no quisemos deixar de

    tratar a controvrsia sobre a natureza jurdica do Oramento, que tendo feito correr

    rios de tinta em vrios pases e que embora ultrapassada, enquanto polmica,

    continua, como dissemos, a ser uma referncia no mundo do Direito, tendo, porm,

    conscincia de que por no se tratar de matria fundamental do objecto de estudo

    desta dissertao, no haveria de ter mais desenvolvimentos do que os que se deixam

    registados. J na altura em que se desencadeou aquela polmica, por razes,

    porventura, no tanto de transparncia, mas de absoro de receitas destinadas a fins

    diversos dos pretendidos pela burguesia em ascenso, se colocava um travo ao

    despesismo dos poderes pblicos, criando-se at artifcios pela via jurdico-legal para

    impedir o controlo desse despesismo, quanto mais hoje, atento o aumento das

    despesas pblicas, que aparecem diludas com as que no o so22, com mais acuidade

    se haver de colocar a transparncia na gesto dos dinheiros pblicos, que arranca e

    ganha tnus carismtico no processo oramental23.

    9. Estamos ainda a referir-nos problemtica que envolve as entidades que

    configuram a fuga do Estado para o direito privado24, de que exemplar o caso das

    21 Embora a actividade financeira do sector pblico, que em relao s suas demais actividades,apresenta um carcter instrumental, no se esgote no oramento, este , sem dvida, a base para atomada da deciso financeira. Cfr. Juan Ferreiro Lapatza, Curso de Derecho Financiero, cit., p.289:todo o procedimento financeiro pode, portanto, descrever-se como um desenvolvimento do plano que,anualmente, serve de base tomada de decises financeiras. O uso do plano comum a todas asunidades de deciso econmica. As finanas pblicas denominam por oramento, o plano econmicodo grupo poltico.22 Ainda em aluso teoria da iluso financeira de Amilcare Puviani.23 Segundo Juan Mozzicafreddo, A Responsabilidade e a Cidadania na Administrao Pblica, in ticae Administrao, AAVV, Celta, 2003, p.6, a confiana nas polticas pblicas passa, necessariamente,pelo crivo da prestao de contas e da transparncia na utilizao dos recursos pblicos, mas deveassegurar, igualmente, a equidade das polticas e da utilizao dos recursos colectivos e aresponsabilidade dos actos da Administrao e do Governo.24 Expresso de um autor alemo, Fritz Fleiner, citado por Maria Joo Estorninho, na sua tese dedoutoramento, que tem por ttulo, A Fuga para o Direito Privado, Contributo para o Estudo daActividade de Direito Privado da Administrao Pblica. Na opinio da autora, p.68, ao longo dostempos, a Administrao Pblica acabou muitas vezes por passar de uma fuga que se poderia dizerquase inocente a uma fuga consciente e perversa para o direito privado. Para compreender exactamenteeste fenmeno, preciso lembrar que, tradicionalmente, quando o direito administrativo no espelhavao Estado de Direito e no possua verdadeiras formas jurisdicionais de proteco, a utilizao doDireito Privado pela Administrao Pblica era favorvel ao cidado; hoje, pelo contrrio, existe esseperigo de a Administrao, atravs de uma fuga para o Direito Privado, se libertar das suasvinculaes jurdico-pblicas. Ver Fernando Silveiro Xarepe, O Tribunal de Contas, as Sociedades

  • 14

    empresas pblicas, que se encontram a coberto do conceito da desoramentao, e

    que por opo do legislador constituinte angolano, no esto sujeitas a controlo

    poltico, ainda que formalmente sujeitas a um controlo tcnico externo, se tem feito

    sentir muito tenuemente ou de forma quase nula. Podemos tambm referir o caso da

    problemtica em torno do oramento angolano, ser um oramento programa25, como

    tem vindo a ser considerado pelo rgo que coordena as finanas pblicas no pas.

    Pretendemos ir mais ao fundo da questo, para chegarmos a uma concluso que j

    tnhamos alcanado e demonstrado noutro lugar, mas que carecia de melhor

    fundamentao e por isso fizemos, com mais detalhe nesta dissertao, ultrapassando,

    assim, a simples constatao, pela negativa26.

    10. Julgmos tambm, que no devamos deixar de reservar um espao para, em

    traos largos, passe o termo, contar, a histria ligada aos primrdios do oramento

    angolano27 e a sua evoluo at actualidade, j que, pela primeira vez, se elabora um

    estudo jurdico que tem por objecto alinhar contribuies para a transparncia do

    processo que se desenrola sua volta. O facto de termos considerado como relevante

    laborar em redor do oramento angolano, no nos impediu que buscssemos na

    doutrina e em alguma jurisprudncia estrangeira, o suporte necessrio para

    prosseguirmos na nossa anlise, antes pelo contrrio, j que em matria de doutrina ou

    Comerciais e os Dinheiros Pblicos. Contributo para o Estudo da Actividade de Controlo Financeiro,Coimbra Editora, 2003, p.p. 56-60 e 73-78.25 Sobre o oramento por programas que corresponde aproximadamente ao que em ingls se denominapor PPBS, ver Allen Schick, The Road to PPB: the Stages of Budget Reform, in Planning,Programming, Budgeting: a System Approach to Management, edited by Fremont J. Lyden & ErnestG. Miller, second edition, Markham Publishing Company, Chicago, 1972, p.16 e ss. Robert D. Lee, Jr.e Ronald W. Johnson, Public Budgeting Systems, The Pensylvania State University, University ParkPress, Baltimore, London, Tokyo, 1973, p.116 e ss. Arthur Smithies, Conceptual Framework for theProgram Budget, in Program Budgeting. Program Analysis and the Federal Budget, David Novick,Editor, Harvard University Press, Cambridge, Massachusetts, 1965, 1967, p.24 e ss. Fernando Rezende,Finanas Pblicas, Atlas, p.p.101 e ss., Nazar da Costa Cabral, Programao e Deciso Oramental.Da Racionalidade das Decises Oramentais Racionalidade Econmica, Teses, Almedina, 2007, p.p.379 e ss.26 Como se ter a oportunidade de ver, mais adiante, o oramento por programas obedece a regras,metodologias, tcnicas e procedimentos, que vo para alm da simples classificao das despesas porprogramas. Assim, Fernando Rezende, Finanas Pblicas, cit., pp. 103 e ss, Lus Cabral deMoncada, Perspectivas do Novo Direito Oramental Portugus, Coimbra Editora, Lda, 1984, p. 33,Nazar da Costa Cabral, Programao e Deciso Oramental, cit., pp. 379 e ss., AAVV,Management Policies in Local Government Finance, Municipal Management Series, Editors J.RichardAronson and Eli Schwartz, Washington, DC., p.p. 153-155.27 A histria do oramento angolano serve tambm para avaliar o grau de integridade que foi sendoaplicado gesto dos recursos pblicos, em cada poca, pretendendo-se, assim, trazer a lume umaamostragem de um tipo de deciso financeira, a deciso oramental, que foi recaindo em cada perodo,tendo sob a mira a bitola da transparncia.

  • 15

    mesmo jurisprudncia nacional, pouco se encontrou que respondesse s exigncias e

    imposies de um trabalho desta natureza28.

    11. Pareceu-nos que todas as falhas ou incongruncias que vo caracterizando a

    actuao dos gestores financeiros pblicos, no s em Angola, como em pases que

    em termos de desenvolvimento se lhe assemelham, sendo umas e outras extensivas a

    pases desenvolvidos e em transio, se ficam a dever falta de rigor na definio e na

    execuo dos procedimentos de gesto e de controlo que sempre se impem, para se

    evitar condutas irregulares e at ilcitas, que desviam a rota dos dinheiros pblicos

    para fins diferentes e quantas vezes obscuros e imprprios, em prejuzo do bem

    comum.

    12. A transparncia29 e responsabilizao pelos resultados (accountability30) e o

    combate ao crime e corrupo deixaram de ser problemas domsticos para passarem

    a ser assuntos de interesse para o desenvolvimento internacional e regional31. O

    mundo global sente que extravasou em determinados aspectos mais do que seria

    desejvel, mas os passos que foram dados e os caminhos percorridos no tm retorno,

    havendo que conviver com os malefcios da chamada civilizao, da era da

    28 A juventude de algumas instituies angolanas, aliada pouca sensibilidade dos seus agentes para asquestes de ndole financeira e ainda a uma certa inrcia ou at mesmo averso ao seu estudo e anlise,tm ditado a exgua produo de trabalhos doutrinrios e de acrdos jurisprudenciais, que se saiba,publicados.29 O conceito de transparncia foi definido, em 1998, pelo Grupo de Trabalho sobre Transparncia eResponsabilizao pelos Resultados (Accountability), do Grupo dos 22 como: um processo atravsdo qual a informao sobre as condies existentes, decises e aces se torna acessvel, visvel eperceptvel. Para Ann Florini, Does the Invisible Hand Need a Transparent Glove? The Politics ofTransparence, Paper prepared for the Annual World Bank Conference on Development Economics,Washington, D.C., Abril, 1999, p.5, o conceito de transparncia pode ser definido como a divulgaode informao pelas instituies que relevante para a avaliao dessas instituies. Considera que oconceito de transparncia est intimamente ligado ao conceiro de accountability e que existe umadimenso moral nos apelos que se fazem transparncia, pois os cidados tm o direito de conhecer aperformance econmica do seu Governo, assim como os consumidores e os investidores tm odireito a ser informados sobre os produtos que consomem e as companhias em que investem,respectivamente.30 Juan Mozzicafreddo, A Responsabilidade e a Cidadania na Administrao Pblica, in tica eAdministrao, AAVV, Celta, 2003, pp.2 e ss, sustenta que a accountability, enquanto obrigao deprestar contas pelos resultados, foi sendo transposta s entidades pblicas como instrumento docontrolo financeiro, tanto do ponto de vista do oramento dos programas e medidas implementadas,como em torno da relao custos/benefcio, ou seja, critrios orientados pelos indicadores da eficinciae de controlo oramental. Alm disso, afirma ainda que a accountability tem um forte potencial nareforma da Administrao Pblica, nomeadamente no que se refere nfase posta na tcnica decontrolo de abusos oramentais na segurana relativa utilizao dos recursos pblicos, bem como noprocesso de aprendizagem no controlo dos custos e na gesto da qualidade dos resultados.31 Ann Florini, Does the Invisible Hand, cit., p.4, sustenta que os apelos transparncia tmaumentado consideravelmente, em grande parte, por causa da globalizao.

  • 16

    robtica, das tecnologias de informao e tantas outras inovaes que, ao facilitarem a

    vida a uns, tornaram-se focos preferenciais de apetites virulentos por outros,

    colocando grilhetas cada vez mais fortes nos ps e mos dos mais desfavorecidos.

    13. Domnio particularmente vulnervel ao exerccio de prticas nem sempre

    detectveis vista desarmada o processo oramental, nas suas vrias etapas ou

    fases, onde com principal incidncia para a fase de execuo, que nem sempre ou nem

    por isso se denuncia, se vo colocando algumas reticncias. Tal situao, contudo, s

    se torna possvel quando, por um lado, exista um imbricamento entre aquelas vrias

    etapas e, por outro, quando a fase do controlo exercida levando em linha de conta

    todo o seu potencial de rigor investigativo e de prognose, da resultando verdadeiros

    ancoradouros de acesso responsabilizao dos agentes que extrapolam posies,

    desviando-se dos objectivos do mandato que lhes conferido.

    14. usual e frequente na relao que se estabelece entre o cidado e a

    Administrao Pblica, aqui compreendida, naturalmente, a Administrao financeira,

    ser aquele tratado como se estivesse despido de quaisquer direitos32, e havendo que

    agir ao sabor de uma discricionariedade que toca as raias da arbitrariedade, como se

    esta Administrao estivesse dotada de um poder que se alheia a tudo e de todos33, at

    mesmo da prpria lei34, sendo certo, porm, que em tratando-se de sujeitos de uma

    mesma relao jurdica (administrativa), em ambos os lados dessa relao aparecem

    dotados de direitos e deveres. Como afirma Pedro Machete, no mbito da actividade

    administrativa, incluindo a de execuo, os particulares no so meros objectos da

    actuao de um poder que prossegue fins prprios, mas, tal como a prpria

    Administrao, so sujeitos de direitos e de deveres35. Ainda que se entenda que a

    32 Assim, Marco Aurlio Borges de Paula, O Estado dos Cidados, stio na Internet: Jus Navigandi,Maro de 2003, p. 1.33 Cfr. A. Carvalhal Costa e Maria do Rosrio Tavares, Controlo e Avaliao, p. 20.34 Em sentido contrrio, defende Maria Joo Estorninho, A Fuga do Estado, cit., p.176, que oprincpio da legalidade agora, no apenas um limite da aco administrativa, mas tambm o seuverdadeiro fundamento, s podendo a Administrao Pblica agir se e na medida em que a normajurdica lhe permitir. Mais adiante, p.181, lembra que as tarefas da Administrao de prestaoimplicam necessariamente a utilizao de dinheiros pblicos, sados do Oramento do Estado, os quaispressupem a existncia de receitas pblicas. Ora as receitas pblicas so normalmente obtidas atravsde sacrifcios econmicos dos cidados, que lhes podem inclusivamente ser impostos coactivamente.Isto explica que, para que a Administrao Pblica possa actuar e fazer despesas, seja necessrio quetal lhe seja permitido, no s por lei administrativa, mas tambm por uma lei financeira.35 Cfr. Pedro Machete, Estado de Direito Democrtico e Administrao Paritria, Coleco Teses,Almedina, 2007, p.57.

  • 17

    Administrao Pblica possua certas especificidades, donde desde logo se destaca a

    sua sujeio ao poder poltico, nada faz pressupor, que no mundo moderno de hoje,

    ainda no tenha ultrapassado a falta de mobilidade oriunda de uma tradio de agentes

    e de prticas que permanecem de costas viradas para os seus utentes e perante quem

    demonstra uma certa irresponsabilidade36. J era tempo de haver sido mudada essa

    atitude, colocando o cidado no centro das preocupaes administrativas, substituindo

    a gesto pelos recursos, incidente nos inputs, pela gesto em funo dos resultados ou

    nos outputs, com vista a manter com os cidados uma boa relao e j no uma

    relao de permanente agresso em que predomina a ideia do favor (mesmo quando se

    pagam os servios)37.

    15. Em frica, a guerra tem sido um bom pretexto e um adubo eficaz para fazer

    florescer a corrupo. O Estado, quando no devia, fechou os olhos ao seu

    desenvolvimento, mas, para moralizar a sociedade e corrigir as prticas criminosas

    que j se acham instaladas e institucionalizadas, vai assumindo compromissos ao

    nvel internacional e regional38. A frica Austral, por exemplo, no poder postar-se

    como um bloco regional de peso, acreditado e respeitado no mundo, se os seus Estado

    membros continuarem a aceitar a corrupo como a chave de acesso ao jardim

    proibido, isto , ao desenvolvimento, posto que, para l chegarem, necessitam de

    fazer inmeros sacrifcios, investir em vrios domnios e dispender muito trabalho,

    para alm de tudo mudarem as mentalidades, apostando num sentido franco e aberto

    num ensino e numa educao de qualidade para todos, como prioridade, nas polticas

    36 Juan Mozzicafreddo, A Responsabilidade, cit., p.6, defende que, o respeito pelos preceitos legais,o controlo das contas e a gesto eficiente dos actos e das medidas administrativas, essenciais a umaAdministrao racional e transparente, no podem anular ou negligenciar a legitimidade das polticas eda utilizao dos recursos colectivos: a responsabilidade significa que o poder, e portanto, a autoridadeadministrativa, deve justificar-se perante os cidados.37 Cfr. A. Carvalhal Costa e Maria do Rosrio Tavares, Controlo e Avaliao da Gesto Pblica, p.19.Os autores, a pp.20-21, definem a Administrao Pblica que no actua na ptica da prestao deservios, apontando para a satisfao dos utentes, centrando-se ao invs em preocupaes prprias queignoram a lgica do servio pblico, como uma Administrao que funciona segundo uma lgicaautista. Defendem por isso que a transparncia e a responsabilidade dos actos da AdministraoPblica, a simplificao dos circuitos burocrticos e uma mais ampla publicitao dos actos eprocedimentos administrativos so instrumentos profilticos do fenmeno da corrupo, na medida emque contribuem para a interveno esclarecida dos cidados.38 Testemunho disso a adopo por vrios Estados africanos, da Conveno das Naes UnidasContra a Corrupo, de 31 de Outubro de 2003, da Conveno da Unio Africana sobre a Preveno e aLuta contra a Corrupo, de 12 de Julho de 2003, do Protocolo da SADC contra a Corrupo, de 14 deAgosto de 2001, da Carta Africana sobre a Democracia, as Eleies e a Governao, em 30 de Janeirode 2007.

  • 18

    pblicas, para que se atinjam maiores e melhores ndices de populaes esclarecidas,

    quanto aos seus interesses e preferncias.

    16. Enquanto os Estados africanos ficaram a dormir sombra da criao de elites

    polticas e financeiras, o crime procurou acomodar-se sua letargia, no sendo hoje

    apenas a pequena criminalidade que preocupa, mas a criminalidade organizada, a que

    pertence o trfico de drogas e outras formas de trfico ilcito com tendncia para o

    surgimento de criminalidade organizada, onde a corrupo tem um amplo espao de

    actuao39.

    17. preciso, antes de tudo, que os africanos compreendam a teia em que esto

    enredados, pela letargia de vontades polticas que procuraram manter-se indemnes a

    crticas, mas que, feitas as contas, vm acabando por reconhecer, pelo menos ao nvel

    regional e internacional, que j no tanto ao nvel nacional40, os malefcios que tm

    sido criados no s para as geraes presentes, como e ainda a subjugao a que j

    submeteram as geraes vindouras41, contra todos os alertas que geraes e geraes

    de cientistas dos fenmenos sociais e econmicos vm sucessivamente fazendo.

    18. Assim sendo, e na busca dos fundamentos da transparncia na gesto dos

    dinheiros pblicos, concentrados no produto da deciso oramental, o oramento,

    propusemo-nos em descortinar a relao entre este vector e a corrupo, partindo das

    39 Ver, Rose Ackermann, Corrupo e Governo, Prefcio, 2002, p.p. 44 e ss.40 Por vezes internamente, quando muito aceita-se adoptar princpios ao nvel do ordenamento jurdico,mas a sua aplicao fica a fazer parte de uma vacatio legis intemporal.41 Ver Eduardo Paz Ferreira, Da Dvida Pblica e as Garantias dos Credores do Estado, ColecoTeses, Almedina, 1995, pp.69 e ss., que nesta obra define o conceito de gerao presente e de geraofutura, quando se refere ao conflito intergeracional, a partir da anlise feita por diversos autores.Considera tratar-se de gerao presente a totalidade dos indivduos que directamente ou porintermdio dos seus representantes participam na deciso financeira, e por geraes futuras, todas asrestantes, que integrem indivduos j nascidos mas que ainda no tm idade para participar na deciso,quer aqueles que ainda no existem. Relativamente ao conflito de interesses entre geraes, o autordebrua-se sobre as trs principais correntes de opinio: a que sustenta deverem ser apenas transmitidasinstituies justas e que funcionem, uma outra que defende dever a gerao actual transmitir s futurasgeraes exactamente aquilo que tiver recebido das geraes precedentes e a ltima, sustentando queexistir a obrigao de a gerao presente acrescer ao que recebeu de modo a transmitir uma heranacomplexiva superior s geraes sucessivas. Do nosso ponto de vista, quaisquer que sejam as posiesassumidas com relao a esta questo, uma coisa facto, ainda que no se conheam as preferncias ouos interesses das geraes futuras, no existe nada que justifique que a gerao presente, mesmodesfrutando do que construa para si, delapide e destrua valores e patrimnio, deixando cacos quelasgeraes. Ver ainda, Richard A. e Peggy B. Musgrave, Public Finance,cit., p.p.552 e ss; David N.Hayman, Public Finance, a Contemporary Application of the Theory to Policy, seventh edition,Thomson, South Western, 2002, p.480.

  • 19

    ideias gerais que assistem a um e a outra, para melhor compreendermos a sua gnese e

    desenvolvimento, de modo a centrarmo-nos nos mecanismos do seu funcionamento,

    no domnio oramental. Por isso no descurmos os exemplos que nos so dados em

    alguns pases africanos que, pelo menos do ponto de vista legislativo, tm procurado

    firmar-se em princpios e regras que aliceram e caracterizam o Estado democrtico e

    de direito, dentre os quais se destacam a transparncia na gesto (financeira e

    oramental) pblica, a representatividade efectiva e a participao dos cidados42.

    Como tambm no deixmos de analisar certa doutrina que defende ser a falta de

    transparncia uma razo para o aumento da corrupo, na medida em que cria

    assimetrias entre os reguladores e os regulados43.

    19. Com o que ficar dito ao longo desta dissertao, procuraremos, sem qualquer

    pretensiosismo, trazer literatura jurdica em lngua portuguesa um tema que tem sido

    objecto de amplo debate na actualidade, pelas consequncias ruinosas que a conduta

    de dirigentes, altos funcionrios, funcionrios intermdios e outros gestores do errio

    pblico, a este tm causado, um pouco por todo o mundo, desenvolvido ou no.

    20. Para cumprirmos os nossos intentos, dividimos o nosso trabalho em trs

    partes. A Parte I, que designmos por generalidades do Oramento do Estado, acha-

    se dividida em trs captulos. No captulo I, trazemos ribalta a evoluo do

    instrumento oramental, do ponto de vista da sua etimologia, sua gnese histrica,

    passando pela polmica da sua natureza jurdica, concepo contempornea em alguns

    ordenamentos jurdicos e suas funes. No captulo II, que tem por ttulo, trajectria

    do Oramento do Estado angolano, antes e depois da independncia, fazemos uma

    recenso histrica do oramento angolano, desde o perodo da colonizao portuguesa

    at actualidade, dando especial destaque, e sempre que possvel, a aspectos de

    natureza normativa, cuja avaliao crtica permitir que enveredemos pela questo

    polmica de saber que tipo de oramento o oramento angolano, do ponto de vista

    da sua classificao em funo da deciso por que se orienta. No captulo III,

    intitulado Oramento do Estado e outros instrumentos correlacionados,

    42 Ver Tara Vishwanath e Daniel Kaufmann, Towards Transparency in Finance and Governance, TheWorld Bank, Setembro, 1999; Elizabeth Garrett e Adrian Vermeule, Transparency in the BudgetProcess, University of Southern California Legal Studies, Working Paper, n.6, 2006; Alta Flscher,Warren Krafchick e Isaac Shapiro, Transparency and Participation in the Budget Process, IDASA,Dezembro, 2000; Ann Florini, Does the Invisible Hand, cit., p.p.28 e ss.43 Cfr. Tara Vishwanath e Daniel Kaufmann, Towards Transparency, cit., p. 17.

  • 20

    estabelecemos a relao que o Oramento do Estado mantm com a lei do

    enquadramento (quadro) oramental, o plano, o oramento da Segurana Social (cuja

    incipincia em Angola notria e ao qual no dado a importncia e o alcance que

    noutros ordenamentos jurdicos lhe conferido) e o oramento de um ente, que goza

    de autonomia financeira: a empresa pblica, comeando por traar-se os contornos

    com que o seu conceito surge em Angola, para depois ser apresentada, seguindo a

    doutrina maioritria, como um caso tpico de desoramentao.

    A Parte II, designada por requisitos dos poderes oramentais, visando uma

    gesto trasparente, tem dois captulos. No captulo I, que intitulmos por o processo

    oramental em torno da transparncia cuida-se da relao que se estabelece entre o

    poder parlamentar e o poder executivo, no domnio do processo oramental, tentando-

    se buscar nessa relao o ponto de encontro a que deveria ser subjacente o resultado

    transparente desse complexo processo, abordando matrias como a provvel

    vinculao da Administrao Pblica aos ditames do oramento estadual aprovado e

    ainda o poder de emenda parlamentar, por ocasio da apreciao da proposta

    oramental, tendo-se recorrido ao formalismo constitucional e legal no seu tratamento

    de alguns pases africanos. No captulo II, e ainda em ordem a procurar contribuies

    para a transparncia no processo oramental, que designmos por princpios e regras

    subjacentes aos poderes oramentais, no qual analisaremos duas tendncias actuais

    de gerir o errio pblico: a desoramentao e a consolidao oramentais. No

    poderemos, nesta sede, deixar de analisar o antigo e sempre actual princpio do

    equilbrio oramental e bem assim o princpio da estabilidade oramental, que se tem

    colocado como um expoente a que, cada vez mais, se tem recorrido, em face do

    crescente aumento das despesas pblicas. Pelo facto de ter sido dado pela

    Comunidade Europeia um passo muito notrio, no mbito do gradual processo de

    integrao dos seus Estado membros, com a celebrao do Pacto de Estabilidade e

    Crescimento, cujo modelo tem servido de exemplo a experincias de integrao de

    Estados africanos, propusemo-nos reflectir, neste trabalho, as experincias de trs

    organizaes regionais africanas: a UEMOA, a CEMAC e a SADC, com o propsito

    de analisar a avaliar o seu estado, do ponto de vista da poltica e deciso oramentais,

    em busca do impacto que o princpio da transparncia exerce sobre estes dois

    vectores, nestas experincias regionais.

    Na Parte III, que designamos por oramento e transparncia, dividida em

    trs captulos, em cujo captulo I, intitulado contribuies para a transparncia

  • 21

    oramental, comearemos por avaliar o conceito geral de transparncia, ensaiando a

    sua definio, para em seguida e em torno dele avocarmos conceitos, tais como, a boa

    governana e a corrupo e procedermos anlise da transparncia em face de valores

    que se institucionalizam e so defendidos em democracia, como o caso da abertura

    da conduta e procedimentos institucionais, por parte dos decisores polticos e bem

    assim das administraes pblicas, com vista ao fornecimento de mais informao aos

    utentes dos seus servios, de modo a que estes conheam, com mais certeza, quais os

    limites legais que se lhes impem, mas tambm quais os limites de actuao daqueles

    poderes pblicos. Destaca-se o papel que deve ser conferido aos rgos de informao

    na transmisso e esclarecimentos que prestam aos cidados. Finalmente, trataremos da

    transparncia aplicada ao processo oramental socorrendo-nos dos esforos que tm

    sido desenvolvidos por alguns pases africanos, nesse particular aspecto. No captulo

    II, dedicado ao fenmeno da corrupo, fenmeno que se vale da opacidade para

    singrar e evoluir na sinuosidade dos seus caminhos, tratamos da sua noo,

    recorrendo, alm das contribuies que tm sido dadas pela doutrina, formulao de

    que tem sido objecto este fenmeno, quer em convenes e tratados de valor

    internacional, quer em documentos de eficcia meramente regional. Mas, tambm,

    preocupar-nos-emos com as suas causas e consequncias. Em virtude de o Oramento

    do Estado estar no centro desta dissertao, e porque a corrupo que ocorre durante o

    processo oramental, deve ser avaliado, por ocasio da apresentao das contas

    pblicas, no quisemos deixar de analisar os efeitos que ela produz nessas contas.

    Voltando a nossa ateno para o continente africano, rico em matrias-primas e pobre,

    no verdadeiro sentido da palavra, em face da misria e atraso cultural em que se

    encontram as populaes que o povoam, ao sabermos que a corrupo aproveita o

    estado de misria dessas populaes, para se acomodar e desenvolver o seu voraz

    apetite, dedicaremos, ao encontro destes dois fenmenos, uma ateno especial. O

    captulo III, dividido em duas partes, comea por lanar um golpe de vista ao modo

    como, institucionalmente, so geridas as finanas pblicas angolanas, e onde se

    procura apontar algumas insuficincias, em termos organizacionais, que se opem ao

    funcionamento, mais eficaz e eficiente, das instituies. Na segunda parte, atrevemo-

    nos a sugerir que alguns dispositivos legais, em vigor em Angola, possam ser

    reformulados com o intuito de tornarem a deciso oramental pblica mais

    transparente.

  • 22

  • 23

    Parte I

    Generalidades do Oramento Geral do Estado44

    Captulo I Origens e Evoluo do Conceito Oramento do Estado

    1. O Conceito de Oramento do Estado Observado, de um Ponto

    de Vista Terminolgico

    O Oramento do Estado, tratando-se de instituto surgido com o Estado

    constitucional45, tem sido desde a sua origem objecto de vrios entendimentos, tanto

    quando observado, do ponto de vista da lei ordinria, como da jurisprudncia ou da

    44 A expresso Oramento Geral do Estado deve-se ao entendimento de ser o oramento o institutoonde se devem concentrar todas as receitas e despesas do Estado, ela data do perodo em que vigorou oEstado Novo, s que durante esse perodo, o oramento apenas se referia Administrao directa doEstado, deixando de fora, quer o Oramento da Segurana Social, quer os oramentos dos fundos eservios autnomos. Cfr. Jorge Costa Santos (coord.), Reforma da Lei do Enquadramento Oramental,Trabalhos Preparatrios e Anteprojecto, Lisboa, 1998, p.92. Doravante, e ao longo de toda estadissertao, quando se referir a expresso Oramento do Estado, sentido mais moderno e usual dainstituio oramental ser usada em sinonmia, significando o instituto que integra todas as receitas edespesas do Estado, competentemente autorizadas. Em Angola, ainda se adopta aquela terminologiacom um alcance muito prximo do que a instituio oramental tinha durante o Estado Novo, pois nooramento angolano no se contempla o Oramento da Segurana Social, nem como oramentosautnomos, os dos fundos e servios autnomos. As estatsticas que aparecem publicadas peloMinistrio das Finanas angolano, referentes ao Oramento Geral do Estado integram o Governocentral e os Governos locais (Governos provinciais e administraes municipais) e as transacesdestes com outros subsectores do sector pblico. Cfr. Boletim de Estatsticas do OGE, 2006, Gabinetede Estudos e Relaes Internacionais, Ministrio das Finanas, Luanda, Novembro de 2007, p.6.45 Cfr. Miguel ngel Martnez Lago e Leonardo Garcia de la Mora, Lecciones de Derecho Financiero yTributrio, Instel, 1. edio, 2004, p.172. que afirmam: el pressupuesto en su sentido actual, no surgehasta el siglo XIX, como creacin del Estado constitucional, en el que se consagra la divisin depoderes y se concibe esta institucin como expressin del poder de gastar y por esto mismo, comoautorizacin del legislativo al ejecutivo para que este pueda gastar. Perfecto Yebra e outros, Manualde Derecho Pressupuesturio, Comares Editorial, 2001, p.13, afirmam que Es a raiz del auge delconstitucionalismo, afincado sobre la separacin de poderes, cuando el Pressupuesto va a assumir elsignificado poltico. Tambm Fernando Prez Royo, Derecho Financiero y Tributrio, 14. edio,Thomson, Civitas, p.421, pronunciando-se a propsito de o oramento dever ser considerado uminstrumento de controlo da aco do executivo, admite que neste sentido podemos dizer que oconceito da instituio est ligado ao nascimento e desenvolvimento das formas democrticas deGoverno, ao Estado constitucional, o qual, em todas as suas formas, includas as mais imperfeitas ouembrionrias, inclui a prerrogativa do legislativo de aprovar o oramento (traduo nossa). Cfr. aindaa Gustavo Ingrosso, Instituzioni di Diritto Finanziario, Vol. I, Dott. Eugnio Jovene-Editore, Napoli,1935-XIII, p.p.24-25; Sainz de Bujanda, Sistema de Derecho Financiero, I, Vol.II, Madrid, Facultad deDerecho de la Universidad Complutense, 1985, p.413, Jorge Miranda, Manual de DireitoConstitucional, Tomo I, 6. edio, Coimbra Editora, pp. 83 e ss., A.L. Sousa Franco, FinanasPblicas, Vol. I e II, cit., pp. 341-342, J.J. Gomes Canotilho, A Lei do Oramento, cit., p.p. 543 ess. A. Lobo Xavier, O Oramento como Lei, Contributo para a Compreenso de AlgumasEspecificidades do Direito Oramental Portugus, Coimbra, 1990, p.13 e ss..

  • 24

    doutrina. Assiste-se a tal diversidade de entendimentos no apenas a todos aqueles

    nveis, mas ainda ao nvel dos textos constitucionais de cada pas, j que nestes que

    se consagra a fonte do desenvolvimento da actuao dos vrios poderes no domnio

    financeiro, e mais propriamente no domnio oramental.

    Assumindo-se, na actualidade, como instituio em que se traduz a actividade

    financeira dos poderes pblicos, o oramento no pode deixar de estar plasmado na lei

    fundamental de cada pas, embora, nem sempre o legislador constituinte opte por

    explicitar aspectos que so considerados basilares para a compreenso e extenso do

    conceito, chegando-se mesmo, em alguns casos a remeter para o legislador ordinrio a

    tarefa de traar e delinear certas traves mestras de orientao que aparecem omissas

    naquela lei fundamental.

    A opo em consagrar o oramento, como quer que seja, em termos da sua

    extenso conteudstica, no o torna uma instituio que deva ser sentida, pensada e

    integrada no domnio do Direito constitucional46, devendo apenas ser consentido que

    esta instituio, ao ter consagrao constitucional, tal ter ficado a dever-se a que ela,

    na sua origem, foi objecto de fortes contestaes polticas entre rgos do Estado

    (Coroa e Parlamento), que pugnavam, no perodo oitocentista, pela supremacia em

    relao ao poder poltico, sendo, ento, j to certo que a tomada de decises

    financeiras, pela importncia e peso que representam em qualquer deciso poltica,

    teria de estar no cerne de uma parte considervel desses movimentos de querela pela

    deteno do poder poltico47.

    Um trao caracterstico, que nos textos constitucionais de vrios pases, o

    oramento aparece como um instrumento revelador da actividade financeira do

    Estado-Administrao, mas encontrando-se esta dependente da aprovao por um

    lado, e autorizao48, por outro, do Estado-Legislador parlamentar, o que permite

    visualizar que lhe est subjacente um processo prprio, que permite o envolvimento (e

    46 Cfr. Sainz de Bujanda, Sistema de Derecho Financiero, cit., p. 413.47 Cfr. Dietrich Jesch, Ley y Administracin. Estudio de la Evolution del Principio de Legalidade,Instituto Estudios Administrativos, Madrid, p.p.27-29.48 A doutrina italiana dividiu-se quanto interpretao do n.3 do artigo 81. da Constituio italiana,pelo facto de neste ser utilizada a expresso lei de aprovao do Oramento, tendo surgido tesessobre ser a Lei do Oramento uma lei de aprovao e teses sobre ser esta uma lei de autorizao. Aprimeira assentava na diferenciao entre a Lei do Oramento com ocntedo legislativo, do oramentopropriamente dito, que seria ento um acto material e formalmente administrativo. A segunda encaravaa Lei do Oramento como uma autorizao para a cobrana de receitas e despesas, nela noidentificando qualquer diferenciao entre a lei e o oramento propriamente dito. Ver Tiago Duarte, ALei por Detrs do Oramento, cit., nota 583, p.p.300-301, indica extensa bibliografia italiana sobre amatria.

  • 25

    no a sobreposio) daquelas duas facetas de um mesmo Estado e sem o qual no

    seria possvel, num tempo como o que vivemos49, cumprir alguns dos desgnios em

    que assenta a razo de ser do Estado: a satisfao das necessidades e respeito pelas

    preferncias dos seus concidados, numa atmosfera que nem sempre favorvel, em

    face da escassez de recursos de que dispe.

    O conceito em portugus de oramento, que se traduz em ingls por budget,

    em francs por budget, em alemo por hausaltsplan, em espanhol por pressupuesto, e

    em italiano por bilancio50, tem o significado comum de previso de receitas e

    despesas definida objectivamente (oramento de programa, projecto ou plano, por

    exemplo) ou subjectivamente (oramento desta ou daquela entidade, maxime pblica),

    para um determinado perodo.51.

    Mas esta uma de vrias acepes da palavra oramento, pois o Dicionrio da

    Real Academia Espanhola define-a como o cmputo antecipado do custo de uma

    obra ou dos gastos e rendas de uma companhia52. Segundo ainda a Real Academia

    49 Ficou para trs o tempo em que o Parlamento detinha a primazia em matria legislativa, em face doscomplexos problemas que a sociedade passou a apresentar nos domnios econmico e social.

    Se num tempo em que a predominncia parlamentar se justificava, como forma de defesa dos direitossubjectivos (propriedade e liberdade), permanentemente ameaados pelo monarca e seu executivo(monarquia absolutista), o que deixava antever uma certa homogeneidade do tecido social de ento, osdiversos factores que esto na origem e que acompanharam as mudanas numa sociedade cada vezmais complexa e em permanente estado de conflito, tendo em linha de conta a heterogeneidade deinteresses protagonizados pelas mais diversas cores de poltica partidria, que no esto capazes detraduzir na sua plenitude os interesses da sociedade civil, e que est longe de a eles se confinar, ou comeles se conformar, aliados ao facto de a deciso poltica, apoiada no sufrgio universal ter sidoultrapassada por uma complexidade de matrias a que o Estado tem de fazer frente, contriburam paraque, em consequncia, ficasse diminudo o papel da representao parlamentar.

    que ao cidado eleitor colocam-se j problemas, ao nvel da legislao, que visa regular eregulamentar os interesses da sociedade a que ele pertence, na medida em que se sente incapaz departicipar na deciso sobre matrias que fogem ao conhecimento comum.

    Tais interferncias e condicionalismos justificam a repartio de competncias entre o Parlamento e orgo executivo, ainda que este apresente uma margem de manobra limitada, pela figura da autorizaoparlamentar normativa, conseguindo-se, assim, conciliar duas linhas de fora divergentes, uma dedireito positivo, apontando para a parlamentarizao, tradicionalmente total, da vida normativa, a outrade facto, virada para a indesmentvel aptido do executivo para assumir com o melhor proveito astarefas normativas de prestao e assistncia econmico-social que tendiam cada vez mais acaracterizar a posio do estado, cfr. Lus de Cabral Moncada, Lei e Regulamento, Coimbra Editora, ,p.150.50 A meno do termo oramento nas lnguas citadas no texto, no tem outra inteno que no sejameramente indicar que o estudo da instituio oramental tem sido mais divulgado nessas lnguas dereconhecimento internacional.51 Definio que dada pelo Dicionrio Jurdico da Administrao Pblica, Vol. VI, Lisboa, 1994,p.19152 Segundo Francisco Jos Carrera Raya, o significado desta palavra, do ponto de vista estritamentegramatical, indica-nos que o oramento est ligado ideia de previso, de clculo, de cmputoantecipado dos gastos e das receitas que se prev arrecadar. Acrescenta ainda este autor que ooramento numa primeira aproximao deve relacionar-se com a ideia de projecto e, porconsequncia, oramentar tem a sua correspondncia com o significado de projectar, Manual deDerecho Financiero, cit., p.13.

  • 26

    Espanhola, oramentar significa idealizar, traar ou propor o plano e os meios para a

    execuo de um custo.

    Por sua vez o Dicionrio de Oxford define o vocbulo budget como um plano

    de receitas e despesas provveis para o ano seguinte, cujas propostas financeiras

    elaboradas so, anualmente, submetidas pelo Ministro das Finanas aprovao da

    Cmara dos Comuns.53.

    Um outro dicionrio de termos jurdicos54 apresenta como significado da

    palavra budget (oramento), a balance sheet or statement of estimated receipts and

    expenditures55. A plan for the coordination of resources and expenditures56. The

    amount of Money that is available for, required for, or assigned to a particular

    purpose57. A name given in England to the statement annually presented to the

    parliament by the chancellor of the exchequer, containing the estimates of the

    national revenue and expenditure58.

    A palavra portuguesa oramento, segundo um dicionrio da lngua portuguesa,

    significa: a avaliao de despesas; o clculo das receitas e das despesas provveis na

    Administrao de uma casa, de um organismo pblico ou privado, do Estado, por

    um perodo determinado. O mesmo dicionrio d expresso Oramento do

    Estado o seguinte significado: plano anual das receitas e das despesas da

    Administrao Pblica59.

    Ren Stourm60, recorrendo definio do conceito contido em vrios

    dicionrios, d-nos conta das seguintes definies: no Antigo Dicionrio de Economia

    Poltica, oramento aparece definido como a conta tornada oficial das receitas e das

    53 Definio citada por R.S Edwards e J.S. Hins, Budgeting in Public Authorities, p. 13.54 Henry Campbell Black, Blacks Law Dictionary, with pronunciations, fifth edition, St. Paul Minn.West Publishing Co., 1979, p.176.55 Esta definio coloca-nos perante uma noo de oramento sob um ponto de vista meramentecontabilstico.56 Vale para este extracto, a posio expressa na nota anterior.57 Trata-se aqui de uma noo de oramento, que tanto se aplica a oramentos pblicos como aoramentos privados, e que diz respeito ao contedo do oramento, expresso em receitas, aquitraduzidas em moeda e expresso em despesas, que aqui se denominam por objectivos especficos deuma qualquer entidade.58 Trata-se de uma definio de oramento pblico que integra quer o contedo do documentooramental, como manifesta a supremacia do rgo parlamentar em relao ao executivo, para queaquele documento possa ser, por este, implementado.59 Dicionrio da Lngua Portuguesa Contempornea, Academia das Cincias de Lisboa, Verbo,Volume II, 2001, p.2680.60 Cfr. Ren Stourm, Cours de Finances, Le Budget, Paris, Flix Alcan, diteurs-Librairies Flix Alcanet Guillaumin Runies, 1906, p.p.2-3.

  • 27

    despesas pblicas61, no Novo Dicionrio de Economia Poltica, o oramento, diz-se,

    tem por objecto fixar as somas que os particulares devem dispor em comum para as

    despesas de utilidade geral e de regular de modo soberano o emprego que deve ser

    feito desses recursos62. Ainda segundo o autor, o Dicionrio da Academia francesa

    definia oramento como o estado anual das despesas que se presume ter de fazer e

    dos fundos ou receitas afectadas a essas despesas63.

    Conta-se que a palavra inglesa budget tem origem na palavra francesa

    bougette que significa pequeno saco ou bolsa, tendo sido usada pela primeira vez em

    Inglaterra, para descrever o saco ou bolsa de couro que exibia o selo do Ministrio da

    Fazenda da Corte medieval e que era transportado pelo Ministro da Fazenda quando

    se apresentava perante o Parlamento para submeter as suas propostas de despesas e de

    necessidades em recursos para financiar as despesas do Governo64.

    Com o decorrer do tempo, a palavra budget passou a referir-se no ao saco em

    si, mas ao seu contedo, s propostas apresentadas pelo Ministro da Fazenda, tendo

    ganhado o sentido geral de estabelecimento de planos e expectativas, visando um

    perodo futuro, utilizada tanto por Governos, como por organismos pblicos, pessoas

    singulares e colectivas65.

    2. O Conceito de Oramento do Estado na sua Origem.

    O conceito remoto de Oramento do Estado remonta s origens da instituio

    parlamentar, a quem j no sculo XII, sob o formato de Cortes, representando os

    vrios estamentos, eram submetidas a votao, as contribuies extraordinrias, de

    que as monarquias necessitavam para fazerem face a despesas inadiveis.

    Data dessa poca o surgimento do princpio da auto-imposio, segundo o

    qual s seriam admissveis os tributos ou contribuies extraordinrias que tivessem

    61 Nesta definio, oramento e conta so sinnimos, alis por alguns autores assim que o oramento observado.62 Esta definio de oramento prende-se com a sua aco finalista, no descurando o carcterimperativo que lhe subjaz no que diz respeito realizao de despesas, revelando que principalmenteem relao a este ltimo aspecto que se desencadeiam os efeitos jurdicos do oramento, posto que omodo e o como transferir as somas dos particulares j se acha previamente regulado.63 Definindo-se como estado, o oramento aparece reduzido a um cmputo de despesas, com o estatutode presuno e no de previso. O prprio Ren Stourm discorda que deva entender-se o oramentocomo um estado, antes preferindo defini-lo como um acto.64 Cfr. Robert Lee, Jr e Ronald W. Johnson, Public Budgeting, cit., p.p.17-18; Jol Mekhantar,Finances Publiques. Le Budget de ltat, Hachette Suprieur, 1993, p.10.65 Cfr. R.S.Edwards e J.S. Hins, Budgeting in Public, cit., p. 13.

  • 28

    sido autorizados pelos prprios destinatrios66/67. Inicialmente, a luta da

    Representao popular desenvolveu-se no sentido de fazer subordinar ao seu controlo

    as receitas arrecadadas pela Coroa, tal situao, -nos revelada no sculo 13, mais

    propriamente em 1215, quando declarado na Magna Carta, outorgada pelo rei Joo

    Sem Terra, que no scutage or raid shall be imposed in Kingdom unless by the

    Common Council of the realm.

    Este princpio, no tendo sido acolhido de bom grado por alguns monarcas, foi

    fonte de acesas controvrsias durante a dinastia dos Stuart, levando estes por diversas

    vezes a dissolver o Parlamento, em virtude de este rgo no autorizar a cobrana de

    impostos, com vista a proverem despesas extraordinrias da casa real. Em 1628 o

    Parlamento, atravs da Petition of Rights fez retomar o princpio de que ningum

    deve ser constrangido a fazer qualquer doao, emprestar dinheiro, nem presentear

    voluntariamente, nem a pagar qualquer taxa ou imposto fora do consentimento

    comum, dado por lei do Parlamento.. O no acatamento deste princpio pelo

    monarca, levou ao conflito que de forma extremada o conduziu morte, em 164968.

    Aps a revoluo de 1688, o Parlamento, atravs da Bill of Rights, passou a

    autorizar as despesas a realizar pela Coroa e bem assim as receitas a arrecadar, por

    esta, que embora gozando da prerrogativa de ter a iniciativa de propor a tributao de

    impostos ou de outras receitas correntes, estava impedida de as arrecadar sem que

    precedesse autorizao, por meio de lei do Parlamento. Deste modo, o poder

    financeiro deixou de estar no foro da discricionariedade do monarca, que se entendia

    predestinado a impor os tributos que entendesse, para passar a ser exercido pelo

    Parlamento, em cada ano69.

    Em Frana, o surgimento do primeiro oramento s ocorreu aps a

    Restaurao. Apenas a partir de 1789 os Estados Gerais passaram a decidir sobre a

    66 Juan Martn Queralt numa obra em que colaboraram outros autores, preconiza queindependentemente da expresso que as monarquias absolutistas alcanaram, posteriormente, emEspanha, j no sculo XV fora formulada certa teoria que assentava em trs alicerces: de que no serecaude ms all de lo autorizado, lo recaudado se destine a los fines para los que se h solicitado yde que los tributos no pervivan ms all de las necessidades extraordinrias que justificaron supeticin, Curso de Derecho Financiero y Tributrio, Tecnos, 15. edio revista, Madrid, p.670.67 Ren Stourm, Cours de Finances, cit., p.9, confirma que antes de 1688, na Inglaterra j sepraticava a mxima de que todo o imposto deve ser consentido pelo povo.. A Petition of Rights, quesurgiu como reaco s medidas tomadas pelo rei Carlos I, estabelecia que nenhum imposto podia serlevantado sem o consentimento da nao.68 Cfr. Ren Stourm, Cours de Finances, cit., pp.12 e ss., Louis Trottabas e Jean-Marie Cotteret,Droit Budgtaire, cit., pp. 17-18, Jol Mekhantar, Finances Publiques, cit., p. 6.69 O conflito entre a casa real inglesa e o Parlamento, foi por este esquecido, quando se tratou deestabelecer impostos sobre a colnia dos Estados Unidos da Amrica, cuja independncia foiproclamada em 1776, por forte contestao s medidas de ordem financeira do Parlamento ingls.

  • 29

    realizao de despesas. At essa altura, as Constituies que vigoraram desde o sculo

    XIV ao sculo XVII, previam que este rgo se pronunciasse, mas unicamente, sobre

    matria de impostos70.

    Contudo, somente no sculo XIX com o surgimento do Estado liberal e do

    movimento constitucionalista, assente no princpio da separao de poderes, a

    instituio oramental adquire pleno sentido71/72, sendo ento considerada como

    instrumento bsico do Estado constitucional, e passando a ser entendida como

    autorizao do legislativo ao executivo para a arrecadao anual de receitas e

    realizao anual de despesas, visando, ou melhor, assegurando, alm disso, o controlo

    democrtico da actuao poltica do Governo.

    Embora ainda durante este sculo o oramento tenha servido tanto os

    objectivos de realizao de despesas como arrecadao de receitas, a diminuio de

    importncia e peso das receitas patrimoniais no conjunto dos recursos financeiros de

    que o executivo podia dispor, e a crescente importncia que passaram a ter os

    impostos, nos rditos pblicos, tornaram possvel o surgimento de sistemas

    tributrios, regulados por normas especficas, tendo deixado de ser os oramentos o

    repositrio de normas sobre arrecadao de receitas.

    70 Em Espanha, o primeiro oramento contemporneo data de 28 de Abril de 1828, mas a Constituiode Cdiz de 1812 j consagrava o princpio da legalidade das receitas e das despesas e tambm oprincpio do equilbrio. Cfr.Juan Martn Queralt e outros, Curso de Derecho, cit., p.671.71 neste mesmo sculo, que o oramento, que antes era observado simplesmente como instrumentoonde se autorizavam receitas e despesas, converteu-se num meio de controlo nas mos de umlegislativo incipiente, sobre um executivo todavia muito poderoso, poder que lhe advinha da aplicaodo princpio monrquico, que embora no sendo to drstico quanto a concepo teocrtica damonarquia, no deixava de ser devastador, no sentido de constituir um forte impedimento para aocupao do espao que competia ao rgo de representao popular. Ver Antnio Lobo Xavier, OOramento, cit., p.p.11 e ss..

    que como diz Manuel Afonso Vaz, Lei e Reserva de Lei, cit., pp.120-121, referindo-se tesedefendida por G. Jellinek, o Parlamento era um rgo secundrio, dependente do Povo, este sim, rgoprimrio, durante a monarquia constitucional, ao passo que o monarca era um rgo primrio, nodependente, cuja vontade era vinculativa em relao ao Estado.

    Admitindo que o monarca e o povo eram rgos primrios, havia, no entanto, uma diferena degrau, do ponto de vista do exerccio volitivo de cada um, uma vez que o primeiro, enquanto rgoindependente e autnomo vinculava a vontade do Estado, ao passo que o segundo para expressar a suavontade tinha ao seu servio a expresso do Parlamento, seu representante constitucional, devendoperante o povo responder e apenas perante este, e no j perante o monarca, embora este, enquantorgo independente e autnomo, continuasse a pugnar por uma supremacia que, aos poucos, foi sendosuplantada pelo Parlamento. O desenvolvimento desta polarizao dos rgos do Estado na monarquiaconstitucional e na democracia encontra-se de modo detalhado em Georg Jellinek, Teoria General delEstado, Editorial Albatros, 1981, pp.414-449.72 Em Frana tem sido referido o ano de 1814, como o ano de surgimento do primeiro oramento, quetal como o regime parlamentar foi introduzido por Lus XVIII, tendo tido como exemplo o modeloingls. Cfr.Louis Trotabas e Jean-Marie Cotteret, Droit Budgtaire, cit., p.p. 22-23, Jol Mekhantar,Finances Publiques, cit., pp. 7-8.

  • 30

    Em termos dogmticos, tal especificidade de tratamento dado s normas

    tributrias, cuja aprovao competia igualmente s assembleias parlamentares, com

    vigncia indefinida e no j anual, deu origem ao que Sainz de Bujanda denominou

    por bifurcao do princpio da legalidade financeira73/74, que se traduziu em aceitar-

    se que s receitas (impostos) se aplicaria o princpio da legalidade tributria e s

    despesas o princpio da legalidade oramental.

    Facto , que ao oramento passaram a interessar todos os aspectos que dizem

    respeito s despesas, sendo que os seus efeitos jurdicos se verificam em relao a

    estas, ao passo que em relao s receitas, o oramento , to somente, uma previso

    contabilstica, sem qualquer efeito jurdico sobre elas. Nessa medida, o oramento

    aparece hoje configurado como a lei anual de autorizao da despesa pblica,

    mediante a qual se fixa o seu valor, o seu destino e se aprovam as regras que h-de

    observar a Administrao na sua actividade.75

    3. O Conceito Contemporneo de Oramento do Estado.

    Existe uma quase unanimidade entre os autores mais recentes, que se tm

    debruado sobre os mais diversos aspectos da instituio financeira oramental,

    quanto ao momento em que desta instituio se pode falar, tal como ela hoje

    concebida, momento que situam ou reportam ao surgimento do Estado moderno,

    Estado de Direito ou Estado constitucional, como se queira chamar, assente no

    princpio da separao de poderes e ao qual se remete o jogo de poderes que legou ao

    poder legislativo, pelo menos durante um longo perodo, e em certa medida, o papel

    de supremacia na tomada da deciso financeira e mais concretamente da deciso

    oramental76.

    73 Cfr. Sainz de Bujanda, Lecciones de Derecho Financiero, apud Juan Martn Queralt e outros, Cursode Derecho Financiero, cit., p.671e ainda Jorge Costa Santos, O Aval do Estado, Lex, Lisboa, 2000,p.21, nota 27.74 Como afirma Francisco Jos Carrera Raya, Manual, cit., p.15, el pressupuesto del Estadoconstituye la expressin arquetpica del princpio de legalidade pressupuesturia, y, en definitivo, de lasupremacia financiera de las Cmaras Legislativas en matria tributaria y pressupuesturia.75 Juan Martn Queralt e outros, Curso de Derecho, cit., p.672.76 Cfr. Giuseppe Vegas, I Documenti di Bilancio, in Il Bilancio dello Stato, Il Sole 24 Ore, 4. edio,2005, p. 106, que ao referir-se histria da formao do Oramento do Estado em Itlia, afirma: Comla nascita dello Stato moderno, il bilancio pubblico assume i seguenti caratteri: documento politico diautorizzazione e di controlo del Parlamento sul potere esecutivo, documento contabile sulla base delqual elo Stato conduce ordinariamente la prpria gestione e parmetro di referimento, a cuicomissurare la autorizzazione e i sucessivi controlli sullazione degli organi della Pubblicaamministrazione.

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    Como assinala Francisco Jos Carrera Raya, o Oramento do Estado constitui

    o fiel reflexo ainda que cada vez mais tnue da supremacia financeira do poder

    legislativo.77/78

    Sem querermos entrar ainda na polmica sobre a natureza jurdica do

    oramento, que abordaremos mais adiante, convir, no entanto, dizer que o

    Oramento do Estado foi objecto de acesa controvrsia sobre a dualidade de sentido

    que encerrava o conceito de lei, num contexto poltico em que era discutida, na

    Prssia, a primazia do poder do Monarca em relao ao poder parlamentar, e que

    resultou na interpretao do artigo 62. da Constituio prussiana de 185079, de cariz

    liberal e parlamentar, pelo denominado pai do Direito pblico, Paul Laband, tendo

    este autor chegado concluso de que o conceito lei, haveria de ser observado tanto

    como lei formal, como ainda lei material, em sede da questo que ento se discutia80,

    como forma de se resolver o problema respeitante competncia do poder legislativo.

    Atravs daquele inciso constitucional determinava-se deverem em conjunto o

    Monarca e o Parlamento decidir s sobre determinadas matrias e j no sobre outras

    matrias, como era o caso das questes oramentais, que no se erigiam em normas de

    Direito81.

    77 Cfr. Francisco Jos Carrera Raya, Manual cit., p.15 (traduo nossa).78 E cada vez mais tnue, porque, actualmente, o executivo quem elabora e executa o oramento,actividade que lhe confere um melhor conhecimento das suas debilidades e pontos fortes, o que lhepermite manobrar o leme da forma que melhor lhe convenha. Alm disso, dispe de podereslegislativos, que usa em circunstncias de urgncia e outras, ao lado de um poder parlamentar limitadoem matria de emendas, sempre que discutido o oramento ou suas alteraes supervenientes.Antnio Lobo Xavier, O Oramento como Lei, p.p.17 e ss., indica um conjunto de situaes queconsidera estarem na base da perda dos poderes parlamentares, em matria financeira. Chega mesmoa falar de uma progressiva perda de importncia real da interveno parlamentar nos debatesoramentais.(p. 29).79 O poder legislativo exerce-se conjuntamente pelo Rei e pelas Cmaras. O acordo do Rei e dasCmaras indispensvel para toda a lei( segundo traduo de Manuel Afonso Vaz, Lei e Reserva,cit., p.129).80 O cerne da questo debatida centrava-se em torno da discusso do oramento de 1862, necessriopara fazer face reforma do exrcito, encetada pelo rei Guilherme I. O monarca entendia que ooramento deveria ser aprovado, independentemente de o Parlamento estar de acordo com o seu teor.Perante a recusa de aprovao do oramento pelo Parlamento, a Coroa passou adiante e continuou agovernar sem o oramento aprovado, por considerar que havia uma lacuna constitucional, e emconsequncia no constituir o oramento, matria de lei. A questo debatida por Laband estendeu-se efoi objecto de reflexo por especialistas de outros pases, cujos sistemas constitucionais nopartilhavam das caractersticas do sistema constitucional prussiano, mas que tendo introduzido umelemento no liberal em Constituies de matriz parlamentar, acabaram por aderir discusso da tesedo dualismo da lei, dando origem projeco que ainda hoje este tema tem na rea do Direito Pblico.Cfr. Tiago Duarte, A Lei por Detrs do Oramento...cit., p.60 e ss. e ainda Maria Lcia Amaral,Responsabilidade do Estado e Dever de Indemnizar do Legislador, Coimbra Editora, 1998, p.239.81 Est-se no perodo do dualismo constitucional, caracterstico da monarquia constitucional, na qual osistema constitucional se encontrava dividido entre o monarca e o seu executivo e o Parlamento. Aoprimeiro competiam todas as matrias relacionadas com a organizao interna da Administrao,

  • 32

    Apenas era exigvel o concurso da aprovao dos dois poderes para actos,

    considerados regras de direito (Rechtsstze) ou seja subordinados ao conceito de lei

    material, caindo no conceito de lei formal, apenas os actos no considerados regras de

    direito (no Rechtsstze)82.

    O oramento, que na opinio de Laband, era uma lei formal, era observado

    como um instrumento incapaz de afectar os direitos de terceiros alheios pessoa

    jurdica do Estado83. Ora, sabe-se que no assim, pois o oramento contm

    comandos que vo bulir com direitos e deveres dos particulares, para alm de outros

    que vo organizar os traos gerais de uma boa parte da actividade de conformao

    econmica e social do Estado84.

    E por no estarmos ainda em condies de encerrar este alinhamento de

    opinies, relativas origem e evoluo do conceito de Oramento do Estado,

    abordaremos, nas linhas que se seguem, a noo de Oramento do Estado, segundo

    pontos de vista da doutrina e sempre que possvel, da jurisprudncia e ainda da sua

    consagrao constitucional em alguns pases.

    Em Espanha, Rodrguez Bereijo define Oramento do Estado como o acto

    legislativo mediante o qual se autoriza o montante mximo das despesas que o

    Governo pode realizar durante um perodo de tempo determinado, pelos fins que

    detalhadamente se especificam e se prevem as receitas necessrias para cobri-las.85.

    matrias inacessveis ao Direito, e ainda toda a panplia relacionada com questes do foro poltico, aosegundo cabiam as matrias que era necessrio regular atravs de lei. Cfr. Lus Cabral de Moncada, Leie Regulamento, Coimbra Editora, Lda, 2002, pp.66-67, Manuel Afonso Vaz, Lei e Reserva de Lei,cit., p.127, Maria Lcia Amaral, Responsabilidade do Estado, p.p. 244 e ss., Tiago Duarte, A Lei porDetrs do Oramento, cit., pp.49 e ss..82 Cfr. Paul Laband, Le Droit de lEmpire Allemand, Tomo II, Paris, V. Giard & E. Brire, LibrairiesEditeurs, 1901, p.p. 260 e ss., Carr de Malberg, La Loi, Expression de la Volont Gnrale. tude surle Concept de la Loi dans la Constitution de 1875, Librairie du Recueil Sirey, Paris, 1931, p.p. 9 e ss.83 Segundo Paul Laband, Le Droit de lEmpire Allemand, Tomo II, cit., pp. 260-261 e p. 344, a lei observada segundo um sentido material e um sentido formal. De acordo com o sentido material, leisignifica o acto jurdico que estabelece uma regra de direito. A lei por definio o estabelecimento deuma regra de direito, mas isso no implica que ela seja uma regra geral aplicvel a um nmeroindeterminado de casos semelhantes. De acordo com o sentido formal a lei designa no uma parte dosdireitos que o poder do Estado compreende, mas uma forma sob a qual se manifesta a vontade doEstado.84 Lus Cabral de Moncada, Lei e Regulamento, cit., p.327. No mesmo sentido Antnio Lobo Xavier, OOramento como Lei.., cit., p.p.72-73, referindo-se de forma crtica, posio assumida por Laband eoutros juspublicistas, em face desta polmica, que classificavam o carcter do contedo do oramentocomo no materialmente legislativo, adiantando ainda que com esse sentido o contedo do oramentoera visto como no interferindo com os direitos de terceiros ou porque continha as caractersticasessenciais de natureza adminsitrativa, ou, ainda, porque no introduzia inovaes na ordem jurdica.Ver Sousa Franco, para quem a Lei do Oramento produz efeitos externos, nas relaes entre o Estadoe os particulares: no mera lei de organizao, Finanas Pblicas, Vol.I, cit., p.401.85 Ob.cit. p.14. (traduo nossa).

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    Do ponto de vista deste autor parece estar dissipada a dvida quanto a saber-se se o

    oramento e a lei que o aprova so realidades distintas ou equivalentes.

    Nesta linha segue grande parte dos autores, que reconhece ser o oramento

    uma lei que aprova as despesas e as receitas, em que se materializa o contedo do