Transcript
  • 1. Os Donos do Poder http://groups.google.com.br/group/digitalsource Outras obras do autor: Machado de Assis: A Pirmide e o Trapzio / Existe um Pensamento Poltico Brasileiro?
  • 2. R a y m u n d o F a o r o Os D o n o s d o P o d e r F O R M A O D O P A T R O N A T O P O L T I C O B R A S I L E I R O 3.a edio, revista, 2001 GLOBO
  • 3. Maria Pompa
  • 4. Nicht nur der Vernunft von Jahrtausenden auch ihr Wahnsinn bricht an uns aus. Gefhrlich ist es, Erbe zu sein.
  • 5. SU M R I O Prefcio Segunda Edio C a p t u l o I ORIGEM DO ESTADO PORTUGUS 1.A guerra, o fundamento da ascendncia dos reis. As bases da monarquia patrimonial; as contribuies e os concelhos 2. Os fundamentos ideolgicos da monarquia: o direito romano 3. O Estado patrimonial e o Estado feudal Captulo II A REVOLUO PORTUGUESA 1.Preliminares da revoluo de 1383-85: a nobreza, a burguesia e dom Fernando 2. A Revoluo de Avis: vitria da burguesia sob a tutela do rei 3. O estamento: camada que comanda a economia, junto ao rei 4. Da aventura ultramarina ao capitalismo de Estado 5. A ideologia do estamento: mercantilismo, cincia e direito Captulo I I I O CONGELAMENTO DO ESTAMENTO BUROCRTICO 1. A cidade comercial: a corte barroca e o funcionrio 2. O congelamento e a paralisia do Estado barroco 3. Elite e estamento C a p t u l o IV O BRASIL AT O GOVERNO-GERAL 1. A inveno ednica da Amrica 2. A integrao da conquista no comrcio europeu 3. Colonizao como prolongamento do sistema de feitorias 4. A colonizao: regime poltico e administrativo das capitanias. Vnculos da colnia com a metrpole 5. A distribuio de terras: mudana do sentido da sesmaria, com o predomnio do contedo dominial sobre o administrativo 6. O chamado feudalismo brasileiro C a p t u l o V A OBRA DA CENTRALIZAO COLONIAL 1. O governo-geral: causas de sua criao 2. Os municpios e a centralizao 3. Os colonos e os caudilhos: a conquista do serto
  • 6. C a p t u l o VI TRAOS GERAIS DA ORGANIZAO ADMINISTRATIVA, SOCIAL, ECONMICA E FINANCEIRA DA COLNIA 1. A administrao e o cargo pblico 2 . O espectro poltico e administrativo da metrpole e da colnia 3. As classes: transformaes e conflitos 4. A apropriao de rendas: o pacto colonial, monoplios, privilgios e tributos Captulo V I I OS PRDROMOS DA INDEPENDNCIA I. A vida rural do comeo do sculo XIX: a autarquia agrcola 2. A transmigrao e a frustrada reorganizao poltica e administrativa 3. O dissdio e a transao Captulo V I I I AS DIRETRIZES DA INDEPENDNCIA 1. A tentativa de reorganizao poltica do pas independente 2. O Poder Moderador e a luta parlamentar 3.O sistema poltico do 7 de abril 4.As reformas do 7 de abril: a descentralizao C a p t u l o IX A REAO CENTRALIZADORA E MONRQUICA 1. A reorganizao da autoridade: a conciliao geogrfica e a reao centralizadora 2.As bases econmicas da centralizao 3.Os fundamentos legais da centralizao monrquica Captulo X O SISTEMA POLTICO DO SEGUNDO REINADO 1. O modelo francs e o ingls 2.O parlamentarismo e o Poder Moderador 3.A representao do povo: as eleies 4.O estamento burocrtico Captulo XI A DIREO DA ECONOMICA NO SEGUNDO REINADO 1. Economia dependente, sob a orientao do Tesouro 2. O regime de terras, o agricultor e o comissrio 3. O centro estatal do crdito: o dinheiro e as emisses 4. O poltico e o especulador
  • 7. Captulo X I I O RENASCIMENTO LIBERAL E A REPBLICA 1. Do liberalismo propaganda republicana 2. A fazenda sem escravos e a Repblica 3. O Exrcito na monarquia e sua converso republicana C a p t u l o X I I I AS TENDNCIAS INTERNAS DA REPBLICA VELHA 1. Liberalismo econmico e diretrizes econmicas do perodo republicano 2. O militar e o militarismo 3. A transio para o federalismo hegemnico: a poltica dos governadores C a p t u l o X I V REPBLICA VELHA: OS FUNDAMENTOS POLTICOS 1. A fora e a fragilidade da poltica dos governadores. O consulado de Pinheiro Machado 2. A ordem e a contestao. O novo presidencialismo 3. O sistema coronelista C a p t u l o XV MUDANA E RENOVAO 1. O abalo ideolgico e as aspiraes difusas 2. A emergncia do Estado forte e o chefe ditatorial 3. Os novos rumos econmicos e sociais C a p t u l o f i n a l A VIAGEM REDONDA: DO PATRIMONIALISMO AO ESTAMENTO NOTAS
  • 8. PREFCIO SEGUNDA EDIO MONTAIGNE, QUE NEGA AO AUTOR o direito de alterar o texto de um livro hipotecado ao pblico, justificou as suas infidelidades ao princpio, com este subterfgio resvaladio: J'adjouste, mais je ne corrige pas. Posso afirmar, sem receio ao olho malicioso e zombeteiro do francs quinhentista, que a tese deste ensaio a mesma de 1958, ntegra nas linhas fundamentais, invulnervel a treze anos de dvidas e meditao. A forma, todavia, est quase totalmente refundida, outra a disposio dos assuntos, adequado o estilo s minhas exigncias atuais. Houve o acrscimo de dois captulos e a adio de inmeras notas, ordenadas ao fim do volume, para orientar o leitor acerca das fontes do trabalho. Os conceitos bsicos patrimonialismo, estamento, feudalismo, entre outros esto fixados com maior clareza, indicada a prpria ambigidade que os distingue, na cincia poltica. A perplexidade que alguns leitores da primeira edio demonstraram, ante uma terminologia aparentemente bizarra, estar atenuada, neste novo lanamento. Advirta-se que este livro no segue, apesar de seu prximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber. No raro, as sugestes weberianas seguem outro rumo, com novo contedo e diverso colorido. De outro lado, o ensaio se afasta do marxismo ortodoxo, sobretudo ao sustentar a autonomia de uma camada de poder, no diluda numa infra-estrutura esquemtica, que daria contedo econmico a fatores de outra ndole. Esto presentes, nas pginas que se seguem, os clssicos da cincia poltica, Maquiavel e Hobbes, Montesquieu e Rousseau, relidos num contexto dialtico. As hipteses e conjeturas, em aberta rebeldia aos padres consagrados, inspiram-se no propsito de abarcar, num lance geral, a complexa, ampla c contraditria realidade histrica. Um longo perodo, que vai do Mestre de Avis a Getlio Vargas, valoriza as razes portuguesas de nossa formao poltica, at agora desprezadas em favor do passado antropolgico e esquecidas pela influncia de correntes ideolgicas,
  • 9. originrias da Frana, da Inglaterra e dos Estados Unidos, s traduzidas nos ltimos cento e cinqenta anos. Na evocao no se pode evitar o eu de um longnquo pesadelo, com certas "rabugens de pessimismo", como lembrou um amvel crtico, mais amigo do que crtico. Contra, na elaborao deste ensaio, nas suas duas feies, muitas dvidas, que no comprometem a responsabilidade dos credores. A maior de todas devo-a a Guilhermino Csar, que, ainda em Porto Alegre, no carinhoso convvio de muitos anos, discutiu as hipteses e suscitou questes novas, franqueando-me sua biblioteca para o estudo e a pesquisa. O prprio ttulo do livro, ao que apurei, saiu de uma de suas sbitas inspiraes. Augusto Meyer e Jorge Moreira leram os originais. Paulo Olinto Vianna e Slvio Duncan cuidaram da reviso, com pacincia e amor mincia. Arthur Cezar Ferreira Reis, no preparo desta edio, socorreu-me com preciosas indicaes bibliogrficas, acompanhadas do emprstimo do livro raro. Amandino Vasconcellos Beleza, com seu vigilante bom gosto, leu os originais, aparando erros e atalhando incongruncias. Genolino Amado incumbiu-se da reviso das provas tipogrficas, em testemunho de generosa amizade. No devo esquecer, neste elenco, o meu editor, representado por Jos Otvio Bertaso, que se decidiu aventura e ao risco, confiado apenas no mrito discutvel do livro, em homenagem a um autor que, sem conhec-lo, enviou-lhe os originais pelo correio "alma forte e corao sereno", como dele diria o maior de seus editados, Simes Lopes Neto. Rio de Janeiro, fevereiro de 1973. R. F.
  • 10. C A P T U L O I ORIGEM DO ESTADO PORTUGUS 1. A guerra, o fundamento da ascendncia dos reis. As bases da monarquia patrimonial: as contribuies e os concelhos 2. Os fundamentos ideolgicos da monarquia: o direito romano 3. O Estado patrimonial e o Estado feudal
  • 11. 1 A PENNSULA IBRICA formou, plasmou e constituiu a sociedade sob o imprio da guerra. Despertou, na histria, com as lutas contra o domnio romano, foi o teatro das investidas dos exrcitos de Anbal, viveu a ocupao germnica, contestada vitoriosamente pelos mouros. Duas civilizaes uma do ocidente remoto, outra do oriente prximo pelejaram rudemente dentro de suas fronteiras pela hegemonia da Europa. Das runas do imprio visigtico, disciplinado e enriquecido pela cultura dos vencidos, dilacerado em pequenos reinos, gerou-se um mundo novo e ardente, que transmitiu sua fisionomia aos tempos modernos. Do longo predomnio da espada, marcado de cicatrizes gloriosas, nasceu, em direo s praias do Atlntico, o reino de Portugal, filho da revoluo da independncia e da conquista. "O reino de Portugal" dir, j com anacrnica arrogncia, um annimo escritor do sculo XVII " to guerreiro, que nasceu com a espada na mo, armas lhe deram o primeiro bero, com as armas cresceu, delas vive, e vestido delas, como bom cavaleiro, h de ir para a cova no dia do juzo." Dos fins do sculo XI ao XIII, as batalhas, todos os dias empreendidas, sustentadas ao mesmo tempo contra o sarraceno e o espanhol, garantiram a existncia do condado convertido em reino, tenazmente. A amlgama dos dois fragmentos o leons e o sarraceno , ambos conquistados com esforada temeridade, criou a nova monarquia, arrancada, pedao a pedao, do caos. Do elemento leons lhe veio a armadura e a fisionomia, ao elemento sarraceno imps seu molde, recebendo, de seu lado, vestgios guardados no carter e no esprito. "Estes dois fatos pertencem histria do pas: constituem as fontes dessa civilizao."1 No topo da sociedade, um rei, o chefe da guerra, general em campanha, conduz um povo de guerreiros, soldados obedientes a uma misso e em busca de um destino. A singular histria portuguesa, sulcada interiormente com a marcha da supremacia do rei, fixou o leito e a moldura das relaes polticas, das relaes entre o rei e os sditos. Ao prncipe, afirma-o
  • 12. prematuramente um documento de 1098, incumbe reinar (regnare), ao tempo que os senhores, sem a aurola feudal, apenas exercem o dominam, assenhoreando a terra sem govern-la.2 Ainda uma vez a guerra, a conquista e o alargamento do territrio que ela gerou, constitui a base real, fsica e tangvel, sobre que assenta o poder da Coroa. O rei, como senhor do reino, dispunha, instrumento de poder, da terra, num tempo em que as rendas eram predominantemente derivadas do solo. Predomnio, como se ver, no quer dizer exclusivismo, nem a sede dinmica, expressiva da economia. A Coroa conseguiu formar, desde os primeiros golpes da reconquista, imenso patrimnio rural (bens "requengos', "regalengos", "regoengos", "regeengos"), cuja propriedade se confundia com o domnio da casa real, aplicado o produto nas necessidades coletivas ou pessoais, sob as circunstncias que distinguiam mal o bem pblico do bem particular, privativo do prncipe. A conquista ao sarraceno ou ao inimigo se incorporava ao domnio do rei, ao reinado, se no apropriada a terra por legtimos ttulos prvios. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, no remoto ano de 1140, alude a "todo herdamento e vinhas, e almoinhas, e figueiras que para mim tomei nas cercanias de vora". Dom Dinis, em 1308, lembrava ao concelho de Santarm ser o proprietrio das terras, visto que "El Rey Dom Affonso o primeiro Rey de Portugal, que filhou Santarm e Lisboa a Mouros, logo em comeo da povoana da terra as filhou assinadamente para sy, como filhou todollos outros Reguengos, e todallas outras cousas, que ha..."3 Acentue-se, por temor generalizao, que a obra de restaurao, j completa no sculo XIII, respeitou a propriedade individual. Os morabes, antigos cristos arabizados, os descendentes dos colonos africanos e asiticos, os sucessores dos sditos e vassalos dos reis de Oviedo e Leo tiveram seus bens reconhecidos. Sobravam, todavia, margem desses quistos, largos domnios para apropriar: as terras dos mouros, reduzidas, pelo extermnio ou pela batalha, a terras sem dono; as terras fiscais dos sarracenos, aquelas reservadas a empresas de colonizao ou a objetivos vinculados estrutura do Estado; as confiscadas aos
  • 13. particulares, em represlia a crimes ou traies; as que caam sob o poder do rei em razo do direito de monhadego ou monaria, isto , o direito da Coroa de herdar os bens dos viles (vilani) que morriam sem prole.4 Do patrimnio do rei o mais vasto do reino, mais vasto que o do clero e, ainda no sculo XIV, trs vezes maior que o da nobreza5 fluam rendas para sustentar os guerreiros, os delegados monrquicos espalhados no pas e o embrio dos servidores ministeriais, aglutinados na corte. Permitia, sobretudo, a dispensa de largas doaes rurais, em recompensa aos servios prestados pelos seus caudilhos, recrutados, alguns, entre aventureiros de toda a Europa. Os dois caracteres conjugados o rei senhor da guerra e o rei senhor de terras imensas imprimiram a feio indelvel histria do reino nascente. A crise de 1383-85, de onde nascer uma nova dinastia, a dinastia de Avis, dar a fisionomia definitiva aos elementos ainda dispersos, vagos, em crescimento. Um fato quantitativo, o rei como o maior proprietrio, ditar, em consonncia com a chefia da guerra, a ndole qualitativa, ainda mal colorida, da transformao do domnio na soberania do dominare ao regnare. O centro supremo das decises, das aes temerrias, cujo xito geraria um reino e cujo malogro lanaria misria um conde, impediu que, dispersando-se o poder real em domnios, se constitusse uma camada autnoma, formada de nobres proprietrios. Entre o rei e os sditos no h intermedirios: um comanda e todos obedecem. A recalcitrncia contra a palavra suprema se chamar traio, rebeldia vontade que toma as deliberaes superiores. O chefe da heterognea hoste combatente no admite aliados e scios: acima dele, s a Santa S, o papa e no o clero; abaixo dele, s h delegados sob suas ordens, sditos e subordinados.6 Excepcionalmente, em ateno ao costume dos soldados estrangeiros, vindos da Idade Mdia francesa, a concesso de terras acarretava, alm da propriedade, o gozo da soberania, trao de cunho feudal. O tempo, girando sob o tropismo da ndole geral do pas, se incumbiu de absorver e anular esses pontos extravagantes de direito estrangeiro. A independncia da nobreza territorial e do clero, com
  • 14. lastro em seu domnio de terras, frustrou-se, historicamente condicionada e tolhida, enferma de uma fragilidade congnita. A concesso de senhorio ou de uma vila, filha da liberalidade do rei, no importava na atribuio de poder pblico, salvo em medida limitada. A Coroa separava nos nobres ricos-homens, infanes e cavaleiros a qualidade de funcionrio da qualidade de proprietrio. Seu poder, na verdade avultado, derivava da riqueza e no das funes pblicas. Nos tormentosos dois sculos iniciais do reino de Portugal traaram-se limites ntidos entre o exerccio de um cargo e a propriedade privilegiada. O pas se dividia em circunscries administrativas e militares, as "terras" ou "tenncias", cujo superior governo cabia a um chefe, o "tenens", dentro das quais se constituam distritos, os "prestamos", administrados por um prestameiro designado pelo rei. A funo pblica de primeiro nvel cabia ao nobre, senhor da terra ou alheio ao solo jurisdicionado. Igualmente, as circunscries judiciais (julgados) e as circunscries fiscais (almoxarifados) dependiam, no provimento dos cargos, da exclusiva escolha rgia. O corpo de funcionrios recebia a remunerao das rendas dos casais, aldeias e freguesias, dos estabelecimentos no beneficiados com a imunidade fiscal. Os cargos eram, dentro de tal sistema, dependentes do prncipe, de sua riqueza e de seus poderes. Extremava-se tal estrutura da existente na Europa contempornea, marcando um prematuro trao de modernidade.7 O rei, quando precisava do servio militar da nobreza territorial, pagava-a, como se paga a um funcionrio. As soldadas marcam o vnculo de subordinao, origem das futuras quantias, periodicamente distribudas, e que daro causa, no momento de apertura do tesouro real no sculo XIV, converso em terras, largamente doadas por um rei aparentemente prdigo. Entre o esquema, traado pela lgica da histria, e a realidade, convulsionada por foras em tumulto, h um salto e muitas discordncias. O lao de subordinao entre o rei e a nobreza territorial e o clero no se fixou sem muitas escaramuas e muitas resistncias. A fraqueza da classe territorial, derivada das fronteiras inscritas na
  • 15. transferncia da terra, se robusteceu, em movimento paralelo expanso dos poderes rgios, com a explorao das imunidades dos domnios. Entre a Coroa e a nobreza trava-se, em direo oposta ordem esboada nos desgnios da realeza, uma longa e porfiada batalha da qual resulta a derrota das veleidades feudais. As doaes de terras, em retribuio a servios de guerra ou aos servios da estirpe, privilegiavam os nobres com a jurisdio privativa sobre os moradores e a completa iseno de tributo. Sob esta base, idntica da fidalguia encontrada pela dinastia borgonhesa ou afonsina, furtava-se a aristocracia do garrote da realeza.8 Enquanto a imunidade tributria permaneceu indisputada, no curso dos sculos, salvo com a sisa, fixada para todos no sculo XIV, a jurisdio privativa no gozou da mesma sorte. Percebeu bem a realeza que o poder de julgar envolve, em ltima anlise, o poder de sujeitar o homem a uma camada intermediria e autnoma. Sem a jurisdio, o sdito ficaria liberto da obedincia, preso apenas a uma lealdade de segundo grau, indireta, convertido o poder supremo em fico. Da a doutrina, j sustentada tenazmente no perodo da dinastia borgonhesa: "O direito e costume geral do reino, dizia el-rei dom Dinis em 1317, eram e tinham sido sempre que em todas as doaes rgias se entendesse reservada para a Coroa a justia maior, a suprema jurisdio, em reconhecimento ao maior senhorio".9 A medida que estendiam a atribuio jurisdicional, os reis conquistavam sditos, os quais, por um movimento convergente, procuravam fugir s prerrogativas da nobreza e do clero. Lavradores, artesos e mercadores despontavam como aliados da Coroa, reforados com a solidariedade da organizao municipal, os concelhos. O velho direito de Castela, consolidado no Fuero Viejo, vigente em Portugal, reservava ao rei, nas doaes ou nos senhorios, certas prerrogativas (justia, moeda, fossado ou jantar), tidas como inerentes sua preeminncia na sociedade poltica. Algumas vezes, verdade, margem dos padres gerais, premida pelos variados lances a que se expunha, a monarquia transigia em doaes peculiares, com o abandono de suas prerrogativas.
  • 16. A exacerbao dos privilgios da nobreza territorial e do clero, responderam os reis com o incremento de uma instituio, pretensamente recebida da velha, e em alguns momentos influente, ordem romana. O municpio, arma comum estratgia poltica da realeza na Europa, mereceu especial estmulo, na mesma medida em que se ensoberbeciam os potentados rurais. Os concelhos, conservados tenuemente pela tradio, no incio desvinculados de carta de foral, pouco representavam, no curso dos dois primeiros sculos da monarquia portuguesa.10 Temerosa do domnio autnomo das camadas que a apoiavam o clero e a nobreza a realeza deslocou sua base de sustentao, criando as comunas e estimulando as existentes, no incremento da realidade capaz de lhe proporcionar suporte poltico, fiscal e militar. Buscava o trono a aliana, submissa e servil, do povo o terceiro estado. J Afonso II (f 1223), na luta contra o clero, pde bem avaliar a fora desse novo instrumento poltico, ao enfrentar, ajudado pela plebe furiosa, um poderoso bispo e seu cabido. Os forais a carta de foral , pacto entre o rei e o povo, asseguravam o predomnio do soberano, o predomnio j em caminho do absolutismo, ao estipularem que a terra no teria outro senhor seno o rei. Com a instituio dos concelhos logrou a poltica medieval ferir a prepotncia eclesistica, num meio que levaria a subjugar a aristocracia. A esta razo se agregava outra, inspirada na ndole militar do pas, em estreita conexo com o fundamento poltico do alargamento da forma municipal. Decretada a criao do concelho, que deveria organizar uma povoao, reedific-la ou reanim-la, procurava o rei impor-lhe o dever de defend-la militarmente contra seus inimigos, os mouros ou os vizinhos estrangeiros. Criava-se, obediente monarquia, uma milcia gratuita, infensa s manipulaes da nobreza ou do clero batizados os antigos municeps e castellanus com o nome de alcaide, palavra sugerida pela invaso rabe. Abria-se, desta forma, um campo neutro aos privilgios aristocrticos, muitos deles os coutos e as honras isentos da prestao militar, paga pelo rei quando dela necessitava. Finalmente, os concelhos somavam renda do prncipe, oriunda de seu
  • 17. patrimnio fundirio, largas contribuies. As imunidades da propriedade aristocrtica no permitiam que a casa real dela retirasse os avultados meios de que carecia, para as despesas da guerra e de seu incipiente corpo burocrtico. Este ltimo vnculo entre as contribuies e o tesouro rgio suscita a comercializao, a reduo em riqueza mvel, do patrimnio do soberano. Por a se canalizar o influxo, poderoso dentro de dois sculos, de carter patrimonial do Estado, indistinta a riqueza particular da pblica. Os mordomos, sob a chefia do almoxarife, todos incipientes funcionrios pblicos, proviam a casa real das arrecadaes nos mais distantes lugarejos. A concesso de forais permitiu melhor sistema de cobrana, com o arrendamento dos direitos aos concelhos, mais tarde substitudo pelo arrendamento a particulares. Facilitava-se com a medida, alm disso, o amoedamento das arrecadaes, numa prematura transformao da economia natural para a economia monetria. "Fundar uma vila ou povoao, ato de benemerncia rgia, era converter em moeda sonante o produto bruto da fazenda agrcola. Os impostos locais estabelecidos, as multas na quantidade dos delitos passveis dessa pena, a prestao ajustada pelos direitos de proprietrio abandonados, tudo isso constitua receita considervel. Em cada povoao os tabelies pagavam, pelo exerccio do cargo, uma anuidade. E no desdenhava o dador do foral pequenos mananciais de renda, alguns singulares. E destes a disposio no estatuto da Covilh, segundo o qual se cobrava das mulheres mundanas um soldo cada ms, pelo direito de exercerem a profisso"...11 Guerra, ascendncia do rei com a rede de seus agentes cobrindo o pas, controlando-o e dirigindo-o, domesticao sem aniquilamento da nobreza so os traos que imprimem o carter sociedade nascente. Um brao, dia a dia mais vigoroso, completar o quadro, com a entrada do povo nos clculos polticos, amparado nos concelhos, sob o ditado da velha feio romana. Astcia e pacincia erguero, do desprezo e do alheamento, uma classe, com a qual o soberano dividir lucros e moeda: ter xito a caa ao tigre por meio da lebre.12 Os ingressos da Coroa levaro o sangue, o calor, o estmulo e a vida a todas as atividades,
  • 18. agricultura, comrcio e indstria do reino. H um jogo de presses e influncias recprocas, que associam o predomnio do soberano nas rendas mais altas e nos misteres mais humildes. A propriedade do rei suas terras e seus tesouros se confunde nos seus aspectos pblico e particular. Rendas e despesas se aplicam, sem discriminao normativa prvia, nos gastos de famlia ou em obras e servios de utilidade geral. O rei, na verdade, era o senhor de tudo tudo hauria dele a legitimidade para existir , como expresso de sua autoridade incontestvel, bebida vorazmente da tradio visigtica e do sistema militar. Discernir e especificar a fonte dos ingressos da realeza ser trabalho de revelao da prpria estrutura econmica do reino. Mostrar a anlise a base do poder supremo, sua estrutura e profundidade, fonte das remuneraes aos guerreiros, funcionrios em embrio, homens da corte, letrados em flor. No h dvidas: a parte fixa, permanente, previsvel dos rendimentos do prncipe flui da propriedade fundiria (os bens reguengos, "regalengos", "regoengos", "regeengos"), senhorio territorial como outro qualquer, seja da nobreza ou do clero, singularizado com o fim de servir ao chefe do Estado e se destinar, eventualmente, a objetivos que hoje se diriam pblicos. Esta propriedade territorial sofria duas modalidades de explorao: a indireta e a direta. A explorao indireta, por sua vez, gerava duas espcies de rendas: uma que se aproxima da que caracteriza o moderno arrendamento, temporrio o cultivo da herdade; na outra, o lavrador detinha o domnio til do solo, transmissvel entre vivos e por herana, revertendo ao rei o foro. Na gesto direta do imvel, os colonos se obrigavam a prestar, gratuitamente, alguns dias de trabalho por ano, no excludo o salrio, em moeda ou in natura. Esta a explorao direta era a regra do trato da pecuria, adotada tambm, em menor parcela, nas culturas arvenses, vinhas e olivais.13 Dessa circunstncia o rei "principal lavrador da nao", com celeiros e adegas espalhados por todos os confins de seus domnios, atarefados os seus mordomos na cobrana de foros e rendas concluiu-se ser a monarquia
  • 19. portuguesa uma "monarquia agrria".14 O fato, repita-se, no pode ser posto em dvida: as rendas do soberano, na parte mais considervel, fluam da terra. A concluso, todavia, aparentemente lgica, no se concilia com as demais caractersticas do reino, em que o soberano se confunde com o titular, pelo menos eventual ou sobreproprietrio, de toda a riqueza e de toda a economia. As garras reais, desde cedo, se estenderam ao comrcio, olhos cobiosos no comrcio martimo. J nos meados do sculo XIII, estimulado pela conquista de Lisboa em 1147, o comrcio martimo mostra os sinais do seu futuro prximo, ativo com as trocas dos produtos da Inglaterra, Flandres, Frana, Castela e Andaluzia.15 Dispunha o pas, para o trfico internacional, de assentada economia de sal, pescado, vinhos, azeite, frutas, couros, cortia produtos que lhe proporcionavam os txteis flamengos e italianos, o ferro da Biscaia, as madeiras do norte, a prata da Europa central e oriental, as especiarias, o acar.16 Portugal, alm disso, cobria-se de feiras, ardentes e ativas na promoo do comrcio interno, j vinculado navegao internacional. Tudo dependia, comrcio e indstria, das concesses rgias, das delegaes graciosas, arrendamentos onerosos, que, a qualquer momento, se poderiam substituir por empresas monrquicas. So os fermentos do mercantilismo lanados em cho frtil. Dos privilgios concedidos para exportar e para importar no se esquecia o prncipe de arrecadar sua parte, numa apropriao de renda que s analogicamente se compara aos modernos tributos. No fim do sculo XIV a sisa, devida ao tesouro pelos consumidores na compra e venda e na troca de mercadorias, ocupa o primeiro lugar no oramento, recaindo sobre toda a gente, nobres, eclesisticos e plebeus, com o rompimento do privilgio da imunidade. Era o comrcio, atestado num fato fiscal, atravessando, sob o patrocnio soberano, todas as camadas da populao, estimulado na organizao dos concelhos. Nas fendas da monarquia agrria, mais fico do que realidade, cresciam os outros rendimentos da Coroa. Da propriedade no fundiria do domnio eminente e no efetivo bem como do exerccio da soberania ainda mal
  • 20. definida decorriam variadas, mltiplas, coloridas e pitorescas contribuies. Ligado s origens da monarquia destaca-se o quinto da guerra, institudo na luta contra os sarracenos, que se materializava na taxa de vinte por cento sobre os despojos tomados ao inimigo, fonte dos dispersos domnios reais em todo o territrio. Uma tentativa de classificao, sem desfigurar a realidade com padres conceituais modernos: "a) os rditos com origem na agricultura e no pastoreio cnones, pores, direituras e miunas dos herdamentos rgios, jugadas dos herdamentos dos herdadores pees, o montado pago sobre certas pastagens, as vendas da produo direta; b) rditos provenientes da circulao interna e do mercado portagens, aougagem, alcavalas; c) os rditos provenientes do comrcio externo dzimas, portagens; d) as multas judiciais, ou calnias e coutos; e) rditos provenientes da atividade industrial vieiros e minas, dzima do pescado, taxa de mesteres; f) servios prestados ao rei ou aos oficiais rgios geiras de malados jniores e outros, almocreverias e carretos, servio de remadores na frota real [...] ou suas compensaes monetrias; g) jantar ou colheita; h) emisses de moeda. Extraordinariamente, recorria-se ao pedido ou finta ou talha".17 No so de desdenhar, ainda, as rendas colhidas da dzima eclesistica, das penses de tabelionato e da justia civil. Dessa ampla rede vinham os tesouros rgios, moedas, ouro e prata, que avultam nos testamentos dos soberanos, numa indicao da nascente economia monetria. A simplificao da cobrana, j se notou, levou ao calculado incremento da ordem municipal. A Coroa criava rendas de seus bens, envolvia o patrimnio particular, manipulava o comrcio para sustentar o squito, garantia a segurana de seu predomnio. Este o primeiro ato do drama. O sdito o sdito qualificado, o nobre, j absorvido o clero nas malhas do poder supremo, e o sdito sem esporas no paga servios, tangveis ou abstratos, como o contribuinte moderno. Um poderoso scio, scio e patro, tosquia a melhor l, submetendo o proprietrio nominal obrigao de cuidar da ovelha. A nobreza, agarrada aos velhos privilgios, ainda se manter no
  • 21. nvel de companheira do soberano. Um pouco mais e ela, j cercada, com as unhas embotadas, dividir, domesticada depois de uma revoluo, o segundo lugar com a burguesia. A ideologia completar a obra, vencendo as conscincias e roubando imaginao o estandarte da resistncia. O Estado patrimonial, implacvel nos seus passos, no respeitar o peso dos sculos, nem os privilgios da linhagem antiga. 2 O CONTEDO DO ESTADO, capaz de ajustar juridicamente as relaes entre o soberano e os sditos, formou-se de muitos fragmentos, colhidos numa longa tradio. O ponto inicial, quanto ao carter poltico, pode ser situado na constituio de Diocleciano (285-305). O direito ser o de Justiniano (527-65), cujas codificaes se propagaram no ocidente, modelo indelvel do pensamento jurdico. Fixados os dois marcos a organizao poltica e o conjunto de regras jurdicas no se presume uma continuidade sem quebra, no curso de sete sculos. A seqncia se funda no aproveitamento, ao sabor das circunstncias sociais, de retalhos e restos vivos, conjugados para estruturar uma ideologia, s esta coerente. O trabalho de reconstruo espiritual deformar muitas realidades, roubadas de sua significao ntima, transfiguradas em corpos diferentes, de cor diversa, com outra fisionomia. H o trabalho surdo, em que as idias se filtram nos costumes, e o trabalho de criao consciente, ao modo de uma obra de arte, que a Escola de Bolonha (sculos XII e XIII) sistematizar. De uma e de outra fonte correro as guas para se encontrar no Estado moderno: o Estado que consagra a supremacia do prncipe, a unidade do reino e a submisso dos sditos a um poder mais alto e coordenador das vontades. No fundo, os sinos da catedral submersa, que os godos e os rabes no puderam calar. As colunas fundamentais, sobre as quais assentaria o Estado portugus, estavam presentes, plenamente elaboradas, no direito
  • 22. romano. O prncipe, com a qualidade de senhor do Estado, proprietrio eminente ou virtual sobre todas as pessoas c bens, define-se, como idia dominante, na monarquia romana. O rei, supremo comandante militar, cuja autoridade se prolonga na administrao e na justia, encontra reconhecimento no perodo clssico da histria imperial.18 O racionalismo formal do direito, com os monumentos das codificaes, servir, de outro lado, para disciplinar a ao poltica, encaminhada ao constante rumo da ordem social, sob o comando e o magistrio da Coroa. O direito escrito dos visigodos se construiu sobre o direito romano e a influncia do clero, penetrada esta dos rasgos principais das antigas codificaes justinianas. Bem verdade que os costumes, alm do extenso territrio das prticas extralegais, conservaram carter godo, sobrepondo-se, em muitos assuntos, ordem jurdica formalizada. De outro lado, a disperso da autoridade, fenmeno geral na Idade Mdia, conspirava em favor do predomnio do direito costumeiro do costume da terra, rplica continental do Common Law. Sobre este manto de muitas cores e de muitos retalhos, o direito romano j se impe como o modelo do pensamento e o do ideal de justia uma ideologia ainda em formao, germinando obscuramente. No subsistiria se no a fecundasse o adubo dos interesses, que se aproveitam da armadura espiritual, conservando-a por fora e dilacerando-a na intimidade. O clero, desde o distante sculo VI, convertido o rei visigtico ao catolicismo, trabalhou para romanizar a sociedade. Serviu-se, para esta obra gigantesca, do direito romano, o qual justificava legalmente seus privilgios, revelando-se o instrumento ideal para cumprir uma misso e afirmar um predomnio. A Pennsula Ibrica, unida cabea papal, absorveu as lies dos clrigos-juristas, que se espalham pela Europa, sobretudo a partir dos sculos XI e XII. Culmina este movimento, j contestada a supremacia do clero, com as obras jurdicas e legislativas de Afonso X (1267-72), rei de Castela, autor do monumento das Siete partidas, e do rei portugus Afonso III (1246 ou 1248-79) com sua ordenao sistemtica sobre o processo.19 O domnio do clero e da nobreza, empreendido pelo rei,
  • 23. encontrou, nesse instrumento, os meios espirituais de justificao. A obra dos juristas e imperadores romanos serviu, v-se logo, a fins opostos aos previstos pelo clero, num movimento que d contedo novo s formaes ideolgicas. As duas fases dessa luta obedecem aos padres, acabados e perfeitos, do jurismo justinianeu. A primeira batalha, rijamente estimulada pelos soberanos portugueses, buscou nos municpios romanos a forma adequada instituio dos concelhos, de cujo expressivo papel histrico j se fez meno. Certo, uma viva polmica se instaurou, a este propsito, nas letras portuguesas e europias, com graves danos tese sustentada por Herculano e Gama Barros, que no hesitaram em ver na organizao municipal dos concelhos a face romana.20 No centro da divergncia h uma incompreenso: o municpio portugus se filia origem romana, mas sua feio ideolgica, no sua continuidade real. A forma, o modelo, a estrutura so romanos o contedo, os fins a que se destina, as funes que desempenha so modernos, e, em muitos pontos, incompatveis com o molde abstrato antigo. Este o sentido, de resto, da influncia romana. Por isso, os princpios justinianeus apareceram em certo momento, no momento de atuar, corrigir e dominar, e no em todos os tempos. A incorporao dos enxertos velhos se opera seletivamente, infundindo vida a um corpo apagado, sem alma prpria. No importa a observao em afirmar o papel passivo da ideologia: ela pressiona, se interpenetra, ou, em casos extremos, frustra a realidade. Impossvel ser, todavia, dissoci-la do sistema ou da estrutura social, dentro da qual vive e atua, perecendo se afastada do hmus que a tonifica. Igualmente, a segunda fase do movimento lanado para erguer o prncipe sobre as camadas que o querem tolher, dividindo com ele o poder, se apia sobre o direito romano. O primeiro passo ser o depuramento do direito romano do direito cannico21, dissonncia que traduz a discrdia entre o clero e a Coroa. Entram em cena, nesta luta, os letrados, filhos diretos ou indiretos da Escola de Bolonha (sculos XII e XIII) e das universidades europias, progressivamente implantadas. Define-se, a partir da corte, a distino entre o dominare, reservado
  • 24. nobreza territorial, e o regnare, exclusivo do prncipe, embrio da futura doutrina da soberania, cujo proprietrio ser o rei. Refinado o pensamento, o conceito de propriedade do reino se elevar para reconhecer ao soberano a qualidade de defensor, administrador e acrescentador, teoria que assenta sobre o domnio eminente e no real. So as vsperas vsperas de alguns sculos do absolutismo. Ao tempo que combatia o particularismo da nobreza territorial, a recepo do direito romano no favorecia os interesses comerciais. Raciocnio simplificador poderia, ao situar uma face do problema, evocar a outra, como se, entre as duas, no se interpusesse, mais alto, o prncipe, titular de grandes, poderosos e extensos interesses econmicos. O comrcio j criara, no seio da Idade Mdia, o seu prprio direito, fundamento e origem do moderno direito comercial com suas sociedades comerciais e os ttulos de crdito. A Inglaterra, me do capitalismo moderno, pde desenvolver seus instrumentos legais de relaes econmicas, sem que o direito romano exercesse papel de relevo. A direo que suscitou o recebimento do direito romano ser de outra ndole: a disciplina dos servidores em referncia ao Estado, a expanso de um quadro de sditos ligados ao rei, sob o comando de regras racionais, racionais s no sentido formal. A calculabilidade do novo estilo de pensamento jurdico, reduzida ao aspecto formal, no exclui, na cpula, o comando irracional da tradio ou do capricho do prncipe, em procura da quebra aos vnculos das camadas nobres. No ganhou a justia foros de impessoalidade, assegurada nas garantias processuais isentas da interferncia arbitrria dos julgados. O cronista do sculo XV, Ferno Lopes, no consegue repudiar, embora no aprove no ntimo, os desvairados atos de justia de dom Pedro I (1367). Usou o desesperado amante de Ins de Castro "de justia sem afeio", sem que a igualdade de tratamento a todos os delinqentes traduzisse a moderna igualdade perante a lei. Graduava as penas de acordo coro seu enlouquecido juzo, sem obedincia a cnones pr-fixados. A um adltero mandou, em sua cmara, "cortar-lhe aqueles membros que os homens em maior apreo tm". Por sua prpria mo, meteu a tormento
  • 25. um dos assassinos de Ins de Castro, sem poupar chicotadas aos criminosos. Justia salomnica, cuja caricatura fez do governador Sancho Pana o modelo dos juizes do caso a caso, espectro racional ao servio das decises arbitrrias. As instituies no gozam de campo prprio de atuao, visto que esto subordinadas ao poder do prncipe, capaz de decidir da vida e da morte, reminiscncia prxima do rei- general, competente para julgar todos os soldados. Verdade que, nos calcanhares, a nobreza territorial, dominada mas no domesticada, rosna ameaas rancorosas, espreita do momento de lanar-lhe os dentes, cautelosa. O renascimento jurdico romano, estimulado conscientemente para reforo do Estado patrimonial, serviu de estatuto ascenso do embrionrio quadro administrativo do soberano, grmen do ministerialismo. Ainda aqui, a tradio visigtica infiltrou, no reino recm-constitudo, os fluidos poderosos das idias e instituies romanas. As ondas da era de Diocleciano, contaminadas do orientalismo dos prncipes despticos, atingem o mundo novo, ditando-lhe, em acolhimento seletivo, a ordem antiga. Os funcionrios romanos se transmutaram na aristocracia goda, que se afastou da sua imagem original pela riqueza territorial. O papel da ltima, porm, sofreu limites severos na sua independncia ou autonomia, com a poltica real de agrupar, na corte, os nobres, atrelados a funes pblicas, que os amarravam ao poder do soberano. Por via do leito, cavado no sculo III, no lograram as impetuosas guas descentralizadoras apagar a organizao antiga. A Pennsula Ibrica teria sido conquistada, mas no germanizada, fiel a uma utopia perdida, atuante como uma viso potica, capaz de imantar as imaginaes, se os interesses a evocarem.22 O elemento catalisador das baronias territoriais foi o officium palatinum ou aula regia, criao de Diocleciano, composta dos principais oficiais da monarquia, magistrados superiores, civis e militares, rgo onde se fundiam a aristocracia burocrtica dos romanos e a militar dos godos. O recrutamento, condicionado pela tradio, obedecia liberdade do rei,
  • 26. que nela inclua servos de sua casa, ao lado de senhores territoriais. Consultiva por natureza, pesava, sem embargo, nas decises da realeza, capaz at de depor um rei, condenado ao desterro aviltante como acontecera com o desventurado Vamba (672-80). Mais importante do que a aula regia e os conclios destitudos de atribuies diretas de comando, era o corpo ministerial, responsvel pelos negcios da Coroa, antecipao da organizao moderna, sem ntida separao de competncia, indistinto o patrimnio rgio do patrimnio da nao. Incluam-se nesse conselho: "o comus thesaurorum, a um tempo almoxarife e ministrio da fazenda; o comus patrimoniorum, uma espcie de ministro do imprio; o comus notoriorum, semelhante a um procurador-geral da Coroa; o comus spathiorum, general-em-chefe das guardas do rei (cousa diversa do exrcito, que ento se formava com os contingentes da nobreza e dos concelhos); o comus scanciorum, mordomo- mor; o comus cubiculi, camareiro-mor; o comus stabuli, estribeiro-mor; e, finalmente, o comus exercitus, ministro da guerra".23 Esta ordem poltica, com a conquista sarracena, se desintegrou desintegrou-se mas no se perdeu, conservada na tradio. A reconquista a revalorizou, nico padro espiritualmente mantido no renovo do poder real. O baro no se extremou, nem se estereotipou no feudalismo: as populaes s aceitam, hipnotizadas por um estilo antigo, a nica predominncia do rei, chefe dos exrcitos. O baro define sua sobranceria como funcionrio e no como senhor os agrupamentos de moradores, as behetrias, reivindicam autonomia, s obediente ao chefe supremo.24 H um trao do feudalismo mas no o feudalismo como instituio. O direito pblico que define as relaes entre o rei e os sditos continua visigtico25, assegurando as prerrogativas intangveis do rei. No sculo XV, esta linha de pensamento levaria um rei a se reconhecer titular do poder absoluto. A organizao ministerial renasceu, ela tambm, dos escombros da monarquia visigtica, por sua vez impregnada de romanismo. O mais elevado cargo, exercido sob o direto comando do rei, modifica-se, quanto preeminncia, tal como na ordem visigtica, de acordo com as condies do reino. Sob as
  • 27. aperturas da guerra de reconquista e de definio do pas, a principal funo caber ao comandante do exrcito, comandante superior na ausncia do rei o alferes-mor (signifer). Esta funo, simbolizada na competncia para levar o pendo do rei, cabia, em tempo de paz, a um escudeiro. No sculo XIII, os personagens mais importantes do reino, os que mais assiduamente freqentavam o rei, eram os guardas dos livros dos rditos da Coroa (recabedo regni): o alferes, o mordomo e o chanceler. O chefe da administrao civil, equiparado ao alferes, era o mordomo da corte (mordomus curiae). Sob a influncia inglesa, em 1382, criaram-se os postos de condestvel e marechal da hoste, cabendo ao primeiro superintender o exrcito e tomar-lhe a vanguarda, cargo que, como o de maior honra do reino, coube a Nuno Alvares, durante a crise de 1383-85.26 Ao marechal da hoste se atribuam as funes de primeiro auxiliar do condestvel, com as funes de chefe dos rgos judicirios em campanha.27 indistino das atribuies, sucede, sob a presso dos juristas, uma organizao de competncias cada vez mais fixas. H, portanto, uma linha ideolgica contnua entre o imprio de Diocleciano e o reinado da reconquista: linha cortada de muitos acidentes, reconstituda pelos letrados, no limiar da Renascena. "Para acabar de destruir a preponderncia e at o equilbrio dos elementos polticos a pena do jurista, mais pesada que o montante do soldado, porque representava a inteligncia, achava-se na balana ao lado do cetro. Educados na admirao da sociedade romana na poca do imprio, deslumbrados pela indubitvel superioridade das suas instituies civis sobre as rudes e incompletas usanas tradicionais da idade mdia, os letrados acolhiam com o mesmo culto supersticioso as mximas da poltica desptica dos csares." (O monge de Cister, cap. XVII.) No antecipemos, porm, a hora do absolutismo, nem a hora singular de Joo das Regras, capaz de formar, com suas mos cultas e astutas, uma nova dinastia, sada da espada da nao popular.
  • 28. 3 Os MENCIONADOS FUNDAMENTOS SOCIAIS e espirituais renem-se para formar o Estado patrimonial. A realidade econmica, com o advento da economia monetria e a ascendncia do mercado nas relaes de troca, dar a expresso completa a este fenmeno, j latente nas navegaes comerciais da Idade Mdia. A moeda padro de todas as coisas, medida de todos os valores, poder sobre os poderes torna este mundo novo aberto ao progresso do comrcio, com a renovao das bases de estrutura social, poltica e econmica. A cidade toma o lugar do campo. A emancipao da moeda circulante, atravessando pases e economias at ento fechadas, prepara o caminho de uma nova ordem social, o capitalismo comercial e monrquico, com a presena de uma oligarquia governante de outro estilo, audaz, empreendedora, liberta de vnculos conservadores.28 Torna-se possvel ao prncipe e ao seu estado- maior organizar o Estado como se fosse uma obra de arte, criao calculada e consciente. As colunas tradicionais, posto que no anuladas ou destrudas, graas aos ingressos monetrios, ao exrcito livremente recrutado e aos letrados funcionrios da Coroa, permitem a construo de formas mais flexveis de ao poltica, sem rgidos impedimentos ou fronteiras estveis.29 o Estado moderno, precedendo ao capitalismo industrial, que se projeta sobre o ocidente. Na aparente seqncia sem acidentes, que parte da guerra e amadurece no comrcio, com o prncipe senhor da espada e das trocas, h um srio problema histrico. Seria a nova construo poltica um acontecimento s possvel depois da runa do feudalismo ou teria ele uma linha prpria de crescimento, sem vnculo necessrio com o sistema reinante na Europa central? A questo, de feitio enganadoramente terico, tem largo alcance no tempo: ser uma das determinantes que explicar a histria da sociedade brasileira. Sua ressonncia alcanar o sculo XX, envolvendo apaixonada polmica, ditando a interpretao histrica da estrutura econmica vigente. No bojo da tese central h outras duas: o feudalismo na Pennsula Ibrica
  • 29. e em Portugal e o feudalismo no Brasil. H um dogma, frio, penetrante, expansivo, que pretende comandar a interpretao histrica. A sociedade capitalista, no ocidente, se gerou das runas da sociedade feudal. A era capitalista, caracterizada pela propriedade da burguesia dos meios de produo e da explorao do trabalho assalariado, teria seu ponto de partida no sculo XVI. Os acontecimentos singulares dessa poca as navegaes e os descobrimentos, as colnias e os novos mercados aceleraram uma transformao fundamental da histria, convertida, pelo seu volume, de quantitativa em qualitativa, segundo o enunciado de uma lei da dialtica. A produo da economia natural, com trocas apenas do suprfluo, cedeu o lugar s manufaturas, iniciando o irreversvel e fatal movimento da acumulao do capital, que expropriou as terras dos produtores, separando-os, tambm na produo artesanal, dos meios de produo. Rompe-se, com estas alavancas, o mundo feudal, substitudo pelo mundo capitalista, este aniquila o primeiro, com armas que, um dia, se voltaro contra o novo sistema.30 O feudalismo, fase necessria no ocidente europeu, seria um momento da diviso do trabalho, que se projeta em formas diversas de propriedade. Sucedeu ao primeiro estgio, o tribal, o perodo estatal e comunal, alcanando o sistema feudal, preldio da era capitalista. Cidade e campo, polarizados com a propriedade territorial e corporativa, respectivamente, se identificam numa ordem patriarcal e hierrquica.31 Feudalismo e economia natural seriam termos correlatos.32 O ponto importante, que caracteriza a economia da Idade Mdia, identificada em bloco com o feudalismo, reside na propriedade dos meios de produo. Regia, antes do advento do capitalismo, a pequena indstria, calcada na propriedade do arteso sobre os meios produtivos, e, no campo, a agricultura de lavradores limitados a plantar para as suas necessidades, ou pouco mais. "Os meios de trabalho a terra, os implementos agrcolas, a oficina, as ferramentas eram meios de trabalho dos indivduos, destinados to-s ao uso individual, e, portanto, necessariamente pequenos, minsculos, limitados. Por isso
  • 30. mesmo pertenciam, em regra, ao prprio produtor."33 O tear individual cedeu lugar ao tear coletivo, a roca foi substituda pela mquina de fiar a produo perde o carter individual, entregue a foras coletivas, que convertem o trabalho em mercadoria, degradando-o condio de coisa, perdida a identidade do homem na ndole annima de seus produtos. Inegvel, no quadro medieval, alm da feio idealizadora, a cor idlica, adequada para se opor ao negro painel do capitalismo. Idade Mdia e feudalismo, reduzido este, fundamentalmente, a uma forma de trabalho, se confundem. Dela e s dela, imperativamente brota o capitalismo, filho das contradies aninhadas no seu seio: uma classe oprimida, a burguesia das cidades, se ergue contra os nobres, esmagando-os, primeiro no campo econmico e depois na arena poltica. Outra conseqncia do modelo marxista: o capitalismo, responsvel pela runa feudal, o capitalismo das manufaturas, fase primeira do capitalismo industrial. Isto no exclui, verdade, que, a seu servio, em pases diferentes, ele se projete no capitalismo comercial, caracterizado na troca de produtos manufaturados alheios, por mercadorias arrancadas do prprio solo, do mar ou das navegaes. O contexto da nova poca ter carter universal, arrastando, nas suas guas, as naes que trabalham nas usinas, as naes inertes e as naes que buscam, na aventura, a riqueza e a opulncia. Ainda uma observao. As pocas econmicas do mundo asitico, antigo e feudal so fases, encadeadas sob o vnculo progressivo e ascendente, que culminou na poca moderna.34 A histria segue um curso linear embora reconhea a doutrina a ausncia de feudalismo nos Estados Unidos e a no peculiaridade de certas relaes sociais tidas como especficas da Idade Mdia.35 Esta doutrina, construda sobre uma tradio histrica, recebida sem exame crtico de profundidade, infiltrou-se na teoria, ganhando o prestgio dos lugares-comuns. Ela contaminou os estudos do sculo XX, empenhada em, por toda parte, sobretudo nos pases subdesenvolvidos, descobrir a "estrutura feudal", os "restos feudais", perdidos no mundo universal do capitalismo. Os estudos do sculo XIX,
  • 31. sobre os quais brotou a tese marxista, pareciam apoi-la, com raros dissidentes. A Europa seria, sem maiores dvidas, um universo feudal desmoronado, no sculo XV, sob o peso das manufaturas e das monarquias. Os movimentos anteriores polticos e sociais seriam, quando existentes, antecipaes de um curso histrico geral.36 O problema no seria pertinente a este ensaio se o feudalismo no houvesse deixado, no seu cortejo funerrio, vivo e persistente legado, capaz de prefixar os rumos do Estado moderno. Patrimonial e no feudal o mundo portugus, cujos ecos soam no mundo brasileiro atual, as relaes entre o homem e o poder so de outra feio, bem como de outra ndole a natureza da ordem econmica, ainda hoje persistente, obstinadamente persistente. Na sua falta, o soberano e o sdito no se sentem vinculados noo de relaes contratuais, que ditam limites ao prncipe e, no outro lado, asseguram o direito de resistncia, se ultrapassadas as fronteiras de comando.37 Dominante o patrimonialismo, uma ordem burocrtica, com o soberano sobreposto ao cidado, na qualidade de chefe para funcionrio, tomar relevo a expresso.38 Alm disso, o capitalismo, dirigido pelo Estado, impedindo a autonomia da empresa, ganhar substncia, anulando a esfera das liberdades pblicas, fundadas sobre as liberdades econmicas, de livre contrato, livre concorrncia, livre profisso, opostas, todas, aos monoplios e concesses reais. O feudalismo no cria, no sentido moderno, um Estado. Corporifica um conjunto de poderes polticos, divididos entre a cabea e os membros, separados de acordo com o objeto do domnio, sem atentar para as funes diversas e privativas, fixadas em competncias estanques. Desconhece a unidade de comando grmen da soberania , que atrai os fatores dispersos, integrando-os; apenas concilia, na realizao da homogeneidade nacional, os privilgios, contratualmente reconhecidos, de uma camada autnoma de senhores territoriais. No h feudalismo sem a superposio de uma camada de populao sobre outra, dotada uma de cultura diversa. O ajuste, a adaptao das duas estruturas se processa, num momento sobretudo
  • 32. (no necessariamente) de economia natural e de trnsito precrio, tornando difcil ou impossvel a troca de mercadorias. O feudalismo, fenmeno no somente europeu, significa, portanto, um acidente, um desvio na formao da nao politicamente organizada. No se apresenta ele no mundo grego ou no mundo romano, onde uma linha sem interrupo se fixou, desde a tribo at ao Estado universal. H insupervel incompatibilidade do sistema feudal com a apropriao, pelo prncipe, dos recursos militares e fiscais fatores que levam a intensificar e racionalizar o Estado, capaz, com o suporte econmico, de se emancipar, como realidade eminente, das foras descentralizadas que o dispersam, dividem e anulam. Mesmo nos pases de tradio feudal, a emergncia desses elementos golpeou o desenvolvimento de suas expresses caracterizadoras.39 O incremento do comrcio, de outro lado, acelera o aparecimento do sistema patrimonial, contrrio ordem feudal.40 O feudalismo, realidade histrica e sistema social, no se constri, desta sorte, mediante modelos arbitrrios, esquematicamente simplificados. Ele h de se retratar num tipo ideal, capaz de, fielmente, reconstruir um momento histrico, em traos simultneos, que, reunidos, formam o conceito da realidade. O sistema se compe de elementos militares, econmico-sociais e polticos; a identificao de um carter disperso no o caracteriza lembra aspectos feudais, que, como tais, so o oposto do feudalismo. O chamado feudalismo portugus e brasileiro no , na verdade, outra coisa do que a valorizao autnoma, truncada, de reminiscncias histricas, colhidas, por falsa analogia, de naes de outra ndole, sujeitas a outros acontecimentos, teatro de outras lutas e diferentes tradies. De outro lado, o feudalismo suporta diversas bases, em que predominam um e outro fator essencial, sem a excluso de seus elementos fundamentais. O elemento militar do regime feudal caracteriza a situao de uma camada (estamento v. adiante) vinculada ao soberano por um contrato um contrato de status, calcado na lealdade, sem subordinao incondicional. Sob o aspecto econmico-social, aos senhores est reservada uma renda, resultante da explorao da terra.
  • 33. Politicamente, a camada dominante, associada ao rei por convvio fraternal e de irmandade, dispe de poderes administrativos e de comando, os quais, para se atrelarem ao rei, dependem de negociaes e entendimentos. Dos trs elementos, que somente reunidos constituem o feudalismo, resulta, com respeito ao soberano, a imunidade armada, capaz de se extremar na resistncia, elevada categoria de um direito. O servio ao rei e o servio aos senhores, por meio do conceito de vassalagem, no constitui uma obrigao ou um dever forma um apoio livre, suscetvel de ser retirado em qualquer tempo.41 Situado terica e historicamente o contedo do sistema feudal, ressalta do enunciado a sua incompatibilidade com o mundo portugus, desde os primeiros atos do drama da independncia e da reconquista. A velha tese de Alexandre Herculano, sustentada com paixo, est hoje consagrada, sem embargo das isoladas resistncias: Portugal no conheceu o feudalismo.42 No se vislumbra, por mais esforos que se faam para desfigurar a histria, uma camada, entre o rei e o vassalo, de senhores, dotados de autonomia poltica. O feudalismo, acidente poltico e de direito pblico, no se configura, historicamente, sem que rena os elementos que o fazem um regime social. O argumento de que se deve procurar-lhe o cerne no sistema econmico, no enquadramento das foras de produo, peca por uma fraqueza fundamental. Se ele no logrou provocar, na superfcie, as floraes sociais, jurdicas e institucionais as chamadas superestruturas , essa incapacidade denuncia a prpria incerteza da infra-estrutura, da base. Quer, todavia, como regime econmico, por emprstimo ou como fenmeno comum europeu, quer como realidade social, militar e poltica, esteve ele ausente de Portugal, salvo, como assinalado, em algumas ilhas francesas, logo absorvidas no contexto nacional. A persistncia, no curso da histria, de magnatas territoriais, no os extrema, apesar dos poderes decorrentes da riqueza e das dependncias que ela gera, na caracterizao de um sistema que, para se aperfeioar, exige o conjunto de outras atribuies, imunidades e
  • 34. competncias de ordem pblica. A terra obedecia a um regime patrimonial, doada sem obrigao de servio ao rei, no raro concedida com a expressa faculdade de alien-la. O servio militar, prestado em favor do rei, era pago. O domnio no compreendia, no seu titular, autoridade pblica, monoplio real ou eminente do soberano. Estado patrimonial, portanto, e no feudal, o de Portugal medievo. Estado patrimonial j com direo pr-traada, afeioado pelo direito romano, bebido na tradio e nas fontes eclesisticas, renovado com os juristas filhos da Escola de Bolonha. A velha lio de Maquiavel, que reconhece dois tipos de principado, o feudal e o patrimonial, visto, o ltimo, nas suas relaes com o quadro administrativo, no perdeu o relevo e a significao.43 Na monarquia patrimonial, o rei se eleva sobre todos os sditos, senhor da riqueza territorial, dono do comrcio o reino tem um dominus, um titular da riqueza eminente e perptua, capaz de gerir as maiores propriedades do pas, dirigir o comrcio, conduzir a economia como se fosse empresa sua.44 O sistema patrimonial, ao contrrio dos direitos, privilgios e obrigaes fixamente determinados do feudalismo, prende os servidores numa rede patriarcal, na qual eles representam a extenso da casa do soberano. Mais um passo, e a categoria dos auxiliares do prncipe compor uma nobreza prpria, ao lado e, muitas vezes, superior nobreza territorial. Outro passo ainda e os legistas, doutores e letrados, conservando os fumos aristocrticos, sero sepultados na vala comum dos funcionrios, onde a vontade do soberano os ressuscita para as grandezas ou lhes vota o esquecimento aniquilador. A economia e a administrao se conjugam para a conservao da estrutura, velando contra as foras desagregadoras, situadas na propriedade territorial, ansiosas de se emanciparem das rdeas tirnicas que lhes impedem a marcha desenvolta. H, em todos os tempos e com maior veemncia num contexto feudal de vizinhana, o impulso do domnio territorial de se projetar numa nobreza, cuja forma de preponderar ser o aprisionamento do prncipe num sistema feudal. Enquanto o mundo no est dominado, em toda a sua extenso, pelo capitalismo
  • 35. industrial, o risco de um feudalismo importado est sempre presente. Ele no pde, incontestavelmente, se fixar no reino portugus, voltado, desde o bero, para um destino patrimonial, de preponderncia comercial. Nem por isso deixaram de rondar perigos prximos, sagazmente combatidos e anulados em todo o tempo, pela ordem em ascenso, comandada pelo rei, com os prstimos dos comerciantes, letrados e militares, grupos interessados na incolumidade do tesouro real, forte e centralizador, rico e generoso. Uma nao se projeta, gerada sob a presso de foras singulares, na Idade Moderna, antecipando um desenvolvimento que s amadureceria dois sculos depois na Europa. A monarquia agrria, hiptese de trabalho carinhosamente cultivada pela historiografia portuguesa45, no passou de um esboo, varrido da terra com a abertura de Lisboa ao oceano. O comrcio definiu o destino do reino, meio natural do financiamento da obra da reconquista e da independncia. De tal maneira o trfico se converteu no modo prprio de expandir suas atividades que Portugal, embriagado de imprevidncia, abandonou a cultura do trigo, para adquiri-lo em mercados estrangeiros, a melhor preo do que o produzido em seus vales.46 Uma trajetria sem interrupo, iniciada com as exportaes para Flandres, Inglaterra e Mediterrneo, culmina nas grandes navegaes. "A maior parte da populao portuguesa na Idade Mdia vivia da agricultura. Exato. No obstante, o trao caracterstico da vida econmica no dado pela explorao do solo. A atividade comercial e martima que resultou da modalidade do povoamento da costa e da explorao do mar que representa o elemento decisivo que define o gnero de vida nacional portugus baseado na pesca, na salinao e nas trocas dos produtos comerciveis da terra. Graas ao desenvolvimento do trfico ocenico, os mercadores portugueses puderam desde muito cedo estabelecer estreitas e cordiais relaes com a Flandres."47 Entre o comrcio medieval, de trocas costeiras, e o comrcio moderno, com as navegaes longas, h o aparecimento da burguesia desvinculada da terra, capaz de financiar a mercancia. H, sobretudo, o aparecimento de um rgo
  • 36. centralizador, dirigente, que conduz as operaes comerciais, como empresa sua: o prncipe. Nenhuma explorao industrial e comercial est isenta de seu controle guarda, todavia, para seu comando imediato os setores mais lucrativos, que concede, privilegia e autoriza burguesia nascente, presa, desde o bero, s rdeas douradas da Coroa. As outorgas de atividades, dispersas e tmidas, ganham relevo com as grandes viagens, com os reis senhores incontestveis dos mares e das rotas abertas na frica, sia e Amrica. O Estado torna-se uma empresa do prncipe, que intervm em tudo, empresrio audacioso, exposto a muitos riscos por amor riqueza e glria: empresa de paz e empresa de guerra.48 Esto lanadas as bases do capitalismo de Estado, politicamente condicionado, que floresceria ideologicamente no mercantilismo, doutrina, em Portugal, s reconhecida por emprstimo, sufocada a burguesia, na sua armadura mental, pela supremacia da Coroa. A camada dirigente, com o rei no primeiro plano, o futuro rgio mercador da pimenta, dever ao comrcio seu papel de comando, sua supremacia, sua grandeza. A estrutura patrimonial levar, porm, estabilizao da economia, embora com maior flexibilidade do que o feudalismo. Ela permitir a expanso do capitalismo comercial, far do Estado uma gigantesca empresa de trfico, mas impedir o capitalismo industrial.49 Quando o capitalismo brotar, quebrando com violncia a casca exterior do feudalismo, que o prepara no artesanato, no encontrar, no patrimonialismo, as condies propcias de desenvolvimento. O trnsito, a compra e venda, o transporte, o financiamento ensejaro o gigantismo dos rgos de troca, com o precrio enriquecimento da burguesia, reduzida ao papel de intermediria entre as outras naes. A atividade industrial, quando emerge, decorre de estmulos, favores, privilgios, sem que a empresa individual, baseada racionalmente no clculo, inclume s intervenes governamentais, ganhe incremento autnomo. Comanda- a um impulso comercial e uma finalidade especulativa, alheadores das liberdades econmicas, sobre as quais assenta a revoluo industrial. Da se geram conseqncias econmicas e efeitos polticos, que se
  • 37. prolongam no sculo XX, nos nossos dias. Os pases revolvidos pelo feudalismo, s eles, na Europa e na sia, expandiram uma economia capitalista, de molde industrial. A Inglaterra, com seus prolongamentos dos Estados Unidos, Canad e Austrlia, a Frana, a Alemanha e o Japo lograram, por caminhos diferentes, mas sob o mesmo fundamento, desenvolver e adotar o sistema capitalista, integrando nele a sociedade e o Estado. A Pennsula Ibrica, com suas floraes coloniais, os demais pases desprovidos de razes feudais, inclusive os do mundo antigo, no conheceram as relaes capitalistas, na sua expresso industrial, ntegra. A coincidncia flagrante e, vista da perspectiva desta ltima metade do sculo XX, ser capaz de provocar a reviso da tese de Max Weber, que vinculou o esprito capitalista tica calvinista.50 Entre coincidncia e causalidade h, certo, um caminho a percorrer, longo caminho de muitas pesquisas, laboriosas investigaes e hipteses ousadas. Guerra, quadro administrativo, comrcio, a supremacia do prncipe quatro elementos da moldura do mundo social e poltico de Portugal. Dentro do quadro, h um drama que precipitar a emergncia de uma estrutura permanente, viva no Brasil, fixada na queda de uma dinastia, consolidada numa batalha, amadurecida com a expedio de Ceuta (1415).
  • 38. C A P T U L O I I A REVOLUO PORTUGUESA 1. Preliminares da revoluo de 1383-85: a nobreza, a burguesia e dom Fernando 2. A Revoluo de Avis: vitria da burguesia sob a tutela do rei 3. O estamento: camada que comanda a economia, junto ao rei 4. Da aventura ultramarina ao capitalismo de Estado 5. A ideologia do estamento: mercantilismo, cincia e direito
  • 39. 1 A OBRA DA CONSOLIDAO da monarquia portuguesa, condicionada pelo capitalismo poltico1, chegar ao seu ponto culminante por meio de uma revoluo, a mais profunda e a mais permanente de todas as revolues que varreram a histria do pequeno reino. Preparam-na causas remotas e acidentes prximos, todos conjugados para a abertura de uma nova idade, a stima idade "na qual se levantou outro mundo novo, e nova gerao de gentes", na palavra proftica do cronista.2 Na segunda metade do sculo XIV, uma velha camada, a aristocracia territorial, subitamente fortalecida, procurava afirmar, com exclusividade, seu domnio poltico. De outro lado, a categoria mais rica, a burguesia comercial, longamente associada Coroa, sabia que sua hora havia soado, a hora de juntar riqueza o poder poltico. O dilaceramento das duas faces, ao ameaar a prpria existncia da nao, provocou uma guerra externa, expresso de uma tenaz, porfiada e autntica luta intestina. Perece uma dinastia, a dinastia afonsina, filha da infncia do reino; em seu lugar, ergue-se a gloriosa dinastia de Avis (1385-1580), plataforma social e poltica da conquista do mundo desconhecido pelas audaciosas naus de Vasco da Gama. Nasce, assistida pela violncia, pelo dissdio, pela guerra, a nao pica de Os Lusadas, sonho de curta durao, meterico, que deixou, na sua cauda de luz, uma constelao ainda ntegra. As bases da revoluo comearam a ser lanadas com o movimento que aproxima, uma de outras, as populaes do litoral, com a abertura do comrcio martimo, primeiro com produtos agrcolas, depois com a pesca e o sal. H, nessa caminhada, uma longa histria, j ardente no domnio dos sarracenos na Pennsula os portugueses sucederam ao comrcio rabe, que j havia definido a vocao martima do pas, vocao geograficamente condicionada na convergncia atlntica da terra. Morabes e muulmanos preparam, com o trfico pelo mar, a jornada ultramarina e a grandeza de uma camada popular, a burguesia comercial. Documentos do sculo XII
  • 40. demonstram que, na concesso de privilgios para os oficiais de navios e nas mercadorias reexportadas, persistia uma atividade antiga, rapidamente em expanso aps a reconquista. Em consonncia com a realidade econmica, as instituies se renovam, permitindo o florescimento das suas virtualidades. s camadas privilegiadas nobreza e clero se contrape a ascenso popular, protegida pelas comunas, que crescem, na Europa medieval, dentro de um contexto geral, s ideologicamente filiado s tradies romanas. A fixao da monarquia portuguesa, contemporaneamente revoluo comunal europia, teve efeito acelerador nas garantias e privilgios dos concelhos no princpio ilhas de liberdade dentro da armadura aristocrtica. "Ao findar o sculo XIII, malgrado as discrdias das classes, mal sujeitas a um cetro ainda vacilante, sente-se que a nao est de p. Fica povoada a costa de norte a sul e formado o gnero de vida nacional pelo comrcio martimo com base na agricultura. Os homens bons e a arraia-mida dos concelhos, a peonagem que to brilhantes provas deu nas Novas de Tolosa, formam ao lado do monarca, ao qual apiam nas tentativas de unificar as classes, sob o imprio da mesma lei. A prpria lngua portuguesa, o rude mas saboroso romance medieval, por influncia dessas classes urbanas, sai definitivamente do latim e balbucia, atravs dos documentos oficiais, a soberania e a unificao da grei. E j nas guas da beira-mar, nas viagens de pesca ao longo dos litorais ou de longo curso a pases distantes, uma gente nova e audaz ala sobre as esbeltas caravelas a rmige das latinas."3 O Porto, que busca o lugar de metrpole social do reino, por meio de um burgus, ousa firmar o primeiro tratado de comrcio com a Inglaterra, em nome dos mercadores, marinheiros e pescadores.4 E o litoral, so as cidades que anseiam pelo comando da poltica comercial, modificando, com a presena de suas instituies, as relaes sociais do campo. O comrcio de trnsito, abraando a Europa, est prximo da plena maturidade. Lisboa seria o teatro da nova era, projetada sobre o mar e sobre o mundo. Nos meados do sculo XIV entram a ferver as causas prximas da
  • 41. grande revoluo, da gloriosa revoluo que completou e aperfeioou o reino. Um acidente prepara-lhe o nimo popular, conturbado com as conseqncias sociais e econmicas da grande peste de 1348. Provavelmente pereceu um tero da populao, atingida sem nenhum meio de defesa, seno a splica ao cu.5 No campo, alteraram-se, de imediato, as relaes de trabalho e de riqueza: ao lado da escassez de servidores, os jornaleiros, dizimados em maior nmero pelo flagelo, as heranas, avolumando-se em poucas mos, em virtude de muitos proprietrios desaparecidos, enriqueceram pessoas que, desse modo, aumentaram seu patrimnio ou abandonaram a condio servil. A no- breza, assentada sobre os bens rsticos, encontrou-se sem trabalhadores, ao tempo que novos proprietrios, at ento jornaleiros, pretendiam a ela se equiparar na ociosidade, padro visvel do alto estado. "O leitor de agora, conhecedor da lei que relaciona os preos com a intensidade da oferta e da procura, prev facilmente o que veio a dar-se: uma revoluo nos salrios. Faltavam obreiros para o trafegar das glebas, e fugia-se a servir pela paga antiga. De a se origina o conflito econmico entre a classe dos empregadores e a dos jornaleiros estes exigindo maior estipndio, ou buscando profisso de seu maior agrado, aqueles esforando-se por obrigar os 'vis' a servirem por soldada que lhes impunha a lei."6 Afonso IV, para remediar os graves inconvenientes do conflito, que percutiam imediatamente na produo agrcola, expediu aos concelhos a circular de 3 de julho de 1349. Justificou a medida com o conhecimento da denncia, chegada aos seus reais ouvidos, de que homens que antes da peste se ocupavam no servio alheio, agora, convertidos em herdeiros, se tinham em to grande conta, ao ponto de abandonar e desprezar a vida antiga. Outros, explica o monarca, empregados no trabalho rural, exigiam, fiados na escassez de mo-de-obra, tal preo para seus servios que os proprietrios, vergados com tais despesas, abandonam as culturas e os rebanhos. Ordena que os concelhos nomeiem dois rbitros, escolhidos entre os homens bons, burgueses aliados aos nobres, no momento, em conseqncia de interesses comuns, para que arrolem as pessoas
  • 42. capazes de exercer algum ofcio ou em condies de trabalhar para outrem, com a incluso daqueles que, antes do flagelo, estavam nesses casos e agora se recusavam a prestar seu trabalho. Todas as pessoas cadastradas seriam obrigadas a continuar nos seus misteres ou noutros em que o concelho lhes reconhecesse capacidade, mediante o salrio que lhes taxasse. A excluso do arrolamento se poderia fazer, mediante prova da qualidade da pessoa e do valor dos bens, circunstncias que, reconhecidas, permitiam o emprego no trato da mercancia, lavoura ou outra ocupao mais nobre. Aos recalcitrantes sobravam aoites, multas e degredo, penas impostas pelos juizes municipais, prevista uma recompensa aos acusadores. Conquistava a burguesia urbana, com a lei draconiana, um poderoso aliado no campo, at ento fechado solidariedade. O povo mido do interior, amargurado e ressentido, transformado em servo da gleba, estaria, da por diante, espera de um aceno para vingar o agravo imposto no muramento ascenso econmica e social. A nobreza e os demais proprietrios rurais, apertando rudemente a tampa da panela, acumulavam o vapor da exploso. O bloco rural, soldado pela tradio secular, abria a primeira fenda por onde se infiltraria o predomnio da burguesia urbana, sob o futuro estandarte do Mestre de Avis. Na confluncia destes caudais, alimentados de velhas guas e de guas novas, guas turvas e guas claras, sobe ao trono dom Fernando I (1367-83). A obra do aperfeioamento do reino, todavia, comeada com o primeiro rei, se completar sob a vigilncia de outras mos, mais astutas, destras c enrgicas. A poltica do ltimo rei da dinastia fundadora da monarquia, dilacerada numa crise que ameaava sepultar a prpria independncia, no chegou a corporificar uma doutrina de transao. Retrata-se na atarefada preocupao de atender reivindicaes contrrias, cada uma medida da presso, da burguesia e da nobreza. O "mancebo valente, ledo, enamorado, amador de mulheres e muito amigo de se chegar a elas" no encontrou uma sociedade unida. O setor rural vivia a guerra civil latente, perigosamente aprestada para o desenlace sangrento. No obstante, tal
  • 43. a vivacidade da economia comercial, nenhum rei antes dele foi mais rico, tamanhos os tesouros que seus pais e avs juntaram. Os direitos reais, que definem a apropriao de renda dos negcios, enchiam as arcas, fluindo das alfndegas. O chefe do Estado desempenhava as funes de banqueiro da nao, scio e animador das exportaes. "E no vos admireis" adverte o cronista "de isto ser assim e muito mais, porque os reis antes de ele tinham tal procedimento com o povo, sentindo-o por seu servio e proveito, que era foroso serem todos ricos e os reis terem grandes e grossas rendas. Porque eles emprestavam sobre fiana dinheiro aos que queriam carregar, e tinham, duas vezes no ano, dzima do retorno que lhes vinha; e visto o que cada um ganhava, deixava logo a dzima do ganho em comeo de pagamento. E assim, sem sentirem, pagavam a pouco e pouco e eles ficavam ricos e el-rei recuperava todo o seu. "Havia tambm em Lisboa residentes de muitas terras, no em uma s casa, mas em muitas casas cada uma de sua nao, assim como genoveses e prazentins e lombardos e catales de Arago e de Meiorca e milaneses e corsins e biscainhos e outros de outras naes a quem os reis davam privilgios e liberdades, sentindo-o de seu servio e proveito. Estes faziam vir e expediam do reino grandes e grossas mercadorias, a ponto que, fora as outras cousas que nesta cidade podiam abundantemente carregar, s de vinhos achando-se um ano em que se carregaram doze mil tonis, alm dos que levaram depois os navios no segundo carregamento de maro. E para tanto vinham de diversas partes muitos navios a Lisboa, de guisa que, contando aqueles que vinham de fora e os que havia no reino, jaziam muitas vezes diante da cidade quatrocentos e quinhentos navios de carga, e estavam carga no rio de Sacavm, e na ponte de Montijo, da parte do Ribatejo, sessenta e setenta navios em cada lugar, carregando sal e vinhos. [...] El-rei D. Fernando no comprava para carregar nenhuma daquelas cousas que os mercadores compram, e de que habitualmente vivem, s possuindo as que auferia dos seus direitos reais. E se alguns mercadores queriam encarregar-se de lhe trazer de fora de seus reinos as cousas de que
  • 44. precisava para seus armazns, no carregava ele prprio nenhuma delas, dizendo que o seu desejo era que os mercadores de sua terra fossem ricos e abastados, e no fazer-lhes cousas que fosse em seu prejuzo e abaixamento de sua honra. E por isso mandava que nenhum residente estrangeiro comprasse por si nem por outrem, fora da cidade de Lisboa, nenhum haver, grande nem pequeno, a no ser para seu prprio mantimento, exceto vinhos, fruta e sal. Mas nos mercados da cidade podiam comprar livremente, para carregar, quaisquer mercadorias. "A nenhum senhor, nem fidalgo, nem clrigo, nem outra pessoa poderosa, consentia que comprasse qualquer mercadoria para revender, porquanto tirariam dessa forma o modo de vida aos mercadores da sua terra, dizendo que parecia contra razo que tais pessoas tivessem atividades que lhes eram pouco prprias, tanto mais que isso lhes era proibido por direito." (Crnica de el-rei dom Fernando.) O jovem rei encontrava um pas rico e, na rea mais ativa, prspero, embora minado no campo. O cronista d relevo ao comrcio de produtos nativos vinhos, sal e frutas indicando palidamente o comrcio de trnsito, perceptvel na presena de numerosas naus e de muitos estrangeiros. O caminho da poltica nacional estaria esboado, se um soberano pudesse conduzi-la livremente. Pelo incremento do comrcio alcanaria o reino a prosperidade, suplantando as dificuldades agrcolas. As guerras com Castela, tradicionalmente sustentadas pelos squitos militares da nobreza, fortaleceram esta camada, que urgia por pagamentos e dinheiro para a empresa, vista como obra insensata pela opinio pblica, opinio pblica j ntida e predominantemente de cor burguesa. Duas correntes opostas mostram-se at nos conselhos do rei, depois de percorrerem as praas e os solares. "Uma, a pre- dominante porque era a que se conformava mais com o gnio extravagante, verstil e descuidado do rei, impelia s cegas o governo do pas, para o caminho das aventuras; a outra, pelo contrrio, quando o soberano ou os conselheiros mais aceitos no lhe embargavam o curso, introduzia leis que deviam favorecer o comrcio, reprimir a insolncia
  • 45. dos poderosos, prover sobre o desenvolvimento da agricultura, ou produzir outros benefcios. Mas os desatinos do soberano anulavam em grande parte o que havia de bom nessas reformas."7 Atrs das medidas legislativas, das censuras da opinio e dos conselhos polticos, havia a causa do mal-estar do reino, corporificada no poderio crescente da nobreza. A turbulenta poltica exterior levou ao dramtico e sbito esgotamento do outrora opulento tesouro real. A penria sugeriu ao rei, mais imprevidente que prdigo, a doao nobreza em ressarcimento s quantias atrasadas de terras da Coroa. O reino na concepo patrimonialista do Estado terra do rei, que a podia doar apesar das resistncias, ainda difusas, de diversa doutrina, empenhada em preservar a incolumidade da riqueza monrquica. De outro lado, ferido com a malquerena da burguesia, o soberano ainda mais se extremava nas simpatias nobreza, desejoso de lhe ganhar o apoio e a adeso. Sob a presso deste impulso o reequilbrio de uma aliana tradicionalmente comprometida as doaes de vilas e herdades passaram a se fazer com a transferncia da jurisdio, em recuo a uma trilha j consagrada. O povo a burguesia comercial reclamava, nas Cortes (1372), contra a poltica retrgrada: queria que a "justia no tivesse senhores", que o monarca reservasse, para si, "a maior justia".8 Temia-se sempre o mesmo receio o retorno a normas de cunho feudal, tidas como definitivamente afastadas. A outra corrente, antiaristocrtica, permaneceu coesa, capaz de levar o rei, joguete merc de abalos contrrios, ao estabelecimento de regras e normas, convenientes ao comrcio. A aguda crise agrria, que no amainou com as drsticas medidas de Afonso IV, inspirou a Fernando a clebre Lei das Sesmarias (possivelmente de 1375), ditada pela sugesto das Cortes, nas quais era saliente a influncia burguesa. Diga-se, em parntese, que a burguesia, assenhoreando-se da administrao municipal, preponderante sobretudo em Lisboa e no Porto, tinha voz nas Cortes, s quais concorriam seus delegados e procuradores. A lei, depois incorporada s Ordenaes Afonsinas, guarda, na verdade, matiz duplo,
  • 46. nem burgus nem aristocrtico. Ser, ao no aderir aos interesses do proprietrio agrcola, uma vitria burguesa, sem representar um desprestgio da nobreza. Lei de compromisso inexeqvel seno com um governo novo, liberto dos impedimentos das travas de uma faco a outra. Somente depois da revoluo de 1383-85, tentou-se execut-la, claudicantemente, agora na sua feio antiaristocrtica. A escassez de mantimentos, sobretudo de trigo e cevada, levou aos dois meios para alcanar o objetivo: obrigando ao cultivo das terras e constrangendo os lavradores ao trabalho agrcola dupla coao, que atingia, numa ponta, o proprietrio. "Mandou que todos os que tivessem herdades prprias e emprazadas ou por outro qualquer ttulo, fossem constrangi- dos a lavr-las e seme-las. [...] E que fosse fixado tempo conveniente, aos que houvessem de lavrar, para comearem a aproveitar as terras, debaixo de certas penas. E quando os donos das herdades as no aproveitassem nem dessem a aproveitar, a justia as entregasse por certa importncia a quem as lavrasse, deixando o seu dono de receber a respectiva renda, que deveria ser despendida em proveito comum da terra onde estivessem essas herdades. [...] E que todos os que eram ou costumavam ser lavradores, assim como os filhos e netos de lavradores, e quaisquer outros que em vilas ou cidades ou fora delas morassem, usando de ofcio que no fosse to proveitoso ao bem comum como era o ofcio da lavra, fossem constrangidos a lavrar, salvo se tivessem de seu valor quinhentas libras, que seriam umas cem dobras. E se no possussem herdades suas, lhes fizessem dar das outras para se aproveitarem, ou vivessem por soldadas com os que houvessem de lavrar, fixando-se-lhes soldada justa. [...] Outrossim mandava que todos os que se achassem a vadiar, intitulando-se escudeiros e moos de el-rei ou da rainha e dos infantes e de quaisquer outros senhores e no fossem notoriamente conhecidos como tais ou mostrassem certido de como andavam em servio daqueles de quem se diziam, fossem logo presos e postos a bom recado pela justia dos lugares onde andassem, e constrangidos a servir na lavoura e em outra cousa." (Crnica de el-rei dom Fernando.) No parou a, nessa difusa lei,
  • 47. o impulso burgus, ao qual cedeu o hesitante e fraco dom Fernando. Duas medidas favoreceram diretamente o comrcio martimo, em benefcio dos armadores: os privilgios concedidos "aos mercadores, moradores e vizinhos de Lisboa", para o fomento da construo de navios e a genial criao dos seguros martimos (1383). O primeiro expediente tem algum cunho nacionalista "melhor seria se o lucro que os navios estrangeiros recebiam dos fretes fosse recebido pelos seus naturais". (Crnica.) O segundo visava ao estabelecimento "de uma associao de todos os donos das naus, pela qual tais perdas se remediassem e seus donos no cassem em spera pobreza". (Idem.) Parece certo que, entrado o ltimo quartel do sculo XIV, o comrcio martimo se sentia capaz de, pelos prprios recursos, explorar as vantagens do trnsito, associando-se e vinculando-se solidariamente. A chusma de aventureiros internacionais, sucede um grupo em vias de organizao, vido de se apropriar dos lucros at ento dispersos, pulverizados, migratrios. Malgrado todas as concesses, dom Fernando se identificava, aos olhos do povo e da burguesia comercial, a um soberano vendido nobreza. Ferno Lopes alude com freqncia ao mal-estar da populao urbana, fixado sobretudo no repdio ao casamento com dona Leonor Teles, "loua e elegante e de bom corpo", sem acrescentar igual veemncia de sentimento por parte da nobreza. O protesto teria fundamento, obscuramente, inarticuladamente, na aproximao da futura rainha faco da nobreza mais ciosa de seus privilgios, inclinada aliana espanhola, cuja coroa era propcia permanncia das conquistas sociais da aristocracia. Esta a linha final da dissenso, mal prevista, ainda no campo das probabilidades remotas: a entrega do reino tutela castelhana, permanente ameaa, instaurada no primeiro dia da independncia. Pela autono

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