Os novos velhosterão direitoa uma segundaadolescênciaContinua a fazer sentido usar os 65 como marcador etário paramarcar a entrada na terceira idade? "De modo nenhum",respondem especialistas. Os velhos do futuro serão maisletrados, mais tecnológicos, mais saudáveis e mais donos de si
Os novosvelhos têmoutroshábitos, comoir ao cinema,sair mais decasa e usarcomputador
Natália Faria
Aprimeira tentativa do PÚBLI-CO redundou num fracasso.
"Estava no ginásio, não a
pude atender", desculpa-seo médico Manuel Carrageta.Detentor de quatro especia-
lidades médicas, acumula o atendi-mento de doentes no seu consultóriocom a presidência da Sociedade Por-
tuguesa de Geriatria e Gerontologia eda Fundação Portuguesa de Cardio-
logia. Tem 77 anos; é idoso, portanto.Continua, porém, a trabalhar "comose tivesse 50", garante, explicando,não sem mágoa, que só se reformoudo sector público porque foi obriga-do, quando dobrou a esquina dos 70."Trabalhei até ao último dia e teriacontinuado a trabalhar, até volunta-riamente se fosse possível, mas oministério não deixa", lamenta, paradiagnosticar que, neste cenário deinelutável envelhecimento demográ-fico em que Portugal se destaca a nível
internacional pela velocidade com
que a sua população está a envelhe-
cer, "ou o país muda ou vamos entrarnuma crise muito grande" .
Os números que atestam que Portu-
gal caminha a passos largos para se
transformar num país de grisalhosdariam para encher uma albufeira. Em
pouco mais de meio século, a esperan-ça de vida à nascença aumentou 17
anos. Estava nos 83,43 anos para asmulheres no ano passado. Os homens
podiam contar viver um pouco menos:
77,78 anos. E, a acreditar nas projec-ções do Instituto Nacional de Estatís-tica (INE), por volta de 2080, a espe-rança à nascença há-de ter aumentado
para mais de 92 anos, no caso dasmulheres (87,4, no dos homens).
Aliados ao facto de as mulheresterem cada vez menos filhos, e de nãose prever que a natalidade possaalgum dia voltar a recuperar paraníveis capazes de garantir a substitui-
ção das gerações (para o que serianecessário que cada mulher tivesseem média 2,1 filhos), os ganhos na
longevidade humana traduzem umarealidade que pode assustar, ao invésde estar a ser celebrada: no ano pas-sado, os portugueses com 65 e maisanos já representavam 21,8% da popu-lação residente. Eram 2,2 milhões,contra os 1,4 milhões de jovens até aos
14 anos. Daqueles, 13,8% tinham cele-
brado já os 85 anos de existência.
Respeitando as classificações esta-
tísticas que vigoram, o país soma 159,4idosos em média por cada cem jovens.E as projecções do INE mostram que,em 2029, passará a haver 208,4 idosos
por cada cem jovens. É um índice deenvelhecimento muito para lá do ver-melho, num futuro que dista apenasdez anos do presente. Assustador? Os
especialistas das diferentes áreas com
que o PÚBLICO falou entendem quenão. Saibamos nós mudar a noção do
que é ser-se velho.A partir de que idade se entra na
velhice? Numa altura em que a espe-rança de vida já passa dos 80 anos,ainda faz sentido usar os 65 anoscomo marcador etário para a entrada
na terceira idade, como se fazia em1960? "Não, de modo nenhum", res-
ponde Manuel Carrageta. "Desde háoitenta anos que a esperança de vidatem aumentado cerca de dois anos e
meio por cada década, e vai continuara aumentar. E prevê-se, aliás, que,entre as pessoas nascidas no princí-pio do século, mais de metade ultra-
passe os cem anos", explana, parasustentar que, do ponto de vista bio-
lógico, "as pessoas que hoje têm 70anos estão numa condição física equi-parável às que, há poucas décadas,tinham 50 ou 60".
No Japão, que tem das sociedadesmais envelhecidas do mundo, mastambém na Suécia, que se distingueno panorama internacional por terdas mais elevadas esperanças de vidasaudável após os 65 anos, há muito
que a comunidade científica avalia oestado de saúde dos velhos. "Aspectofísico, força muscular, respiração,velocidade da marcha: em todos estes
parâmetros se concluiu que a popu-lação que tem hoje entre 75 e 79 anos
de idade apresenta, do ponto de vista
físico, características muito similaresàs da população que há uns anostinha entre 65 e 69 anos", confirmaOscar Ribeiro, professor no Institutode Ciências Biomédicas Abel Salazar,no Porto, e coordenador de um pro-jecto chamado ptlOO, que procuratraçar o perfil dos portugueses cente-nários: eram 589 em 2001 e, nos Cen-
sos repetidos uma década depois,tinham aumentado para os 1526. As
estimativas do INE relativas a 2018
apontam já para a existência de 4112
centenários portugueses.
"Desde que façam exercício físico
regular, não fumem e não bebam nemcomam exageradamente, as pessoasenvelhecem muito mais tarde. Nofundo, é como se estivéssemos a pro-longar não a velhice mas a meia-ida-
de", retoma ainda Manuel Carrageta,
para reforçar a sua tese de que o enve-lhecimento demográfico não será
problema, desde que a sociedade
pare de descartar o potencial contri-butivo da fatia cada vez mais grossados que têm 65 e mais anos. "É umaforça de trabalho, uma capacidade,que fica subaproveitada e, se assimcontinuar, a economia das sociedadesnão vai aguentar", avisa. Em 2050, e
de volta às projecções do INE, 35%dos portugueses terão dobrado essa
esquina.
A idade prospectivaFamiliarizada com as diferentes nuan-ces desta "revolução demográfica"em curso, Maria João Valente Rosaanda há anos a puxar para a agendamediática um novo olhar sobre o queé ser-se velho. "Quando olhamos parauma pessoa com 65 e mais anos, ovalor que lhe atribuímos do ponto devista social é muito reduzido, face
àquilo que a pessoa pode representarno quadro desta sociedade. E esque-cemo-nos de que uma mulher com 65anos ainda tem em média quase 20anos pela frente! É o tempo que leva-mos desde que nascemos até nostornarmos adultos", enuncia a inves-
tigadora da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidadede Lisboa.
Mais do que a idade cronológica decada um, e que nem sempre coincidecom a idade biológica nem com a ida-de psicológica, a demógrafa concordacom os que, a nível internacional, vêm
apontando a necessidade de as socie-dades começarem a medir o valor dosindivíduos consoante a sua idade
prospectiva, isto é, consoante o núme-ro de anos que ainda têm pela frente,mais do que pelos que já viveram. "É
uma questão de lentes. Ao mudarmosos óculos que usamos para olhar paraa sociedade, categorizando as pessoasnos diferentes grupos etários em fun-
ção dos anos que ainda podem espe-rar viver, teremos uma realidade com-
pletamente diferente. "
O recurso a este conceito de idade
prospectiva permite concluir que terhoje 72 anos equivale a ter 65 anos em
1960. Como? "De acordo com o
padrão de mortalidade observadonessa década, as pessoas aos 65 anos
poderiam esperar viver em média
mais 13,6 anos. Hoje, com essa espe-rança de vida de 13,6 anos estão as
pessoas que têm 72 anos", responde.Do mesmo modo, um jovem com 15
anos em 1960 é o equivalente a umjovem que hoje tem 24 anos, se olhar-mos para a tal idade prospectiva queé definida em função do tempo quetem para viver."
Logo, e salvaguardada a necessi-dade de preservar as comparabilida-des internacionais, não faz qualquersentido arrumar estatisticamente os
que têm 65 e mais anos como idosos,ainda segundo a demógrafa, queaproveita para desfazer o mito de
que o envelhecimento é contrário à
produtividade: "Basta comparar ocaso da Alemanha e Portugal, dois
países igualmente envelhecidos noquadro europeu e com níveis de pro-dutividade em nada comparáveis",aponta. E insiste na ideia de que a
resposta ao envelhecimento popula-cional terá obrigatoriamente de pas-sar por "desarrumar" o modo comonos organizamos socialmente, abrin-do corredores comunicantes entreas fases da vida e acabando com a
lógica estanque em que primeiroestudamos e depois trabalhamos,antes de entrarmos na reforma. "As
pessoas deverão poder trabalhar atémuito mais tarde, não necessaria-mente na mesma profissão, com
pausas para estudarem a meio davida ou tendo oportunidade de tra-balhar menos tempo na fase em quetêm filhos pequenos", exemplifica.A pobreza do passadoÀ pergunta "É-se velho a partir de queidade?", a investigadora Teresa Rodri-
gues responde: "É-se velho a partirdo momento em que a parte física ea mental já não permitem levar umavida autónoma, nomeadamente nodesempenho das necessidades do
quotidiano." Nesse sentido, se olhar-mos para a esperança de vida saudá-
vel, Portugal tende a perder muitosdos anos que ganhou à morte. Isto
porque os portugueses, estando entreos europeus que vivem mais tempo,são também dos que, a partir dos 65
anos, vivem com menos saúde.
Enquanto uma sueca pode, aos 65
anos, contar à partida com mais 15,6anos de vida sem qualquer incapaci-dade, para uma portuguesa essa
expectativa reduz-se drasticamente
para os 6,7 anos. Tendo presente a
noção de que "não podemos esperarque os velhos andem todos aos 75
anos a passear de trotinete nem a per-correr os Passadiços do Paiva", comoilustra Teresa Rodrigues, há um inves-timento na saúde dos mais velhos queé urgente.
"Não queremos mais vida de qual-quer maneira, queremos vida saudá-
vel, e a verdade é que os portuguesestêm perdido qualidade de vida nos
pós-65 anos", lembra AlexandraLopes, investigadora do departamen-to de Sociologia da Faculdade deLetras da Universidade do Porto, paraquem "esta perda de qualidade devida tem um gradiente socioeconó-mico muito forte" .
A pobreza entre os idosos portu-gueses estava fixada em 2017 nos
17,7%, sendo que, como lembra a
investigadora, as melhorias obtidasnos últimos anos são enganadoras."Devem-se à introdução dos meca-nismos de compensação, como o
Complemento Solidário para Idosos,
que o que fizeram foi colocar umaquantidade grande de idosos um milí-metro acima da linha de pobreza.Portanto, na realidade, teremos uns30% ou 40% de idosos que, não sen-do oficialmente classificados comopobres, o são na realidade", lembra."São pessoas com necessidades acres-cidas em termos de consumo demedicamentos e que, porque já nãoestão no mercado de trabalho, pas-
sam mais tempo em casa sem queconsigam, no Inverno, ter as casas
aquecidas. As praças de alimentaçãodos centros comerciais estão cheiasde idosos. Porquê? Porque são zonas
aquecidas, diferentes dos ambientes
inóspitos que têm em casa", acres-
centa, para lembrar que, por outrolado, a falta de saúde que os portu-gueses evidenciam depois dos 65anos também decorre das condiçõesem que viveram. Ou da falta delas."Há dificuldades que deixam mazelas
irreversíveis", nota. O médico Manuel
Carrageta complementa o diagnósti-co: "No Norte da Furopa, as pessoassão mais robustas e envelhecem commais saúde por causa do exercíciofísico. Êm Portugal, as pessoas destaidade vão para o café, estão sentadas,não fazem nada, e a falta de massamuscular é decorrente dessa falta deactividade física."Os gerontolescentesApesar desta realidade actual, Ale-xandra Lopes mantém-se optimistaem relação aos velhos do futuro. "As
pessoas que hoje têm 40 ou 50 anos
êêA população de hojecom 75 a 79 anosapresentacaracterísticassimilares às da
população que háuns anos tinha entre65 e 69 anosOscar RibeiroProfessor do Instituto de Ciênciasbiomédicas Abel Salazar
Além de mais instruídos, os velhos dofuturo tiveram rendimentos superioresao longo da vida, o que lhes dará maiorcapacidade de consumoTeresa RodriguesAutora do livro Envelhecimento e Políticas de Saúde
vão chegar à velhice com um perfilprofundamente diferente daquelasque hoje têm 70 ou 80 anos e queapresentam ainda níveis de iliteraciae de exclusão digital muito elevados,muitos sem carreiras contributivas",enumera.
"Os países do Sul da Europa eramos que tinham piores indicadores emtermos educativos, portanto, o pata-mar estava muito baixo. Agora, espe-ra-se que, até 2050, as pessoas comensino superior possam triplicar, o
que se traduzirá numa mudança radi-cal no perfil dos idosos", reforça Tere-sa Rodrigues, autora do livro Envelhe-
cimento e Políticas de Saúde, paraacrescentar que, "além de mais ins-
truídos, os velhos do futuro tiveramrendimentos superiores ao longo davida, o que lhes dará à partida uma
maior capacidade de consumo navelhice". Por outro lado, levarão paraa velhice "o hábito de lerem, de iremao cinema, de usarem o computador,de irem de férias, e o domínio de lín-
guas estrangeiras"."Vão ser uns idosos completamen-
te diferentes: muito mais activos emuito mais capazes de fazerem esco-
lhas", reforça a investigadora, paraquem melhores níveis de instrução cde acesso a informação tendem a tra-duzir-se em melhores indicadores desaúde.
Neste exercício prospectivo, algunsacadémicos já adoptaram expressõescomo "gerontolescentes" para desi-
gnar a emergência de uma nova etapada vida a somar àquelas que nos habi-tuámos a conhecer: "A ideia é quehaverá uma nova geração de activos,
autónomos, autores das suas própriasvidas, e capazes de revolucionar oconceito de velhice, da mesma forma
que se revolucionou o conceito de
juventude há uns anos, até porqueestaremos a falar de uma geraçãomuito mais tecnológica", traduz o
investigador Oscar Ribeiro.De volta ao consultório de Manuel
Carrageta, o médico não aspiraráatingir o limite da longevidade huma-na que os cientistas fixaram nos 115
anos. Mas, apesar dos seus 77 anos,garante que não se sente velho. "Se
quisermos usar um marcador etário,diria que a partir dos 80 já podemosfalar de velhos. As pessoas aos 70 ain-da estão muito activas e empenhadasem actividades que ajudam a dar sen-tido ávida."[email protected]