"Universal Time" A estandardizao horria num mundo globalizado*
Cada tempo inventa o seu tempo.O tempo uma criao social,
um produto da atividade humana, uma inveno cultural.
Octavio Ianni
Toute vie social exige un synchronisme minimal, un amnegement commun des occupations,
de travail et des ftes...Jacques Attali
...time and space... became an organizing medium
of modernity's institutional dynamism.Anthony Giddens
Osvaldo Lpez Ruiz
Junio, 2000
* Texto publicado na revista Cultura Vozes, n. 6, v. 94, p. 168-191, nov./dez. 2000.
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Introduo
Como seria a vida se existisse um s horrio mundial? Que aconteceria se todos os
relgios do mundo marcassem a mesma hora? A questo da estandardizao do horrio leva-nos
ao longo processo que, durante o sculo XIX, acabou regulando a hora segundo uma norma
comum. Primeiro foi a adoo da hora nacional. Tempo depois, o estabelecimento de um
meridiano base a partir do qual as horas nacionais foram ajustadas dentro de um sistema global.
Assim foi definido, h pouco mais de cem anos, o tempo universal: "Universal Time" (UT).
Naquela poca, o que motivou a padronizao horria foram as fortes mudanas nas formas de
funcionamento e organizao da sociedade produzidas pela ecloso da modernidade. Duas
revolues industriais tinham conseguido, com suas inovaes, alterar a paisagem do mundo.
Para os habitantes da poca, o mundo de repente comprimia-se em sua geografia e, ao mesmo
tempo, ampliavam-se as possibilidades de percorr-lo. Da, ficou inevitvel a passagem do
horrio local ao nacional. Seria possvel pensar hoje no passo seguinte, da hora nacional para a
hora global?
O propsito deste trabalho explorar se o processo de racionalizao do tempo acabou no
sculo XIX, aps a aceitao do sistema de zonas horrias, ou se continuar acompanhando as
transformaes sociais que esto acontecendo no comeo do sculo XXI. Esto essas mudanas
prefigurando a construo efetiva da to anunciada cultura global?
Apresentam-se a seguir algumas situaes que mostram as novas dificuldades de
coordenao horria que surgem de uma nova "onda" de encolhimento das distncias pela
extenso e ampliao das redes de informao-comunicao. Revisam-se, logo depois, alguns
fatos da interessante e prolongada sucesso de mudanas que acompanharam os primeiros
intentos de racionalizao horria no sculo XIX. Visa-se, a partir deles, destacar as semelhanas
e diferenas que viriam com um novo avano na padronizao da hora mundial, agora no j no
contexto de uma sociedade industrial mas de uma sociedade informacional. Nesse sentido so
analisados alguns dos efeitos que essa unificao horria poderia trazer para a organizao do
trabalho e das relaes sociais, assim como criao de uma conscincia coletiva global. No
final, sero discutidas as conseqncias que, no plano social, poderiam ocorrer ao se chegar a um
mximo de homogeneizao temporal com a instalao de um tempo pblico uniforme. O
"Universal Time" representa o fim da dimenso heterognea e privada do tempo, ou pelo
contrrio, permitiria reafirm-la?
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Situaes
Existem cada vez mais canais de televiso. Invade a atmosfera terrestre uma multido de
sinais satelitais. Capilarizam-se pelo espao areo das cidades entrando por cabo em todos os
lares. cada vez mais difcil, porm, achar o que assistir. s vezes, o problema a falta de
contedo. Entretanto, como que em mais de cem canais no h o que assistir? Na realidade, a
sensao outra; possvel achar alguns programas atraentes mas parece que se est sempre no
momento equivocado: duas horas antes ou vinte minutos depois no do horrio local mas da
hora leste ou oeste dos Estados Unidos. A confuso aumenta com o zapping num passe de
mgica passa-se para o mundo europeu. A sincronizao com a DW, a RAI ou a BBC pode gerar
ainda maiores confuses. O que acaba acontecendo que o ato de assistir televiso vira o fato de
assistir (s) a programao de televiso; a frustrao de estar sempre antes ou depois do
acontecimento emitido conforme as horas locais das centrais televisivas.
Mas essa experincia cotidiana de contato com o global reduzida se comparada com o
que est acontecendo e que ainda est por acontecer no mundo do trabalho. Imagine-se a
situao seguinte: um empregado de uma sucursal da empresa IBM em qualquer cidade do
mundo deixa seu trabalho nessa firma e aceita uma proposta para trabalhar na filial da NEC
japonesa da mesma cidade. Essa pessoa muda de lugar de trabalho e comea a desenvolver suas
tarefas nos escritrios da nova empresa, a menos de 10 Km de onde trabalhava at ento.
Quando entra na NEC, no entanto, solicitado que acerte seu relgio conforme a hora de
Tquio. Deve deixar assim a "Eastern Hour" da central nova-iorquina da IBM e ajustar seu
tempo de trabalho adiantando em 14 horas seu relgio para ajustar-se hora japonesa.
Quanto de fico cientfica h hoje neste relato? Sem dvida um pouco, mas bem menos
do que parece primeira vista. Existe na atualidade uma necessidade crescente de desenvolver
trabalhos em conjunto entre as diferentes filiais. prtica comum que pessoal de uma mesma
empresa espalhado pelo mundo esteja trabalhando num mesmo projeto. Trabalhar em co-
presena virtual, longe de ser uma sofisticada extravagncia da avanada tecnologia reservada
excepcionalidade de algum processo em particular e vai ser uma forma de trabalho cada vez
mais generalizada. No se trata tanto de "trabalho de casa" que, como demostram alguns estudos,
continuar reservado a bem poucas atividades e representar uma nfima proporo do trabalho
em geral, mas do "teletrabalho"1. A partir de centros regionais, as empresas j comeam a
1 Castells (1996: 394-395).
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sincronizar seus processos e desenvolver suas tarefas em forma conjunta entre a central e os
centros locais. Como coordenar os trabalhos em tempo real? Como ajustar o "face a face" atravs
da rede? Como tornar possvel a presena real dos trabalhadores em linha, a uma mesma hora
todos os dias?... A que hora?
Essa situao de "caos horrio" na verdade no nova, registra antecedentes histricos
muito ilustrativos. Jacques Attali em sua Histoires du temps conta que nos Estados Unidos, na
segunda metade do sculo XIX, cada companhia de estrada de ferro tinha sua prpria hora
baseada na hora da cidade principal de cada ferrovia. A hora determinada por cada uma das
empresas diferia da hora local das cidades pelas quais o trem passava e ainda mais em relao da
hora adotada por outras linhas que tinham outras cidades como centro. Foi preciso publicar
tabelas de converso entre as principais estaes e as outras redes de ferrovias do pas. Assim,
passar de uma companhia para outra exigia modificar a hora do relgio prprio e compor
vrios volumes.2
Conforme pode ser visto, existe o precedente das empresas estabelecendo sua prpria
hora e coordenando suas atividades segundo um horrio por elas decidido. Esse horrio era
fixado com a necessria independncia da hora local dos postos de trabalho, ou seja, de cada
uma das estaes e dependncias da ferrovia ao longo do trajeto. A novidade no ento que
transnacionais como IBM o NEC decidam tomar como referncia a hora de suas matrizes devido
demanda de coordenao do trabalho entre suas filiais. O verdadeiramente novo que
trabalhadores, como aquele hipotetizamos antes, devam ajustar a hora de seus relgios sem nem
sequer trocar de empresa ou de lugar de trabalho dentro dela. Ento, voltando para a alegoria
apresentada: algum tempo depois de haver comeado a trabalhar na transnacional japonesa,
nosso personagem impelido a acertar novamente seu relgio (agora atrasando-o em nove horas)
para ficar em sincronia com a nova casa matriz por exemplo, a central da Deutsche Telekom.
No entanto, o problema da sincronizao afeta tambm outras atividades. No mundo das
finanas apresentam-se muitas dificuldades na coordenao das operaes dos diferentes
mercados. Jean Chesneaux, descrevendo as caratersticas da modernidade, salientava h mais de
dez anos que:
As operaes da City londrina comeam s 4:30hs. da manh (hora local de NovaYork) e so suspensas s 11hs. Wall Street abre duas horas antes, s 9hs. local time e fecha s 2 Attali (1982: 236). Kern documenta que em 1870, s nos Estados Unidos, havia cerca de 80 horas diferentes nasferrovias (1983: 12).
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17hs. Tquio a substitui a partir das 16:30hs. at 1h. da manh (sempre segundo a hora deNova York), e seguido por Bahrein que abre meia-noite e fecha s 6hs. quando a "City" jretomou suas atividades h 90 minutos. Que Bahrein seja assim investida de uma funo de"intervalo" indispensvel para assegurar a continuidade das cotaes da Bolsa reflete o pesoquase que decisivo que possui nas consideraes globais; a opulncia dos petrlares somenteno lhe poderia trazer essa investidura...
Arrastado pela sucesso de fusos horrios e pela interconexo dos computadores, omercado financeiro mundial funciona as 24 horas do dia em instantnea onipresena, e amesma interdependncia mundializada carateriza toda a vida econmica da modernidade.3
Nas ltimas dcadas, este panorama s se aprofundou. O volume da riqueza financeira
multiplicou-se por trs de 1983 a 1989.4 Nos anos noventa, a partir de uma maior abertura e
flexibilizao dos mercados, mas tambm pelos avanos tecnolgicos que permitiram agilizar e
multiplicar as transaes, a riqueza financeira tem crescido de forma antes inimaginvel. H j
algum tempo, ante a explosiva variedade de produtos financeiros que comeava a surgir, o
presidente do City Bank falando de como haveria de ser o banco do ano 2000, diagnosticava que
este deveria virar um "supermercado de produtos financeiros". Aconteceu uma proliferao de
possibilidades de inverso combinando carteiras de todo tipo e grau de risco que eram
inimaginveis h uma dcada. Soma-se a esse quadro um nmero crescente de investidores
particulares que operam diretamente, atravs da Internet, em mercados de valores como o
"Nasdaq", a bolsa eletrnica, onde so cotados os ttulos das empresas de alta tecnologia.5
Com o ritmo e magnitude alcanado pelas transaes na atualidade, onde so negociadas
a cada dia quantidades to altas que s vezes superam os oramentos de vrios pases, a pergunta
que se coloca se o grande (super) mercado financeiro pode parar. Sem dvida, a necessidade de
trabalhar as 24 horas do dia "em instantnea onipresena", como era mostrado por Chesneaux,
hoje muito maior que h uma dcada. Os processos foram agilizados grandemente e as
necessidades de coordenao so portanto maiores. Mas tambm so maiores as dificuldades que
oferece o atual sistema de bolsas de valores, ainda dependendo da alternncia dos centros
conforme a sada ou ao por do sol em cada uma de suas cidades. O que aparece cada vez com
mais clareza a necessidade de que esse "supermercado" trabalhe tambm as 24 horas em cada
3 Chesneaux (1989: 63-64).4 Turner (1991: 52), Franois Chesnais (1994).5 J em 1994 o Nasdaq, que tem mais de 500.000 terminais de computador interligados simultaneamente no mundotodo, ultrapassava a Bolsa de Nova York em volume de aes negociadas. Em 1998 o valor em dlares norte-americanos comerciados no Nasdaq atingiu 5800 bilhes de dlares, com um volume mdio dirio de 802 milhes.Fonte: "Nasdaq, History and Timeline" em http://www.nasdaq.com/about/timeline.stm
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uma de suas "filiais" e possa encontrar todas elas bem sincronizadas, operando no como
mercados independentes mas como partes de um nico mercado global.
Analisando os exemplos aqui tratados, pode com razo ser colocado que a necessidade de
sincronizao horria s afeta aos setores da avanada: as empresas de alta tecnologia, a
produo das industrias culturais e aos mercados financeiros na economia. Mas, at que ponto
esses setores so representativos de uma tendncia real para outras prticas sociais na atualidade?
No 25 de fevereiro de 1999 publicava-se sobre o projeto de Internet de alta velocidade
conhecido como "Internet2", que:
A rede mostrou a que veio ontem, quarta-feira (24), quando foi realizada a primeiracirurgia com a ajuda da veloz rede de fibra tica de 2,4 Gigabits por segundo. A vesculabiliar de um paciente internado no hospital da Universidade Pblica de Ohio foi retirada coma assessoria de um mdico na cidade de Washington, a milhares de quilmetros de distncia.6
Essa nova rede ultraveloz encontra-se j em construo. Ela tem a capacidade de
transmitir entre 100 e 1000 vezes mais rpido que a Internet atual. Est sendo desenvolvida no
mbito universitrio norte-americano como o foi sua predecessora e estar dedicada, num
primeiro momento, a atividades como a tele-medicina e a tele-educao. No entanto, pode se
prever que num futuro prximo poder ser usada em tarefas to diversas como dar apoio nas
atividades agrcolas ou acessar bibliotecas digitais, que podero enviar os quase 30 volumes da
Enciclopdia Britnica em menos de 2 segundos. Essa inusitada velocidade de transmisso
revolucionar praticamente todos os afazeres sociais de maneira difcil de se imaginar a partir
das "rudimentrias" condies presentes. O que est sendo considerado ainda possibilidades
futuras, contudo, trata-se de um futuro que absolutamente eminente e que j parte do
cotidiano no s nos Estados Unidos. A menos de um ano da experincia inicial naquele pas,
pode se ler no Brasil:
Uma aula distncia, com interatividade entre professores e alunos e umavideoconferncia, marcou a operao, em carter experimental, da Internet2 na regio deCampinas.7
Alm da cidade de Campinas, que est com sua rede metropolitana pronta, a AdvancedANSP [Advance Academic Network So Paulo] pretende criar um backbone capaz de alcanaras cidades de Piracicaba, Rio Claro, So Carlos, Araraquara, Ribeiro Preto, Bauru, So Josdo Rio Preto, So Jos dos Campos e Cachoeira Paulista. "A experincia com a cidade de 6 "Internet2 mostra a que veio j no primeiro dia" en UOL, Info On line Quinta-feira, 25 de fevereiro de 1999(http://www2.uol.com.br/info/infonews/021999/25021999-16.shl).7 "Equipe da Unicamp rene 50 pessoas", Silvia Simas. So Paulo, Gazeta Mercantil, 21.12.99.
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Campinas nos d condies de ampliar a ANSP2. Pretendemos iniciar o segundo semestre de2000 com todas as cidades interligadas", afirma Glaser...8
A criao da Rede Metropolitana de Alta Velocidade de So Paulo (RMAV-SP)consolida a infra-estrutura de comunicao entre o Instituto do Corao do Hospital dasClnicas (Incor) e o Hospital So Paulo, da Unifesp, os primeiros centros hospitalaresinterligados pela rede.9
Quanto tempo levar para que a Internet2 vire o padro hoje uma previso difcil de
fazer. Mas ainda muito arriscado imaginar em quanto podem mudar as prticas sociais na hora
que se dispor, para todos os usos, de uma velocidade de transmisso mil vezes maior que a
conhecida na atualidade. Da mesma forma, no comeo do sculo XIX, no deve ter sido nada
fcil predizer como ia se ver o mundo poucos anos depois, quando a velocidade dos transportes
aumentou umas 6 ou 7 vezes, passando dos 16 Km/h. dos carruagens a cavalo aos 100 das
locomotivas a vapor.10 As predies que hoje podem ser feitas so relativas. Entretanto, partindo
do fato que essas tecnologias existem j e esto funcionando, lgico pensar em sua difuso
num prazo curto para as diferentes atividades e para um nmero crescente de habitantes do
planeta.
Isto parece indicar que novos conflitos com a determinao da hora surgiro. No caso de
uma cirurgia na qual tenham que participar especialistas que estejam fisicamente em diferentes
cidades do mundo, a hora da operao ser fixada segundo o horrio local do hospital onde esteja
o paciente, ou segundo o horrio do hospital em que se encontre o cirurgio? claro que o
problema no a coordenao do horrio de uma operao piloto. Nesses casos obvio que pode
se marcar com antecedncia uma hora de encontro: "esta cirurgia, primeira em seu tipo, ser
realizada as 8 a.m. hora do Oeste canadense por encontrar-se em Vancouver o cirurgio
principal sendo as 13 horas em Recife onde est o paciente a ser transplantado, e as 2 da manh
do dia seguinte em Sidney onde mora outro dos especialistas." O conflito na coordenao
surgir com a conformao de equipes de trabalho que regularmente trabalhem juntos e nos
quais os membros morem em diferentes partes do mundo, seja isso por outras obrigaes
laborais, por necessidades ou referencias familiares. As diversas horas locais no s dificultaro
a coordenao entre as pessoas, mas tambm a interao dos aparelhos eletrnicos a serem
8 "Brasil na era da Internet2", Ediane Tiago. So Paulo, Gazeta Mercantil, 21.12.99.9 " Cirurgia atravs do Computador", Chistiane Hato. So Paulo, Gazeta Mercantil, 21.12.99.10 David Harvey apresenta uma sugestiva ilustrao do encolhimento do mapa do mundo pela inovao nostransportes entre 1500 e 1960-70.
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utilizados; cada um deles com seus relgios a horas diferentes e, eventualmente, at com outra
data.
Olhando para trs: o que acontecia no sculo XIX
As dificuldades surgidas pela existncia de mltiplos horrios leva a pensar no que
acontecia na segunda metade do sculo XIX. Henry Ford, recordando seus anos de
aprendizagem, conta na sua autobiografia:
Tinha gosto para os trabalhos de preciso, relojoaria sobretudo, e comecei a trabalhar noite em concertos numa joalheria... Isto foi na poca em que se procurava determinar a horaregulamentar das estradas de ferro. At essa data elas se guiavam pelas horas solares e pormuito tempo, tal que hoje nos dias de escassez de luz, as horas das estradas de ferro diferiamdas horas locais. Isto me preocupava, e consegui fazer um relgio que marcavasimultaneamente as duas horas. Possua dois mostradores e tornou-se um motivo decuriosidade para nossa vizinhana.11
O sculo XIX foi um perodo excepcional na histria no qual a modernidade desenvolveu
toda sua potncia transformadora. Com a apario e a difuso de novas tecnologias como as
ferrovias, o telgrafo, as transmisses radiais e o telefone, a fisionomia do mundo modificou-se
rapidamente assim como abalou-se a vida cotidiana das pessoas, que tiveram que acabar se
adaptando as novas possibilidades que vinham com essas mudanas tecnolgicas. Tambm e da
mesma maneira, produziram-se desajustes nos modos de perceber o tempo e o espao em relao
aos tradicionais. Foi preciso, como narra Ford, comear a se manejar como outros horrios alm
do local. Com as ferrovias nasceu a viagem como prtica social nova e com sentido muito
diferente do que tinha at ento. O trem facilitava grandemente os deslocamentos, da que
comeou a ser possvel pensar em "viagens de passeio": visitas a parentes em lugares distantes,
ou o inusitado hbito de tirar frias. Ainda mais, uma febre pela literatura de viagens excitou o
imaginrio, mesmo de quem no saia do lugar, mas que podia pensar a viagem como coisa
possvel. No casual que em 1873 fosse publicado o clebre romance de Verne A volta ao
mundo em oitenta dias.
Com as alteraes nas percepes do espao e a distncia foram-se transformando os
hbitos e os costumes, at esse momento centrados na localidade na qual vivia-se. O problema
que se apresentou no foi simplesmente a necessidade de trocar a hora quando viajava-se a outra
11 Ford (1954: 30).
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localidade. O verdadeiramente perturbador foi a intromisso de outra temporalidade no lugar
prprio. A estrada de ferro trouxe consigo outra hora, diferente da hora local. Como j foi dito,
tratava-se da hora da cidade na qual se encontrava a estao principal da ferrovia em questo.
Dessa forma, as localidades pelas que o trem passava tiveram que se acostumar a ter, alm do
horrio local, o da estao ou das estaes, se eram cruzadas por mais de uma estrada de ferro.
O tempo no era j um s. Tambm no era determinado unilateralmente pelo sol quando
chegava a sua altura mxima em cada lugar. O lugar no gozava mais dos privilgios da
autonomia e da particularidade do distante. Havia sido atravessado por outras dimenses, por
outros tempos e outros espaos e no podia j voltar a ser o mesmo.
Interessa resgatar o acontecido no sculo XIX porque, em boa medida, essa convivncia
do local com dois ou mais horrios reaparece novamente na atualidade. Existe hoje no s a
possibilidade generalizada de maiores deslocamentos fsicos e mentais como podem-se
experimentar quotidianamente viajando ou assistindo ao jornal na televiso, mas tambm torna-
se manifesta a ingerncia de outros horrios "extra-territoriais", para dar-lhes algum nome, nas
prticas do dia a dia. Quando as atividades so planejadas conforme a hora de emisso de um
programa transmitido desde o outro "canto" do mundo ou, ainda mais, quando preciso ajustar o
cronograma de trabalho para que seja possvel trabalhar com pessoas que esto disseminadas
pelo planeta todo, o que se produz uma efetiva intromisso de uma outra temporalidade na
prpria; ou, o que no to diferente: a paulatina desapario dos tempos locais em funo de
um tempo unificado e global.
No sculo XIX, com as ferrovias, o telgrafo e depois com o telefone aproximando as
localidades e economizando tempo, a variao das horas tornou-se intolervel.12 A sociedade
civil comeou a pressionar seus estados para que fosse tomada alguma medida que resolvera a
crescente confuso nos horrios. Era cada vez mais imprescindvel coordenar atividades e
processos. Manejar mltiplas horas "locais" e tabelas de converso ia ficando insustentvel.
traduzvel esta situao aos tempos e as tecnologias atuais? O processo de racionalizao do
tempo parece continuar ao ritmo das novas prticas sociais de nossa poca. Est-se frente
necessidade de uma nova instncia de padronizao da hora?
12 Ortiz (1991: 237) da exemplos claros de como isso era vivido na sociedade francesa.
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Faz pouco mais de cem anos, Sandford Fleming, engenheiro das ferrovias canadenses e
autor do que depois virasse o esquema internacionalmente aceito de padronizao horria, dizia
justificando-a:
O uso do telgrafo "sujeita toda a superfcie do globo observao das comunidadescivilizadas e no deixa intervalos de tempo entre lugares muito longnquos proporcionalmente distncia que os separa." Este sistema confunde o dia e a noite porque "o meio-dia, a meia-noite, a sada ou o pr do sol so todos observados no mesmo momento" e "o domingorealmente comea no meio do sbado e dura at a metade da segunda-feira." Cada evento podeacontecer em dois meses diferentes ou inclusive em dois anos diferentes... O sistema vigente...vai a levar a incontveis problemas polticos, econmicos, cientficos e legais que s a adoodo sistema coordenado mundialmente pode prevenir.13
Quo perto volta-se a estar de tudo isso? Sero precisos, conforme avance o sculo XXI,
relgios como aquele inventado por Ford, no para mostrar a hora local e da ferrovia mas a hora
nacional e a de cada um dos centros das redes globais?
Em 1875 reuniu-se o Congresso Internacional de Geografia. Uns dos problemas mais
importantes em discusso era a eleio de um meridiano de base que servisse como ponto de
referencia para o horrio dos trens do mundo todo. As redes de ferrovias transpassavam j, nessa
poca, as fronteiras nacionais e acumulavam-se ento dois problemas: o primeiro era as
diferenas horrias entre as diversas localidades de um mesmo pas e o horrio da estrada de
ferro (o qual, por exemplo na Inglaterra, havia sido j resolvido uniformizando-os); o segundo
era a coordenao dos horrios entre os diferentes pases e regies. Naqueles anos de construo
e reafirmao da nao, era poltica de cada Estado a unificao, sob uma hora nacional, de todo
seu territrio. Essa hora seria a do principal observatrio de cada pas. Na prtica, isso demorou
muito a se generalizar e as localidades continuaram usando sua hora local. Mas tambm, a
pretendida hora nacional, por estar fundada no tempo solar do lugar de cada observatrio
nacional, diferia da de os outros pases em horas minutos e segundos. A confuso era muito
grande e a coordenao das ferrovias em aquelas condies deve ter sido um oficio reservado s
para verdadeiros especialistas. Nesse contexto, o engenheiro ferrovirio Sandford Fleming
props eleger um meridiano de base como ponto de referncia do horrio para todo os trens do
mundo e alm disso sugeriu a utilidade de impor uma hora uniforme para o mundo todo:
13 Citado por Kern (1983: 11-12) a partir do artigo de Sandford Fleming, "Time-Reckoning for the TwentiethCentury" do Smithsonian Report de 1886.
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O tempo evidentemente nico em todo o universo, e a idia da hora universal, nodeveria ser posta em questo, a pesar de que ela est em conflito direito com nossas idiaspreconcebidas e nossos hbitos mentais.14
A soluo mais prtica para o problema da coordenao horria naquela poca haveria
sido a adoo de uma hora universal, mas como o prprio Fleming reconhece, os costumes e
hbitos mentais dos que recentemente haviam visto invadida sua isolada solido local no iam se
adaptar facilmente. A sada para esta situao foi a inveno de uma engenhosa fico que
intermediava entre um horrio local (ou nacional) e um nico horrio mundial mas ainda,
constituiu uma baliza fundamental no processo de esvaziamento do tempo de sua identidade
local. Foi proposta a diviso do mundo em 24 zonas horrias homogneas (de 15 de longitude e
uma hora de diferena cada uma) a partir de um meridiano aceito como base comum. A hora
no dependeria j nem do horrio verdadeiro do nascimento e o pr do sol em cada localidade
(como tinha sido at aproximadamente 1820) nem do tempo solar meio, conveno calculada por
os astrnomos baseando-se em um sol imaginrio que se movia uniformemente durante todo o
ano em cada lugar. Tambm no da hora nacional medida desde o principal observatrio de cada
pas e imposta por lei como a hora corrente para todo o territrio da nao. Agora a nao devia
se adaptar a uma retcula que cobria o globo terrqueo em conjunto e que determinava que lugar
horrio correspondia-lhe a cada pas dentro de um sistema mundial. Porm, o Sistema de Fusos
Horrios, a genial proposta de Fleming, demorou ainda vrios anos na sua instaurao e mais
inclusive em ser aceito pela maioria dos pases do mundo.
Enquanto isso, continuavam as situaes que mostram as dificuldades surgidas pela falta
de racionalizao horria. Em cidades que eram ns de vrias redes de ferrovias como Pittsburg
nos Estados Unidos, conviviam seis padres horrios para a partida e a chegada dos trens. A
intromisso no espao local de outras temporalidades chegava at o ponto de que, sem sair da
cidade prpria, poderia se conviver nela com seis horrios diferentes! Para quem viajava, a
situao de confuso temporal crescia ainda mais. Diz-se de quem fazia o percurso de
Washington a So Francisco por volta de 1870 que, se colocava em hora seu relgio em cada
cidade a que ia chegando, deveria ajust-lo umas duzentas vezes. Na Europa, alem de os pases
serem menos estendidos em latitude que os Estados Unidos e Canad, as dificuldades no eram
menores. Na Frana, por exemplo, um empregado das ferrovias ficava encarregado de descer do
trem e ajustar os relgios em cada uma das estaes pelas que o trem passava; isso quando j
tinha sido decidido que a linha da ferrovia impunha a seu passo a hora local de sua central em
14 Attali (1982: 238).
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Rouen ou em Paris. Entretanto as dificuldades no s limitavam-se as ferrovias. Noutras
atividades geravam-se da mesma forma conflitos, por exemplo, nos processos judicirios ou nas
eleies parlamentrias. Ilustrando uma dessas situaes, Whitrow narra o acontecido em 1858
em Dorchester, Gr Bretanha onde um juiz encerrou um processo ditando sentena por no
comparecer o acusado na hora estabelecida pelo tribunal. No entanto, seu advogado defensor
apelou o veredicto argumentando que o caso foi encerrado antes da hora estabelecida. A deciso
do juiz foi anulada porque foi decidido que era o horrio local o que devia estar vigente e no o
do relgio do tribunal ajustado como a hora de Greenwich, e por isso, alguns minutos adiantado
em relao a hora de Dorchester. Esta sentena do tribunal superior sentou jurisprudncia e
privilegiou o horrio local nos processos em Gr Bretanha at 1880.15
No entanto, curioso observar que a hora do Observatrio Real de Greenwich, como
hora oficial para todo o territrio britnico, havia sido adotada realmente em 1811. A pretenso
de consolidar a unidade nacional estabelecendo um horrio comum (em correlao com as
necessidades histrico-polticas e sociais da poca) adiantou-se s possibilidades tcnicas
existentes. Esta deciso resultou uma fico impossvel de por em prtica devido a basicamente
um nico problema: a distribuio do tempo. At a inveno e implementao do telgrafo, que
ainda demoraria em aparecer alguns anos, no existia modo para distribuir a hora de Greenwich
por todo o territrio ou, em outras palavras, no haviam ainda condies para a simultaneidade
fora do espao local. Na dcada de 1820, a Standard Time Company construi um telgrafo
eltrico que permitia ajustar a hora dos pndulos das grandes cidades inglesas em relao do
Observatrio Real. Mesmo assim, faltaria ainda um bom tempo para que a hora, da mo das
novas tecnologias, fosse levada aos mais recnditos cantos do Reino e conseguisse amalgam-los
em uma hora efetivamente nacional.
importante salientar que a racionalizao horria implicou dois processos que, em
parte, foram sobrepostos. Houve um momento primeiro de abstrao do tempo das significaes
locais que unificou a hora ao nvel da nao, e um segundo momento mas que em muitos casos
foi ao mesmo tempo em que aceitou-se um meridiano de base comum para o mundo todo. A
partir desse meridiano coordena-se a hora local (quando "local" j significava "nacional") com a
dos outros pases. Dessa forma, entra-se ao sistema coordenado mundial da mo de uma hora
nacional. Completa-se assim, durante o sculo XIX, o processo de "esvaziamento" temporal que
carateriza a modernidade. Instituiu-se primeiro um "tempo oficial" como tempo legtimo do
15 Whitrow (1988: 181, 185-186), Kern (1983: 12), Attali (1982: 236).
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Estado-Nao e logo depois homologaram-se os calendrios e padronizaram-se os horrios para
construir um "tempo pblico universal".16 Como foi j salientado, desde a construo do sistema
ferrovirio e a conseqente necessidade de coordenao dos deslocamentos, a aceitao dos
horrios locais como mtodo de medio do tempo foi ficando insuficiente para determinar o
ritmo da sociedade industrial. Foi preciso que uma nova conveno efetivasse e essa foi a
unificao dos horrios.17
Da Revoluo Industrial Revoluo Informacional
Voltando para a poca atual, bom se perguntar se continuar sendo til a conveno
aceita, h mais de um sculo, de unificao dos horrios pela adoo do sistema de Fusos
Horrios. Naquela ocasio, essa deciso permitiu passar da necessidade de acordos permanentes
para a coordenao de infinidade de horrios locais (o pessoal das companhias de estradas de
ferro tinham que se reunir ao menos dois vezes ao ano) a uma coordenao racional dos horrios
comum e por todos aceita. O sistema idealizado por Fleming foi, como j foi dito, um ponto
intermedirio apropriado entre a necessidade imperativa da sociedade industrial de unificao da
hora e a manuteno da rtmica cotidiana gravada nos usos e os costumes de cada lugar.
Entretanto, essa ainda a situao de uma sociedade que tem sado de uma fase de
desenvolvimento industrial e entrado numa etapa de "Revoluo Informacional"?18
Hoje, as tecnologias da informao-comunicao entram no espao local com suas
mltiplas temporalidades afetando e transformando as prticas sociais. Elas produzem alteraes
tanto ou mais significativas que as experimentadas com a chegada das ferrovias a meados do
sculo XIX, irrompendo em cada localidade com o tempo de um outro lugar. Alm disso, como
foi visto, as tecnologias atualmente em desenvolvimento prometem trazer, ainda como "melhor
resoluo", o tempo de suas redes, influenciando assim a vida quotidiana muito mais
profundamente. A ferrovia obrigava a levar em conta uma hora diferente da do lugar, exigia a
tomada de conscincia da existncia de uma outra temporalidade e, s vezes e s para algumas
atividades os indivduos tinham que trocar de horrio. Na atualidade, as tecnologias
16 Giddens (1994), Diaz Isenrath (1999). Ao respeito deste processo Attali (1982:237) diz: "Se tem alguma data deimportante na historia do tempo essa foi a da unificao mundial da hora, nos Tempos precedentes no havia sidonunca possvel nem havia se tido necessidade de impor a unificao dos calendrios sob uma tal extenso."17 Ortiz (1991: 235).18 Castells (1996, 1997, 1998).
26-14
informacionais esto conseguindo que a vida seja vivida numa temporalidade distinta da do
lugar. No so s ocasionais "ajustes do relgio"; hoje vive-se imerso num tempo-espao
desenhado a medida (em parte por cada pessoa, em parte pelo sistema), no qual combinam-se
mltiplas temporalidades, ou melhor, cria-se uma temporalidade prpria.
Com o passo do paradigma industrial ao paradigma informacional, o espao de fluxos das
redes de informao-comunicao torna-se a base material, as "ferrovias", das atuais prticas
sociais dominantes.19 Sem dvida, essas no so nem sero as nicas prticas existentes. No so
todos que trabalham interatuando quotidianamente atravs da rede; nem todos os que o faam
vivero somente nessa dimenso espao temporal. Porm, apesar de no serem as nicas prticas
sociais, pode se esperar que por serem as dominantes, configurem a nova realidade social de um
mundo efetivamente mais globalizado do que hoje conhecemos. Nele, sem dvida, ser
necessrio negociar novos acordos entre o local e o global, entre a famlia e o trabalho, entre o
trabalho e a diverso.
Embora as prticas dominantes atuais estejam montadas sobre as redes de informao
como estiveram no mundo industrial sobre as redes ferrovirias, aqui a analogia encontra seu
limite: o sistema ferrovirio impulsou a coordenao dos deslocamentos enquanto que o sistema
de redes de informao impe a coordenao das localidades. Essa uma diferena fundamental
que permite apreciar quanto mais intensas so e sobre tudo sero as transformaes do social.
Ingressa-se num mundo no qual no haver mais a necessidade de translados; ser possvel se
comunicar a todas partes estando sempre no mesmo lugar. Trata-se mesmo da distino entre
viajar e operar no computador: a viagem poderia ficar relegada atividades recreativas ou a
encontros de excepcional importncia. Isso no significa que no haver deslocamentos; a
tentativa que, pelo contrrio, tanto dentro como fora das cidades, a mobilidade continue se
intensificando; no entanto o que muda o sentido dos deslocamentos. Em termos mais tericos
pode ser postulada a hiptese de que entra-se numa etapa de sincronizao das prticas globais e,
por sua vez, de desincronizao das locais. Essa sim uma diferena significativa em relao
Revoluo Industrial.
Nessas condies, legtimo pensar numa futura abolio do Sistema de Fusos Horrios,
o que transformaria o mundo numa grande e nica zona horria, um nico lugar regido pela
19 As prticas sociais dominantes, conforme o sentido dado por Castells (op. cit.), so as que esto inseridas nasestruturas sociais dominantes, o seja, aqueles arranjos de organizaes e instituies cuja lgica interna joga umpapel estratgico na configurao dessas prticas sociais e da conscincia da sociedade em geral.
26-15
mesma hora. Que ficaria diferente com a padronizao do "Universal Time" (UT) como o nico
horrio mundial? Formalmente mudaria s o modo de nomear as horas, ou melhor, o sentido
denotado e conotado pelo "nome" de cada hora. O sol deixaria de sair em todos os lugares mais
ou menos s "seis" para aparecer em alguns s "trs" e em outros s "vinte e trs"; porm, cada
dia, cada ms e cada ano comeariam num mesmo momento para todos e no mundo todo.
O "presente global"
Resultou um pouco absurdo constatar recentemente que o mundo no entrava no novo
milnio, mas que "ia entrando". Isto, obviamente, se aceito como o foi em geral que o
milnio j mudou e que no o far na verdade no prximo reveilln. Vale a pena voltar ento ao
dito por Sandford Fleming no Smithsonian Report de 1886: "o domingo realmente comea no
meio do sbado e dura at a metade da segunda feira.." Cada evento pode acontecer em dois
meses diferentes ou inclusive em anos diferentes... Ao passar do 31 de dezembro de 1999 ao 1
de janeiro de 2000, teve-se o estranho e certamente disparatado privilgio de ficar
simultaneamente em dois milnios; num fisicamente e no outro (o milnio anterior ou posterior,
dependendo onde se estivesse ou a hora que fosse) pela televiso. O Sistema de Fusos Horrios
mostrou finalmente suas limitaes e a mudana do milnio, como um paradoxos do destino num
mundo que se diz globalizado, teve que obedecer aos tempos locais. Dessa forma, a mudana do
milnio aconteceu em uma espcie de "eterno presente" que durou 24 horas. A transmisso
televisiva mostrou ento "ao vivo" o que acontecia nos 24 fusos horrios. Para muitos, aquela foi
uma surpreendente experincia de dilao do tempo; para outros, a toma da conscincia pessoal
da existncia de outras temporalidades no mundo e, para a indstria do entretenimento, uma
excelente oportunidade de capturar audincia. Com a adoo generalizada do UT, ou seja, com a
padronizao do horrio mundial sob o tempo universal, a situao teria sido diferente. A
mudana haveria acontecido, como era lgico esperar, num instante. O mundo entraria (todo ele)
no novo milnio; e, para mostrar como foram as celebraes em cada lugar haveria sido preciso
apelar indefectivelmente ao passado... lembrar.
Em clave terica pode se dizer que na atualidade o presente estendeu-se espacialmente
at abraar o globo; transformou-se num "presente global", como afirma Barbara Adam.20 A
autora no prope exatamente a necessidade de tipo "tcnica" de ajustar todos os relgios do
26-16
mundo numa mesma hora. No entanto, segundo ela, a idia dum presente global enfatiza a
vivncia crescentemente compartilhada de que os habitantes do mundo encontram-se num
mesmo tempo comum a todos. Assim, o presente social converteu-se num "presente global", e
isso foi possvel pela capacidade se simultaneidade global alcanada atravs das novas
tecnologias. Adam salienta que:
"A existncia de tal presente global significa no meramente que as reunies de negciospodem acontecer entre pessoas em Bangkok, Bonn e Boston sem que nenhum dos participantesprecise deixar sua escrivaninha. Significa tambm que os eventos numa parte do mundo podemter efeitos quase instantneos do outro lado do planeta e suas ressonncias atravs de toda arede. Alm disso, estes processos esto em grande medida fora do controle de quem estoenvolvidos direitamente neles porque a combinao da instantaneidade da comunicao com asimultaneidade das relaes mantidas pela rede, no funciona j sob os princpios do tempo dorelgio e da interao mecnica."21
A existncia de um presente global implica efeitos instantneos e esses efeitos
instantneos precisam serem regulados, planificados e coordenados com outra dinmica,
diferente da que serviu sociedade durante os ltimos cem anos. A modernidade significou e
significa profundas transformaes sociais. A dimenso do tempo e do espao no ho ficado
fora de seu influxo, escapando primeiro de seu carter eminentemente local e agora, de uma
memria construda predominantemente em torno do nacional. Nem o local nem o nacional
desaparecem; mudam sim o princpio estrutural que articula as relaes entre essas dimenses e
o global. A modernidade segue seu curso e o mundo torna-se uma unidade, no somente em
termos polticos e econmicos mas tambm termos de construo cultural.
H quase uma dcada, Renato Ortiz perguntava-se se a consolidao de um world system
no implica na construo de um universo cultural correspondente. A partir da definio de
civilizao de Marcel Mauss, entendida como um complexo sociocultural que contm em seu
interior um conjunto de fenmenos sociais comuns a diversas sociedades, Ortiz coloca a
pergunta de se na medida que a rea de interao entre os homens abrange o globo como um
todo, no estaremos diante de uma "civilizao" mundial. Ele dizia,
Quero argumentar que o espao e o tempo da modernidade no conhecem fronteiras;eles se baseiam em princpios como circulao, racionalidade, funcionalidade, sistema,desempenho. Neste sentido diferem da noo de espao e de tempo da memria nacional.Enquanto esta ltima se restringe ao mbito das sociedades especficas, ou para falar comoMauss, s "civilizaes nacionais", a modernidade envolve uma rea geogrfica extra-
20 Adam (1995a), Adam(1995b).21 Adam (1995a): 113).
26-17
fronteiras. Ela inaugura um tipo de civilizao que nos anos vindouros ir se transformar numacultura mundial.22
Hoje, num contexto em que a cultura mundial e a existncia de um "presente global" so
realidades cada vez mais prximas, pode se esperar que a modernidade se desvie de seus
princpios de circulao, racionalidade, funcionalidade, desempenho e sistema para adaptar-se ao
tempo "verdadeiro" do lugar, o horrio da sada e do pr do sol? Continuaro prevalecendo os
tempos locais quando as prticas dominantes so crescentemente globais? Entretanto, no
somente trata-se aqui do carter impositivo que possam ter algumas das prticas ou o alto
desempenho das tecnologias nas que se apiam, mas a idia de que vivemos num presente global
conexa ao conceito de "sociedade de risco".23 Nesta linha de pensamento trata-se obviamente
no do risco de uma sociedade em particular mas dos riscos da humanidade como conjunto.
Diante dessa perspetiva, a idia de compartilhamos um presente com o resto da humanidade
toma fora quando amplia-se a conscincia de que indefectivelmente vai haver um "futuro
global" para todos, alm da colocao, a nacionalidade, as posies polticas ou o tempo que
marquem os relgios em cada lugar. Esta viso implica mudanas substanciais nas formas de
organizao, gerenciamento e desenvolvimento sociocultural dos povos do mundo.
Com o presente globalizado, finaliza Adam a responsabilidade estende-se alm dos
representantes locais e dos governos locais e instala-se no indivduo: a impossibilidade de
escapar [do planeta] conecta o global com o local e pessoal. dai que este ecumenismo global
demanda que a predio, a ao e o controle baseiem-se sobre princpios temporais diferentes.24
Diante dessa situao, a necessidade, por exemplo, de um sistema internacional de justia
com jurisdio para alm dos limites dos Estados nacionais comea a ficar mais evidente e a
ganhar maior consenso. Voltando para o juzo de Dorchester de 1858 citado por Whitrow e j
aludido, qual ser a hora que reger os processos? Repetir-se- num contexto global a espera de
mais de vinte anos para aceitar, na Inglaterra do sculo dezenove, a hora nacional? As leis que
regulamentam esses processos regero a partir de um mesmo momento para todo o mundo e em
todo o mundo, ou ser escolhido um lugar (e sua hora) para marcar sua vigncia e alcances?
22 Ortiz (1991: 244-245).23 De fato Barbara Adam tem como referencia fundamental o pensamento de Ulrich Beck e em particular sua obra jclssica Risk Society. Towards a New Modernity (1986), London, Sage, 1992.24 Adam (1995a:115,123).
26-18
Num sentido mais geral, possivelmente a discusso sobre o sentido de continuar
dividindo o mundo (que quer ser pensado como global) em zonas horrias, no tenha sido
colocada ainda entre os muitos temas derivados dos processos de globalizao. Um sistema de
justia internacional ainda uma proposta para o futuro e as redes de alta velocidade esto por
enquanto em sua fase de construo inicial; porm, a discusso sobre a unificao horria uma
discusso antecipada? No sculo XIX, os Estados nacionais demoraram na adoo do horrio
mundial porque ele punha em jogo a soberania de cada um deles sobre o tempo. Foram precisas
ento fortes presses da sociedade civil para que a "modernidade", para dar-lhe algum nome,
pudesse continuar avanando. O cenrio num futuro prximo pode ser que no seja muito
diferente. Por enquanto, basta somente com olhar no horrio de operaes do Nasdaq para
lembrar das tabelas de converso que foi preciso construir para coordenar os horrios dos trens,
h mais de cem anos,...
Nasdaq Trading Schedule25Regular Trading Session ScheduleThe Nasdaq Stock Market Trading SessionsRegular Trading Hours from 9:30 a.m. to 4:00 p.m. eastern timeAfter Hours from 4:00 p.m. to 6:30 p.m. eastern timeThe Nasdaq International Market SessionFrom 3:30 a.m. to 9 a.m. eastern timeSelectNet Pre-hours Trading SessionFrom 9:00 a.m. to 9:30 a.m. eastern timeThe Nasdaq Stock Market Regular Trading SessionFrom 9:30 a.m. to 4:00 p.m. eastern timeSelectNet After-hours SessionFrom 4:00 p.m to 5:15 p.m. eastern time
Please note: Closing price information reported externally by Nasdaqto market data vendors and the media is based on the price at 4:01 PM ESTwhen the market officially closes, and is not affected by other sessions.
...e se perguntar porque continuam
dependendo hoje as bolsas do tempo solar mdio das cidades se suas transaes so realizadas
atravs dos fluxos de informao que transitam o tempo todo e por todo o mundo pelas redes?
Sincronizao das prticas globais, desincronizao das locais
Acima foi formulada a hiptese de que a sociedade informacional estaria se
encaminhando para uma crescente sincronizao de suas prticas globais e paralelamente estaria
25 Copiado da pgina do Nasdaq na Internet (http://www.nasdaq.com/About Nasdaq/NasdaqTrading Schedule.htm).
26-19
se produzindo uma desincronizao das locais. interessante deter-se neste ponto e explorar o
argumento no que diz respeito, por exemplo, organizao do trabalho e de suas rtmicas
cotidianas. Como seriam redefinidas elas num mundo que tenha unificado seus horrios? Para
isso, necessrio antes de mais nada, revisar as caratersticas e tendncias que apresenta o
trabalho e sua relao com o tempo na sociedade atual.
No clssico ensaio sobre o tempo e o capitalismo no mundo industrial, E.P. Thompson
dizia:
As sociedades industriais maduras de todo tipo distinguem-se porque administram otempo e por uma clara diviso entre "trabalho" e "vida".26
Continua sendo isso verdade na sociedade informacional? Para Manuel Castells, a
tendncia que parece ser a dominante nos setores mais dinmicos da sociedades avanadas, a
da diversificao geral do tempo de trabalho.27 Conforme demostram os estudos por ele citados,
as categorias de trabalho de maior crescimento so o trabalho temporal e o trabalho de tempo
parcial. Pode-se observar que entre um quarto e um tero da populao empregada dos principais
pases industrializados incluindo a dos empregados autnomos no seguem o padro clssico
de trabalho de tempo integral com horrios de trabalho regulares. Soma-se a isso que uma
proporo considervel de trabalhadores de tempo integral provavelmente a maioria
pertencente fora de trabalho profissional est se orientando para horrios de trabalho
flexveis, geralmente aumentando sua carga de trabalho. A tendncia que cada trabalhador
gerencie seu tempo de trabalho. As tarefas, por sua parte, tornaram-se mais flexveis na sua
organizao temporal, o que no significa que sejam menos intensas, mas em geral ocorre o
contrrio. Est se introduzindo uma transformao fundamental do trabalho prpria da
reestruturao das empresas e organizaes, a que possvel pelas tecnologias da informao e
estimulada pela concorrncia global. Trata-se da individualizao do trabalhador no processo de
trabalho, sugere Castells. Entretanto esse indivduo trabalhador encontra-se confrontando por
isso mesmo com diversas temporalidades. Por um lado, aquelas nas quais se organiza a empresa
e, por outro, as prprias de sua vida privada e familiar. Da que a heterogeneidade das rtmicas
quotidianas numa sociedade com similar participao de ambos gneros em sua fora de trabalho
impe um ajuste drstico dos acordos familiares. Isso no necessariamente negativo pelo fato
26 Thompson (1984: 288).27 Castells (1996: 265, 442-445), Daz Isenrath (1999: 145-146).
26-20
de que uma maior flexibilidade no tempo de trabalho pode disponibilizar mais tempo para
compartilhar em casa. No entanto, fica claro que impe-se uma nova articulao entre o tempo
da vida e o tempo de trabalho na Sociedade Informacional, diferente da conhecida pelo
industrialismo estudado por E. P. Thompson. Misturam-se o trabalho e a vida e conseguem se
reacomodar dependendo das possibilidades, interesses e, sobretudo, os acordos que cada
indivduo estabelea com quem interatua em seu trabalho ou em seu lar.
Esquematicamente poderia se dizer que a Revoluo Industrial caracterizou-se por
"sincronizao versus flexibilidade". Significou todo um processo de disciplinamento dos ritmos
irregulares do trabalho prprios da indstria manufatureira domstica anterior na qual
alternavam-se os ritmos de trabalho intensos com a ociosidade. A flexibilidade nas lavouras teve
que desaparecer frente s exigncias de sincronizao dos processos de produo complexos e
com uma intrincada subdiviso de trabalho, qual deviam se meticulosamente ajustados.28 Num
sentido oposto, a Revoluo Informacional pode ser pensada como o fim dos antagonismos entre
sincronizao e flexibilidade. Hoje, as novas tecnologias permitem integrar as contribuies de
vrios trabalhadores realizadas em tempos diferentes. Pode se pensar em trminos de
"sincronizao e flexibilidade". Isso significa que possvel sincronizar tarefas com ritmos
irregulares de trabalho: sincronizar a flexibilidade e trabalhar com uma sincronizao flexvel,
reprogramvel a cada momento.
No sculo XIX, por exemplo, a pontualidade tornou-se um valor imprescindvel para a
concatenao dos servios. No sculo XXI ela no pode deixar de ser importante, pois
continuar havendo uma grande quantidade de atividades que precisaram ser coordenadas.
Contudo, vai se tratar cada vez mais de pontualidade entre indivduos; de exatido diante dos
compromissos estabelecidos com outros na coordenao feita "pessoa a pessoa" (pela rede ou
no), e no diante de grandes instituies como a estrada de ferro ou a fbrica. importante
destacar aqui duas dimenses do tempo de trabalho na sociedade informacional que geralmente
so confundidos. Uma a dimenso intemporal, "sempre presente" dos servios "on demand", a
outra a da interao em tempo real. Por uma parte os trabalhos flexibilizam-se porque existem
sistemas informticos que, como foi j salientado, permitem integrar em qualquer momento os
trabalhos individualmente realizados em forma "assincrnica" seguindo os tempos prprios de
cada trabalhador. Essa dimenso poderia ser chamada de dimenso "base de dados": o sistema
est sempre "on line" esperando para dar ou receber informao. o que acontece quando
28 Thompson (259-261, 266).
26-21
navega-se pela Internet (tudo est ali, em qualquer momento e todos os dias) ou quando so
utilizados servios que, embora que atendidos por pessoas, tm seu "corao" nas bases de dados
sobre as que esto montados ( o caso dos servios de assistncia ao viajante ou do auxilio
mecnico das seguradoras, alm de outros). A outra a dimenso "rede" que implica a
coordenao das tarefas entre quem trabalha de diferentes lugares fsicos e que precisa portanto
da "pontualidade flexvel" dos acordos pessoais; a primeira dimenso a tecnologicamente mais
desenvolvida at o presente e a que permitiu a proliferao de muitos dos servios "on demand"
e durante as 24 horas que existem hoje. A segunda tem sido conhecida somente em uma fase
muito rudimentria de seu desenvolvimento. Porm, a ltima a que mais vai se desenvolver no
futuro prximo quando se estandardizarem as redes de alta capacidade de transmisso do tipo da
Internet2 e multiplique-se, entre 100 e 1000 vezes, a performance das redes atuais.
A unificao da hora mundial avana no sentido da sincronizao flexvel que demanda o
trabalho hoje, favorecendo ao nvel dos indivduos, a coordenao das tarefas que requerem da
co-presencia. A nvel social, UT significa facilitar a sincronizao das prticas globais. Sem
dvidas, trata-se no s de outra maneira de organizar o trabalho mas de outra forma do social.
Com UT, a socializao dos indivduos ir alm dos constrangimentos da contigidade fsica.
Partindo da perspectiva das comunidades locais, o que se produz uma inevitvel
desincronizao de suas prticas e diluio no necessariamente desapario de muitos dos
significados, hbitos, e rituais compartilhados por seus habitantes. Estas perdas acontecem na
busca da construo de uma cultura mundializada e de um novo sentido de pertencimento a uma
sociedade global. Em contrapartida, surgem novos arranjos sociais como o possvel
"povoamento" das 24 horas do dia como espao de trabalho e sociabilidade. A utilizao da
mesma hora no mundo todo faz sumir definitivamente as balizas que tradicionalmente tem
demarcado o ordenamento temporal. Trata-se do fim dos momentos profanos e dos momentos
sagrados, dos tempos de trabalho e dos tempos de descanso impostos desde a sociedade local.
So agora os indivduos que ajustam seus horrios conforme suas prticas e relaes. assim
que, designificadas as horas das prticas em que elas so realizadas, resulta mais fcil pensar que
o espao da noite possa ser apropriado como tempo aproveitvel num mundo cada vez mais
povoado. Haveria menos infra-estrutura ociosa e mais postos de trabalho disponveis num
planeta que superou j os 6 bilhes de habitantes.
Esse quadro futurista pode resultar chocante hoje. A imagem do ciclo solar como
"natural" muito forte para ns ainda. Porm nossa sociedade deixou j, a partir de Edison em
1879, de depender da luz do sol! Alm disso, muito do que at faz poucos anos parecia sacrlego
26-22
agora acontece com total normalidade: todos os supermercados trabalham os domingos e muitos
deles tambm 24 horas! Em termos mais gerais pode se dizer que, pela convergncia da evoluo
histrica e a mudana tecnolgica, est se entrando num padro puramente cultural de interao
e organizao social. Um mundo governado por UT acabaria com a distribuio das atividades
em relao luz solar e tornaria mais fcil repartir os trabalhos ao longo do dia (manh, tarde e
noite). A "fluidez" do dia UT estaria em consonncia com os fluxos que circulam pelas redes e
que permitem novos arranjos (acordos?) entre o local e o global, entre trabalho e vida privada.
Tempo homogneo e tempo heterogneo. Tempo privado e tempo uniforme e pblico.
Stephen Kern salienta que entre 1880 e 1918:
A introduo do Tempo Standard Mundial teve um impacto enorme na comunicao, a
industria, a guerra e a vida quotidiana das massas; mas a explorao de uma pluralidade de
tempos privados foi a contribuio histrica mais particular deste perodo. A acometida sobre o
tempo universal, inaltervel e irreversvel, foi a fundao metafsica de um desafio cultural
amplo s noes tradicionais da natureza do mundo e do lugar do homem nele. A afirmao do
tempo privado interiorizou radicalmente o lugar da experincia. Erodiu as vises convencionais
sobre a estabilidade e a objetividade do mundo material e da habilidade da mente para
compreend-lo... se existem tantos tempos privados como indivduos, ento, cada pessoa
responsvel pela criao de seu prprio mundo em cada momento, e est sozinho nesta
criao.29
Que aconteceria com a aceitao do Tempo Standard Mundial como horrio nico para o
mundo todo? Pelo que foi analisado, seria razovel pensar que o quadro apresentado por Kern
poderia se intensificar. A unificao da hora levaria ao seu mximo grau a homogeneizao do
tempo pblico: UT regeria efetivamente no mundo todo; o planeta contaria com uma nica
medida da durao e da sucesso; os dias, os meses e os anos comeariam num mesmo instante
em todos os pontos do planeta. Paralelamente a esse tempo homogneo compartilhado por todos,
cada indivduo seria mais do que nunca arquiteto de seu prprio tempo e responsvel por sua
criao. A pluralidade dos tempos privados seria assim realmente efetiva.
H mais de um sculo, novelistas como Wilde, Proust, Kafka ou Joyce da mesma forma
que socilogos, psiclogos e fsicos, geraram um grande debate em relao condio de
29 Kern (1983: 314).
26-23
homogeneidade e heterogeneidade do tempo. Diante da novidade histrica da padronizao e
racionalizao deste pelo sistema de fusos horrios uniformes, examinaram e enfatizaram as
diversas formas nas que os indivduos criam tempos diferentes, tantos como existem estilos de
vida, sistemas de referncia e formas sociais.30 Nos ltimos anos, passou-se por um intenso
processo de individualizao das referencias. A comunidade perdeu em boa parte sua capacidade
como mediadora simblica e os indivduos, em muitos casos, ligam-se direitamente com o
global. "O local", por sua vez, inclui no somente a localidade regional mas tambm os aspetos
ntimos de nossas vidas pessoais.31
Finalmente, no sculo XXI, Newton e Einstein parecem se reconciliar. A existncia de
um tempo absoluto (ao menos construdo socialmente por necessidade de organizao e
simplicidade) e de infinidade de tempos relativos, tantos como indivduos ho no planeta, sugere
a resoluo do eterno paradoxo sobre a natureza do tempo: absoluto / relativo, homogneo /
heterogneo, pblico / privado.32 UT, "Universal Time", parece disposto a conciliar todos em um
s, os tempos dos indivduos e o tempo do mundo.
Concluso:
A histria da racionalidade moderna parece mostrar uma tendncia na qual as prticas
locais cedem terreno s globais. Essa tendncia apareceu com clareza na anlise das mudanas
acontecidas na determinao da hora nos ltimos duzentos anos e, ainda mais, nas que parecem
se estar produzindo na atualidade. Um exemplo so os planos que j se anunciam para a criao
do "GEM", sigla em ingls para o futuro mercado global de aes. Um non-stop global market
que funcionar as 24 horas e ser composto por ao menos nove das actuais maiores bolsas do
mundo, desde a Bolsa de Nova York de Tquio. Os mercados de valores, surgidos no mbito
da cidade, espalham-se por toda a Europa a partir do sculo XVI. Quando ao final do XVI
tornam-se objeto de estudo de Max Weber, existiam j em todas as principais cidades do Velho
Continente e estavam sendo criadas em outras como Buenos Aires e Mxico. O que merece
destaque, porm, que at o presente, as bolsas de valores pareciam indissociveis da cidades
nas que eram criadas, tanto quanto o mundo urbano e a racionalidade moderna do surgimento do
esprito capitalista. O espao da cidade parece no poder conter mais o desdobramento desta
30 Kern (1983: 15-19, 31-35).31 Guiddens (1994: xii).32 Segundo Whitrow, o que Einstein demostrou , em ltima instncia, que a simultaneidade um conceito mais"privado" que "pblico" (1988: 187).
26-24
lgica. Da mesma forma, a lgica do capitalismo parece tambm no poder ser contida no tempo
local da cidade. neste contexto, e radicalizando algumas das tendncias que apresenta a
modernidade globalizada diante do sculo XXI, que considera-se pertinente discutir como seria o
mundo depois de um novo processo de estandardizao horria.
Um dos eixos principais deste trabalho foi a intromisso no espao local de outras
temporalidades: no sculo XIX com as ferrovias e o telgrafo e, na atualidade, com as
tecnologias da informao. De alguma forma se est hoje novamente como em 1830. Naquela
poca conhecia-se j da existncia da locomotiva a vapor e era possvel, em boa parte, imaginar
seu enorme potencial. Entretanto, no se sabia ainda como se veria o mundo desde os trilhos do
trem. muito difcil diagnosticar o que significar exatamente ter redes com uma capacidade de
transmisso 1000 vezes maior das conhecidas hoje. Contudo, no possvel negar as
conseqncias decisivas que essa mudana tecnolgica ter na forma em que o social ser
organizado no futuro imediato ou, em outras palavras, em como o mundo ser visto nos
prximos anos a partir das redes de alta velocidade.
A partir do comeo da modernidade, est-se imerso num longo processo histrico
de "esvaziamento" do tempo local de seus significados. Esses significados estavam unidos
originariamente s rtmicas quotidianas do lugar mas hoje o esto cada vez em menor medida.
Parece se estar passando do tempo das comunidades ao tempo dos indivduos e da coordenao
dos deslocamentos, que caracterizou a os ltimos dois sculos, coordenao das localidades. Se
assim for, o futuro prximo pode estar marcado novamente pela necessidade de padronizao
horria, a que seria agora sob um horrio nico: "UT". Isso no quer dizer que as prticas locais
deixaro de existir, mas que ao passar a serem organizadas desde outro espao e desde outra
temporalidade mudar seu sentido estrutural. possvel ento que o espao, to comprimido
desde as viagens de descobrimento, tenda a se dilatar no tempo e sejam povoadas as horas da
noite. No entanto, continuar existindo o social num mundo de tempos privados individuais onde
todas as horas e todas as datas sero "liberalizadas" das funes e compromissos sociais e
"flexibilizadas" para a coordenao das tarefas e a sincronizao dos encontros entre
indivduos?
Quem sabe se finalmente se chegue concluso de que o tempo do lugar era o nico
reduto do espao, daquele espao fsico, local, simbolizvel. Talvez seja preciso ento sair em
busca do resgate do social num mundo de tempos privados individuais. Porm, este um
problema de uma outra ordem ao que foi delineado pelo avano da racionalidade moderna que se
26-25
procurou examinar aqui; o que parece indicar a UT como a continuao lgica desse processo
em curso, "o prximo passo a seguir", "a nova meta a atingir".
Referencias bibliogrficas:
*ADAM, Barbara (1995a) Timewatch. The Social Analysis of Time. Cambridge, Polity Press.
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