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Entrelugares: notas críticas sobre o pós-mangue (2012)

PASSAGENS PERFORMANCES PROCESSOS(2015)

Ed. 1 # cenas musicaisjaneiro/2014

Ed. 2 # o valor da músicamarço/2014

Ed. 3 # paisagem sonoramaio/2014

outroscriticos.com

Ed. 4 # artes integradasagosto/2014

Ed. 5 # o improviso como forma outubro/2014

Ed. 6 # estética e políticadezembro/2014

Ed. 7 # ruínas e culturajunho/2015

Ed. 8 # corpo, gênero e descolcamentos agosto/2015

no mínimo era isso (2013)

Revista

Revista

Livro

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Quando quis tirar a máscara,Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,Já tinha envelhecido.

- Álvaro de Campos

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o artista vEstE mÁsCarasEdição 9 - bimestral, outubro de 2015

Esta revista é uma iniciativa do projeto de crítica cultural outros Críticos, e foi realizada com incentivo do FUNCULtUra (Governo do Estado de Pernambuco).

apoio:altovolts, orbe Coworking e CEPE.

impressão gráfica:CEPE (Companhia Editora de Pernambuco).

issN: 2318-9177informações ou sugestões:[email protected]

ExPEdiENtE

Edição: Júlio rennó

Projeto gráfico: Cécile duchamp

artista convidado: manu maltez

textos: Carlos Gomes e marina suassuna

Capa: sanguínea e carvão, de manu maltez

Jornalista responsável: marina suassuna

(drt 0005556/PE)

CoLaBoradorEs

Fernando athaydemúsico e jornalista.

Fred CoelhoEnsaísta, escritor e professor da PUC (rJ).

Gabriel albuquerqueEstudante de Jornalismo e integrante do grupo

de pesquisa Lama (UFPE).

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artista convidadomanu maltez

a voz, a imaGEm E o traNsitório

UNs vENtríLoQUos,

asa asa: do CaNto ao rECaNto

rodriGo CamPos

o QUE Nos rEsErva rUivo Em saNGUE

o aNti-CLímax do BEmôNio

artigo por Fred Coelho

ensaio por Carlos Gomes

artigo por marina suassuna

entrevista por Carlos Gomes

resenha por Fernando athayde

resenha por Gabriel albuquerque

sUmÁrio

Foto: Cena do filme “O diabo era mais embaixo”/Efeito preto e branco sob foto.

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maltezmanu

artista múltiplo, sua poética se

transfigura na manipulação de imagens, sons e textos. Como músico já lançou

três discos, o último, "o diabo Era mais Embaixo", também foi lançado como livro e filme. segundo Lourenço mutarelli, "os

demônios que habitam manu se manifestam de inúmeras formas. a história sai como

texto, desenho e grito (música). o diabo é o atalho". Entre as diversas publicações,

"o Corvo", de Edgar allan Poe, foi ilustrado e traduzido pelo artista, e com a obra recebeu os prêmios da FNLiJ e Jabuti.

artistaconvidado

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artigo

A voz, A imAgem e o trAnsitóriopor Fred Coelho

Dedicado a Juçara Marçal.

i. Alguém cantando é bom de se ouvir

Há um corpo que canta e toca instrumentos. Há corpos em uma plateia. Todos, sedentos dos corpos no palco, observando seus mínimos mo-vimentos. O músico é esse corpo múltiplo em produção constante de sons, gestos, olhares. Ele ativa sensações coletivas e aguça subjetividades singulares. Ele se move pela arena, atuando em um teatro cuja dramaturgia são suas canções, seus espasmos sonoros. Ele é o dono da cena.

Som é ocupação de espaços. A música é uma das rotas possíveis para exercer essa ocupa-ção. Nela, o corpo daquele que a executa torna-se transmidiático, atravessado por criações que articulam senti-dos. No palco, o músico torna-se corpo estético em movimento, interface presencial entre a máquina (aparato técnico) e a nossa fruição. No disco, o músico torna-se abstração, puro som para ser desven-dado através de uma assi-natura que demarca sua audição. Em ambos os formatos, uma imagem ressoa.

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ii. A voz do vivo

Em poucas décadas de cultura de massas entre nós, a experiên-cia abstrata e aberta da voz no rádio (pensemos na década de

1940 no Brasil) foi sobreposta pela experiência imagética da voz na televisão. Essa presença de uma imagem atrelada a uma voz faz com

que a interpretação musical adquira múltiplas camadas que se manifes-tam no corpo do intérprete. De certa forma, é possível pensar uma narra-

tiva sobre a música brasileira apenas pelo prisma dessa voz-imagem que se desdobrou em capas de discos, cenários, figurinos, programas de televisão etc. Durante os anos 1970 alguns artistas levaram isso longe ao utilizarem o prin-cípio da mutação como motor de suas apresentações. Mesmo uma artista inserida no mainstream do seu tempo como Elis Regina utilizou de recur-sos cênicos fundamentais em seus espetáculos. Mudava de cortes de cabelo e guarda-roupas de acordo com discos, pensava repertórios de acordo com os momentos de sua vida. Músicos como Elis e muitos outros entenderam que mais do que ser representada por uma imagem, deve-se assumir a própria

condição precária e transitória de uma imagem em circulação no mercado das formas culturais de consumo.

Muitos músicos entenderam plenamente esse espaço cênico-ima-gético da música e investiram suas carreiras na criação dessas

múltiplas camadas sensoriais propostas ao público. Não desper-diçaram nenhum elemento na ampliação de suas performances. Assumiram personas fugazes, reinventaram rostos, refundaram sonoridades, criaram personagens fictícios. Ao contrário de heterônimos literários, porém, eles precisaram fazer isso também em seus próprios corpos. Essas são marcas de grandes artistas cuja

ideia de trânsito marcaram suas trajetórias. São aqueles que enten-deram desde cedo que cabe à arte e ao artista propor enredos de

vida. Na música, porém, não basta assumir outro nome para rasurar assinaturas. Pois seu nome não assina nada. Quem assina são timbres,

vozes, elementos sonoros que o ouvinte reconhece em uma audição interessada. De certa forma, se entre 1972 e 1979 David Bowie mudou

ao menos quatro vezes de visual em função de personagens que conduziam a narrativa de seus discos, a sua voz permaneceu sempre a mesma. Se as máscaras

são trocadas, a voz trai o deslocamento do sujeito autoral? A voz como másca-ra da canção (situada entre o compositor, o intérprete e o ouvinte) ou a voz

como limite da máscara (uma constante que denuncia a assinatura de um nome)?

Mas afinal, que instância “assina” uma composição: quem escreve, quem interpreta ou quem a escuta? Que autoria pode ser reivindicada em um jogo tão intrincado de vozes quando a música é ativada em uma fruição? O consumo descentrado e sem hierarquias prévias da música nos dias de hoje aprofunda essa reflexão. O ouvinte contemporâneo de música assume o termo de Nicolas Bourriaud e torna-se um pós-pro-

dutor frenético: monta playlists, compartilha remix, refaz discos, escuta apenas faixas no Youtube, enfim, cria táticas criativas e subversivas de con-

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iii. A voz do morto

sumo. Em um ambiente em que a troca, o saque e a posse organizam um regime hegemônico de fruição (mas não o único), a canção – principalmente a popular, matriz e tradição moderna brasileira – torna-se uma obra tran-sitória, pois nunca se fecha. Repertórios são permanentemente revisitados pelo ouvinte descontextualizado das novas gerações.

O que proponho como tema, em suma, é pensar de forma mais livre a relação entre a música, seus dispo-sitivos interpretativos (técnica, corpo, imagem) e seus circuitos de fruição e consumo. Partindo do mote das máscaras, vale aprofundarmos o lugar de quem usa seu corpo e sua voz como espaço de cria-ção sonora – seja de seus trabalhos, seja do trabalho de terceiros. O intérprete tem como uma de suas etimologias o papel do medianeiro, daquele que faz a mediação entre coisas. No caso da música, ele se instala na brecha entre a obra criada e o público que a recebe. Sua máscara, porém, não é apenas uma vestimenta ou uma ma-quiagem. Sua máscara precisa da força física de uma voz para dar sentido ao músico como imagem. Pois é a voz que separa o corpo mudo e sem imagem do compositor do corpo vivo e sonoro da voz. Ela marca o espaço do intér-prete como algo singular, encarnado por um ser que a emana, sugerida por um espaço que a conforta, legitimada por um público que a deseja. Na canção, a voz carrega a letra e cola nela sua marca. A eter-nidade de Noel Rosa é a voz de Aracy de Almeida, a de Humberto Teixeira é a voz de Luiz Gonzaga.

Às vezes, vozes musicais engolem quem as possui. Lembramos das vozes e apagamos vidas que fene-cem por trás delas. Corpos morrem, mas suas vozes permanecem no dia a dia do mundo, como luzes de estrelas mortas que iluminam o céu. Silenciar uma voz é

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impossível quando ela atinge o imaginá-rio coletivo. No caso brasileiro, a canção popular tornou-se esse “bloco de sensa-ções” que se entranhou na fala cotidia-na, que incorporou em práticas moder-nas tradições milenares, que inventou uma narrativa para nossas diferenças, que destrinchou uma gramática dos afe-tos das nossas formas de vida. E foram as vozes dos grandes intérpretes que deram presença física a esses elementos poéti-cos e sonoros.

Quando Carmem Miranda morreu em 1955, centenas de milhares de populares estavam enterrando uma voz, não um corpo. No dia de seu velório, um fato noticiado na edição especial da Revista da Música Popular toda dedicada ao falecimento da cantora (edição julho/agosto de 1955) torna essa perspectiva da morte da voz mais intenso. Cito a matéria: “Na saída do enterro, na Ci-nelândia, a banda da Polícia Municipal deu os acordes iniciais do ‘Taí’, a mais famosa criação de Carmem. Mas o povo que deveria cantar, em côro, a marchi-nha, ficou em silencio”. O silencio ao redor do corpo (e da ausência da voz) de Carmem era o luto pelo fim da máscara de suas próprias emoções? Era o choro pelo fim daquela voz que era voz de todos e de cada um? A intérprete que literalmente incorporou na sua persona uma cultura musical – a carioca por princípio e a brasileira por consequên-cia – ganhara status de voz coletiva e, ao mesmo tempo, singular. O intérprete canta no seu ouvido, apaga a voz de quem escreveu a música e a transforma em dado orgânico de sua vida no palco e no pensamento. No mesmo núme-ro especial da Revista, o compositor Fernando Lobo define isso na frase final: “Morre o samba na voz de Carmem Mi-randa”. O fim de uma voz, o fim de uma máscara, o fim de um mundo.

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iv. O dono da voz

Pensemos agora no polo oposto dessa máscara escorregadia. Falo do compositor, aquele sem voz, sem performance, sem máscaras para inventar mundos sonoros. Quando em 2014 a jornalista Mariana Filgueiras divulgou uma entrevista com Torquato Neto feita pelo radialista gaúcho Vanderlei Malta da Cunha em 1968, foi a primeira vez que sua voz pôde ser ouvida pelo público – quase meio século depois. De certa forma, essa gravação que nos revela um Torquato elo-quente e extremamente articulado completou um corpo mutilado em nossa memória da cultura – um corpo que não tinha permanência sonora, apesar de conhecermos o que ele escrevia, como ele se movia, o que ele pensava. É porque, talvez, faltasse justamente uma voz. Voz essa que Torquato Neto não usara na sua épo-ca para cantar. Sua participação no tropicalis-mo musical e nos debates da música durante os anos de 1967 e 1968 foram fundamentais, mas só textos e vozes de terceiros nos dizem isso. Sem uma voz que carregasse suas com-posições (gravadas quase todas por Gil, Caetano, Edu Lobo, Maria Bethânia ou Jards Macalé), sua máscara era incom-pleta. Vale citar aqui as palavras pre-cisas de Tom Zé sobre o compositor piauiense em Tropicalista Lenta Luta (Publifolha, 2003): “Não cantar apa-gava a visualidade de Torquato, na fase em que se instaurava com mais força o cantor-imagem”. Cantor-imagem, cantor da “máscara da máscara”, aquele que se torna uma dobra posto que é intérprete de si mesmo e de uma imagem sobre si mesmo. O cantor-imagem surge como um dispositivo que esvazia ainda mais o espaço do compositor como criador de letras. Ele agora é um corpo sem imagem e sem uma voz que lhe dê vida ou que lhe deixe viver para sempre depois da morte desse corpo.

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v. A voz sem dono

Hoje, 2015, vemos que o ocaso da indústria fonográfica também provocou o mesmo fenômeno com o modelo do cantor-imagem sugerido por Tom Zé. O consumidor da pós-produção e a condição transitória da canção possibilitaram outros modelos dessa relação música-imagem. Os tradicionais espaços assinados como o disco, o clipe, o single ou a campanha de lançamento, mesmo que não apaguem o traço singular de uma voz, não apostam mais obrigatoriamente em uma imagem como parte de sua constituição. A televisão deu lugar a mídias móveis e clipadas e hoje vemos-ouvimos apresentações musicais em recortes precários através de vídeos privados despejados na rede. Compartilhamos re-gistros desfocados e abafados pelo prazer de apresentar um testemunho e não uma canção. Assim como o som, a imagem, mesmo que na sua força contempo-rânea, é porosa a uma baixa qualidade de resolução, ficando livre da obrigação de ser tão boa quanto a voz que representava. Assim, voz e corpo se libertam, esvaziando a máscara do cantor-imagem. Nossa produção mais recente demons-

tra os usos abertos e inventivos das vozes e dos instrumentos, se afas-tando da imagem como representação de algo no lugar de alguém (o

intérprete no lugar do compositor) e se aproximando do SOM como espaço de atuação e assinatura. Gravadoras, grandes estúdios ou re-des de televisão não dão mais as cartas no que diz respeito à técnica vocal que precisa estar atrelada a obrigação de uma performance

cênica bombástica desse corpo que canta e toca. A voz se libertou do mascaramento epidérmico do sujeito (maquiagens e figu-rinos) para poder assumir o lugar pleno de uma máscara em

trânsito, vestindo diferentes rostos sonoros de acordo com a experimentação proposta.

Juçara Marçal é o exemplo mais contundente desse ponto de vista proposto. Uma cantora cujos trabalhos transitaram dos grupos vocais e bandas semiacústicas até experimentações com máquinas e improvisos, como

nos recentes Abismu (com Kiko Dinnuci e Thomas Harres) e Anganga (com Cadu Tenório). Seu canto é máscara pois assume a imagem de uma voz em trânsito e em transe. Nada se fixa na imagem pré-

concebida, cada projeto é a construção de uma nova imagem em que a voz, sem precisar

salvar a nação, vender milhões de discos ou elevar o ibope

televisivo, é o centro nervoso dessa inquietação. Máscaras que, ao invés de iludirem ou sequestrarem corpos de compositores em silêncios, os transfiguram em novos corpos terceiros. oc

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Em 1965, Elis Regina recebia um bilhete de Vinícius de Moraes pouco antes de subir ao palco da final do 1º Festival Nacional da Musica Popular Brasileira: “Arrasta essa gente aí, Pimentinha", dizia o poeta, autor da música “Arrastão”

junto com Edu Lobo. A canção seria interpretada por Elis na ocasião e

transmitida em rede nacional pela TV Excelsior. Em plena década de

1960, os festivais de música popular – ou festivais da canção – eram as principais vitrines dos compositores e intérpretes brasileiros. De caráter

competitivo, esses eventos tinham vários critérios para a eleição dos vencedores. Mas a maneira como a canção chegava

ao público, dependendo de como o cantor/intérprete se colocava no palco, era decisiva. O que conquistou o júri e a plateia do festival da TV

Excelsior em sua primeira finalíssima foi justamente a intepretação explosiva e dramática de Elis

Regina que, fazendo jus ao nome da canção e seguindo o conselho de Vinicius de

Moraes, “arrastou” todos os presentes e aqueles que a acompanhavam pela TV, saindo vencedora daquela edição. Depois desse episódio,

surgiu na imprensa o apelido de Élice Regina, criado por Ronaldo Bôscoli. “Além de mergulhar nos versos como um tubarão, Elis iria acrescentar duas marcas registradas de seu estilo. Uma delas eram os movimentos dos braços, que tanto chamaram atenção e que sugeriam o ato do pescador puxando a rede”, conta o musicólogo e jornalista

Zuza Homem de Mello no livro A era do festivais: uma parábola. O tal nado de costas, como ficou conhecida a coreografia da cantora quando girava os braços freneticamente enquanto cantava, realçava não só suas

apresentações, mas principalmente a composição de Vinicius e Edu Lobo. Uma espécie de espelho daquilo que a música queria transmitir.

do canto ao recantopor Marina Suassuna

artigo

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Outra técnica implantada na época pela intérprete foi a chamada “desdobrada”, tradicional nos shows da Broadway, que criava um clima dramático e contagiante. Trazida pelo bailarino americano Lennie Dale, que integrou o Dzi Croquettes, a

desdobrada era, segundo Zuza Homem de Melo, tudo o que as canções precisavam para impressionar o júri e empolgar a plateia, passando a determinar o

modelo das músicas de festival. “Além de ressaltar a marcação da frase, a desdobrada causava um dinamismo tão

invulgar que o público era levado a aplaudir ali mesmo,

antes de a música terminar. A técnica caiu como uma

luva na interpretação de uma cantora como Elis, que,

ensaio “Elis mudou, não o disco”, em que analisa o álbum intitulado Elis, de 1973: “Em ‘Doente, morena’, por exemplo, composta por Gilberto Gil em parceria

com Duda Machado, a angústia na voz de Elis revela toda a solidão retratada pela letra que fala da personagem que deita sobre os trilhos e vê o tempo e a vida passar. A força e tensão colocadas em ‘Agnus sei’, umas das primeiras parcerias de João Bosco e Aldir Blanc, ajudam a dar vazão à história criada pelos autores para

denunciar a hegemonia que o Ocidente sempre tentou impor ao Oriente”. Num dos episódios da série Compositores Reunidos, exibida pelo Canal Brasil, Pedro Mariano, filho de Elis com o arranjador e produtor César Camargo Mariano, comenta: “Uma coisa interessante do trabalho do intérprete é isto, se apropriar da música como se fosse dele”. Neste caso, seria o intérprete uma espécie de coautor?

O fato de protagonizar a canção e exprimi-la ao público torna a música tão sua quanto de quem a escreveu?

“Na cabeça da Elis, um disco era como um filme: deveria ter começo, meio e fim, precisava contar uma história, uma música tinha de ter afinidade com a outra.

Era nesse momento que ela se tornava autora, sem tocar nenhum instrumento. Era aí que ela imprimia sua personalidade”, declarou César Camargo Mariano em

entrevista à revista Brasileiros.

sabendo como criar e explorar

a dinâmica de uma canção deu um novo destino ao seu visual e ao

da própria música popular brasileira na televisão”.

A discussão sobre Elis ser mais técnica ou emoção rendeu

bastante. O fato é que a leitura que a cantora fazia da canção não deixava dúvidas sobre

a mensagem que o compositor queria passar. A Pimentinha foi o maior exemplo do que a

autora Marília Laboissiére definiu como interpretação musical: “um processo pelo qual uma personalidade musical

ímpar e singular atua sobre a música a fim de revelar sua substância, seu conteúdo ou seu significado”. Esta postura fica bem esclarecida pelo

jornalista Danilo Casaletti, no

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Para o artista plástico e compositor Nuno Ramos, o intérprete é quem oferece o verdadeiro gozo

e usufruto da canção. “A canção tem uma alma procurando baixar num corpo. O compositor que não

canta, como eu, oferece uma coisa a ser preenchida. Nesse caso, o intérprete é o principal autor comunicando. Há uma

intenção no intérprete, cada detalhe, cada momento, sensação. Tudo isso é altamente autoral. O compositor dá apenas uma

base”. Nuno já teve composições suas gravadas por Gal Costa, Nina Becker e Romulo Fróes. Mas foi na voz de Mariana Aidar que suas

letras ganharam forma e volume de uma maneira bastante peculiar.

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O primeiro encontro de Mariana e Nuno foi em 2007. Logo, ela passou a gravá-

lo em seus discos e emprestou sua voz à sonorização de Bandeira Branca, instalação

de Nuno exposta na 29ª Bienal de São Paulo de 2010. Em 2013, foi convidada para participar do projeto Palavras Cruzadas, de Marcio Debellian, cuja proposta era reunir, num espetáculo, artistas da palavra, da música e da imagem. Mariana não hesitou em escolher Nuno. A partir do espetáculo nasceu Pedaço duma asa, quarto disco de estúdio da cantora, que mergulhou no universo poético do compositor como se as canções tivessem sido feitas pra ela.

No release do disco, Debellian apresenta Pedaço duma asa como um trabalho que “amplia o que se entende por parceria e composição”, indo além do “tradicional caso de uma cantora que grava um disco homenageando um compositor”. Trata-se de um trabalho de dois artistas que “pactuaram alcançar toda a

potência poética do repertório que criaram”. Sim, “criaram”, no plural. Pois a intérprete se mostrou ativa

durante toda a elaboração do repertório, desde a seleção das músicas até a identidade que cada uma delas viria a assumir. “Nos primeiros ensaios, Mariana já mostrava grande propriedade do repertório, íntima daquelas palavras”, conta Marcio Debellian.

A expectativa que toma o compositor quando este resolve ceder suas letras a outros intérpretes se

divide entre a surpresa e a “traição”, segundo Nuno. Se tratando da surpresa, a contribuição

do intérprete acaba por revelar, muitas vezes, nuances ou até mesmo facetas da música

que nem o próprio compositor havia se dado conta. Nuno confessa que, ao ouvir suas músicas na voz de Mariana, passou a enxergá-las de maneira diferente. “Minhas letras são muito abstratas e Mariana sempre enxergava personagens nas canções, uma mulher e um homem. Ela quase me explicava a minha própria canção. Ouvir a Mariana cantar minhas letras muda tudo. A canção vai pra outro lugar, ganha um outro sentido”.

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Na procura por alguém que dê corpo à sua

poética, o compositor legitima a voz que

comunica, tornando-a, muitas vezes, indissociável à natureza do que foi criado. Assim é a relação que Caetano Veloso

estabeleceu com Gal Costa. Ambos escreveram seus nomes na história

da música popular brasileira de maneira indissolúvel. Os

versos de Caetano parecem ser feitos sob medida pros graves

e agudos da cantora, que se tornou uma espécie de estética musical perfeita da obra do baiano, sua intérprete maior. “É muito comum eu

compor pensando na Gal pra cantar. Não só em Recanto, mas através das décadas”,

declara Caetano no DVD do show

Recanto, de 2012, no qual assina todas as músicas do repertório.

A união entre eles foi selada,

involuntariamente, pela gravadora

Phillips em 1967,

quando, na impossibilidade de produzir

dois álbuns, contratou os dois e juntou-os em um só disco, intitulado Domingo. Foi o primeiro registro da carreira de Gal e de Caetano, trazendo doze faixas, das quais

Caetano Veloso canta solo em quatro,

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Gal Costa em cinco, e juntos, dividem três canções, entre elas “Coração Vagabundo”, escrita por Caetano.

Com exceção dos álbuns temáticos de cada um deles, Gal e Caetano raramente se desvincularam ao longo de suas carreiras. O artista baiano participou de todos os discos da intérprete, como compositor ou

como convidado. Não escapou nem do álbum mais underground da amiga, Fa-tal- Gal a todo vapor, gravado e lançado em 1971, enquanto

esteve exilado em Londres. No repertório estavam músicas de sua autoria como “Não se esqueça de mim”, “Como 2 e 2”, “Coração Vagabundo”

e “Maria Bethânia”. Na volta do exílio, Caetano desenvolveu o conceito do álbum e do show Cantar (1974), que apontava para uma nova fase da

intérprete, se distanciando do perfil barulhento e reafirmando a Gal bossa-novista de Domingo. Entre as músicas do repertório, Caetano assina “Flor do Cerrado”, “Joia” e “Lua, lua, lua, lua”. “Foi isso que me uniu muito a Gal e me fez ter sempre momentos renovados em nossas vidas. Ter sempre a oportunidade de criar

alguma coisa junto com ela que fizesse sentido e sempre tem feito. A gente conquistou um

negócio bem complexo”, afirma o compositor. Gal reflete, através de sua voz e corpo

em cena, aquilo que Caetano deseja ver e ouvir em sua plenitude. A intimidade que a

intérprete estabelece com as canções que chegam pra ela é uma espécie de cordão umbilical, que a torna empreendedora da verdade da canção, ratificando a paternidade dupla da obra. Em

matéria assinada por Priscilla Campos no Suplemento Pernambuco, o jornalista e crítico musical Marcus Preto

reflete: “Gal tem um entendimento da canção que foge da vulgaridade das interpretações marcadas, intencionais. Ela entende a canção de dentro

pra fora, começando pelo cerne, pela essência, antes da compreensão prática. Acho que isso vem da escola de João Gilberto. Ele é o melhor cantor do mundo porque traz uma compreensão profunda da canção,

não trabalha a partir da superfície, como a maior parte dos cantores. Gal aprendeu isso ouvindo João. Mas usou em outro contexto, mais de acordo com seu tempo. Acho que é por isso que Gal é tão aberta a correr riscos. Ela se arriscou no Tropicalismo, na contracultura, na explosão comercial

dos anos 80 (em que o risco era perder tudo) e fez isso agora, com Recanto. Não tem medo do risco porque sabe que a música está com ela,

profundamente”. Se um dia Gal foi capaz de elucidar os sentimentos

que lhe tomam quando se apropria das canções no palco, ela o fez se referindo a Recanto, sem perceber, na verdade, que fornecia um pequeno,

mas poderoso retrato de sua essência interpretativa. “As canções vivem em mim, me habitam enquanto eu faço o show. É uma coisa muito

verdadeira, muito forte e bonita. Eu digo sempre que esse show é uma entidade que me arrebata e me toma”. oc

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ventríloquns

ensaio

por carlos gomes

a máscara de Judas

Cate Blanchett cambaleia; ombros baixos, desgrenhados cabelos e uma

entonação na fala que falseia uma canção que diz: I’m not there. Ela encena a

personagem Jude, como o fantasma Dele que ainda permanece como névoa do final dos anos 1960 ou todas as revelações da

música folk, pop e rock and roll que também pôde ser capaz de dizer: Não estou lá: filme de Todd Haynes que encorpora em

vários atores e atrizes os momentos-chave das diversas máscaras que Bob Dylan encarnou durante sua trajetória artística. A

passagem do violão de aço do cantautor de músicas folks à la Woody Guthrie ao cantor empunhando uma guitarra à frente de uma banda se dá em quando uma de suas primeiras máscaras é

retirada da cara.

vou mudando de personalidade,

vou [...] enriquecendo-me na capacidade de criar

personalidades novas,

novos tipos de fingir que compreendo o mundo,

ou antes, de fingir que se pode compreendê-lo.

Os olhos vivos de Jude/Judas/Blanchett/Dylan/Judas encararam a estridência sonora de uma plateia que

gritava uhhhh ou “Judas” na apresentação de Bob Dylan no Newport Folk Festival de 1965 – justamente nessa

mudança de máscaras – diante de uma música que rosnava de volta, com certo carinho, “With no direction

home/ Like a complete unknown” ou

Como estes caminhos tortuosos entre artistas, público e crítica são possíveis porque encorajados por todo o tipo de contradições, empunhar guitarras deva ser sempre esse lugar de deslocamento e fricção entre as diferentes máscaras pegadas à cara. Mas o que restou daqueles corpos e despedimentos do eu, da identidade, autenticidade, senão o desejo de abandonar canções, temas, estórias, personas e estéticas pelo caminho?

multipliquei-me para me sentir,

transbordei, não fiz senão extravasar-me

Para me sentir, precisei sentir tudo,

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sentir tudo de todas as maneiras, viver tudo de todos os lados,

Performar aqueles temas folclóricos repletos de C, D, Am e Sóis instauraram nas canções de Dylan um outro tempo/espaço, que era igualmente ocupado pela ancestralidade e modernidade conflitadas dentro daquele ínfimo instante – o tempo poderoso de uma canção. Tempo/espaço este que não se referia apenas

pelo uso de instrumentos eletrificados, mas pelo modo crítico como essas canções eram desarticuladas de sua forma habitual. Ser o cantor de protesto reverenciado

por multidões entrincheiradas contra a música classificada por eles como comercial, imobilizava as ações de Dylan, que muito rapidamente destinou-se a

ser sempre o outro.

Ensaio a ideia de que o público vaiando a performance de Bob Dylan, sua banda e canções, acusando-o de trair a música folk, política, em troca da música pop, vendida, está presente ainda hoje como urro fantasmagórico que passeia pelos

mesmos meandros entre artistas, público e crítica mencionados anteriormente; porém, o que difere de outrora, é que há cada vez mais artistas-críticos,

públicos-críticos e críticos-críticos dispostos a moverem-se para fora dos lugares-comuns, espaços-estanques, máscaras modeladas ou outros tipos

de binarismos culturais, pois já é chegada a hora de

ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,realizar em si toda a humanidade de todos os momentosNum só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

uos,

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a máscara da linguagem

O velho grandioso e solitário cambaco Vicente Barreto, compositor e

violonista, está novamente dizendo canções – após 10 anos sem lançar discos – ao lado

dos músicos Kiko Dinucci, Romulo Fróes, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Thiago França, Juçara Marçal,

Sérgio Machado e do seu filho Rafa Barreto. Mas a estória que desejo contar não é sobre a

música, é sobre o que devaneia os sons, o que o tangencia com linguagens várias.

O velho grandioso e solitário elefante desenhado como pintura rupestre pelo multi-artista Manu Maltez na

capa do álbum de Vicente Barreto, que “é quase um cazumbi/ velho elefante do Cambuci/ trombone

mudo em curva de rio/ só espera a morte entrar no cio”, da canção

“Cambaco”, composta em parceria por ambos os artistas, para essa

estória, é mais uma das passagens de acesso ao labirinto de linguagens por

onde Maltez parece gostar de perscrutar.

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Vendo a diversidade de linguagens a que ele se dedica a manejar, não só com a assinatura manu maltez – essa identidade – mas na co-autoria que seus

desenhos, ilustrações e gravuras assumem no contato com textos de outrem, pois uma vez esbarrados em seus traços acabam por se transformar em obras também suas (a exemplo dos livros O corvo, de Edgar Allan Poe, ou Rasif -

Mar que arrebenta, de Marcelino Freire), tamanha a força das relações que se estabelecem.

Esbocei numa primeira tentativa de ensaiar sobre esta persona, que cada linguagem se constitui como uma máscara, e a sobreposição de máscaras

criam várias camadas-texturas que uma vez sobrepostas, quando investigadas a fundo (ouvindo canções, vendo shows, desenhos, lendo os livros), na retirada de cada uma dessas camadas, o investigador-pesquisador parece nunca chegar

novamente ao marco-zero-manu-maltez. Sua cara não existe, pois quebrar as fronteiras das linguagens é justamente vestir essa máscara. Percebê-la não

como um destino, mas como uma condição – artística?

O diabo era mais embaixo como conto, novela, livro ilustrado, filme, show, teatro, disco, narrativa. Enquanto a crítica ainda fala em fronteiras,

o artista-crítico já resolveu essas questões lá atrás, provavelmente na lida, no manuseio com todas essas vozes. A questão é se a máscara do

poeta Poe ainda cabe em sua cara, se a do escritor Marcelino Freire também cabe, a do cambaco ou a de Vicente Barreto cabem. Ou se a

máscara de Manu Maltez cabe na cara de Manu Maltez. Máscaras como deslocamentos do eu, como linguagem sem medida. Eis o que ensaio: as

máscaras são suas fôrmas disformes.

o tráfego pelas linguagens artísticas a que

insistentemente me submeto, me faz constatar cada vez mais que cada

expressão (desenho/musica/texto) é insubstituível, mexe com sentidos muito

diferentes. Embora haja um assunto, ou melhor, uma obssessão que perpasse

todas elas. Não faz muito tempo que desisti de me debater sobre essa

necessidade de me envolver a fundo com todas. Embora ache que não se

deva "quebrar as fronteiras" entre elas, mas sim, de contrapô-las,

estabelecer relações, nunca subservientes.

de certa forma, o filme "o diabo Era mais Embaixo" representa

esse momento conciliatório. É significativo você me dizer sobre

essa questão das máscaras, de como cada linguagem que utilizo

em meu trabalho poderia ser vista dessa forma. sobreposições de

camadas. Nessa perspectiva o "assunto" do filme "o diabo Era

mais Embaixo" seria a própria linguagem, de como ela pode ser

enganosa e traiçoeira. isso explicaria a necessidade vital do uso das

máscaras no filme. E também o fato de o diabo ser o único personagem

do filme que não usa máscaras. isso me fez pensar que todo esse

entrecruzamento de linguagens seja na verdade um estratagema

para tentar assegurar minha identidade, não só para os outros mas

principalmente para mim mesmo. Um estratagema para não enlouquecer,

eu diria. Pois essa tal identidade vive escorrendo por entre meus dedos,

perdendo-se em meus abismos. Não é que ela não exista, mas está sempre

"mais embaixo".

Page 22: Outros Críticos (ed. 9)

20

Já faz tempo que o tempo se perdeu,

Bob Dylan disse-me

Fernando Pessoa disse-me vou m

udando de personalidade,

i’m not there,

Álvaro de Cam

pos disse-me viver tudo de todos os lados,

Vicente Barreto disse-me

Manu Maltez disse-meo diabo era mais embaixo.

só cambaco se lembra de achar,

Page 23: Outros Críticos (ed. 9)

21

a do ventríloquo

Uns ventríloquos, eu disse. O que todos nós éramos. Mas essa comunidade artística de outros e outras vozes, espaços, experiências, identidades, máscaras, o que ela nos tem a dizer, afinal? Diga-me, oc

Page 24: Outros Críticos (ed. 9)

22Foto: Jose de Holanda/Divulgação

CAMPOS

É curioso que um dos heterônimos mais intrigantes de Fernan-do Pessoa, aquele que escre-

ve no poema “tabacaria” os versos: “Quando quis

tirar a máscara,/ Estava pegada à cara./ Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido”, tenha o mesmo sobrenome de nos-so entrevistado. tal

coincidência se revela enri-quecedora

por Pes-soa e suas másca-

ras-perso-nagens, a exemplo

da criação de Álvaro de Cam-pos (ou toshiro,

no caso de rodrigo), ter uma ligação íntima com a poética do compositor de canções-perso-

nagens-e-espaços, sobretudo nas in-

venções de sua ‘Bahia Fantástica’ e das ‘Con-versas com toshiro’ – seus últimos discos lançados –,

onde “a fabulação é a meta, só que uma fabulação que busca revelar, talvez aí

sim, revelar um rosto por trás da máscara”, como nos

afirma rodrigo Campos. se as conversas com o persona-

Page 25: Outros Críticos (ed. 9)

23

RODRiGO

gem toshiro buscam dar

voz a uma “entidade do

inconscien-te”, com quem o compositor busca dialogar, um coro formado por Ná

ozzetti e Ju-çara marçal

foi incluído às conversas para incor-

porar essa outra voz,

já que a so-lidão de seu canto não consegui-

ria sozinha revelar essa “entidade”.

Pois bem, é nessa fusão de vozes,

personas, másca-ras, espaços, ficções

e realidades, que a música de Campos

circula e faz cir-cular através dos

sons arregimenta-dos para o corpo de

suas canções, elas próprias, espaços em

movimento, reple-tas de eus e outros.

Como um eu-Pessoa, um outro-Campos.

por Carlos Gomes

entrevista

Page 26: Outros Críticos (ed. 9)

24

'são mateus' e 'bahia fantástica' são álbuns onde as canções são envoltas numa narrativa repleta de personagens, climas, caminhos, destinos, em suma, estórias (essas mesmas grafadas com 'e') que se cruzam o tempo todo. imaginar canções como narrativas a povoar um tema preconcebido, é por esse lugar que suas composições nascem de modo mais natural?

acho que começo um álbum sem saber exatamente que é um álbum. o que imagino que aconteça (pois é difícil mapear o próprio processo) é que em algum momento, depois de algumas canções, se dê a descoberta e, aí sim, eu comece a perseguir o tema de maneira mais consciente.não acho que seja uma ferramenta para alcançar alguma naturalidade forçada ou garantir algum tipo de rede de segurança, me parece mais um tipo de obsessão. isto porque alguns motes não se encerram numa só canção, aqueles que te interessam te levam a uma espécie de investigação, e a cada canção você descobre algo. aquele algo que é mais sobre o que a coisa te provoca do que sobre a própria coisa. daí em diante se torna quase um vício (a tal obsessão) sentir os "efeitos" das canções em si, viajar junto, criar e organizar (ou desorganizar) microcosmos particulares a partir de referências coletivas.

Page 27: Outros Críticos (ed. 9)

25

Foto: Jose de Holanda/Divulgação

A discografia solo do músico é formada por São Mateus não é um lugar assim tão longe (2009), Bahia fantástica (2012) e Conversas com Toshiro (2015). O mais recente foi produzido pelo próprio músico, com direção artística de Romulo Fróes, que asssina a última faixa em parceria com Nuno Ramos. O álbum foi lançado com patrocínio da Natura Musical e em novembro ganhará edição em vinil duplo pelo selo Goma Gringa.

as canções de 'são mateus' trazem diferentes personagens

que mapeiam - imagino eu - uma periferia simbólica e real,

porque vivida por você, e ali reunidas sob o álbum são uma representação de um período decisivo em sua vida. começar

por 'são mateus' e nominar tantas personagens tiveram que significado pra você na

ocasião?

fazer o 'são mateus...' teve efeito terapêutico. foi uma espécie de permissão para pertencer a outros lugares.

saí do bairro de um jeito muito caótico, quase sem me

despedir, deixando muitas questões em aberto. à medida

que compunha as canções fazia uma profunda reflexão sobre

aquele período todo. uma pequena parte da reflexão foi

pro disco, a outra ainda segue comigo numa elaboração

perene.mas falando de arte, e não

tão especificamente sobre a vida, ali foi quando as canções

ganharam sentido estético pra mim, onde consegui, pela

primeira vez, amalgamar um certo número delas e,

consequentemente, ter vontade de fazer um disco. o

faro para a perseguição de um tema também se desenvolveu ali, com a investigação sobre

minha infância e adolescência e com a catalogação e fabulação

de histórias e personagens, o que me trouxe o primeiro

vislumbre de um possível caminho próprio.

Takeshi e AsayoWong Kar-WaiKatsumiDois sozinhos Funatsu

Abraço de OzuChihiroToshiro ReversoMar do Japão Toshiro Vingança Paisagem na NeblinaVelho AmareloDono da Bateria

RODRIGOCAMPOS

CONVERSAS

COM

tOShIRO

PRIMEIRA

PARtE

AMOR

E

BRUtALIDADE

SEGUNDA

PARtE

PAISAGEM

NA

NEBLINA

7 898226 121943

CONVERSAS

COM

tOShIRO

RODRIGOCAMPOS

Page 28: Outros Críticos (ed. 9)

26

Foto: Jose de Holanda/D

ivulgação

seus discos são repletos de canções-personagens, como se com cada persona o compositor vestisse uma determinada máscara. as canções 'brother josé, 'lucia', 'isac', 'aninha' e 'elias' são também retratos seus vistos de fora?

quando convida criolo, juçara marçal, luisa maita para cantar suas composições é por enxergar naquelas vozes um outro lugar para que a canção seja dita como a imaginou quando compôs?

alguns desses personagens são reais, não diria que são máscaras, o são à medida que me influenciaram, como "isac" e "lúcia", por exemplo, que são meus pais. a partir do 'bahia' acho que as coisas começam a se confundir mais, o limite entre realidade e ficção é cruzado efetivamente. os personagens do 'são mateus' são a busca pelo real, a própria fabulação do são mateus é acidental, é a fabulação da memória, quando a gente não lembra exatamente como foi e inventa. nos outros dois, não, a fabulação é a meta, só que uma fabulação que busca revelar, talvez aí sim, revelar um rosto por trás da máscara.

acho que é porque comecei a cantar tarde, tinha muita dificuldade, e mesmo agora tenho limitações que acho que terei sempre. quando entram outras vozes, elas são capazes de acrescentar dinâmica, outras cores, criam movimento pros discos, que poderiam ser mais estáticos, monótonos, apenas com minha voz.mas não acho que haja algum sentido mais profundo. as pessoas que cantaram nos meus discos, apesar de serem grandes cantores, eram pessoas próximas nas respectivas épocas de gravação dos discos. o que também não impediu de criar a sensação de que algumas músicas foram compostas especialmente pra aquelas vozes, como “mangue e fogo” com luisa maita, “sem estrela” com curumin, “ribeirão” com criolo e “jardim japão” com juçara marçal. mérito dos intérpretes.

Page 29: Outros Críticos (ed. 9)

27

‘conversas com toshiro’ é divido em duas partes: ‘amor e brutalidade’ e ‘paisagem na neblina’. em que momento da concepção do disco vocês sentiram a necessidade de agrupar as canções sob esse títulos?

as vozes de ná ozzetti e juçara marçal unidas no canto acabam por criar uma narrativa paralela dentro da própria narrativa das canções que você canta. ao mesmo tempo, tê-las cantando as letras e sendo as próprias vozes instrumentos em diálogo com os demais músicos, parece que a todo o tempo elas estão em conversa com você, ou ainda, suas vozes são as vozes de toshiro, com quem você conversa. essas vozes se fizeram presentes em que etapa da feitura do disco, e como imagina tê-las ao vivo, ou no show será outra a experiência, sem a necessidade de circular com a formação principal do disco?

a ideia apareceu durante a feitura da ordem do disco. tive muito uma sensação de montagem de filme nesse momento (apesar de nunca ter feito um filme), pois experimentei cerca de 20 ordens diferentes, e cada uma delas influenciava, definitivamente, a escuta do disco, mas sem, no entanto, mostrar o disco que eu queria ouvir. foi só quando o dividi em partes que o disco se encaixou e teve um sentido cronológico. dividi por sonoridade e tema, pois uma coisa levava à outra, inexoravelmente. 'amor e brutalidade' acolheu as canções com uma ligação com o soul, uma espécie de releitura do gênero que tentamos fazer, além de ser a parte mais erótica e brutal do disco, com personagens disformes e amorais. 'paisagem na neblina' abrigou o que penso ser a parte com temas mais nebulosos e existenciais, traduzidos também na sonoridade grandiloquente dos arranjos do marcos paiva, além dos três sambas, “chihiro”, “mar do japão” e “paisagem na neblina”.

Page 30: Outros Críticos (ed. 9)

28

Foto: Jose de Holanda/Divulgação

juçara e ná entraram um pouco depois. comecei o disco me encontrando apenas com o cabral. tocava as músicas com os arranjos da guitarra já definidos e ele ia criando suas linhas de baixo. na sequência passamos pro trio, onde ficamos uns bons ensaios, eu, cabral e curumin (bateria), tocando as músicas e estruturando o disco. romulo começou a ir pelo quarto, quinto ensaio, pra assistir e dar retorno pra gente com suas impressões sobre as canções e os arranjos. depois de ter praticamente todos os arranjos com o trio, senti necessidade de mais elementos na gravação das bases, mas não queria mais instrumentos, queria começar mais cru, não queria definir a sonoridade, completamente, na gravação de bases. também senti que minha voz não estava sendo suficiente pra narrar aquelas letras, pois o disco todo era como se o inconsciente, ou alguma entidade que pudesse reger o inconsciente, estivesse falando. por isso pensei no coro, pra dar voz a essa "entidade do inconsciente". mas a partir daí dei liberdade total a elas, esse foi o único briefing, elas assumiram o papel e criaram os arranjos por si só. gravamos a base com elas cantando ao vivo com a gente.no show penso em ter as duas, além da banda completa da primeira parte do disco, que inclui thiago frança e dustan gallas, além dos já citados.

Page 31: Outros Críticos (ed. 9)

29

entre seus discos 'solos'

e os com o passo torto,

o que da experiência

com os outros

integrantes do grupo fez você

modificar ou refletir do

seu lugar solitário de

compositor e artista 'solo'?

recentemente você participou do show ‘clube

da encruza’, no rj, da ocupação quintavant, com vários desses parceiros. há em você alguma noção de

pertencimento a grupo, movimento ou cena que

abarque todos esses artistas, ou o ‘clube’ é uma

consequência de outra espécie?

acho bonito o lugar solitário de compositor, e não compactuo com suas aspas em 'solo'. acho as duas coisas legítimas, fazer disco solo e fazer disco em grupo. há uma diferença brutal, pra mim, entre uma coisa e outra.agora, voltando à questão, acho que os discos com o passo torto me deram um novo caminho como compositor, me tornei um letrista melhor dentro do grupo. tive oportunidade de escrever diferente também, por conta do universo de cada parceiro. mas acho que me desenvolvi, principalmente, como instrumentista e arranjador, dentro de um processo de arranjo que criamos juntos, além de um resultado de arranjo que também criamos juntos. também sinto que o grupo tenha influenciado bastante meu trabalho solo, exatamente por isso os trouxe para o 'bahia fantástica' e para o 'conversas com toshiro', mas também sinto que continuei perseguindo algo que comecei no primeiro disco, antes de conhecer a turma, que importa e é como uma bússola apontando que o indivíduo e a identidade podem existir trabalhando em grupo nos discos solos e nos discos coletivos.

o clube da encruza é algo difícil de entender pra mim. somos pessoas e artistas tão diferentes um do outro e mesmo assim conseguimos fazer tantos discos e shows juntos. penso que esse olhar que distingue um movimento ou cena deva vir de fora, pois olhando do meu ponto vista vejo uma atração natural entre esses artistas, justamente por existir essa diferença toda, que faz que com a união seja algo original, inclusive em relação aos trabalhos individuais, o que justifica também a conciliação dos trabalhos coletivos e individuais. oc

"acho que os discos com o passo torto me deram um novo

caminho como compositor, me tornei um letrista melhor

dentro do grupo."

- rodrigo Campos

Page 32: Outros Críticos (ed. 9)

30

por Gabriel Albuquerque

O drone é um gênero de música mi-nimalista caracterizado pelo uso de clusters e notas prolongados ao máxi-mo, criando um som repetitivo, com algumas leves variações harmônicas. Desenvolvido na segunda metade da década 1960 a partir de artistas como Terry Riley, Eliane Radigue e princi-palmente La Monte Young e seu grupo Theater Of Eternal Music, a sonorida-de é diretamente ligada ao mantra e ao estado de transe e meditação.

O trio carioca Bemônio leva ao drone as suas influências de música industrial e heavy metal (mais preci-samente as vertentes do doom e black metal), criando climas densos e obs-curos. O caos da bad trip. Formado em 2012 por Paulo Caetano (sinteti-zador) por “uma questão espiritual e mental, uma válvula de escape para os problemas”, a banda hoje é com-pletada por Gustavo Matos (bateria) e Eduardo Manso (guitarra e sintetiza-

dores). Apesar de seu pouco tempo de carreira, o grupo já gravou dez discos. Desgosto é o seu mais novo trabalho, lançado em parceria com o selo Quin-tavant/QTV – principal articulador da rica cena de música experimental do Rio de Janeiro, com nomes como Cadu Tenório, Negro Leo, DEDO e Chinese Cookie Poets em seu catálogo.

Desde a estreia com vulgatam cle-mentinam, o Bemônio faz um contor-no abstrato, quase metafísico, lançan-do um olhar indefinido e sensações ambíguas para espiritualidade e mais incisivamente a religião católica. A temática se repete compulsivamen-te em SANTO (2013), congregação (2014) e Lodo (2014), discos reple-tos de lacunas (no sentido de “deixar em aberto”), com desordem e ruídos em dissenso esparso. A música cria um ambiente sombrio, mas também reflexivo e imersivo. Lágrima de San-gue e Fezes (2014), feito por Paulo

Foto: Felipe Diniz/Divulgação

O anti-clímax do bemônio

resenha

Page 33: Outros Críticos (ed. 9)

31

em homenagem ao seu pai, falecido alguns meses antes, apontou novas direções para a música do trio. Des-gosto dá continuidade a esse proces-so de amadurecimento que permitiu à banda explorar matizes sonoras mais amplas.

O álbum é mais direto e seco. A foto da capa (a cabeça de um bode morto, com a carne exposta) e a sequência das músicas (os títulos formam uma receita de buchada, começando com “Limpar as Vísceras”, passando por “Picar em Tirinhas as Tripas e Demais Vísceras” e concluindo com “Cozinhar em Fogo Brando Durante 4 Horas”) desnudam a brutalidade e perversida-de naturalizadas pela experiência co-tidiana. Após uma árdua travessia de 40 minutos por faixas excessivamente agressivas, o resultado não é nenhum canibalismo impressionante, mas sim um prato que poderia ser servido em qualquer mesa farta. O que está em questão é desterritorializar os luga-res (in)comuns despercebidos.

A banda vai construindo o tor-mento com ambiências pesadas e va-garosas. O som se arrasta em fluxos lentíssimos - monotonia inquietante que arranha, corta e gera desconforto projetado ao infinito.

Os cantos lamentosos de Juçara Marçal e Ava Rocha em “Esfregar o Li-mão por Dentro e por Fora” se perdem em meio à avalanche noise. Os sussur-ros tenebrosos de “Juntar o Sangue Coagulado” se desmancham no turbi-lhão abrasivo de barulhos elétricos e espirais eletrônicas. As músicas são cascatas massacrantes de violência e crueldade.

Não se trata de uma crítica ou de-núncia, como a icônica capa de Meat is Murder, dos Smiths. Também não está na mesma ordem de A Carne é Fraca, documentário-manifesto con-tra o consumo de carne. E ainda vai mais além do simples “ressaltar” ou “evidenciar” a crueldade que envolve a alimentação humana. Aqui não há soluções, respostas ou caminho a se-

guir. O Bemônio é inconclusão e suas rotas são as incertezas. Desgosto é um reverso, anti-clímax por excelência. A eterna espera por um desfecho, uma ânsia desenfreada por um ultimato – que não chega. Emerge daí a angústia, entrelaçada ao desespero, que instau-ram um clima tenso e nervoso. O ar é preenchido por inquietude e sensa-ção de vigília, ameaça e perigo, mas que está sempre à espreita, prestes a eclodir, mas nunca é revelado. É incô-modo latente.

Nos sete minutos e meio de “Aque-cer o Azeite e Adicionar o Toucinho” a banda traça um detalhado desenho sonoro, quase cinematográfico. Os si-nos de bois em ritmo lento e descom-passado sob o fundo drone, o chiado estático e os gritos histéricos com-põem a imagem da fila para o abate. O ouvinte é inserido na marcha, con-frontando-se com o terror dos mo-mentos finais.

Mas o golpe fatal não chega. A mú-sica cíclica prolonga o terror e esti-ca o medo para horizontes sem fim. Desconforto incessante, permanente dissabor na língua. No lugar de ex-clamação ou ponto final, o Bemônio coloca interrogações e reticências. O abate está sempre por vir. Desgosto é então potência em devenir, em ponto de transformação. Reside aí a sua in-tensidade. oc

Produzido por Eduardo Manso & Paulo Ca-etano. Gravado, mixado e masterizado por Eduardo Manso. Fotos: Christiano Menezes. Arte: Paulo Caetano.

Page 34: Outros Críticos (ed. 9)

32

por FERNANDO ATHAYDE

Ruivo em Sangue, terceiro disco do produtor e compositor paulistano Gui Amabis, surge a partir de uma cons-trução estética que alia de forma pre-cisa a poesia à experimentação har-mônica/melódica. A impressão após a primeira audição do novo trabalho de Amabis é que o músico parece ter alcançado uma linguagem singular na construção de suas composições. Se sua voz é um elemento onipresente e invariável, que usa sobretudo da pa-lavra para mediar a dinâmica entre as canções, todo aspecto sonoro restan-te aparenta emergir de uma confluên-cia de timbres e texturas alcançadas após anos de escuta e amadurecimen-to musical.

Na primeira faixa do disco, “Gra-xa e sal”, já é possível perceber como Amabis reúne sonoridades difusas

para delinear o caminho sobre o qual caminham suas canções. Há dissonân-cias e timbres que nos remetem, por exemplo, a alguma coisa que o T-Rex faria, deixando um pé no glam rock e fazendo uso de vários strings e solos de guitarra. Ao mesmo tempo, à me-dida que avança a canção, o compo-sitor consegue gerar uma empostação vocal capaz de ressignificar as carac-terísticas da sua própria voz. Des-sa forma, mesmo que alguém alegue (corretamente, diga-se passagem) que Gui Amabis não é exatamente um Frank Sinatra ou qualquer coisa do tipo, é inegável o controle e a noção do músico sobre seu timbre e exten-são vocal.

Outra coisa que salta aos ouvidos em Ruivo em Sangue é o fato do dis-co soar cristalino, com cada elemento

O que nos reserva Ruivo em Sangue

O que nos reserva Ruivo em Sangue

Foto: Jose de Holanda/Divulgação

resenha

Page 35: Outros Críticos (ed. 9)

33

muito bem evidenciado dentro da mi-xagem. Os timbres alcançados soam equilibrados, sem que haja descom-passos em relação aos volumes ou conflitos entre as frequências sono-ras abrangidas pelo som dos instru-mentos. Um sintoma disso é, ironi-camente, a valorização do silêncio e das pausas ao longo da obra, algo que também demonstra a segurança do compositor ao trabalhar e inserir os arranjos nas músicas. Na faixa “Mis-tas Verdades”, por exemplo, Amabis empreende o uso constante do stac-cato para criar a atmosfera da canção, enquanto que em “Gathered Man”, a utilização pontual das cordas remete à sonoridade do álbum Fives Leaves Left, do britânico Nick Drake, o que é louvável até demais.

E, se do ponto de vista instrumen-tal o disco é repleto de variações de dinâmica, algo que Amabis prova-velmente assimilou de seu trabalho como compositor de trilhas sonoras, o mesmo não pode ser dito da sua voz. Quase monocórdico, o músico bendizer declama suas letras ao for-necer assim a identidade de Ruivo em Sangue. Aliás, mesmo sendo coeso do início ao fim, o trabalho de Amabis encontra nas letras seu aspecto mais interessante. Recursos de linguagem como, por exemplo, a antropomor-fização dos personagens através da ruptura do tecido da realidade, são o espelho que distorce as particularida-de da vida em sociedade. “Imagine o movimento seguro de um urso na vio-lência inocente de um homem famin-to/ Imagine toda destreza e astúcia de um tigre na fantasia difusa de uma fêmea no cio”, de “Mistas Verdades”, são versos que servem como um pe-queno vislumbre do potencial criativo do compositor, que deve ter lido mui-to Kafka na vida.

Apesar disso, a sobriedade que caracteriza tão bem o trabalho tam-bém é responsável por transformá-lo numa obra de difícil audição. Mas não por sua complexidade estética, e sim

pelo tom monocromático seguido pe-las canções. Em alguns momentos, a impressão que fica é a de estar pisan-do num ambiente inteiramente con-trolado, onde o acaso parece ter sido suprimido ao máximo. Cada arranjo, cada acorde e cada timbre soam como se tivessem sido estudados minucio-samente. De certa forma, isso não é um problema, mas diante das infini-tas possibilidades de manipulação do áudio, em que até o clima da sala do estúdio pode influenciar no resulta-do obtido, a espontaneidade é algo de grande valor.

Cerebral, Ruivo em Sangue soa como uma obra atormentada, pensa-da e repensada à exaustão, o que não deixa de ser interessante. E, mesmo que o controle exercido por Amabis sobre seu trabalho soe como algo que vai além do trivial, esse grau de deter-minação é, no mínimo, curioso para compreender o processo criativo do músico.

Assim, a impressão geral é a de que Gui Amabis é, sobretudo, um ob-servador atento daquilo que está à sua volta - seja pela assimilação dos vários gêneros e sonoridades incor-poradas à sua música, seja pelo tom literário aplicado às suas letras. Ruivo em Sangue é, afinal, uma obra que me-rece ser ouvida pela competência com que sintetiza o som e a palavra numa identidade sóbria e coesa. oc

O disco foi gravado entre as cidades de São Paulo e Lisboa e contou com as participa-ções de Regis Damasceno, Dustan Gallas e Marcelo Cabral.

Page 36: Outros Críticos (ed. 9)

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35

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Page 39: Outros Críticos (ed. 9)

Encontrei

uma porção de figuras

histéricas durante

o tempo em que escrevi

semanalmente um guia prático para a

crítica cultural. Sofri com ameaças, assédio e leituras

controversas. Eu me dei conta de que criei mais possibilidades

de labirinto do que rotas seguras para a nossa FAMIGERADA (alcunha

JMBística) cena cultural. "Falhei em tudo. Como não fiz propósito

nenhum, talvez tudo fosse nada". Releio o trecho com as mãos

queimando e a cabeça a mil de ideias. Sá-Carneiro — com quem

nunca troquei uma palavra — deixou na porta de minha casa o

seguinte recado: "Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa

de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o Outro".

Espalhei a mensagem para três ou quatro heterônimos mais próximos

com o seguinte adendo: é tudo invenção! — Júlio Rennó

01

Page 40: Outros Críticos (ed. 9)

Part. Leidson Ferraz; Fábio Andrade; Felipe Aguiar.

Part. Wilson Freire Negro Leo Rita Braga Germano Rabello

Edição: Júlio RennóProjeto gráfico: Cécile Duchamp

Artista convidado: GanjartsTexto: Karol Pacheco

Mediação do debate: Carlos Gomes e Fernanda MaiaCapa: Escultura, de Ganjarts

Jornalista responsável: Marina Suassuna (DRT 0005556/PE)

Esta revista é uma iniciativa do projeto de crítica cultural Outros Críticos, e foi realizada com incentivo do FUNCULTURA (Governo do Estado de Pernambuco).

Apoio:Altovolts, Orbe Coworking e CEPE.

Impressão gráfica:CEPE (Companhia Editora de Pernambuco).

Bruno VitorinoCompositor, baixista e colunista do blog Variações para 4.

José JuvaPoeta e ensaísta, publicou 'vupa' e 'deixe a visão chegar'.

Ruy GardnierJornalista, pesquisador e crítico de cinema.

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0304

10

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16

artista convidado

artigo

ensaio

resenha

resenha

por Karol Pacheco

por José Juva

por Ruy Gardnier

por Bruno Vitorino

GanjartsAdeus à pessoa

DEDO Rainha QTV 005A Construção Narrativa do Saracotia

Crítica de Boteco

Opinião

COLABORADORES

O ARTISTA VESTE MáSCARASEdição 9 - bimestral, outubro de 2015

ISSN: 2318-9177Informações ou sugestões:[email protected]

www.outroscriticos.com

ExpEDiEntE

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sumário

02

Foto

: Efe

ito p

reto

e b

ranc

o so

b fo

to d

e es

cultu

ra d

e G

anja

rts.

Com a alma encharcada de uísque,poemas e histórias da vida subterrânea

Page 41: Outros Críticos (ed. 9)

03

ganjarts“Eu me desligo dessa realidade e

dialogo com as formas, as criaturas... Praticamente um desregramento dos

sentidos”, nos diz Milton Leal Pessoa, o artista por trás dos desenhos e esculturas presentes sob o nome Ganjarts. Natural do Recife,

concentra a maior parte de sua obra na criação de desenhos utilizando canson, nanquim e madeira. Outra porção de sua arte é feita em litogravura e escultura com resina epóxi e argila. Suas criações dialogam com certo

desmascaramento da realidade, na busca do sonho, do imprevisível. Há nelas um desejo de recriar a psicodelia através de símbolos e traços característicos dessa

vertente.

artistaconvidado

Page 42: Outros Críticos (ed. 9)

artigo

ADEUS`APESSOA

por Karol Pacheco

Postes mascarados, muros mascarados, fachadas mascara-das, camisetas mascaradas etc:

retratos decorados da tradição carnavalesca dos papangus,

velada no município agresti-no de Bezerros, a 106 quilô-metros do Recife. Apesar da decoração municipal e da euforia hospitaleira dos moradores da região nos dias de Momo, o que se percebe – a cada

passo em direção ao foco da festa, onde as ladeiras e

o sol mais parecem olinden-ses – são figuras e imagens

diferentes daquelas propa-gadas nos outdoors e comerciais do Carnaval de Pernambuco.

Conta-se que o gosto pela brincadeira dos pa-pangus começou há mais de 100 anos, a partir de

um grupo de mascarados que visitavam as festas em

Bezerros e – no mistério de não

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se saber quem eram – comiam e bebiam à vontade, pareci-dos como faziam os Irmãos Eventos recifenses, só que sem revelar as suas respectivas identidades. Como reza a lenda em torno da origem dos papangus, contada geração após geração de bezerrenses, o único modo da identidade deles ser revelada não seria facilitado por eles; teriam de descobrir.

No polo central dos festejos municipais, Carnaval de 2012, mais precisamente na cabine de apoio da Secretaria de Turismo da Cidade ouvia-se, hora ou outra, as mesmas perguntas dos mais variados sotaques: “onde estão os pa-pangus?”, “os papangus chegam que horas?”. Eram turistas que compraram a imagem do carnaval tradicional da cidade e se sentiam insatisfeitos com a aquisição. Onde estariam os papangus, cartões postais coloridos e misteriosos da Terra dos papangus?

Chapeuzinhos Vermelhos. palhacinhos, indiozinhos, odaliscazinhas. Papai Noel! A sociedade globalizada na qual vivemos estabelece dinâmicas repetitivas, cada vez mais presentes na cultura do Interior – outrora dita “simplória” e “primitiva”, como se virgindade de vícios sociais fosse defei-to. Os padrões globais se espelham nos foliões bezerrenses nativos, através das representações de signos de outras culturas – a exemplo da francesa, da literatura mundial, e até do Ciclo Natalino. As crianças que são as portadoras do bastião. O ser humano é muito; mas nos ensinam a sermos preguiçosos e negligentes com a nossa própria criatividade – e identidade – desde a mais tenra infância.

Os meses que antecedem os quatro dias de Carnaval inspiram a conspiração em torno da fantasia, que no seu formato mais tradi-cional é composta pela máscara e kafta (as roupas coloridas). Confeccionar o próprio figurino garante ao brincante a detenção do sigilo acerca de sua identidade e, por conseguinte, a admi-nistração do anonimato do Sábado de Zé Pereira à Quarta-Feira de Cinzas. O adeus à pessoa acontece no ínfimo momento em que a magia prevalece sobre a couraça do ego herdado pela sociedade.

A ideia do papangu sopra a nossa identidade social. Não passa nada, pois tudo o que nos define como um ser social, a partir das características estéticas, passa batido: rosto, cabeça, ombros, braços, mãos e seus dedos; tronco,

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coxas, pernas, pés e seus dedos. Nem uma unha sequer, nem um fio de cabelo é distraida-mente revelado. A voz ainda menos: para preservar a identidade, a voz do papangu é distorcida para os tons grave ou estridente.

Michel de Montaigne, em ensaio de Virginia Woolf, afirma que a sua alma se reveza entre “acanhado, insolente, casto, luxurioso, falador, taciturno, laborioso, delicado, engenhoso, estúpido, melancólico, bonachão, mentiroso, sincero, sábio, igno-rante, e liberal e avaro e pródigo”, sendo ela tão indefinida e tão complexa que pouco corresponde à versão apresentada

em público. A ensaísta continua dizendo que o homem pode passar toda uma vida tentando localizar a sua alma. Este

prazer pela perseguição constrói, no mês de fevereiro, pequenas biografias de Carnaval,

tão verdadeiras quanto efêmeras; como a alma, “instável como galo de catavento”.

Os gostos e contragostos – as verdades – que as curvas do rosto

explicitam até para os interlocutores menos atentos, sobretudo quando

elas estão expostas e iluminadas pelo brilho do sal suado, talvez escapem escassos pelos orifícios oculares de

uma máscara. Não se sabe quais os vícios e virtudes da pessoa

por trás dos tradicionais Ca-retas e Veinhas, figuras tradi-

cionais do Carnaval de Triunfo, sertão do Estado de Pernambuco.

"Começou com um grupo de reisado, e no reisado tem uma

figura mascarada que se chama Mateus", conta uma moradora. "E o Mateus bebeu e foi expulso dos grupos. Aí saiu pelas ruas ladeiro-

sas de Triunfo, sozinho mascarado. Aí daí nasceu o Careta, mas só que durante, vamos dizer, cem

anos, já mudou bastante." "Botar a cara no sol" é aceder à exposição; ser definido por

contextos; ser impostado a estereótipos. A magia da máscara, pelo con-trário, consiste num ínfimo talvez: é o dito pelo não-dito. É como se os foliões

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deixassem seus RGs em casa e se resetassem feito jogo de videogame, iniciando nova partida.

Viram, então, uma tela em branco, embora colori-da – ou um computador formatado: limpar o Dis-co Local (C:); limpar dados de navegação; excluir

histórico de pesquisa. Nos demais 361 dias do ano, na contramão do Carnaval, se torna cada vez mais raro e difícil manter o anonimato com tantas fotos de perfil e a busca viciada pelo "visualizado às". É como diz, sampleada com áudios de nova

mensagem em chat, a música-título do álbum Computador de Ciço, um coco de roda: "Ô, Ciço,

computador mandou te chamar."

Em face da onipresença, onipotência e onisciência que redes sociais como o Facebook

detêm, sendo inclusive a plataforma um dos principais meios de difusão da música indepen-dente, fica difícil manter o anonimato com tanta "marcação de pessoas", "com quem você esta-va?" etc. Neste contexto, transitam os músicos

______________________________ do duo Radiola Serra Alta, que, mascarados no palco, assumem as personas do Careta e da Veinha, figuras con-

terrâneas e centenárias.

Não nos identificamos. Um se chama Ca-

reta e o outro Veinha (velhinha). É uma característica da brincadeira, o anonimato;

isso desperta a curiosidade das pessoas tanto pra ouvir a nossa música quanto

pra assistir nossos shows. É importante manter as identidades anônimas. Por

isso, posso ser a Veinha ou o Careta. No imaginário do público, é claro, mas aqui

nessa conversa assino como Careta e não como ___________________. São figuras do

Carnaval daqui de Triunfo. É um êxtase louco, a brincadeira do careta. Brincava na

infância, adolescência.

Imagine uma cidade onde todos se conhecem. E durante três dias

você ter o benefício de brincar com as pessoas, se despojar de sua

imagem pré-concebida. É essa a essência que tentamos capturar. Nossos

rostos não importam, nem as nossas identidades. O que importa é o som,

nosso batuque binário. É com as máscaras que realmente mostramos quem somos

em essência. Pode soar contraditório, mas é dessa forma que faz sentido o Radiola

Serra Alta. Somos de uma geração que foi bombardeada de cultura pop norte-a-

mericana. Isso minou e desmantelou a identidade cultural de nossa geração, nos

desconectou de nossas raízes. Lemos e ouvimos a Tropicália, mas presenciar

o Manguebit nos abriu portas e possibilidades. Possibilidades de diálogos entre

culturas e estéticas. Somos resultado desse processo.

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Crescemos ouvindo cutilada, coco, aboio, baião, trupé. Aos poucos íamos deixando de ser só testemunhas e nos tor-namos protagonistas desse momento pós-mangue, se pode ser chamado assim. O batuque é nossa essência. Só o que fazemos é utilizar as ferramentas da música eletroacús-

tica e reprocessá-la.Nesse disco, "Computador de Ciço" (2014), tem mui-to mesmo dessa conversa mídia mais raiz, tecnologia a

serviço dos caboclos...

Computadores, samplers, sintetizadores: se os nossos antepassados tivessem esses equipamentos em mãos, eles também não usariam em suas sambadas? Acho que sim. Pode ser a partir de qualquer ponto: um sample pode ser um mote como também um mote pode virar sam-ple. O melhor de tudo nesse processo é que nada é pré-defini-do. Sempre dialogamos com a inspiração, com o que temos em nossas vivências, como entendemos o mundo.

Tocar fantasiado é tão divertido

quanto sair no Carnaval, pois essa história de ocultar identidade é o que

faz a magia na rua ou nos palcos – porque as duas figuras são bastante

performáticas, então a gente fica muito à vontade pra operar os aparelhos e

ao mesmo tempo nos divertir. É um êxtase, um ritual. Será que somos nós

mesmos que subimos no palco ou somos só os mensageiros?

Saindo do Recife, do mangue, e chegando no Sertão...Como foi esse contato com o Manguebit? O que seria esse

“batuque binário”?

Juntando esse som com a história do careta e da veinhadas máscaras, como é a instiga tocando ao vivo e

mascarado? O jogo, enf m?

LUPAMaSCARA“Por causa desse uso da máscara do Mestre Ambrósio na banda, as pes-

soas adotaram como se fosse a do Mestre Ambrósio; mas essa foi uma que Siba pintou e a gente escolheu ela pra colocar o meu Ambrósio (o personagem que aparecia no palco, como se fosse o personagem da banda). Além da banda se chamar, tinha o personagem, que aparecia nos shows”.

São muitos os personagens de Cavalo Marinho; uns 70 varando a madruga-da. A brincadeira é uma espécie de teatro de rua da Mata Norte de Pernambuco, em municípios como Aliança, Condado e Goiana, conduzido por música e dança. Máscaras, chapéus, paletós, penas, golas ou armações de bichos – que podem, inclusive, surgir em perna de pau ou cuspir fogo – caracterizam as dezenas de figuras em cena. Figuras que improvisam, dialogam e interagem com o público.

“O Mestre Ambrósio é uma figura que negocia figuras; então o Capitão Ma-rinho manda chamar ele pro baile porque quer comprar e negociar algumas figu-

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ras pro Cavalo Marinho”, explica o músico Helder Vasconcelos, acrescentando que, para o Seu Ambrósio (como também é chamado o vendedor-personagem) con-seguir vender, ele acaba mostrando as es-pecificidades de várias figuras. “Ele acaba sendo uma síntese. Ele apresenta todos os personagens do Cavalo Marinho. Ele carrega o que quiser na mala dele; também tínhamos uma bagagem muito grande, com tradições, rock, pop... era uma mescla grande, apresentando muitas coisas, e foi esse o paralelo que a gen-te traçou”. Apresentando os movimentos como uma síntese do Cavalo Marinho, o Mestre Ambrósio que Helder botava vendia a banda Mestre Ambrósio e todas as figuras culturais e sonoras que ela compreendia.

De acordo com ele, os personagens dançarinos foram com os quais ele mais se identificou; talvez porque a principal virtude da máscara – na contramão daque-les que buscam nelas outras vidas – é, na rea-lidade, acentuar os próprios traços morais e corporais de cada indivíduo que a usa; em vez de encará-la como algo que anule somen-te, percebê-la como um artefato que sublima a essência daquela pessoa e de sua alma, na honestidade do anonimato. “A Veia tem uma dança muito forte. Você vai identificando as suas características próprias, com algumas naturezas de per-sonagem. Tem personagem que é muito mais com o texto, que você acaba se afinando mais com a figura; mas no meu caso é a dança. A minha velha nasceu primeiro no palco do Mestre Ambrósio. Demorei pra colocar no terreiro do Cavalo Marinho, mas não tinha experiência e cha-

mei a minha velha de Veia do Bambu”, conta o músico, que depois de um tempo percebeu que sua personagem guardava diferenças da figura do Cavalo Marinho, brincadeira que começou a frequentar ao passo que o grupo Mestre Ambrósio dava os primeiros passos.

Mestre Salustiano também chamou sua atenção: “ele falou que parecia com outra velha que nem conhecia e fui en-tendendo”. Qual seria, então, o nome da-quela senhorinha desinibida que interagia com os Ambrósios no palco? No aniver-

sário da Duas Companhias, ele resolveu levar a velha consigo, para fazer surpresa as amigas

Lívia Falcão e Fabiana Pirro. E, no evento, reconhe-

ceu a personagem: essa velha é a

Veia da Usina – a da música Usina. “E nesse dia eu rebatizei, e hoje chamo de Veia da Usina”, diz Helder.

“Isso está intrínseco no

teatro como um todo. Não acho

que é só na másca-ra, embora a máscara

tenha a sua magia própria. No teatro, a gente empresta e coloca a serviço do personagem, enquanto

energia. O Helder fica ali presente mas inteiramente a serviço daquela energia que o personagem está solicitando, mas não tem incorporação. A gente não perde a consciência. Essa é a diferença do teatro para outros tipos de manifestação onde figuras aparecem. Nesses transes (que estou falando sem nenhuma pretensão de explicar) as pessoas não tem consciência do que está acontecendo. No teatro, a pessoa que está botando a figura não perde. Está presente emprestando a ener-gia, o corpo e toda a sua existência para fazer emergir”. oc

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Estivesse vivo, Henry Charles Bukowski estaria com noventa e cinco anos - provavelmente bebendo bons copos de uísque com um pouco d’água, ganhando e perdendo dinheiro nas apostas das corridas de cavalo, vociferando contra os mortos-vivos que perambulam pelos supermercados, que trabalham nas agências bancárias, que vão e vêm pelas avenidas intermináveis e ensolaradas prenhes de garotos sorridentes e estúpidos e senhoras piedosas. Minha memória é uma plantação repleta de gafanhotos e eu não lembro como tomei conhecimento da obra do velho Buk. Um lampejo de lembrança indica que a obra dele veio junto com alguns companheiros de viagem, outros livros de Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Henry Miller, Anaïs Nin.

As primeiras leituras dos textos do velho safado (dirty old man) foram, a um só tempo, um mergulho vertiginoso no abismo de dores e misérias da condição humana, calcado no registro inventivo e ferino dos devaneios e deambulações de bêbados, prostitutas, trabalhadores braçais etc. pelas carcaças da realidade, bem como uma corrida com sorriso largo provocado aqui e ali por diálogos deliciosamente nonsense, frases rápidas e certeiras, telegramas surreais de uma alma anárquica encharcada por um cinismo filosófico e por um ceticismo debochado – alma carregada de uma ternura atormentada, capaz de rir de si mesma e estender seu riso sobre tudo, sobre

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ensaio

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COM A ALMA ENCHARCADA DE UÍSQUE, POEMAS E HISTÓRIAS DA VIDA SUBTERRÂNEA*

por josé juva

“abandonar tudo. conhecer praias. amores novos. poesia em cascatas floridas com aranhas azuladas nas samambaias. todo trabalhador é escravo. toda autoridade é cômica. fazer da anarquia um método & modo de visa. estradas. bocas perfumadas. cervejas tomadas nos acampamentos. Sonhar Alto.”

— Roberto Piva

* Publicado originalmente no site Outros Críticos.

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o absurdo partilhado na vida cotidiana (penso aqui numa cena do filme A guerra do fogo: quando os sujeitos estão apreensivos, com medo de um ataque rival, e também entediados, e um deles joga uma pedra na cabeça do outro, ao que todos começam a rir efusivamente, enquanto o sujeito atingido coloca a mão no ferimento, vê o sangue, e também desata numa risada fragorosa).

As leituras foram se sucedendo, um volume foi se sobrepondo ao outro, e livro após livro o encanto e o prazer desdobrado pelas costuras de histórias simultaneamente hilárias e melancólicas ia se afigurando como um pequeno diamante banhado em sangue. A escrita visceral de Bukowski construiu uma imagem corrosiva, ácida e lúcida do artista

quando miserável, pleno de compaixão irreverente por toda

sorte de vagabundo (e ele próprio um grande e entusiasmado

vagabundo, apesar de dezenas de empregos sem sentido e

passageiros, apesar do serviço nos correios por anos, um vigarista iluminado pela

sabedoria não-domesticada pelo trabalho/tripalium), bebedor sob o signo da

solidão num quarto escuro de uma pensão ou hotel

barato, camarada obsceno/transcendental datilografando

delirantemente a intimidade desconcertante dos espíritos e corpos atravessando uma

estação no inferno e seguindo a jornada de trepadas e bebedeiras

visionárias.E aqui é oportuno salientar certa

interpretação ressentida que toma as narrativas e poemas do velho safado como mera transposição da biografia para

o papel – acepção claramente apoiada na ideia subliminar de que a arte deve ser uma engenharia

empenhada na construção de uma torre de marfim, um empenho contra a vida, o vivido. Certamente de caráter

extremamente autobiográfico, as criações de Bukowski constituem um ensaio de aproximação de si mesmo para acercar-se do mundo e dos homens,

uma elaboração criativa da vida como campo de experimentação poética, alargando as margens de manobra para uma escritura "manchada de vinho", ultrapassando os regimes da tradição e as expectativas sociais e inventando a literatura como chave de possibilidades para o autoconhecimento e para a

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"de

caráter

extremamente

autobiográfico,

as criações

de Bukowski

constituem

um ensaio de

aproximação de si

mesmo para acercar-

se do mundo e dos

homens"

compreensão do outro, a literatura como um amálgama entre vida e palavra, respiração e leitura, músculos e performance poética, etc. Uma escritura poética

mamífera.Os ensaios - "Essais", tentativas, testes, etc. - de

Michel de Montaigne ou alguns slogans do poeta Roberto Piva - "não acredito em poeta experimental

sem vida experimental", "escrevo com o que sobrou da orgia", podem servir de pistas para indicar, nos textos de Charles Bukowski, o sentido da filigrana composta por uma biopoética. Ou podemos saquear um trecho ilustrativo do próprio Buk: "(...) para muitos, a poesia deveria dizer apenas coisas seguras ou mesmo nada,

pois a poesia é um mundo seguro e um caminho seguro para essas pessoas. A delicadeza de sua poesia reside em falar apenas sobre aquilo que não importa. A poesia no

mundo deles é como uma conta bancária. (...)". Ou como registrou no título de dois ensaios, Bukowski escreve "em

defesa de um certo tipo de poesia, um certo tipo de vida, de um certo tipo de criatura com sangue nas veias que um dia

morrerá", antes registrando "um ensaio errante sobre a poética e a vida visceral escrito ao longo de seis cervejas (grandes)".

Termino este pequeno ensaio, escrito ao longo de quatro lapadas de cana, duas garrafas d’água e vinte pitangas, numa

manhã de sábado, olhando para os livros de bolso do Fanfarrão do Absoluto, o velho Bukowski, que deixei em cima da mesa do

computador. Tenho comigo: Cartas na Rua, Misto-Quente, Factótum, Notas de um velho safado, Ao sul de lugar nenhum, Hollywood e Pulp. Outros

dois, emprestados por um amigo: Mulheres e Pedaços de um caderno manchado de vinho. Dos poucos livros de poemas de Buk em português não tenho nenhum.

Torço pela empreitada de algum editor bêbado e de um tradutor chapado: publicar em português volumes da poesia completa, pelo menos uns dois

calhamaços, do vidente depravado e sincero Buk. oc

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Cantor, compositor e instrumentista maranhense radicado no Rio de Janeiro.Negro Leo Em Niños Heroes (último álbum que lancei), lá onde tudo falhou com os pobres, é um lance insurrecional que espreita, a imagem dos menores desajustados num lugar onde as pessoas morrem como se deus não tomasse parte no mercado de expectativas de vida, de recursos, de lazer, de cidadania, de saneamento, de serviços públicos, de tranquilidade, é limite dessa peça artística. A obra, quando confrontada com a ‘realidade', sempre esbarra na questão da eficácia, mesmo que ela exista justamente pra ser um ‘foda-se realidade', porque se é impossível sentir exatamente a carência quando não se é carente, é preciso fazer sentir-se carente de algum modo pra movimentar esses problemas.

Com o tema “O artista veste máscaras", provocamos os

compositores e músicos a nos escreverem se em qualquer uma das fases, composição ou performance, assumir a alteridade tenha sido em

algum momento especial para a criação deles. Na criação

de eus e outros, personagens, narrativas, ficções e

realidades.

Rita Braga Cantora e compositora natural de Portugal. Em 2013 gravou em São Paulo o EP Gringo in São Paulo.

Quando comecei a fazer apresentações ao vivo, há cerca de 10 anos atrás, tinha dois alter egos: Fàbula Pyar (Pyar significa “amor" em Hindi), que tinha uma cabeleira loira e ligaduras no rosto; e Blue Bobby, uma personagem do espaço que era uma espécie de versão clown da Barbarella, com cabelo azul e roupa prateada. Os dois primeiros discos que editei (em CR-R, bem low-fi em tiragens muito pequenas) foram sob esses pseudónimos. Mas depois assumi o meu nome, Rita Braga. Optei por “retirar a máscara" e expressar a minha linguagem pessoal, que ao longo do tempo foi evoluindo e sofrendo transformações e que engloba vários géneros. Continuo a vestir a pele de diferentes personagens consoante as músicas que interpreto, por vezes até em registos de voz diferentes, mas de forma mais elástica e subtil.

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Wilson Freirecompositor, escritor e cineasta. Lançou recentemente o livro A única voz.

Nada, ou quase nada do que faço no universo artístico, sou eu que executo. São personagens que habitam em mim, que assumem

esta tarefa. Elas têm suas próprias vozes, personalidades e histórias pra contar. Sou o cavalo delas. É no terreiro de minha ânima que elas baixam. É assim. Por isto são tão diversos. Vozes e cantos e gritos e silêncios multifacetados. Vivê-los, vivenciá-los, é ser um esquizofrênico não patológico. Tentar calar esses sons, o inverso.

Tenho mil faces para não disfarçar nada. Como falei em uma micronarrativa:

A mais caraMáscara

Não mascaraA cara.

opinião

Compositor, ilustrador e jornalista. Fez parte da banda Sabiá Sensível.

Germano Rabello Desde sempre uso canções como narrativa. É uma tradição linda, de Dylan a Malkmus, de Noel Rosa até a Blitz. Esses dias uma amiga minha falou que minhas músicas sempre tinham a ver comigo, com o que eu vivo. Às vezes uso o que há de mais concreto e

direto, gosto do efeito disso, tipo “Comprei dois brigadeirões de R$ 1” - sim, existem, tanto a música como os brigadeirões. Já “Lavar,

passar e cozinhar” é a angústia de um emprego que eu não gostava, lamentando a falta de liberdade, todavia escrevi como se fosse uma

empregada doméstica. Achei que ajudou a tornar o sentimento mais universal. Raramente entro no modo Djavan (isto é,

sonoridade pura, abstração), embora também ache bonito. Sempre tento esboçar um ponto de vista de alguém. Em “Anaíra, a diva

da videolocadora”, o ponto de vista é do funcionário, por exemplo. Também faço roteiros, pequenos contos, teatro e encaixo música

nesses universos, sinestesia pura. Fiz músicas pro universo ficcional de Habib em peças como “O Último Golpe do Lobo Mau”. Tô sempre usando a tal da alteridade, e é divertido pra caramba. É

interessante chegar nesse exercício de saber o que outro sente, você está lá, sofrendo ou sorrindo junto com ele. E a arte é pra diminuir as barreiras, pra todo mundo ser gente, pra gente ser todo mundo

ao mesmo tempo.

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Crítica de

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Foto: Camila van der Linden

A seção Crítica de Boteco é um espaço de discussão sobre temas abordados na revista. Com o mote "O artista veste máscaras", nos encontramos com o ator e pesquisador Leidson Ferraz e com os poetas e professores de literatura Fábio Andrade e Felipe Aguiar, no Café do Brejo, na Rua do Lima, em Recife-PE. A conversa teve mediação de Fernanda Maia e Carlos Gomes e registro fotográfico de Camila van der Linden.

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Carlos: Eu queria começar conversan-do sobre a criação de vocês, se essa ideia da máscara, da alteridade, de se colocar como o outro, está presente tanto na criação de vocês quanto no outro lugar, que é o do crítico, pesqui-sador.

Leidson: No meu segmento, isso já tá na essência do teatro, de você poder viver outras vidas. O que o teatro con-temporâneo está mexendo bastante é na possibilidade de você viver a si mesmo. Isso é um elemento que está bem presente na cena. Que acaba não sendo você, mas um personagem de você. E isso tem confundido bastante as pessoas. O último espetáculo que eu fiz se chamava Olivier e Lili: Uma história de amor em 900 frases. E era um texto baseado em uma história real de dois artistas franceses, e durante o processo – a direção foi de Rodrigo Dourado – ele resolveu misturar com a minha vida e a da atriz Fátima Pon-tes, que contracenava comigo. Isso cria uma loucura porque o público fica cada vez mais confuso se o que ele está ven-do é realidade ou ficção. Quer dizer:

quantas personas estão ali misturadas? Algumas críticas surgiram: “isso não é teatro. Isso é vida real. É Leidson que está ali”. E não era Leidson quem es-tava ali. A partir do momento em que eu vou me estudar e vou viver um ou-tro personagem. Então, essa ideia de máscara, de viver outras personas, está cada vez mais confuso e mais presente no teatro.

Fábio: Falar de poesia é falar de más-caras. Sempre houve uma ideia meio cristalizada, numa certa tradição poé-tica do ocidente, que a poesia lírica, por exemplo, era a poesia do eu. Em que o poeta se expressava. Tem uma discussão bem interessante em relação ao fato de Aristóteles ter omitido, de não ter falado nada sobre a poesia líri-ca da época, que era chamada de poe-sia mélica. O lirismo teve mais que os outros um pé na música. Então, muitos teóricos acreditam que Aristóteles não falou nada da poesia mélica porque ele acreditava que, ou ela não era mi-mética, ou era uma mímese de baixa qualidade. Digamos assim. Porque a tendência era que essa poesia do sen-

Foto: Camila van der Linden

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timento ou do eu – falando com versos conjugados em primeira pessoa –, isso exprimiria o próprio poeta. Na verda-de, a gente sabe que não é assim. A partir do momento que se faz uso da linguagem pra criar, você não é mais você. A mesmo coisa que Leidson fa-lou do ator. No momento em que você põe o pé no palco, ele não é mais ele, apenas. O poeta, o criador, o autor, ele utiliza a linguagem como intenção artística e ele se faz outro. Agora, há uma poesia que sempre procurou – isso talvez seja um traço da poesia líri-ca, de Manuel Bandeira e tudo o mais – fazer com que esse personagem se aproximasse o máximo possível desse autor que cria. Isso seria, na verdade, uma convenção de uma certa poesia. Quando ela fala em eu, esse eu mui-tas vezes se utiliza de elementos da vida do próprio poeta mesmo que não seja ele. Que já seja uma criação. O meu primeiro livro está dentro de uma certa concepção de poesia, que eu tenho tentado desconstruir, em que o eu não tinha vez. Num certo sentido, está completamente dentro de uma certa tradição moderna de poesia que

procurava a despersonalização, aquela coisa meio Eliotiana, de que o poeta precisa se fazer outro ou outros para poder falar e essas vozes não tinham necessariamente pessoalidade. No lu-gar dele, fala a própria linguagem. O meu primeiro livro, Luminar Presença, ele tem essa cara. Você não vai encon-trar nenhum poema com o eu. Esse sujeito lírico não está presente. Não há verbos em primeira pessoa. É um completo esvaziamento dessa noção romântica...

Felipe: O oposto de mim.

Fábio: Pois é. Talvez agora a gente co-mece a se aproximar um pouco mais. O segundo livro, que não foi publicado, o Orfeu sem rosto, ele ainda tinha esse traço. O próprio nome remete a isso. A uma certa vaguidão de identidade, despersonalizada. No terceiro livro, premiado em concurso da Prefeitura do Recife, e publicado, A transparên-cia do tempo, você já começa a ver uma espécie de retorno desse sujeito, mas transformado, atravessado por esse deserto de linguagem. Mas ele

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já volta – e não que eu não ache que não aparecesse nos outros – , com A transparência do tempo é que eu me aproximo mais da tradição lírica com a consciência de que esse eu é uma criação, mas com a necessidade de dar uma cara para ele. Dar minha história a ele, de vincular determinadas coisas a ele. Começa a aparecer esse eu, a falar em primeira pessoa. Talvez uma dimensão metafísica e transcendente vai sendo deixada de lado ou vai sen-do percebida a dimensão da vida real e concreta. Se eu for falar de algo que transcenda vai ser a partir dessa mesa, do cachorro que passa na esquina. Não são as altas esferas da poesia mí-tica ocidental, coisa que eu namorava

muito na época. Não, isso vai criando raízes no chão, digamos assim.

Felipe: Eu gosto de falar da desperso-nalização de uma outra forma, talvez pela perspectiva do Benedito Nunes. Para mim, poesia é, antes de mais nada, experiência. Eu não saberia dizer qual experiência, mas Benedito Nunes, por exemplo, e o exemplo é Fernan-do Pessoa: quanto mais você quebra a individualidade do ser, essa desper-sonalização é uma forma de quebrar e abrir as possibilidades do ser. Ou seja, quebra-se o indivíduo fixo, que seria o indivíduo lá do Iluminismo, pra um in-divíduo de possibilidades. E quando você encontra isso, você está estabele-

"Essa ideia de multiplicação de si mesmo possibilita o encontro com o outro, mas não só com o outro, mas um conhecimento maior de si mesmo."Felipe Aguiar

Foto: Camila van der Linden

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cendo contatos com o outro. Essa ideia de multiplicação de si mesmo possibi-lita o encontro com o outro, mas não só com o outro, mas um conhecimento maior de si mesmo. E no exemplo do ator de teatro, quando ele vai fazer um papel, ele pode participar de oficinas mergulhando nesse papel, conhecen-do outro mundo, experenciando. Ele não é, de fato, na realidade – ou o que a gente chama de realidade – de outro mundo. Mas ele está experenciando esse mundo. Quando o poeta passa por esse processo de despersonaliza-ção ou como diria Fernando Pessoa, conhecer o mundo através da imagi-nação, é como se fosse um conhecer

através da experiência sensível. Todo o processo artístico para mim passa por isso, e é uma necessidade muito atual de se estabelecer relações com o outro e se conhecer melhor. Quanto à minha produção poética, eu tenho dois livros, um lançado pela Moinhos de Vento, o Poeira de Chipre, e o segundo, Qua-tro Cavalos, chegou a ganhar menção honrosa no I Prêmio Pernambuco de Li-teratura. Eu acho que não mudei muito nos dois livros. Envolvem um eu mui-to mais forte, mas sempre conectado com um universo para além desse físi-co, desse concreto. Talvez mesmo uma ideia meio transcendente.

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Leidson: Eu costumo dizer que o teatro é a arte da crise. Por vários sentidos, mas principalmente, pensando nessa ideia das máscaras... Eu acredito que há vários teatros. Mas o teatro em que eu acredito tem essa ideia de mergu-lho, em que você vai pra dentro de si. Mas não é fácil. Porque você tem que descobrir que máscaras você usa, e ti-rar algumas para poder usar outras. Eu estou julgando agora 180 projetos para o festival de teatro de Fortaleza. Então, você vê as propostas mais diferentes, mas a gente consegue visualizar que nos últimos anos há um determinado tipo de teatro, que não é novo, já vem de décadas atrás. Nos anos 1970 isso já era bem praticado, mas que vem cla-mando a ideia da presença, desse eu. Atores que falam de experiências de-les. Isso é um movimento que a gente consegue vislumbrar agora. Inclusive a presença dos espectadores. Nesse tempo de crise que os teatros passam, eles estão cada vez menores. Cada vez

mais íntimos, próximos. Não é uma coisa nova, mas tem tido um boom desses espetáculos nesses espaços pequenos. Os atores falam de expe-riências pessoais, então, eles tentam se revelar, mesmo não sendo eles. E eles tentam revelar a plateia, que várias vezes, além de estar próxima e ilumi-nada, é várias vezes convidada a falar de si. Isso é uma tendência do teatro, que a gente pode chamar de contem-porâneo. Que muitas vezes a plateia e muitos críticos não entendem. Ao pon-to de dizerem: isso não é teatro. Isso é terapia, é outra coisa e não teatro. As pessoas estão muito acostumadas na ideia de personagem já estabelecido e daquelas pessoas que estão em cena. É uma tendência que eu costumo ver e que cria crises. Não é todo mundo que sabe apreciar um espetáculo como esse, que se permite a participar. Por exemplo, no espetáculo Olivier e Lili, a plateia ria, chorava, era convidada a entrar em cena. Havia espectadores

Foto: Camila van der Linden

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que viviam personagens, revelavam coisas de si. Eu percebo que há uma tendência cada vez maior em ser assim. Que as pessoas hoje estão cada vez mais individualizadas. Estão falando de si o tempo todo. As pessoas estão no Facebook contando a própria história, às vezes ficcionalizando. E o teatro dia-loga com isso, com essas máscaras que estão por aí.

Fernanda: Como essa confusão entre a ficção e a realidade está presente no teatro para crianças? Leidson, você lan-çou um livro...

Leidson: O Panorama do Teatro para Crianças em Pernambuco...

Fernanda: Do ponto de vista do infan-tojuvenil, digamos assim, vocês traba-lham com isso, nesse contexto do tea-tro?

Leidson: Sim. Algumas pessoas. Não

são muitas. Eu acho que o teatro para a infância e juventude, das pessoas que pesquisam nessa ideia de mergu-lho, elas tentam aproximar. Alguns es-petáculos trazem o lúdico, a fantasia, mas tentam aproximar da realidade da criança. Mesmo que falem de príncipes e princesas, se aproxima pela ideia da brincadeira. Eu vi um espetáculo em Petrolina que falava sobre a constru-ção de um barco, e os elementos que estavam em cena eram muito próximos do que a criança poderia construir em casa: um lençol, um cabo de vassoura. Isso criava uma identidade. Está pre-sente o lúdico, mas, ao mesmo tem-po, a possibilidade de realidade. Isso é uma linha desse teatro. Há uma ou-tra linha que aposta apenas na fanta-sia. Com uma série de produções que reproduzem o que está no cinema e na televisão. Cria uma certa distância, como se aquilo fosse inatingível. A pre-sença da Disney, por exemplo, é algo inatingível, é um conto de fadas. Aqui-

"Os atores falam de experiências pessoais, então, eles tentam se revelar, mesmo não sendo eles."Leidson Ferraz

Foto: Camila van der Linden

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lo nunca está próximo da criança.

Fernanda: E em relação aos temas considerados polêmicos para esse pú-blico. Edward Gore ele faz livros infan-tojuvenis – ele inspirou Tim Burton, por exemplo – a partir de uma estética bem macabra. Que se você mostrar para um pai sem muito contato com literatura, ele não vai querer mostrar para o filho, pois criam a ideia de princesa e prínci-pe na literatura e também no teatro...

Leidson: Pra criança acredito que se tem que trabalhar com a fantasia. Uma das peças que mais me marcou na vida foi o Hamlet para crianças. O Príncipe da Dinamarca.

Fábio: Levei meu filho pra ver, ele ficou fascinado, adorou.

Leidson: Você pegar a obra Hamlet, que é pontuada por mortes, assassina-tos...

Fernanda: É nessa perspectiva que eu

estou pensando.

Leidson: Falar de suicídio, e a cena do suicídio de Ofélia é uma das coi-sas mais lindas que eu já vi no teatro. A criança sabia que estavam falando de suicídio, mas de uma forma lúdica, sem pudor pra falar. Todos os persona-gens que morriam viravam caveirinhas. E pelo riso, pela brincadeira, ela ia percebendo que a morte existe. É de uma extrema ousadia do diretor Ange-lo Brandini. Ele foi superpremiado por causa disso, porque não teve medo de falar sobre determinados temas.

Fernanda: E tu, Fábio, reclamou da peça? (risos)

Fábio: Nem tem como reclamar. Fran-cisco, meu filho, parece um persona-gem de Tim Burton (risos). Ele adora tudo o que é macabro. Uma árvore de Natal que a gente fez uma vez, quando vimos ele tinha enfeitado com aranha e caveiras que ele tinha.

Fernanda: No começo da trajetória, vocês começaram criando de uma forma consciente, a partir da técnica, linguagem, digamos assim, ou mais es-piritual, espontânea? Como se deu no início e como se dá hoje?

Leidson: Na minha história são mo-mentos muito diferentes. Em 1998 eu fiz o espetáculo Antônio Conselhei-ro com direção de Érico José, que é uma peça pouco montada do Joaquim Cardozo, e eu fazia o papel principal. E quando você faz um personagem real a proposta é totalmente diferen-te. Eu, falando em espiritualidade, fiz um espetáculo na Casa da Cultura, e

estava mexendo com um personagem que foi real, e eu tinha um certo res-peito, a peça começa com uma música de Chico Science & Nação Zumbi, e o público entrava – era um espetácu-lo num formato bem contemporâneo. E eu sentia muita câimbra na mão. Eu já estava em cena com um cajado. Era uma cena em que ele tinha as visões dele. Aí você tem um mergulho sobre a trajetória daquela figura, mas você tem que fantasiar muito. Mas eu lidava com alguma coisa que eu não sei explicar até hoje o que é. Eu vivia uma persona-gem que foi real. Mas num outro espe-táculo, O Amor do Galo pela Galinha D’Água, em que eu fazia o Azulão, um

históriasdo eu

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personagem completamente lúdico, um pássaro. Eu trazia coisas da minha vida. Eu fui resgatar a minha criança que brincava no quintal, pois o perso-nagem me exigia isso. Cada persona-gem exige coisas diferentes. Eu fui o Demônio da Paixão de Cristo durante anos. O que esse Demônio tem a ver comigo? Eu fui descobrir os diabos que tinham dentro de mim. Aí a forma de pesquisa é outra. Você vai pelo corpo, por outras instâncias.

Felipe: O meu processo criativo, pes-soal mesmo, ele é o oposto da ten-dência da atualidade. Que tenta se afastar o máximo que é possível do que é transcendente. Toda vez que eu estou lendo ou produzindo, eu busco, de uma certa forma, o transcendente. Na modernidade chamam isso de ana-logia. A crença de que uma coisa está analogamente relacionada com outra. Quando eu leio Clarice Lispector, por exemplo; um dos textos que eu mais gosto da literatura mundial é: “A vin-gança e a reconciliação penosa”. Que no final ela diz assim: “Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe”. E eu referencio esse texto o tempo inteiro, pra aquela ideia em que você pode fa-zer um vínculo direto com a cabala. E na cabala mística você tem as árvores da sefirot. Tem aquela ideia de que o homem sai de Deus, desce pelas sefi-rots, chega na sefirot básica, que é o mundo, aí volta pelas sefirots até en-contrar Deus. Esse homem agora está no máximo de evolução que ele possa alcançar. Esse homem nesse máximo de evolução, o que ele vê é a face. Não é o rosto de Deus e sua completude. Então, é a ideia de que todos nós só vemos faces das coisas. E essa pode-ria ser uma hora que a gente olha para a obra de Fernando Pessoa, quando Benedito Nunes fala nesse ocultismo alquímico de Pessoa. Seria essa ideia de que todo personagem que ele cria é uma face possível de experiência do mundo. E essas faces estão ligadas, de alguma forma, a uma fonte. Quando eu crio, pessoalmente, há uma experen-ciação que de alguma forma retorna

a mim. Eu posso criar um texto como “O senhor da colina”, que é inspirado num texto de Rilke, mas é uma coisa que de forma alguma eu vivenciei. Um senhor que está na colina com sua fa-mília e que enlouquece com a leitura de um livro, e só lê esse livro até que não lê mais nada. E fica cego de uma certa maneira. Até textos que são com-pletamente pessoais, que nascem 90% de mim e 10% do universo que eu cha-mo de transcendente, e que de algu-ma forma me ajuda a compor. Então, quando escrevo eu preciso do univer-so transcendente, do conhecimento prático de poesia, que a academia me deu para eu lapidar a poesia. E eu não desvinculo uma coisa da outra. São coisas que convivem necessariamen-te: o aprendizado acadêmico, a leitura de poesia, essa coisa mesmo racional, mais essa coisa da transcendência.

Fernanda: E tu, Fábio, imitasse muito Rimbaud? (risos)

Fábio: (risos) Você tocou num ponto... Como eu imitei Rimbaud. Ele foi uma das primeiras descobertas pra mim. Na praia do Bairro Novo (risos), numa tra-dução do Ivo Barroso que eu gosto até hoje. Aliás, na tradução do Lêdo Ivo. Eu reconheço que Ivo Barroso é o me-lhor tradutor de Rimbaud, mas a minha paixão é pela do Lêdo Ivo, porque foi a primeira que eu li. Eu comecei a es-crever com uns 14, 15 anos. A minha família nunca teve uma relação com os livros. E de repente foi num contato com um amigo, que acho que metade do Recife conhece. O dono do Iraq, o Evandro, que era leitor de poesia e a gente cresceu junto. E tínhamos um grupo, e ele escreveu algo que eu vi e disse: eu quero fazer isso. Então, ele foi uma das poucas pessoas que leu o meu primeiro poema. Mas a partir des-sa idade eu me tornei um leitor ávido. E queria ler tudo. Rimbaud e os simbo-listas franceses foram uma descoberta em torno dos 17 anos. Augusto dos Anjos, que eu era alucinado. Obriguei a minha mãe a me dar de presente, que ela achava horrível. Eu recitava aquilo

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alto, decorava. Depois você vai abrin-do esse leque de leituras. Mas a visão que eu tenho hoje é que uma boa par-te da minha experiência com a poesia é o lugar de uma outra experiência. Então, a poesia em certo sentido ocu-pava uma experiência que eu só vim a ter muito tempo depois. Eu acho que usei muito a poesia até chegar nesse ponto. Depois que eu tive essa expe-riência, eu disse: e agora, o que vou fazer com a poesia? Isso foi uma encru-zilhada, aconteceu entre 2008 e 2010. O cume disso em 2010, 2011... Bom, eu me separei, tive filho; tem esse ele-

mento biográfico também, que é ine-vitável. A poesia é algo vital que está relacionada com a vida. Mas todas es-sas mudanças, meu mergulho no ioga, isso tudo me deu uma resposta que diz assim: não dá mais pra usar a poesia pra falar disso aqui. A partir do mo-mento que acontece isso, eu começo a enveredar pela prosa. Ultimamente é que eu tenho voltado um pouco, pen-sado em organizar um outro livro. Mas estou com muitas ideias pra narrativas. Tenho um romance feito, guardado, estou mexendo. oc

"A poesia em certo sentido ocupava uma experiência que eu só vim a ter muito tempo depois."Fábio Andrade

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Foto: Camila van der Linden

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por Ruy Gardnier

Quando o DEDO começou a se apre-sentar no circuito alternativo do Rio de Janeiro (Comuna, Plano B, Solar de Botafogo, Audio Rebel), o som do grupo ‒ eventualmente acompanha-do de alguma projeção audiovisual ‒ impressionava por sua soberba uti-lização da longa duração e pela cons-trução microscópica de crescendos texturais e/ou de volume. Era uma música que funcionava na extensão, que precisava do escorrer do tempo para desdobrar suas potencialidades. A aura de mistério encontrava eco na apresentação visual do grupo, que op-tava pela dissolução da visibilidade do artista executante, ora por ter no vídeo a única fonte luminosa do show, ora por tocar no breu completo, ora

por tocar literalmente atrás do telão. A extrema economia de signos visuais e principalmente auditivos causava estupefação pelo rigor e pela minúcia do trabalho realizado com as sonori-dades ‒ drones robustos, estalos, ru-ído branco, barulhos em geral, curtos e longos ‒ e com o tempo.

A coesão sonora e conceitual do grupo é tão mais impressionante dada a diversidade dos instrumentos (latu sensu) e de procedimentos uti-lizados por cada um dos membros do grupo. Arthur Lacerda trabalha prin-cipalmente com amplificação de ob-jetos via microfone de contato, mas também faz uso do toca-discos. Lucas Pires faz manipulação de fitas casse-te via walkman, utilizando loops, ace-

DEDO Rainha QTV 005

DEDO Rainha QTV 005

Foto: Gabriel Fuks/Divulgação

resenha

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lerando ou ralentando a progressão normal da rotação. Rafael Meliga toca guitarra, mas não recorre a notas ou acordes, preferindo extrair vibrações discretas e contínuas. Há por vezes utilização de pedais, sintetizadores e eletrônicos, mas a execução in loco é preponderante. A dinâmica principal costuma ser entre os sons mantidos ‒ fundamentais nas peças de longa du-ração ‒ e o relevo criado pelos sons fragmentários ou granulados que sur-gem ao longo da execução.

O lançamento do CD Rainha (QTV005) reconfigura sensivelmente a ideia que se tem sobre a música do DEDO. Não porque o grupo tenha mo-dificado substancialmente sua sono-ridade, mas porque dessa vez somos apresentados a catorze peças curtas divididas entre a duração total de 33 minutos. São miniaturas visivelmen-te cortadas de sessões maiores ‒ o fato de não haver fade in e fade out nos começos e fins de faixa expõe com clareza o processo ‒, mas aqui o deci-sivo é que a consistência sonora não depende mais da progressão ao lon-go do tempo, mas da imediaticidade de cada intensidade do momento, de cada pequeno som que passa a adqui-rir uma autonomia maior, não mais tão dependente de seu espaço na du-ração. O que funcionava na extensão passa agora a valer no intensivo de cada situação, e isso abre uma gama de possibilidades que o DEDO explora de forma bastante singular.

Dos momentos solitários ‒ ou quase ‒ de uso de synth, toca-discos, manipulação de objetos ou cassete (a primeira “Transhumanism”, “d. object memory”, a primeira “ragna”, “Dog Dynamics”) até as peças mais sono-ramente cheias (as três faixas que ganham o nome de “Rainha”, a última “Tranhumanism”), o que mais chama a atenção é a minúcia no controle de timbres e ritmos, dando a sensação de que estamos diante de um exuberan-te universo sonoro em que os objetos conquistaram definitivamente sua

independência em relação aos seres humanos e passaram a se comunicar entre si através de códigos ‒ a nós ‒ misteriosos e fascinantes. Mesmo quando estamos diante de itens so-noros reconhecíveis da convivência humana ou animal (o sample de blues na primeira “ragna” ou o latido de cão em “Dog Dynamics”), o que sobressai é a deformação que o walkman ou o toca-discos opera sobre esses itens sonoros. Quem fala ‒ e distorce ‒ o blues é o walkman.

Num momento em que mesmo os gêneros underground do noise e do drone já parecem estar completa-mente segmentados e, consequen-temente, confortáveis dentro de um regime preestabelecido de signifi-cação e fruição, é preciso investigar outras formas de organização sonora. Em Rainha, o DEDO empreende esse trabalho de modo fascinante, criando um objeto sonoro que evidentemente é herdeiro de diversas searas de cria-ção musical (eletroacústica, noise, e mesmo o free improv) mas que não prescinde de nenhum deles para criar seus distintos nexos sonoros. Precisa-mos de discos-OVNI, e Rainha certa-mente é um desses, tão mais excitante por menos sermos capazes de desven-dar seus mistérios ‒ o que importa não é desvendar, é atestar o mistério quando diante dele. oc

O disco foi gravado no estúdio Audio Rebel por Renato Godoy, mixado por Eduardo Manso e lançado selo Quintavant/QTV.

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Há quem defenda que a música é a mais difícil das manifestações artís-ticas. Manuel Bandeira, por exemplo, afirma categoricamente que “a técni-ca musical funda-se em muito mais ciência que a das outras artes.” Faz sentido. Se pararmos para olhar à dis-tância e desnaturalizarmos a relação socialmente construída entre nós e os gêneros da arte, perceberemos que a música trabalha muito mais o abs-trato do que as outras vertentes da criação artística. Afinal de contas, a pintura se realiza na imagem, mesmo quando a nega; a escultura acontece pela delimitação de formas e volumes palpáveis; a fotografia existe tão so-mente através da captura de um ins-tante pinçado da tessitura do real; e o cinema, para ficar só nestas sea-ras, demanda o encadeamento destes mesmos instantes em movimento. Resta, portanto, que essas formas da

Arte se encontram muito próximas daquilo que percebemos como rea-lidade, do arcabouço simbólico que coletivamente utilizamos em nosso enfrentamento diário do mundo ma-terial. A música, não.

Como num universo paralelo, a música manipula e organiza artificial-mente certos sons - mais precisamen-te doze, segundo o sistema temperado ocidental – de acordo com uma lógica estritamente sua. A partir desses re-gramentos, o compositor constrói seu mundo particular, idealizado, com fins inteiramente expressivos, mas que, por estar plasmado no éter, só a execução torna fugazmente apreensí-vel. “A música esvai-se no ar quando termina. Você nunca consegue cap-turá-la novamente.”, já advertia o sa-xofonista Eric Dolphy. Era preciso, portanto, encurtar o caminho entre a composição e o ouvinte, descriptogra-

por Bruno vitorino

A Construção Narrativa do Saracotia

Foto: Willian Paiva/Divulgaçãoresenha

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far seu conteúdo emotivo, tornar sua mensagem mais clara, direta e acessí-vel. Para tanto, serviu bem a palavra como instrumento de mediação, pois estabelecia o elo entre o universo ima-terial das notas musicais e o ouvinte comum, aquele indivíduo não versado nas liturgias da teoria musical que, conduzido agora pela significação da letra, fruia a experiência estética do som segundo sua própria perspectiva. Daí a hegemonia da canção. Daí tam-bém seu desdobramento mais óbvio: a ideia preconcebida de que a músi-ca instrumental é cientificista, árida, produção de músicos para o deleite de outros músicos, voltada para a exi-bição de destreza técnica. Contudo, cientes de todas essas questões, in-clusive dos desafios mercadológicos que nascem da visão estereotipada do conceito de “música para músicos”, o trio pernambucano Saracotia, em seu

segundo disco, intitulado A Vista do Ponto, convida o ouvinte a romper com a indolência das concepções pré-vias e lançar um novo olhar sobre as construções narrativas urdidas pela poesia do instrumental.

Viabilizado com recursos do Fun-cultura, traz um inesperado salto estético em direção à maturidade do trio formado por Rodrigo Samico (violão de 7 cordas, viola e guitarras), Rafael Marques (bandolim) e Marcio Silva (bateria). Jazzístico na lingua-gem, regionalista no sotaque e erudi-to na intenção narrativa, neste segun-do trabalho o combo pernambucano supera em muito a estéril perspectiva tecnocrata da música instrumental que enxerga o tema apenas como um circuito de obstáculos cujas barreiras das convenções e da miríade de notas devem ser transpostas pelos músicos através da graça fingida do virtuosis-mo. Ao contrário, o foco aqui não está no que se sabe, e sim no que se sen-te. Portanto, o Saracotia transforma a composição no território por exce-lência da comunhão de subjetividades nas quais constroem novas estruturas sonoras sobre o dinâmico material temático via improvisação individual e forte interplay, compartilhando, as-sim, no arriscado e incerto processo da criação espontânea o êxtase da li-berdade.

Numa música que parece ser um vórtice de gêneros e influências, o trio consegue transitar do forró ao bebop, passando pelo frevo sem se esquecer do choro; tudo isso sem re-cair nos lugares comuns que não raro costumamos encontrar na produção instrumental destas terras em sua estranha propensão de transfigurar suas raízes culturais em bijuterias do vendável no negócio que é também a música. Assim, diria que é impossível detectar quaisquer resquícios de cli-chê em composições como “Ócios do Ofício”, com seu rebuscado fraseado, reviravoltas na dinâmica e um debo-chado senso de humor que zomba da

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própria exuberância técnica que sua execução requer; “Dia de Sorte”, em sua assimetria rítmica que desafia a percepção métrica reinante dos com-passos binários; “Pra Você”, um mer-gulho no contemplativo dos espaços; ou “Bolerando”, um choro-valsa-pé-quebrado em 5/4. Por isso, ao invés da relíquia intocável de um passado longínquo, vemos a tradição sendo manipulada como um material vivo, dessacralizada – embora com muito respeito e conhecimento de causa –, extrapolando o hermetismo arbitrá-rio das fronteiras para descambar numa música atual e culturalmente profunda.

No entanto, apesar de todas essas qualidades instrínsecas às músicas, devo confessar que minha escuta foi marcada por certo estranhamento, pois não consegui entender a necessi-dade de se conectar temas tão diver-sos e ricos num continuum inorgânico que sugere uma história. Imagino que na intenção de tornar o empreendi-mento cultural A Vista do Ponto mais comercial e palatável ao ouvido lei-go, o produtor Rogério Samico tenha concebido a estratégia de apresentar o álbum como uma trilha sonora de um filme imaginário a ser roteiriza-do pelo ouvinte durante sua audição. De fato! Intuitivamente me vi numa conturbada estação embarcando num trem com destino insabido nas des-povoadas terras da experiência es-tética. Logo quedei-me deslumbrado ante a beleza objetiva de paisagens sonoras traduzidas em composição e surpreso com o modo como elas eram violentamente agredidas pela nefas-ta e predatória intervenção humana, materializada aqui em overdubs, sam-ples, vinhetas e outros penduricalhos mecânicos que os do meio chamam de “desenho sonoro”. Foi trabalhoso, por exemplo, atravessar a maçaroca rui-dosa que encobria o lirismo do violão e diálogo que ele estabelecia com o bandolim no começo de “Por Querer Ficar”; ou me concentrar depois da colagem nonsense de um vendedor de pamonha (ali de Piracicaba!) no in-

terlúdio de “Forró-Bozó”. Se há nessa dualidade um propósito de traçar um paralelo com o planejamento urbano do Recife (como dá a entender a arte do disco), não creio. Vejo mais uma descontinuidade entre os pontos de vista musicais da banda e do produtor que marca o álbum.

Por essas razões, mal posso espe-rar por ver este afiado trio no palco, longe da interferência excessiva de um membro avulso, focando inteiramente no que importa: as composições. Re-ceio, porém, que terei de esperar um tanto. Provavelmente até a aprovação, em mais um edital de fomento à cultu-ra, de um projeto de circulação... Vi-vemos em Pernambuco, onde a classe artística se deixou levar pelo irresis-tível canto das sereias disfarçado em “políticas públicas para a democrati-zação da cultura” sem perceber, con-tudo, que a independência pela qual sempre lutou escorria por entre os dedos à medida que seu processo de funcionalização se consolidava com a substituição do mercado pelo Estado. Mas, isso é papo para outro texto. Por ora, cabe dizer que A Vista do Ponto traz em si inúmeros êxitos, alguns desencontros, mas, sobretudo, muita substância artística e a promessa de que na experiência do “ao vivo” pode cobrir muito mais terreno. Recomen-dado! oc

O disco foi produzido por Rogério Samico e gravado no estúdio Carranca, com parti-cipações especiais dos músicos Júlio Cesar, Vitor Araújo e Martins. O projeto gráfico e fotografia são de Wiliam Paiva.

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