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  • Paisagens Sgnicas:Uma refl exo sobre as artes visuais contemporneas

    Paisagens Sgnicas

    Maria Celeste de Almeida Wanner

    Maria C

    eleste de Almeida W

    anner

    Foto: Luiz Eduardo de Oliveira

    Maria Celeste de Almeida Wanner CELESTE ALMEIDA Graduada em Desenho e Plstica, Universidade Federal da Bahia. Mestrado em Artes Plsticas Colorado EUA. Doutorado em Artes Visuais California College of Arts So Francisco EUA. Possui representao na Artists Gallery San Francisco Museum of Modern Art California EUA. Professora Titular da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, onde ingressou em 1980 j como Mestre em Artes Visuais. Residiu nos Estados Unidos da Amrica do Norte por 11 anos, onde ensinou artes visuais em escolas pblicas de 1, 2 e 3 graus. Foi professora-assistente, monitora e conferencista de universidades e instituies americanas. Realizou vrias exposies individuais e coletivas em galerias, instituies e museus americanos. Realizou viagem de pesquisa pela Amrica (Central e do Sul), como parte integrante da equipe de arquelogos e fotgrafos, e pela Europa. Participou de encontro com o historiador de arte americano Peter Selz, e historiadores da fotografi a e fotgrafos americanos, como Beaumont Newhall e Van Deren Coke. Coordenou o Mestrado em Artes Visuais/EBA/UFBA, 1997-2000, quando reabriu e credenciou este Curso junto CAPES. Criou a Revista Cultura Visual, com sua devida indexao. Presidente por dois anos da Associao Nacional de Pesquisa dos Cursos de Ps-Graduao em Artes Visuais do Brasil ANPAV. Foi Diretora da Escola de Belas Artes/UFBA 2000-2004. Tem sido professora visitante e conferencista em universidades brasileiras, americanas e europeias. pesquisadora-membro dos seguintes Grupos de Pesquisa do CNPq: 1. Arte Hbrida - Lder; 2. Processos Hbridos na Arte Contempornea - UFRGS; 3. Imagem - Centro Internacional de Estudos Peircianos - PUC/So Paulo; 4. Centro de Estudos de Pragmatismo Curso de Filosofi a da PUC/So Paulo. Ps-Doutora pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo em Artes Visuais Contemporneas e Semitica [Filosofi a Peirciana] - Supervisora Profa. Dra. Lucia Santaella, Bolsita Snior do CNPq - maro de 2007 a fevereiro de 2008.

    Em A tica de curiosidade, prefcio deste Paisagens Sgnicas: uma refl exo sobre as artes visuais contemporneas, de Maria Celeste de Almeida Wanner, Lcia Santaella observa:

    Se h um atributo que poderia dar conta da apresentao desta obra de Celeste Almeida, a meu ver, este se encontra na maneira como a autora pratica a tica da curiosidade. No se trata, evidentemente, de uma curiosidade sem rumo, mas sim ancorada em anos de experincia como artista e como professora. Plagiando Pound, poderamos dizer: se quiser saber alguma coisa sobre arte, pergunte a um(a) artista. Em especial a um(a) artista compromissado(a) com a transmisso do fazer e do saber sobre a arte. Neste livro, atividade da artista e da mestra adiciona-se a da pesquisadora. Seu objeto lhe era caro: a relevncia da matria nas artes atuais. O tema lhe era claro: as transfi guraes estticas da natureza e da paisagem. Para acercar-se deles, era preciso traar os lugares da arte no ltimo sculo, tarefa enredada que s podia ser cumprida com a sonda de uma curiosidade multidirecional, capaz de captar sinais ontolgicos, epistemolgicos, semiticos e estticos. As paisagens da arte se constroem da arte e na arte. Ao fi m e ao cabo, so paisagens sgnicas.

  • Paisagens Sgnicas:Uma reflexo sobre as artes visuais contemporneas

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    ReitorNaomar Monteiro de Almeida Filho

    Vice ReitorFrancisco Jos Gomes Mesquita

    EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    DiretoraFlvia Goullart Mota Garcia Rosa

    CONSELHO EDITORIAL

    Titularesngelo Szaniecki Perret Serpa

    Caiuby Alves da CostaCharbel Nin El-Hani

    Dante Eustachio Lucchesi RamacciottiJos Teixeira Cavalcante Filho

    Alberto Brum Novaes

    SuplentesAntnio Fernando Guerreiro de Freitas

    Evelina de Carvalho S HoiselCleise Furtado Mendes

    Maria Vidal de Negreiros Camargo

  • Salvador2010

    Paisagens Sgnicas:Uma reflexo sobre as artes visuais contemporneas

    Maria Celeste de Almeida Wanner

  • 2010 by Maria Celeste de Almeida WannerDireitos para esta edio cedidos Editora da Universidade Federal da Bahia.

    Feito o depsito legal.

    PROJETO GRFICO E DIAGRAMAOGenilson Lima Santos

    CAPAMaria Celeste de Almeida Wanner

    REVISO DE TEXTO E NORMALIZAOCida Ferraz

    EDUFBARua Baro de Jeremoabo, s/n Campus de Ondina, Salvador BahiaCEP 40170 115Tel/fax 71 3283 6164

    [email protected]

    Editora filiada :

    Wanner, Maria Celeste de Almeida. Paisagens sgnicas : uma reflexo sobre as artes visuais contemporneas / Maria Celeste de Almeida Wanner. - Salvador : EDUFBA, 2010. 302 p.

    ISBN 978-85-232-0672-7

    1. Paisagem na arte. 2. Arte moderna. 3. Natureza (Esttica). 4. Semitica. 5. Sinais e smbolos. I. Ttulo.

    CDD - 704.9436

    Sistema de Bibliotecas - UFBA

  • A meus Pais e Dinda, amor recproco e incondicional.

    A meu neto Joaquim, milagre da vida,

    onde tudo recomea, segundo Novalis, amor feito visvel.

  • AGRADECIMENTOS

    minha supervisora Prof Dr Lucia Santaella, exemplo de elegncia profissional, vitalidade e disposio intelectual contagiante, sempre atenta aos assuntos mais novos e familiaridade com os mais clssicos. Constante companheira, desde os primeiros momentos do projeto. Lucia, aqui ex-presso minha maior e eterna gratido, sempre!

    Ao Prof. Dr. Ivo Assad Ibri, pelo papel fundamental que desempenhou no impulso minha pesquisa, com entusiasmo ao repassar seus conhecimentos sobre a filosofia de Charles Sanders Peirce e a filosofia da natureza.

    Presto meus sinceros agradecimentos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), pelo continuado apoio minha formao acadmica e de pesquisa, desta vez como bolsista Ps-Doutorado Snior (PDS), 2007-2008.

    Fundao de Apoio Pesquisa do Estado da Bahia (Fabesp), pelo patrocnio deste livro.

    Ao Programa de Estudos Ps-Graduados de Comunicao e Semitica da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC/SP), por ter me acolhido em um espao de pesquisa acadmica, o que para mim foi um grande privilgio.

    A todos os colegas e amigos do Grupo de Pesquisa sobre Pragmatismo (PUC/So Paulo/CNPq), representados na pessoa de Tiago da Costa e Silva, pelo prazer em trabalharmos juntos.

  • Especiais agradecimentos:

    Prof Dr Ceclia Salles (PUC/SP) e ao Prof. Dr. Vincent Colapietro, research professor of Philosophy at Penn State University, EUA, presidente do Peirce Edition Project, pelas valiosas discusses.

    s professoras Diana Seplveda Tourinho, Flvia Garcia Rosa e toda a equipe da Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba), por terem acolhido meu trabalho, com profissionalismo e excelncia. A Cida Ferraz, pela impecvel reviso final, fruto de seu entusiasmo pelas artes e letras.

    bibliotecria da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (EBA/Ufba), Leda Maria Ramos Costa, pela primeira normalizao bibliogrfica.

    Aos colegas do Grupo de Pesquisa Arte Hbrida (Ufba/CNPq), e a todos os queridos alunos e ex-alunos (graduao e ps-graduao), aqui repre-sentados por Eriel Arajo, Bia Santos, Tonico Portela e Virgnia Medeiros, pela demonstrao de carinho, alegria, sobretudo por suas inquietaes que me levaram constante pesquisa sobre a Arte.

    Aos amigos de sempre, incentivadores neste projeto: Maerbal Marinho, Cleomar Rocha, Maria Vidal, Clia Maria Barreto Gomes e Fernando Freitas Pinto e Eduardo Baioni.

    a Iannis Mastronikolis, por ter trazido tona uma das mais lindas lembranas que guardo at hoje da minha infncia, a cultura grega.

    A Marta Gmeiner e Clara Wanner.

    A meu querido irmo Miguel. Aos meus amados filhos Julia e Joaquim.

    A meus pais, exemplos de coragem, amor, determinao e respeito incon-dicional pelas diferenas do outro.

    Maria Celeste de Almeida Wanner

  • CORRESPONDNCIAS

    A natureza um templo onde vivos pilares Deixam filtrar no raro inslitos enredos;

    O homem o cruza em meio a um bosque de segredos Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

    Como ecos longos que distncia se matizam

    Numa vertiginosa e lgubre unidade, To vasta quanto a noite e quanto a claridade,

    Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam.

    H aromas frescos como a carne dos infantes, Doces como o obo, verdes como a campina,

    E outros, j dissolutos, ricos e triunfantes,

    Com a fluidez daquilo que jamais termina, Como o almscar, o incenso e as resinas do Oriente,

    Que a glria exaltam dos sentidos e da mente.

    Charles Baudelaire

  • SUMRIO

    PREFCIO: A tica de curiosidade, Lucia Santaella13

    UM ENCONTRO COM O ADMIRVEL17

    UMA REFLEXO SOBRE A FILOSOFIA DE C. S. PEIRCE25Fenomenologia28Esttica32tica35Lgica ou Semitica36Signo38Objeto41cone, ndice e Smbolo43Metafsica44Pragmatismo e Semiose44Charles Sanders Peirce: uma possvel Filosofia da Natureza47

    REPRESENTAO53Natureza61Paisagem Landscape66Natureza da Arte: Martin Heidegger74Espao Tempo Lugar83

    NDICES DE CONTEMPORANEIDADE NAS ARTES VISUAIS95Assinatura do Modernismo: primeiro conceito de Vanguarda95O advento da Fotografia e sua relao com a Pintura99A crise da Pintura Vincent van Gogh102A Fotografia e seu processo de elevao categoria Arte109Alfred Stieglitz112Edward Weston 114Ansel Adams 114Perodo Modernista116Alegoria, Colagem e Fotomontagem120Arte no barulho de um motor121Construtivismo126A travessia do Atlntico: Europa e Amrica129Jackson Pollock: quadro ao134Paisagem dos Signos Paisagem das Mdias141Arte Cintica: o espao na obra de Calder148

    1.

    2.

    3.

    4.

  • REPENSANDO A REPRESENTAO155Do Moderno ao Contemporneo156

    Desconstruo158Isto no um cachimbo e Canyon164Isto real ou arte?168Por que alguma coisa arte enquanto outra no ?171Depois do fim da Arte: Arthur C. Danto172

    Apropriao e outros conceitos177Multiculturalismo186Paradigma da Matria193A Crise do Espao nas Artes Plsticas196

    Escultura196Temporalidade e Durao da Experincia 200Earth Art204Instalao207

    PERODO PLURALISTA: REMEMORAO209Por que Richard Serra?212Do Artesanato Arte217O Corpo est em Cena219Tecidos, Roupas e Bronze222

    Kiki Smith223Louise Bourgeois226

    A IMAGEM REVISADA231Fotografia: Espelho e Janela232Apropriao na Fotografia235A Fotografia depois da Fotografia240

    Andreas Gursky244Spencer Tunick246Atta Kim247Misha Gordin 248

    A humanizao da mquina e o pensamento oriental250

    O RETORNO NATUREZA E AO SUBLIME257Agnes Denes: Campos de Trigo uma confrontao257Campos de Girassis: Anselm Kiefer e Vincent van Gogh262

    Anselm Kiefer e Van Gogh no Sul da Frana269

    REFERNCIAS277

    5.

    6.

    7.

    8.

  • PREFCIOA tica de curiosidade

    Vivemos em um mundo hipercomplexo: na economia, poltica e, sobretudo, na cultura. Um mundo que repele julgamentos peremptrios e a segurana das certezas. Zigmund Bauman ficou famoso ao chamar e caracterizar esse mundo com o adjetivo lquido: modernidade lquida, vida lquida, amor lquido, medo lquido. Que o amor seja lquido, no espanta. Mas se at o medo se tornou lquido, o que sobra de slido? Em outra ocasio (Linguagens lquidas na era da mobilidade, 2007, p. 131-136), para responder pergunta em que cultura vivemos, esbocei algumas de suas propriedades: nossa cultura global e glocal, hbrida e cbrida, conectada, ubqua e nmade, lquida, fluida, voltil. , em suma, uma cultura mutante.

    Como poderia a arte, que sempre foi, e ser, sinalizadora, farol e antena dos movimentos, da vida e das pulsaes da cultura, estar fora dessas mutaes? Jamais. Ao contrrio, palpita por todos os cantos e esquinas, centros e bordas da cultura. Se quisermos saber para onde so-pram os ventos vivos da cultura, preciso se acercar da arte, por mais complexa que ela nos parea, como, de fato, est, no s complexa, mas hipercomplexa.

    H arte dos artefatos, dos objetos, da matria, dos stios especficos, da terra e do p.

    H arte do cu e do espao.H arte dos no-objetos, dos imateriais, da luz e da brisa.H arte da construo e da desconstruo, da representao e da

    anti-representao, da anti-arte e do alm da arte.H arte do espetacular e do escondido, do barulho e da discrio.H arte do gesto que fica e do gesto que desvanece, da ao e do

    silncio.H arte do objeto nico, do distributvel, do reprodutvel, do transmis-

    svel e da ubiquidade.

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    H arte pr-mdia, miditica e ps-mdia. Pr-fotogrfica, fotogrfica e ps-fotogrfica.

    H arte contemplativa, reativa, participativa, interativa, colaborativa.Enfim, a arte hoje transborda todos os limites. Incategorizvel. No

    existe quem possa erguer a tbua de critrios vlidos contra os invlidos para o fazer da arte. Partir para a denncia do vale-tudo tambm no nos leva longe. Pior ainda, pode nos cegar para sementes que brotam em terrenos inesperados.

    Diante da desmesurada densidade das diferenas, cumpre colocar em prtica a tica da curiosidade. No para cultivar a esperana de que possamos abraar o mapa variegado do todo, mas para que, libertos de crenas e valores fixos, possamos traar trilhas, estabelecer recortes, sem-pre contingentes, pois a tica da curiosidade impe-se contra seus grandes inimigos: a preguia e a inrcia das verdades prontas.

    Se h um atributo que poderia dar conta da apresentao desta obra de Celeste Almeida, a meu ver, este se encontra na maneira como a autora pratica a tica da curiosidade. No se trata, evidentemente, de uma curiosidade sem rumo, mas sim ancorada em anos de experincia como artista e como professora. Plagiando Pound, poderamos dizer: se quiser saber alguma coisa sobre arte, pergunte a um(a) artista. Em especial a um(a) artista compromissado(a) com a transmisso do fazer e do saber sobre a arte. Neste livro, atividade da artista e da mestra adiciona-se a da pesquisadora.

    Seu objeto lhe era caro: a relevncia da matria nas artes atuais. O tema lhe era claro: as transfiguraes estticas da natureza e da paisa-gem. Para acercar-se deles, era preciso traar os lugares da arte no ltimo sculo, tarefa enredada que s podia ser cumprida com a sonda de uma curiosidade multidirecional, capaz de captar sinais ontolgicos, epistemo-lgicos, semiticos e estticos. As paisagens da arte se constroem da arte e na arte. Ao fim e ao cabo, so paisagens sgnicas.

    A histria da arte, especialmente do final do sculo XIX para c, no conhece linhas retas. feita de ecos, reverberaes, rememoraes, tradu-es, confrontos, projees, reflexos e refraes. Esse traado multiforme,

  • A tica de curiosidade15

    pontilhado de reflexes apoiadas em autores selecionados, fios que apa-recem, desaparecem e reaparecem, o que o leitor ter oportunidade de encontrar nesta obra. Um recorte prprio e um traado personalizado na densa e inesgotvel floresta de signos da arte contempornea.

    Lucia SantaellaSo Paulo, dezembro de 2009

  • 1UM ENCONTRO COM O ADMIRVEL

    Paisagens Sgnicas: uma reflexo sobre as artes visuais contemporneas fruto de pesquisa desenvolvida nos ltimos 17 anos e aprofundada durante o Ps-Doutorado em Semitica e Artes Visuais Contemporneas, na Universidade Pontifcia Catlica de So Paulo (PUC/SP), como bolsista snior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), sob a superviso da Profa. Dra. Lucia Santaella.1 O desejo de transformar em livro o extenso material j existente sobre a importncia da matria e do espao nas artes visuais contemporneas foi acolhido e

    1 Trata-se, portanto, de um desdobramento do projeto Antena e Raiz, que, voluntariamente, ou seja, no exigido pelos rgos superiores (CNPq e PUC/SP), foi alm do relatrio final.

  • 18PaisagensSgnicas

    incentivado por Lucia Santaella e ento revisitado luz da filosofia de Charles Sanders Peirce.

    O que aqui denominamos de arte contempornea um conjunto de sistemas visuais que se desenvolveu a partir do final do sculo XIX, atravs do processo de desconstruo dos meios tradicionais de representao (pintura e escultura) que incluem materiais e espaos considerados lgicos nas artes plsticas , em decorrncia do advento da fotografia. Esse marco encontra ressonncia no mbito da sociedade pr-moderna do final do sculo XIX, fundando correspondncias entre as novas maneiras de repre-sentao sgnica, com destaque para a estreita relao, ento estabelecida, entre o homem e a natureza e uma determinada viso de mundo.

    Com o surgimento da imagem fixa, parece que todos os esforos contriburam para levar adiante discusses acaloradas sobre a funo da arte e, respectivamente, do artista. A partir deste marco histrico, a imagem, que at ento buscava os meios tcnicos de captao, revelao e fixao em suportes sensveis, no poupou intensivas aes para, mais tarde, se elevar categoria de arte. Se olharmos retroativamente para esse perodo, vamos verificar um expressivo desenvolvimento dessa lin-guagem visual de fixa a movimento atravs do cinema, da televiso e do vdeo, o que mais tarde vai contribuir acentuadamente para um dos maiores saltos do sculo XX, a introduo de equipamentos digitais, de alta tecnologia, nas artes visuais.

    Como elucida Santaella (2007), as linguagens transformaram-se de fixas a lquidas e escorrem sem que haja quaisquer hierarquias de espao e tempo. Nesse sentido, no de se estranhar o entrelaamento dessa ocorrncia nas artes visuais e a comunicao cada vez mais estreita entre as artes e toda essa nova concepo de mundo fragmentado. E no toa que a enunciao da morte da pintura e da arte tenha sido, de certa forma, constante, durante todo o sculo XX. Junto s vanguardas modernistas, outras prticas visuais, inquietas, representavam um mundo dividido entre o progresso industrial, a cincia e as guerras, onde a arte se apresenta como um fruto desse contexto. Assim, quando falamos de perodos, como modernidade, contemporaneidade etc., devemos antes de tudo entender

  • Um encontro com o admirvel19

    como a arte se move em um mundo constantemente em transformao, como esse, o que traz alguns questionamentos, sendo o principal deles: seu lugar nesse cenrio.

    Antes de avanarmos, porm, creio que, inicialmente, seja oportuno descrever sucintamente como se deu esse desenvolvimento, dando algum destaque aos antecedentes, pois se, por um lado, a imagem passou a habitar quaisquer tipos de espaos, contribuindo para uma sociedade global, onde a comunicao pode ser feita em tempo real, e sem fronteiras, em quase todos os cantos do planeta, por outro lado, h de se destacar que esse processo tecnolgico no interrompe a atrao dos artistas pela matria e certos elementos, carregados de significados simples o artesanal, o fazer, a presena da mo, o gesto, o homem e seu entorno , onde o rural e o urbano se encontram. Vejamos como Roland Barthes (1979, p. 11), aborda esse assunto:

    Os materiais so a matria-prima, como para os alquimistas. A matria-prima o que existe anteriormente diviso operada pelo sentido: um paradoxo enorme, porque, na ordem humana, nada chega ao homem que no seja imediatamente acompanhado de um sentido, o sentido que os outros homens lhe deram, e assim sucessivamente, em um infinito regresso. (traduo nossa)

    Tendo a matria como fio condutor, esta pesquisa se desenvolveu no mbito desse entendimento. Partimos do princpio de que esse termo abrange todos os possveis suportes sensveis da concretizao da ideia do artista, visto que as artes visuais do forma a sentimentos e ideias. A palavra forma neste contexto significa possibilitar, um meio para se apresentar, que vai desde os materiais considerados artsticos, passando por quaisquer outros elementos, objetos construdos artesanalmente ou apropriados imagem, variando em suas caractersticas, que se entrelaam a conceitos e estratgias, como apropriao, auto e/ou biografia do artista, desconstruo, desmaterializao, feminismo, hibridizao, multiculturalis-

  • 20PaisagensSgnicas

    mo, pluralismo etc., deixando sempre o registro do pensamento humano de uma poca e de sua cultura identitria.

    Assim, para entender melhor esse processo, foi necessrio aprofundar conhecimentos na rea da semitica. Ao iniciarmos este estudo, logo verificamos a impossibilidade de desmembrar as cincias que fazem parte da arquitetura filosfica de Charles Sanders Peirce. Impossvel tambm no se encantar com as suas sutilezas, da fenomenologia ao pragmatismo, passando pela esttica, a tica, a lgica ou semitica e a metafsica. Todavia, era necessrio aplicar estas teorias ao nosso objeto de pesquisa. Mais uma vez entendemos que, no sendo a semitica um mtodo, nem as outras cincias mencionadas, essa interao (substituindo a palavra aplicar) teria de ser estabelecida atravs da essncia do pensamento peirciano, que, no obstante ser filosfico, , sobretudo, lgico.

    Um dos elementos propulsores dessa interao deu-se de forma espontnea e progressiva, ou seja, ao passo em que se avanava no co-nhecimento da filosofia peirciana como um todo, o entendimento sobre a matria, como parte da obra em si, foi se desfazendo. Logo a separao entre materiais, espao, tempo, representao, real etc. descortinou-se como um processo semitico, prprio do conceito peirciano de signo, como algo que cresce, gera novos signos, novos conhecimentos, e rompe com limites e dicotomias, tais como corpo versus mente. Ao pensar em qualquer parte constituinte da obra, todos os componentes de sua estrutura, desde os primeiros insights ao objeto finalizado, so indissociveis.

    Portanto, o carter fundamental desta pesquisa relaciona-se ao en-contro com a filosofia de Charles Sanders Peirce, durante o processo de investigao, indo muito mais alm de um simples entendimento dos signos. Esta perspectiva nos oferece uma nova viso de mundo, das coisas ao nosso redor, do nosso comportamento frente ao outro, atravs de conceitos contemporneos hoje aplicados em todas as reas do conhecimento hu-mano. Sendo um pensamento lgico, sem psicologismos nem subjetividade, podemos entender a arte a partir de suas prprias caractersticas, ou seja, a partir da classificao de um signo icnico, daquilo que primo, livre, e que retorna sempre a si mesmo.

  • Um encontro com o admirvel21

    Alm da semitica, o conceito peirciano de esttica, como sendo o que admirvel, tambm afasta as discusses subjetivas sobre o que e o que no belo. Ao sabor dessas teorias, podemos ver a arte como um jogo semitico e esttico, um ir e vir, uma necessidade de conhecer o que nos aparece, e a flexibilidade de pensar, que desperta um encantamento, pela possibilidade de entender o processo de crescimento do signo. E por meio de seu conceito de hbito, Peirce nos leva a reconhecer um dos mais difceis e ao mesmo tempo o mais nobre de todos: o hbito esttico.

    Segundo Santaella (2000a, p. 189), na metafsica de Peirce:

    Ele viria a ligar a razo com o agapismo, a lei do amor evolutivo. O amor como o sentimento que d ocasio para a razo se cor-porificar. assim que um cientista se apaixona por uma idia, uma tenra idia, ainda sem fora, que ele passa a cultivar, a cuidar dela como cuidamos de flores, sem nenhuma outra expectativa a no ser a de que elas nos respondam com vida.

    A partir desse encontro com a filosofia de Peirce, percorremos os ndices de contemporaneidade nas artes visuais com um olhar mais agu-ado, com paradas substanciais, e o que antes era apenas uma questo de matria, tornou-se espao, tempo, corpo, natureza; ns e ao mesmo tempo o outro em ns. A cidade, os lugares, nada se exclui, tudo se constitui em um processo contnuo de multiplicao.

    Essa viso nos levou a reflexes sobre o lugar da arte na contemporanei-dade, e novas fontes emergiram ao longo desse processo. Nesse percurso, em busca de ndices de contemporaneidade, identificamos a representao como um dos principais conceitos da arte: o prprio signo.

    A partir de ento, foi se delineando um panorama que se inicia com a crise da representao na pintura, no final do sculo XIX, o que coincide com a paisagem (landscape), passando, posteriormente, para outros cam-pos epistemolgicos, como espaos sgnicos ampliando-se no seu sentido epistemolgico, ontolgico, terico, formal, esttico e potico.

  • 22PaisagensSgnicas

    Nos meandros desse trajeto, vislumbramos o corpus investigativo conceitual, o que nos fez perseguir o caminho apontado pela bibliografia pesquisada. Com o objetivo de verificar os diversos meios mais repre-sentativos das prticas visuais, percorremos os conceitos e teorias atravs de obras de artistas que marcaram essa poca, e que, coincidentemente, apontavam para o tema natureza, paisagem. Quanto s questes sobre o lugar da arte, do final do sculo XIX at o incio deste milnio, deparamo-nos com espaos labirnticos e sgnicos, os quais foram divididos em trs momentos (paradigmticos), a saber:

    A crise da representao (final do sculo XIX), provocada 1. pelo advento da fotografia; o Abstracionismo e as vanguardas modernistas;A desmaterializao do objeto arte (final da dcada de 1960), mais 2. especificamente a desconstruo da representao;E por ltimo, o perodo pluralista (final do sculo XX at a nossa atua-3. lidade) com o retorno da pintura e das tcnicas ditas tradicionais (escul-tura, desenho, fotografia), o que denominamos de rememorao.

    Atravs desses momentos, foi possvel delinear um contexto que estreia com a crise da representao, ilustrada nas ltimas pinturas de Vincent van Gogh Campos de trigo com corvos; a desconstruo do objeto arte, a partir do final dos anos 1960, exemplificada na obra de Agnes Denes Campos de Trigo uma confrontao, pela qual possvel refletir sobre a representao dos Campos de trigo com corvos de Van Gogh e um campo de trigo real; e, por ltimo, conclumos a pesquisa dando um destaque especial homenagem visual que o artista alemo Anselm Kiefer presta a Vincent van Gogh, atravs de Campos de Girassis, o que denominamos de rememorao.

    Um olhar retroativo aos principais ndices que marcaram a virada do sculo XIX para o sculo XX, depois de mais de um sculo em busca de materiais e suportes diversos para expressar as ideias dos artistas, o sculo XXI surge como um perodo sem crise. Um perodo, denominado por Danto (1998), de ps-histrico ou pluralista, ou seja, um perodo em

  • Um encontro com o admirvel23

    que o artista pode fazer tudo pintura, escultura, desenho, gravura e fotografia com seus meios e materiais tradicionais, juntamente a quaisquer prticas visuais.

    E a natureza? Foi atravs de Peirce que chegamos filosofia da natu-reza, de Schelling (2001a), ao conceito de admirvel, que remonta aos pensadores pr-socrticos, e pode ser notadamente visto a partir dos anos 1960, na Earth Art, at os dias atuais. Mas esse retorno o que Andrew Benjamin (1991), denomina de lgica do again and anew, e, para melhor explicarmos esse termo, dedicamos um espao para defini-lo melhor, visto que ele nos levou ao encontro do termo rememorao.

    De acordo com Donald Kuspit (1993, p. 143), se a arte tentou imitar a natureza, depois de mais de um sculo, a natureza tornou-se um efeito artstico, uma fico alcanada apenas atravs da manipulao de certo gnero de representao. O natural no mais algo que nos dado incon-dicionalmente, como ponto de partida para informar quaisquer abstraes dele, mas, ao contrrio, um fim para o qual algum tem que regressar, sem a certeza de que ser possvel alcan-lo. A natureza no mais um critrio autenticador da arte, mas um efeito desejado e inesperado, e talvez a nica esperana para uma autoinovao num mundo onde o ser tornou-se abstrato e dispensvel. Essa dimenso define as novas maneiras de ver e conceber um mundo at ento representado como se fosse o real.

    Devido complexidade da arte e da sua construo, que possui inter-faces com diversas reas do conhecimento, seria impossvel abordar todos os aspectos que envolvem esse processo. Pelo fato de no ser historiadora nem crtica de arte, mas pesquisadora dos meios pelos quais a arte con-tempornea vem sendo construda, a histria e a teoria da arte, bem como a filosofia e a esttica so estudadas com propsitos especficos.

    Cabe, portanto, ressaltar que as informaes contidas neste livro no possuem nenhum intento de aprofundamento vertical das reas acima mencionadas, mas, sobretudo, realizar um estudo, em alicerces transdisci-plinares, e cujo eixo central est na semitica da natureza da arte, ou seja: como as ideias dos artistas so (i)materializadas.

  • 24PaisagensSgnicas

    Dado o argumento, espero que este livro possa contribuir de uma forma efetiva para reflexes sobre a arte, reflexes que permitam caminhar pela histria da humanidade, sempre e cada vez com um novo olhar, ou como a prpria etimologia da palavra filosofia na Grcia antiga nos indica: por amor ao saber.

  • 2UMA REFLEXO SOBRE A FILOSOFIA DE C. S. PEIRCE

    O real aquilo que no o que eventualmente dele pen-samos, mas que permanece no afetado pelo que dele possamos pensar.Charles S. Pierce, Collected Papers1 (8.12)2

    Charles Sanders Peirce (1839-1914), cientista, matemtico, historiador, fi-lsofo e lgico, graduou-se com louvor pela Universidade de Harvard em

    1Collected Papers so manuscritos de estudos peircianos, ao todo somam 90 mil, que se encontram sob os cuidados do Departamento de Filosofia da Universidade de Harvard. Esta universidade publicou, em 1931-35 e 1958, os seguintes volumes: I Princpios da Filosofia; II Elementos de Lgica; III Lgica Exata; IV A mais simples Matemtica; V Pragmatismo e Pragmaticismo; VI Cincia Metafsica; VII Cincia e Filosofia; e VIII Comentrios, Correspondncia e Bibliografia. Disponvel em: . Acesso em: 2007. 2 Usaremos a referncia CP para indicar Collected Papers de Charles Sanders Peirce, por exemplo CP 3.362, o primeiro nmero corresponde ao volume e os demais ao pargrafo.

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    qumica, alm de ter dado contribuies influentes nos campos da geodsia, biologia, psicologia, matemtica, filosofia etc. Peirce fazia parte do grupo de intelectuais e filsofos de relevncia desse perodo, dentre eles: William James, Henry James, John Dewey, Gottlob Frege, Bertrand Russell etc.

    Santaella ressalta em vrios dos seus livros a grandiosa obra de Peirce. Primeiramente, em O que semitica, essa autora o considera um Leonardo das cincias modernas (SANTAELLA, 1983, p. 19); em Matrizes da linguagem e do pensamento, sonora, visual, verbal, observa que Peirce deixou nada menos do que 12 mil pginas publicadas e 90 mil pginas de manuscritos inditos. Os manuscritos foram depositados na Universidade de Harvard [...]. (SANTAELLA, 2001, p. 6) Apenas vinte anos mais tarde, na dcada de 1930, surgiria a primeira publicao de textos coligidos nos seis volumes dos Collected Papers, editados por Hartshorne e Weiss. Infelizmente, grande parte dos textos a reunidos restringiu-se a escritos que Peirce j publicara em vida. Santaella (2000a, p. 111) reafirma que: A obra de Peirce ocenica, de uma imensido tamanha que seus limites se perdem de vista [...]. Do mesmo modo, Ivo Ibri (1992, p. xiii), compara a obra de Peirce [...] em volume de Leibniz [...].

    Desse modo, a anlise que ora apresentamos visa introduzir sucinta-mente alguns dos principais conceitos da filosofia peirciana, os quais devem ser entendidos como um apndice complementar ao assunto desenvolvido neste livro. E como Peirce no teve a oportunidade de documentar sua valiosa obra, as informaes a que tivemos acesso devem-se, portanto, ao grupo de schollars que vm se dedicando organizao, pesquisa e traduo dos manuscritos deixados por esse grande pensador, mais especificamente por Lucia Santaella, Ivo Ibri e Winfried Nth.

    A partir da diversidade existente, podemos, portanto, dizer que Peirce construiu um trabalho labirntico, no qual o pesquisador tem que se deixar levar pelos meandros do material para decifrar onde comea e termina cada parte. Por conseguinte, qualquer afirmao ou interpretao que fuja devida concepo dos seus conceitos pode se tornar um enorme equvoco. Desse modo, vamos buscar oferecer apenas concisas e precisas

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    informaes, sem perder de vista o nosso foco principal, com o cuidado e o devido respeito que sua obra requer.

    Em Esttica: de Plato a Peirce, Santaella (2000a, p. 113) apresenta o quadro desenhado por Peirce que, de acordo com sua concepo pragmatista das cincias, o significado de cada cincia s aparece na rede de inter-relaes que ela entretm com as demais.

    FILOSOFIA1. Fenomenologia2. Cincias Normativas 2.1. Esttica 2.2. tica 2.3. Lgica ou Semitica2.3.1. Gramtica Pura2.3.2. Lgica Crtica2.3.3. Metodutica3. Metafsica.

    A partir desse diagrama, podemos verificar que a primeira cincia que aparece na sua filosofia a fenomenologia, seguida das cincias normativas. Assim sendo, a esttica, a tica e a lgica ou semitica so concebidas como cincias no campo da filosofia. De acordo com Santaella (2000a, p. 113-114):

    Para Peirce, a filosofia em geral tem por tarefa descobrir o que verdadeiro, limitando-se, porm, verdade que pode ser inferida da experincia comum que est aberta a todo ser humano a qualquer tempo e hora. A primeira e talvez mais difcil tarefa que a filosofia tem de enfrentar a de dar luz s categorias mais universais da experincia. Essa tarefa da alada da fenomenologia, uma quase cincia que tem por funo fornecer o fundamento observacional para o restante das disciplinas filosficas. As cincias normativas so assim chamadas porque esto voltadas para a compreenso

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    dos fins, das normas e ideais que regem o sentimento, a conduta e o pensamento humanos. Elas no estudam os fenmenos tal como aparecem, quer dizer, na sua aparncia, pois essa a funo da fenomenologia, mas os estudam na medida em que podemos agir sobre eles e eles sobre ns. Elas esto voltadas, assim, para o modo geral para o qual o ser humano, se for agir deliberadamente e sob autocontrole, deve responder aos apelos da experincia. Usando os princpios da lgica, a metafsica investiga o que real, na medida em que esse real pode ser averiguado na experincia comum. dela a tarefa de fazer a mediao entre a fenomenologia e as cincias normativas, desenvolvendo uma teoria da realidade.

    Fenomenologia

    Como podemos observar, na citao acima, a fenomenologia est em pri-meiro lugar, dada a importncia que essa cincia desempenha. A esttica, Peirce associa s cincias normativas, que descobrem leis que relacionam os fins aos sentimentos [...] ao, no caso da tica, e ao pensamento, na lgica. (SANTAELLA, 2000a, p. 141-142) J o papel da fenomenologia proporcionar o fundamento de observao lgica e metafsica, posto que elas esto relacionadas experincia com o que se exterioriza, ou seja, como o ser humano vai reagir diante do real, o que, por sua vez, se d por meio da mediao de signos. percepo interessa tudo aquilo que est no aqui e agora, nos diz Peirce, mas s percebemos aquilo que estamos equipados para interpretar. (SANTAELLA, 2000a, p. 52) A definio do termo perceber e todos os demais conceitos da obra de Peirce possuem uma ordem lgica e no podem ser tratados independentemente de outros conceitos. Perceber algo no requer apenas ver, mas estar diante de algo que se apresenta como um todo, que deve ser apreendido atravs de todos os sentidos, tanto do sensorial como do cognitivo. Assim que a filosofia peirciana entende a realidade fenomenologicamente, ou seja, o real tudo aquilo que se exterioriza, que aparece e se coloca

  • Uma reflexo sobre a filosofia de C. S. Peirce29

    experincia, por meio de trs categorias denominadas de primeiridade, segundidade e terceiridade.

    No artigo Sobre uma nova lista de categorias (1867), Peirce apresenta suas trs categorias universais, incluindo tudo que nos afeta, seja fisicamen-te, seja emocionalmente e intelectualmente, ou o que vemos, percebemos e apreendemos. Ao dividir todas essas propriedades em gradaes, elas obedecem a um sistema composto de trs elementos formais de toda e qualquer experincia, categorias denominadas de qualidade, relao e representao. Mais tarde, Peirce substituiu o termo relao por rea-o, e o termo representao por mediao, o que veio a se tornar cientificamente em primeiridade, segundidade e terceiridade. Santaella (1983), descreve as categorias de Peirce com uma srie de exemplos que ilustram os conceitos desse filsofo. Vejamos ento, nas consideraes que se seguem, os principais conceitos luz dessa autora.

    Primeiridade a qualidade da conscincia imediata; uma impresso (sentimento) in totum, invisvel, no analisvel, frgil. Tudo que est ime-diatamente presente conscincia de algum tudo aquilo que est na sua mente no instante presente. O sentimento como qualidade , portanto, aquilo que d sabor, tom, matiz nossa conscincia imediata, aquilo que se oculta ao nosso pensamento. A qualidade da conscincia, na sua imediati-cidade, to tenra que mal podemos toc-la sem estrag-la. A secundidade a arena da existncia cotidiana, estamos continuamente esbarrando em fatos que nos so externos, tropeando em obstculos, coisas reais, factivas, que no cedem ao sabor de nossas fantasias. O simples fato de estarmos vivos, existindo, significa, a todo momento, que estamos reagindo em relao ao mundo. Existir sentir a ao de fatos externos resistindo nossa vontade, estar numa relao, tomar um lugar na infinita mirade das determinaes do universo, resistir e reagir, ocupar um tempo e espaos particulares. Onde quer que haja um fenmeno, h uma qualidade, isto , sua primeiridade. Mas a qualidade apenas uma parte do fenmeno, visto que, para existir, a qualidade tem que estar encarnada numa matria. O fato de existir est nessa corporificao material. A terceiridade, a ltima das categorias, a camada de inteligibilidade, ou pensamento em signos,

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    atravs da qual representamos e interpretamos o mundo. Por exemplo: O azul, simples e positivo azul, o primeiro. O cu, como lugar e tempo, aqui e agora, onde se encarna o azul um segundo. A sntese intelectual e laborao cognitiva o azul no cu, ou o azul do cu um terceiro. (SANTAELLA, 1983, p. 51)

    Por sua vez, Ivo Ibri (1992, p. 5), com o intuito de reforar o pensamento de Peirce para inserir as trs categorias que servem de apoio fenome-nologia, nos informa que:

    As faculdades que devemos nos esforar por reunir para este tra-balho so trs. A primeira e a principal aquela rara faculdade, a faculdade de ver o que est diante dos nossos olhos, tal como se apresenta sem qualquer interpretao.[...] Esta a faculdade do artista que v, por exemplo, as cores aparentes da natureza como elas se apresentam.

    A concepo epistemolgica peirciana das trs categorias tem um des-taque especial na primeiridade, na contemplao, onde o ato de perceber requer um tipo de integrao com o que est sendo visto de tal forma que, conforme Peirce:

    Ao contemplar uma pintura, h um momento em que perdemos a conscincia do fato de que ela no uma coisa. A distino do real e da cpia desaparece e por alguns momentos puro sonho; no qualquer existncia particular e ainda no existncia geral. Nesse momento, estamos contemplando um cone. (CP 3.362)

    Considerando essas trs categorias, Ibri (1992, p. 6) as resume como ver, atentar para e generalizar, despindo a observao de recursos es-senciais de cunho mediativo. A fenomenologia, muito embora aparea como a primeira cincia no diagrama de Peirce, corresponde categoria da segundidade, visto que:

  • Uma reflexo sobre a filosofia de C. S. Peirce31

    No fenmeno, surge a idia de outro, de alter, de alteridade; com ela aparece a idia de negao, a partir da idia elementar de que as coisas no so o que queremos que sejam, tampouco so estatudas pelas nossas concepes. [...] Esta experincia de reao envolvendo negao adjetivada de bruta por Peirce, pois traz de modo direto a fora de um segundo, caracterizado por ser esta coisa e no aquela. A experincia direta com isto que no aquilo se d num recorte do espao e do tempo, traando os contornos deste objeto, que forado e reage contra a conscincia como algo individual. (IBRI, 1992, p. 7)

    Durante o processo de experincia que inclui as categorias, Santaella (2000a, p. 116) explica que a fenomenologia peirciana realiza a proeza de integrar o geral no particular, o concreto no abstrato, dentro de uma lgica ternria que no busca se livrar do fato bruto, de um lado, alm de incluir o acaso, do outro. J a categoria da terceiridade foi concebida por Peirce para colocar a experincia fenomenolgica em processo de continuidade, ad infinitum, do continuum. nessa categoria que, conforme nos informa Peirce (apud IBRI, 1992, p. 14), existe a conscincia sinttica, ligao com o tempo, sentido de aprendizagem. [...] Da natureza do conceito e do pensamento, o elemento cognitivo deve ser geral e ter o estatuto de representao. A partir desse raciocnio onde quer que a Mediao seja predominante e que encontre sua plenitude na Representao, Terceiridade, como eu uso o termo, apenas um sinnimo para Representao (IBRI, 1992, p.15), sendo, portanto, todos esses conceitos (mediao, pensamento, cognio etc.) fenomnicos.

    Santaella (2000b, p. 50-51) discorre sobre a trade perceptiva, da seguinte maneira:

    Peirce chega a uma posio dialtica ou esquema tridico (como no poderia deixar de ser), que determina trs e no apenas dois ingredientes de toda e qualquer percepo: o percepto, o percipuum e o julgamento perceptivo. [...] Perceber perceber algo externo a ns. Mas no podemos dizer nada sobre aquilo que externo, a

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    no ser pela mediao de um julgamento perceptivo. Aquilo que est fora, Peirce denomina percepto, aquilo que nos diz o que ns percebemos o julgamento perceptivo.

    Por percepto, Santaella (2000b, p. 53) define tudo aquilo que se apresenta, e que percebemos, e isso nos chega apreendido num ato de percepo, algo que est fora de ns e de nosso controle; o percepto tem realidade prpria no mundo que est fora de nossa conscincia, e que apreendido pela conscincia no ato perceptivo. O percipuum (objeto imediato da percepo) faz o percepto (objeto dinmico da percepo) se conformar a uma determinada configurao. Por ltimo, o juzo perceptivo o julgamento de percepo ou juzo perceptivo que vai nos dizer o que estamos interpretando; este ltimo que nos diz algo sobre o que percebido.

    Esttica

    Como nos diz Santaella (2000a, p. 188-189), [...] Peirce foi buscar no kals grego, algo que toda alma vagamente deseja e muito mais vagamente percebe um ideal admirvel, tendo a nica forma de excelncia que uma idia desse tipo pode ter: a excelncia esttica.

    A noo de esttica vem da Grcia, quando esse termo estava associa-do relao do homem com a natureza. Somente a partir de meados do sculo XVIII, aproximadamente nos anos de 1750, a esttica aparece como cincia atravs de Alexander Gottlieb Baumgarten. Diante do exposto, no deve causar nenhum estranhamento o significado atribudo por Peirce a esse termo admirabilidade , ideal, como vamos verificar em Santaella (2000a, p. 13):

    Peirce no deixou nenhum tratado sobre esttica. Mas, no obs-tante tenha, quando jovem, estudado, com muito cuidado e paixo, as cartas Sobre a Educao Esttica da Humanidade de Johann

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    Christoph Friedrich von Schiller (1759 1805), e fosse um grande conhecedor da obra de Kant, no obstante tivesse um grande in-teresse pelas artes. [...] Mas, sobretudo a partir de 1900, a Esttica passou a ocupar um lugar proeminente na arquitetura filosfica de Peirce a um tal ponto que, sem a compreenso aprofundada do papel fundamental por ela desempenhado como alicerce da tica e, por extenso, da lgica ou semitica, no possvel entender o seu segundo pragmatismo.

    Sendo a primeira das cincias normativas, Santaella (2000a, p. 114) sublinha que na esttica peirciana o ideal esttico nutrido pelo cultivo de hbitos de sentimentos. Sendo as obras de arte aquelas coisas que encarnam qualidades de sentimento, os hbitos de sentimento s podem ser cultivados atravs da exposio de nossa sensibilidade s obras de arte.

    Quando Peirce afirma ser a esttica, juntamente com a tica e a lgica, responsveis pela busca de um ideal admirvel o que ele queria dizer com isso? Vejamos o que Santaella (2000a, p. 127) nos descreve:

    O admirvel por si s pode ser uma natureza esttica. S qualidades, reino da Esttica, so admirveis sem exigir explicaes. O estado de coisas admirveis no pode, assim, ser determinado aporiticamente; uma meta ou ideal que descobrimos porque nos sentimos atrados por ele como tal, e nele ficamos emanados, empenhando-nos na sua realizao concreta.

    Tais consideraes nos levam a entender que a esttica uma cincia voltada para o conhecimento e o crescimento; portanto, as artes devem ser compreendidas na filosofia peirciana dessa maneira. Tanto assim, que

    as obras de arte no so apenas ambguas encarnaes de qualidades e sentimentos, mas formas de sabedoria, de um tipo em que convida a razo a se integrar ludicamente ao sentir. (SANTAELLA, 2000a, p. 150) So elas que enchem de prazer esttico tanto o artista, poetas e escritores, como aos que as apreendem com todos os seus sentidos.

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    Todavia, de acordo com Santaella (2000a, p. 182), nada pode haver de mais vago, incerto, indeterminado e impreciso do que qualidades de sen-timento. A obra de arte seria aquela instncia semitica muito rara, capaz de realizar a proeza de dar corpo e forma ao incerto e indeterminado.

    De acordo com esta autora, para Peirce, nenhum cone representa nada alm de forma, nenhuma forma pura representada por nada a no ser um cone [...] pois, em preciso de discurso, cones nada podem representar alm de formas e sentimentos, mas, ao mesmo tempo [...], o cone [...] , no entanto, o mais revelador, porque na sua ambigidade capaz de flagrar o cerne da realidade, l onde o ambguo e o indeterminado fazem sua morada. (SANTAELLA, 2000a, p. 184-185)

    Santaella (2000a, p. 180-181) nos informa que Jorge Luis Borges apre-sentou passagens admirveis, observando que:

    A msica, os estados de felicidade, a mitologia, as cores trabalhadas pelo tempo, certos crepsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou disseram algo que no deveramos ter perdido, ou ento para dizer algo, esta iminncia de revelao, que no se produz, , talvez, o fato esttico. Foi isso o que sempre ensinei, limitando-me ao fato esttico, que no pode ser coisa de definio. O fato esttico algo to evidente, imediato e indefinvel quanto o amor, o gosto da fruta, a gua.

    O prazer esttico luz desses estudiosos tem um significado especial; um sentimento que possui um continuum e visa atingir um ideal: gerar hbitos, comunho de pensamento, aprendizado e conhecimento, algo que no pode ser aplicado indeterminadamente a qualquer tipo de arte. Santaella (2000a, p. 34) mais uma vez nos diz que em um lindo ensaio sobre Beleza e Imitao, Jacques Maritain comps o belo de Santo Toms numa orquestrao potica que merece ser ouvida[...], pois:

    O belo que d alegria, no qualquer alegria, mas alegria no conhe-cimento; no na alegria peculiar do ato de conhecimento, mas uma

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    alegria super abundante, extrapolada. Se algo exalta e delicia a alma pelo simples fato de ser achado na intuio da alma, bom de ser apreendido, belo. A beleza essencialmente o objeto de inteligncia, pois o que conhece, no pleno sentido da palavra, a mente. Apenas ela aberta para a infinitude do ser. [...] O belo se relaciona viso e audio entre todos os sentidos porque esses dois so mxima cognoscitiva. [...] O belo conatural ao homem aquele que vem dedicar alma atravs dos sentidos e suas intuies. Esse tambm o belo particular de nossa arte que trabalha sobre uma matria sensvel para o paraso terrestre, porque restaura, por um breve momento, a paz simultnea e a delcia da mente e dos sentidos.

    tica

    A tica determina a lgica atravs da anlise dos fins aos quais esses meios se dirigem; a esttica determina a tica ao definir qual a natureza de um fim que seja em si mesmo admirvel e desejvel em quaisquer circuns-tncias, independentemente de qualquer outra espcie de considerao. Em Peirce (2005), a tica e a lgica so subsidirias da esttica, visto que a tica recebe seus princpios bsicos da esttica. Assim, a ao deve ser baseada em atos admirveis (e, portanto, controlados por esse princpio), remetendo mais uma vez ao summum bonum.

    Nas palavras de Peirce (CP 2.199), possvel ter uma noo mais adequada dessa associao entre a tica, a esttica e a lgica. Vejamos:

    [...] para apresentar a questo da esttica em sua pureza, devemos eliminar dela no apenas todas as consideraes acerca de esforo, mas todas as consideraes sobre ao e reao, incluindo toda considerao acerca da nossa recepo do prazer, tudo, em sn-tese, que pertena oposio entre ego e no-ego. No temos em nossa lngua uma palavra com a generalidade requisitada. O grego kals, o francs beau apenas se aproximam, sem atingi-la

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    exatamente na cabea. Fine seria uma pobre substituta. Belo mau, porque um modo de ser kals depende essencialmente da qualidade ser no-bela. Talvez, contudo, a frase o belo do no belo no fosse ofensiva. Mas beleza muito superficial ainda. Usando-se kals, a questo da esttica : Qual aquela qualidade que, na sua presena imediata, kals? Desta questo, a tica deve depender, assim como a lgica deve depender da tica. A esttica, portanto, embora eu a tenha negligenciado terrivelmente, aparece possivelmente como a primeira propedutica indispensvel para a lgica, e a lgica da esttica constitui uma parte distinta da cincia lgica que no deve ser omitida.

    Lgica ou Semitica

    A semitica concebida por Peirce, que tem sua origem durante o perodo correspondente ao final do sculo XIX e incio do sculo XX, conside-rada uma cincia dentro de uma obra filosfica arquitetnica, conforme ilustrado atravs do quadro elaborado por esse filsofo, j apresentado. Santaella (1983, p. 7) assinala que o termo semitica vem da raiz grega semeion, que quer dizer signo. Devido sua constituio e sendo por definio a cincia que estuda todos os tipos de signo , a semitica pode ser aplicada amplamente em estudos de vrias reas. Conforme a referida autora, semitica a cincia que tem por objeto de investigao todas as linguagens possveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos modos de constituio de todo e qualquer fenmeno de produo de significao e de sentido. (SANTAELLA, 1983, p. 13)

    Vamos encontrar outras definies em Nth (1995a, p. 19), que assegura que a semitica a cincia dos signos e dos processos significativos (semio-se) na natureza e na cultura, o que vem reforar o nosso entendimento de que dentro dessa ampla possibilidade de abrangncia, encontram-se as artes visuais, que, por serem uma linguagem no-verbal e tambm signo, podem ser analisadas atravs dessa cincia e dos seus meios de representao.

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    Contudo, esse termo mais recente do que suas primeiras aplicaes, as quais estavam implicadas nos conceitos da filosofia da Grcia antiga. Ainda de acordo com Nth (1995a, p. 19-20), o mdico grego Galeno de Prgamo (139-199), por exemplo, referiu-se diagnstica como sendo a parte semitica (semeiotikn mros) da medicina [, e, assim como John Locke,] postulou uma doutrina dos signos com o nome de Semeiotik, [e, no sculo XVII, em 1764, Johann H. Lambert escreveu] um tratado especfico intitulado Semiotik. No sculo XX, logo aps os meados da dcada de 1960, o estudo desta cincia foi retomado por Thomas Sebeok. Portanto, de Saussure a Peirce, o signo entendido por meio de diferentes definies.

    Segundo Santaella e Nth (1997, p. 24), tanto Saussure quanto Hejelmslev fundaram a tradio do signo concebido a partir de um paradigma lingstico e suas concepes se caracterizavam como uma semitica didica, do mesmo modo como se caracterizam os semioticistas da Escola de Moscou e Tartu. Somente mais tarde, na dcada de 1970, em decorrncia da traduo para o ingls das obras da escola de Moscou, Tartu e do Crculo de Bakhtin, foi que os estudos da semitica direcionaram-se para a cultura em geral. (SANTAELLA e NTH, 1997, p. 79)

    No obstante a obra de Charles Peirce ter sido criada anteriormente a esses semioticistas j mencionados, s na dcada de 1970 que a se-mitica peirciana foi divulgada graas a Roman Jakobson, que mostrou a importncia da rica herana e do amplo domnio de pesquisa semitica deixada por Charles Sanders Peirce [...] para o estudo dos mais diversos processos de signos. (SANTAELLA e NTH, 1997, p. 79) Continuando suas observaes e concluindo com as informaes sobre a parte histrica, esses autores ainda esclarecem que:

    Assim como a comunicao, tambm os signos, isto , a produo de trocas simblicas sempre existiu e so fatores de constituio da prpria condio humana. Por isso mesmo, a semitica, mesmo que nem sempre com esse nome, enquanto reflexo sobre a linguagem e seus sentidos, teve suas origens j no mundo grego e atravessou, com caractersticas prprias de sua poca, toda a histria humana desde ento. (SANTAELLA e NTH, 1997, p. 24)

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    Ressaltamos que a trade semitica envolve dois tipos de relaes: determinao e representao. As relaes de representao dependem das relaes de determinao, pelo fato de a representao somente poder ocorrer atravs de uma determinao provocada pela mediao. Assim, a semitica ocupa-se do estudo do processo de significao, ou seja, pelos meios da representao, de uma forma ampla e geral, no obstante, neste livro, nosso eixo ser a representao nas artes visuais.

    Signo

    Muito embora diversos sejam os significados do signo, preciso alguns esclarecimentos bsicos sobre sua definio. Para Peirce (2005, p. 46), um

    signo aquilo que sob determinado aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para algum. Desse ponto de vista, todo pensamento signo, incluindo a natureza, todos os seres naturais, as ideias, os sentimentos, assim como o prprio homem. Para Santaella (2000b, p. 12):

    Signo ou representamen aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para algum. Dirige-se a algum, isto , cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto no em todos os seus aspectos, mas com referncia a um tipo de idia que eu, por vezes, denominei funda-mento do representamen.

    Na teoria dos signos, signo ou representamen o primeiro que est em relao de representao para um segundo o objeto , para fins de sua significao em um terceiro, seu interpretante. A noo peirciana de signo consiste, portanto, nessa relao tridica: signo-objeto-interpretante, uma relao tambm denominada de semiose que, pode ser conside-

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    rada como sinnimo de inteligncia, continuidade, crescimento e vida. (SANTAELLA e NTH, 2004, p. 157) Ora, se um signo tem a inteno de representar um objeto (ou partes dele) atravs da mediao de um signo entre um objeto dinmico e um interpretante final, nas artes visuais podemos ilustrar essas definies a partir de qualidades, prprias da categoria da primeiridade, isto , sensao provocada pelas cores, pelas formas, textura etc. Nesse caso, o signo da pintura, em princpio, so essas qualidades. Outro exemplo nos dado, por Santaella e Nth (2004, p. 198), sobre o conceito de representao:

    A semitica peirciana uma teoria complexa e multifacetada da re-presentao. Esta apresenta variantes como apresentao, a quase-representao at o limite da presentificao. [...] Os conceitos de representao de mediao esto carregados de implicaes filosficas, [...] por representar o objeto que o signo pode cumprir a funo mediadora.

    Desde o incio de suas pesquisas sobre o signo, onde se debruou intensamente por toda a sua vida, Peirce concebeu trs tricotomias, a saber: a primeira, relacionada natureza material do signo, ou seja, uma relao de pura qualidade, de sensaes, de singularidade, de liberdade, na qual se encontra a arte, um signo que encerra qualidades. Nessa relao no h um segundo, uma alteridade como efeito bruto. Porm, h de se considerar que existe um diferente tipo de objeto, que pode ser qualquer coisa, como sentimentos, emoes, ideias do artista etc. Ento, devemos entender que esse objeto est representado no quali-signo, ou seja, o representamen, como quali-signo o ponto principal da semiose artstica. Nesse aspecto, um signo pode ser um quali-signo, um sin-signo ou um legi-signo. Na segunda, existe uma relao do signo com seu objeto, podendo o signo ser cone, ndice ou smbolo, e por ltimo, a terceira, que relaciona o signo ao seu interpretante, em cuja relao o signo pode ser um rema, um dicente ou um argumento.

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    Face s consideraes enunciadas, as divises do signo, portanto, se estabelecem como as mais conhecidas das trades formuladas por Peirce e descritas por Santaella (2000b, p. 92), a saber:

    Ao signo em si mesmo (quali-signo, sin-signo, legi-signo), relao do signo com o objeto dinmico (cone, ndice, smbolo), e relao do signo com seu interpretante (rema, dicente, argumento). [...] Cada uma dessas divises foi ento re-subdividida de acordo com as variaes prprias das categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade. Os signos em si mesmos podem ser: 1.1 qualidades; 1.2 fatos; e 1.3 ter a natureza de leis ou hbitos. Os signos podem estar conectados com seus objetos em virtude de: 2.1 uma similaridade; 2.2 de uma conexo de fato, no cognitiva; e 2.3 em virtude de hbitos (de uso). Finalmente, para seus interpretantes, os signos podem representar seus objetos como: 3.1 sendo qualidades, apresentando-se ao interpretante como mera hiptese ou rema; 3.2 sendo fatos, apresentando-se ao interpretante como dicentes; e 3.3 sendo leis, apresentando-se ao interpretante como argumentos. Dessas nove modalidades, Peirce extraiu as combinatrias possveis.

    Segundo Peirce, um cone estritamente uma possibilidade envolvendo uma possibilidade, e assim, a possibilidade de ele ser representado como uma possibilidade a possibilidade da possibilidade envolvida (CP 2.31), e por ser um signo cuja qualidade significante provm meramente da sua qualidade (CP 2.92), ele inscreve-se na primeiridade. Em artes visuais, os exemplos mais comuns de hipocones so pinturas e fotografias. Nth (1995a, p. 80), explica que um cone puro um signo que serve como signo pelo fato de ter uma qualidade que o faz significar. Em vista disso, o cone puro pode apenas constituir um fragmento de um signo mais completo. Por no alcanar a segunda categoria, o cone no tem existncia em relao ao seu objeto. O seu objeto tudo aquilo que a ele semelhante.

    Embora a complexidade da obra de Peirce seja notria para seus pes-quisadores, como j informamos anteriormente, Santaella (2000b, p. 5) sugere que devemos:

  • Uma reflexo sobre a filosofia de C. S. Peirce41

    Aprender a olhar os signos de frente, tanto na finssima pelcula de sua superfcie, quanto na viso em raio X, despidos dos subterfgios ardilosos que o racionalismo exclusivista no cessa de procriar, poderemos imediatamente enxergar com nossos olhos renovados as eternas questes do real, da referncia, do sujeito, do papel da representao e da interpretao. A obra de Peirce tem muito a nos ajudar.

    Isto porque vivemos num mundo povoado cada vez mais por signos, a tal ponto que, ainda segundo essa autora, se Peirce tivesse vivido neste sculo, teria se surpreendido com os avanos semiticos, provocados pela prpria caracterstica de nossa era, do milnio digital das mquinas inteligentes.

    Objeto

    Santaella (2000b, p. 34-35) evidencia a imensa complexidade da noo do objeto, ou melhor, a enorme gama de variaes que essa noo pode recobrir, complementando:

    Para abrirmos caminho no labirinto dessas variaes, creio que cumpre reter, para comear, que o objeto algo diverso do signo e que este algo diverso determina o signo, ou melhor: o signo representa o objeto, porque, de algum modo, o prprio objeto que determina essa representao; porm aquilo que est representado no signo no corresponde ao todo do objeto, mas apenas a uma parte ou aspecto dele. Sempre sobram outras partes ou aspectos que o signo no pode preencher completamente.

    Desse modo, podemos dizer que o objeto tudo que pode ser expresso por um signo, todavia, em virtude da diversidade irredutvel entre signo e objeto que Peirce introduz a noo de experincia colateral com aquilo que o signo denota, ou representa, ou se aplica, isto , seu

  • 42PaisagensSgnicas

    objeto. (SANTAELLA, 2000b, p. 35) Mas o que podemos entender por experincia colateral?

    Experincia colateral algo que est fora do signo, portanto fora do interpretante que o prprio signo determina. Na medida em que o interpretante uma criatura gerada pelo prprio signo, essa criatura recebe do signo apenas o aspecto que ele carrega na sua correspon-dncia com o objeto e no com todos os outros aspectos do objeto que o signo no pode recobrir. (SANTAELLA, 2000b, p. 36)

    A experincia colateral, de acordo com Peirce (CP 8.181), significa que, para conhecer o objeto, preciso uma experincia prvia desse objeto individual, pois enquanto o signo denota o Objeto no precisa de especial inteligncia ou Razo da parte de seu Intrprete. [...] para conhecer o Objeto, o que preciso a experincia prvia desse Objeto Individual. Com a diviso do objeto, em imediato e dinmico, podemos dizer, segundo Santaella (2002, p. 34), que o objeto imediato denota um objeto dinmico e, portanto,

    [...] o melhor caminho para comear a anlise da relao objetal o do objeto imediato. Afinal, parece no haver outro modo de come-ar, visto que o objeto dinmico s se faz presente, mediatamente, via objeto imediato, este interno ao signo.

    A diviso dos objetos do signo em dinmico e imediato mostra que, com o objeto dinmico, Peirce (5.212) identificou aquilo que est fora da cadeia sgnica, aquilo que algumas vezes ele chamou de real ou

    realidade, mas que pode ser tambm fictcio. E diante da pergunta em que medida esse objeto que est fora participa do processo sgnico?, Santaella (2000b, p. 46) lembra que, de acordo com Peirce, o fato de o objeto dinmico ser mediado pelo objeto imediato no o leva a perder o poder de exercer uma influncia sobre o signo, uma vez que o signo s funciona como tal porque determinado pelo objeto dinmico.

  • Uma reflexo sobre a filosofia de C. S. Peirce43

    cone, ndice e Smbolo

    O cone um signo cujas condies de significao prescindem da existn-cia de seu objeto, isto , o cone pode significar quer seu objeto seja uma existncia ou realidade. O cone prescinde do objeto para significar. Toda hiptese icnica. O ndice o signo que significa to somente atravs de seu vnculo existencial com o seu objeto. Desta forma, a existncia do objeto que determina a possibilidade interpretante do ndice. O ndice no prescinde do objeto para significar. O smbolo representa atravs de uma lei geral (regras), convencional ou semiconvencional. O smbolo refere-se ao que possa concretizar a ideia ligada palavra. Quanto sua diviso vejamos, nos dois trechos a seguir, a definio de Peirce:

    Os signos so divisveis conforme trs tricotomias; a primeira, con-forme o signo em si mesmo for uma mera qualidade, um existente concreto ou uma lei geral; a segunda, conforme a relao do signo para com seu objeto consistir no fato de o signo ter algum carter em si mesmo, ou manter alguma relao existencial com esse objeto ou em relao com um interpretante; a terceira, conforme seu inter-pretante, represent-lo como um signo de possibilidade ou como um signo de fato ou como um signo de razo. (PEIRCE, 2005, p. 51)

    Uma progresso regular de um, dois, trs pode ser observada nas trs ordens de signos, cone, ndice e Smbolo. O cone no tem conexo dinmica alguma com o objeto que representa; simples-mente acontece que suas qualidades se assemelham s do objeto e excitam sensaes anlogas na mente para a qual uma semelhana. Mas, na verdade, no mantm conexo com elas. O ndice est fisicamente conectado com seu objeto; formam, ambos, um par orgnico, porm a mente interpretante nada tem a ver com essa conexo, exceto o fato de registr-la, depois de ser estabelecida. O Smbolo est conectado ao seu objeto por fora da idia da mente-que-usa-o-smbolo, sem a qual essa conexo no existiria. (PEIRCE, 2005, p. 73)

  • 44PaisagensSgnicas

    Metafsica

    Na filosofia de Charles S. Peirce, a metafsica procura explicar como o mundo deve ser e como ele se apresenta compatvel com as determinaes da feno-menologia, sendo, portanto, a metafsica a cincia que estuda a natureza, suas leis, comportamento, regularidades, repeties, hbitos etc. De acordo com Ibri (1992, p. 123), as trs categorias da metafsica correspondem tambm ao acaso (primeiridade), existncia (segundidade) e lei (terceiridade):

    A Metafsica iluminar a compreenso semitica, e um dos pontos focais de luz emana do fato de que a forma do objeto se impe forma com um carter explicitamente ontolgico de morph, cabe registrar, tambm, que tal carter se perdeu ao longo da histria.

    Na filosofia peirciana, o acaso manifesta-se na forma de variedade, diversidade, mera possibilidade. Sua principal caracterstica a liberdade, a espontaneidade. A primeiridade metafsica , portanto, o acaso entendido como princpio de liberdade presente na natureza, como uma propriedade que se manifesta no mundo na forma de assimetria. Uma vez que a primeira categoria ontolgica diz respeito ao mero poder-ser, quele estgio em que ainda no se manifestou a existncia, mas apenas em potencialidade para vir-a-ser, ento no podemos afirmar a existncia de informao no mbito da primeiridade. Se o problema da representao se encontra enfatizado por Peirce na sua teoria formal dos signos, os problemas da realidade e da verda-de so abordados, respectivamente, no mbito da sua fenomenologia, isto , na teoria das categorias, e no mbito da teoria pragmtica dos signos.

    Pragmatismo e Semiose

    Segundo Santaella (2004a, p. 240), a primeira proposta do pragmatismo foi feita em 1878, particularmente nos ensaios Como tornar nossas idias claras e A fixao das crenas, mas, apenas em 1898, as ideias de Peirce referentes a esse tema foram expostas, atravs de William James, durante palestra

  • Uma reflexo sobre a filosofia de C. S. Peirce45

    proferida na Universidade da Califrnia. Tal foi a repercusso, que Peirce retomou sua anlise anterior de crena em cujo ncleo estava inserida sua original concepo de hbito. A partir de ento, Peirce tambm retoma

    a teoria dos signos, especialmente dos interpretantes. (SANTAELLA, 2004a, p. 241) Santaella (2004a, p. 242) conclui, assim, que, para Peirce, uma crena no nos coloca em ao prontamente, mas sim numa condio tal que deveremos agir de um certo modo quando a ocasio surgir.

    Santaella (2000b, p. 75) observa que, segundo Savan (1976),

    O efeito semitico pleno de um signo, se o seu propsito ou inten-o viesse a ser atingido, o interpretante final daquele signo. Uma vez que esse propsito fornece a norma que influencia a sucesso dos interpretantes dinmicos, ele tambm pode ser chamado de interpretante normal. E uma vez que a evoluo de interpretantes dinmicos sucessivos tende para o padro estabelecido pelo inter-pretante final, seja este padro, de fato, plena e exatamente satisfeito ou no, ele tambm pode ser chamado de interpretante destinado. A ao desse padro, na medida em que ele afeta e influencia cada interpretante dinmico real, o que lhe d vida e poder para se transformar em um hbito e numa crena.

    Assim posto, por pragmatismo, entende-se a ao do homem frente a uma experincia fenomenolgica, ou seja, a ao perante o alter, um segundo, o objeto, o real, e a maneira como ele reage, que necessita tanto a anlise dos signos como dos interpretantes. Atravs desses estudos, Peirce, ento, poderia investigar a conduta, e a partir de sua regularida-de, a aquisio de hbito. Diferentemente de outras mentes, algumas j cristalizadas, a mente humana aquela que est mais propensa a adquirir hbitos, romper com eles atravs da ao, estabelecendo novas crenas e novos hbitos. Trata-se, por conseguinte, de um processo evolutivo de conhecimento, de devir, pois o universo no esttico. Para ilustrar essas reflexes, escolhemos um trecho do artigo de Ivo Ibri, O paciente objeto da semitica, no qual esse autor poeticamente descreve o conceito do objeto, real e semitica. Assim, vejamos:

  • 46PaisagensSgnicas

    Qual divindade entediada de sua onipotncia, o poeta descobre encanto em sua impotncia em anoitecer a noite. A noite diz no e o desafia a encontrar uma poesia possvel escrita em uma espcie de face oculta da alteridade. Dotado pelos deuses do poder mgico de sempre dizer de modo oblquo toda a verdade, o poeta depara agora com o efetivamente verdadeiro. No mais poder dizer que o universo idia sua, no mais poder trair a noite: num fechar de olhos suprimir-lhe a existncia. Algo exterior desafiadoramente permanece. Algo objeta. Algo Objeto. , fundamentalmente, a este ser real que Peirce se refere em sua famosa trade semitica: Signo, Objeto, Interpretante. Esta exterioridade sempre desafiadora que denominamos Mundo, Natureza, sedutoramente convidativa decifrao pela cincia, produo infinita de arte no dizer de Schelling. [...] Uma imediata admirabilidade suprime conscincia o tempo, e a insere novamente, desperta para a temporalidade da observao intencionalmente cognitiva. Contudo, conhecer como um transcender da mera aparncia, como busca de um modo de ser, necessita da permanncia e daquela independncia do objeto que far com que este negue representaes falsas, ou seja, aquelas que predizem um curso dos fatos distinto do observvel curso dos fatos. (IBRI, 1996, p. 115-117)

    Santaella e Nth (2004, p. 160-161), observam:

    Que a semitica tambm uma teoria da comunicao, est im-plcito, em primeiro lugar, no fato de que no h comunicao sem signos. Em segundo lugar, est implcito no fato de que a semiose , antes de tudo, um processo de interpretao, pois a ao do signo a ao de ser interpretado em um outro signo. Por isso mesmo, o significado de um signo um outro signo e assim por diante, processo atravs do qual a semiose est em permanente devir.

    A esse processo de transitao sgnica, Peirce denomina de semiose, ou seja, o procedimento que transforma um signo em outro infinitamente.

  • Uma reflexo sobre a filosofia de C. S. Peirce47

    Na semiose, o objeto dinmico equivale realidade e o interpretante final verdade. Se fosse possvel o signo se desenvolver at o ponto de chegar realizao do limite do seu potencial, teramos a revelao perfeita do objeto dinmico, quando haveria uma superposio entre o real e a verdade. Da o real ser sinnimo de verdade.

    Charles Sanders Peirce: uma possvel Filosofia da Natureza

    Entra em teu barco do devaneio, desatraca no lago de pen-samento, e deixa o sopro do firmamento encher tua vela. Com teus olhos abertos, acorda para o que est volta ou dentro de ti, e abre conversa contigo mesmo; pois assim toda meditao. Charles Sanders Peirce (CP 6.461)

    De acordo com Ivo Ibri,3 a filosofia da natureza teve seu maior expoente no filsofo alemo Friedrich Wilhelm Joseph Von Schelling, que reconstri uma filosofia na Alemanha de exploso do Romantismo, na passagem do sculo XVIII ao sculo XIX. Schelling recorria ideia de vida, de paixo, de inspirao e de beleza, contrariando o conceito de uma viso de mundo mecanicista; um mundo que desde o sculo XVI fora concebido como um mundo mecnico. Nesse momento, Schelling vai presentear os seus amigos poetas com a experincia maravilhosa de contemplar, atribuir vida onde h vida, inspirado nos gregos que povoaram a natureza de deuses porque eles a enxergaram como destino de vida, de inteligncia e de aperfeioa-mento. Geneticamente, para Schelling, a natureza rica em diversidade, em qualidade, em assimetria, diferentemente de um mundo estritamente com leis mecnicas. Porm, em termos de qualidade, no h repetio, visto que todos os dias o sol se pe, a cada dia o pr do sol diferente e essa qualidade no se repete, a natureza uma celebrao. O sentido da palavra natureza, no entanto, j mostra a particularidade do pensamento de

    3Anotaes das aulas do professor Dr. Ivo Assad Ibri, na disciplina Filosofia: um dilogo entre Schelling e Peirce, ministrada na PUC/So Paulo, no segundo semestre de 2007.

  • 48PaisagensSgnicas

    Schelling, pois se trata de uma natureza concebida de modo extremamente autntico, instaurada na verdade, como um momento de interpenetrao entre necessidade e liberdade, entre real e ideal, e de encantamento pela unidade de contemplao: o espao e o tempo em que o eu se perde numa coisa maior que ela prpria (natureza); lugar onde a razo e a memria se desmobilizam; lugar onde o eu e o no eu desaparecem; uma experincia de unidade aglutinante, de unidade agpica.

    Ibri fala da natureza como o lugar onde a unidade agpica reside em plenitude, concepo semelhante ao conceito de belo que, para Schelling (2001b, p. 193), do mesmo modo, retorna sempre natureza, pois esse conceito , antes de qualquer coisa, a obra de arte: Na arte, o mistrio da criao se torna objetivo, e a arte , justamente por isso, pura e simplesmen-te criadora. Por ser sensvel, o belo encanta, mas no tem permanncia; um jogo constante entre o particular e o geral; onde a verdade corres-ponde necessidade, ao bem, liberdade, a qualidades que so prprias da arte. Ainda, segundo Schelling (2001b, p. 193), chamamos de bela uma figura em cujo delineamento a natureza parece ter jogado com amor, liberdade e com a mais sublime clareza de conscincia, mas sempre nas formas, nos limites, da mais rigorosa necessidade e legalidade. Para esse filsofo, a arte , por conseguinte, uma sntese ou interpretao recproca absoluta de liberdade e necessidade. Sua filosofia nos diz que a natureza um sistema que nunca est em repouso. Independente de nossa obser-vao sobre seu desenvolvimento, todos os seres naturais crescem, cada um cria hbitos a depender de seu prprio tempo. A ns ela no aparece como um todo, so sempre recortes, e o nico conhecimento imediato que possumos do nosso prprio ser. [...] Fora de ns nunca poderemos compreender, mas pod-lo-emos se ela se realiza em ns, porque nesse caso somo-la, ela que constitui a nossa prpria natureza. (SCHELLING, 2001b, p. 193) Na apreciao de Santaella (2000a, p. 72), Schelling queria construir uma sntese da arte e da filosofia, na medida em que, para ele, ambas so representativas [...] e relacionadas com o corpo disponvel de representaes compartilhveis. Contudo, havia uma questo presente na filosofia da natureza que era chegar inteligncia, partindo da natureza,

  • Uma reflexo sobre a filosofia de C. S. Peirce49

    e para esse filsofo a natureza, como um sistema evolutivo, se desenvolve a partir de suas prprias leis.

    Segundo Ibri (1992, p. 57), para Peirce, a natureza somente parece inteligvel na medida em que parece racional, ou seja, na medida em que seus processos so considerados similares a processos de pensamento. Tal entendimento de Peirce tambm reconhecido por Santaella (2000b, p. 148-149), na passagem que se segue:

    A natureza um repertrio de fatos muito mais vasto e muito menos claramente ordenado do que um relatrio do censo; e se a humanidade no tivesse vindo a ela com aptides especiais para adivinhar corretamente, teramos tudo para duvidar se, nos dez ou vinte mil anos de sua existncia, suas grandes mentes teriam sido capazes de chegar quantidade de conhecimento. [...] Todo conhecimento humano, at os mais altos pncaros da cincia, no seno o desenvolvimento de nossos instintos animais inatos. sempre a hiptese mais simples, no sentido de mais dcil e natural, aquela que o instinto sugere, aquela que deve ser proferida.

    Consequentemente, a relao do homem com a natureza no apenas uma relao de escolha, ou seja, o homem no se volta natureza por vontade prpria e nela tenta descobrir um mundo diferente do seu, mas, pelo contrrio, homem e natureza esto ligados por elos que so inerentes sua constituio. Ainda segundo Santaella (2004a, p. 104-106), de acordo com Peirce:

    No pode haver nenhuma dvida razovel de que a mente humana, tendo se desenvolvido sob as influncias das leis naturais, pensa naturalmente por essa razo, de um modo similar aos padres da natureza. [...] A espcie humana desenvolveu essa faculdade provavelmente no curso do crescimento evolutivo de sua consti-tuio fsica e mental. Certas uniformidades, certas idias gerais de ao. Certas leis de movimento operam por todo o universo, e a mente humana, a mente raciocinante um produto dessas leis

  • 50PaisagensSgnicas

    altamente onipresentes. [...] O homem tem o insight natural das leis da natureza.

    luz desse entendimento, Richard Rorty assim se expressa:

    Sendo parte da natureza, a mente emergiu do mesmo processo evolutivo que perpassa a biosfera. H, consequentemente, uma conaturalidade entre a mente e o cosmos, o que significa que o homem tem uma afinidade com a natureza, est em sintonia com ela, e possui uma adaptao natural para imaginar teorias e idias que traduzem essa sintonia. Mente e natureza desenvolvem-se juntas, esta ltima implantando, na primeira, sementes de idias que iro amadurecer em comum concordncia. (RORTY, 1988 apud SANTAELLA, 2004a, p. 106)

    Essa teoria vai desmistificar algumas ideias presentes no pensamento humano, sobretudo na cultura ocidental, de que o homem um ser supe-rior que cria e domina a natureza sua vontade. Do mesmo modo que Schelling (2001b) entende o belo como um conceito de vida, de beleza natural, beleza orgnica, beleza no sentido do sistema inteligente e dotada de telos (palavra grega que significa fim, realizao, objetivo, misso), a esttica conhecida como a filosofia do belo tambm para Peirce a filosofia da admirabilidade, do que admirvel, o modo pelo qual algum age para atingir, alcanar o ideal, a natureza da experincia puramente sensvel. O sentido da palavra admirvel de Peirce est contido, segundo Santaella (2004a, p. 147), nas palavras de Schelling:

    O mundo ideal move-se poderosamente para a luz, mas ainda refreado pelo fato de a Natureza se ter retirado como mistrio. Os prprios segredos que residem no mundo ideal no se podem tornar verdadeiramente objetivos seno no referido mistrio da Natureza. As divindades ainda desconhecidas, que o mundo ideal prepara, no podem surgir enquanto tais antes de poderem tomar

  • Uma reflexo sobre a filosofia de C. S. Peirce51

    posse da Natureza. Depois de todas as formas finitas serem des-troadas e de no vasto mundo nada existir para alm daquilo que uniu os homens como intuio comum, somente a intuio da identidade absoluta na totalidade objetiva mais perfeita.

    Em Schelling (2001b), tambm possvel encontrar a semente do pragmatismo de Peirce: ao e conhecimento; exteriorizar o conhecimento atravs da ao, de um agir. essa a noo do pragmatismo que ser estudado por Peirce, que se configura por ser uma permanente construo de interpretantes, de aprendizagem, ou seja, pensar, agir e refletir sobre a ao. nessa ao, denominada por Ivo Ibri (1992) de impulso semitico, impulso csmico, que o significado vai se construir, pois todos os seres naturais agem conforme a alma do mundo. Dessa forma, alm do conceito de pragmatismo, Ibri (1992) ainda esclarece que, desde Scrates a Peirce, somente Schelling vai falar sobre a liberdade dos fenmenos. E no foi outro o interesse de Peirce (2005), ao criar a esttica e a categoria de primeiridade, conceito que j se encontrava na Grcia antiga, conhecido como acaso, ou seja, a associao de obteno de um objetivo perfeio, que na esttica peirciana corresponde ao signo icnico, de pura liberdade. O belo, para Peirce (2005), um dos predicados do summum bonum, e a arte um dos canais, um dos caminhos para se chegar a uma experincia de totalidade. Contudo os conceitos de beleza e de arte no devem estar confinados ao ser humano, pois esse conceito abrange tudo aquilo que est em torno de ns, incluindo a natureza.4

    Santaella (1992, p. 107-108) oferece informaes adicionais que ampliam nosso conhecimento sobre a maneira pela qual Peirce entendia a arte e a cincia: com uma noo prpria, uma viso sui generis, ao estabelecer trs espcies de homens:

    A primeira consiste naqueles para quem a coisa est nas qualidades dos sentimentos. Esses homens criam a arte. A segunda consiste

    4Anotaes das aulas do professor Dr. Ivo Assad Ibri, na disciplina Filosofia: um dilogo entre Schelling e Peirce, ministrada na PUC/So Paulo, no segundo semestre de 2007.

  • 52PaisagensSgnicas

    nesses homens prticos, que levam frente os negcios do mundo. Estes no respeitam outra coisa seno o poder, e o respeitam na medida em que ele pode ser exercido. A terceira espcie consiste nos homens para quem nada parece ser grande a no ser a razo. Se a fora lhes interessa, no sob o aspecto do seu exerccio, mas porque ela tem uma razo e uma lei. Para o homem da primeira espcie, a natureza uma pintura; para os homens da segunda, ela uma oportunidade; para os homens da terceira, ela um cosmos, to admirvel que penetrar nos seus caminhos lhe parece a nica coisa que a vida valeu a pena. Esses so os homens que vemos estarem possudos pela paixo por aprender, do mesmo modo que outros tm paixo por ensinar e disseminar sua influncia. Se no se entregam totalmente paixo por aprender porque exercitam o autocontrole. Estes so os homens cientficos, e eles so os nicos homens que tm qualquer sucesso real na pesquisa cientfica.

    Em muitas passagens dos manuscritos deixados por Peirce (apud SANTAELLA, 2004a, p. 105), vamos encontrar uma maneira poeticamente particular de ver e entender a relao entre a mente humana e a natureza, ainda que segundo um raciocnio cientificamente lgico, quando diz, por exemplo, que: nossa faculdade de adivinhao corresponde aos poderes voadores e musicais dos pssaros, isto , ela para ns o que estes so para eles: o mais atirado dos nossos poderes meramente intuitivos. Assim,

    a habilidade para fazer conjecturas para o homem aquilo que o vo e o canto so para os pssaros, [pois, na filosofia de Peirce,] o instinto funciona como um fio comum unindo todos os seres vivos da natureza, desde os vegetais, passando pelos animais inferiores at o homem.

  • 3REPRESENTAO

    Uma obra de arte um desafio; no a explicamos, ajustamo-nos a ela. Ao interpret-la, fazemos uso dos nossos prprios objectivos e esforos, dotamo-la de um significado que tem a sua origem nos nossos prprios modos de viver e pensar. Hauser, 1988

    Em Lendo imagens: uma histria de amor e dio (2003), Alberto Manguel, fala que, em meados do sculo I d.C., no trigsimo quinto livro da sua histria natural, o erudito Plnio, o Velho, escreveu que embora os egp-cios reclamassem para si a inveno das artes da pintura e da escultura, os gregos afirmavam que essa inveno tivera lugar em Sicone ou em Corinto. Assim, continua Manguel (2003, p. 89):

  • 54PaisagensSgnicas

    A filha de um certo ceramista apaixonou-se por um jovem estran-geiro. Quando chegou a poca de seu amado partir, ela traou o contorno da sombra do rosto dele em uma parede e pediu ao pai para preencher as linhas com argila, criando assim uma imagem do seu amante ausente. Apreender fielmente a realidade por meio do contraste entre sombra e luz parecia a Plnio o objetivo da arte e ele louvava, por exemplo, o trompe-loeil do artista Zuxis.

    Este pequeno trecho trata da noo de representao do real, que, por muitos sculos, esteve sob a responsabilidade da pintura e da escultura. Manguel (2003, p. 90) observa que, na concepo de Plnio (sc. I d.C.), a narrao da histria de Zuxis visava mostrar como as pinturas po-dem comportar um espelho fidedigno do mundo, pois o velho pensador considerava a subjetividade como algo nocivo arte.

    O conceito de representao, portanto, embora recorrente nas teorias estticas a partir do sculo XX, uma preocupao que vem desde a Grcia antiga e ainda suscita maiores investigaes, sobretudo no que diz respeito s implicaes ontolgicas e semiticas. Por ser um assunto que permeia toda nossa investigao, trazemos esse conceito, luz de vrios tericos, dando maior nfase s principais concepes que serviram de aporte terico a reflexes posteriores.

    Charles Sanders Peirce j pretendia uma teoria geral da representao. No seu livro Semitica (2005), um signo aquilo que sob determinado aspecto representa algo para algum. Vai ao encontro de algum, criando na mente desta pessoa um outro signo. O signo uma representao de seu objeto.

    Na semitica peirciana, representao apresentao de um objeto a um intrprete de um signo ou a relao entre signo e objeto, assim, representar estar para, isto , desempenhar uma funo significativa; tambm podendo ser definida como distinguir entre aquilo que representa e o ato ou relao de representar; um signo baseado numa relao de semelhana. Para Peirce (2005, p. 61), representar :

  • Representao55

    Estar no lugar de, isto , estar numa relao com um outro que, para certos propsitos, considerado por alguma mente como se fosse outro. Assim, um porta-voz, um deputado, um advogado, um agente, um diagrama, um sintoma, uma descrio, um conceito, uma premissa, um testemunho, todos representam alguma outra coisa, de diferentes modos, para mentes que os consideram sob esse aspecto.

    Santaella e Nth (1997, p. 19-20), luz da semitica de Peirce, en-tendem que:

    Etimologicamente, o conceito de representao se encontra em oposio ao de (a)presentao. Uma representao parece, de acordo com isso, reproduzir algo alguma vez j presente na conscincia. [...] A diferenciao entre um objeto (diretamente) apresentado (e, como tal, que se mostra a si mesmo) e um objeto (mediador) representado uma diferena semitica ontolgica. [...] Objetos apresentados funcionam ontologicamente; objetos representados funcionam semioticamente.

    Desde o pensamento medieval, as formas externas de manifestao das coisas so semelhanas (similitudes) das coisas. Nos Dilogos, Plato (427-347 a.C.), considerava a pintura e a escultura como imitao da imi-tao, da decorrendo sua ideia e noo da arte. Ao fazer uma reviso da filosofia, Santaella (2000a, p. 26) apresenta o pensamento de alguns filsofos, entre os gregos do perodo de 500 a 300 a.C, que discutem o problema da duplicidade desse conceito,

    que veio receber, ao longo dos sculos, as mais variadas denomina-es, entre elas: representao, expresso, iluso, semblante, simu-lao etc., todas elas, no entanto, no passando de deslocamentos ou variaes em torno do mesmo tema, o da mimese, levantado por Plato.

  • 56PaisagensSgnicas

    Segundo Guinsburg (2006), o filsofo grego vai declarar sua idia de arte, sobretudo as artes plsticas, como algo que est bem longe da verdade, mas no imitador.

    Mimese, portanto, uma imitao bem-sucedida do mundo natural, o que desloca seu conceito do sentido de cpia para o de representao, esta ltima entendida no como reproduo, mas como apresentao de algo como se fosse real. Ainda segundo Santaella (2000a, p. 27), em Aristteles a significao de representao inclui a verossimilhana, que significava o estabelecimento de representaes convincentes, internamen-te procedentes. Ao considerar a beleza como uma propriedade objetiva de uma obra de arte e mesmo da natureza, em lugar da busca do Belo que Plato considerava como um dos fins ltimos da arte, [Aristteles] deslocou sua nfase para os benefcios morais que a arte pode trazer. (SANTAELLA, 2000a, p. 31)

    O significado da palavra mimesis j diz: imitao, a ao de imitar; cpia, reproduo ou representao da natureza. Vejamos, no trecho a seguir, algumas consideraes sobre esse conceito:

    [...] o que constitui, na filosofia aristotlica, o fundamento de toda a arte. Herdoto foi o primeiro a utilizar o conceito e Aristfanes, em Tesmofrias (411), j o aplica. O fenmeno no exclusivo do processo artstico, pois toda atividade humana inclui procedimentos mimticos como a dana, a aprendizagem de lnguas, os rituais religiosos, a prtica desportiva, o domnio das novas tecnologias etc. Por esta razo, Aristteles defendia que era a mimesis que nos dis-tinguia dos animais. Os conceitos de mimesis e poeisis so nucleares na filosofia de Plato, na potica de Aristteles e no pensamento terico posterior sobre esttica, referindo-se criao da obra de arte e forma como reproduz objectos pr-existentes. O primeiro termo aplica-se a artes to autnomas e ao mesmo te